Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Converted by convertEPub
O DEVORADOR
DE ALMAS
Paulo Dumi
1ª Edição
ISBN: 978-85-917434-0-7
Para você caro leitor, o que posso dizer é que tudo o que
você lerá a partir de agora foi parte do que estas pessoas
viveram e o que eu vivi integralmente nestes últimos
dezoito meses.
Espero que, ao ler, você também viva o mundo de O
Devorador de Almas.
Paulo Dumi.
SUMÁRIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO 01
CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03
CAPÍTULO 04
CAPÍTULO 05
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07
CAPÍTULO 08
CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
EPÍLOGO
“O prazer culpado de se deliciar com desastres faz
Umberto Eco
PRÓLOGO
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
No dia seguinte, conforme o horário descrito na
passagem aérea, fui para o aeroporto com antecedência.
Ainda no saguão, a Fome se manifestava com mais
frequência, me inquietando. Ainda conseguia me
controlar, mas não sabia por quanto tempo.
Entrei no saguão de embarque. Com a Fome se
manifestando, o falatório normal do aeroporto era
ensurdecedor para os meus ouvidos. Meus olhos queriam
mudar de cor, mas meu esforço para controlá-los
mantinha-os na cor castanha. Havia momentos que era
necessário fechá-los para que aquela sensação
incontrolável passasse.
Entrei no avião. E as três horas seguintes foram
realmente torturosas. Por diversas vezes as aeromoças
vinham perguntar se estava tudo bem comigo. Eu dizia
que eram apenas enjoos, que logo passariam. Em alguns
momentos de fato eram, pois o meu olfato já era capaz
de reconhecer a maior parte dos perfumes que ali
impregnavam o ar pressurizado.
Olhei pela janela, enquanto nos aproximávamos do
aeroporto de destino. Lá embaixo várias luzes
amareladas vindas de prédios e postes davam a
dimensão do que era a mais importante cidade do País. A
Capital se estendia até o início de uma cadeia de
montanhas, próxima a linha do horizonte.
Desci da aeronave trajando um terno e carregando
apenas uma pasta de mão. Não havia nada nela. Estava-
a usando apenas para dar mais credibilidade ao disfarce.
A máscara de borracha, peça importante para a
camuflagem, já estava devidamente vestida antes
mesmo de eu embarcar no avião. Aliás, o material era
impressionante, a ponto de encaixar perfeitamente sobre
a minha pele, fazendo-me ter movimentos livres em
todos os músculos da face.
Fui para a saída e senti o calor abrasando o vento.
Mesmo sendo de noite, a Capital era quente na maior
parte do ano. Dirigi-me até o ponto de táxi, onde havia
um aguardando por um passageiro. Rapidamente entrei e
indiquei o caminho.
O Senado parecia uma verdadeira fortaleza. Iniciava em
três lances de escadas, que dava acesso para um
verdadeiro palácio de cor branca que se erguia acima da
base. Na frente, pilares romanos sustentavam o teto
triangular, que dava abrigo à entrada de vidro.
Aliás, podia-se ver que a entrada era bem segura. Logo
de cara, uma porta giratória bloqueava quem tentava
entrar com metal. Passado por ela há uma recepção,
onde se identificando com nome, foto e impressão
digital, é emitida uma credencial para que visitantes
entrassem nas dependências. Para os funcionários do
Senado – e isso incluía obviamente os Senadores –
bastava apenas passar o crachá funcional pelas catracas.
Fora isso, caso fosse necessário, ainda haveria uma
revista manual, feita por seguranças com detectores de
metal portáteis.
Pensei em invadir o Senado pelos fundos. Mas como
pude observar na planta que veio com o dossiê – e
depois pessoalmente, enquanto o táxi passava por lá –,
este acesso era tão seguro quanto o da frente. Portões
de ferro impediam o acesso. Câmeras de vigilância se
espalhavam ao longo da enorme parede branca que
delimita a área do Senado. Para ajudar, acima dela, cerca
elétrica corria por toda a extensão, até chegar nas duas
quinas, onde havia guaritas com sentinelas fazendo a
segurança do local. Todo o perímetro da entrada principal
e o dos fundos era vigiado com a máxima precaução.
Subi lentamente as escadas antes da entrada. Já tinha
tudo planejado na minha cabeça. Minha estratégia
estava tomada e eu estava pronto para agir. Tirando os
documentos falsos, não levava mais nada comigo.
Alcancei o último degrau e fui chegando até a porta
giratória.
Meu corpo ardia com a Fome que eu estava. Os músculos
já não estavam tão obedientes às minhas vontades.
Meus ouvidos e visão aguçados já detectavam o que se
passava do lado de dentro do Senado. Não poderia
esperar mais. Precisava agir, antes que eu perdesse o
controle.
Passei sem problemas pela porta giratória. A sensação de
entrar no Senado era de que eu estava dentro de um
grande palácio. A recepção era grandiosa. Continha
esculturas de arte espalhadas pelo salão forrado com um
piso de mármore negro. Duas pilastras sustentavam o
teto desenhado com afrescos. Claro, tudo aquilo foi
adquirido – sem nenhum pudor – com verba pública.
Fui avançando em direção à catraca. Olhei de relance
para a recepção, onde a recepcionista estava
concentrada em alguns papéis que estavam deitados em
sua mesa. Com as mãos trêmulas pela fome, retirei o
crachá do bolso. Quando ia passar a identificação no
leitor da catraca, alguém me surpreendeu:
- Senador Michel? – disse uma moça vindo ao meu
encontro – o que o senhor está fazendo aqui? Deveria
estar em casa, descansando!
Ela era pequena e magra. Vestia um blazer preto e
carregava alguns papéis dentro de uma pasta-arquivo.
Fiquei paralisado, sem saber o que fazer.
Ela retomou a conversa.
- O senhor está melhor? Se recuperou da gripe?
- Ah... s-sim... estou bem melhor – arrisquei.
Ela me olhou de forma estranha, como se notasse algo
de diferente.
Claro, a voz!
- ...embora a voz ainda esteja um pouco estranha. –
emendei, pigarreando.
Ela sorriu, enquanto passava pela catraca. Olhei para os
lados. Os seguranças nos observavam, porém de uma
forma mais relaxada. Pensei que passar por eles seria o
meu maior problema, mas a presença daquela moça me
facilitou demais a entrada. O disfarce estava dando
certo.
Sem perder tempo, também passei pela catraca,
seguindo a moça até o elevador.
- E então, o que veio fazer a essa hora da noite, Senador?
– disse a moça, enquanto ela apertava o botão do sexto
andar. Segundo o dossiê do Mensageiro, era neste andar
onde ficava o gabinete do Senador Emilio.
- Er... tenho que resolver alguns assuntos pendentes –
procurei disfarçar.
- Assuntos pendentes? Mas senador, não lembro de ter
algum assunto na sua agenda para hoje.
- S-sim... – tossi, tentando ganhar um pouco de tempo
para pensar na desculpa - ... Mas é que uns conhecidos
me ligaram para ver sobre alguns assuntos “extra-
políticos”, se é que me entende. Preciso de alguns papéis
para ajudá-los.
- Entendi – ela disse, enquanto virava para o espelho do
elevador para ajeitar os cabelos. Observei-a fazendo isso
e meus olhos encontraram no reflexo o crachá que
estava pendurado no bolso de seu blazer. O nome dela
estava escrito ao contrário.
Melissa.
O cargo a identificava como assessora. Isso explicava
algumas coisas.
***
***
***
***
***
Agora recuperando a consciência, tentava buscar
explicações de como cheguei até ali. Os meus sentidos
continuavam a retomar a sua normalidade, enquanto
ouvia alguém do lado de fora das grades me chamando:
- Ei! Você! – disse o carcereiro – Tem visitas.
Aos poucos me levantei do colchão velho e duro. Passei
palma interna da mão no rosto, enquanto um homem de
terno branco se aproximava da cela. Segurando seu
reconhecível cetro contendo a cabeça de Cérberus, o
Mensageiro me olhava, desta vez desapontado:
- Francamente, achava que você fosse mais astuto.
- Como cheguei até aqui? – o perguntei.
- De que adianta agora saber? – ele retrucou. – Você
falhou! Foi visto pelas câmeras e capturado por eles! –
era assim que ele se referia aos vivos - Encontraram
indícios seus perto dos corpos. – ele fez uma pausa, com
uma longa e pesada lufada de ar. – Você sabe quais são
as consequências, não sabe?
Busquei na minha memória a voz do Demônio, com todas
as implicâncias caso eu fosse capturado. Ela era bem
clara.
“Deves fazer vossa refeição de forma discreta e
silenciosa. Não poderá haver testemunhas. Se houver,
mate-as. Se alguma sobreviver, terei que encerrar o
nosso pacto. Consequentemente, você deixará de ser um
dos meus servos, sendo substituído e caçado por outro.
Sem vestígios, se me entendes”.
- Pois bem – disse o Mensageiro, enquanto acenava para
que alguém se aproximasse. Um outro ser, sem rosto,
vestindo roupas pretas, surgiu ao lado dele.
- Quero lhe apresentar o novo devorador de almas.
Na escuridão de seu rosto, um par de olhos ardeu em cor
opala, assim como os meus ficavam quando a Fome
manifestava. Ele estava faminto. Eu sabia o que ele
estava sentindo, e sabia mais ainda como era
praticamente impossível conter o instinto quando a Fome
tomava conta da consciência humana.
Odeio admitir, mas estava com medo.
Não dele. Mas do que iria acontecer depois de ser
devorado.
Com uma força descomunal, o novo Devorador afastou
duas das barras da cela com as mãos, abrindo um
espaço suficiente para entrar. Assim que terminou, ficou
me encarando, com um sorriso escapando do lado
esquerdo da sua boca.
Com uma velocidade incomum, suas mãos vieram ao
encontro do meu pescoço. Sem os meus sentidos
aguçados, nada pude fazer.
Então, um frio terrível se alojou no meu corpo.
Meus músculos já não respondiam os comandos do
cérebro.
Meus olhos já não focavam meu agressor.
E a escuridão tomou minha existência.
Mais uma vez adormeci no sono eterno.
Desta vez, para sempre.
***
Ergui meu corpo com toda a força que pude. Estava todo
molhado de suor. Mais uma vez estava desnorteado.
Meus olhos, recém-despertos, procuravam se adaptar à
iluminação. Tateei o que estava ao meu redor. Busquei
me locomover, mas o máximo que consegui foi um
tombo, quando não havia mais onde apoiar.
Parei e aguardei minha visão voltar ao normal. Assim que
isso aconteceu, me dei conta de onde estava.
Não estava no vazio, como achava que acontecia com as
almas devoradas.
Atrás de mim ainda repousava o sofá de couro preto
ainda com as almofadas marcadas com o peso do meu
corpo. Na frente havia a televisão de tubo. Eu estava
novamente no escritório da velha fábrica de fibra de
vidro que fiz como moradia.
Eu não havia sido devorado.
A cela, o Mensageiro, o novo Devorador de Almas. Tudo
aquilo não passava de um sonho. Depois de tanto tempo,
sonhei com algo que não fosse o pacto com o Demônio. E
isso não era bom. Muito pelo contrário.
Fui até o banheiro e joguei um pouco de água fria no
rosto para despertar. Olhei para o meu reflexo no espelho
e vi um homem ainda com um rosto terrivelmente
assustado, com as sobrancelhas erguidas e músculos
contraídos.
Sentia-me saciado da Fome. Então de fato estive na
capital do País e devorei a alma do Senador Emílio
Salgado. Certamente também matei a puta que estava
com o Senador e Melissa, que nada tinha a ver com a
história.
Pobre Melissa. Pessoa errada, no lugar errado.
Tinha pena dela. Pelo pouco tempo em que estive com
ela, me pareceu ser uma pessoa dedicada. Mas eu não
tinha remorsos por tê-la assassinado. A vida, mesmo
após a morte, me mostrou que o mundo dos vivos, não
foi feito para pessoas como ela.
Os mundos são dos injustos.
Quanto à Melissa, acho que ela deve ter encontrado o
caminho para o Paraíso.
Fui para debaixo do chuveiro. A água quente espirrava
sobre a minha pele, na tentativa de me relaxar. Enquanto
permanecia debaixo da ducha, lembrei que uma semana
já tinha se passado e o prazo para Homero obter
informações sobre o homem que estava com Micaela na
última noite se expirava naquela noite.
Eu estava na trilha certa.
Pelo menos, era o que eu esperava.
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
***
Afastei-me da porta. Do outro lado, ouvia apenas gritos e
passos pesados passando pelo corredor. Um dos
seguranças gritava, ordenando que abríssemos a porta.
Obviamente que ignorávamos o inimigo. Outra voz
surgiu, desta vez mais longe, informando que o chefe
estava morto. Celsio. Era certeza que os seguranças não
iam medir esforços para arrombar aquela porta e
capturar os assassinos do dono do Deuses do Olimpo.
Tanto eu quanto Micaela olhamos ao redor de forma
rápida. A sala estava no breu, e talvez ela não
enxergasse muita coisa. Porém, graças à minha Fome,
minha visão ainda estava apurada o suficiente para ver
três fileiras de baias de escritórios distribuídas pela sala.
Sala que tinha a mesma dimensão que a de reuniões. Até
as mesmas janelas de vidro que iam do teto ao chão
havia ali. Porém, até pela localização, esta sala não
recebia tanta iluminação externa quanto a outra.
Da entrada da sala, já ouvíamos os primeiros baques
contra a porta. Os seguranças tentavam arrombá-la no
chute. Nossa sorte era que a folha de madeira era
grossa, dificultando a ação. Avancei rapidamente pela
sala tentando bolar um plano. Precisava ser rápido.
Urgente.
Eu estava perto de uma das janelas de vidro, quando
notei algo diferente nela. No canto, já na junção com
uma das paredes de concreto, tinha uma maçaneta.
Girei-a, e uma porta de vidro falsa se abriu.
- Micaela, por aqui – sussurrei.
Ao abri-la, senti o bafo quente do ar entrando no recinto.
Ao olhar para fora, vi que tinha um pequeno parapeito
que levava até o outro lado do prédio. O espaço era
pequeno, mas o suficiente para caminhar de lado, com
as costas coladas na parede.
No mesmo momento em que tive a ideia de sair, a porta
de entrada da sala tombou para frente, gerando um
grande estardalhaço. Aos poucos os seguranças foram
entrando, tendo o cuidado para não serem pegos de
surpresa. Diante do breu, eles também enxergavam
quase nada. Não deu tempo de sair da sala e seguir pelo
parapeito. Puxei Micaela pelo braço e, agachados
procurei nos esconder em uma das baias vazias.
- Pedem para a central de energia ligar a luz do escritório
de contabilidade do vigésimo segundo andar – escutei o
segurança mais adiantado ordenar no rádio comunicador.
Fiquei aguardando o movimento dos seguranças. Em
cada corredor das baias, havia um deles resguardando
para que ninguém passasse. Escondi Micaela debaixo da
mesa de uma das baias e fiquei observando o movimento
dos seguranças. O que guardava o corredor entre uma
das baias e a parede de vidro foi avançando. Ao chegar
na última mesa, percebeu a porta de vidro na janela. Ela
ainda estava aberta.
- Atenção! Todos! Aqui! – gritou para os outros
seguranças, que seguiram na direção da porta.
O segurança olhou para fora da porta de vidro, buscando
algum rastro de nós dois no parapeito.
- Alguém sabe onde que esse parapeito vai terminar? –
ele perguntou aos outros seguranças. Todos eles
menearam a cabeça, negativamente. – Pois bem – ele
continuou, criando coragem – Me dêem cobertura. Vou lá.
E então, cuidadosamente, ele saiu pela porta de vidro.
Apoiou o pé direito no estreito parapeito. Sem olhar para
baixo, apoiou o esquerdo. As mãos estavam grudadas na
parede. Eles realmente acreditavam que tínhamos fugido
por ali. Que imbecis! Gostaria de ficar ali e ver a cara
dele ao saber que arriscou a própria vida por nada.
Com as atenções voltadas ao parapeito, as coisas
ficaram mais fáceis para mim e Micaela. Ainda
agachados, fomos seguindo em direção a entrada.
Micaela foi na minha frente. Com extrema habilidade, foi
se escondendo pelas sombras, até alcançar a passagem
aberta pela porta estourada.
Eu estava mais para trás. Faltava mais uma baia para
chegar à saída, quando as luzes da sala foram ligadas.
Parei por um momento, sendo pego de surpresa pela
iluminação. Os seguranças, também surpresos, olharam
para trás. Foi quando um deles me viu.
- Ali! Vamos!
Saí correndo em direção à porta, com os seguranças em
meu encalço. Alcancei o corredor e vi Micaela indo em
direção às escadarias. Segui-a. Dois tiros foram
disparados contra mim, mas sem sucesso. Cheguei até a
porta corta-fogo, onde a abri com violência para que,
finalmente, pudesse avançar para as escadas.
Assim que atravessei a porta, levei a mão até a barriga.
A Fome voltava a se manifestar. Gritei por Micaela.
- Aqui embaixo! – ela me respondeu.
Instintivamente, fui descendo de cinco em cinco degraus,
pulando-os o mais rápido que podia. Antes que Micaela
notasse, eu já a tinha alcançado. Estávamos entre o
vigésimo e o décimo nono andar, quando ouvimos a
porta corta-fogo do vigésimo segundo andar bater na
parede, com a força que um dos seguranças aplicou para
abri-la. Olhei para cima, e vi pelo vão das escadas que
eles espiavam constantemente para baixo, situando
nossa localização.
- Se quisermos sair vivos, é melhor sermos mais velozes
– eu retruquei.
- Só mais quatro andares – ela disse, como se
conhecesse alguma coisa que eu não sabia.
Descemos os demais andares com uma velocidade nos
pés impressionante. A Fome doía ainda mais dentro de
mim, mas o instinto da sobrevivência falava mais alto
naquele momento. A cada segundo que deixava de me
alimentar, a dor aumentava. Já tinha me perguntado o
que aconteceria quando a Fome fosse levada ao
extremo, mas como todas as missões anteriores foram
sempre bem-sucedidas, era impossível de saber. Ao que
tudo indicava, aquela noite eu teria a minha resposta.
Ao chegar no décimo quinto andar, Micaela parou na
frente da porta corta-fogo. Ela me pareceu um pouco em
dúvida se era realmente o andar certo. Mas eu sei que
era. Meus ouvidos captavam vozes de várias pessoas
vindo dali, além de música tocando em alto volume.
Olhamos para cima e vimos os seguranças cada vez mais
próximos. Novas rajadas de tiros. Não tínhamos tempo
para titubear. Entramos.
Ao passarmos pela porta, minha primeira reação foi
colocar as mãos nas orelhas, tampando-as. A batida do
som veio como um estrondo aos meus ouvidos, cada vez
mais aguçados.
- Está escuro aqui! – berrou Micaela. Para os meus olhos,
o salão lotado de gente, dançando, paquerando, ou
apenas conversando, estavam extremamente nítidos.
Estávamos em uma área do hotel que era destinada para
baladas. O barulho era ensurdecedor para mim. Já não
bastasse isso, os seguranças tinham acabado de entrar
no salão.
Micaela me pegou pela mão e foi me conduzindo no meio
da multidão. Entre um esbarrão e outro, acabamos nos
misturando no meio das pessoas. Olhávamos para trás e
víamos os seguranças ficando na ponta dos pés, nos
procurando.
Fomos avançando até o outro lado do salão. Durante o
trajeto, a Fome apertava ainda mais. A dor aumentava, e
precisava me alimentar. Havia muitas pessoas ali, mas o
que menos precisávamos naquele momento era chamar
a atenção.
Ao chegarmos no fim do salão, avistamos uma das
saídas. Obviamente já estava sendo vigiada por outros
seguranças. Os que nos perseguiam já havia informado a
Central de Segurança, que deve ter acionado mais
homens para o local. Procuramos as outras saídas, mas
todas estavam sendo vigiadas. Mais uma vez estávamos
encurralados.
- Pelo visto eles já estão sabendo de nós. – Micaela soltou
um leve sorriso amarelo. Ela olhou para os lados,
pensativa, onde parou o olhar em um lado
completamente diferente das saídas - Venha comigo!
Micaela foi me empurrando até um canto do salão
redondo. Ao fazer isso, ela me parou perto de duas
portas. Pelo desenho cravado nas placas que estavam
pregadas nelas, eram os banheiros.
- Precisamos de um disfarce. – ela disse, enquanto olhava
para os lados – Geralmente sempre tem um idiota que,
de tão bêbado, acaba dormindo sentado na privada. Veja
se você consegue alguma coisa. Quando terminar, me
espere aqui. – ela se despediu de mim, me beijando, se
dirigindo ao banheiro feminino.
Ao contrário do que eu estava acostumado a ver nos
botecos que frequentava, aquele banheiro era, de certa
maneira, bem grande. Havia diversas privadas e bidês ao
longo do extenso recinto, e as pias eram personalizadas,
com torneiras de água fria e quente. Com isso, não havia
as tradicionais filas da hora do aperto, aquelas que
quando você mais precisava mijar, sempre tinha gente
na sua frente, esperando o outro sair para usar.
Não me importei com a presença de quem estava ali e
aos poucos fui observando por baixo das portas quem
poderia servir como vítima. Havia alguns sentados no
troninho, mas pelo cheiro, não pareciam estar dormindo.
Pelo visto, teria que resolver aquilo do meu jeito.
Aguardei uns três, quatro caras saírem dos boxes das
privadas, até que finalmente consegui achar um que
pudesse me ajudar no disfarce. Ele estava no último,
isolado das demais pessoas. Tinha praticamente a
mesma estatura que eu. Trajava bermudão preto e
camisa regata vermelha. Um boné com o logotipo de um
time de beisebol escondia o pouco do cabelo raspado
que tinha. A vítima ideal.
Fiz menção em usar a mesma privada que ele usou,
enquanto ele foi lavar as mãos. Ele tirou o boné,
colocando-o na pia, e com as mãos ajeitava os cabelos
que não tinha. Era um idiota. Perfeito.
- Ô campeão! – eu o chamei – Foi você que usou esta
privada por último?
Ele olhou pra mim, desconfiado.
- Sim, fui eu mesmo.
- Você viu isso aqui cara? Tem sangue pra caramba! – eu
disse, apontando para a privada.
Vi que isso o deixou preocupado. Rapidamente ele botou
o boné na cabeça e veio checar a privada. Entrou de
novo no box, ficando de frente da privada.
- Onde você tá vendo sang...
Acertei um belo soco de direita na cara dele. O rapaz caiu
sentado na privada, já inconsciente. Hora de trocar de
roupa.
***
***
***
***
- Nãããããoooo!
Minha espinha gelou. O desespero começou a tomar
conta de mim. Depois de tanto escapar, tanto fugir, será
que o Mensageiro tinha razão no fim das contas? Jamais
teríamos paz enquanto estivéssemos vivos?
Em um ato de desespero, agarrei a haste do crucifixo
com as duas mãos e, com um golpe que veio da
esquerda para a direita, acertei o rosto do Devorador. A
mandíbula saiu do lugar tamanho o impacto. Ele
manteve a boca fechada para evitar que a alma saísse
de sua boca, contendo o forte urro de dor. Juntei o que
sobrara das minhas forças e apliquei um segundo golpe,
desta vez de baixo para cima. A ponta da cruz acertou o
queixo do inimigo, que voou verticalmente e caiu de
costas no chão.
O Devorador caiu sentindo os golpes. Estava um pouco
grogue, embora ainda não tenha ainda aberto a boca.
Sem piedade, segurei a haste com força e encostei a cruz
no peito dele. Antes que ele percebesse o que estava
acontecendo, o cheiro de enxofre começou a subir para o
meu nariz, e a carne chiando com o contato com a peça
começava a causar mais dor a ele. Maldição! Ele tinha
que abrir aquela boca, antes que a alma de Carlos fosse
engolida totalmente!
Foi então que ele notou o que eu estava fazendo. Como
se acordasse em choque, ele olhou para o peito, que
ainda ardia sob o objeto celestial. Com extremo
desespero, ele procurou com os braços afastar a cruz. Eu
tentava impedi-lo, segurando a haste com força. Mas
obviamente ele era mais forte que eu, e não teve
dificuldades de jogá-la de lado. Pedaços de sua pele
vieram junto com o crucifixo. Ele não segurou. Com a dor
de ter parte do corpo dilacerado, ele abriu a boca,
berrando alucinadamente. Sua voz parecia vir dos
confins das trevas, direto do inferno. Eu observava tudo
aquilo a pouco metros, jogada na grama, com o crucifixo
ainda nas mãos.
Foi de relance, mas pude ver o milagre que eu tanto
esperava. Ao gritar, o Devorador abriu a boca. Foi a
brecha para que a aura de Carlos saísse. Estava menor,
bem menor do que quando foi retirada. Mas ainda assim
flutuava novamente para o seu corpo verdadeiro. Estava
voltando para Carlos.
Ao mesmo tempo, o inimigo olhava para mim com uma
expressão diferente. Maligna. Feroz. Desta vez ele vinha
para acabar comigo. E compreendia tamanha convicção.
Eu estava fraca. Não conseguia mais me levantar. A
única coisa que poderia me salvar era a cruz.
Que Deus me ajudasse, mesmo eu não merecendo!
O Devorador veio contra mim. Estiquei a cruz em sua
direção, mas imediatamente foi repelida por uma de suas
mãos. Sem forças, o crucifixo escapou da minha mão,
indo parar a alguns metros de distância. Olhei para um
dos lados. O Mensageiro ainda nos observava, desta vez
otimista. Não era para menos. Eu já tinha perdido as
esperanças.
Eis que um baque violento derrubou o inimigo para o
chão novamente.
- Carlos! – gritei.
O antigo Devorador havia recuperado a vida, embora
ainda estivesse sob o domínio da Fome. Estava tão fraco
quanto o seu sucessor, porém com o ataque surpresa,
agora estava em cima do inimigo.
Carlos aplicou o primeiro soco no lado esquerdo do peito
do novo devorador. Como revide, o inimigo pegou-lhe o
pescoço, pressionando forte. Carlos não desistia e
golpeava sem parar o rosto do adversário, inundando-o
com o sangue que escorria das feridas. O inimigo estava
resistindo, até Carlos acertar-lhe uma joelhada na região
do peito, exatamente onde a ferida causada pela cruz
estava marcada. O rapaz imediatamente largou o
pescoço de Carlos e levou as mãos para o local
machucado, se contorcendo.
Diante da vantagem na luta, Carlos aproveitou a
situação. Era a chance de dar o troco. Resolver essa
questão de uma vez por todas.
Seus olhos intensificaram a cor opala. A energia que
emanava do corpo dele era intensa, envolvendo o
inimigo. Aliás, o inimigo já não sentia mais dor. Mas sim
frio. Sem pestanejar, Carlos começou o ritual da extração
da alma de seu inimigo.
Ouvi passos vindos da esquerda. O Mensageiro vinha em
nossa direção com certa dificuldade, numa tentativa
frustrada de correr.
- Pare seu imbecil! É você quem deve morrer!
Levantei, cambaleando. Fui em direção a cruz
processional. Pegando-a novamente e me posicionando
entre o Mensageiro e Carlos.
- O que está fazendo, sua vagabunda?!
- Você não vai dar mais nenhum passo. Não enquanto
Carlos não terminar!
O Mensageiro tentava me circundar, evitando o contato
com a cruz. Eu me mantinha entre eles, não permitindo
que o enviado do Demônio interferisse na ocasião. Atrás
de mim, ouvia os gritos de dores do inimigo. Assim como
aconteceu com Don Celsio e padre Augusto, a aura do
novo Devorador foi aos poucos saindo do seu corpo. A luz
brilhava cada vez mais forte, trazendo o espectro para
fora da matéria. Aquele momento era incrível, e ao
mesmo tempo assustador. Acreditar que espíritos
existem é completamente diferente do que literalmente
ver uma alma sair de corpo de uma pessoa.
Aos poucos a voz do novo Devorador foi sumindo junto
ao vento. Seus gritos já não podiam mais ser ouvidos. A
boca permanecia aberta, embora não pronunciasse uma
única palavra. Seus olhos estavam abertos, porém
duvido que ainda pudesse ver alguma coisa. Mesmo se
visse, observaria uma chama branca flutuando sobre sua
cabeça e Carlos a apanhando com as mãos, antes de
colocá-la dentro da boca.
Os olhos de Carlos começaram a brilhar mais forte,
indicando que ele estava iniciando a ingestão da alma. O
Mensageiro estava bufando de raiva. Queria a qualquer
custo avançar contra Carlos, mas eu estava ali, pronto
para protegê-lo. Dar o tempo necessário para que ele
devorasse a alma do inimigo. Tempo que o inimigo não
teve quando tinha a situação sob o seu controle.
Enquanto eu montava guarda, Carlos terminava de
ingerir a alma do seu sucessor. Ele estava parado, agora
em silêncio. De costas para mim, não pude notar qual foi
a reação desta refeição. Eu estava com medo. Se a alma
do inimigo não tivesse sido o suficiente para aliviar a
Fome de Carlos, com certeza a próxima seria eu. Não
sabia se devia girar a cruz na direção de Carlos, e assim
permitindo a aproximação do Mensageiro, ou se
continuava na mesma posição, protegendo-nos do
enviado do Mal, porém deixando a brecha para que
Carlos me atacasse.
Eu estava de olho no Mensageiro. Os olhos dele já não
buscavam a mim ou a cruz. Estavam completamente
focados em Carlos. Havia uma tensão muito grande por
parte de todos. Eu apenas virava a cabeça de relance
para tentar saber qual era a situação de Carlos. Precisava
definir o próximo passo.
Correr ou ficar?
CAPÍTULO 19
***
***
***
***
Eu tinha acabado de chegar na cidade, quando soube
que aquele papinho do Celsio de que me transformaria
numa dançarina famosa não passava tudo de uma
balela. Na verdade ele havia me transformado em uma
garota de programa do hotel-cassino dele, e muitas
vezes eu fazia trabalhos para fora. Nunca tentei escapar,
já que sabia que Celsio era bem influente naquela cidade
e eu não tinha ninguém ali para me ajudar. Se eu
tentasse fugir, sabia que eu seria caçada pelos seus
homens.
Depois de um dos programas que realizei fora do
cassino, resolvi voltar a pé para o complexo do Deuses
do Olimpo. O sol já despontava no horizonte e o clima
estava agradável. Mas nada disso tranquilizava o ódio
que eu sentia da vida. Fui rumando ao sul, na direção do
cassino. Sabia que no meio do caminho tinha o maior
parque da cidade. Geralmente eu o contornava. Mas
nesta manhã eu estava com tanto ódio, tanto ódio com
tudo aquilo que eu estava passando, que não me
importei em passar por algum tipo de perigo. Até porque,
naquele horário, com o sol já iluminando as copas das
árvores, duvidava que alguém se atrevesse a mexer
comigo. E mesmo assim, se eu fosse abordada por algum
assassino ou estuprador, eu estava disposta para descer
a porrada nele.
Fui caminhando por dentro do parque. Não o conhecia
muito bem, mas não deveria ser tão difícil. Bastava
caminhar em linha reta e eu chegava até o outro lado.
Após longos minutos andando por entre as plantas,
descobri uma clareira que havia no meio do parque. Na
verdade era um terreno grande, ocupado por um
cemitério, ao lado de uma grande igreja gótica.
A igreja do padre Augusto.
Àquela hora, a missa já tinha sido realizada e a catedral
gótica já estava aberta para visitações. Eu estava tão
farta de viver aquela vida de submundo, que resolvi
entrar na igreja, mesmo carregando nas minhas costas
todos os pecados adquiridos desde então.
Foi a partir deste dia que comecei a me confessar com
padre Augusto. Nas primeiras vezes fui muito relutante
em falar sobre a minha vida. Obviamente tinha medo de
que algo saísse daquela igreja e que pudesse causar
represálias por parte de Celsio. Mas aos poucos, o padre
Augusto mostrou ser um grande profissional, além de um
amigo.
Nas últimas confissões que fiz com ele, antes dele
morrer, ele insistiu comigo:
- Minha filha, porque não venha viver a vida de Cristo?
Tenho um contato no convento da cidade que poderá
ajudá-la. Estou certo de que a irmã Carmen irá recebê-la,
mesmo com todos os aspectos do seu passado. Assim
não precisará mais viver essa vida de luxúria.
No primeiro momento, sequer liguei para isso. Embora
seria uma forma de me livrar dessa vida de escrava
sexual, ainda assim tinha a perseguição dos homens de
Celsio. Não podia arriscar mais pessoas por motivos
pessoais.
Porém, após a maldita luta contra o Mensageiro e seu
novo Devorador de Almas, tanto eu quanto Carlos
chegamos à conclusão de que o Inferno não me deixaria
em paz. Mesmo sem o novo Devorador de Almas em
ação, eu ainda era uma alma imprestável e, assim
quando o Mensageiro conseguisse um outro servo, não
demoraria para que viesse atrás de mim.
Carlos havia me dito do seu plano, embora sem muitos
detalhes. Ele deveria ir ao Inferno para tratar do assunto
com o próprio Diabo. Faria um pacto de servidão eterna
em troca da minha alma. Era a única maneira para me
dar um pouco de paz em vida e me livrar das Trevas na
morte.
Será que ele conseguiu?
Não sei. Depois que ele se jogou para dentro da igreja e
ter se autocarbonizado, fora os pesadelos que tenho com
ele, nunca mais vi vestígio algum de Carlos. Ou do
Mensageiro. Ou de um novo Devorador.
Naquela mesma noite, também tomei uma decisão.
Assim como Carlos foi para o Inferno para resolver a
situação, resolvi me preservar (vai que o Mensageiro
resolvesse atacar antes que Carlos conseguisse realizar o
pacto com o Demônio...). Assim, corri até o convento
sugerido pelo padre Augusto. Por ficar um pouco distante
da cidade, só consegui chegar lá no fim da manhã.
Como previsto pelo padre Augusto, fui recepcionada pela
a irmã Carmen, que me atendeu ainda ressabiada.
Expliquei em partes minha situação – obviamente omiti o
fato de que eu estava sendo perseguida pelos seres do
Inferno – e, ao falar o nome do padre, ela deixou a
desconfiança de lado e não hesitou em me acolher. Se a
lógica se confirmasse, nenhum ser das Trevas seria
capaz de entrar em um lugar de Cristo. Então, aqui estou
eu, dentro do convento administrado pela irmã Carmen.
***