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O DEVORADOR
DE ALMAS

Paulo Dumi

1ª Edição
ISBN: 978-85-917434-0-7

Copyright © 2014 por Paulo Dumi


Registrado na Biblioteca Nacional
N. Registro da Obra 634.405, no livro 1.219, folha 52 –
25/02/2014

Revisão: Paulo Dumi


Capa: Marina Ávila
PREFÁCIO
Depois de tanto tempo, tanto esforço e tanto sonho,
finalmente consigo publicar o meu primeiro romance.
Escrever não é fácil. Requer extrema dedicação –
principalmente quando se tem outras profissões
concorrendo com a de escritor.
Este trabalho nasceu, desenvolveu e finalizou por mais
de um ano. Foram quase dezoito meses criando cenários,
descobrindo as personagens, imaginando a trama...
contratempos, mudanças. Apaga e reescreve. Para
depois apagar de novo. Pensa. Reescreve. Repete este
processo até encontrar as palavras perfeitas.
Neste processo intenso em busca do texto ideal, você
acaba pedindo conselhos e ajudas, que no fim acabam se
tornando parte da obra.
Portanto, seria injusto deixar de fora algumas pessoas
que estiveram comigo durante a elaboração de O
Devorador de Almas.
Por isso gostaria de agradecer imensamente aos meus
colegas de trabalho – em especial a Alice, Camila e Bruno
Alves – pela paciência em me ajudar nas cenas e escutar
as minhas ideias absurdas e mirabolantes, mas ainda
assim compreender que a ficção nada mais é do que isso
mesmo. E o melhor, mergulhar junto comigo nessa
jornada.
Agradeço também aos meus amigos que sempre me
incentivaram a escrever, desde a época que eu comecei
com os contos, em especial Diego, Letícia, Juliana,
Dayane, Raquel, Carol Za, Onairam, Camille, Alex, Zilda e
Vivian, além das primas leitoras Laís e Roberta – as quais
leram todos os meus textos! – e a minha leitora-beta
Carolina Desirée, que me ajudou demais a corrigir as
falhas da trama.
Não poderia também de deixar a minha grande gratidão
à escritora e minha ex-professora na universidade,
Helena Gomes, a quem me orgulho por tê-la como a
pessoa que me apresentou o mundo literário ainda nos
tempos de faculdade e que me fez crescer muito ao me
ensinar sobre a arte da escrita.
À outra escritora, Fernanda Belém, por me dar dicas
sobre o mercado literário.
Por fim, não poderia deixar de lado os meus grandes
motivadores, não só na carreira de escritor, mas também
em tudo o que faço na vida. Sempre quando acho que
não tem jeito, eles sempre me provam que eu estou
errado e que sonhos são feitos para serem vividos,
jamais desistidos.
Dedico esta obra aos meus pais, Márcia e Paulo.

Para você caro leitor, o que posso dizer é que tudo o que
você lerá a partir de agora foi parte do que estas pessoas
viveram e o que eu vivi integralmente nestes últimos
dezoito meses.
Espero que, ao ler, você também viva o mundo de O
Devorador de Almas.

Paulo Dumi.
SUMÁRIO

PRÓLOGO
CAPÍTULO 01
CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03
CAPÍTULO 04
CAPÍTULO 05
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07
CAPÍTULO 08
CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
EPÍLOGO
“O prazer culpado de se deliciar com desastres faz

parte da natureza humana.”

Umberto Eco
PRÓLOGO

Nunca fui de admirar coisas bonitas. Na maior parte das


vezes estava mais preocupado em bater ou fugir da
polícia do que realmente observar os lugares. Mas devo
confessar que aquela noite estava demais.
A escuridão contrastava com a iluminação amarelada nas
ruas da cidade. Os telões comerciais piscavam
intensamente, como se fizessem alguma técnica de
hipnose. As buzinas jamais se calavam na metrópole, e
as pessoas andavam tanto pelas calçadas como nas
próprias ruas.
Já se passava da meia-noite. Isso explicava os trajes dos
jovens que buscavam diversão nas diversas boates.
Podia ver nos rostos deles a excitação em tentar
conseguir algumas coisas além de meras amizades. Com
os olhos, os caras caçavam as gostosinhas, em busca de
sexo.
Bom, digamos que eu também estava caçando alguém
naquela noite, mas não para a mesma finalidade.
Todos os músculos do meu corpo estavam tensionados, e
eu tinha algo muito maior para saciar naquela noite.
A chuva batia lentamente no capuz do meu trench coat
cinza, enquanto eu caminhava pela calçada. O frio se
fazia mesmo para mim, um pós-morto. O local escolhido
daquela noite era o Dântolo's, uma boate bem
frequentada pelos boêmios. Tinha este nome graças a
sua dona, Joana Dântolo.
Joana era uma velha conhecida da polícia. Antes de
ganhar dinheiro com a tal boate, fazia parte de um
esquema de tráfico de drogas e intermediava
assassinatos de aluguel. Com a abertura do Dântolo's,
também começou a gerenciar prostituição de mulheres,
permitindo que programas fossem combinados de dentro
da boate. Por inúmeras vezes já tinha sido intimada pela
polícia, mas a falta de provas e o excelente advogado
que tinha conseguiam inocentá-la de qualquer acusação.
Não demorei para chegar na entrada da boate. A fachada
até que era chamativa, com luzes de neon exibindo
marcas de cervejas e o logotipo grande da boate, em alto
relevo.
Como era de se esperar, seguranças faziam a checagem
das pessoas que entravam no local. Assim como os
jovens que estavam na fila, fui abordado e revistado por
um dos funcionários. Como de costume, não levava nada
comigo. Não precisava. Logo, nada foi encontrado pelos
seguranças, que autorizaram a minha entrada.
Passei pela porta. Lá dentro, a escuridão reinava
novamente, entrecortada por feixes de luzes que vinham
do teto. O som era alto e às vezes uma fumaça fedorenta
era lançada no ar, junto com alguns feromônios que
faziam com que os homens ficassem excitados, buscando
as prostitutas que os aguardavam pelo grande salão que
se abria para mim.
Meus olhos começaram a varrer o lugar. Havia muita
gente esquisita. Escuridão não era problema para mim.
Meus sentidos estavam superaguçados, e minha força e
velocidade eram sobrenaturais. Só precisava me
concentrar em encontrar Joana.
No meio de tantas pessoas, encontrei as escadas
espiraladas que levavam para a ala VIP. Subi, passando
pelos vários grupos que ali se encontravam, sentados em
confortáveis poltronas de couro e bebendo diversos
drinques em taças de vidro. Embora não estivesse tão
lotado quanto lá embaixo, era notória a presença de
drogas entre os usuários. Nos cantos mais escuros,
transas discretas aconteciam.
Minha visão vasculhava cada minucioso movimento de
dentro da boate. Ao passo que eu ia atravessando o
local, observava as pessoas. Já tinha cruzado toda a ala
VIP, quando percebi uma grande movimentação vinda
atrás de uma porta entreaberta, no fim da sala. Uma bela
jovem, com poucas roupas, empurrou a porta e entrou.
De relance, pude ver homens engravatados abraçados
com outras garotas como aquela que acabara de entrar.
Tinha quase a mais absoluta certeza de que seria ali
onde eu a encontraria.
Fui me aproximando da porta, como quem não quer
nada. Olhei para os lados, na espreita de não ser visto.
Minha mão lentamente a empurrou, e a luz do ambiente
invadiu aos poucos a sala vip. Deslizei meu corpo pelo
vão o mais rápido possível, deixando a escuridão e a
batida do som que vinha dos alto-falantes para trás.

***

Do outro lado da porta havia um corredor um tanto


comprido, e proporcionalmente estreito. Nas paredes,
algumas garotas estavam encostadas e se insinuavam
com roupas que não escondiam quase nada. Aos poucos
fui passando entre elas. Algumas acariciavam meu peito
quando me aproximava delas. Elas buscavam por
trabalho. Já eu, procurava por Joana.
No fim do corredor, havia um salão muito bem iluminado,
com um lustre de cristal pendurado no centro. O piso e
paredes eram revestidos de mármore. No centro, um
pequeno palco exibiam três jovens garotas semi-nuas
praticando pole dance. Nos sofás de couro preto que se
espalhavam pelo local, engravatados faziam sexo com as
outras prostitutas. Uma coisa que não havia naquele
lugar era preocupação com pudor. Mas, para um lugar
como aquele, isso não era surpresa.
Estava cruzando o salão lentamente na busca pela minha
vítima, quando senti uma pressão no antebraço. Olhei de
lado e vi um dos seguranças me segurando com uma das
mãos. Minha expressão se fechou pelo desconforto da
situação.
O homem apenas me encarou e com a cabeça me fez
sinal para olhar para o outro lado do salão. Ali, dois
seguranças permaneciam imóveis, um em cada lado de
um enorme divã, cujo tecido lembrava a pele de um
dálmata. Uma mulher, de cabelos pretos lisos e
compridos, estava acomodada sobre o móvel. Trajada
com um vestido vermelho escarlate, Joana fixava seu par
de olhos verdes de forma penetrante nos meus,
enquanto tragava a cigarrilha que prendia entre os dedos
da mão direita.
Meu estômago rugiu neste momento e senti que estava
perdendo um pouco o controle do meu corpo. Ao fixar os
meus olhos ao dela, uma inquietude sem tamanho
lentamente tentou dominar minha consciência e
substitui-la por uma outra, muito mais feroz e mortal.
Procurei fechar os olhos e para tentar me conter. Não
podia estragar o plano. Tinha que esperar o momento
certo. Joana ainda me encarava por um longo minuto,
enquanto via a tensão transparecer pela minha cara.
Gradualmente fui recobrando o controle. Ainda estava
suando frio, quando a dona da boate se levantou do seu
divã. Aproximou-se de um dos seguranças que faziam a
sua escolta e sussurrou em seu ouvido. Com a minha
percepção aguçada, pude ouvi-la:
- Levem-no para o meu escritório. Quero interrogá-lo.
O funcionário acenou positivamente com a cabeça. De
longe, ordenou para que o seu colega que ainda
segurava meu braço me levasse. Um dos guarda-costas
abriu uma porta que se camuflava junto com a parede,
atrás do divã. Joana foi a primeira a entrar, seguida pelos
seus subordinados. Em seguida, eu entrei, ainda sendo
guiado pelo segurança. Algo me dizia que a diversão
começaria a partir daquele momento.

***

Embora tenha sido o último a entrar, fui o primeiro a se


sentar. O escritório era um lugar que eu diria que foi
decorado para uma “maior privacidade”. No chão, um
carpete vermelho vinho escondia o barulho dos bicos
finos dos sapatos de Joana. As paredes eram estofadas
por um material espumado e grosso. Um autêntico
isolante acústico. Uma mesa de carvalho, uma poltrona
de couro e uma estante estavam distribuídas do outro
lado da sala.
Um dos seguranças me empurrou contra uma cadeira
estrategicamente colocada no meio do escritório.
Rapidamente, outro veio e com uma corrente atou as
minhas mãos nas costas da cadeira. Como a corrente era
extensa, ele aproveitou e amarrou meus pés também.
Após fazer isso, se levantou e segurando-me pelos
cabelos, ergueu minha cabeça. No meu campo de visão,
lá estava Joana, com as pernas cruzadas, sentada em
cima da mesa. Incrível como pessoas tão bonitas podem
ao mesmo tempo ser as piores criaturas.
Enquanto outro guarda-costas me revistava, a procura de
armas ou distintivos, a dona do estabelecimento
preparava uma nova cigarrilha. Colocou-a na boca e
aguardou até que um dos capangas com um isqueiro na
mão a acendesse. Ela deu uma tragada lenta, como se
estivesse degustando o efeito. Curioso é que ninguém
falava uma palavra. A sala estava em completo silêncio.
A mulher à minha frente ainda me fitava, quando
finalmente resolveu conversar comigo:
- Até que você é gostosinho para um policial.
- Não sou policial, madame.
Ela riu do “madame”. Talvez não esperasse que eu fosse
tão sarcástico em uma situação tão adversa.
- Bom, então se não é policial, devo supor que trabalhe
para algum concorrente, certo?
- Não sou traficante ou cafetão, se é isso que supõe.
Joana deu um suspiro entediante. Apenas com um olhar
da chefa, um dos seguranças se aproximou de mim e
acertou em cheio a boca do meu estômago. O ar saiu dos
meus pulmões e o estômago grunhiu novamente. Minha
cabeça começou a latejar, fazendo com que minha
consciência começasse a falhar, ainda que de forma
fraca. Minha cabeça novamente foi jogada para trás, e vi
que Joana caminhava na minha direção. Um dos seus
subordinados posicionou outra cadeira no meio da sala.
Ela sentou e tragou a cigarrilha. Aproximou seu rosto ao
meu e baforou a fumaça perto do meu nariz. Viu que eu
estava com um sorriso em um dos lados da boca.
Irritada, disse baixinho:
- O senhor tem provas do que está falando?
- E quem disse que preciso?
Sua irritação era visível. Ela estreitava os olhos,
buscando me impor medo.
- Vejo que está se divertindo com a situação, mesmo com
o soco que levou.
- É, estou mesmo.
- Sabe, senhor...
- … Carlos, madame. Meu nome é Carlos.
- Então, Carlos. Para ser petulante o suficiente para vir
até aqui é porque sabe muita coisa sobre mim, não é?
- Não muito, madame. Mas quem me mandou vir até aqui
sabe muito bem quem você é.
Ela se calou por um momento. Tentava descobrir o que
eu estava escondendo. Mirava-me fixamente, como se
buscasse algo através dos meus olhos. Mas pela irritação
dela, deduzi que ela encontrou absolutamente nada.
Joana levantou novamente e virou de costas para mim.
Mais uma vez o segurança me aplicou outro golpe no
abdômen. Senti meu estômago doer e abaixei a cabeça,
que latejava mais forte do que antes. Ainda de costas
para mim, Joana perguntou:
- Senhor Carlos, a partir de agora devo alertá-lo para
tomar cuidado com o que diz e que me responda
corretamente, caso queira continuar vivendo. – ela fez
uma pausa, enquanto se aproximava de mim e segurava
o meu queixo para cima – Porque o seu chefe mandou o
senhor até aqui? O que ele quer?
- Uma dívida.
Ela olhou para mim, surpresa.
- Dívida?
- Sim. Pelo que ele me falou, já há tempo que você deve
a ele algo que vocês negociaram.
Joana tragava a cigarrilha com as mãos trêmulas. Era
nítido que estava nervosa, e ao mesmo tempo tentava se
lembrar de que dívida era aquela.
- Do que se trata, afinal?
- Se lembra do que você fez para se tornar a principal
cafetina da cidade?
Joana demorou em buscar em sua memória. Ao vasculhá-
lo, tentou encontrar algum cafetão ou bandido que
pudesse se vingar de algo que ela tenha feito.
Provavelmente eram vários. Mas nenhum deles condizia
com o meu patrão.
- Deixe-me ajudá-la a recobrar a memória, madame. – eu
disse – Se recorda do Pacto?
Joana demorou, mas agora olhava apara mim assustada.
Pela primeira vez desde que cheguei ali, a vi se
descontrolando. Suava frio, e agora as pernas também
tremiam. Um dos guarda-costas teve que ampará-la para
que ela não caísse.
- M-Mas já faz tempo isso! Então você que é o Diabo?!
Eu comecei a rir. Todos os seguranças, um total de seis,
quiseram vir para cima de mim, mas Joana os conteve
com um aceno. Ela esperou eu responder.
- Não, madame. Estou longe de ser o Diabo.
- Mas tem alguma relação com ele, não?
- Digamos que sim. – sorri – Assim como a senhora, fiz
um pacto com ele. Mas o meu caso é mais vantajoso.
- E que pacto vocês fizeram?
- Bom – disse num suspiro ansioso – Suponhamos que ele
percebeu que fez alguns pactos com almas
extremamente inúteis para se levar ao inferno. Porém, ao
mesmo tempo, não quer que essas almas sejam levadas
para o paraíso, já que seria incoerente demais uma
pessoa suja ir para o reino dos céus.
- E?
- Então, me foi proposto a ressurreição. Em troca, eu
assumiria a cobrança desses pactos que o diabo julga
como imprestável.
Joana gelou de vez. Ela mesma veio na minha direção e
aplicou-me um belo tapa no rosto, que me fez cair no
chão, mesmo amarrado. Desta vez não pude segurar a
transformação.
Os latejos na cabeça pioraram e perdi a consciência
racional. O estômago doía demais. A Fome estava
intensa. Joana ainda ordenou para que os capangas me
levantassem e, ao puxar minha cabeça para trás,
percebeu que meus olhos, de castanhos, mudaram para
uma cor opala.
A cor da morte.
Os músculos do meu corpo enrijeceram de tal forma que
fez com que as correntes que me seguravam se
arrebentassem com a pressão que fiz. Todos os
seguranças pularam em cima de mim, mas não foram
páreos. Aos poucos fui matando um a um na porrada.
Sangue jorrava nas paredes e pedaços de corpos voavam
pela sala. Literalmente estava possuído.
Quando não havia mais capangas na sala, busquei por
Joana. Não demorei em encontrá-la desesperada,
tentando de qualquer maneira abrir a maçaneta da
porta, que estava trancada pelo lado de fora. Fui me
aproximando dela bem devagar. Ela olhava para trás,
com os olhos lacrimejados e com a respiração rápida e
pesada. Botava todas as suas forças contra a porta,
tentando arrombá-la. Mas com o porte físico magro, o
que conseguia era apenas algumas escoriações em sua
pele clara.
Chegou o momento em que fiquei a um passo de Joana.
Ela já havia desistido de gritar e bater na porta. Estava
ofegante, encostada contra a porta, de frente para mim.
Segurei-a pelos braços e ela sentiu o quão faminto eu
estava, através da força das minhas mãos. Chorando, ela
ainda me pediu um último desejo:
- Não me faça sofrer.
- Madame – respondi – sofrimento faz parte do processo
para os impuros e infelizmente não posso conter.
A cor opala de meus olhos se intensificaram, iluminando
e refletindo no rosto de Joana. Dizem que os olhos eram
os portais da alma, e isso literalmente é verdade. A
mulher urrava, tamanha era a dor. Lentamente os olhos
da mulher perdiam a cor verde e de seu corpo saía uma
aura branca.
Era a alma que a deixava.
Segundos depois, Joana parou de gritar. Olhava para
mim, mas sem o brilho nos olhos. Afrouxei as mãos de
seus braços e seu corpo caiu estabanado no chão. Já não
me interessava mais a carne de Joana. Um espectro,
semelhante a uma pequena chama branca, flutuava na
frente de meus olhos.
Com a palma da minha mão a envolvi, e vagarosamente
a levei à minha boca. A alma das pessoas não tem gosto.
Nem consistência para mastigá-la. Mas a sensação de
saciedade que trazia era indescritível. Imediatamente o
estômago parava de doer e os fortes latejos na cabeça
cessavam gradualmente. A coloração opala de meus
olhos dava lugar novamente à castanha. Assim, voltava a
ser um ser humano normal.
Encerrado o show de terror, ouvi um barulho vindo da
porta. Alguém a destrancava. Assim que ela ficou
entreaberta, o Mensageiro surgiu, espiando o ambiente
pela fresta. Vestido de terno, igual aos guarda-costas de
Joana, lentamente ele foi entrando na sala, evitando o
máximo em abrir a porta o suficiente para que quem
estivesse do lado de fora visse os corpos e sangue
espalhados pelo local.
- Rapaz, desta vez caprichou, hein?
Naquele momento, procurei não falar. Ainda estava com
aquela sensação de relaxamento por ter me alimentado.
O mensageiro ainda olhava ao redor pensando o que ia
fazer para camuflar os assassinatos, quando me propus a
sair daquele lugar.
- Carlos, prepare-se para semana que vem. Iremos viajar.
– ele disse, enquanto eu caminhava em direção à porta.
- Para onde?
- Para a Capital do País. Há um senador que está em
débito conosco.
CAPÍTULO 01

A noite de sexta-feira sempre é uma aventura para quem


sai de casa. O céu estrelado, a lua branca como neve. O
vento passando pelos casacos e até a chuva – porque
não? – molhando o asfalto da cidade. Multidões andando
de um lado para o outro. Inúmeros desejos rondando
mentes desconhecidas.
Naturalmente sexta-feira deveria ser a noite para relaxar,
tomar umas biritas com os amigos. Ir a algumas baladas.
Ficar loucão. Visitar puteiros, assistir a dança de uma
stripper. Pelo menos deveria sempre ser assim.
Gostaria muito, mas esta sexta-feira não era a que me
pertencia.
Eu estava neste momento sentado no banco de carona
de um Crysler. Diga-se de passagem, que carrão! Um
modelo PT Cruiser, de cor preta-fosco, trazia um ar
moderno a um carro que se assemelha muito aos antigos
carros de gangsteres. Não duvido que Al Capone
invejaria aquela belezinha, assim como eu invejo.
Do meu lado, dirigindo, estava Inácio. Obviamente este
não era o nome real dele. Ninguém dentro daquele carro
usava o verdadeiro nome. Nem mesmo os próprios
integrantes sabiam quem era quem de verdade. Claro,
para aquele tipo de trabalho, a discrição de todas as
peças daquele xadrez era essencial.
No banco traseiro havia dois homens e uma mulher. Os
caras – cada um sentado ao lado da moça – eram Yin e
Yang. Referências ao símbolo taoísta. De forma
engraçada – e até pareciam que gostavam da brincadeira
– um vestia um terno branco, enquanto o outro vestia a
mesma roupa, mas de cor preta, enquanto a loira estava
sentada entre eles. Bom, ela era a chefe do bando. Jenny
era o nome de guerra dela.
Eu? Eu era apenas mais um prestador de serviços do que
alguém que fazia parte da máfia. Eu era assim. Não
gostava de trabalhar em bando. Nunca fui de me
associar integralmente a alguém. Gostava de negociar e
realizar o trabalho. Desde que recebesse o acordado,
pouco me importava qual era a intenção do trabalho, que
muitas vezes ia desde entregar coisas ilícitas a outras
pessoas, até, se fosse o caso, matar o chefe da gangue
rival.
Segundo Jenny havia me adiantado, ela precisava de
meus serviços apenas para assegurar que a negociação
daquela noite iria acontecer sem nenhum “imprevisto”,
caso a outra parte do negócio quisesse passá-la para
trás. Até o momento ela não me disse que tipo de
negociação era aquela, e para dizer a verdade, pouco me
importava.
O PT Cruiser já havia deixado a cidade, pegando a
autoestrada. A lanterna dianteira iluminava as faixas da
pista que rolavam a nossa frente. Dentro do carro, o
silêncio imperava, até Inácio começar a repensar o plano
daquela noite.
- Chefe, a senhora tem certeza de que quer conversar a
sós com o magnata?
- Foi o combinado, Inácio. Vocês me darão cobertura do
lado de fora. A conversa é um tanto séria. Só entre os
dois chefes.
- Mas é só uma carga de armas, não? O que tem de tão
sério nisso?
- Não é da sua conta! – retrucou Yang.
- Calma – Jenny pediu ao homem de terno negro, antes
de voltar a falar com Inácio – Querido, há muito mais
coisas envolvidas nisso do que as armas. Coisas que
deveremos tomar em consideração, caso quisermos
permanecer com o domínio do submundo desta cidade –
ela sorriu. Inácio, olhando pelo retrovisor, deu de ombros.
Ele olhou para o lado, buscando algum apoio da minha
parte para desvendar o tal segredo, mas eu estava
olhando através da janela filmada. Quieto, como o
combinado.
Passaram-se quarenta minutos, até que o carro preto-
fosco parou no acostamento. Do lado da pista havia uma
fileira de árvores. Justamente a frente do carro, tinha um
espaço entre duas sequoias. O suficiente para um carro
entrar. Foi o que Inácio fez.
Mais quinzes minutos percorrendo uma estrada de terra,
chegamos a uma entrada. Um portão, ladeado por cercas
de arame farpado, estava aberto. Avançamos pela trilha.
A pouca luminosidade escondia os possíveis perigos que
ali estavam. Inácio foi logo o primeiro a expressar um ar
de preocupação.
- Chefa, está tudo muito escuro por aqui. Não estou
gostando disso.
Yin e Yang começaram a rir. Jenny também não evitou um
sorriso de lado.
- Pensei que já estivesse acostumado com o submundo,
querido.
Inácio olhou para a chefa pelo retrovisor.
- Já estou sim, senhora. E por isso que acho que algo está
estranho. – ele disse. Logo em seguida virou o rosto para
o meu lado, como se esperasse alguma palavra de apoio.
O que viu foi apenas eu admirando a paisagem pela
minha janela.
Alguns minutos após cruzar a estrada de terra, o carro
tomou uma área de campo aberto. Ao longe, era possível
ver um lugar com janelas iluminadas.
Um celeiro abandonado estava ali.
Bem, não tão abandonado assim.
Era ali o ponto de encontro para a conversa entre Jenny e
o chefe de outra facção, como me foi passado. A partir
de agora, eu começava o processo de montar o quebra-
cabeça daquela reunião misteriosa.
Inácio parou o carro a poucos metros da entrada do
celeiro. Os faróis do PT Cruise estouravam no grande
portão de madeira. Os primeiros a sair foram Yin e Yang.
Fecharam as portas do carro e deram uma longa olhada
ao redor, com as mãos colocadas dentro dos ternos,
certamente segurando suas armas. Após constatarem
que o perímetro era seguro, Yang bateu no vidro da
minha porta. Era a minha vez de sair.
Abri a porta e pude sentir o vento que corria por entre as
plantas. Ar puro. Bem diferente do que estávamos
acostumados a respirar na nossa cidade. O silêncio
também era bizarro. Não se ouvia nada. Nem um passo
sequer. Nem um estalar de gatilho sendo preparado para
atirar. Absolutamente nada.
Por fim, Jenny saiu do carro. O único a permanecer no
veículo foi Inácio. Acredito que a função dele era de, se
algo der errado, ele tinha que estar com no mínimo com
o carro ligado para picar a mula.
Assim que a chefa saiu, ouvimos o grande portão de
madeira rangir. Alguém do lado de dentro a estava
abrindo. Imediatamente, eu e os irmãos de terno
sacamos as armas – cada um com uma pistola –
aguardando o que viria de dentro do celeiro.
- Ei, ei! Vamos com calma! – disse o cara que abria o
portão, assim que percebeu que estávamos armados.
Imediatamente ele levou as mãos para cima, o clicheiro
sinal de redenção.
- Podem abaixar as armas – Jenny ordenou. Yin e Yang
obedeceram de imediato. Eu relutei um pouco, afinal não
o conhecia.
- Pode relaxar, garotão – ela se dirigiu a mim – Se ele
quisesse nos matar, já o teria feito – ela disse, apontando
para cima do celeiro. Pela escuridão, era extremamente
difícil de ver alguma coisa. Mas ao estreitar bem as
pálpebras, era possível ver alguém se mexendo no
telhado, com um rifle, pronto para atirar caso fosse
necessário.
- Quem é ele? – perguntei a Jenny.
- Cesare. – ela disse, caminhando lentamente entre nós e
o estranho – Ele é o nosso homem.
O homem fazia o estilo típico do mafioso italiano. Homem
delgado, mas bem trajado, tinha um largo sorriso na
cara. Um sorriso completamente detestável.
- Má que bella! Como está, cara mia?
- Cesare, como sempre elegantemente ordinário! – Jenny
disse ao cumprimentá-lo.
- Faço o meu melhor para viver nessa droga de país – ele
a respondeu, piscando.
- Vamos direto ao assunto. Não tenho a noite inteira.
- A minha encomenda?
- Está no porta-malas do carro. – ela respondeu.
- Hum, então não será bom fazer a troca aqui fora. – ele
se virou para o celeiro, onde se aproximou da porta de
madeira. Ainda do lado de fora, deu três batidas fortes o
suficiente para que outros quatro capangas (dois em
cada metade) forçassem o portão, abrindo a passagem
por inteiro. – Per favore, queira nos acompanhar.
Jenny olhou para trás, pedindo a nossa presença. Yin,
Yang e eu fomos para perto da patroa. Assim que
chegamos, ela fez um sinal para Inácio, indicando para
ele entrar no celeiro. Assim, nós quatro entramos juntos
com Cesare, seguido por Inácio, que trazia o carro.
Por enquanto, tudo estava dando certo.

***

- ... e mais três AK-47. – um dos capangas de Cesare


citava o último item da lista que estava em sua
prancheta. Outro capanga retirava os fuzis russos do
porta-malas do PT Cruise, sob meu monitoramento, além
de Jenny e dos irmãos Yin/Yang. Inácio estava do lado de
fora do carro, fumando um cigarro apoiado no capô.
Embora o celeiro fosse grande, no seu interior não tinha
muito o que observar. No térreo, além do Dodge
vermelho de Cesare estacionado, uma pilha gigante de
fenos amarrados em forma retangular se amontoava no
meio, enquanto o piso superior tinha o formato de “U”,
acompanhando as paredes do celeiro, as quais existiam
algumas janelas. Inclusive ali, seis capangas, armados
com diversas armas, faziam a patrulha do local, tanto no
seu interior, quanto no seu exterior.
Após a conferência das armas, Cesare ordenou apenas
com um movimento de mão para que um dos capangas
se aproximasse de nós. Imediatamente sua ordem foi
atendida, e o funcionário veio puxando junto com ele
uma mala de viagem pequena. Yin tomou a mala das
mãos do capanga, deitando-a no chão. Rapidamente
levantou o ferrolho da mala e a abriu. Apenas conferiu a
quantidade de maços de dinheiro que havia ali dentro.
Segundos depois, olhou para Jenny, acenando
positivamente. A Mulher olhou novamente para Cesare,
sorrindo satisfeita.
- Agora que nosso negócio foi completado, aceitaria
tomar uma taça de vino? Tenho um excelente. Italiano.
Direto de Piemonte, a minha amada terra dentro da
Itália!
Todos entreolharam, ressabiados com o convite.
- Ora, vamos. Você é a minha principal fornecedora de
armas. Não quero matar ninguém. Pelo menos não hoje!
Há, há, há!
Jenny riu junto. Sabia que era verdade. Um único pedido,
e os caras no segundo piso nos metralhariam.
Cesare nos guiou até uma mesa em um dos cantos do
celeiro. Acima dela, algumas taças de vidro vazias
repousavam. Ao lado do móvel, improvisado, um
pequeno freezer estava ligado em uma das tomadas
velhas. Foi dele que saíram umas quatro ou cinco
garrafas do bom vinho italiano prometido por Cesare. De
forma perspicaz, tomei cuidado em avaliar se os vinhos
ainda estavam lacrados, para não haver suspeitas de
envenenamento. De fato estavam.
Cesare foi pegando as taças e servindo-os fartamente
com o vinho. Foi pessoalmente distribuindo um a um de
nós. Dos seus capangas, apenas os que estavam no
térreo estavam autorizados a beberem também. No fim,
ele levantou a taça dele com uma das mãos, em
referência a um brinde.
- Ai nostri vicini amici! Aos nossos amigos vizinhos! – ele
bradou.
Todos deram uma golada. Realmente o vinho era muito
bom!
Enquanto o pessoal aproveitava a bebedeira, Jenny e
Cesare foram conversar em um canto. Não sabia direito
do que se tratava, mas acho que aquele encontro tinha
algo a mais além do que as armas.
A verdade era que Jenny era uma mafiosa da minha
cidade. Não a única, nem a mais poderosa. Mas era a que
tinha um mercado intenso de armas muito bem
articulado. Por sua vez, Cesare tinha a sua própria máfia
na cidade vizinha à nossa. Eles tinham um pacto de
cavalheiros – e dama – de jamais invadirem um o
território do outro. Assim, invés de se gladiarem por
território, poderiam até realizar negócios entre eles, e se
fosse o caso, até mesmo protegerem um ao outro.
Protegerem-se de uma ameaça perigosa para os
negócios de ambos. Não eram apenas eles quem
estavam nesse mundo. Nestas duas cidades havia mais
um que queria estabelecer a sua máfia na região. E esse
sim era peixe grande, poderoso. Alguém que os dois
deveriam ficar com os olhos abertos enquanto dormiam.
Aos poucos fui me aproximando de Jenny e Cesare.
Queria ouvir o que estavam falando, por isso cheguei
como quem não quer nada. Não fui discreto o bastante, e
logo eles me viram chegar. Cesare aproveitou o corte na
conversa para pegar um cigarro no bolso do paletó.
- O local está reforçado demais, não acha? – direcionei a
pergunta a Cesare.
- Quando se é do submundo, nada é demais quando
falamos de segurança, non è vero?!
Apenas retribuí a resposta com um sorriso, deixando ele
tratar dos negócios com Jenny. Ainda próximo da mulher,
ainda pude escutar uma parte da conversa interessante.
- E se nos juntássemos para... você sabe... mandarmos o
infelice ir “viajar”? Hein? Assim dividiríamos o território
dele.
- Querido, adoraria acabar com a raça daquele
desgraçado, mas ele ainda possui mais de setenta e
cinco por cento da minha cidade sob o domínio dele. Não
acho que seríamos páreos para a gangue dele, mesmo se
juntássemos as nossas.
- Justamente por ele ter tudo isso sob o poder dele, ele é
um homem ocupado. Precisa administrar os negócios da
máfia. – Cesare parou por um momento para dar uma
tragada no cigarro – Poderíamos armar um ataque
surpresa durante a noite. Ou infiltrar algum capanga na
mansão dele para botar veneno na bebida. Não
precisamos armar uma guerra, capitche?
Sabia de quem eles estavam falando. Tratava-se de
Dionísio, o mafioso mais poderoso da nossa cidade.
Como disse anteriormente, era o cara a ser batido no
ramo da máfia daquela região. Controlava a política, a
polícia, o comércio. Seu porte alemão, com quase dois
metros de altura, dava um ar de superioridade para
quem o via. Recentemente expulsou os homens de Jenny
do centro da cidade, e ela jurou vingança.
- ...fiquei sabendo que ele está de olho na mia cidade, e
que já começou a contratar alguns outros pequenos
mafiosos, botando a minha cabeça a prêmio. Se puder
me ajudar aniquilar ess...
Não houve tempo para completar o pedido. Um som veio
zunindo a minha direção, passando pelo meu ouvido
esquerdo. Assim que girei o pescoço, vi o corpo de
Cesare ser arremessado para trás. Ele caiu inerte no
chão, com um ferimento no meio da cabeça.
Um furo. Um tiro.
De imediato começou uma saraivada de disparos. Mesmo
sem saber o que havia acontecido, os homens de Cesare
começaram a rechaçar a nossa presença. Uma das balas
acabou atingindo o braço de Jenny. Imediatamente,
peguei a pistola que estava na minha cintura e comecei
a atirar contra os homens do segundo piso. Assim que
consegui matar dois deles e assim diminuir a chuva de
balas que caía sobre nós, fui correndo na direção de
Jenny. Yin e Yang se aproximaram. Os irmãos já haviam
aniquilados quase todos os capangas do térreo. Ainda
restavam dois que estavam escondidos atrás do Dodge
de Cesare. Lembrei-me de Inácio, que já não estava mais
no meu campo de visão.
Rapidamente apoiei a mulher loira em meus ombros e fui
ajudando-a a chegar até o nosso carro. Os irmãos Yin e
Yang vinham atrás de nós, nos dando cobertura,
facilitando a nossa caminhada até o veículo. Uma nova
tentativa de nos matar veio de cima. Yang foi mais rápido
e acertou o capanga de Cesare.
Finalmente consegui colocar Jenny dentro do carro. Entrei
junto com ela. Passei para o banco da frente de
passageiro e acenei para os irmãos entrarem também,
mas Yin preferiu fechar a porta e confrontar os quem
ainda estavam do lado de fora.
Grande erro.
Yin foi o primeiro a cair. Bem do nosso lado. Ele ainda se
apoiou no carro. Víamos a sua expressão de dor pela
janela. Jenny ainda tentou abrir a porta para socorrê-lo,
mas logo foi surpreendida por mais tiros, que acertavam
as costas do seu segurança pessoal. A dor era visível em
seu rosto, até ele ficar sem reação alguma. Assim que os
tiros acabaram, Yin foi descendo lentamente, até cair
morto no chão.
Não tardou muito para os capangas de Cesare que ainda
restavam focassem em Yang. O segurança de Jenny, que
tinha acabado de alvejar os dois capangas que estavam
escondidos no Dodge de Cesare, correu até a mesa em
que estavam as taças com os vinhos. Virou-a, usando-a
como escudo, e protegeu-se atrás dela.
Essa estratégia de Yang obrigou os três homens que
ainda estavam no piso superior do celeiro a descerem.
Yang aproveitou a brecha e disparou a esmo contra a
escada que levava para o térreo. Ele também pode ouvir
também o revide por parte dos inimigos. Para a sorte
dele, a mesa era grossa o suficiente para rechaçar as
balas.
Yang ainda estava protegido atrás da mesa, e por isso
não notou que, dos três capangas que ainda restavam,
dois ficaram atrás do Dodge, enquanto um terceiro deu a
volta pelo celeiro.
- Vá ajudá-lo! – gritou Jenny para mim.
- Senhora, já é tarde demais!
Enquanto o segurança de Jenny estava preocupado com
os dois capangas que se protegiam atrás do veículo de
Cesare, o terceiro inimigo foi lentamente avançando pelo
canto, contornando o celeiro. Foi se aproximando do
ponto cego de Yang. Depois, o que vimos, foi o inimigo,
de pé, postado ao lado da mesa, com a arma apontada
para Yang.
Três tiros. Um silêncio, seguido do baque. De onde
estávamos, só conseguíamos ver o braço de Yang
estirado no chão, sem vida.
Tanto eu quanto Jenny pensávamos que o tiroteio havia
acabado.
Ainda não.
Depois de darem cabo de Yang, os três capangas de
Cesare cercaram a frente do nosso carro. Com as armas
empunhadas, eles miravam o para-brisa. Por eu estar na
frente, o primeiro a ser feito de alvo era eu. As rajadas
recomeçaram. Felizmente, a blindagem do PT Cruise era
forte o bastante para evitar a penetração das balas no
carro.
Repentinamente, enquanto tomávamos a chuva de balas,
eu vi luzes indo em direção contrária. Tiros estavam
sendo disparados detrás do carro, acertando dois dos
capangas.
Saindo de trás do nosso carro, Inácio atirou contra o
último capanga de pé. Dois tiros no peito derrubaram o
inimigo. E um na cabeça para finalizar o serviço. Inácio
checou ainda o perímetro, antes de entrar no carro.
- Vamos sair daqui rápido! – ele disse colocando a chave
na ignição. Mas ele não terminou de ligar o carro. Invés
disso, o corpo de Inácio tombou para o lado, sujando de
sangue o vidro da janela da porta.
- M-Mas que diabos você fez?! – Jenny berrou comigo.
Ela esboçou puxar o revólver da cintura, mas fui mais
rápido e a minha arma já estava mirada na cabeça dela.
Antes que Jenny falasse alguma coisa, puxei o gatilho. Os
fios loiros que corriam em sua testa exibiam agora uma
cor avermelhada, empapada com o sangue que saía do
buraco que a bala fez em sua cabeça.

***

Saí do carro desconfiado, temendo que alguém ainda


estivesse vivo para me acertar de surpresa. Passei pelos
cadáveres de Yin e Yang, dos capangas e de Cesare.
Todos estavam mortos.
- Muito bem! Podem sair! A festa acabou! – gritei.
A pilha de feno, localizada no meio do celeiro, era oca
por dentro. Dentro dela, cinco homens saíram de dentro
da pilha, com as armas ainda em mãos.
O que houve ali, na verdade não foi uma retaliação dos
homens de Jenny, como pensavam os capangas de
Cesare. Nem o inverso.
Quem começou aquele furdúncio todo foram estes cinco
caras.
Este era o plano. Eles acendiam o pavil. A explosão
ficava por conta dos participantes dos lados das
gangues, que se mataram inutilmente.
Um dos cinco homens comunicou em um walkie-talkie
que o caminho estava livre. Minutos depois, o portão do
celeiro foi reaberto, para a entrada de outros dois
veículos. O primeiro, uma van preta, descarregou uma
dúzia de homens; o outro – este sim mais importante –
um Lincoln, de cor escura, apareceu diante de nós. Após
a porta ser cerrada novamente, o motorista desligou os
faróis que estouravam nas nossas caras. Em uma das
portas traseiras, saía o vencedor daquela noite.
- Grande trabalho pessoal! Assim que eu gosto! A
decadência do inimigo sem perder nenhum dos meus
homens. – disse olhando para a gente o maior gangster
daquela região.
Dionísio.
Do lado dele, um cara mais franzino, parecia ser seu
assessor direto. Assim que desceu do carro, começou a
dar ordens para os subordinados:
- Vamos pessoal! Vamos limpar a área e depois eliminar
os cadáveres!
Os homens ali prosseguiam com seus trabalhos. Eu
olhava em volta, analisando os estragos, enquanto me
aproximava de Dionísio.
- Muito bem, fiz o combinado no trato. Infiltrei-me na
máfia de Jenny e conforme prometido estou lhe dando
morta, assim como Cesare e todos os restantes. Sem
testemunhas. Agora, gostaria de meu pagamento – eu o
encarei.
Dionisio estava com uma expressão de satisfação no
rosto.
- Com certeza, caro matador de aluguel. Sua recompensa
está no porta-malas do meu carro. Michel! – ele chamou
o assessor – pegue a maleta com o dinheiro do nosso
amigo aqui.
- Sim, chefe!
Fiquei observando o serviço dos homens, enquanto
esperava Michel com a minha grana. Quando me
contratou, Dionísio tinha me ofertado o triplo oferecido
por Jenny para que, invés de trabalhar para ela,
trabalhasse para ele.
Finalmente o assessor veio com a maleta preta.
Segurando-a horizontalmente, destravei os ferrolhos e ao
abri-la, pude ver todas as notas ali, amontoadas,
novinhas. Um sorriso brotou de meu rosto, satisfeito com
o negócio. Teoricamente falando, o serviço foi muito fácil
pela quantia em dinheiro que me foi dada.
- Senhor Carlos – Dionísio me tirou do transe – Só
lamento dizer que o senhor não cumpriu com exatidão o
nosso trato.
- Como é? – o indaguei, contrariado com o que ele disse.
- Lembro-me perfeitamente que lhe disse que ninguém
aqui deveria sair vivo, não foi isso?
Comecei a buscar os cadáveres. Cesare, Jenny, Ying e
Yang, os capangas, Inácio... que deixei de matar?
- Não entendo. Todos estão aqui. Mortos. Quem faltou?
Dionísio então mostrou a sua verdadeira face.
- O Senhor.
E sem titubear, estendeu sua pistola prateada contra o
meu peito. Três tiros certeiros no coração. Desabei no
chão. A dor inundava minha existência. Minha última
indagação em vida foi se realmente compensou viver
uma vida daquelas. No fim das contas, fui vítima do
próprio mundo que ajudei a criar.
Enquanto ia perdendo a consciência, ainda ouvi o
assessor dizer para Dionísio:
- Chefe, este também vai ser desovado no rio perto
daqui?
- Sem dúvidas. O rio os levará para a mata fechada.
Ninguém irá desconfiar.
Depois de escutar isso, tudo se tornou uma eterna e
silenciosa escuridão.
CAPÍTULO 02

Foi de repente quando voltei a abrir os meus olhos. Aos


poucos busquei aguçar meus sentidos. Não sabia por
quanto tempo eu estive desacordado. Horas? Dias?
Meses? Anos? Não sabia ao certo.
Mexi os primeiros músculos e pude perceber que eu
estava deitado em terra firme, e não boiando no rio,
carregado pela correnteza. O meu nariz não sentia o
cheiro do mato. O odor era fétido, de enxofre misturado
com carne podre. Senti meu estomago revirar e fiquei
com vontade de vomitar.
Levantei-me devagar. Primeiro meus joelhos tocaram o
chão de terra que estava em brasas com tamanho calor
que vinha dele. Ao redor não havia nada diferente
daquele cenário desértico, com exceção de algo parecido
com uma cadeia de lagos que espirrava água quente
para cima. Como gêiseres. Mas não vinham do subsolo, e
sim da superfície. Assim que me equilibrei sobre meus
pés, olhei para cima. Um céu completamente
avermelhado, como se naquele momento o sol estivesse
se pondo. Porém, ao contrário do que eu imaginava, não
havia sol ali!
Passo após passo, lentamente, fui caminhando pelo local.
Não sabia para onde ir e sequer se havia alguém por ali.
Ainda gritei por umas duas, três vezes. Mas não vinha
resposta em nenhuma das direções.
Devo ter andado por umas três horas – estranhamente
não sofria cansaço neste novo lugar –, quando me
deparei com um enorme rochedo. Na base, um buraco
que declinava para dentro da pedra mostrava o início de
uma caverna. Enquanto me aproximava da entrada do
buraco, eu ouvia – ainda que baixo – sons perturbadores
vindos de lá. Busquei adaptar os meus olhos à falta de
iluminação do lugar. Tentava descobrir o que havia lá
dentro, mas a escuridão era densa demais.
Estava criando coragem para entrar, quando ouvi um
barulho ecoando, vindo de dentro da caverna. Era
ritmado e agudo, e se tornava mais forte a cada segundo
que se passava. Algo ou alguém se aproximava. Fui
recuando a passos largos, de frente para a abertura. Já
que não tinha onde se esconder – só se eu cavasse um
buraco no chão com as minhas próprias mãos -
procurava uma distância para não ser surpreendido.
Olhei ao redor para ver se tinha algum pedaço de aço,
madeira ou coisa do tipo, mas o que eu via era apenas
terra em brasa.
Gradualmente, de dentro da penumbra, foi aparecendo
um homem vestido com terno e sapatos brancos. Era
mais baixo que eu e seu porte físico não era lá essas
coisas. Relaxei. Embora não fosse ameaçador, ainda
assim sua postura ao andar era tão segura que não me
atrevi a me mexer. Embora a elegância de sua roupa e a
forma arrogante de andar, o que mais me chamou a
atenção mesmo foi o objeto que o homem carregava na
sua mão esquerda. Era reluzente. De cor prata. Algo
semelhante a um cetro. Na extremidade do objeto havia
uma escultura de três cabeças de cães. Eram ferozes. Já
tinha visto uma figura como essa no estúdio de tatuagem
que eu frequentava. Johny, o tatuador, tinha me dito
certa vez que aquilo era o cão do inferno. Cérberus.
- Olá, seja bem-vindo! – disse o homem.
Antes que eu o perguntasse, ele já foi se adiantando:
- Bom, acredito que você tenha perguntas e que eu já
saiba quais as respostas. Então vamos a elas. A primeira
pergunta, creio eu, é “onde estou?”, correto?
Cético com a atitude do homem, apenas assenti
positivamente.
- Bom, meu caro, você está no inferno. Lugar onde as
almas mais podres do plano mortal vêm. – Ele parou por
um momento – Agora, vamos para a segunda pergunta.
Pelo seu olhar, você provavelmente está tentando
descobrir quem eu sou.
Novamente acenei que sim.
- Pois bem. Basta que você saiba que aqui eu sou um
servo do Senhor das Trevas. Sou chamado de
Mensageiro.
Mensageiro? Mas que porra era aquela?!
- Sou aquele quem irá te ajudar na tua jornada.
- Como assim? – arrisquei.
O homem deu um sorriso de canto e virou-se novamente
para a abertura da caverna. Deu alguns passos, até notar
que eu ainda não me mexia. Ele olhou para trás e acenou
com o cetro, indicando para que eu o seguisse.

***

Já havíamos cruzado toda a escuridão da caverna quando


deparamos com uma gigantesca galeria circular em seu
interior. Ali, a temperatura estava bem mais alta do que
lá fora. A iluminação era feita por colossais labaredas que
vinham no buraco do centro da galeria. Pelas paredes
rochosas escadas de pedras desciam e subiam. Em
alguns pontos havia plataformas, onde vários seres
(difícil de identificar se eram humanos ou aberrações)
faziam trabalhos forçados e atividades bizarras.
O Mensageiro e eu fomos descendo as escadas. A cada
degrau, o ar se tornava insuportável. Mas tudo bem.
Afinal, já estava morto mesmo...
Já havíamos descido uns vinte ou trinta metros, quando
pisamos no último degrau. Acredito que tínhamos
chegamos ao ponto mais profundo do inferno, pois não
havia mais como descer, a não ser se eu quisesse
mergulhar no mar de lava que corria abaixo de nós.
- Tenha cuidado. O fato de estar morto não significa que
estas lavas não irão te corroer. Elas são demoníacas,
como o dono deste lugar. – o Mensageiro me alertou.
À frente, boiando sobre o magma, se via uma ponte feita
de rochas vulcânicas, que levava a uma outra caverna.
Seguimos por ela, até encontrar um enorme portão.
Tinha a cor vermelha, feito de ferro chumbado, e selava
completamente o caminho. Tinha a sensação de que,
enquanto me aproximava do portão, mais calor eu
sentia.
Sem ninguém o tocar, o portão se abriu. Não sou de me
assustar fácil, mas admito que o rangido do ferro foi
sinistro. Avançamos alguns metros pelo caminho aberto e
me surpreendi com o lugar.
Chegamos na ponta de um penhasco.
Aproximei-me da borda e vi a dezenas de metros abaixo
o lago de lava. Estava borbulhante, doido para dissolver
carnes e ossos. Observei no teto da caverna pedras
pontiagudas, prontas para acabar com o infeliz que
estivesse abaixo delas.
De repente, um urro ecoou pelas paredes de pedra. O
portão, assim como abriu, se fechou sozinho. Olhei para
os lados, mas nada vi. Aliás, o Mensageiro já não estava
tão próximo de mim, ficando a alguns metros para trás,
ajoelhado, como se fizesse alguma reverência.
Novamente a voz se pronunciou, desta vez
transformando o som tenebroso do urro em palavras:
- Ora, ora... Olha só quem chegou até mim! Há há há
há!!
- Senhor das trevas, trago-lhe quem me pediste!
Claro. A voz que vinha até meus ouvidos só poderia ser
dele. O dono do inferno. O Anti-Deus.
O Diabo.
- Uau, recepcionado pelo próprio Demônio. Não sabia que
eu era tão importante. Gostei disso! – disse eu, em tom
de deboche.
- Não seja tão petulante, rapaz – advertiu o Mensageiro.
- Ah, não enche!
O Demônio riu por um instante, fazendo estremecer um
pouco a caverna.
- Então, rapaz, acredito que o Mensageiro já mencionou
que ele te auxiliará em tua nova jornada, não?
Estranhei de novo ele ter repetido sobre a tal jornada.
Mas o que diabos eles queriam falar com isso?!
- Não vais ficar aqui no inferno, se é o que queres saber.
– completou a voz.
Fiquei surpreso com a declaração, embora procurasse
não demonstrar.
- É, a não ser que queira que eu tome o seu lugar aqui no
inferno, é bom eu voltar mesmo.
Olhei para trás. O mensageiro, embora não se mexesse,
me olhava com raiva, tamanha a minha displicência. Sua
íris modificou do castanho para uma aparência vermelha,
em brasa. Enquanto isso, meus ouvidos captaram uma
nova risada ecoada das rochas.
- Gostei do seu senso de humor. São pessoas como tu
das quais preciso. Tenho algo a te oferecer.
- Fala logo o que você quer de mim.
- Ora, ora. Estás com pressa? Mal chegaste! Já tens
compromisso? Há há há!
Fitei o Mensageiro. Queria dizer que o diabo era um
idiota, mas sabia que seria repreendido. Aguardei a
próxima lorota.
- Pois bem, vamos falar sério agora, Carlos. – disse o
Demônio – Estás aqui pois quero te dar uma
oportunidade de te devolver à terra dos vivos.
- Ué, você mesmo disse que mal cheguei! Porque a
pressa em me mandar de volta?
Vi o mensageiro terrivelmente irritado com a minha
afronta com o Diabo. Pude ver uma veia saltando de sua
testa e sua mão querendo quebrar o cetro de Cérberus
em duas, mas no final acabou se contendo, antes que me
mandasse para o pior lugar do inferno.
- Digamos que até eu cometo alguns erros. – disse o
Demônio – Há tempos realizo pactos com aqueles cujo...
– Ele fez uma pausa – Bem... você sabe...
- Deus? – completei. Um silêncio tomou conta do
penhasco.
- Sim. Deus. – continuou o Demônio. – Realizo pactos com
aqueles cujo Deus acaba esquecendo, ou renegando. Pois
bem, elas me procuram. Oferecem suas almas em troca
de poder, dinheiro, amor. Mas quando eu cumpro a parte
do pacto, esquecem que eu também cobro a minha
parte...
- Anda logo. Aonde você quer chegar?! – disse eu, já
irritado com tanta ladainha.
- Simples. Tem almas que realmente me interessam. São
gananciosas, violentas, persuasivas. São ótimas escravas
aqui no inferno. Mas tem outros que... – ele fez uma
pausa, suspirando entediado – Bem... não valem nem a
pena trazer para cá.
Dei as costas para o penhasco e caminhei em direção à
saída, sem dizer absolutamente nada. A voz se calou. No
meio do caminho, o Mensageiro me interceptou:
- V-Você está louco? O que pensa que está fazendo?
- O que você acha? Vou cair fora! Não vou servir a este
imbecil! – retruquei – Vou curtir a minha eternidade,
mesmo que seja aqui no inferno.
Eu já estava chegando no portão de ferro, quando a voz
voltou a se pronunciar:
- Mesmo que este serviço que tenho para ti possa te
fazer voltar a ver Micaela?
Parei imediatamente. De alguma forma Ele sabia que
aquele nome me afetava. Era o meu calcanhar de
Aquiles. Minha criptonita. Finalmente Ele estava me
mostrando do que era capaz para conseguir o que quer.
- Pelo que fiquei sabendo, desde a tua morte, ela sente
muito a tua falta.
Virei-me novamente para o fim do penhasco. Desta vez a
raiva me corroía de uma forma que sei que o deixei
satisfeito.
- O que quer dizer? – eu o perguntei, fechando cada vez
mais com força os punhos.
- Calma, rapaz! O que te digo é que poderás revê-la, caso
aceite o teu trabalho.
- Que trabalho?! – as palavras saíam por entre meus
dentes cerrados.
- Vamos recapitular... sabes tão bem quanto eu que há
muitas almas no mundo dos vivos que pedem a ajuda do
“outro lado” para resolver algumas questões. Oram,
suplicam. Mas muitas vezes o milagre que esperam não
se realiza. Então o que fazem?
- Recorrem a você! – eu disse, rispidamente.
- Exato! Oferendas são feitas para mim. E, claro, as
aceito de muito bom agrado. Sempre auxilio os
“renegados dos anjos”. Obviamente, em troca de algo.
- Almas! É isso que procura nos desesperados, certo?
- Ora Carlos, não é exatamente a alma que eu quero. –
Ele hesitou por um momento – Digo, sim, proponho a
troca da alma pelos milagres que posso fazer. Elas são
extremamente úteis para os meus planos. Troco meus
milagres pela servidão eterna que as pessoas farão para
pagar as dívidas que possuem comigo. É assim que as
coisas funcionam.
- E o que tudo isso tem a ver comigo?
- Digamos que, sempre que posso, realizo os milagres
dos vivos. Isso chamamos aqui no inferno de Pacto.
Porém, nem sempre preciso de todas as almas com as
quais compactuo.
- Está me dizendo que eu terei que eliminar aqueles que
não prestam para você.
- Não prestam é uma expressão um pouco forte. Diria
aqueles que são dispensáveis.
- E como faria isso?
- Daremos a você a chance de ressuscitar – disse o
Mensageiro, que até agora ouvia quieto o meu diálogo
com o Demônio – Você poderá voltar a sua vida normal,
com algumas vantagens e desvantagens.
- Quais as vantagens? – perguntei-o, ainda com muita
raiva.
- Você será remunerado por cada alma devorada. O que
fará com o dinheiro pouco nos importa. Faça o que tiver
vontade. Porém, mais do que a grana, como
consequência de sua nova vida, você vai adquirir
agilidade, força... enfim, habilidades fora do comum em
determinados momentos.
- Espere. O que você quis dizer com determinados
momentos?
- Ah, sim. Aliás, esta é uma das desvantagens. Seus
sentidos aguçarão, seus músculos tornarão rochas e
correrá mais que um leopardo, mas isso só ocorrerá
quando sentir Fome.
- Fome?! Hum, vão me mandar para algum spa? –
argumentei, debochando mais uma vez. O Demônio, ao
contrário do mensageiro, riu.
- Agora, se parar de fazer graça, devo te alertar que não
conseguirá comer carne, frutas, ou legumes. Tampouco
conseguirá beber água ou outro composto.
- Já entendi. Devo desistir do álcool, é isso?
- Também.
- Essa é boa. Já que você se transformou no meu
nutricionista, posso saber o que posso comer?
Foi então que caiu a ficha. Todos ficaram em silêncio.
Ouvia-se apenas a lava borbulhante abaixo de nós. Não
podia acreditar sobre o plano do Diabo.
- Você se tornará um Devorador de Almas.
Minha mente começou a travar. Essa história já tá
ficando louca demais! Tenho a chance, talvez a única, de
me reencontrar com Micaela. Ao mesmo tempo, teria que
sobreviver me alimentando das almas encomendadas
pelo próprio satânico.
- Apenas as almas escolhidas por mim serão as que te
saciarão. Deves fazer vossa refeição de forma discreta e
silenciosa. Não poderá haver testemunhas. Se houver,
mate-as. Se alguma sobreviver, terei que encerrar o
nosso pacto. Consequentemente, você deixará de ser um
dos nossos, sendo substituído e caçado por outro. Sem
vestígios, se me entendes.
Fiquei parado por um longo momento. Comecei a pensar
em tudo aquilo. Estava tão concentrado que sequer ouvi
o que Mensageiro tentou dizer para mim. Eu estava
confuso, mas na verdade sabia que não tinha outra coisa
a se fazer. Ainda em silêncio, virei novamente em direção
ao portão. Desta vez, não titubeei e segui em frente,
atravessando-o. Ainda pude ouvir a conversa entre o
Mensageiro e o Diabo:
- Ei, voltei aqui! – gritou o Mensageiro para mim.
- Deixe-o ir! – ordenou o Demônio.
- Mas Senhor, ele não respondeu a vossa proposta!
- Muito pelo contrário – concluiu o Demônio – Ele já se
decidiu.
CAPÍTULO 03

A chuva batia forte sobre o teto de amianto do velho


galpão quando acordei. Olhei ao redor e descobri que
mais uma vez sonhei com aquele maldito encontro com o
Senhor do Inferno. Isso tem acontecido todos os dias. O
Demônio quer que eu me lembre a cada instante sobre o
nosso pacto, e ele faz isso em meus sonhos.
Estava deitado em um sofá de couro, desgastado pelo
tempo de desuso. Olhei ao redor e vi a televisão de tubo
apoiada em um antigo rack de canto. A cadeira roída
pelos ratos e a mesa retangular empoeirada, cheia de
papéis amarelados, ficavam entre mim e o pequeno
banheiro. Estava em um escritório localizado dentro de
um galpão completamente abandonado que em outro
tempo servia como uma fábrica de fibra de vidro. Aquele
lugar era meu habitat provisório após o meu retorno do
inferno.
Levantei-me, liguei a televisão e fui até o banheiro. O
chiado do aparelho misturava com o barulho do mijo
caindo na privada, mas ainda assim dava para escutar o
noticiário. Olhei a escuridão da noite através da pequena
janela que ali havia. Depois que retornei a este mundo,
minha vida se parecia muita com a de um vampiro. Não
consigo dormir de manhã e minhas atividades
acontecem geralmente à noite. A única diferença é que
meu alimento não é o sangue das pessoas.
Retornei ao escritório e me sentei na cadeira. Puxei uma
das gavetas da mesa e de lá retirei um papel. Na
verdade, uma fotografia. Inconscientemente, comecei a
acariciar os contornos da mulher de pele de porcelana e
cabelos pretos e lisos, que deslizavam até a nuca. Era ela
a quem o demônio se referia para me chantagear.
Micaela.

***

Antes de me tornar um Devorador de Almas, Micaela era


a única pessoa que ainda depositava alguma confiança
em mim. A mulher que conheci no Bartolo Palace, um
bordel que ficava no centro da cidade. Eu sempre o
frequentava quando estava entediado ou quando tinha
serviços para fazer por ali perto.
Toda vez eu me encostava no balcão do bar, sempre
ficando de frente para o palco. Ela era a dançarina da
última apresentação da noite já fazia algum tempo, e
agora tinha conseguido o seu próprio show. No começo,
os homens deliravam quando ela surgia no palco. Era
linda. Dançava como poucas mulheres sabiam fazer.
Embora sempre estivesse lá, jamais troquei uma palavra
com ela, sempre me ocupando com o álcool.
Com o passar dos tempos, o show foi ficando obsoleto, e
aqueles que sempre frequentavam o lugar para ver as
apresentações de Micaela acabaram ou migrando para
outros bordéis, ou apenas não iam mais. Vi Micaela
modificar inúmeras vezes sua apresentação, mas
ninguém – além de mim – se importava mais. A verdade
é que parecia que o tempo da dançarina naquele lugar
estava contado.
Em uma das noites frias e chuvosas daquela cidade, o
bordel já estava encerrando as atividades e, pra variar,
eu era um dos últimos a sair. Andava meio desengonçado
pela rua por causa da bebedeira, mas ainda não era o
suficiente para cair. Havia três horas que Micaela tinha
se apresentado, e mais uma vez para um público cada
vez mais vazio. Ainda cambaleante, virei a esquina e
segui em frente, até chegar no beco que dava acesso aos
fundos do Bartolo Palace. O acesso era um atalho para
que eu chegasse até o muquifo – cujo dono insistia em
chamar de hotel – em que eu morava.
Entrei no beco. Como qualquer outro lugar daquela
cidade, era desértico naquela hora da noite. Incrível
como um lugar poderia ser sinistro e ao mesmo tempo
tão calmo, a ponto de se ouvir apenas os pingos da
chuva batendo no chão. Ali, caçambas de lixo
repousavam encostadas as paredes e portas de fundo
dos estabelecimentos permaneciam fechadas.
Porém havia uma porta que não servia como fundos.
Acima dela, um letreiro de neon – já gasto com o
excessivo tempo de exposição – indicava a entrada de
mais uma das inúmeras espeluncas que existiam na
cidade como hotel. Olhei pra cima para observar o local,
mas o que pude ver eram apenas imagens borradas, em
consequência de, além da cachaça, da chuva que caía
desta vez mais forte em meus olhos.
Eu ainda permanecia afastado a alguns metros de
distância, quando a porta do hotel se abriu. Eu esperava
ver algum fanfarrão saindo da gandaia, mas não foi isso
que aconteceu. Invés disso, uma moça vestida com um
casaco preto e uma touca cobrindo-lhe os cabelos negros
e lisos cortados até a nuca, saía do local carregando uma
mala, relativamente grande. Era um pouco mais baixa do
que eu, e a chuva batia forte na pele de porcelana da
moça.
Ela já estava do lado de fora do hotel, quando um
homem gordo, fumando um charuto, apareceu por entre
a batente da porta, gritando:
- Vai procurar outro lugar pra dançar, vadia! No meu
bordel você não pisa mais!
E fechou a porta com violência na cara dela. Por um
momento ela ficou estática, com o olhar fixado para o
chão. Provavelmente sem saber o que fazer. Lentamente
ela começou a se mover. Havia uma cadeira velha do
lado da porta, onde ela se sentou. Colocou as mãos no
rosto. Além da chuva, agora se ouvia soluços nervosos
vindos abafados, seguidos por um choro intenso.
Aproximei sem ela notar. Ainda chorava quando encostei
minha mão no ombro dela, o que fez com que a moça
desse um pulo pelo susto que tomou. Aquele rosto, que
tanto vi sorrindo, agora me olhava assustado. Eu
esperava que ela fugisse. Para a minha surpresa, a
expressão de susto logo foi dando lugar para contornos
de alívio em seu rosto. Ela sabia que eu sempre estava
em seus shows. Micaela me reconheceu.
Durante a nossa longa conversa, ela me contou sobre
Bartolo. O tal homem gordo que a despejou sem piedade
era ganancioso. Só gostava de pessoas que lhe traziam
dinheiro. E com ela foi assim. Enquanto ela atraía um
público crescente, era tratada como uma rainha no reino
do bordel. Porém, ao passar dos tempos, e como as
coisas mudaram, ele começou a tratá-la como uma
cadela de rua.
Naquela noite, eles discutiram feio. Pude notar uma
marca roxa no rosto dela. Perguntei-a sobre o
hematoma. Ela me disse que, no auge da discussão, ele
lhe deu um soco. Foi a gota d’água, dizia ela. Ela pegou
suas coisas e deixou o hotel, que também era de
propriedade de Bartolo.
Fiquei em silêncio com ela por um momento. Nunca fui
afetivo com ninguém. Tampouco sou um cara que tenha
sentimentos por estranhos.
Mas com ela foi diferente.
Minha vontade era entrar naquele hotel e encher a cara
daquele infeliz de porrada. Isso quietaria a minha raiva.
Mas respirei fundo, controlando o instinto. Pensando
bem, aquele tipo de atitude resolveria o meu problema,
mas não o dela.
- Olha, não sou cara de fazer isso, mas estou hospedado
num hotel próximo daqui. Pode morar comigo enquanto
procura outro lugar para ficar...
- Morar contigo?! – ela me perguntou desconfiada – Nem
conheço a sua história! Como não sei se é um
estuprador?!
- Bom... você tem algum lugar para ir?
Ela me olhou com raiva, mas sabia que eu tinha razão.
Pelo menos para aquela noite, ela não tinha alternativa.
Não tinha para onde ir.
- Até porque estou bêbado. Preciso de alguém para me
carregar até aquela espelunca! – brinquei com ela.
Com os olhos ainda molhados pela chuva e pelas
lágrimas, Micaela me mostrou aquele sorriso
inconfundível, que só ela sabia fazer e encantar qualquer
homem que quisesse.
E, então, foi assim que ela foi morar comigo.
Minha vida com Micaela era simples demais. Não éramos
namorados, ou casados. Apenas dois estranhos vivendo
debaixo do mesmo teto. Ocasionalmente, durante as
noites, um pulava para a cama do outro, e transávamos
a noite inteira. Nada mais. Concordamos que nenhum
dos dois servia para casar.
Porém, aquela noite da minha morte mudaria muita
coisa.

Logo depois de morrer e ter feito o acordo com o


Demônio em servi-lo, acordei novamente dentro do meu
corpo. Eu estava boiando na margem do rio em que fui
jogado pelos homens de Dionísio quando despertei. Já
era noite, e só ouvia os grilos cantando, escondidos entre
as plantas. Minha primeira reação foi levar a mão na
testa para checar o estrago feito pela bala que me
matou. Curiosamente o buraco havia sumido. Não sentia
dor, fome ou sede. Literalmente, tinha ressuscitado.
Foram dias e noites andando pela mata até encontrar
trilha que me levava novamente para a cidade. Era mais
uma noite quando finalmente consegui sair dali.
Segui direto para o hotel onde eu morava. Na verdade
tratava-se de uma espelunca, localizado no centro da
cidade. O Hotel Paradise podia ser facilmente
considerado um motel, já que era usado por homens que
levavam prostitutas para usufruir dos serviços das
moças.
Durante o trajeto que me levava em direção ao hotel, eu
comecei a pensar em como conseguiria passar pela
recepção sem ser notado, já que ninguém sabia da
minha morte, e, bem, pelo tempo que fiquei fora e sem
pagar – além dos dias perdidos na mata, devo lembrar
que houve também o tempo em que fiquei entre o
mundo dos vivos e o inferno – não acreditava que seria
recebido com festa.
Eu estava agora no centro da cidade. Em um
determinado ponto, estanquei os passos. Eu estava
diante de um dos inúmeros bares que haviam por ali.
Pelo vidro da enorme janela, vi um cabideiro logo na
entrada, cheio de casacos, trench coats e chapéus, todos
de clientes que ali estavam. Ainda vestido com a roupa
usada no dia da minha morte, entrei no bar. Estava bem
cheio devido ao horário, o que me foi extremamente
favorável para mim. Fiquei durante alguns minutos
dentro do bar para disfarçar. Então, como um gatuno, me
aproximei do cabideiro e retirei um trench coat cinza.
Olhei ao redor, torcendo para que o dono da peça não
tivesse visto – o que de fato não ocorreu. Rapidamente
sobrepus o capuz na minha cabeça, me dirigi à saída e
me perdi em meio à escuridão das ruas.
Já devidamente disfarçado, cheguei na fachada do hotel.
Já era de madrugada, quando me aproximei da porta da
recepção. Lá dentro, apenas o recepcionista cochilava
com a cabeça apoiada no balcão. O tempo em que eu
morei ali e as noites que eu chegava de madrugada após
encher a cara fizeram com que o próprio recepcionista
que ali cochilava me ensinasse um truque para abrir a
porta sem incomodá-lo.
Segurei a maçaneta – que mais parecia que ia se
desprender da porta. Girei duas vezes para a esquerda e
uma vez para a direita. Ouvi o click. Com cuidado, forcei
a porta para cima, até que a tranca se soltasse por
completo. Abri-a com as pontas dos dedos, e
ingratamente a porta soltou um rangido. Olhei para o
recepcionista que, por sorte, ainda estava com a cabeça
apoiada ao balcão, de olhos fechados. Na ponta dos pés,
lentamente entrei na minúscula recepção e fui subindo
pelas escadas até o segundo andar.
Ali, um corredor cheirando a mofo e com as paredes bem
descascadas abriam caminho para mim. O tapete, no
mínimo da era colonial, estava bem surrado e molhado
pela chuva que entrava pelas goteiras do teto. As únicas
fontes de luz do corredor eram os velhos abajures que
ainda resistiam à ação da gravidade, permanecendo
penduradas nas paredes.
Fui avançando, até chegar na frente da porta de onde eu
morava. O número de ferro, já oxidado, era o vinte e
seis. Depois de tanto tempo fora, finalmente estava de
volta em casa.
Bati na porta. Aguardei por alguns segundos Micaela
abrir a porta. Não entendo o porquê, mas isso não
aconteceu. Comecei a desconfiar de algo errado e bati
novamente, com mais força desta vez. Esperei, mas a
porta continuava ali, imóvel.
A vontade de reencontrar com Micaela era muito grande
para que uma porta me impedisse de revê-la. Dei dois
passos para trás e, incontrolavelmente, arremessei o
meu corpo contra a porta. A violência do choque fez com
que ela se desprendesse da batente e voasse quarto
adentro.
Houve um momento de desespero. A luz que vinha do
corredor foi o suficiente para que eu visse o vazio
daquele quarto. Ali já não havia sinal dela ou das minhas
coisas. O quarto estava arrumado, esperando por outro
hóspede. Meus objetos haviam desaparecido. Os
vestígios de que houve alguma história entre mim e
Micaela naquele quarto foram varridos junto com a
poeira.
Por um momento, sentei-me na cama, desolado com a
situação. Era bem provável que Micaela tenha sido
despejada, já que quem pagava a conta do hotel era eu.
Em um acesso de raiva, soquei uma das paredes.
O impacto foi tão grande que criou uma deformidade no
concreto. A batida também fez com que a única
prateleira que estava na parede perdesse um dos
parafusos, ficando pendurada. Com o balanço, algo que
mais parecia uma folha de papel caiu de cima dela, até
chegar suavemente ao chão.
Abaixei-me e o peguei. Era uma fotografia de Micaela. A
única lembrança que me restou dela.

***

O noticiário na televisão me tirou daquele momento


flashback. Na tela, o repórter anunciava a morte de uma
empresária importante da cidade que estava envolvida
em investigações, mas que nunca havia sido provado
nada. O nome dela era Joana Dântolo. reportagem
encerrou com o jornalista dizendo que a causa do óbito
ainda era desconhecida, mas que suspeitavam que se
tratava de acerto de contas entre gangues.
Voltei a olhar para a fotografia. Uma tristeza profunda
chegou a minha alma ao ver o sorriso contagiante de
Micaela. Levantei-me da cadeira e peguei o trench coat.
Tinha que voltar às ruas. Desde que soube do
desaparecimento dela, minha vida se resumiu em caçar
almas impuras e procurar a única mulher que consegue
perturbar a minha sanidade.
CAPÍTULO 04

Até que enfim, depois de tanto tempo procurando, uma


pista concreta.
Um dia antes de atacar Joana Dântolo, resolvi dar uma
volta pela cidade durante a noite. Embora estivéssemos
no inverno, o vento que corria pelas ruas era manso e
batia suavemente nos casacos de quem o atravessava.
No meu caso, a trench coat cinza.
Se não fosse pela violência instituída, diria que aquela
seria a cidade dos sonhos para qualquer um morar.
Se bem que, pensando melhor, se ela fosse mais segura,
talvez eu não tivesse condições de andar livre como
agora.
Caminhava pela calçada, onde havia alguns restaurantes
e lojas de souvenir já com as portas fechadas. Onde elas
terminavam, começava a área do píer da cidade, que se
estendia para o mar a algumas centenas de metros. Ali
havia lugar de sobra para andar, ou então bancos para
sentar e apreciar a paisagem. Ideal para namorar ou
apenas pensar na vida.
Adentrei no píer. Passei por um lance de escadas que
levava para o nível abaixo, onde havia um píer coberto
pelo piso do andar de cima. Fui até o final, que acabava
num parapeito de barras de ferro, que resistiam à
corrosão da maresia. Ao longo do píer, postes com luzes
amareladas iluminavam as tábuas de madeira
uniformemente encaixadas uma ao lado da outra,
permitindo um andar tranquilo pelo local.
Parei diante do mar. Já havia alguns meses desde que
retornei do inferno, e desde então buscava informações
sobre Micaela. Já tinha ido a todos os bares e lugares
daquela cidade, mas nada havia conseguido. Contatei
alguns informantes do submundo, mas todas as pistas
que me arrumavam eram falsas. Já estava perdendo as
esperanças de até mesmo pensar que ela ainda pudesse
estar viva.
Depois de uma hora parado ali – ora pensando, ora
admirando o mar – resolvi voltar. Olhei ao redor e só
agora percebi que estava sozinho no píer. Também, já se
passava das duas da manhã, e por ser dia de semana, no
frio, duvido que algum louco além de mim se arriscaria
em ir até lá.
Saí do píer e segui pela a calçada para voltar ao velho
galpão da fábrica de vidros, quando notei que alguém
vinha na direção contrária à minha. Uma pequena
chama, acompanhada por uma leve fumaça, saía do
cigarro que estava pendurado na boca da mulher. Por
ironia do destino, acidentalmente tinha encontrado uma
das dançarinas do Bartolo Palace, a boate que Micaela
trabalhava antes de eu acolhê-la.
Ela se chamava Ana, e eu a conhecia porque era amiga
de Micaela. Ana sempre aparecia lá no hotel para
conversar com ela. Muitas vezes eu tive que chamá-la
para me ajudar a conter as crises de depressão de
Micaela.
Naquele momento, ela andava devagar, tragando o
cigarro recém-aceso. Ela levantou o rosto, foi quando ela
percebeu que eu estava na sua frente. Ao me ver, veio
correndo ao meu encontro.
Não esperava nada caloroso vindo da parte dela. Até
porque não éramos tão amigos assim. Eu só não
esperava que aquela corrida servisse para que ela viesse
me marcar os quatro dedos da mão direita com o tapa
que aplicou na minha cara.
- Como pôde ter feito isso com ela, seu imbecil? Sumir do
nada? Qual o seu problema?! – ela gritou, enquanto se
preocupava em me acertar de novo.
A vontade de dizer ‘Então, eu morri e fui para o inferno,
mas o diabo me ressuscitou em troca de algumas almas’
era grande, mas ela iria se irritar ainda mais e não ia me
ajudar a reencontrar Micaela. Procurei inventar uma
desculpa o mais rápido possível e disparei a primeira
coisa que veio a mente.
- Fui sequestrado – disse.
- Vai se fuder! Mentiroso! Vocês homens são todos iguais!
Não prestam pra porra nenhuma!
- Escute – disse, enquanto tentava acalmá-la – Eu estava
em um negócio aí, e quem me contratou não gostou
muito do trabalho. Fiquei sob custódia de bandidos.
Enfim, não foi culpa minha ter desaparecido do nada.
Ana foi aos poucos parando. Sua mão foi relaxando
vagarosamente, até que eu pudesse segurá-la pelos
braços. Ela sabia que eu era envolvido com gente da
pesada, embora trabalhasse por conta própria. Pela
expressão dela, a minha explicação parecia ter sido bem
plausível.
Quando ela finalmente parou de se debater, começou a
chorar. Fixei meus olhos no dela.
- Olha Ana, estou sendo sincero contigo. Fui até o Hotel
Paradise, mas não a encontrei. Desde então estou atrás
dela. Você tem alguma informação? Algo que possa
ajudar?
Ela olhou para mim severamente. Seu ódio era
nitidamente expresso pela tensão dos músculos de seu
rosto fino. Ainda assim tratou de me responder.
- Ela sumiu. Não disse a ninguém para onde ia. Nem os
funcionários do hotel sabem do paradeiro dela. – ela
parou por um segundo para enxugar as lágrimas –
Segundo eles, Micaela sequer levou suas roupas. Deixou
tudo no hotel.
Eu a ouvia atentamente. Ainda a segurava, quando ela
olhou para os braços. Inconscientemente, eu os apertava
com bastante força, como se com isso eu fosse espremer
alguma informação adicional dela. Quando me dei conta,
larguei de imediato e me desculpei.
Sem dizer nada, deixei ela ir embora. Ela voltou a
caminhar, mas alguns metros adiante parou novamente.
Ana chamou pelo meu nome.
- Carlos – disse ela – acho que tem algo que sei e que
pode te ajudar.
Aproximei dela novamente, aguardando o que ela ia me
falar.
- Duas semanas antes de ela sumir, ela me disse que
tinha conseguido um bico temporário no bar do seu
Rivera.
- O Hot Hell?
- Sim – ela acenou positivamente – Talvez ele saiba de
alguma coisa...
Agradeci com um aceno com a cabeça. Ana girou os
calcanhares e, silenciosamente, retomou o seu caminho.

***

A chuva ainda caía forte na cidade quando parei na


calçada esburacada e suja pela terra. Do outro lado da
rua, prédios antigos constituíam a quadra. Timidamente
entre dois deles havia uma escada, que levava para
baixo, até uma modesta porta de alumínio, onde em
cima uma placa indicava Hot Hell. O bar de Rivera.
Rivera era um empresário do mundo da prostituição. Mas
o lance dele era menos sujo do que de Joana. Ele tinha
este estabelecimento há décadas, e vários outros
empresários de casas noturnas maiores o visitavam ao
seu convite. Ele era um homem de influências e isso era
o suficiente para que ganhasse dinheiro com indicações,
sem manter o serviço dentro do bar, despistando assim a
atenção da polícia. Quem é do submundo sabe da
existência dele. Seu nome é famoso. Mas seu verdadeiro
rosto, apenas um seleto grupo de magnatas conhece.
Ao entrar no local, me deparei com um espaçoso lugar.
Um balcão de mármore percorria uma das paredes, de
ponta a ponta, onde bartenders manuseavam copos,
taças e garrafas com bastante agilidade, servindo a
quem pedia pelos drinques.
Na parede oposta, um pequeno palco para apresentações
estava sob a escuridão naquele momento. Mesas de
sinuca e poltronas disputavam o restante do espaço do
bar. A iluminação era fraca, com mais intensidade perto
das mesas de sinuca – onde havia uma luminária acima
de cada uma delas.
Aproximei-me do balcão do bar. Embora não conseguisse
beber nada, pedi um dirty martini ao garçom, que me
atendeu prontamente. O local estava suportavelmente
habitável, sem muvucas, nem tão vazio. Sentei em um
dos bancos do balcão e passei o olho pelo lugar. Pessoas
jogando sinuca, ou apenas conversando. Nada demais.
Virei-me novamente para o garçom e lhe perguntei sobre
o dono do bar. Ele me olhou meio cético, tentando
entender o que eu queria com o chefe. Titubeou, mas no
fim pediu para que eu falasse com o gerente do lugar,
que se chamava Homero. Perguntei onde eu poderia
encontrá-lo e ele apontou para uma das mesas de
sinuca.
Sob a iluminação da mesa, um homem alto, vestido com
calça e camisa social preta, folgada nos dois primeiros
botões, jogava com outros três caras. Tragava o seu
cigarro tranquilamente enquanto aguardava sua vez. A
corrente de ouro que balançava em seu pescoço refletia
a luz da luminária. Se era um gerente, então se vestia
como um de boca de fumo.
Ainda estavam rindo da última jogada, quando notaram a
minha aproximação. Silenciaram imediatamente,
tomando uma expressão um pouco hostil.
- Homero? – chamei.
- Si, soy yo. O que deseja? – ele atendeu. O sotaque
espanhol era bem acentuado.
- Precisava falar com o Rivera. Onde posso encontrá-lo?
Homero olhou para mim e, com o um mau humor
descontrolável, respondeu-me:
- Señor, no há como hablar com señor Rivera. Se quiser
algo, habla comigo.
- Pois bem – eu disse. Minha mão chegou ao trapézio
dele, onde meus dedos pressionaram seus nervos.
Homero se encolheu de dor. – Vamos até o balcão. Pedi
um Martini para você.

***

Homero estava relutante em dar mais informações sobre


o lugar, como contratavam os shows, enfim. Queria saber
de onde eu vinha e se alguém tinha me pago para algum
serviço. Mesmo dizendo que eu era da região e que eu
estava sozinho e sem serviço, custou para o gerente do
bar acreditar em mim. Até o Martini que tinha oferecido
ele só aceitou depois que o barman trocou o copo, pois
achava que o primeiro estava envenenado.
Só depois de me ter perguntado se eu era da polícia – e
eu tê-lo respondido que não – foi que finalmente
começamos a nos entender. Ele me falou um pouco sobre
os serviços do local, que além de bar também funcionava
como uma casa de shows de stripers. Disse que as
garotas que trabalhavam lá eram sazonais, até para não
ficarem em evidência, já que no início o bar já teve
problemas com tarados psicopatas que perseguiam as
garotas.
- Y puedo saber por que quer saber de tudo isso? – ele
me perguntou.
Sem dizer nada, coloquei a mão num dos bolsos de
dentro da minha trench coat, o que fez com que ele
desse um pulo para trás. Para a surpresa dele, invés de
retirar a arma que ele estava esperando, tirei a foto que
tinha de Micaela. Ele voltou para o balcão e analisou a
foto.
- Sua mujer, señor?
- Sim, de certa maneira – eu disse – Por acaso, você a
conheceu?
- No me recordo, señor.
Levantei com raiva e segurei-o pela corrente, puxando-o
mais próximo de mim. Silenciamos por um momento e
assim não levantamos suspeitas. Eu estava dando um
tempo a mais para que Homero pensasse. Ele sabia que
se não me dissesse a verdade, apanharia ali. Ele olhava
penetrantemente na foto de Micaela.
- Vamos Homero. Estou certo de que você...
- Rojo! – ele disse, num sobressalto.
- Como?
- La mujer con cabellos rojos! – ele gritava, apontando.
- Cabelos vermelhos, é isso? – perguntei, sem entender
porra nenhuma de espanhol.
- Si! É ella! – concluiu com convicção.
Soltei-o neste momento. Foi então que ele abriu o jogo.
Entendendo porcamente o espanhol de Homero, descobri
que a última vez em que Micaela esteve ali, logo após o
seu show de strip, Rivera foi procurado por um homem
bem trajado, que estava sentado na mesa vip, bem ao
lado do palco.
- Recordo muy bién. Señor Rivera levou esse homem até
o vestidor de la mujer...
- Vestidor? Você quer dizer o camarim?
- Si! Isso mesmo! Chegaron lá e falaron a sós com ella.
Uma reunión. Só sei que depois de uma hora e meia,
señor Rivera disse para mi que os três jantariam e que
tomasse conta do bar.
- Ela foi sob pressão?
- Hum... no creo, señor. Todos sairon felices daqui.
- Sabe quem é esse cara?
- No, señor. Ele no vinha mucho. O señor Rivera o
chamava de Don Celsio. – ele disse – Depois de este dia,
la mujer nunca más apareceu. – E então, silenciou-se.
- Só isso que sabe, Homero? Sabe como posso chegar
nesse Celsio?
Ele me olhou assustado, mas convincente da resposta
que me daria.
- No señor. Alguns amigos disseron que ele é un super
mafioso. No é homem de mucha idoneidad. Enton, tenha
cuidado.
Desta vez não vi nenhuma falsidade nas palavras de
Homero. Ele realmente não sabia de nada.
- Conseguiria o contato deste cara com o seus amigos? –
perguntei. Ele olhou para mim.
- Dez mil. Em diñero.
- Pagarei apenas mil.
- Señor... – ele disse, antes de sentir meu polegar e
indicador pressionar o seu músculo do trapézio, fazendo-
o gemer de dor.
- Está bien! Está bien! Mil! – gritou, desvencilhando da
dor. – Só peço, por favor, dáme una semana e terá as
informaciones que necessitas.
- Gracias. – eu disse – nos encontraremos assim que eu
retornar de uma viagem.
Deixei o dinheiro do Martini no balcão e agradeci Homero
pelas informações. Sob a escuridão do lugar, deixei o Hot
Hell.
Lá fora notei que a chuva já havia cessado e agora uma
névoa fina bloqueava suavemente a luz amarelada dos
postes. Aproveitei e desapareci por entre os prédios
diante da escuridão da noite.
CAPÍTULO 05

Na noite seguinte após a visita ao Hot Hell, lá estava eu


retornando de uma corrida que sempre fazia no campo
da fábrica de vidros, cercado pelo alambrado que
contornava o terreno. Ali a grama era alta o suficiente
para me esconder. Aquela noite estava bem agradável,
com a brisa fria assoprando na minha cara. Ainda era
cedo. O sol tinha acabado de se por. Ao longe se ouvia o
som dos carros que passavam pela ponte que levava
para a cidade. Uma das coisas que me ajudaram a
escolher este local como meu esconderijo é que, além de
abandonada, a fábrica era longe dos olhos dos mais
curiosos.
Abri a porta da fábrica. Lá dentro, máquinas revestidas
por panos esperavam ser ligadas novamente. A ferrugem
tomava conta de algumas delas, e a poeira impregnava o
ar. Fui até o outro lado, onde havia as escadas que me
levariam para o escritório. Subi os degraus de ferro, até
alcançar o único andar. Ia avançando pelo parapeito que
me dava a visão lá debaixo, até alcançar a entrada do
escritório que me servia de refúgio.
Quando cheguei na entrada do escritório, notei algo de
errado. Geralmente eu tranco a porta, mas naquele
momento ela estava entreaberta. Lá dentro estava tudo
escuro. Encostei-me junto à parede e bem devagar, com
a palma da mão, fui abrindo a porta. Se tivesse alguém
lá dentro, certamente sabia que eu estava lá. A porta já
tinha me denunciado com o rangido que dera. Ainda sem
me expor, tateei a parede dentro da sala até encontrar o
interruptor da luz. Com a sala do escritório acesa, lancei-
me pra dentro.
- Exercícios físicos? Deveria guardar suas energias para a
próxima caçada – disse o Mensageiro, sentado na cadeira
e com os pés sobre a mesa de escritório.
- Não era de se espantar alguém vindo do inferno não ter
a decência de pedir licença pra entrar – retruquei.
Ele sorriu com a minha ironia.
- Ora, não pertenço a esse mundo. Então para que
respeitar as regras de etiqueta, não é mesmo?
Fechei a porta da sala e fui ao banheiro, onde tinha uma
toalha. Peguei-a e sentei no sofá. Enquanto secava o
suor, o Mensageiro continuava onde estava. O cetro de
Cérberus repousava sob o seu colo. Em cima da mesa
havia um envelope pardo que não pertencia a pilha dos
papéis velhos. Nele estava estampado um selo que eu só
tinha visto nas missões anteriores. Um Selo Oficial.
Descrevê-lo era difícil, já que tinha várias formas
sobressaindo uma a outra. Mas sabia que aquilo
significava que o conteúdo do envelope continha algo do
Demônio. Olhei para o Mensageiro, aguardando o
significado de tudo aquilo.
- Pois bem. Como anda a Fome? – ele perguntou.
Tinha que admitir que a alma de Joana já não estava me
satisfazendo mais. Estava começando a ficar fraco e
alguns sinais instintivos de quando tenho fome já
estavam surgindo.
- Confesso que preciso me alimentar.
- Ótimo! – ele disse, tirando os pés da mesa. – Tenho
uma bela sugestão para você saciá-la.
O Mensageiro pegou o envelope da mesa e jogou-o para
mim.
Tirei de dentro um dossiê, contendo várias folhas e fotos
da minha próxima vítima. Percebi que havia mais coisas
dentro do envelope. Plantas do local, bilhete aéreo com
destino a capital do País e um documento de identidade
e um crachá funcional de acesso, ambos falsificados.
Tanto o bilhete aéreo, a identidade e o crachá continham
a foto e o nome de outra pessoa, chamada Michel Paleze.
Fixei a atenção no bilhete, que marcava a data de partida
para o dia seguinte.
- Se lembra quando estávamos na sala de Joana que
mencionei a você que iria para a Capital?
Apenas acenei com a cabeça, concentrado no bilhete
aéreo. O mensageiro levantou da cadeira e se dirigiu até
a porta. Antes de sair, ele ainda me jogou um maço de
dinheiro. Contei cinco mil naquele bolo. O mensageiro
ainda me alertou:
- Estude bem esse cara. Não será fácil passar pela
segurança.
- E como farei isso? Pela foto é fácil saber que não sou... –
olhei novamente o documento - ...Michel Paleze.
- Use isto.
O mensageiro jogou algo na minha direção. Segurei no
susto. Ao agarrar, olhei com mais calma. Tratava-se de
uma pele de borracha, com as feições de um rosto
humano. Era o mesmo da foto.
- Sinta-se honrado. Truque novo vindo direto do inferno. –
o Mensageiro continuou a falar – Não será fácil passar
pela segurança. Um disfarce será necessário para que
você tenha êxito amanhã. Boa sorte. – e saiu.
Meu contato com ele era assim mesmo. Ele só vinha ao
meu encontro apenas para me entregar o envelope e
depois quando eu finalizava o trabalho, para inspeção.
Acho que era uma forma de não termos algum tipo de
afeição um com o outro. Era melhor assim. Eu agia
melhor desta forma.
Levantei e me dirigi para a parede oposta. Ali, acima da
televisão havia um quadro contendo a imagem de uma
fazenda de girassóis. Despendurei-a, destampando a
frente de um cofre. Ali guardei os cinco mil junto com o
que eu recebera anteriormente pelas outras almas.
Abri o dossiê. Na ficha tinha a foto de um homem de
cabelos brancos, de pele magérrima e enrugada, de
óculos de lentes retangulares pendendo no septo. Nos
dados, o nome destacado era de Emílio Salgado Novaes.
Profissão: Senador da República.

***
No dia seguinte, conforme o horário descrito na
passagem aérea, fui para o aeroporto com antecedência.
Ainda no saguão, a Fome se manifestava com mais
frequência, me inquietando. Ainda conseguia me
controlar, mas não sabia por quanto tempo.
Entrei no saguão de embarque. Com a Fome se
manifestando, o falatório normal do aeroporto era
ensurdecedor para os meus ouvidos. Meus olhos queriam
mudar de cor, mas meu esforço para controlá-los
mantinha-os na cor castanha. Havia momentos que era
necessário fechá-los para que aquela sensação
incontrolável passasse.
Entrei no avião. E as três horas seguintes foram
realmente torturosas. Por diversas vezes as aeromoças
vinham perguntar se estava tudo bem comigo. Eu dizia
que eram apenas enjoos, que logo passariam. Em alguns
momentos de fato eram, pois o meu olfato já era capaz
de reconhecer a maior parte dos perfumes que ali
impregnavam o ar pressurizado.
Olhei pela janela, enquanto nos aproximávamos do
aeroporto de destino. Lá embaixo várias luzes
amareladas vindas de prédios e postes davam a
dimensão do que era a mais importante cidade do País. A
Capital se estendia até o início de uma cadeia de
montanhas, próxima a linha do horizonte.
Desci da aeronave trajando um terno e carregando
apenas uma pasta de mão. Não havia nada nela. Estava-
a usando apenas para dar mais credibilidade ao disfarce.
A máscara de borracha, peça importante para a
camuflagem, já estava devidamente vestida antes
mesmo de eu embarcar no avião. Aliás, o material era
impressionante, a ponto de encaixar perfeitamente sobre
a minha pele, fazendo-me ter movimentos livres em
todos os músculos da face.
Fui para a saída e senti o calor abrasando o vento.
Mesmo sendo de noite, a Capital era quente na maior
parte do ano. Dirigi-me até o ponto de táxi, onde havia
um aguardando por um passageiro. Rapidamente entrei e
indiquei o caminho.
O Senado parecia uma verdadeira fortaleza. Iniciava em
três lances de escadas, que dava acesso para um
verdadeiro palácio de cor branca que se erguia acima da
base. Na frente, pilares romanos sustentavam o teto
triangular, que dava abrigo à entrada de vidro.
Aliás, podia-se ver que a entrada era bem segura. Logo
de cara, uma porta giratória bloqueava quem tentava
entrar com metal. Passado por ela há uma recepção,
onde se identificando com nome, foto e impressão
digital, é emitida uma credencial para que visitantes
entrassem nas dependências. Para os funcionários do
Senado – e isso incluía obviamente os Senadores –
bastava apenas passar o crachá funcional pelas catracas.
Fora isso, caso fosse necessário, ainda haveria uma
revista manual, feita por seguranças com detectores de
metal portáteis.
Pensei em invadir o Senado pelos fundos. Mas como
pude observar na planta que veio com o dossiê – e
depois pessoalmente, enquanto o táxi passava por lá –,
este acesso era tão seguro quanto o da frente. Portões
de ferro impediam o acesso. Câmeras de vigilância se
espalhavam ao longo da enorme parede branca que
delimita a área do Senado. Para ajudar, acima dela, cerca
elétrica corria por toda a extensão, até chegar nas duas
quinas, onde havia guaritas com sentinelas fazendo a
segurança do local. Todo o perímetro da entrada principal
e o dos fundos era vigiado com a máxima precaução.
Subi lentamente as escadas antes da entrada. Já tinha
tudo planejado na minha cabeça. Minha estratégia
estava tomada e eu estava pronto para agir. Tirando os
documentos falsos, não levava mais nada comigo.
Alcancei o último degrau e fui chegando até a porta
giratória.
Meu corpo ardia com a Fome que eu estava. Os músculos
já não estavam tão obedientes às minhas vontades.
Meus ouvidos e visão aguçados já detectavam o que se
passava do lado de dentro do Senado. Não poderia
esperar mais. Precisava agir, antes que eu perdesse o
controle.
Passei sem problemas pela porta giratória. A sensação de
entrar no Senado era de que eu estava dentro de um
grande palácio. A recepção era grandiosa. Continha
esculturas de arte espalhadas pelo salão forrado com um
piso de mármore negro. Duas pilastras sustentavam o
teto desenhado com afrescos. Claro, tudo aquilo foi
adquirido – sem nenhum pudor – com verba pública.
Fui avançando em direção à catraca. Olhei de relance
para a recepção, onde a recepcionista estava
concentrada em alguns papéis que estavam deitados em
sua mesa. Com as mãos trêmulas pela fome, retirei o
crachá do bolso. Quando ia passar a identificação no
leitor da catraca, alguém me surpreendeu:
- Senador Michel? – disse uma moça vindo ao meu
encontro – o que o senhor está fazendo aqui? Deveria
estar em casa, descansando!
Ela era pequena e magra. Vestia um blazer preto e
carregava alguns papéis dentro de uma pasta-arquivo.
Fiquei paralisado, sem saber o que fazer.
Ela retomou a conversa.
- O senhor está melhor? Se recuperou da gripe?
- Ah... s-sim... estou bem melhor – arrisquei.
Ela me olhou de forma estranha, como se notasse algo
de diferente.
Claro, a voz!
- ...embora a voz ainda esteja um pouco estranha. –
emendei, pigarreando.
Ela sorriu, enquanto passava pela catraca. Olhei para os
lados. Os seguranças nos observavam, porém de uma
forma mais relaxada. Pensei que passar por eles seria o
meu maior problema, mas a presença daquela moça me
facilitou demais a entrada. O disfarce estava dando
certo.
Sem perder tempo, também passei pela catraca,
seguindo a moça até o elevador.
- E então, o que veio fazer a essa hora da noite, Senador?
– disse a moça, enquanto ela apertava o botão do sexto
andar. Segundo o dossiê do Mensageiro, era neste andar
onde ficava o gabinete do Senador Emilio.
- Er... tenho que resolver alguns assuntos pendentes –
procurei disfarçar.
- Assuntos pendentes? Mas senador, não lembro de ter
algum assunto na sua agenda para hoje.
- S-sim... – tossi, tentando ganhar um pouco de tempo
para pensar na desculpa - ... Mas é que uns conhecidos
me ligaram para ver sobre alguns assuntos “extra-
políticos”, se é que me entende. Preciso de alguns papéis
para ajudá-los.
- Entendi – ela disse, enquanto virava para o espelho do
elevador para ajeitar os cabelos. Observei-a fazendo isso
e meus olhos encontraram no reflexo o crachá que
estava pendurado no bolso de seu blazer. O nome dela
estava escrito ao contrário.
Melissa.
O cargo a identificava como assessora. Isso explicava
algumas coisas.

***

O elevador apitou ao chegar no sexto andar. Saímos e


deparei com um corredor bem aconchegante, com as
luzes amarelas dos spots descendo do teto e refletindo
no carpete com cheiro de novo.
Segundo o dossiê, o gabinete do senador Emílio – a
vítima da noite – ficava para a esquerda, justamente no
lado oposto em que Melissa estava indo. Fiquei
encarando o caminho. Não havia prestado atenção
quando Melissa parou de andar e chamou pelo meu
nome. Voltei meu olhar para aquele corredor. Avistei a
porta dos toaletes no fim. Foi a minha deixa.
- Vai na frente. Vou até o banheiro e já volto.
Melissa concordou e seguiu até o escritório. Esperei ela
entrar no gabinete para então percorrer o corredor. Ali
ficavam as salas de alguns senadores. Fui checando os
nomes talhados nas placas fixadas em cada uma das
portas, até encontrar a da minha vítima. Sim. Meu corpo
não via a hora de devorar a alma de Emílio Salgado
Novaes naquela noite.
Com bastante cuidado, girei a maçaneta da porta. Ouvi
um click quase imperceptível, fazendo com que a porta
se abrisse. Significava que o dossiê do Mensageiro
estava certo. Emilio estava em seu escritório naquela
noite.
A pequena recepção estava às escuras, embora isso não
fosse problema para mim. Suavemente fui me
esquivando da mesa e das cadeiras, evitando ao máximo
fazer qualquer tipo de barulho. Atravessei o minúsculo
corredor do lado oposto da sala. Ali estava a porta de
acesso para o gabinete de Emílio.
Algo me chamou a atenção.
Ele não estava sozinho. Era possível ouvir claramente os
sussurros e gemidos. Um aroma de perfume feminino
saía pela fresta da porta.
Cheiro de traição.
Logo pensei na esposa deste canalha. Provavelmente
estava preparando o jantar quando recebera uma ligação
deste imbecil, alegando que tinha muito trabalho para
fazer e ficaria até tarde no escritório.
Sem dúvidas, esta alma merecia mesmo o destino que
lhe foi sentenciada.

***

Emílio e sua acompanhante já estavam sem roupa, em


cima da poltrona de couro preta, quando entrei no
escritório. Como um predador feroz, fixei meu olhar nos
dois, que pularam com o susto que tomaram. A moça
tentava se cobrir com as peças de roupa jogadas no
chão. Já o Senador estava sem reação, esperando por
alguma explicação que justificasse a invasão de seu
gabinete.
- E então? Não vai me dizer que porra é essa?! Quem é
você?! – ele me indagou.
- Basta saber que vim cobrar o pacto.
Emílio fez cara que não estava entendendo.
- Pacto? Que merda de brincadeira é essa, garoto? Não
vê que estou ocupado, porra!
Retribuí o olhar confuso com um largo sorriso no rosto.
- Não é brincadeira, Senador. Por acaso não se lembra
que quando começou a carreira na política, o senhor
procurou as entidades do inferno para que se
transformasse no mais influente político do País? – eu
disse, enquanto meus olhos já adotavam a cor opala.
Emílio parou por um momento. Pude sentir o nervosismo
lhe percorrer a espinha. Finalmente ele tinha se tocado
que o Demônio, por meu intermédio, veio-lhe cobrar o
pacto que fizera com ele no início da carreira política.
- Mas isso já faz muito tempo. Achava que tudo isso fosse
babaquice. Já tinha até me esquecido dessa merda toda!
– relutou em me conter.
- O senhor pode ter esquecido, mas o Demônio não,
Senador. – adverti-lhe. - Mas não se preocupe, o senhor
não vai para o inferno.
- O... o que vai fazer comigo?
- O Demônio julga sua alma tão demente, que não serve
sequer para existir no reino das Trevas. Portanto, invés
de ir para o inferno, o senhor apenas... digamos...
deixará de existir. – parei um momento, antes de
sentenciá-lo – Vim para devorar a sua alma.
Essa declaração fez com que a mulher, que ouvia até
então o diálogo no canto da sala, corresse em direção à
única saída, localizada atrás de mim. Ela veio correndo
na minha direção e buscou o meu corpo para escorar e
abrir caminho. Porém ela não contava com a força que a
Fome me dava.
Ao se aproximar de mim, ela colocou o ombro direito na
frente para me empurrar, mas o máximo que conseguiu
foi se chocar contra os músculos do meu peito. A moça
caiu no chão, enquanto permaneci inerte, mesmo com o
impacto. Dirigi-me a moça, estiquei meu braço, e minha
mão agarrou o pescoço dela. O barulho dos ossos do
pescoço se quebrando foi instantâneo. Três segundos
depois, eu fazia com que o corpo da moça, ainda nu,
caísse morto no chão.
O Senador olhou estarrecido, parecendo estar em
choque. Tenho certeza que o barulho dos ossos ecoou em
sua cabeça. Depois de eliminar a testemunha, voltei a
minha atenção ao homem, que estava na minha frente.
Fui avançando aos poucos, e ele recuando. Gostava
daquele tipo de situação. Até os mais poderosos vermes
tinham medo da morte. Ou talvez fosse a consciência de
que não haveria vida após a morte, já que perderia a
alma. O fato é, eu estava diante de um miserável que
durante a vida inteira extorquiu, corrompeu, chantageou
e usou pessoas. Tudo isso de forma autoritária. Agora,
diante da morte, está se comportando feito um ratinho
acuado.
Finalmente o espaço entre Emílio e a parede mais
próxima acabou, fazendo com que o Senador ficasse
imóvel. Ele estava encostado no concreto iluminado pelo
o abajur de canto. Minha mão pousou sobre o pescoço
dele. A Fome já estava intensa. Ela berrava nos meus
ouvidos, em coro, a ordem: “Devore-o! Devore-o!”.
- Por favor, não me faça sofrer! – ele suplicava.
Não consegui me conter e uma gargalhada soou pela
sala. Adorava quando isso acontecia.
- Senhor Senador – eu disse, com tamanha tranquilidade
– esse processo não depende de mim. Depende de
quantas pessoas o senhor fez sofrer. Foram muitas? – o
indaguei, enquanto percebia o desespero tomar conta do
rosto dele.
A cor opala de meus olhos se intensificou, iluminando o
rosto de Emílio. O homem começou a tremer, e gritava
de forma feroz contra a dor que lhe tomava. Incrível,
como ele gritava mais do que Joana Dântolo. Logo pensei
nas coisas que ele pode ter feito quando tinha o poder
nas mãos. E é lógico que não poderia perdoá-lo.
Em poucos minutos, a aura branca foi saindo de seu
corpo nu. O calor foi dissipando de seu corpo e seus
olhos, antes arregalados pelo terror que estava
passando, foi cedendo à perda da alma. Emílio já estava
desfalecido quando o espectro branco flutuava na minha
frente.
Meus olhos ainda mantinham a coloração, porém com
menor intensidade. Assim como aconteceu com as
demais almas, com a palma da mão envolvi a de Emílio e
levei-a até a boca. A Fome que era intensa foi
diminuindo, e finalmente meu corpo começou a relaxar.
Já não sentia a força ou a sensação de sentidos
apurados. A voz que estava em minha mente se calou e
o tom castanho tomou novamente os meus olhos. O
silêncio tinha voltado e a sensação de bem-estar
também.
Temporariamente.
Enquanto eu voltava do estado da Fome, um grito veio
da antessala do gabinete. Rapidamente virei-me e vi
Melissa sob a batente da entrada.

***

Com certeza ela viu o momento da minha refeição. Seus


olhos estavam petrificados e sua pele estava mais pálida
do que quando se despediu de mim no corredor. Sabia
que ela queria fugir. O corpo de Emílio e da
acompanhante ainda estavam inertes no chão. E eu
ainda vestia a máscara do chefe dela, o Senador Michel.
- M-mas o que está acontecendo aqui, senhor Senador?!
Eu não esperava por aquela situação. Havia esquecido
completamente da assessora de Michel. Não contava
com mais uma morte. Não naquela noite.
Com um impulso, corri na direção de Melissa. Ela deve
ter sentido a sensação da morte lhe percorrer a espinha,
pois instintivamente ela saiu em disparada pelo corredor
dos gabinetes. Com a fome saciada, meus sentidos já
não estavam aguçados, e a força e agilidade se foram.
Ainda assim eu estava mais rápido que ela. Era uma
questão de tempo até alcançá-la.
Ao chegar perto do elevador, Melissa apertava
desesperadamente o botão, enquanto eu me
aproximava. No visor acima da porta, ela percebeu que
demoraria para o equipamento chegar até o andar.
Então, ela recorreu à solução mais rápida: ao lado do
elevador, a porta anti-fogo dava acesso para a escadaria
de emergência.
Assim que Melissa entrou pela porta, minha mão agarrou
o ombro dela. Ela deu um grito com o susto que tomou, e
debateu-se tentando desvencilhar-se de mim. A
estratégia dela deu certo, e minha mão escorregou,
fazendo com que eu a soltasse.
Recuei para dentro do corredor ao notar que Melissa
tinha jogado o seu corpo contra a porta, fechando-a
bruscamente. Talvez achasse que ganharia tempo.
Grande engano.
Com uma solada, arrombei a porta anti-fogo, que não
estava mais sendo protegida pela assessora. Entrei na
escadaria, onde os degraus faziam lances em “U”, e
pude ver o sapato de salto alto de Melissa jogado no
canto. Nas escadas que levavam para os andares de
baixo, a iluminação acionada por sensor de movimento
denunciou para onde Melissa estava indo. Não hesitei e,
pulando de lance em lance, alcancei a mulher entre o
quinto e quarto andar.
Consegui pular em cima de Melissa assim que ela
terminou de descer um dos lances de escada. Cai no piso
de descanso junto com ela. Imediatamente posicionei-me
em cima dela, prendendo sua cintura com as pernas,
enquanto meus braços a dominavam. Ela se debatia,
dificultando o meu trabalho.
Uma de suas mãos foi ágil o suficiente para escapar do
meu ataque e, com as unhas bem afiadas, Melissa
acertou-me, fazendo um rasgo considerável na máscara
que eu usava. Por reflexo, peguei a mão que me feriu e
levei junto a outra que já tinha dominado. Minha mão era
grande e forte o suficiente para prender os dois pulsos de
Melissas ao mesmo tempo e levá-los para cima de sua
cabeça. Com a minha mão livre, conferi o corte na
máscara. Constatei que não havia sangue em meu rosto.
Qualquer deslize poderia significar uma pista para a
polícia sobre mim.
Quando finalmente ela estava sob o meu controle,
aproximei do rosto dela. Sei que pelo estrago feito na
máscara de borracha ela viu meu rosto. Seus olhos
inspiravam raiva e ao mesmo tempo medo. Ela ainda
tentou gritar, mas a minha mão que estava livre
prontamente tampou seus lábios.
- Não queria fazer isso Melissa, mas não tenho
alternativa. Você viu coisas demais hoje a noite e precisa
ser eliminada.
Enquanto eu falava, percebi que ela olhava para cima, na
direção das mãos presas. Meus olhos seguiram a direção
e constatei que o punho direito de Melissa estava
fechado. Aproximei um pouco mais, pois não conseguia
ver o que ela escondia.
Um grande erro.
Desta vez para mim.
Melissa teve forças para ajeitar o pequeno cilindro na
palma da mão e, com o dedão, pressionou o borrifador.
Um jato de spray de pimenta atingiu meus olhos,
fazendo-me urrar com a ardência.
Desesperadamente, e com os olhos fechados, consegui
alcançar o cilindro com a mão que antes tampava a boca
de Melissa. O spray caiu no chão, rolando os degraus do
próximo lance de escadas. De forma errônea, afrouxei as
pernas e levei as mãos aos olhos, ainda sem conseguir
enxergar.
A mulher, aproveitando da situação, se soltou de mim.
Procurou levantar-se aos poucos, até seu corpo
restabelecer o equilíbrio sobre seus pés. Mas, além do
primeiro, ela cometeu o segundo erro. O último.
Ainda sem enxergar, meus ouvidos captaram um som
estranho, além de mais um grito de Melissa. Logo em
seguida, baques surdos e contínuos ecoaram pelas
escadarias. Segundo depois um silêncio se instalou onde
eu estava.
Puta que pariu! Ela conseguiu fugir!, pensei.
Forçando minhas pálpebras a abrirem, tentei enxergar
com que aconteceu. Meus olhos lacrimejavam muito e
minha visão estava turva. Esperei mais alguns minutos
em silêncio, até que senti que era possível enxergar.
A luz estava apagada pela falta de movimento. Balancei
os braços acima da cabeça e o sensor fez com que a
iluminação voltasse. Realmente estava sozinho no piso
de descanso entre uma escada e outra. Levantei-me aos
poucos. Assim que estava de pé, procurei a direção de
onde tinha vindo os barulhos. O lance de escada que
levava para baixo, no quarto andar.
A partir do terceiro degrau, deparei-me com um rastro
vermelho que corria para os demais degraus.
Cuidadosamente, sem pisar no rastro, fui descendo até
chegar ao próximo piso de descanso. Ali, na parede,
outra porta anti-fogo estava instalada. Acima dela, a
inscrição 4º andar estava estampada. No pé da porta,
Melissa estava jogada, envolta de uma grande poça de
sangue que saía da sua cabeça. Ao lado do corpo, o
cilindro do spray de pimenta mergulhado no líquido
escarlate.
Foi então que compreendi.
Quando Melissa se soltou das minhas pernas, sem olhar
para trás, a assessora tornou a descer as escadas. Pisou
no primeiro degrau, no segundo, até que no terceiro, algo
a fez perder o equilíbrio.
O spray. O frasco havia rolado alguns degraus abaixo
durante a nossa briga.
Então ao tropeçar no objeto, a assessora balançou o
corpo, tentando se estabilizar, em vão. Seu corpo rolou
escada abaixo, batendo a cabeça violentamente nas
quinas, até estatelar no acesso do andar de baixo.
Cuidadosamente, retirei o spray de pimenta do sangue e
coloquei-o dentro do bolso do terno. Aquele recipiente ali
ao lado de Melissa poderia muito dizer sobre uma
possível briga da vítima com algum homem, descartando
a possibilidade de fatalidade.
Voltei para o escritório do Senador Emílio Salgado. Os
corpos dele e da amante estavam imóveis e silêncio
havia voltado para aquele lugar. Isso, junto com a
sensação de fome já saciada, me fez com que eu parasse
no corredor, de frente para a porta. Apoiei-me na
batente, me acalmando. Minha respiração ainda estava
ofegante. A máscara ainda pendia penosamente do meu
rosto, a ponto de me incomodar. Aos poucos fui retirando
a pele de borracha e enfiando-o de qualquer maneira
dentro da maleta. Aquela máscara era incrível pelo fato
de me permitir articular os músculos do rosto sem
prejudicar o disfarce, mas era quente demais. Ao retirar,
olhei para cima e busquei inspirar o máximo de ar
possível, fazendo com que a minha pele respirasse
também. Mas, aquela sensação de alívio deu lugar ao um
frio congelante na espinha.
Puta merda!
No final do corredor, na junção das paredes, uma câmera
de vigilância estava apontada diretamente para mim.
CAPÍTULO 06

Meus olhos ainda estavam fechados enquanto o barulho


agudo e repetitivo ecoava pela minha cabeça. Sabia que
estava deitado em algo não muito confortável e frio. Aos
poucos fui recobrando a consciência, enquanto um
semblante foi surgindo no meu campo de visão, ainda
um pouco turvo.
Abri os olhos. Onde eu estava? Não sabia. As paredes
eram de pedras rústicas e extremamente úmidas. O
espaço era pequeno, e continha apenas três paredes. No
lugar da quarta, um gradil estendia grossas barras de
ferro tanto entre uma parede e outra quanto do teto ao
chão. O barulho que me fez despertar ainda soava, desta
vez de forma mais nítida e me fez identificar que se
tratava de sirenes.
Estava dentro de uma cela. Como fui parar ali? Essa
pergunta eu também estava fazendo para mim mesmo.
Tentava resgatar na minha mente o que havia
acontecido, mas a última lembrança que eu tinha
naquele momento era a minha fuga do Senado.

***

Ao notar a câmera, bem de frente para mim, corri


novamente para as escadarias. Precisava sair dali o mais
rápido possível.
Tomei cuidado ao passar pelo corpo inerte de Melissa e
continuei descendo. Enquanto passava pelas portas de
acesso dos andares, eu pensava sobre a câmera. Na
posição em que ela estava, o corpo de segurança já
devia estar se mexendo para me capturar. Como tinha
acabado de me alimentar, meus poderes sobrenaturais
tinham se esvaído, deixando-me à mercê de um
confronto corporal.
Passei pela porta que me levava ao saguão principal.
Invés disso, segui para o andar de baixo. Abri a porta
sem ler a indicação de onde eu estava indo. Deparei-me
com os fundos do Senado.
Mais exatamente, a garagem.
Ali, poucos carros ainda aguardavam por seus donos.
Todos eram modelos caros e aparentavam estar muito
bem polidos. Pensei em roubar um deles, mas com
certeza só iria chamar muito mais atenção do que eu
precisava. Precisava bolar um plano.
Eis que, ao meu lado, ouço a campainha do elevador
apitar, indicando a abertura da porta. Corri para trás de
uma das pilastras, antes de observar um homem de
cabelos grisalhos e vestindo um terno preto saindo do
elevador. Na sua mão direita, ele carregava uma sacola
grande, contendo um embrulho retangular. Pela estampa
da sacola, deduzi que fosse algum brinquedo de criança.
Ele seguia pela garagem com o pacote nas mãos,
enquanto procurava algo no seu bolso. Tirou de lá um
molho de chaves, onde apontou para um dos carros
estacionados. Os faróis de um sedã preto piscaram,
indicando a desativação do alarme. O homem se
aproximou, abriu o porta-malas e jogou o embrulho
dentro do compartimento. Ele forçou a tampa para baixo
e entrou no carro, sem notar que não o havia fechado
direito.
Era a oportunidade que eu não esperava, mas se eu não
aproveitasse, não saberia como sair dali.
O homem estava ligando o carro, quando corri pelo meio
dos outros carros até chegar na traseira do sedã. Ainda
escutei o som abafado de música que vinha do aparelho
de rádio do carro. Tomei cuidado para que ele não visse a
tampa do porta-malas se mexer e, rapidamente, invadi o
compartimento, zelando para que a tampa não fechasse
por completo. O homem iniciou o procedimento de saída,
levando o carro até o portão. Ele parou. Ouvi-o
conversando com um outro cara – talvez um segurança
patrimonial – e minutos depois o portão foi aberto. Nem
os seguranças, e acredito que nem as câmeras, foram
capazes de me encontrar ali.
Foi assim que saí despercebido do Senado.
Meia-hora depois, já bem longe do Senado, saltei do
carro em movimento no meio de uma rua deserta das
ruas da capital do País.

***
Agora recuperando a consciência, tentava buscar
explicações de como cheguei até ali. Os meus sentidos
continuavam a retomar a sua normalidade, enquanto
ouvia alguém do lado de fora das grades me chamando:
- Ei! Você! – disse o carcereiro – Tem visitas.
Aos poucos me levantei do colchão velho e duro. Passei
palma interna da mão no rosto, enquanto um homem de
terno branco se aproximava da cela. Segurando seu
reconhecível cetro contendo a cabeça de Cérberus, o
Mensageiro me olhava, desta vez desapontado:
- Francamente, achava que você fosse mais astuto.
- Como cheguei até aqui? – o perguntei.
- De que adianta agora saber? – ele retrucou. – Você
falhou! Foi visto pelas câmeras e capturado por eles! –
era assim que ele se referia aos vivos - Encontraram
indícios seus perto dos corpos. – ele fez uma pausa, com
uma longa e pesada lufada de ar. – Você sabe quais são
as consequências, não sabe?
Busquei na minha memória a voz do Demônio, com todas
as implicâncias caso eu fosse capturado. Ela era bem
clara.
“Deves fazer vossa refeição de forma discreta e
silenciosa. Não poderá haver testemunhas. Se houver,
mate-as. Se alguma sobreviver, terei que encerrar o
nosso pacto. Consequentemente, você deixará de ser um
dos meus servos, sendo substituído e caçado por outro.
Sem vestígios, se me entendes”.
- Pois bem – disse o Mensageiro, enquanto acenava para
que alguém se aproximasse. Um outro ser, sem rosto,
vestindo roupas pretas, surgiu ao lado dele.
- Quero lhe apresentar o novo devorador de almas.
Na escuridão de seu rosto, um par de olhos ardeu em cor
opala, assim como os meus ficavam quando a Fome
manifestava. Ele estava faminto. Eu sabia o que ele
estava sentindo, e sabia mais ainda como era
praticamente impossível conter o instinto quando a Fome
tomava conta da consciência humana.
Odeio admitir, mas estava com medo.
Não dele. Mas do que iria acontecer depois de ser
devorado.
Com uma força descomunal, o novo Devorador afastou
duas das barras da cela com as mãos, abrindo um
espaço suficiente para entrar. Assim que terminou, ficou
me encarando, com um sorriso escapando do lado
esquerdo da sua boca.
Com uma velocidade incomum, suas mãos vieram ao
encontro do meu pescoço. Sem os meus sentidos
aguçados, nada pude fazer.
Então, um frio terrível se alojou no meu corpo.
Meus músculos já não respondiam os comandos do
cérebro.
Meus olhos já não focavam meu agressor.
E a escuridão tomou minha existência.
Mais uma vez adormeci no sono eterno.
Desta vez, para sempre.
***

Ergui meu corpo com toda a força que pude. Estava todo
molhado de suor. Mais uma vez estava desnorteado.
Meus olhos, recém-despertos, procuravam se adaptar à
iluminação. Tateei o que estava ao meu redor. Busquei
me locomover, mas o máximo que consegui foi um
tombo, quando não havia mais onde apoiar.
Parei e aguardei minha visão voltar ao normal. Assim que
isso aconteceu, me dei conta de onde estava.
Não estava no vazio, como achava que acontecia com as
almas devoradas.
Atrás de mim ainda repousava o sofá de couro preto
ainda com as almofadas marcadas com o peso do meu
corpo. Na frente havia a televisão de tubo. Eu estava
novamente no escritório da velha fábrica de fibra de
vidro que fiz como moradia.
Eu não havia sido devorado.
A cela, o Mensageiro, o novo Devorador de Almas. Tudo
aquilo não passava de um sonho. Depois de tanto tempo,
sonhei com algo que não fosse o pacto com o Demônio. E
isso não era bom. Muito pelo contrário.
Fui até o banheiro e joguei um pouco de água fria no
rosto para despertar. Olhei para o meu reflexo no espelho
e vi um homem ainda com um rosto terrivelmente
assustado, com as sobrancelhas erguidas e músculos
contraídos.
Sentia-me saciado da Fome. Então de fato estive na
capital do País e devorei a alma do Senador Emílio
Salgado. Certamente também matei a puta que estava
com o Senador e Melissa, que nada tinha a ver com a
história.
Pobre Melissa. Pessoa errada, no lugar errado.
Tinha pena dela. Pelo pouco tempo em que estive com
ela, me pareceu ser uma pessoa dedicada. Mas eu não
tinha remorsos por tê-la assassinado. A vida, mesmo
após a morte, me mostrou que o mundo dos vivos, não
foi feito para pessoas como ela.
Os mundos são dos injustos.
Quanto à Melissa, acho que ela deve ter encontrado o
caminho para o Paraíso.
Fui para debaixo do chuveiro. A água quente espirrava
sobre a minha pele, na tentativa de me relaxar. Enquanto
permanecia debaixo da ducha, lembrei que uma semana
já tinha se passado e o prazo para Homero obter
informações sobre o homem que estava com Micaela na
última noite se expirava naquela noite.
Eu estava na trilha certa.
Pelo menos, era o que eu esperava.

***

Cheguei ao Hot Hell naquela noite bem a tempo de ver


um dos shows das stripers. Uma garota de vinte e poucos
anos se enroscava em uma barra no centro do palco, já
sem o top que lhe cobria os seios. A casa estava cheia,
com pouca luz e o som alto, e uma dezena de homens se
espremiam ao redor do palco, instigando a garota a tirar
a pouca roupa que ainda lhe vestia.
Andei por meio da boate, a procura de Homero. Eu
estava disposto a tirar todas as informações sobre Celsio.
Algo me dizia que o tal sujeito tinha algum envolvimento
com o sumiço de Micaela.
Depois de atravessar o salão inteiro, dei-me conta de que
Homero não estava ali naquela noite. Se tivesse vindo
trabalhar, estava nos bastidores. Aproximei-me do bar,
onde o mesmo garçom da última vez que me atendeu
estava servindo um cuba libre para um cliente. Sentei-
me em um dos bancos que foi recém-desocupado e
fiquei aguardando ele me notar. Não demorou muito. O
sujeito barbado veio ao meu encontro e perguntou o que
seria. Fui direto ao assunto:
- Estou procurando o Homero. Ele veio trabalhar hoje?
O garçom estranhou a minha pergunta. Assim como da
primeira vez em que apareci, ele me olhou desconfiado.
Embora já tenha me servido na semana anterior, não me
reconhecia. E era compreensível, tamanho era a
rotatividade de clientes no balcão do seu bar.
- Negócios? – ele indagou.
- Informações. – corrigi.
- Entendo. É que ele não veio hoje, senhor. Ele ligou para
nós antes da casa abrir, alegando febre e gripe. É certo
que amanhã o senhor o encontre.
- Hum... – hesitei. Por essa não esperava. Não notei
mentiras nas palavras do rapaz. Olhei ao redor,
procurando algum guardanapo. Pedi uma folha para o
garçom, que prontamente tirou de baixo do balcão e me
entregou, enquanto pegava uma caneta do meu bolso. O
garçom ficou perto, me observando, fingindo que secava
um copo, enquanto eu rabiscava no papel algumas
palavras. No fim, levantei a cabeça e entreguei-lhe o
papel:
- Por favor, entregue este recado a Homero amanhã. É de
extrema urgência.
Antes que o garçom concordasse, deixei no balcão uma
nota de cem.
- Pegue a gorjeta. – eu disse, antes de me levantar e sair
do Hot Hell.

***

Enquanto caminhava pelas ruas frias e desertas do


centro da cidade, meus pensamentos divagavam naquela
situação. Quanto mais eu pensava, mais a ansiedade de
encontrar Micaela me corroía. Admito que sentia muita
falta dela, e o fato dela não saber o que aconteceu
comigo – sobre a minha morte – me incomodava. Se
tinha alguém que merecia saber a verdade, era ela.
Meus pés pisavam em algumas poças de água formada
pela chuva que tinha caído enquanto eu estava no Hot
Hell. Ainda havia um chuvisco que nada molhava, e a
água batia no capuz do meu trench coat cinza. Naquele
momento eu estava pensando no quão seria bom para
Homero cumprir a ordem que deixei no guardanapo:
Amanhã me encontre no píer da cidade. Se não puder, se
vire, arrume alguma desculpa. Cumpra o nosso acordo.
Não serei tolerante caso não estiver lá no horário
marcado. Às 21h. Ass.: O homem da mulher dos cabelos
ruivos.
Definitivamente, era bom ele cumprir com aquela
promessa.

***

Meus pensamentos se dissolveram no ar quando notei


que tinha entrado num dos becos da cidade. Ele era
sinuoso e o caminho se espremia por prédios altos – os
poucos que haviam por ali. A iluminação ainda era
amarelada e fraca, escondendo na escuridão as
montanhas de sacos de lixo ainda não recolhidas.
Avançava com cautela. Ali, justamente por estar no
centro da cidade, todo cuidado era pouco. Do ponto em
que eu estava agora, o beco fazia uma curva à esquerda,
escondendo o fim dela. Minhas mãos, protegidas do frio,
estavam descansando nos bolsos da trench coat e
minhas pernas me levavam vagarosamente pelo único
caminho que havia ali.
Iniciei o percurso em direção à curva, quando algo me
chamou a atenção. Sob a iluminação fraca, além da
minha sombra, havia uma outra que se projetava no
chão de paralelepípedos à minha frente. Uma figura de
alta estatura, que vinha às minhas costas. Rapidamente
virei-me, mas o que eu vi foi apenas o caminho desértico.
Estranhei aquilo num primeiro momento. Olhei
novamente para baixo, mas desta vez apenas a minha
sombra estava estampada nas pedras.
Sentia-me nervoso.
Apertei o passo, tentando chegar o mais rápido que
podia até o fim do beco. A sensação de estar sendo
vigiado veio e isso me desestabilizou. Meu cérebro,
tentando racionalizar aquele pavor que eu sentia, me
alertou de algo que eu acabei esquecendo enquanto
buscava informações de Micaela.
A noite anterior.
A câmera.
Cheguei a conclusão de que a sombra que vi não foi uma
ilusão. Provavelmente era do filho-da-puta que, assim
como eu, veio do inferno para acabar com a minha
existência e assim se tornar o mais novo Devorador de
Almas.
Ao terminar a curva, percebi que o beco era maior do
que eu imaginava. Ao longe, ele fazia mais uma outra
curva, agora para a direita. A sensação de estar sendo
seguindo continuava, e desta vez era mais latente.
Ajeitei o capuz sobre a cabeça e procurei me manter
calmo, sem correr, sem ficar olhando muito para trás.
Com o silêncio, pude ouvir desta vez os passos de quem
me perseguia. Instintivamente, voltei a olhar para trás,
mas tudo o que via era escuridão.
Aquela situação estava me deixando bastante irritado.
Junto a uma montanha de sacos de lixo, vi um cano
jogado no chão. Lentamente me aproximei e peguei-o.
Fui retrocedendo o caminho, tentando localizar o meu
inimigo.
- E então, filho-da-puta? Tá se escondendo por quê?
Aparece logo pra gente acertar as contas! – eu gritei,
enquanto caminhava para dentro da escuridão.
Após avançar alguns metros de volta, parei em frente a
um baú de entulhos. A caçamba estava encostada em
uma parede velha e descascada de um dos prédios. Não
sei dizer ao certo, mas sabia que quem quer que fosse,
estava escondido dentro daquele baú.
Pressionando cada vez mais a barra de ferro entre os
dedos, sorrateiramente fui avançando em direção ao
baú. Agachei-me ao chegar mais perto. Ajeitei a barra de
ferro, segurando-a com as duas mãos, e em um
movimento rápido levantei-me, buscando meu inimigo lá
dentro.
Minhas mãos estavam posicionadas para atacá-lo,
quando fui surpreendido. Meus olhos só viam entulhos
dentro do baú. Não havia ninguém no meio dos pedaços
de concreto!
Senti um frio na espinha. Tinha sido enganado e agora
aquela sensação de desespero de não saber onde meu
inimigo estava tomava o meu corpo. Ao meu redor o
silêncio imperava e a fraca iluminação do lugar não
deflagrava nenhum movimento suspeito. Eu estava
completamente à mercê. Uma presa fácil.
Ainda estava buscando o agressor, quando senti uma
pancada forte atingir-me a costela. Encolhi-me, sentindo
a dor alucinante que me tomava conta.
Girei o corpo e identifiquei de onde veio o impacto. Uma
figura, aparentemente masculina, escondia metade do
corpo nas sombras enquanto a outra metade estava
iluminada pelo poste. Vestia roupas simples, jeans e
camisa preta. A pele clara contrastava com a vestimenta.
A estatura alta dava um ar maligno para ele. A mão
direita estava fechada, e algo reluzia entre os dedos
diante da luz fraca.
Afastei dois passos e empunhei a barra de ferro. Não
queria admitir, mas eu tremia naquela hora. Nem tanto
pela dor, que ainda era forte. Eu realmente estava
sentindo medo.
O cara veio na minha direção para desferir um segundo
soco, desta vez no meu estômago. Consegui antever o
movimento e projetei a barra de ferro na direção do soco,
fazendo com que ele desferisse o golpe no objeto. O
contato da mão com a barra produziu um som tilintante.
Ferro com ferro. Foi então que entendi o que ele tinha
nas mãos.
Mais uma vez, sem pensar, ele veio na minha direção
para acertar o soco. Desta vez segurei-o pelo pulso e o
torci, fazendo-o largar o soco inglês que portava. Agora
era ele quem sentia dores, quando apliquei uma chave
de braço.
Com um pouco mais de força, girei o braço do infeliz para
as costas dele. Finalmente ouvi uma súplica para que o
largasse. Obviamente não faria isso. Não sem antes obter
respostas.
- Por favor, não me machuque!
- Pensei que o Mensageiro enviasse alguém com mais
força. – eu retruquei – Você é fraco demais para me
substituir.
- Quem?! M-Mas do que você está falando?
Parei por um momento. Agora quem não estava
entendendo era eu. Ele só podia ser o novo Devorador de
Almas, aquele que veio me suceder. Como não sabia
quem era o Mensageiro?!
Forcei ainda mais o braço dele para trás. O homem
gemia de dor.
- Não banque o palhaço comigo, imbecil! Sei por que está
me seguindo.
- Juro, senhor! Não sei de quem o senhor está falando! Eu
estava de olho na sua carteira! Preciso de dinheiro e ia te
assaltar. Era isso que eu ia fazer! – ele respondeu – Ô
camarada, para com isso! Vai quebrar meu braço!
Com raiva, empurrei-o para frente, soltando o
braço do maldito. Ele deu três passos desengonçados,
antes de restabelecer o equilíbrio. Virou-se para mim,
esperando o que eu iria fazer.
- O que tá esperando, infeliz?! Cai fora, antes que eu te
mate! – ordenei.
O cara saiu correndo, sumindo dentro das sombras.
Quanto a mim, fiquei parado, tentando recuperar um
pouco o controle da respiração. O susto foi grande. A
adrenalina havia subido, e eu estava tentando controlá-
la. Fechei os olhos para me restabelecer mentalmente.
Alguns segundos depois já estava mais calmo. Eu ia
deixando o local, quando vi o soco inglês largado no chão
de cimento. O infeliz acabou deixando-o ali. Aproximei-
me dele e coloquei meus dedos no encaixe da arma.
- É possível que venha a calhar em algum momento –
disse para mim mesmo, antes de guardá-lo no bolso da
trench coat.

***

Eu já havia retornado à velha fábrica de vidros e


encontrava-me deitado no sofá de couro, quando as
lembranças da noite anterior me vieram à tona. O
assassinato do Senador e da amante. A merda da
câmera. Minha preocupação era grande, e precisava me
lembrar se havia deixado alguma ponta sem nó.
Mentalmente refiz todo o trajeto daquela noite. Cheguei
à conclusão de que tudo havia saído perfeito, com
exceção do flagrante. Minha cabeça doía sempre que eu
voltava nesta cena. O Diabo já deve ter mandado o
Mensageiro recrutar um novo devorador, e já deviam
estar em meu encalço. O Mensageiro sempre sabia onde
eu estava, e isso não seria um obstáculo para ele
orientar o seu novo recruta sobre a minha localização.
Já se passava das três da manhã. A inquietação na minha
mente era intensa, a ponto de não permitir que eu caísse
no sono. O medo de ser surpreendido enquanto dormia
era grande e não podia dar essa chance de bandeja para
eles.
E assim foi durante toda a madrugada. Sem pregar o
olho, assustado.
Ora olhando pela janela, em busca de algum movimento
suspeito.
Ora assistindo aos noticiários, em busca de informação.
Até que o corpo foi mais forte que a alma, e não consegui
escapar do sono. Ao sentar-me na cadeira roída e apoiar
a cabeça na mesa de madeira, não demorou para que eu
adormecesse.
CAPÍTULO 07

Levantei a cabeça com violência. Meus pulmões


vigorosamente enchiam de ar. Minha testa suada e os
olhos arregalados evidenciavam meu desespero. Ao
redor, conseguia ver no breu os móveis que compunham
o meu lar provisório. Corri para o interruptor e liguei a
luz. Ninguém por ali. Abri a porta do escritório, percorri
pelos corredores de máquinas velhas e empoeiradas.
Nada também.
Ao ver que estava em segurança, procurei me acalmar.
Tinha acabado de sonhar com o Mensageiro e seu pupilo,
invadindo a fábrica sorrateiramente. Eu estava dormindo
apoiado na mesa. Por um momento senti alguém
levantar minha cabeça. Mesmo sem abrir os olhos, pude
sentir a voracidade do novo Devorador de Almas. Foi
quando acordei.
Voltei ao escritório e liguei a televisão. A novela tinha
acabado de começar. Isso significava que, se a emissora
não atrasou a transmissão, deviam ser umas oito, oito e
meia da noite. Deixei o aparelho ligado, enquanto
caminhava ao banheiro. Apoiei-me sobre a pia, buscando
botar as ideias no lugar. Ao som das vozes dos
personagens ao fundo, me lembrei do ultimato que tinha
dado a Homero. Era hoje que eu tinha que encontrá-lo no
píer da cidade.
Após tomar um banho, vesti um jeans preto desbotado e
uma camisa de gola de mesma cor. Fazia frio naquela
noite. Tratei de vestir também a trench coat, tão
inseparável para mim nesta pós-morte. Em seguida, abri
o cofre e tirei um maço de dinheiro. Mil. Era o que foi
combinado pelas informações. Ao andar em direção da
saída, senti que um dos lados da trench coat estava mais
pesado. Enfiei a mão direita em um dos bolsos. Meus
dedos deslizaram nos encaixes de ferro frio do soco
inglês, o que me fez lembrar da noite anterior. Achei por
conveniência levá-lo.

***

O vento chacoalhava as poucas árvores que estavam


próximas do píer da cidade. Naquela hora, o frio já tinha
espantado boa parte dos turistas. Apenas alguns
restaurantes ainda estavam abertos, mas com
pouquíssimos clientes.
Solitário, avancei pelo piso de madeira. Minha trench
coat esvoaçava com o movimento da corrente de ar.
Embora a temperatura congelasse a espinha de qualquer
pessoa, a minha mantinha-se aquecida pelo desejo de
descobrir quem era o maldito que está por trás do
desaparecimento de Micaela.
Caminhando píer adentro, desci a séria de escadas que
levava a uma área mais baixa, destinada aos pescadores.
Ali, pelas condições do tempo, obviamente não havia
absolutamente nenhum pescador. Havia apenas um
rapaz, de sobretudo bege sentado na parte coberta do
píer. Neste ponto o vento não batia com tanta força, mas
ainda assim ele estava com as mãos atreladas em volta
ao corpo, buscando ao máximo se aquecer. Sua
expressão corporal não me deixava dúvidas.
- E então Homero? Está com o que lhe pedi? – o
perguntei.
- O señor no poderia ter escolhido un lugar mejor? –
retrucou, estendendo sua mão, que além da luva que lhe
vestia, continha um envelope pardo.
Peguei o pacote, que veio recheado de papéis dentro de
uma pasta fina de papelão. Abri-o, tendo o máximo de
cuidado de não perder nenhum material em meio ao
vento forte que soprava do mar.
- Don Celsio é dono de uma agência de modelos do país
dele. – ele começou a explicar – Vive disso há trinta e
cinco años. Quando veio encontrar com o señor Rivera,
estava procurando novas garotas para agenciar no
estrangeiro.
Ele puxou do bolso do seu sobretudo um maço de
cigarro. Bateu-o na palma da mão, liberando uma
cigarrilha. Colocou-o à boca. Em outro bolso retirou o
isqueiro e acendeu o cigarro. Deu uma longa tragada,
enquanto me observava olhando os documentos.
- E o que ele tem a ver com a minha mulher? Ele a levou?
- Sí. Sua mujer foi escolhida e aceitou a oferta de Don
Celsio.
- Então ela foi para o outro país... – concluí.
- Sí. Ela resolveu ganhar dinero fuera de país, señor.
Fiquei calado por um momento. Sem saber no que pensar
e no que fazer. Homero também se calou. Ele observava
o mar, enquanto eu fitava o chão. Desse jeito ficamos por
alguns minutos. Por fim, meio sem-graça, o gerente do
Hot Hell quebrou o silêncio.
- Señor, desculpe, mas preciso ir. Hoje tenho que
trabajar. O señor puede me dar o dinero? Mil foi o que
combinamos, no?
Coloquei uma das mãos no bolso da minha calça. Tirei
um bolo envolto por uma borracha e deixei em cima do
banco. Silenciosamente ele pegou a grana e, sem
conferir, colocou-o no bolso. Levantou-se, sem se
despedir. Porém, o homem tinha algo a mais. Agora, foi a
vez dele de me pedir algo.
- Ah, Señor! – ele clamou, estancando o passo. Levantei a
cabeça, encarando-o. - Er... no me compreenda mal, mas
pienso que será mejor para o señor que no apareça más
no Hot Hell. Don Rivera está sabendo do bilhete que me
deixou ontem e até me perguntou o que o señor queria.
- E o que você disse?
- Disse que era um amigo que estava pedindo dinero
emprestado. Que sua madre estava no hospital e
precisava para fazer cirurgia. – ele contou de forma
despretensiosa – Mas Don Rivera no é burro, señor. É
muy amigo de Don Celsio e estará atento caso o señor
volte a entrar lá, principalmente se me procurar.
Entendi o recado e voltei a fitar o chão de madeira.
Homero vendo que eu não ia falar nada, voltou a trilhar o
seu caminho, deixando-me imerso nos meus
pensamentos.
Sozinho, eu estava envolto pelo barulho do vento, o agito
do mar, e o caos na minha mente.

***

Enquanto retomava o caminho para casa, fiquei


pensando naquela situação. Nunca fui bom com
emoções, mas naquela noite um sentimento estranho
tomava conta de mim. Desde que renasci do inferno eu
já sabia o que era viver sem aquela vadia por perto. Mas
até então eu achava que ainda poderia tê-la de volta.
Agora era diferente.
Ao saber que ela aceitou ir embora dali, percebi que ela
estava decidida a seguir com a vida dela. Não que isso
fosse ruim. Muito pelo contrário.
O meu dilema era se ainda valeria a pena esse
reencontro acontecer. Talvez se eu aparecesse, depois de
tanto tempo sumido, poderia acabar com a nova vida
dela. O mais estranho é que, se realmente não valesse a
pena, de nada resultou a minha volta ao mundo dos
vivos.
Já fazia uma meia-hora que eu tinha saído do píer e neste
momento perambulava pelas ruas da cidade,
mergulhado em indecisões. Deveria voltar para o
inferno? Não acho que voltar seria uma opção, já que o
Demônio deixou bem claro as condições de ser um
Devorador de Almas. Continuar nesta vida miserável,
servindo de marionete eternamente, também já não fazia
mais sentido. Minha cabeça fervia.
Voltar pro meu canto não iria me ajudar muito. Precisa
espairar um pouco e diluir as informações. Havia uma rua
que a noite costumava ser bem animada no centro da
cidade. Curiosamente era apelidada de “Rua das Primas”,
por conter a maior quantidade de putas por metro
quadrado.
Naquela noite o local estava mais movimentado do que o
normal. Nos botecos, as rodas de samba tocavam
algumas canções populares, enquanto os homens – que
de gole em gole se enchiam de cerveja – ficavam
brincando com algumas garotas. Ao lado dos botecos,
cortiços que serviam de prostíbulo ficavam com as portas
abertas, convidando a entrar quem passava por eles. Até
policiais paravam para mexer com as mulheres.
Encostei-me no balcão de um dos botecos que havia por
ali. Deixei o envelope com o dossiê de Celsio
descansando em cima do balcão. Nem notei a presença
do garçom, que me perguntava o que iria querer. Minha
cabeça ainda girava em torno do que iria fazer, agora
que Micaela foi embora. Para dar uma disfarçada, pedi
uma cerveja. O garçom, ainda olhando desconfiado,
resolveu me cobrar na hora. Não titubeei e tirei logo o
dinheiro do bolso.
Minha cara não devia estar das melhores. Não demorou
muito para que uma das putas que estavam no boteco
me abordasse. Ela andava de um jeito sensual,
carregando em uma das mãos uma bolsa pequena, de
mão. Seu perfume impregnava minha narina, mesmo
estando a alguns metros.
- Porque está tão tristinho, garanhão? Não tá a fim de
descarregar um pouquinho essa tensão? – ela disse,
enquanto procurava massagear meus ombros.
De lado de olho, encarei-a. Pela variedade de
profissionais que tinha ali, até que essa era bonitinha.
Sua pele era clara, e seus olhos azuis eram sedutores.
Seus cabelos morenos, presos em trança, chegavam um
pouco além dos ombros.
Ela viu que não estava muito a fim, mas ainda assim não
desistiu de mim. Deve ser porque sabia que os caras
mais depressivos tinham mais probabilidade de cair
naquele joguinho de sedução. Ela sentou-se ao meu lado,
olhando-me por alguns segundos. Devolvi o olhar.
- Engraçado, geralmente os caras que vêm aqui não
deixam a cerveja esquentar, como você está fazendo.
- Se quiser tomar, é todo seu. – eu disse, empurrando o
copo para perto dela.
- O que houve? Briga com namorada? Problemas no
trabalho? – ela tentou puxar assunto.
- Não sabia que além de puta também fosse psicóloga.
- Às vezes precisamos nos transformar em pessoas
compreensivas. Os homens possuem fetiches por este
tipo de mulher, sabia? – ela disse em meu ouvido.
Não pude deixar de escapar um sorriso no canto da boca.
Elas eram treinadas pelos cafetões justamente para
serem insistentes. E eu sabia que aquela conversa iria
bem longe.
- Acho que você está perdendo tempo comigo – eu disse.
- Gosto de apostas difíceis – ela respondeu, enquanto
tomava um gole da cerveja.
Ingenuamente, ela pegou o envelope que ainda estava
no balcão, agora entre mim e ela. Hesitei em deixá-la
pegar, mas antes que eu pudesse tirar das mãos dela,
ela puxou o material para o outro lado do balcão. De
costas para mim, abriu com cuidado e pegou a pasta de
papelão. Começou a leitura.
No fim das contas acabei a deixando ler porque sabia
que no fim ela acharia que fosse algum assassino de
aluguel e estivesse atrás do cara da foto. Como eu fazia
nos tempos de vivo.
- Puta merda! – ela exclamou.
Já estava preparado para vê-la sair correndo.
Ela virou-se novamente para mim, calmamente. Seus
olhos transmitiam raiva, embora seu tom de voz fosse
calmo:
- Você... você vai matar este homem?
- Não. Isso foi uma mera pesquisa. Este homem não
merece morrer.
Nunca vi alguém sorrir de forma tão debochada como ela
fez. Como se ela realmente quisesse que eu o matasse. A
garota ficou em silêncio por alguns momentos, até
repetir a pergunta.
- Tem certeza?
- Algo me diz que este cara merece morrer... – deduzi.
A garota olhou para os lados, como se estivesse
procurando alguém que a estivesse vigiando.
- Finja que é um cliente meu e venha comigo. – sussurrou
em meu ouvido.
Com calma, levantei-me junto com a garota. Ela foi na
frente, me guiando entre os bêbados e as mesas cheia
de gente. Saímos do boteco e tomamos à esquerda, onde
alguns metros depois chegamos em frente a uma porta
colonial, alta, pintada em vermelho. Com os nós dos
dedos, ela bateu na porta. A porta se abriu, mostrando-
nos uma escadaria que levava para cima. Ao entrar,
pude ver uma corda presa ao ferrolho antigo da porta,
que subia paralelamente à escada, presa por pequenos
ganchos instalados na parede. Uma gambiarra de
extrema inteligência, que não necessitava que alguém
descesse e subisse aquele longo lance de escada para
atender a porta.
Subimos os degraus esburacados. Passamos por uma
recepção caindo aos pedaços. Um cara que estava do
outro lado do balcão deu a garota uma das chaves do
quadro de acomodações. Ela agradeceu. Os dois ficaram
parados, olhando para mim.
- São cinquenta pratas pelo quarto, meu chapa! – disse o
cara da recepção.
Encarei a puta com um tanto de raiva. Ela apenas acenou
com a cabeça para que eu pagasse.
- Queria ver o que iria acontecer caso não tivesse a
grana... – resmunguei.
Tirei do bolso a nota e o entreguei. Ela agradeceu
novamente e me puxou, levando-me pelo corredor. Nem
preciso dizer quais eram os sons que meus ouvidos
captavam enquanto passávamos por ali. Alguns minutos
depois, a garota colocou a chave na fechadura do quarto
vinte e dois, destrancando a porta descascada. O rangido
ao empurrá-la conseguia ser mais alto do que os gemidos
que se ouvia nos outros quartos.
Do outro lado da porta, um lugar simples, contendo
uma cama, um minúsculo banheiro e uma televisão
apoiada numa mesa de centro encostada em uma das
paredes me mostravam que não compensava pagar
cinquenta pratas para fazer programa ali.
A garota trancou a porta, colocando a sua bolsa de mão
do lado da televisão. Ainda com o envelope em uma das
mãos – ela veio do boteco até aqui com ele –, ela abriu,
enquanto buscava sentar-se na cama. Começou a folhear
a pasta, mostrando-me a foto.
- Esse filho-da-puta merece ir para o inferno! – ela
esbravejou.
Eu tentava desvendar o segredo por trás desse ódio
imenso que ela tinha ao ver a foto de Celsio, mas seria
impossível sem perguntá-la.
- Você o conhece?
Ela concordou com a cabeça.
- Esse maldito me levou para fora do país.
- Sim. Ele tem uma agência de modelos.
Ela debochou da minha cara.
- Você é retardado? Realmente caiu nesta historinha de
agência de modelos?
Fiquei confuso e ao mesmo tempo preocupado.
- Conte-me como foi que conheceu esse cara.
A garota se levantou, indo em direção à janela. Antes de
começar a falar, já estava chorando.
- Eu era dançarina do Full House.
Full House era uma dos inúmeros bordéis do centro da
cidade. Não tão diferente quanto as outras, apenas com
o diferencial de também possuir mesas de carteado.
- Bem, o senhor Danilo, dono do Full House, me trouxe de
outra cidade para vir trabalhar para ele. Eu era nova,
tinha acabado de fazer dezoito anos e estava buscando
uma oportunidade por aqui. – ela dizia, virando-se para
mim – Depois de três anos trabalhando lá, esse imundo
do Celsio apareceu e começou a frequentar o local.
Foram dias jogando pôquer com outros porcos. Mas ele
era diferente dos demais. Assim que começávamos
nossos números de dança, ele saia da mesa, apenas para
apreciar nosso espetáculo.
- Entendo.
- Eis que mais uma noite Celsio apareceu. Não para jogar
ou se divertir conosco. Mas sim para conversar com
Danilo. O meu patrão arrumou um lugar bem próximo do
palco, onde junto com ele assistiria atentamente ao show
que faríamos naquela noite. Depois disso, Celsio esteve
por lá durante três dias seguidos, até que convenceu o
meu patrão a me apresentar para ele.
- E você?
- Certa vez, Danilo me levou para jantar com Celsio em
um restaurante chique, em outra cidade. Pediu para que
eu vestisse a minha melhor roupa, já que estaríamos ao
lado de socialites. Acatei ao pedido, e naquela noite
estava com um vestido preto e ornada com algumas joias
baratas. No horário marcado, o carro de Celsio parou em
frente ao Full House, e embarquei junto com Danilo.
Antes de continuar, ela pegou de cima da cama o resto
do dossiê, folheando-o, como se prestasse atenção no
que estava vendo.
- Após conversas fúteis dentro do carro, chegamos ao
restaurante e Celsio sequer esperou o jantar para me
falar da tal proposta. Disse que ele queria me oferecer
uma bela oportunidade de trabalho, me levando para o
estrangeiro para trabalhar nas passarelas. Para mim,
ainda nova, era um sonho. Ganhar mais dinheiro e ficar
conhecida no mundo da moda? Uau! – Ela fez uma pausa
– Mas como pode ver, as coisas não foram tão boas
assim.
- O que houve quando você foi pra lá?
- Tudo não passava de encenação. A agência que Celsio
na verdade nunca existiu.
- Empresa fantasma?
- Sim. A única passarela que vi foi a de strip. Fiquei
durante longos cinco anos nessa vida. Era vigiada. Quase
não podíamos sair para as ruas. Sem vida social. Quando
negávamos algum programa, iríamos para o que
chamávamos de salinha da negação, onde éramos
espancadas até não conseguir ficar de pé. – ela dizia,
enxugando as lágrimas – Ganhávamos o suficiente para
sobreviver, já que moradia tinha que dividir um quarto
com outras quatro garotas estrangeiras, que assim como
eu, sonharam com uma vida melhor em outro país.
A cada palavra ouvida, minha ira explodia. Eu estava em
silêncio, escutando tudo, mas com uma vontade imensa
de pegar o primeiro avião e esmurrar a cara deste infeliz
até a morte. Nunca fui boa pessoa, mas sempre fui
honesto com as minhas maldades (se tem honestidade
para este tipo de coisa).
Mas ainda assim esta situação, por outro lado, teve seu
lado positivo. Mesmo com a ira inflando meu espírito,
minha mente agora estava tranquila quanto a Micaela.
Agora que sabia que ela estava em perigo, eu tinha
pretexto para voltar a procurá-la.
Algo de dentro do dossiê a fez parar com a narração. Ela
olhava compenetrada para algo, meneando a cabeça
negativamente.
- O seu informante deve ser dos bons. – ela riu, me
encarando – Esta informação está errada.
Levantei-me e fui em sua direção. Por cima do ombro da
moça, olhei para onde o dedo dela indicava no dossiê.
- O endereço do prostíbulo não é esse.
Olhei desconfiado para ela. Homero tinha errado na
informação, assim como tinha errado sobre o tipo de
negócio de Celsio?
- Você sabe exatamente onde que fica?
A garota deixou o dossiê comigo. Foi até a mesa, onde
havia deixado a sua bolsa de mão. Dentro dela, a garota
pegou uma caneta e em seguida apanhou novamente o
dossiê. No local onde estava o endereço, ela riscou o
antigo e escreveu o novo em um espaço em branco.
- Aqui. Este é o endereço correto. É onde ficam as
garotas. O outro é apenas um endereço de um laranja.
Um sorriso surgiu instantaneamente do meu rosto. Sabia
onde encontrar o safado, e de quebra traria Micaela de
volta. Mas havia algo que ainda queria perguntar para
aquela garota.
- E como você voltou para cá?
Ela olhou para mim com uma cara de que como eu não
soubesse.
- Lá os documentos falsos são tão fáceis de arrumar
quanto aqui. Tive ajuda de um cliente também. Foi difícil
ludibriar Celsio. A ponto de, quando ficou sabendo da
minha fuga, mandou matar o cara que me ajudou.
- Então se eu for matá-lo...
- Sim. Precisará tomar cuidado.
Fechei o dossiê e recoloquei-o dentro do envelope. Minha
cabeça já começava a planejar o que fazer. Estava
animado por conseguir informações tão preciosas para
poder reencontrar Micaela. Silenciosamente, caminhei
em direção à porta, sob o olhar da garota.
- Garanhão, se puder, gostaria de lhe pedir um favor.
Parei e olhei pela última vez aquele par de olhos azuis.
- Durante o último suspiro de Celsio, diga a ele que
Miranda mandou-lhe lembranças.
Assim despedi-me de Miranda, cujos olhos azuis
pareciam refletir a cor do mar, mas ao mesmo tempo
escondiam um furioso vermelho escarlate dos anos de
escravidão.

***

Com as informações em mãos, ainda faltavam os


detalhes sobre o que fazer. Por enquanto, a única certeza
que eu tinha é que iria até o inferno novamente para
trazer Micaela de volta e segura. Como consequência,
sabia que não ia conseguir impedir a morte de Celsio
pelas minhas próprias mãos. Eu tinha motivos de sobra
para matá-lo, mesmo se não fosse necessário lhe
devorar a alma.
Já havia voltado para a fábrica e estava sentado em
frente a mesa, apoiado sobre o dossiê, focando nas
informações de Homero e o rabisco de Miranda. Será que
deveria confiar nela? Será mesmo que Homero e seus
informantes estão errados? Precisava resolver essa
incógnita rapidamente, antes que eu corresse perigo.
Estava folheando e analisando o material, quando um
barulho vindo do pátio das máquinas me chamou a
atenção. Em um primeiro momento não me importei,
voltando a analisar os papéis. Porém voltei a lembrar que
eu ainda corria perigo por causa da minha última missão.
Algo dentro da minha cabeça me dizia para averiguar o
que era. Rapidamente corri para o interruptor e desliguei
a luz. Embora pensando melhor, talvez isso não me
ajudaria, caso fosse quem estava pensando.
Saí do escritório, abrindo caminho pelas escadas de ferro.
Sutilmente desci até o térreo. O barulho vinha da entrada
da fábrica. Fui me deslocando para o outro lado, por
entre as máquinas empoeiradas. Cheguei até a porta que
me levava para um segundo galpão. Antes mesmo de
abri-la, fui surpreendido.
- O que pensa que está fazendo, Carlos?
Meus músculos enrijeceram e o frio na espinha surgiu
com aquela voz austera e imponente. Estava
completamente paralisado pela adrenalina que meu
corpo acabara de produzir. O Mensageiro estava a
dezenas de metros, ainda na porta de entrada, mas sua
voz me atingiu como se estivesse sussurrando em meus
ouvidos.
- Você está estranho... – ele disse, enquanto ouvia o
barulho de seus passos caminhando na minha direção.
Num ato de desespero, minha mão foi ao encontro da
maçaneta da porta que estava na minha frente e, sem
titubear, corri para dentro do segundo galpão da fábrica,
batendo com força a porta recém-aberta.
Aquele lugar era muito parecido com o primeiro galpão.
Máquinas faziam corredores. A única diferença é que era
nesse em que estavam guardados alguns produtos
produzidos pela fábrica na época em que ainda
funcionava. Assim como as máquinas, eles estavam
cobertos por panos brancos, empoeirados pelo tempo, e
estavam reservados no fim do galpão.
Olhei para trás. Foi o tempo de ver a porta sendo
estilhaçada pelo Mensageiro. Embora meus poderes de
devorador estivessem voltando, ainda assim não eram o
suficiente para uma luta corporal contra aquele monstro.
Eu corria em disparada por entre as máquinas. Olhei para
cima, de onde via a luz da lua, transpassando os buracos
de alguns vitrais instalados quase no teto. Busquei o
Mensageiro com os olhos. Olhei para trás. Ele já não
estava mais no meu encalço.
Dobrei uma esquina feita por uma das máquinas.
Procurei me esconder por entre as sombras dos
equipamentos. Tentei restabelecer a respiração e aguçar
a audição, buscando os passos dele. Para meu
desespero, não escutava absolutamente nada.
Um solavanco me puxou para trás e uma topada me fez
perder o equilíbrio das duas pernas ao mesmo tempo. Em
seguida, ouvi o baque da batida das minhas costas no
chão sujo de poeira. Não consegui obter nenhuma
reação, pois o Mensageiro já estava em cima de mim,
impedindo-me de levantar com o cetro de Cérberus
pressionado no meu peito.
Não posso morrer! Não Agora! – pensava freneticamente.
Justo agora que estava tão perto de me reencontrar com
Micaela. – Merda!
- Ei, que porra é essa? Do que está fugindo, moleque? –
ele perguntou, irritado.
Eu ainda estava nervoso demais para respondê-lo.
Buscava forças para me livrar dele. Mas quanto mais me
debatia, menos eu via o cetro se mover. Num golpe
rápido, o Mensageiro acertou a cabeça de Cérberus na
minha.
Voltei para a escuridão.

***

Aos poucos fui recuperando a consciência. Sem saber o


que tinha acontecido, fui abrindo lentamente os olhos,
que demoraram um pouco para focar. Senti meu corpo
deitado e minha cabeça doía. Busquei dentro da minha
mente o que tinha acontecido. Lembrei primeiro das
sensações: medo, desespero, angústica. O que me
levaram a tais sensações? Logo me veio a resposta.
- Finalmente você acordou – disse o Mensageiro, com um
sorriso largo nos lábios.
Tentei levantar o mais rápido que podia, mas o máximo
que consegui foi levantar o tronco. Minha cabeça doía
demais, a ponto de me anestesiar da cintura para baixo.
A minha frente, o Mensageiro esperava eu recobrar os
sentidos com os braços cruzados, apoiado na batente da
porta do escritório. Olhei ao redor. Estava deitado na
poltrona que usava como cama.
- Muito bem. Cadê o outro infeliz? – perguntei-lhe.
- Outro? – ele me questionou – Outro quem?
- Para com essa putaria! Sei que vocês estão atrás de
mim! – disse, botando a mão na cabeça. A dor era
dilacerante.
- Vocês quem, moleque? Será que a pancada foi tão forte
a ponto de ter afetado os seus miolos?
- Sei que tem outro Devorador de Almas com você. Onde
ele está?! Lá fora?! Está só esperando eu sair para
acabar comigo?!
O Mensageiro caiu na gargalhada.
Não entendi o motivo de tanto riso. Achei aquela reação
estranha, embora minha vontade fosse de voar no
cretino.
- Há.... há.... ai.... ai... essa foi muito boa!! Tá virando um
piadista de primeira, meu chapa! – ele disse – Agora...
há... há... falando sério... de onde tirou essa ideia
maluca?!
Com raiva, disse para ele sobre toda a merda que
aconteceu no Senado. Desde a chegada até a fuga
improvisada.
O Mensageiro me escutava atentamente. No final da
minha explanação, finalmente ele se mexeu. Descruzou
os braços e passou pela poltrona, pegou um copo d’água
da pia do banheiro e me deu.
- Toma. A água não é benta, mas vai aliviar essa dor.
Estranhei ainda mais a atitude dele. Temi por botar o
copo na boca.
- Ah, para com isso! Beba logo!
Acabei por arriscar. Bebi um gole. Esperei alguns
segundos. Nada havia acontecido comigo. Aos poucos fui
bebendo o resto. De fato ele tinha razão. Dois minutos
depois, a água foi aliviando a dor, até me recuperar
completamente.
- Bom, vamos por partes. Primeiro, não existe nenhum
outro Devorador de Almas além de você. Estou sozinho.
Sua fome está aumentando. Neste estágio você já
consegue ouvir pelo menos até o lado externo da fábrica,
não é? Consegue ouvir alguma coisa?
Ele tinha razão. A única coisa que soava naquele
momento eram os grilos da vegetação que ficava ao
redor da fábrica.
- Segundo, e o mais importante desta história toda. A
operação no Senado. Por tudo que aconteceu,
consideramos que a sua atuação foi impecável.
- Impecável?! Porra, você escutou o que eu falei?! E a
porra da câmera?! – eu disse, com a voz alterada.
- Bem, acho melhor deixar você ver, invés de eu falar.
Ele se dirigiu para a televisão e a ligou. Acompanhei seus
movimentos, até meus olhos pararem na tela do
aparelho. O jornal da noite estava passando naquele
momento. E estava justamente falando de um
assassinato ocorrido na capital do País. No Senado.
“A polícia está investigando o caso meticulosamente, já
que não há suspeita de invasão. – dizia o jornalista –
Segundo a segurança do Senado, no momento do crime,
as câmeras passavam por manutenção, e, portanto,
ficaram desligadas naquela noite. Apenas os funcionários
sabiam de tal manutenção. Fontes internas da polícia
afirmam que o delegado está trabalhando com hipótese
de crime passional, já que uma denúncia anônima
informou que a assessora do senador Michel Paleze,
Melissa Nascimento, tinha um caso secreto com o
senador Emílio Salgado Filho. Cabe lembrar que o
Senador assassinado foi encontrado morto com uma
mulher nua dentro de seu gabinete.”
- Você...! – eu disse, espantado com tal repercussão e
distorção do fato.
- Sim, eu sabia dessa manutenção. Por isso que te falei
que só tinha aquela noite para fazer o serviço. E a
denúncia? Sim, fui eu.
- Então...?!
- É, digamos que estava tudo dentro dos conformes, no
fim das contas. – ele riu.
Após a reportagem, o mensageiro tirou do bolso do seu
paletó um pequeno envelope, deixando-o em cima da
mesa.
- O que é isso?
- Novos documentos falsos. Pelas minhas contas, daqui a
quatro dias a sua fome irá se manifestar com mais
intensidade. Já adiantei essa parte. Quanto ao dossiê da
sua próxima vítima, ele ainda não está pronto, mas é
certo de que a vítima vive no país vizinho ao nosso.
- No país vizinho ao nosso?! – indaguei. Levantei-me até
a mesa e apanhei o envelope. Abri e vi um passaporte e
um bilhete aéreo para depois de dois dias. Divaguei em
pensamentos ao lembrar de que o país em questão é o
mesmo descrito no dossiê de Celsio. Meu devaneio
acabou quando vi o Mensageiro olhando curioso para
mim.
- Eu também tenho um assunto pendente para resolver
por lá. – eu disse.
O mensageiro deu de ombros.
- Não me importo com o que você tenha, desde que
cumpra com o seu trato e devore a pobre e imprestável
alma – ele disse.
- Não se preocupe. Vou dar cabo do serviço e resolver
meus problemas. – reiterei.
- Ótimo. – ele se deu por satisfeito – agora trate de
descansar. Você terá uma longa viagem. E a sua próxima
tarefa será um pouco mais difícil que as outras. Precisará
estar em boas condições para triunfar. – e foi embora.
Nunca acreditei nessas porcarias de coincidência. Mas
ignorar o fato de que fui salvo das garras do Demônio por
algo extremamente inesperado, e de quebra a minha
próxima vítima, Celsio, e Micaela estão no mesmo lugar,
é dizer que isso é muita sorte.
CAPÍTULO 08

- Seja muito bem-vindo ao Grand Palace, senhor Monteiro


– disse o recepcionista para mim.
Sorri de forma cortês e peguei o cartão de acesso para o
meu quarto. O hotel, luxuoso por sinal, foi escolhido a
dedo pelo Mensageiro. Primeiro porque ficava perto do
meu alvo. Segundo, porque ele estava cansado de me
visitar em lugares bizarros.
Dispensei a ajuda do mensageiro do hotel e fui para o
elevador. Acionei o décimo primeiro andar, onde ficava o
quarto cento e onze, o qual me hospedaria.
Já se passava da meia-noite, quando me deparei com a
decoração interna do quarto. A cortina aberta me
mostrava uma porta de vidro que ia do teto ao chão.
Além da porta, uma sacada me permitia vislumbrar uma
bela vista da cidade. As luzes vindas dos postes,
juntamente com as dos faróis dos carros se mesclavam
no emaranhado de ruas que, elegantemente, se
cruzavam lá embaixo. Uma jacuzzi estava instalada no
espaçoso banheiro. Televisão de quarenta e duas
polegadas, criado-mudo, frigobar, todos novos, e duas
camas queen size completavam o espaço. Os abajures,
bem diferentes do muquifo em que eu e Micaela
morávamos, davam um clima de conforto para quem
queria descansar.
Porém, descansar não era o meu foco.
Não via a hora de fazer o meu trabalho.
Não como devorador de almas.
Precisava buscar Micaela. E de quebra, cumprir o
trabalho a mim confiado.
E não estava disposto a esperar mais nenhum momento
por isso.

***

Estar em outro país obviamente é diferente do que você


vive no seu. Principalmente neste em que eu estava. O
frio que eu estava acostumado não existia. O calor era
intenso neste lugar. Por estar em outro hemisfério, as
estações do ano eram contrárias à minha terra. As
pessoas ali andavam com roupas bem mais confortáveis,
com sandálias e bermudas, tops e saias. E estando
próximo à praia, a brisa marinha refrescava quando era
soprada para o continente.
Antes de deixar o Grand Palace, fui me certificar junto ao
recepcionista se havia a rua mencionada no dossiê feito
pelos homens de Homero. Como Miranda havia me dito,
o recepcionista não a localizou nos guias da cidade.
Restou-me apenas seguir a indicação rabiscada pela ex-
dançarina do Full House.
Minha caminhada depois de ter saído do hotel durou
cerca de quarenta e cinco minutos. A cidade era bonita,
bem iluminada por enormes outdoors eletrônicos. A
atmosfera do trajeto que fiz até o tal endereço era bem
alegre. Músicas eram tocadas em alto-falantes pregados
nos postes da cidade, o que fazia com que rapazes,
garotas, senhores, senhoras cantarolassem enquanto
andavam. Até os mendigos dançavam sozinhos diante
dos postes sonoros. Era um tanto diferente perto daquilo
que eu estava acostumado.
Ao chegar na esquina do local indicado, me deparei com
algo que não esperava. Minha expectativa era encontrar
um lugar modesto, com letreiro de neon e algumas putas
na porta recepcionando os foliões. Ao invés disso, um
prédio luxuoso ocupando uma quadra inteira estava à
minha frente. Na fachada, não havia apenas um neon. Se
houvesse falha na iluminação naquele pedaço, sem
dúvidas aquela fachada faria o papel dos postes. Por fim,
acima de uma das entradas, o nome do local, Deuses do
Olimpo, se destacava no meio do prédio de uns
cinquenta andares.
Os acessos daquele lugar eram tantos que não sabia
para onde ir. Ainda parado do outro lado de uma extensa
avenida, eu estava acostumando meus olhos às
inúmeras luzes vindas de diversas direções. Pelo colossal
tamanho do lugar, comecei a entender o que o
Mensageiro quis dizer quando me falou que esta tarefa
seria mais difícil que as outras.
Assim que atravessei a avenida, busquei o primeiro
acesso. Não havia portas e a passagem era larga. Era
possível ver lá dentro as inúmeras máquinas caça-
níqueis, além do jogo de luzes. Ali estava o cassino.
Fui caminhando por entre as fileiras de máquinas e
mesas de carteado. Pessoas de diversas idades
apostavam seu dinheiro – pouco ou muito – em troca de
diversão. O som ambiente era diferente do que tocava
nas ruas, e era a ferramenta de trabalho de algumas
dançarinas que esbanjavam sensualidade em cima da
mesa do bar central. Estranhei por um momento, pois
não via sinais de prostituição por ali. Pelo menos não de
forma escancarada como eu estava acostumado a ver na
minha cidade.
Algumas garçonetes passavam por mim com bandejas
contendo bebidas alcoólicas. Suas roupas eram
praticamente mínimas, mas tampavam com exatidão as
partes íntimas. Sempre que cruzavam o meu caminho,
perguntavam:
- O senhor deseja alguma coisa? – diziam, balançando o
tronco para que eu notasse o movimento dos seios
cobertos por um decote ousado. Acabava recusando,
mais preocupado em descobrir onde ficava o prostíbulo
daquele lugar. Estava começando a ficar irritado por
acreditar que estava seguindo uma pista falsa esse
tempo todo.
Olhei para cima e vi que havia um segundo andar, porém
bem menor e com parapeito com a vista para o cassino.
Meus olhos correram pelo parapeito, até acharem um
lance de escada, coberto por uma cortina preta, que
descia para o cassino. Uma ideia me surgiu. Seria mais
fácil buscar pelo alto do que caminhando por aquele
labirinto de máquinas.
Subi os degraus, ignorando a placa na parede indicando
que tal acesso era exclusivo para clientes VIPs. Já no
último degrau, tive uma visão do que existia ali. Um local
ideal para os VIPs. Os magnatas. A meia-luz dava uma
privacidade a mais para os conjuntos de sofás
devidamente confortáveis, espalhados por um grande
salão cercado de seguranças.
Dois passos adiante e fui obrigado por um direcionador a
passar por uma entrada contendo dois seguranças. Um
deles estava em uma espécie de guarita. Outro
bloqueava a entrada.
- Boa noite senhor. Seu cartão VIP, por favor?
- Hã... bom eu não tenho, mas...
- Desculpe senhor. Sem o cartão, não pode entrar.
- E como faz pra comprar essa porcaria? – retruquei,
mostrando um bolo de mil em dinheiro vivo.
- Não é tão simples assim, senhor. Tem que estar na lista
de VIPs do hotel. Somente indicados possuem acesso.
Vendo que não conseguiria nada com suborno, tive outra
ideia.
- Don Celsio ainda é o proprietário dessa merda toda? –
questionei.
Os seguranças se inquietaram. Notei que aquela postura
autoritária dos dois tinha sido abalada quando mencionei
o nome do dono do lugar.
- Avisem-no que sou indicação de Rivera, da boate Hot
Hell.
Eles olharam um para o outro. Enquanto um continuava
de olho em mim, o outro tirou o telefone do gancho. Não
consegui captar o que ou com quem ele falava, mas
parece que eu estava no caminho certo. Alguns minutos
depois, o segurança desligou o telefone, saiu da guarita e
se aproximou:
- Por favor senhor, aguarde um momento.
Obedeci fielmente ao pedido. E não me arrependi. Dez
minutos depois, um homem que andava de forma
desengonçada devido ao seu excesso de peso, se
aproximava da guarita. Enquanto caminhava, pegou um
lenço de um dos bolsos e passou no alto da careca,
tirando o suor que sua andança lhe causou. Vestia um
paletó em tom de marrom, que dava mais volume ao seu
corpo obeso e sua estatura baixa. Aqueles olhos
castanhos e enrugados me eram familiares pela foto do
dossiê de Homero.
Era Celsio.
O homem se aproximou da guarita, onde cochichou meia
dúzia de palavras com o segurança. Por cima do balcão
da guarita, ele olhava para mim de olho de rabo, como
se quisesse se certificar de que eu era conhecido.
Finalmente, decidiu vir ao meu encontro.
- Boa noite senhor. – me disse, enquanto estendia a mão
para que eu o cumprimentasse. – É o senhor o amigo do
senhor Rivera?
- Sim – respondi, aceitando o cumprimento. – O senhor
é...?
- Celsio. Dono deste lugar. E o seu?
- Marco. – eu disse, mostrando-o o meu passaporte falso.
- Hum... certo... E como ficou sabendo deste lugar,
senhor Marco? Rivera foi quem lhe indicou?
- Sou um frequentador assíduo da boate dele e disse que
viria a este País. Foi quando ele me indicou o seu
estabelecimento para que eu passasse a noite. – menti –
Mas pelo visto preciso mais do que isso para me divertir
por aqui. – mostrei-lhe o maço de dinheiro.
Os olhos de Celsio refletiam a cor das notas. Seu
tratamento comigo começou a se tornar diferenciado.
- Não se preocupe, senhor Marco. A partir de agora, o
senhor sempre será bem-vindo a este lugar. – Me disse
sorrindo, enquanto virava para um dos seguranças,
exigindo uma credencial especial para mim. – Se é amigo
de Rivera, é meu amigo também. – concluiu, me puxando
para dentro do espaço.

***

Enquanto eu era puxado por Celsio para dentro do


espaço reservado, podia-se ver as garotas que eram
trazidas por ele. Umas conversando no bar, buscando
alvos do clube particular; outras já estavam em ação,
seja no sofá ou em salas privativas, escondidas pela luz
fraca do local, cobertas por cortinas pretas e abafadas
pelo som alto.
Não havia notado antes. Mas tinha acabado de encontrar
o puteiro que Miranda havia me contado.
Celsio me levou até um canto onde havia uma poltrona
em forma de “U”, contornando uma mesa grande e
redonda. Ali, algumas garotas já estavam sentadas,
tomando uns drinks, rindo alto. Enquanto nos
aproximávamos, Celsio começou a puxar assunto
comigo:
- Quanto tempo vai ficar por aqui, meu amigo?
- Estou de férias. Talvez uns três dias.
- Três dias? Ah, mas é pouco! Aqui é uma terra de
diversões proibidas! Você vai ver que não vai querer sair
daqui tão cedo!
Minha paciência foi maior do que a minha vontade de lhe
dizer “Três dias é o suficiente para que eu monte uma
emboscada para você, filho-duma-puta!”.
- Meninas – ele clamou ao chegar à mesa – quero lhes
apresentar um amigo que vem de longe, de outro país. –
ele virou-se para mim - Senhor Marco, estas são as
minhas meninas. Pode escolher qualquer uma. Hoje é por
conta da casa! – disse, rindo.
- O que?! – Por essa eu não esperava. Eu não queria
nenhum programa hoje. Precisava disfarçar e arrumar
uma desculpa para poder procurar por Micaela.
Fitei cada moça que estava ali. Elas me olhavam de
forma sedutores, tentando chamar a minha atenção. Pelo
que entendi, Homero havia me dito que Micaela estava
ruiva. Não sei se ainda estava, mas se Celsio se encantou
com ela quando estava com os cabelos tingidos de
vermelho, era quase certo que ela tenha continuado com
a coloração.
Ao observar cada uma das garotas, notei que nenhuma
delas era ruiva. Essa foi a minha oportunidade:
- Hum... Senhor Celsio, não é por nada não, todas as suas
meninas são bem atraentes e bonitas, mas é que eu sou
mais chegado em ruivas.
O homem ao meu lado olhou incrédulo para mim.
Aquelas moças que estavam ali eram o top do puteiro, e
mesmo assim eu as rejeitara? Como queria outra senão
aquelas?
O homem coçou a careca, mas sem questionar pegou
uma pasta que estava em cima da mesa.
- Aqui. Este é o catálogo das garotas que temos aqui nos
Deuses do Olimpo. – ele me entregou a pasta, já virada
na página cinco, destinadas às ruivas. – Só lembrando ao
senhor que, como já é meio tarde, é possível que muitas
delas estejam, digamos, ocupadas.
Comecei a olhar o rosto de uma por uma. Minha atenção
foi prendida por aquela busca implacável por algum rosto
semelhante àquele que eu tanto me acostumei em vida.
Seu corpo eu também conhecia cada pedaço. Mas já faz
tempo desde a última vez que a encontrei. Qualquer
vacilo meu poderia significar escolher a garota errada.
A pasta era grossa. De ruivas havia umas quatro páginas
de fotos, contendo uma foto de rosto e outra de corpo.
Todas sensuais. Meus olhos foram passando uma por
uma. Passei pela primeira página. Pela segunda. Pela
terceira. Nada.
Cheguei na última página, destinadas às garotas tops. Ali
a mulheres literalmente eram tratadas como
mercadorias. Por ser a última página, fui tomando mais
cuidado ainda para perceber todos os detalhes. Para
minha surpresa, nada de Micaela também.
Uma sensação de ira e impaciência tomou conta de mim.
Minhas mãos estavam trêmulas pela raiva que eu
tentava conter. Cada vez mais queria enroscar minhas
mãos em volta do pescoço gordo de Celsio e esmagá-lo,
fazendo-o sofrer. Precisava me conter, antes que eu
estragasse o plano.
Fui folheando para outras páginas. Morenas. Asiáticas.
Brancas, Negras. Até de origem indígena tinha.
- Senhor Marco, as ruivas só estão naquelas páginas –
Celsio me advertiu.
Não dei ouvidos ao velho gordo. Fui folheando página a
página. Não era possível que eu estava na pista errada.
Essa sensação de insegurança havia voltado pela
segunda vez naquela noite. Não era possível que
nenhuma delas não fosse Micaela. Tinha que ser!
Estava na listagem das loiras, eis que uma foto me
chamou atenção, em meio aos relances de olhos que eu
fazia. Ela estava linda. Provocante. Sua pele clara dava
um charme maior à fotografia. Não tinha dúvidas. Era
ela. Mesmo estando loira na foto. Mesmo que na pasta o
seu nome agora a identificasse como Mindy.
- Essa moça, a Mindy? Ela está disponível para agora? –
perguntei.
Celsio, com um sorriso enorme na cara redonda,
rapidamente pegou o celular do bolso. Concentrado,
buscou um número da agenda e prontamente fez uma
ligação. Sabia que ele falava com Micaela. Precisava ser
paciente. Por enquanto tudo estava dando certo.
O dono do hotel e cassino foi sucinto, perguntando
apenas se ela estava disponível. O que veio depois foi
uma série de ahã, antes de desligar o celular.
- Sinto muito. Ela está com um cliente muito importante.
Mas temos outras...
Não esperei que terminasse.
- Honestamente senhor Celsio, quando gosto de uma
garota, só desejo aquela. Não me interessei por nenhuma
outra do catálogo, a não ser essa – disse, apontando na
pasta. – Havia a possibilidade de reservá-la para mim
amanhã, pela noite inteira? Não precisa ser por conta da
casa. Pagarei a quantia necessária.
Celsio, ao ouvir aquilo, não me questionou.
- Claro que sim, senhor Marco. O senhor estará aqui
nesta mesma hora?
- Com certeza.
- Está certo! Terá Mindy amanhã para o senhor. Falarei
para ela desmarcar os clientes de amanhã.
Dei um sorriso sarcástico, não percebido por Celsio.
Podia-se ver pela expressão de seu rosto que ele fazia
contas do quanto iria lucrar comigo.
- Se o senhor quiser, pode ficar conosco. Sente-se. Irei
lhe pagar uma bebida.
- Obrigado, senhor Celsio, mas prefiro me retirar. Amanhã
terei um longo dia pela frente e vou aproveitar para
descansar a minha alma.
Ele deu risada com o descansar a minha alma.
- Está certo. Como queira senhor. Mas ó – ele estendeu a
mão – não se esqueça de aparecer aqui. Pedirei a Mindy
fazer um trabalho especial para o senhor.
- Pode ficar tranquilo. Gostei do lugar. Claro que voltarei.
– eu disse, cumprimentando-o e me despedindo.
Ao sair dali, retifiquei comigo mesmo.
- Pode ter certeza que voltarei.
CAPÍTULO 09

A lua já estava estampada naquela incrível visão que eu


tinha da enorme janela do hotel. Já havia algumas horas
que ela continuava ali, brilhante, contrastando fixa com o
céu negro que se acomodava sobre a cidade. A
vantagem de estar hospedado no décimo primeiro andar
era que você podia, pelo menos neste hotel, ter uma
vista espetacular desta verdadeira obra de arte.
Ali estava eu, apoiado sobre o parapeito da sacada. Uma
brisa batia nos meus cabelos curtos, enquanto eu
admirava a paisagem. Desde a noite anterior, quando
voltei do Deuses do Olimpo, não pensava em outra coisa.
Hoje era o dia perfeito para voltar lá, aniquilar Celsio,
servir-me de sua alma e de quebra trazer Micaela de
volta.
A Fome já ardia o meu corpo e me trazia aquela
sensação estranha de inquietação. Sentia que meus
sentidos estavam aguçados mais que o normal, em razão
dela. Mas a fome teria que esperar. Meus pensamentos
estavam concentrados no que eu ia fazer no
estabelecimento de Don Celsio.
Eu estava ainda observando a vista da rua, quando ouvi
alguém se aproximar da porta. Três batidas e a
inconfundível voz rouca do outro lado.
- Serviço de quarto!
Dirigi-me até a porta, onde pelo olho mágico pude ver
um garçom carregando uma bandeja de prata. Em outro
momento, acharia que houvesse um equívoco por parte
do restaurante do hotel, se não fosse o pano de serviço
que servia como véu para a cabeça do Cérberus.
- Sua janta, senhor! – disse o mensageiro, entrando
assim que girei a maçaneta.
Deixei-o entrar, me deslocando novamente em direção a
sacada. Notei pelo reflexo da porta de vidro que o
Mensageiro estava desconfortável com aquela roupa
engomada e apertada. Vestia um colete encima de uma
camisa branca, que fechava até o pescoço. Esse era o
preço do seu disfarce.
- E então, o que tem para mim? – eu o perguntei.
O Mensageiro tinha repousado a bandeja em cima da
mesa de centro, onde tratou de retirar a tampa. Ali, invés
de comida, havia um envelope pardo com o famoso selo
Demoníaco.
- Sei que estamos em cima da hora, mas o material sobre
a próxima vitima só ficou pronto hoje. – disse para mim,
sorrindo. – Aliás, tenho que lhe perguntar uma coisa que
me incomoda. O que faz aqui, neste país? Você disse que
tinha algo a tratar.
De certa forma, me irritei com a pergunta. Não gostava
que viessem bisbilhotar a minha vida. Morte. Sei lá. O
que importa é que não me sentia a vontade de falar
sobre os meus assuntos pessoais.
- Porque da pergunta? Ele é quem quer saber, não é?
- De certa forma. – o Mensageiro respondeu, pegando o
envelope para me entregar. – Não o leve a mal Carlos,
mas ele está preocupado que o seu assunto pessoal
interfira no objetivo de hoje.
Isso me irritou mais ainda. Quando eu era vivo, eu era
contratado como matador de aluguel justamente pela
confiança que os chefões depositavam em mim.
Trabalho sujo sem deixar sujeira.
Era assim como eles me associavam ao serviço. Ainda
assim, mesmo sabendo sobre o meu histórico, o Demônio
ainda duvidava de mim?
- Com todo o respeito, mas mande Ele se fuder. – eu
retruquei, ainda com a cabeça quente. O Mensageiro
olhava para mim atônito, como se não esperasse aquela
reação. Procurei esfriar a minha cabeça, antes que
houvesse alguma briga entre nós dois. – Diga a ele para
não se preocupar com os meus assuntos particulares. Ele
terá o que quer. Dou a minha palavra. – concluí,
mandando-o devolver o envelope à bandeja.
- Não quer ao menos saber onde será e quem será o seu
alvo?
Não me importei com o que ele disse. Caminhei até a
sacada novamente, apoiando-me no parapeito. Depois
de devolver o envelope à bandeja, como num
sobressalto, o Mensageiro estava do meu lado,
observando junto comigo a paisagem mundana daquela
cidade.
- Ficaria mais aliviado se eu dissesse que seu alvo esta
noite estará no mesmo lugar que você foi ontem?
- Seu filho-da-puta... Você está me seguindo?! – o
encarei, enfurecido.
- Carlos... Carlos... A partir do momento em que se
tornou um devorador de almas, você é uma propriedade
do inferno. Digamos que sou apenas um fiscalizador do
seu trabalho. Preciso saber por onde anda. Até porque,
sou eu quem te trago as informações de suas vítimas,
não? – ele riu.
Fiquei em silêncio. A raiva que sentia era tamanha a
ponto de arremessar o infeliz da sacada. Mas por outro
lado ele tinha razão. De certa forma ele me ajudava a
conviver com essa maldição. Deixei o fato de ele me
vigiar de lado e procurei me concentrar na informação
que ele me passou. Realmente era importante para mim
que minha próxima vítima estivesse por perto.
- Por acaso essa minha próxima vítima tem a ver com
uma rede de prostituição camuflada por uma agência de
modelos?
O Mensageiro olhou para mim estarrecido.
- Uau! Ou os seus instintos estão aguçados a ponto de
poder ler dossiês sem abrir envelopes, ou você já está a
par do caso! Impressionante! – ele disse, enquanto me
dava tapinhas nas costas.
Sei que ele viu um sorriso surgir no meu rosto.
- Bem, vou deixar você terminar de se preparar para o
show de hoje.
Não olhei para trás. Continuei admirando a escuridão da
noite, quando ouvi a porta do quarto bater suavemente.
Engraçado que, o fato de já ter ido ao Deuses do Olimpo,
de ter conhecido o maldito do Celsio, isso me trazia um
ar de intimidade quanto ao trabalho de hoje. Era ele a
vítima de hoje. E ele tinha todos os motivos para deixar
de existir, servindo-me de alimento. Fechei os olhos por
um momento e pude ver a expressão aterradora do
homem gordo, implorando para que não o matasse. Ele
me indagando sobre o pacto que fizera, e a cara de
surpresa ao se lembrar. Para mim, essas situações já
eram rotineiras. A única coisa que mudava eram os
rostos.
Como em um estalo, fui acordado do meu devaneio pela
dor que apertava meu abdômen. A fome já se
manifestara nos últimos dias, mas hoje, justamente, ela
estava mais intensa, me apressando para devorar a alma
do mercador de mulheres.
Saí da sacada e fui direto para o banho. Uma ducha
rápida e já estava colocando a calça jeans e uma camisa
azul escura. Discrição deveria ser a regra desta
operação. Embora minha fome não se importava com
isso. O que mais queria é ser saciada.
Peguei o cartão de acesso do hotel e saí, sem me ligar
que tinha deixado algo para trás.
Intacto, em cima da bandeja, o envelope continuava
lacrado.
CAPÍTULO 10

Aquela noite se assemelhava muito com a noite anterior.


Justamente por ser fim de semana, as ruas estavam
abarrotadas de pessoas, que buscavam, em sua
esmagadora maioria, diversão madrugada afora.
Depois de sair do hotel, refiz o trajeto realizado
anteriormente até o Deuses do Olimpo. O calor
continuava insuportável nas ruas, onde se podiam ver
garotas – profissionais – fazendo topless em plena
avenida principal, sob olhares curiosos, para atrair
clientes. O engraçado é que até algumas turistas, muitas
delas visivelmente bêbadas – mas que não faziam parte
do ramo da prostituição –, aproveitavam para fazer
também e se banharem nas fontes localizadas na frente
dos hotéis, jogando água em quem passava por perto.
Finalmente cheguei à entrada do Deuses do Olimpo.
Antes de entrar, ainda dei uma olhada ao redor. Era
impossível não reparar os painéis luminosos ao longo da
avenida. Em um deles, cravado na fachada de um outro
cassino mais afrente, pude ver um relógio digital
pulsando o horário. Passava-se da uma da manhã. Meu
estômago doía com a Fome. Tomei consciência que, se
eu quisesse ter êxito naquela noite, era bom me
apressar.
Avancei pelo saguão do cassino. Estava mais cheio do
que a noite anterior. Dançarinas faziam apresentações
em tudo quanto era lado, e uma voz animava o salão,
anunciando os prêmios das mesas de jogos. Adoraria
ficar por ali, fumar um baseado, derrubar os manés no
pôquer e ganhar uma boa grana. Mas precisava me
concentrar na minha tarefa. O Demônio contava com
isso.
Cheguei na escada que me levava ao piso superior. No
final delas, novamente me deparei com a guarita. Os dois
seguranças estavam ali mais uma vez, bloqueando a
minha passagem. Porém, para a minha surpresa, não
foram eles quem me recebeu.
- Boa noite, monsieur. Por gentileza, tem cartón vip? –
disse uma espécie de recepcionista.
Mesmo portando um chapéu de aba pequena, era
possível ver as linhas do rosto. Não o tinha visto ali na
noite anterior, mas ainda assim seu rosto me era familiar.
Propositalmente, ele se posicionou fora da guarita, onde
um isolado feixe de luz que vinha do andar debaixo
refletia agora em seu rosto. Com um bigodinho francês
sem-vergonha, o Mensageiro já havia se infiltrado na
organização de Celsio.
- Vamos. Me entregue a porra do cartão. Encene comigo,
antes que esses dois armários descubram que não somos
o que pensam quem somos – ele cochichou.
Do meu bolso entreguei o cartão ao Mensageiro, ainda
surpreso com o disfarce que ele adotou.
Cuidadosamente, ele fingiu em conferir o cartão que eu
tinha ganho de Celsio. Logo em seguida pegou o gancho
do telefone da guarita e discou algum número de três
dígitos. A Fome mais uma vez deu uma pontada no meu
estômago.
- Calma, rapaz. Você irá saciá-la logo-logo. – ele me
disse, enquanto aguardava o atendimento. Do outro lado
da linha, alguém atendeu, e ele começou a falar
baixinho. Tinha certeza que era com Celsio que o
Mensageiro falava neste momento. Após alguns
“uhum...”, “sim...” e “está certo...”, ele desligou,
devolvendo-me o cartão.
- Ótimo. O mounsieur Célsió pediu para que você fosse
para a sala dele. Ele quer conversar com você primeiro. –
disfarçou sua voz com um sotaque francês vagabundo.
Ele olhou para os lados e viu que os seguranças nos
ignoravam, olhando para outras direções. O mensageiro
se aproximou de mim, e voltou a falar baixo.
- Você chegou a ler o dossiê que deixei no seu quarto?
É mesmo, tinha esquecido de averiguar o envelope! Mas
não haveria problemas. Sei exatamente quem eu devo
eliminar. Mesmo com a quantidade de homens que Celsio
devia ter em seu exército particular, aquela noite eu iria
ter a imensa vontade de acabar com a sua alma.
- Acabei esquecendo. Mas não se preocupe, sei
exatamente o que fazer.
- Hum... ótimo! – ele concordou, ainda meio desconfiado
com a minha segurança. Por fim, ele começou a me
explicar a direção da sala, esticando o braço - Siga por
este caminho. Vire à direita. Está vendo aquele acesso?
Ali é onde fica o elevador que te leva ao vigésimo
segundo andar. Ao subir, você vai ver um grande
corredor. Esquerda, esquerda, reto até o final. Quando o
corredor acabar, direita. Será a única porta que você vai
encontrar no recinto. Sua vítima estará lá. Ah, Carlos –
ele parou por um momento, olhando para os dois
seguranças – o único problema é que você deverá ser
escoltado por estes dois. É procedimento da casa.
Ninguém sobe aquelas escadas sem acompanhamento
da segurança. Então, independente do que for fazer
naquela sala, tome o máximo de cuidado para não ser
pego.
Voltei a compreender sobre o alerta do grau de
dificuldade que ele me disse antes. Embora no Senado
eu tivesse o problema das câmeras de segurança, ali o
buraco era mais embaixo. Eu estava em um território
completamente dominado pelo inimigo. Tudo girava em
volta dele. Realmente precisava tomar cuidado.
O Mensageiro voltou a falar em alto tom, com a
finalidade de chamar a atenção dos seguranças.
- Por favor! Vocês dois! Queiram levar o monsieur Marco
até o monsieur Celsio. Ele está autorizado.
Os dois seguranças, como cães fieis, se posicionaram ao
meu lado. Pareciam dois robôs vestidos em ternos
caprichados.
- Por aqui, senhor. – disse em tom grave o da esquerda.
Honestamente, não sabia quais das sensações eu sentia
naquele momento. A ansiedade em reencontrar Micaela?
A vontade de pulverizar Celsio de sua insignificância
existência? O descontrole que me tomava conta cada vez
mais por causa da Fome?
Estava confuso.
E isso era ruim.

***

- Por favor, entre! Fique à vontade!


Celsio me observava sentado na sua poltrona de couro
enquanto eu entrava junto com os dois seguranças no
meu encalço. A primeira coisa que veio aos meus olhos
foi a grandiosidade daquela sala. Ela ficava ao sul do
vigésimo segundo andar do gigantesco prédio, dividindo
o espaço com outra sala ao norte. Assim como o lado de
fora do cassino, ela era muito bem iluminada com luzes
brancas e muito, muito espaçosa. Duas das paredes
desta sala eram de vidros, que exibiam o movimento da
avenida principal lá do lado de fora.
Assim que entrei na sala, fui em direção à grande mesa
de reuniões, encabeçada por Celsio. Ele se levantou e
veio ao meu encontro, estendendo a mão para me
cumprimentar. Retribui-lhe com um aperto e logo em
seguida ele me indicou a cadeira mais próxima da dele
para sentar.
Obviamente estava achando aquilo tudo muito estranho.
Se ele havia me prometido Mindy – ou melhor, Micaela –
para aquela noite, esperava no mínimo um lugar mais
privativo, até mesmo para poder conversar com ela,
explicar o que realmente aconteceu e convencê-la a sair
dali. Invés disso, uma sala de reuniões onde, pelo nível,
apenas magnatas e empresários pisavam ali.
- Alguma preferência para whisky, senhor Marco? – Celsio
me perguntou. Neste momento ele estava de frente a
uma mesa em um dos cantos da sala, selecionando a
garrafa e preparando os copos para servir.
- Scotch, por favor.
Celsio tirou quatro pedras de gelo de um pequeno cooler,
colocando duas em cada copo. Pegou uma garrafa de
cristal com um líquido dourado. Abriu a tampa,
derramando o whisky dentro dos recipientes, enchendo-
os até a metade. Cerrou a garrafa. O silêncio
estabelecido no local fez com que todos os movimentos
fossem escutados por mim e pelos seguranças que ainda
estavam ali dentro, me vigiando da porta.
Definitivamente não era essa recepção que eu esperava.
Calmamente, Celsio caminhou até a mesa de reuniões
segurando os dois copos de whisky. Os sapatos de Celsio
geravam um estalo perceptível a cada passo que ele
dava. Em silêncio, ele esticou o braço e me ofereceu um
dos copos. Aceitei, embora eu não pudesse beber.
Coloquei-o no descanso que havia em cima da mesa de
reuniões, onde repousaria até o momento que eu saísse
dali.
- Senhor Marco – Celsio me chamou, enquanto se
acomodava na sua poltrona – conforme combinado
ontem, e sou um homem de palavras, terá a Mindy esta
noite. – disse, enquanto tirava um charuto de dentro do
paletó, acendendo em seguida – Mas antes, precisamos
conversar.
Olhei para os seguranças, que ainda insistiam em me
encarar.
- Senhor Celsio, nosso assunto é apenas de negócios.
Qualquer perg...
- Entrei em contato com Don Rivera hoje. – Celsio falou
em tom alto – Mandei para ele imagens suas de ontem
aqui na casa e ele me disse que não o conhecia – Celsio
me encarava agora, enquanto tomava um gole do whisky
– mas que o viu algumas vezes com um dos funcionários.
Como era o nome dele mesmo?
- Homero – eu disse. Neste momento percebi o quanto
subestimei Celsio. De fato era mais esperto do que eu
pensava.
- Isso mesmo! Homero! – repetiu – Então, pedi para que
Don Rivera descobrisse com esse funcionário algumas
informações sobre você.
Naquele momento, uma sensação extremamente ruim
tomou conta de mim. Era como se um balde de gelo
tivesse sido jogado na minha nuca, embora eu
procurasse me manter imóvel. Por ter vivido no ramo do
submundo em vida, sabia que isso significava que, a
pedido de Celsio, Rivera deve ter torturado Homero em
busca de informações, e usaria de tal artifício até ele não
aguentar mais.
Com certeza, a esta altura, Homero já devia estar morto.
- Ele disse que não sabia do seu nome. – Celsio continuou
– A única coisa que sabia de você era que estava atrás
de uma mulher ruiva... é isso mesmo, senhor Marco?
Aliás, é esse mesmo o seu nome?
Eu olhava compenetrado para Celsio. A situação estava
delicada para o meu lado. Ele já sabia de tudo. Tinha me
desmascarado. Não tive outra alternativa senão,
silenciosamente, concordar com o empresário.
- Foi o que eu pensei.
Celsio voltou a colocar o charuto na boca, tragando-o
mais uma vez. Após soltar a fumaça dos pulmões, o
homem gordo puxou o gancho do telefone que estava
em cima da mesa. Tensionei os músculos e fiz menção de
impedi-lo, mas suas próximas palavras me fizeram parar
o movimento.
– Não se preocupe. Como lhe falei, sou um homem de
palavras. – alguém atendeu do outro lado da linha – Aqui
é o Don Celsio. Peçam para Mindy comparecer até a
minha sala de reuniões. Se estiver ocupada, peça para
devolver o dinheiro para o cliente e vir imediatamente.
Obrigado.
Celsio devolveu o gancho no telefone e voltou a olhar
para mim, com um largo sorriso no rosto.
- Viu? Você terá Mindy esta noite.
Estranhei aquela reação. Algo não estava bem.
Geralmente quando se tinha alguém interessado em uma
de suas putas, o cafetão tratava logo de eliminar o risco.
A troco de quê Celsio faria aquilo?
- Estou vendo que você está confuso. – ele disse,
recostando na poltrona – Bom, como você mesmo disse,
nossa relação é apenas de negócios. – ele tomou mais
uma dose de whisky, desta vez bem mais generosa –
Então me diga, por quanto está disposto a comprá-la?
Acho que não ouvi direito... Ele estava colocando Micaela
à venda?
Subitamente levantei e em um gesto rápido agarrei as
lapelas do paletó de Celsio. Com a força descomunal que
a Fome me dava, tirei da poltrona os cento e tantos
quilos de banha, derrubando-o no chão.
Imediatamente os dois seguranças vieram correndo na
minha direção, já tirando as armas da cintura. Cada um
veio de um lado da mesa, já com as pistolas
empunhadas. Aproveitei que Celsio estava no chão,
levantei-o e tomei-o como escudo. Os dois funcionários
hesitaram, apenas se aproximando cada vez mais perto
de mim.
Aos poucos fui também avançando em direção ao que
estava mais próximo, sem dar brechas para o outro. Não
haveria jeito. Estava encurralado e sem arma para me
defender. Precisava aproveitar os meus sentidos
aguçados para sair daquela armadilha.
Eu estava a cinco metros do segurança mais próximo.
Projetei Celsio na direção dele, empurrando-o com toda a
força. O empresário foi de encontro ao seu empregado,
chocando de forma desengonçada contra ele, fazendo-o
cair.
Como reflexo, investi contra o outro segurança. Ao me
ver diminuindo o espaço entre nós, ele atirou, mas sua
mão trêmula fez com que a bala raspasse o meu ouvido
direito, perfurando uma das duas paredes de concreto
que haviam na sala, do lado oposto das de vidro.
Rapidamente subi na mesa e, em um golpe seco e
rápido, apliquei uma voadora no peito do segurança. O
impacto foi forte. O segurança foi jogado para trás,
quebrando umas das paredes de vidro, caindo na rua
junto com os estilhaços.
Levantei do chão. Do outro lado da mesa, ouvia a voz do
segurança pedindo para que Celsio saísse de cima dele.
Olhei ao meu redor. Próximo a janela de vidro quebrada,
o revólver do segurança morto estava caído no mármore.
Não pensei duas vezes.
Corri em sua direção. Nisso, o segurança já havia se
libertado do peso de Celsio e estava se levantando.
Peguei a arma do chão. O tempo foi extremamente curto,
mas suficiente. Assim que tinha a arma em mão, virei e,
sem ter tempo de mirar, atirei. A bala acertou bem na
cabeça do segurança. O sangue escorria entre os dois
olhos, enquanto o corpo caía pesado no chão.
Enquanto eu estourava os miolos do último empregado
vivo, Celsio rastejava pelo mármore. Estava procurando
se esconder debaixo da mesa, na tentativa frustrada de
fugir de mim. Ele estava encolhido, de lado, buscando
com os olhos os meus pés.
A Fome apertava ainda mais meu estômago. A vontade
de saciá-la estava cada vez maior. Subi novamente na
mesa, ocultando-me diante do olhar atento de Celsio,
que permanecia abaixo dela. Como um gato esperando o
rato sair da toca, fiquei em silêncio. Aprendi em vida que
quando há uma caçada, e você é notado por sua caça, a
melhor coisa a se fazer é encurralá-la, se esconder, e
aguardar o momento certo para dar o bote. A caça, por
sua vez, ao ser encurralada, sabe que o caçador conhece
o seu esconderijo e é uma questão de tempo para
apanhá-la. Então começa o jogo de nervos.
Quem der o primeiro passo errado, perde.
Geralmente quem comete o fatal engano é a presa.
E desta vez não foi diferente.
Celsio, com toda a sua gordura, voltou a se rastejar.
Tentava ser rápido. Meus ouvidos captavam tanto o
barulho dos cotovelos e joelhos batendo no chão, quando
o atrito do resto do corpo. A cena era engraçada. Ele
tentou se reerguer, mas deu dois passos para frente,
tropeçou no próprio pé, desequilibrou, até se estatelar no
chão. Não contive a risada. O seu desespero em sair com
vida dali era cômica demais.
Desci da mesa e agarrei-o pelo colarinho do terno. Celsio
segurou meu braço, tentando se soltar. Aos poucos fui
arrastando-o até a beirada do buraco causado pela
destruição da janela de vidro.
Ele orava. Em vão. Como se soubesse que eu tinha vindo
do inferno para acabar com a vida dele.
Soltei o colarinho de Celsio quando chegamos na
abertura da janela. Ali o vento abafado invadia a sala de
reunião. Ajoelhei ao lado dele. Mantive o empresário
deitado, virando-o de barriga contra o chão. Coloquei a
cabeça do empresário do lado de fora, para que pudesse
ver as pessoas lá embaixo, na calçada, olhando para nós.
Embora na calçada houvesse uma multidão em volta do
corpo do segurança que caiu, não me preocupei em me
expor, já que estávamos a uma altura suficiente para não
sermos identificados.
Ainda deitado, Celsio chorava, enquanto eu o segurava.
- Misericórdia!
- Misericórdia?! Em algum momento você teve
misericórdia com estas meninas que você usa como
mercadorias? Hein!? – eu disse, enquanto apertava o
pescoço dele.
- Eu faço qualquer negócio com você! Eu juro!
- Eu não quero fazer negócios com um porco sujo feito
você! Você é um merda! Não se compara nem a um
verme! Se não fosse pelo pacto que você fez com o
Diabo, eu sequer teria coragem de me alimentar da sua
alma, seu filho-da-puta!
Celsio chorava.
- M-Mas do que você está falando?! Co-como assim
alimentar da minha alma?
- Eu vim do inferno, seu imbecil! O Diabo quer que você
pague o pacto que você fez com ele! Eu sou quem vem
receber o pagamento por ele! Como ele considera a sua
alma imprestável, e com razão, ele decidiu doá-la para
mim! – eu fiquei próximo do ouvido direito de Celsio para
sussurrar as próximas palavras – eu devoro almas. E a
sua será uma delas.
Eu podia ouvir o desespero de Celsio saindo junto com as
suas lágrimas.
- Pacto? Mas eu não sei do que você está falando... Não
fiz pacto nenhum com o Diabo! Por favor, me solte!
- Eu não vou te soltar, seu porra! – o virei, colocando-o
agora de frente para mim. – Tenho dois motivos para te
matar hoje. E não me venha com esse papo de não ter
feito pacto. É óbvio que você fez! O próprio Demônio
encomendou sua alma para mim! – gritei.
Gostaria de ver Celsio implorando por mais tempo, mas
precisava me apressar. Dentro de alguns minutos, devido
ao estouro da janela e o segurança morto lá embaixo, os
demais seguranças estariam invadindo aquela sala.
Estava na hora de dar cabo na vida de Celsio.
- Aliás, quase que me esqueço. Uma tal de Miranda...
você a conheceu? Então, ela lhe mandou lembranças. –
eu o disse, extremamente satisfeito com os olhos
arregalados que ele expressava. Claro que sabia quem
era Miranda.
Olhei firme para os olhos de Celsio, ainda lacrimejados.
Se eu não fosse tão insensível, cairia na onda do
explorador de mulheres. Para o azar dele, eu estava
destinado a cumprir a tarefa. Aos poucos, meus olhos
começaram a mudança para a cor opala, me
transformando em um monstro. Celso olhava para mim,
incrédulo para o que via.
- Por favor! Não me mate! Eu não fiz pacto nenhum com
o Diabo!
Não adiantava pedir. Já era tarde demais para me
impedir.
- O Diabo me disse que a alma que eu deveria buscar
hoje a noite estaria aqui, nesta sala. Olhe ao redor. Você
vê mais alguém vivo, além de nós dois aqui?
- Sim. Tem sim.
Ouvi uma voz suave chegar aos meus tímpanos. Longe
de nós, parada na frente da porta da sala, uma moça de
estatura mediana, nos olhava estarrecida. Estava em
choque. Era pálida como a neve. Seus cabelos, batendo
na altura dos ombros, traziam o tom de loiro por cima
dos fios tingidos. Aquele par de olhos totalmente
simétricos com o rosto era impossível de esquecer.
Largaria o merda do Celsio só para poder abraçá-la
novamente. A raiva estava se dissipando, fazendo com
que meus olhos voltassem ao normal.
Finalmente, depois de tanto tempo a procurando.
Vestida com uma saia curta sobre uma meia-calça, e
uma camisa branca que salientava o bico de seus seios,
e o ousado decote lhes volumava ainda mais.
Mas nada disso me importava.
Finalmente. Ali estava ela.
Micaela.
Porém, ela não sorria. Ao invés disso, me olhava de
forma estranha. Estava tremendo. As próximas palavras
que saíram daquela boca me atingiram como um raio.
Não pude acreditar no que ouvi.
- Ele deve ter razão – ela parou por um momento,
engolindo em seco – Ouvi o lance do Diabo – ela me
olhava, quase chorando, totalmente encostada na porta
fechada às suas costas – Se tem alguém aqui quem fez o
pacto com o Demônio... – ela olhou para o chão, antes de
compenetrar seu olhar com o meu - Essa pessoa fui eu.
CAPÍTULO 11

- Como é que é?!


Ela só podia estar brincando! Não, ela estava mesmo
brincando!
- É isso mesmo, Carlos! Assim que você desapareceu, EU
fiz um pacto com o Demônio.
Merda! Isso não podia estar acontecendo! Demorei tanto
para reencontrá-la, para isso?! Eu estava certo de que a
alma a ser devorada naquela noite era a de Celsio!
- Por favor, largue ele. Não se comprometa mais do que
você já está! – ela disse.
Não lhe dei ouvidos. A Fome me apertava cada vez mais.
Mesmo sem abrir, tenho certeza de que o nome que
estava naquele envelope deixado pelo Mensageiro no
hotel era o de Celsio. Tinha que ser o dele, porra!
No auge da minha ira, virei-me novamente para o
empresário, e girei-o para poder ficar cara-a-cara com
ele. Celsio se estrebuchava, tentando se soltar de mim.
Intensifiquei o meu poder, a ponto da cor opala dos meus
olhos iluminasse parte do rosto do homem gordo. Aos
poucos, Celsio foi ficando gelado. Ele tremia. Balbuciava
alguns gemidos. Até que finalmente ele cedeu. Não se
mexia mais. Não me olhava mais com medo. A pesada
cabeça tombou para trás, deixando o espectro da alma
de Celsio flutuando sobre o seu corpo. Rapidamente
envolvi-o com a minha mão, levando-o até a boca.
Aguardei alguns segundos. Geralmente, a Fome era
saciada entre um a dois minutos. Mas naquela noite a
história foi outra. A alma de Celsio diminuiu a Fome, mas
não a saciou completamente.
O Diabo foi bem claro quando me disse.
Apenas as almas escolhidas por mim serão as que te
saciarão.
Não foi o caso do empresário. Cometi um erro grande.
Celsio falava a verdade.
Não era a alma dele que eu deveria ter devorado.
Olhei para a porta. Micaela ainda estava imóvel. Tinha
assistido àquela cena bizarra. Vi medo em seu rosto,
embora houvesse curiosidade também. Ela me
observava atônita.
A cor opala dos meus olhos sumiu, tornando-os
novamente castanhos. Eu estava ajoelhado, desnorteado
com toda aquela situação. Sentia ainda uma dor batendo
no estômago por causa da Fome. Sabia que, se não
quisesse sofrer com a dor que piorava a cada hora, teria
que me alimentar. Isso significava matar Micaela.
Ao mesmo tempo, como poderia ter coragem de fazer
isso? Não éramos absolutamente nada, é verdade. Mas
ela foi a única com quem realmente me importava, e
com quem se importava comigo. Sei que durante a
minha vida nunca me permiti ter qualquer tipo de
sentimentalismo por qualquer pessoa. Mas depois de
tudo que fiz, era impossível negar que eu sentia algo por
ela. Por esse motivo não poderia matá-la assim, como fiz
com as outras dezenas de pessoas – que incluíam Joana,
o Senador Emílio Salgado e, agora, com Celsio.
Micaela estava assustada. Poderia ter saído correndo.
Mas, ao notar que minhas pupilas voltaram a cor natural,
desfazendo aquela aparência monstruosa, Micaela andou
lentamente em minha direção. O tamanco que usava
estalava no piso, até o momento que se ajoelhou na
minha frente.
Levantei a cabeça e encontrei aquele par de olhos fixos
em mim. Como era linda de perto! Mesmo com a Fome
me apertando, aquele perfume me trazia uma sensação
muito grande de paz. Vontade de ficar ali, parado, só
admirando Micaela.
Ela também nada dizia. Invés disso, levantou uma das
mãos na minha direção e tocou o meu rosto, como se
não acreditasse no que via. Seus dedos passaram pela
minha testa, contornando pela lateral e descendo pela
nuca. Como um reflexo natural, minha testa lentamente
encostou com a dela, e eu estava entregue para aquela
paz.
- Vamos Carlos. Se for a minha alma que precisa para
encontrar a sua paz, estou disposta a me sacrificar.
Abracei-a com mais força. Sei que só ela faria aquilo por
mim.
- Não se preocupe. Não tenho medo de morrer. Há muito
tempo estou preparada para isso.
Não. Não podia fazer isso com ela. Justo agora?! Não!
Neste momento, meus ouvidos, ainda sob o efeito da
Fome, captaram um barulho estranho. Barulho de cordas
sendo içadas e um motor se movimentando. Só pude
supor que se tratava do elevador.
Os seguranças de Celsio.
Rapidamente me levantei, me desfazendo daquele
momento com Micaela. Espiei porta afora. O corredor
ainda estava tranquilo. Gesticulei para Micaela, pedindo
para que ela me acompanhasse. Chegamos na porta-
fogo que levava às escadas de emergência. Ao abrir,
mais barulho. Olhei para baixo, flagrando três seguranças
subindo os degraus entre o décimo oitavo e décimo nono
andares.
Estávamos encurralados.
Voltei para o corredor. Embora houvesse dois elevadores
no andar, já não havia mais tempo hábil de chamar o que
estava no térreo – segundo o que constava no visor
acima da porta. Isso era ruim.
Retomei o caminho para a sala de reuniões, quando notei
que Micaela estava parada na porta da sala aposta a de
Celsio. Ela girou a maçaneta, mas o trinco não cedeu.
- O que você acha que tem por trás desta porta? – ela me
perguntou, enquanto pegava um grampo que segurava
um dos lados da sua franja. Entortou o objeto, levando-o
para dentro da fechadura.
Com tamanha habilidade, Micaela procurava destrancá-
la.
- Acho que posso derrubar esta porta com o meu corpo –
eu sugeri.
- E como iremos trancá-la depois de arrombada? Não.
Deixa que eu resolvo.
Voltei a observar o visor que mostrava em qual andar
estava o elevador.
Décimo. Décimo segundo. Décimo quarto.
Olhava para trás e via Micaela ainda tentando forçar a
maçaneta. Nada ainda.
Décimo sexto. Décimo oitavo. Vigésimo.
Meus ouvidos captavam diversos sons. Vindos tanto do
elevador, quanto das escadas. Os seguranças estavam
chegando.
Eis que um click surgiu no meio da barulheira. Olhei para
Micaela. Ela havia aberto a tal porta. Fui correndo em sua
direção, quando o sino do elevador soou. As portas se
abriram e quatro seguranças surgiram. Ao mesmo
tempo, os outros três que subiam as escadas chegaram
até o corredor. Tiros foram disparados contra mim, mas
sem me acertar. Rapidamente, entrei na sala onde
Micaela já me esperava. Ao fechar a porta, percebi que a
maçaneta era daquelas que tinha a chave embutida do
lado de dentro da sala. Foi o tempo de eu virar a chave,
fechando o caminho para os seguranças.

***
Afastei-me da porta. Do outro lado, ouvia apenas gritos e
passos pesados passando pelo corredor. Um dos
seguranças gritava, ordenando que abríssemos a porta.
Obviamente que ignorávamos o inimigo. Outra voz
surgiu, desta vez mais longe, informando que o chefe
estava morto. Celsio. Era certeza que os seguranças não
iam medir esforços para arrombar aquela porta e
capturar os assassinos do dono do Deuses do Olimpo.
Tanto eu quanto Micaela olhamos ao redor de forma
rápida. A sala estava no breu, e talvez ela não
enxergasse muita coisa. Porém, graças à minha Fome,
minha visão ainda estava apurada o suficiente para ver
três fileiras de baias de escritórios distribuídas pela sala.
Sala que tinha a mesma dimensão que a de reuniões. Até
as mesmas janelas de vidro que iam do teto ao chão
havia ali. Porém, até pela localização, esta sala não
recebia tanta iluminação externa quanto a outra.
Da entrada da sala, já ouvíamos os primeiros baques
contra a porta. Os seguranças tentavam arrombá-la no
chute. Nossa sorte era que a folha de madeira era
grossa, dificultando a ação. Avancei rapidamente pela
sala tentando bolar um plano. Precisava ser rápido.
Urgente.
Eu estava perto de uma das janelas de vidro, quando
notei algo diferente nela. No canto, já na junção com
uma das paredes de concreto, tinha uma maçaneta.
Girei-a, e uma porta de vidro falsa se abriu.
- Micaela, por aqui – sussurrei.
Ao abri-la, senti o bafo quente do ar entrando no recinto.
Ao olhar para fora, vi que tinha um pequeno parapeito
que levava até o outro lado do prédio. O espaço era
pequeno, mas o suficiente para caminhar de lado, com
as costas coladas na parede.
No mesmo momento em que tive a ideia de sair, a porta
de entrada da sala tombou para frente, gerando um
grande estardalhaço. Aos poucos os seguranças foram
entrando, tendo o cuidado para não serem pegos de
surpresa. Diante do breu, eles também enxergavam
quase nada. Não deu tempo de sair da sala e seguir pelo
parapeito. Puxei Micaela pelo braço e, agachados
procurei nos esconder em uma das baias vazias.
- Pedem para a central de energia ligar a luz do escritório
de contabilidade do vigésimo segundo andar – escutei o
segurança mais adiantado ordenar no rádio comunicador.
Fiquei aguardando o movimento dos seguranças. Em
cada corredor das baias, havia um deles resguardando
para que ninguém passasse. Escondi Micaela debaixo da
mesa de uma das baias e fiquei observando o movimento
dos seguranças. O que guardava o corredor entre uma
das baias e a parede de vidro foi avançando. Ao chegar
na última mesa, percebeu a porta de vidro na janela. Ela
ainda estava aberta.
- Atenção! Todos! Aqui! – gritou para os outros
seguranças, que seguiram na direção da porta.
O segurança olhou para fora da porta de vidro, buscando
algum rastro de nós dois no parapeito.
- Alguém sabe onde que esse parapeito vai terminar? –
ele perguntou aos outros seguranças. Todos eles
menearam a cabeça, negativamente. – Pois bem – ele
continuou, criando coragem – Me dêem cobertura. Vou lá.
E então, cuidadosamente, ele saiu pela porta de vidro.
Apoiou o pé direito no estreito parapeito. Sem olhar para
baixo, apoiou o esquerdo. As mãos estavam grudadas na
parede. Eles realmente acreditavam que tínhamos fugido
por ali. Que imbecis! Gostaria de ficar ali e ver a cara
dele ao saber que arriscou a própria vida por nada.
Com as atenções voltadas ao parapeito, as coisas
ficaram mais fáceis para mim e Micaela. Ainda
agachados, fomos seguindo em direção a entrada.
Micaela foi na minha frente. Com extrema habilidade, foi
se escondendo pelas sombras, até alcançar a passagem
aberta pela porta estourada.
Eu estava mais para trás. Faltava mais uma baia para
chegar à saída, quando as luzes da sala foram ligadas.
Parei por um momento, sendo pego de surpresa pela
iluminação. Os seguranças, também surpresos, olharam
para trás. Foi quando um deles me viu.
- Ali! Vamos!
Saí correndo em direção à porta, com os seguranças em
meu encalço. Alcancei o corredor e vi Micaela indo em
direção às escadarias. Segui-a. Dois tiros foram
disparados contra mim, mas sem sucesso. Cheguei até a
porta corta-fogo, onde a abri com violência para que,
finalmente, pudesse avançar para as escadas.
Assim que atravessei a porta, levei a mão até a barriga.
A Fome voltava a se manifestar. Gritei por Micaela.
- Aqui embaixo! – ela me respondeu.
Instintivamente, fui descendo de cinco em cinco degraus,
pulando-os o mais rápido que podia. Antes que Micaela
notasse, eu já a tinha alcançado. Estávamos entre o
vigésimo e o décimo nono andar, quando ouvimos a
porta corta-fogo do vigésimo segundo andar bater na
parede, com a força que um dos seguranças aplicou para
abri-la. Olhei para cima, e vi pelo vão das escadas que
eles espiavam constantemente para baixo, situando
nossa localização.
- Se quisermos sair vivos, é melhor sermos mais velozes
– eu retruquei.
- Só mais quatro andares – ela disse, como se
conhecesse alguma coisa que eu não sabia.
Descemos os demais andares com uma velocidade nos
pés impressionante. A Fome doía ainda mais dentro de
mim, mas o instinto da sobrevivência falava mais alto
naquele momento. A cada segundo que deixava de me
alimentar, a dor aumentava. Já tinha me perguntado o
que aconteceria quando a Fome fosse levada ao
extremo, mas como todas as missões anteriores foram
sempre bem-sucedidas, era impossível de saber. Ao que
tudo indicava, aquela noite eu teria a minha resposta.
Ao chegar no décimo quinto andar, Micaela parou na
frente da porta corta-fogo. Ela me pareceu um pouco em
dúvida se era realmente o andar certo. Mas eu sei que
era. Meus ouvidos captavam vozes de várias pessoas
vindo dali, além de música tocando em alto volume.
Olhamos para cima e vimos os seguranças cada vez mais
próximos. Novas rajadas de tiros. Não tínhamos tempo
para titubear. Entramos.
Ao passarmos pela porta, minha primeira reação foi
colocar as mãos nas orelhas, tampando-as. A batida do
som veio como um estrondo aos meus ouvidos, cada vez
mais aguçados.
- Está escuro aqui! – berrou Micaela. Para os meus olhos,
o salão lotado de gente, dançando, paquerando, ou
apenas conversando, estavam extremamente nítidos.
Estávamos em uma área do hotel que era destinada para
baladas. O barulho era ensurdecedor para mim. Já não
bastasse isso, os seguranças tinham acabado de entrar
no salão.
Micaela me pegou pela mão e foi me conduzindo no meio
da multidão. Entre um esbarrão e outro, acabamos nos
misturando no meio das pessoas. Olhávamos para trás e
víamos os seguranças ficando na ponta dos pés, nos
procurando.
Fomos avançando até o outro lado do salão. Durante o
trajeto, a Fome apertava ainda mais. A dor aumentava, e
precisava me alimentar. Havia muitas pessoas ali, mas o
que menos precisávamos naquele momento era chamar
a atenção.
Ao chegarmos no fim do salão, avistamos uma das
saídas. Obviamente já estava sendo vigiada por outros
seguranças. Os que nos perseguiam já havia informado a
Central de Segurança, que deve ter acionado mais
homens para o local. Procuramos as outras saídas, mas
todas estavam sendo vigiadas. Mais uma vez estávamos
encurralados.
- Pelo visto eles já estão sabendo de nós. – Micaela soltou
um leve sorriso amarelo. Ela olhou para os lados,
pensativa, onde parou o olhar em um lado
completamente diferente das saídas - Venha comigo!
Micaela foi me empurrando até um canto do salão
redondo. Ao fazer isso, ela me parou perto de duas
portas. Pelo desenho cravado nas placas que estavam
pregadas nelas, eram os banheiros.
- Precisamos de um disfarce. – ela disse, enquanto olhava
para os lados – Geralmente sempre tem um idiota que,
de tão bêbado, acaba dormindo sentado na privada. Veja
se você consegue alguma coisa. Quando terminar, me
espere aqui. – ela se despediu de mim, me beijando, se
dirigindo ao banheiro feminino.
Ao contrário do que eu estava acostumado a ver nos
botecos que frequentava, aquele banheiro era, de certa
maneira, bem grande. Havia diversas privadas e bidês ao
longo do extenso recinto, e as pias eram personalizadas,
com torneiras de água fria e quente. Com isso, não havia
as tradicionais filas da hora do aperto, aquelas que
quando você mais precisava mijar, sempre tinha gente
na sua frente, esperando o outro sair para usar.
Não me importei com a presença de quem estava ali e
aos poucos fui observando por baixo das portas quem
poderia servir como vítima. Havia alguns sentados no
troninho, mas pelo cheiro, não pareciam estar dormindo.
Pelo visto, teria que resolver aquilo do meu jeito.
Aguardei uns três, quatro caras saírem dos boxes das
privadas, até que finalmente consegui achar um que
pudesse me ajudar no disfarce. Ele estava no último,
isolado das demais pessoas. Tinha praticamente a
mesma estatura que eu. Trajava bermudão preto e
camisa regata vermelha. Um boné com o logotipo de um
time de beisebol escondia o pouco do cabelo raspado
que tinha. A vítima ideal.
Fiz menção em usar a mesma privada que ele usou,
enquanto ele foi lavar as mãos. Ele tirou o boné,
colocando-o na pia, e com as mãos ajeitava os cabelos
que não tinha. Era um idiota. Perfeito.
- Ô campeão! – eu o chamei – Foi você que usou esta
privada por último?
Ele olhou pra mim, desconfiado.
- Sim, fui eu mesmo.
- Você viu isso aqui cara? Tem sangue pra caramba! – eu
disse, apontando para a privada.
Vi que isso o deixou preocupado. Rapidamente ele botou
o boné na cabeça e veio checar a privada. Entrou de
novo no box, ficando de frente da privada.
- Onde você tá vendo sang...
Acertei um belo soco de direita na cara dele. O rapaz caiu
sentado na privada, já inconsciente. Hora de trocar de
roupa.

***

Aquela mudança de visual veio a calhar muito bem. O


boné me deixava escondido diante de câmeras de
vigilância, enquanto a camisa regatas e o bermudão
expunham minhas tatuagens, coisas que a vestimenta
antiga escondia. Só lamento pelo moleque que me
emprestou as roupas e sua alma também, para aliviar
um pouco a minha Fome.
Assim que saí do banheiro, vi Micaela também vestida de
outra maneira. A saia curta e a camisa decotada deram
lugares a um vestido azul, que ia até a altura dos joelhos.
Os cabelos que antes estavam soltos, ganharam um
coque, o qual expunha a tatuagem de um ideograma
japonês na nuca nua de Micaela.
Ironicamente, o ideograma significava Deus.
- Demorou, hein?! – ela reclamou, entregando-me os
documentos e celular. Automaticamente, concluí que era
para eu levar, já que seu vestido não possuía nenhum
bolso. Coloquei os objetos no bolso direito da minha
bermuda.
- Tive que escolher qual peça combinava comigo. –
brinquei, enquanto voltávamos na multidão.
Micaela gesticulou, pedindo para que fossemos até à
saída. Obedeci. Posicionados nas passagens, os
seguranças ainda aguardavam pela nossa passagem.
- Eles estão nos olhando – eu disse. Por mais que
tentasse disfarçar, minha tensão era notória.
- Procure relaxar. Lembre-se que eles só nos conhecem
pelas roupas. E temos uma vantagem – ela apontou para
as minhas tatuagens – O assassino que eles procuram
não tem tatuagem.
Continuamos a peregrinação até a saída. Saímos do meio
da multidão e já estávamos no campo de visão dos dois
seguranças que guardavam a saída que queríamos
passar. Eles olhavam para nós.
- Me abrace – pediu Micaela.
Abracei-a. Chegamos a poucos metros dos seguranças.
Eles nos fitavam. A tensão aumentava. Micaela reclamou
que eu a segurava forte demais na cintura. Pedi
desculpa.
Estávamos perto da saída. Estávamos indo pelo mesmo
acesso em que dois casais de jovens estavam saindo.
Os seguranças seguiram com os olhos o primeiro casal
passar.
Nada.
O segundo casal passou.
Nada também.
Chegou a nossa vez. Com o boné escondendo parte da
minha cabeça, fechei os olhos. Precisávamos contar com
muita ingenuidade por parte dos nossos inimigos para
sair ilesos.
Ao chegar na saída, também fomos perseguidos com o
olhar dos seguranças.
Alguns passos adiante, o alívio.
Estávamos seguindo para o elevador.
Finalmente, tínhamos despistado a segurança.
Pegamos o elevador totalmente despercebidos.
Descemos até a sala VIP, a mesma onde encontrei com
Celsio pela primeira vez. Contornamos a luz fraca do
local, até chegar na guarita de entrada, onde estava o
Mensageiro horas antes.
Porém, para a minha surpresa, o enviado do Diabo não
estava mais por ali. Isso era mal. Muito mal. Acima da
guarita, havia o envelope com o selo demoníaco.
O mesmo que ele havia deixado nesta noite no hotel.
O dossiê que esqueci de abrir.
Rapidamente o peguei e o levei comigo. Eu e Micaela
apertamos o passo, rumo à saída. Dois minutos depois, a
grande avenida se estendia no nosso caminho. Saímos
do Deuses do Olimpo sem ninguém no nosso encalço.

***

Naquela noite conseguimos escapar da primeira


tentativa de morte que nós sofremos. Agora
precisávamos escapar da segunda. E esta seria muito,
muito pior. A Fome voltava a me causar dores. Sem
matar Micaela, não havia outro jeito de saciá-la. Eu teria
que levar essa situação ao extremo. O que aconteceria
comigo? Eu não sei. Morreria? Perderia o juízo?
Definharia? Difícil dizer.
Sem contar que o Mensageiro estaria no meu encalço,
junto com o seu novo Devorador de Almas. E eu não
tinha dúvidas o quanto ele será impiedoso por eu ter
poupado a alma de Micaela.
CAPÍTULO 12

- Muito bem, agora você vai me dizer que história é essa


de ter feito pacto com o Demônio! – Eu a inquiri, furioso,
com as duas mãos segurando os ombros de Micaela.
Inconscientemente a tinha prensado entre mim e um
tronco de árvore, localizado em um grande e velho
parque da cidade.
Há uma hora, quando saímos do Deuses do Olimpo,
propus que voltássemos ao hotel em que eu estava
hospedado. Estávamos do outro lado da rua onde ficava
a fachada do meu hotel, quando espiei a sacada do meu
quarto. Lá no décimo primeiro andar, embora bem longe,
notei que as luzes estavam ligadas. Coisa que não
deveria, já que tinha a absoluta certeza de que eu a
tinha apagado. Mais do que a iluminação, o que mais me
chamou a atenção foi uma silhueta debruçada na
sacada. Por estar contra a luz, era difícil de identificar
exatamente quem era, mas os pares de olhos brilhantes
de Cérberus não deixava dúvida. O Mensageiro, junto
com o seu inseparável cetro com as cabeças do guardião
do inferno, estava me esperando para acabar com essa
história. Foi então que, invés de subir e encará-lo,
resolvemos fugir, mesmo sabendo que não haveria lugar
seguro enquanto aquela situação não fosse encerrada.
- Será que pode me largar?! Está me machucando. – ela
reclamou.
Cedi ao pedido. Estava indignado. Logo agora, quando
finalmente consigo encontrá-la, descubro que tenho que
matá-la para sobreviver. Botei as mãos nas minhas
têmporas, tentando digerir essa ideia. Além da dor de
cabeça, a Fome voltou a aumentar as dores.
- Você não tem noção do que fez, não é? – gritei com ela.
- E você? Você tem noção do que aconteceu comigo
depois que você foi embora?! – ela igualou o tom de voz.
Também estava revoltada.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Naquele
momento ouvia-se apenas o som dos grilos,
posteriormente acompanhado por um começo de choro
dela. Eu a compreendia. Ela não sabia que eu tinha sido
assassinado. Na cabeça dela, larguei tudo e tinha se
mandado. Não éramos nada além de dois estranhos que
dividia o mesmo quarto e a mesma cama. Ainda assim
havia espaço para sentimentalismo. Para um cara que
sempre se acostumou a ser sozinho, como eu, aquela
situação sempre foi muito estranha.
Calmamente fui em direção de Micaela. Levei uma das
mãos em seus cabelos, mas ela refutou, dando um tapa
no meu braço. Afastei-me e ela, cansada, acabou
deslizando com as costas pelo tronco em que se apoiava,
sentando no pé da árvore. Ela me encarava com os olhos
marejados, como se esperasse uma resposta. Aspirei o
ar, enchendo os pulmões, e depois o devolvi com toda a
força.
- Sei que vai parecer loucura ou coisa da minha cabeça,
mas depois que eu lhe contar, você vai ver que eu não
sumi, mas sim sumiram comigo. – eu disse, começando o
monólogo.
Iniciei a história com o trabalho realizado para Dionísio.
Fui detalhando o máximo que podia, até chegar ao trato
com o Diabo. A conversa foi longa, e ela ainda me
encarava de forma incrédula, como se tentasse pegar
alguma contradição em tudo o que eu disse.
- Não está acreditando, não é? Você fez um pacto com o
Demônio e ainda assim não acredita que o infeliz me
escolheu para eliminar as almas imprestáveis para ele?!
- Eu... – ela suspirou – ...só estou um pouco confusa, tá
legal?
- Esta é uma prova de tudo o que eu te disse agora –
justifiquei, entregando-a o envelope com o selo
demoníaco estampado na frente. Micaela abriu, retirando
o material que havia dentro dele. A cada virada de
página, mais seus músculos se petrificavam. Fotos,
textos, dicas. Micaela não tinha como refutar que aquele
dossiê sobre ela condizia com tudo que expliquei.
- Esse tal Mensageiro sabe trabalhar... – ela disse,
debochadamente. Percebi que ela começava a acreditar
em toda esta história.
- Sim. Por isso mesmo que tenho certeza de que estamos
em perigo. – Parei por um momento, sentando ao lado
dela. – E você? Como foi o lance do pacto?
Micaela, desta vez mais calma, recostou sua cabeça no
meu ombro.
- Bom, desde a noite que você foi embora estive te
esperando. Como você tinha deixado suas coisas, pensei
que seria algum trabalho que levasse mais tempo. Então
se passou dois, cinco, dez dias. Os dias se tornaram
meses. Eu te procurava por todo o canto, mas ninguém
sabia de nada. O fato de você fazer serviços sujos me
atrapalhava na sua busca, já que não podia contar com a
polícia. – ela parou um momento pra retomar o fôlego –
Você sabe, nunca fui de rezar, mas nestes meses que
você esteve ausente eu ia a várias igrejas. Acendia velas.
Em vão. Você nunca apareceu.
- Então – ela continuou – uma das dançarinas do Hot Hell
que mexia com magia negra me convidou para ir até o
local onde ela fazia os rituais. A princípio rejeitei. Mas
depois de tanta insistência dela, fui assistir a um dos
rituais. – ela suspirou, olhando para cima – Eu estava
sem alternativas. Já não sabia mais onde te procurar.
- E como foi?
- Ah, era bizarro. Animais mortos. Sangue. O sacrifício
sendo a peça-chave para que o feitiço funcionasse. Sei
que não sou nenhuma santa, mas aguentar aquilo era de
revirar o estômago de qualquer pessoa. – ela explicou,
suspirando novamente – Alguns dias depois a procurei.
Resolvi que iria fazer o ritual. – ela parou, como se
estivesse envergonhada – Sentia a sua falta.
Nunca fui sentimentalista. Conseguia entender, mas não
conseguia ser carinhoso.
- E qual foi o trato feito?
Ela levantou a cabeça, me encarando novamente.
- Você sabe... minha alma pelo seu retorno. Para mim,
você tinha apenas desaparecido. Se você morreu e
ressuscitou depois, como está falando, como iria saber?!
Tudo fazia sentido agora. Queria entender o porquê eu fui
escolhido para fazer esse trabalho. Eles usaram o ritual
de Micaela como pretexto para me ressuscitar e me
transformar no monstro que sou!
- Durante bastante tempo, fiquei vagando pela nossa
cidade, de emprego em emprego, até achar essa
oportunidade de trabalhar fora do País. Só não esperava
em cair nas lábias desse canalha e ter que me prostituir.
Eu a abracei, como se a quisesse consolá-la. Nós
passamos por situações muito difíceis em nossas vidas.
Talvez fosse por isso que nos entendíamos tão bem.
De repente, algo chacoalhou no bolso da minha
bermuda. Desfizemos o abraço e ela colocou a mão
direita no meu bolso direito. Ao retirá-la, o celular dela
veio junto. Ela estranhou. No visor aparecia a menção
número privado.
- Alô? – ela atendeu.
Micaela ficou por alguns segundos em silêncio. Ouvia
atentamente a voz que vinha do outro lado da linha.
Ouvia e olhava para mim com estranheza.
- Para você – ela me estendeu o aparelho.
Para mim? Fiquei surpreso, mas peguei o telefone.
- Mesmo com todas as advertências, você quebrou o
pacto. – o Mensageiro me dizia do outro lado da linha – O
que é uma pena. Dentre todos os devoradores, você foi o
mais legal.
Eu ouvia com atenção, em silêncio.
- Carlos, embora você tenha deixado alguns rastros no
hotel-cassino, o que agrava o teu lado é o fato de possuir
a alma que queremos. E pior: não quer eliminá-la.
- Pode esquecer. Isso não vai acontecer. – eu falei com
convicção. Meu estômago voltou a doer com mais força.
- Carlos, Carlos... Não seja teimoso. Ande! Você ainda
tem condições de reverter essa situação. Provavelmente
a sua Fome está intensa. Deve estar sentindo muitas
dores. Acabe com esse sofrimento! Tanto para você,
quanto para ela!
- Como assim “para ela”?
O Mensageiro deu uma gargalhada do outro lado.
- Devo lembrá-lo que, ao quebrar o seu pacto, um novo
devorador irá substitui-lo. Assim como você fez quando
se tornou um, o novo devorador irá te caçar até
conseguir devorar a sua alma, fazendo-o o único
devorador da face da Terra. E advinha qual será a
segunda alma que ele irá se alimentar?
Minha expressão assustada parou no olhar de Micaela,
que não escutava o Mensageiro. Ela seria a próxima
vítima do novo Devorador. De uma forma ou de outra, ela
seria eliminada. O Mensageiro voltou a chamar o meu
nome no celular, mas eu fiquei mudo. Queria falar
alguma coisa. Mandá-lo à merda. Qualquer coisa. Mas
minha boca não me obedecia.
- Hunf... esperava mais de você – enfim disse o
Mensageiro – Bom, já que você não quer finalizar o nosso
serviço, esteja preparado para conhecer o seu sucessor
dentro de algumas horas. – foi assim que ele encerrou a
ligação.
Micaela olhava para mim, buscando entender o que
estava passando. Levantei-me, ajudando ela a se
levantar. Sem soltar da mão dela, comecei a correr.
Instintivamente ela também começou.
- Dá pra me explicar o que está acontecendo?
- Estamos correndo um grande perigo! Precisamos nos
abrigar. E rápido! – eu a respondi, sem olhar para trás. O
problema era: aonde?
- Aqui por perto? Dentro deste parque só há um lugar
para buscar abrigo a esta hora da madrugada – ela
retrucou.
- Então é pra lá que vamos! – disse, deixando que ela me
guiasse novamente.
CAPÍTULO 13

A madrugada já estava na metade de seu curso quando


ainda caminhávamos por entre as plantas do parque.
Micaela preferia ir pelo asfalto que era usado geralmente
para caminhada, mas achei mais prudente seguirmos por
entre as plantas. Embora, de qualquer maneira, sabia
que o Mensageiro sabia onde eu estava. Ele sempre
sabia onde eu estava.
Avançávamos por entre as grandes árvores e arbustos do
local. Cruzamos por diversas vezes com pequenos
roedores que aproveitavam a noite para buscar
alimentos. Lá em cima, a lua brilhava intensamente,
chamando a atenção devido a sua beleza. A noite estava
calma e linda. Um excelente momento para ficar em paz
com quem você gosta. Mas isso não parecia ser o meu
destino e de Micaela.
O parque, embora fosse chamado assim, era
praticamente um bosque. Não o conhecia, mas pelo
tempo em que estávamos atravessando-o, podia-se
notar que era grande demais. Ainda assim, ficava no
meio urbano, sobrevivendo à poluição em seus diversos
sentidos.
Já tínhamos percorrido boa parte do parque, quando
voltei a sentir dores mais fortes no abdômen. As dores
desta vez eram mais intensas, o que me fez cair de
joelhos no chão. Micaela estancou a corrida, girando o
seu corpo para me observar. Ela veio se aproximando de
mim, mas sinalizei para que ficasse onde estava. A
minha cabeça começava a girar, e pela primeira vez
senti que meus olhos queriam se fechar, e minhas pernas
não queriam levantar o resto do meu corpo. Meus braços
não queriam obedecer aos comandos do meu cérebro.
Era como se minha mente estivesse se afundando em
meio a uma escuridão.
Minha consciência falhava, como se meu corpo quisesse
que eu desmaiasse. Isso era um sinal claro de que a
Fome estava se tornando mais aguda e era preocupante.
Muito preocupante. Não era preciso ser nenhum gênio
para chegar a conclusão que tive. Os devoradores de
Almas não dominam o instinto de se alimentar quando
ele se manifesta com mais força. Ficam fora de controle,
sem querer saber se a vítima é parente ou alguém
conhecida. Lembram muito a necessidade dos vampiros
e zumbis, também crias do Demônio.
Com a força da mente, busquei trazer o equilíbrio para o
corpo. Lutando contra as dores e a fraqueza, fui
tranquilizando o meu espírito, tentando leva-lo para
longe daquela situação.
Deu certo.
Aos poucos, as dores foram diminuindo e minha
consciência foi voltando ao normal. Meus músculos
voltaram a responder meus estímulos, ainda com certa
deficiência. Voltei a olhar para Micaela, que me
observava com preocupação, ainda parada. Apoiei o
joelho no chão, fazendo força com a outra perna para
levantar o tronco. Com uma das mãos na altura do
estômago, puxei o peito para cima. Cambaleei um pouco,
mas ainda assim me mantive de pé.
- Vamos, não tenho muito tempo – eu disse.
Micaela veio ao meu encontro. Segurou o braço livre e
passou por sobre seus ombros, apoiando-me em seu
corpo. Estávamos prestes a caminhar novamente,
quando um vento soprou atrás de nós. Um vento gelado,
muito incomum para uma noite de verão. O ar estava se
impregnando com cheiro de enxofre.
- Você está sentindo isso? – perguntei a Micaela.
- Não. O que foi?
- Cheiro de enxofre.
- É dele? O tal Mensageiro está vindo?
Apenas concordei com a cabeça. Acho que conseguia
sentir o cheiro devido a hipersensibilidade dos meus
sentidos.
- Seja lá onde você nos levar, terá que ser rápida – senti
novamente outra pontada no corpo – Esteja preparada
para, se houver necessidade, correr sozinha.
- Isso não vai acontecer – ela me garantiu, ajudando-me
a correr, mesmo sem equilíbrio.

***

Quinze minutos após as complicações da Fome no meio


do parque, finalmente chegamos em uma área aberta. O
fedor de enxofre impregnava ainda mais o meu nariz. Ele
se aproximava. As dores eram mais agudas, e eu já não
estava aguentando. Estava vendo a hora que meu
instinto cederia à agonia extrema e que seria uma
questão de tempo até eu devorar a alma de Micaela.
Levantei um pouco a cabeça enquanto Micaela ainda me
arrastava por sobre os seus pequenos ombros. Pelo que
pude observar, ainda um pouco distante de nós, algo
feito de pedras e vitrais, contendo no alto duas torres,
surgia na nossa frente. Não conhecia muito sobre
arquitetura, mas podia chutar que era a lateral de uma
igreja católica gótica.
- Aqui é o refúgio para os meus pecados – Micaela
sussurrava, enquanto ofegava pelo cansaço de me
carregar – Toda manhã venho pagar penitência aqui, para
me eximir dos programas que faço durante a noite. Se
esse cara que está te perseguindo realmente é do
inferno, bom, acho que uma igreja seria o último lugar
que ele vai querer pisar.
Avançamos pela área aberta até chegar em um muro
baixo, com um gradil de ferro de um metro e meio sobre
ela. Fomos contornando-o, até encontrar o portão de
ferro que selava o interior do terreno cercado pelo muro.
Micaela me apoiou com cuidado no chão e começou a
mexer na tranca enferrujada da porta. Ela estava com
dificuldades. Depois de muito esforço, finalmente a trava
cedeu e ela abriu o portão. Ela voltou a me apoiar em
seus ombros e seguimos em frente.
Enquanto caminhávamos rumo à igreja, Meus olhos
fixaram nas peças cravadas na terra localizada dentro do
espaço cercado pelo muro. Pedras angulares exibiam
alguns nomes e algumas datas. Não conseguia distinguir
o que era, até que o cheiro de enxofre deu lugar a outro
muito mais forte. Um mau cheiro terrível. Era odor de
carne. Carne podre.
Estávamos passando por um cemitério.
Cruzado todas as lápides do corredor principal,
avançamos ao acesso que levava direto ao jardim da
igreja. De perto, ela parecia mais imponente. Mais
austera.
- Aqui estaremos a salvos. – Micaela sussurrou.
Sem pedir licença, ela foi subindo comigo o pequeno
lance de escadas, até a entrada em forma ogival. Uma
grande porta de madeira, aparentemente pesada
também, impedia a nossa passagem. Ao lado da batente
da porta, um pequeno dispositivo vermelho estava
embutido, fincado na parede, esperando que Micaela o
pressionasse. Sem hesitar, ela apertou. Uma, duas, três,
quatro, cinco demoradas vezes, até se ouvir algum
barulho vindo do interior da igreja.
Aos poucos as trancas internas que selavam a porta
começaram a ranger. Uma das folhas de madeira se
abriu, deixando que fugisse a luz que vinha dos lustres
acesos do lado de dentro. Uma figura baixa, encurvada,
de pijamas sob um roupão, nos olhava por trás dos
óculos redondos que estavam apoiados sobre o seu nariz.
Os poucos cabelos brancos e os sulcos no rosto lhe
davam uma aparência velha, de idade avançada.
- A senhora não acha que está um pouco cedo demais
para fazer a sua penitência? Pelo amor de Deus, são
quatro da manhã! – o velho padre resmungou.
- Desculpe padre, mas não temos aonde ir. A sua igreja é
o único lugar seguro para nós. Por favor deixe-nos ficar,
por algumas horas.
- E o que te faz acreditar que eu lhe darei abrigo? Esta é
uma casa de Deus, senhorita! Não um albergue!
Neste momento, meu abdômen voltou a arder de forma
alucinante. Minhas pernas desarmaram, me levando ao
chão, junto com Micaela.
A dor era muito intensa. Ela me fazia contorcer. Fazia-me
gritar. Minha cabeça girava com mais força. Estava
perdendo os sentidos novamente. Tentei mais uma vez
encontrar um ponto de equilíbrio para o meu espírito,
mas estava difícil de concentrar com a Fome agindo de
forma tão agressiva. Até então nunca tinha sentido uma
dor como aquela.
Tentei abrir os olhos novamente, mas as pálpebras
estavam pesadas demais. Meus ouvidos foram perdendo
gradativamente os sons ao redor. Meus músculos foram
relaxando involuntariamente, deixando-me esparramado
rente a abertura da porta da igreja. Antes de desmaiar
por completo, ainda consegui ouvir:
- Tr-traga este homem aqui para dentro! Me ajude!
Rápido! – o padre disse, finalmente vendo que o negócio
era grave.
Depois disso, a escuridão mais uma vez me abraçou, e
toda a minha consciência se foi.
CAPÍTULO 14

Estava ficando assustada com toda aquela situação.


Carlos não estava nada bem. Tinha acabado de perder a
consciência e precisava de socorro, antes que as coisas
piorassem para o nosso lado.
- Tr-traga este homem aqui para dentro! Me ajude!
Rápido! – clamou o padre Augusto.
Eu o conhecia e ele me conhecia. Quase todas as vezes
que eu trabalhava nas ruas, quando a noite virava dia,
estava lá eu aguardando a abertura da igreja para pagar
minhas penitências. Orar pelos meus pecados. Era uma
forma de tentar, se não purificar o meu espírito, ao
menos amenizar os erros que estou cometendo desde
quando entrei neste mundo. Ele sabia sobre a vida que
eu estava levando ali. Até porque eu não era a única. Era
o único padre da cidade que aceitava ouvir os nossos
desesperos em tentar conseguir uma vida mais digna
naquele universo de crimes.
Levantei do chão e procurei ajudar o velho padre a levar
Carlos. O religioso, já encurvado, segurava os braços
dele enquanto eu me posicionava para pegar as pernas.
Tentamos juntos levantar o corpo desfalecido, mas Carlos
era muito mais pesado do que imaginávamos.
- Vem cá, senhorita – pediu Augusto, me dando uma das
mãos de Carlos para eu segurar – Teremos que arrastá-lo.
Vamos!
A muito custo conseguimos levar Carlos até o lado de
dentro da igreja. Arrastamo-lo a alguns passos além da
porta. O padre, já sem fôlego, largou a mão dele e
rapidamente voltou para a entrada. Deu uma olhada
para fora, tentando localizar algum invasor. Ninguém.
Havia apenas o vento que soprava mais forte e
chacoalhava as copas das árvores. O padre então fechou
a porta de madeira.
- Pois bem, vou até os meus aposentos e ligarei para a
emergência para resgatá-lo e...
- Não! – gritei.
O padre se assustou com a minha reação, ficando
estático. De uma forma mais serena, aproximei dele e
juntei as duas mãos enrugadas dele com as minhas. – Por
favor, não iremos envolver mais ninguém nesta história.
- Afinal de contas, senhorita, pode me dizer o que
aconteceu?! – bradou mais incisivo o padre, largando as
minhas mãos e indo em direção de Carlos, encostando a
mão no peito dele, buscando algum sinal vital.
- Este é o homem de quem lhe falei padre. Aquele que
achei que estivesse sumido da minha vida.
- Então você o achou, embora não esteja em boas
condições.
- Na verdade ele me achou. – completei, sem parar de
olhar para aquele rosto que eu tanto admirava. – ele veio
me resgatar do inferno de Don Celsio.
- Bom, então fique aqui com ele, enquanto eu vejo se
tenho alguma coisa em que possamos colocá-lo para
levá-lo até a uma cama.
- Obrigada, padre.
Enquanto Augusto se distanciava lentamente de nós, fui
em direção à porta. Sei que não era prudente, mas
precisava saber se aquele que nos seguia continuava em
nosso encalço.
Destravei as trancas que selava o interior da igreja. A
maçaneta, aparentemente datada de muito antes
mesmo de eu nascer, me auxiliou a abrir a pesada
madeira. A porta cedeu um pouco, o suficiente para me
permitir uma visão da área externa. O clima ainda estava
quente, mas com o decorrer da madrugada uma brisa
mais fresca invadia o corredor que se estende até o altar.
Mesmo com o calor, minha espinha gelava só de pensar
que aquele vento trazia junto com ele o mensageiro da
morte.
Olhei para fora. Lá, apenas as árvores dançavam com a
passagem do vento. O céu estava negro e estrelado, com
a lua se destacando entre os diversos pontos brancos. Os
pássaros noturnos grunhiam, naturalmente. Ainda assim,
pareciam que estavam antevendo algo ruim. Sentia-me
como num filme de terror.
Foi então que eu comecei a sentir. Ainda fraco, o odor de
enxofre invadia o meu nariz. Ele estava por perto. O
Mensageiro havia nos encontrado. Aos poucos, o cheiro
começou a ficar mais forte. Olhei novamente para fora.
Nada. Nenhum movimento. Estava muito estranho isso.
- Senhorita! Aqui! – disse o padre, parando do lado do
corpo desfalecido de Carlos. Junto deles, um carrinho de
mão me aguardava para levar Carlos até os aposentos da
igreja.
- Estamos com obras no fundo da igreja. Foi o que
consegui. – justificou o padre.
- Excelente. Nos ajudará bastante. – eu sorri, como forma
de agradecimento.
Com um certo esforço, o religioso me ajudou a levantar
Carlos e colocá-lo dentro do carrinho de mão. Enquanto
colocávamos, Augusto não deixou de mencionar o
estranho odor que invadia a igreja.
- Nossa, você não está sentindo um cheiro de queimado?
De fato estava mais forte que antes. Será que o nosso
inimigo já estaria dentro da igreja? Mesmo sendo do
inferno, ainda assim ele conseguiu entrar?
Foi então que me dei conta do erro que cometi ao vir até
aqui. Se toda a história que Carlos me contou for
verdade, ele também seria um enviado do inferno.
Rapidamente me aproximei dele. Carlos continuava
imóvel. Não tinha reparado, mas por entre as fibras da
camisa que Carlos vestia, fios de uma fumaça negra
subiam e evaporavam no ar. Com cuidado fui puxando o
pano, que revelou um conjunto de erupções corroendo a
pele no meio do peito dele. A ferida, já um pouco grande,
sangrava e queimava cada vez mais. A casa de Deus era
letal para seres do inferno. E Carlos, embora fosse um
ser humano, havia voltado justamente das entranhas da
Terra.
- Deus do Céu!! Mas o que é isso?! – Augusto estava
perplexo ao ver a ferida.
- Rápido padre, abra a porta! – gritei, enquanto tomava o
controle do carrinho de mão, com Carlos dentro.
O padre foi correndo em direção a porta, e abriu-a por
completa, enquanto eu, com muita força, empurrava o
carrinho em direção à saída. Carlos não era grande, mas
seu corpo era musculoso. Tudo isso aconteceu em poucos
segundos, mas eu sentia o peso de Carlos influenciar na
força que eu tinha que aplicar. Quando finalmente
ultrapassei a batente, senti a necessidade de fazer um
novo esforço para parar o carrinho. Por pouco ele não
rolou escada abaixo.
O ar entrava e saía muito rápido dos meus pulmões. Eu
estava muito ofegante devido ao cansaço. Meus braços
doíam por causa da força excessiva que fiz. Até poderia
deixar este trabalho para o padre, mas pela idade e o
corpo velho, duvido que ele conseguiria fazer com que o
objeto saísse do lugar.
Apoiei-me no carrinho. Carlos ainda estava desacordado.
Chequei novamente a ferida no peito dele. A fumaça
havia dissipado e a corrosão da ferida havia cessado.
Tranquilizei-me por um momento.
Apenas um breve momento.
Uma voz desconhecida soou no campo aberto, soprado
pelo vento que vinha da direção das árvores que
contornavam a igreja.
Uma voz rouca, porém determinada.
Sussurrante, mas ao mesmo tempo ameaçadora.
Enquanto procurava descansar meus braços, eu vi a
silhueta de um homem de estatura mediana. Estava
vestindo um terno elegantemente branco, com uma
gravata vermelha perfeitamente ajustava em volta do
pescoço. Era aparentemente inofensivo, mas ainda assim
sabia que coisa boa não era. A não ser se houvesse
algum casamento naquela igreja agora, quase às cinco
da madrugada, aquele cidadão, vestido daquele jeito, e
portando também aquele objeto de prata, cuja forma
lembrava um pequeno bastão, enfeitado na ponta com
três cabeças de cães raivosos, não estava ali para propor
ajuda.
- Olha só!!! Finalmente os encontrei – ele disse,
caminhando calmamente na nossa direção.
Eu estava paralisada. Minhas pernas não me obedeciam.
Queria fugir, mas não conseguia. Estava com muito
medo sim, mas talvez fosse a minha curiosidade quem
estava me mantendo ali, de pé, apenas observando o
estranho homem.
- Você o conhece? – perguntou padre Augusto. Sem
desviar o olhar, respondi.
- Não pessoalmente. Mas Carlos me contou sobre ele.
Não se deixe enganar pela aparência de bom homem
dele, padre. Estamos diante do mensageiro do Demônio.
O religioso gelou. Levava a mão direita à testa, boca e
peito, fazendo repetidas vezes o sinal da cruz. Havia
tirado um terço no bolso do pijama. Rezava baixinho,
sem piscar. Quanto a mim, não sabia o que fazer.
- Sabe jovem Micaela – ele articulava cada palavra com
extrema tranquilidade – Ainda estou tentando entender a
sua existência. Menina da vida, das ruas, da noite. Vida
difícil, embora tenha sido tudo isso que a manteve viva.
Compactuou com o meu senhor, trocando a sua alma
pela volta do camarada ali. – apontou para o carrinho – E
ainda assim permanece com a educação religiosa,
rezando, buscando redenção com o Outro... Por acaso
não tem vergonha do que faz?
Fiquei em silêncio. Sabia que era um jogo psicológico.
Todos os demônios faziam isso para que caiamos nas
arapucas armadas por eles. Sei que ele já devia ter sido
instruído para me abalar. Sei que ele sabia da vida que
tive. Não tive escolhas, ao contrário do que ele estava
sugerindo. Não me importava o fato do que podia
parecer para os outros. Queria falar muitas coisas na
cara deste desgraçado, mas precisava manter o foco.
Não sabia até quando eu teria que fugir dele, mas por
ora eu sabia que precisava que Carlos voltasse a si o
mais rápido para que pudéssemos ter alguma chance de
escapar.
- Fiz aquilo que deveria ter feito. – foi a única coisa que
saiu da minha boca. Palavras que fizeram com que o
homem simplesmente caísse na gargalhada.
- Errado, garota. Você fez tudo o que fez porque é FRACA!
Se Carlos está assim, É POR SUA CULPA! É TÃO FRACA,
QUE NEM O DIABO A QUER POR PERTO!! POBREZINHA!!!
HÁ, HÁ, HÁ!!!
Um nó veio enchendo a minha garganta. De certa forma,
o que ele falava era verdade. Minha vontade de rever
Carlos e as súplicas orações frustradas me fizeram
perder o juízo e apelar para as trevas. Relutei em aceitar
a sugestão de uma amiga, que dizia que era o caminho
mais eficaz para voltar a vê-lo. No desespero, vendi a
minha alma em troca de mais alguns anos de vida com
Carlos. Mesmo não sendo nada um do outro, nós
tínhamos um elo, sem contar que ele foi o único que
estendeu a mão para mim quando mais eu precisei. Só
podia contar com ele. E até admito que não acreditava
nessas coisas de pacto, até reencontrá-lo novamente na
sala de Don Celsio.
Fui uma tola. Irresponsável.
Não medi as consequências no momento do desespero.
Agora vejo o quão mal eu fiz a Carlos. Para que ele
sobreviva, ele tem que se alimentar da minha alma. Por
outro lado, para eu sobreviver, ele terá que lutar contra
esse demônio terrível que ele chama de Fome.
Minhas lágrimas saíram inconscientemente. No rosto do
homem a minha frente, pude ver um sorriso que não
esbanjava simpatia. Muito pelo contrário. Se eu sou
realmente fraca, como ele mesmo me definiu, eu deveria
me render e assim deixar de existir, para que Carlos
pudesse reviver. Seria o justo. Até mesmo vendo o lado
do demônio, que não quer nada mais do que a parte dele
do acordo.
Porém, ainda assim, relutei. Estava decidida em não me
render. Por tudo que Carlos fez no seu retorno ao mundo
dos vivos, não poderia.
A postura do Mensageiro mudou drasticamente para uma
forma mais séria. Estava ameaçador. Parecia que estava
pronto para me atacar.
Redobrei a atenção. Não podia deixar que as coisas
terminassem assim.
- Pois bem, vejo que ainda não entendeu o recado. – ele
esticou o braço para cima, exibindo o cetro de prata. As
três cabeças no topo do objeto exibiam em seus olhos
uma cor rubi intensa, dando mais pavor àquela cena. O
padre Augusto, ao meu lado, conseguiu finalmente
identificar o que significava aquelas cabeças.
- É Cérberus, o cão do inferno – ele me disse.
O homem virou-se na direção das árvores do parque. Os
olhos de Cérberus reluziram mais forte. Não sei explicar
ao certo, mas o objeto parecia que estava mudando o
rumo do vento. As copas das árvores balançavam e
perdiam todas as suas folhas, que desabavam pesadas
na terra negra em volta dos troncos. Por fim, os olhos do
cão do inferno se apagaram, e só fizeram isso quando
nas sombras do parque, na direção do Mensageiro, dois
pontos dourados brilharam, como se respondesse ao
chamado. Lentamente eles foram aumentando de
tamanho assim que se aproximavam das grades do
portão de entrada que levava ao jardim da igreja.
Quando ele cruzou a linha que separava o bosque do
caminho de cimento, pude notar o que realmente eram
os dois pontos que eu tinha visto. A luz dourada saía dos
olhos de um rapaz, que aparentava uns vinte anos de
idade. Vestia calça preta, e um colete preto, exibindo os
largos e musculosos braços. Os cabelos negros e longos
jogados para frente escondia metade do rosto, dando um
ar mais ameaçador. Ele estava um pouco encurvado,
como se estivesse caçando. Parecia não ter noção do que
estava acontecendo, embora seu olhar estivesse fixo em
mim.
- Pois bem, hora de acertar as contas. – o homem de
terno branco disse, enquanto apontava para o rapaz
recém-chegado – Senhorita. Senhor Padre. Apresento-
lhes o mais novo representante do inferno. O sucessor de
Carlos.
Foi então que vi que não havia mais esperanças de sair
viva dali.
O rapaz que agora estava ao lado do Mensageiro era
nada menos do que o mais novo Devorador de Almas.
CAPÍTULO 15

Eu ainda continuava paralisada por toda aquela situação.


O padre Augusto, coitado, ainda tentava entender o que
se passava. Pela experiência como pároco, com certeza
já havia descoberto que aquela gente a nossa frente só
podia pertencer às trevas.
Augusto segurou um dos meus braços. Com pequenos
puxões tentava me arrastar para trás, em direção à
entrada da igreja. Mas ainda assim eu permanecia
imóvel, sem tirar o pé do lado do carrinho de mão. Olhei
para Carlos, que continuava desmaiado. Não podia deixá-
lo ali, à mercê daqueles homens. Não naquela situação.
Rapidamente busquei o guidão do carrinho de mão.
Apliquei uma força maior da que eu podia aplicar, e fui
empurrando-o em direção para o cemitério. Precisava
fugir dali.
Eu sabia que, enquanto eu puxava o carrinho, eu era
observada pelo incrédulo padre, que ainda estava imóvel
na entrada da igreja, e pelo confiante homem de branco
e pelo seu capanga.
Eu já tinha descido a rampa que levava à entrada da
igreja e já me aproximava da entrada do cemitério,
quando um vulto atravessou o jardim da igreja e
encobriu o padre Augusto. Ao ouvir um baque, girei a
cabeça e vi o novo Devorador de Almas segurando velho
padre pelo pescoço. Ele o ergueu do chão e prensou-o
contra a maciça porta de madeira. A posição em que
estavam só me permitia enxergar a mão direita do padre,
ainda segurando o terço. Ainda parei para tentar fazer
alguma coisa. Talvez arremessar algo na cabeça do
homem de colete. Olhei ao redor, mas nada além de
alguns vasos de plástico havia ali.
Não fui rápida o suficiente.
Augusto ainda começou a rezar, posicionando o terço na
frente do devorador. Isso o incomodou por algum
momento, fazendo com que tomasse violentamente o
objeto das mãos do padre. A mão do Devorador começou
a soltar um pouco de fumaça com o contato do terço,
acontecendo o mesmo o que houve com Carlos dentro da
igreja. Ainda virado para o padre, o homem arremessou
com raiva o objeto para trás, onde ficava o jardim. Em
seguida, uma luz dourada forte surgiu entre os dois, e o
padre soltou um grito agonizante.
O Devorador de Almas só o libertou quando a vida já
havia deixado aquele corpo frágil, fazendo-o pender,
ainda suspenso pelas mãos do inimigo. O homem
desfrouxou a mão, deixando o padre desabar imóvel no
chão.
Aos poucos, o Devorador foi girando o corpo, se virando
de frente para mim. Ele estava com as mãos juntas,
como se carregasse algo com muito cuidado. Foi então
que eu vi. A mesma coisa como aconteceu quando flagrei
Carlos com Don Celsio.
Um espectro, semelhante a uma pequena chama branca,
flutuava acima das mãos do Devorador. Sem pestanejar,
ainda olhando para mim, levou a alma do padre até a
boca. Não mastigou. Não havia o que mastigar. Mas
podia-se ver uma ponta de saciedade em sua expressão.
Porém eu sabia. Aquilo não era o suficiente. Sabia que o
alvo da vez era eu, depois que ele eliminasse Carlos. E
eu precisava sair dali o mais rápido possível.
Voltei a empurrar o carrinho de mão. Eu estava aplicando
mais força do que meus braços podiam suportar, e
depois de alguns metros, deixei o carrinho tombar,
fazendo com que Carlos desabasse no chão. Ao longe eu
via tanto o Mensageiro, quanto o novo Devorador de
Almas, caminhando lentamente em nossa direção, como
se estivessem se divertindo com o momento.
Fui até Carlos e tentei puxá-lo novamente para dentro do
carrinho. Mas não adiantava. Eu estava cansada e o
corpo dele não saía do lugar. Como em câmera lenta, os
inimigos chegavam cada vez mais perto de nós. Eu já
não tinha forças para me levantar, ou tentar carregar
Carlos. Havia gasto muita energia desde a nossa fuga do
Deuses do Olimpo. Meus olhos estavam querendo fechar
e minha consciência apagar. Estava prestes a desmaiar
de tanto cansaço. Mas, milagrosamente, algo fez com
que as minhas esperanças não se esvaíssem junto com a
minha consciência.
Como se estivesse em transe, Carlos foi se levantando
lentamente. Em nenhum momento tinha achado que ele
tinha morrido, mas ele despertar assim, do nada, me
animou.
Carlos estava desenrolando o corpo, ficando sobre os
dois pés. Embora estivesse se movimentando, seu rosto
permanecia imóvel. Assim que ficou reto, finalmente ele
abriu os olhos. Eles eram assustadores. Mostravam uma
cor brilhante, mesclando o dourado e o ocre, parecendo
duas joias. Vi quando suas narinas se dilatavam e
contraíam, como se tentasse identificar através do cheiro
tudo que estava próximo a ele.
Observei os inimigos, que haviam parado, vislumbrando
aquele momento. Enquanto o rapaz de coletes olhava
sem entender o que estava acontecendo, o tal
Mensageiro já não exibia o sorriso no canto da boca.
Parecia tenso. Acho que aquilo não estava nos planos
dele.
Lentamente, Carlos balançou a cabeça para os lados,
estalando as articulações. Girou o pescoço, ficando de
frente para mim. Fiquei estática, ainda caída no chão.
Carlos também permanecia imóvel, me encarando, sem
dizer uma só palavra. Fixei meu olhar no dele, e não
conseguia ter vestígios do Carlos que eu havia conhecido
no passado. Os olhos eram vagos, assim como a
expressão fechada que ele estava sustentando em seu
rosto. Ele não estava em si. O Carlos que eu conhecia me
olharia com leveza, mesmo com todos os fantasmas que
nos rondavam. O que eu via ali era um animal que tinha
acabado de acordar de uma hibernação, confuso com o
que estava acontecendo e, principalmente, faminto.
Naquele momento, eu não era a Micaela, a garota que
ele levou tanto tempo para encontrar. Ali, eu era a
principal fonte de alimento para ele saciar o demônio que
ele tinha no estômago.
Instintivamente, Carlos girou o pescoço para o outro
lado, onde o novo Devorador de Almas estava parado.
Ambos se encurvaram. Não sei quanto ao outro rapaz,
mas eu podia ouvir Carlos rosnar baixinho. A cor dos
olhos de ambos se intensificou. Os dois tomaram uma
postura de ataque, posicionando os ombros para frente,
aguardando o outro atacar. Pareciam se estudar,
avaliando qual a melhor hora de agir. Até o Mensageiro
estava mudo, apenas observando. Havia uma tensão
enorme entre todos. Uma luta entre devoradores era
novidade para mim. Talvez não fosse para o Mensageiro,
mas pela postura e a seriedade estampada no rosto, algo
estava deixando-o preocupado.
O novo Devorador deu o pontapé inicial à luta. Com uma
velocidade incrível, veio correndo contra Carlos. Ele
tentou com uma das mãos alcançar o pescoço dele, mas
Carlos foi mais rápido e, num movimento lateral, de
dentro para fora, conseguiu com um dos braços afastar o
inimigo. O outro Devorador de Almas voou alguns
metros, caindo em cima de uma das lápides do
cemitério, esfarelando-a em pequenas pedras.
Rapidamente ele se levantou, com raiva. Voltei a
observar Carlos, que havia voltado a caminhar na minha
direção. Ele não mostrava nenhuma expressão de
afetividade. Eu só conseguia ver um corpo cheio de
vontade de saciar aquela maldita Fome. Eu ainda estava
no chão, imóvel, sendo uma presa extremamente fácil.
Faltando alguns metros para que eu fosse pega, Carlos
voou para a esquerda, de forma espalhafatosa, caindo
dentro uma cova recém-cavada. Não entendi o que
houve. Busquei com os olhos o outro Devorador, que já
não estava mais perto da lápide recém-destruída. Voltei a
concentrar a atenção para a cova. Alguns segundos de
silêncio se passaram, até que uma explosão de terra
emergiu do buraco, expondo os dois demônios lutando
entre si. A força foi tamanha que ambos foram
levantados a uma altura considerável, antes de atingir o
chão.
Carlos foi o primeiro a bater com as costas na terra.
Sobre ele, o outro Devorador investia uma força gigante
nas mãos, tentando quebrar o pescoço de Carlos. Ao
mesmo tempo, Carlos segurava com as mãos os braços
do inimigo, aplicando uma força descomunal, tentando
esmagá-los.
Sentindo a pressão nos braços, o novo Devorador se
afastou, permitindo com que Carlos tornasse a ficar
novamente de pé. O Mensageiro estava de canto, apenas
observando. Estava inquieto. A demora pela definição
entre os Devoradores estava deixando-o impaciente. Isso
era visível. Estava sério, compenetrado em cada
movimento realizado pelos dois. E justo ele, que até
agora estava apenas analisando a luta, resolveu
interferir.
O Mensageiro ajoelhou e fincou o cetro na grama do
cemitério. Afundou-o, até ficarem apenas as cabeças de
Cérberus para fora da terra. Ainda de joelhos, ele
gesticulou a boca, como se proferisse algumas palavras.
Mágicas ou amaldiçoadas, não sei. A única coisa que tive
certeza foi o surgimento de uma luz intensa que
alimentava os seis olhos de rubis do cão do inferno.
Imediatamente, como se respondesse às palavras do
Mensageiro, o chão começou a tremer. Era forte. Forte o
suficiente para desequilibrar até os dois Devoradores.
Procurei me manter deitada no chão, do jeito em que eu
já estava. Claro que estava abismada com tudo aquilo.
Até poucas horas atrás, vivia em um mundo normal,
embora não feliz. Em tão pouco tempo vi gente comendo
almas, olhos misteriosamente iluminados, agora isso. Um
terremoto provocado por um cetro maldito. Pensei que já
tinha visto muito naquela noite.
Mas as coisas não pararam por aí.
Assim como começou, o tremor de terra cessou. Aos
poucos, todos foram se recompondo. Neste momento,
procurei forças para me levantar. Os braços ainda doíam.
A boa notícia era que as pernas estavam um pouco
recuperadas, me fazendo equilibrar nelas novamente.
Eu não sabia como aquilo poderia acontecer, mas posso
jurar que logo depois do terremoto, eu presenciei uma
das cenas mais bizarras que já tinha visto na minha vida.
Mãos começaram a brotar da terra!
Isso mesmo! As mãos dos mortos estavam saindo da
grama!
Eu achei que estivesse ficando louca devido ao cansaço.
Aquilo... era insano! Eu, que estava próxima de dois
túmulos, vi quatro mãos saírem da terra. Elas se
movimentavam desesperadas, como se buscassem algo
aonde se apoiar. Olhei para Carlos e o outro devorador.
Eles estavam em um perímetro com várias sepulturas ao
redor. Carlos estava tendo mais dificuldades em se livrar
dos mortos do que o outro rapaz. Neste momento, mais
do que lutar, estavam preocupados em evitar que as
mãos os agarrassem.
Do outro lado, o Mensageiro sorria, satisfeito com o que
fez.
Eu estava cansada demais, mas mesmo assim precisava
voltar à realidade. Eu não podia continuar ali, imóvel,
apenas observando aquela luta pela sobrevivência.
Assim como o Mensageiro estava ajudando o seu novo
Devorador, precisava ajudar Carlos também. Minhas
pernas ainda estavam bambas, mas eu tinha que fazer
alguma coisa.
Enquanto Carlos e seu inimigo estavam ocupados,
aproveitei a brecha deixada e com cuidado fui me
afastando das tumbas. As dores nas pernas ainda
existiam, mas a adrenalina no meu corpo era tanta, que
chegava a anestesiá-las. Fui caminhando para trás,
buscando também não ser agarrada pelas mãos dos
mortos.
Com uma certa dificuldade, consegui chegar até o muro
que contornava o cemitério. Pude notar mais adiante que
o acesso para o jardim da igreja estava a poucos metros
de mim. Minha respiração estava mais ofegante. Estava
ansiosa para fazer o que eu tinha em mente. A ideia era
voltar para dentro da igreja, onde nenhum deles poderia
entrar sem que virasse cinzas. Sabia que um único vacilo
era o meu fim.
Fui me esgueirando pelo muro de pedra. Agachei-me o
suficiente até onde minhas pernas suportariam andar
com os joelhos flexionados. Com sorte, as lápides me
ajudariam a me esconder dos olhos demoníacos. Assim
fui a passos lentos seguindo até a entrada do jardim.
Eu estava indo muito bem.
Estava.
Faltando dez metros para finalmente ganhar o terreno do
jardim para poder correr até a entrada da igreja, fui
surpreendida com um olhar que vinha do outro lado do
cemitério. O Mensageiro me encarava, como se estivesse
furioso.
- Sua maldita! Aonde pensa que está indo?! – ele virou
para os demônios – Aqui! Ela está fugindo!
Imediatamente me pus a correr. A sobrevivência fazia
que eu ignorasse até as dores que sentia. Tinha acabado
de passar pelo vão do muro e já havia pisado na grama
do jardim, quando uma pressão muito forte atingiu as
minhas costas.
Sequer tive tempo de tombar no chão. Algo muito forte
estava segurando a minha nuca. Uma mão me suspendia
no ar. Tentei olhar para trás para ver quem era, mas não
conseguia mexer um músculo da cabeça, tamanha
pressão. Logo em seguida, senti outro baque forte, desta
vez acertando quem me segurava. A mão que me
suspendia afrouxou, me fazendo cair no chão.
Rapidamente rolei meu corpo de lado, e mais uma vez
pude ver os Devoradores lutando de forma feroz, como
dois leões disputando quem ficaria com a carne recém-
abatida.
Enquanto eles se gladiavam, eu voltei a me levantar.
Apoiei o joelho direito na grama para buscar apoio, e
senti uma dor incômoda. Ao puxar o joelho, o terço do
padre Augusto veio colado com a pressão do meu corpo
contra a terra. Tirei-o e fiquei segurando. Assim que tudo
aquilo acabar, se eu ainda estivesse viva, deixaria junto
com o corpo do padre para facilitar sua ida ao mundo dos
céus.
Saí correndo em direção à igreja. Não havia tempo a
perder, caso eu quisesse sobreviver. Olhei de lado. Os
dois ainda lutavam. Carlos atingiu com um soco a cabeça
do outro Devorador, que ficou um pouco atordoado,
porém não o suficiente para que fosse derrubado. O
inimigo reagiu com uma investida de ombros, que fez
com que Carlos caísse no chão.
Finalmente consegui chegar às escadas que levam para a
porta dupla de madeira da entrada da igreja. Passei
correndo pelo corpo sem vida do padre. Que Deus o
tenha!, sussurrei. Não havia tempo para rezar mais do
que isso.
Quando me aproximei da porta, estiquei o braço o mais
depressa possível em busca da maçaneta. Porém, antes
de tocá-la, uma mão vinda da esquerda, desta vez menor
e mais fina, me segurou.
O Mensageiro me agarrava com força, evitando que eu
escapasse. Seus olhos transmitiam o fogo do inferno, e a
energia emanada por ele faria qualquer um se arrepiar
de tanto medo. Comecei a chorar.
- Isso garota! Chore! Como é bom ver o sofrimento
alheio. A fraqueza das pessoas! – ele me disse, com
extrema satisfação em falar aquelas palavras - Vocês são
patéticos! Meu Mestre tem razão em não desejar uma
alma tão desprezível como a sua no mundo dele.
- O que foi que lhe fiz?! Não fiz mal a ninguém! – eu
supliquei, já começando a chorar.
- Justamente. Por não ter feito mal a ninguém, você não
serve para os planos do Senhor das Trevas. Pensei que
isto já estivesse claro.
Desesperada, eu balançava o meu braço, na tentativa de
fugir dele. Mas o Mensageiro era firme e em nenhum
momento vacilou. Pelo contrário. Calmamente, como se
carregasse uma boneca de pano, ia me arrastando
novamente escada abaixo, rumo ao jardim.
Não podia deixar que ele me devolvesse ao campo
aberto. Se voltasse ao jardim, estaria exposta demais aos
Devoradores. Precisava reagir.
No meio do desespero, me lembrei de uma cena daquela
noite. O padre Augusto com o seu assassino. O momento
em que o Devorador arrancou-lhe aquele objeto que o
pároco segurava, fazendo queimar-lhe a mão.
O crucifixo! O Terço!
É ISSO!
Cuidadosamente olhei para o Mensageiro. Reparei que a
camisa de baixo do terno era uma social. Na região da
nuca, a camisa era um pouco folgada. Com sorte, meu
plano daria certo.
Ainda descíamos as escadas da igreja, quando me
sobrepus no caminho do Mensageiro. Ele me olhou
intrigado, curioso com o que eu estava fazendo, com a
mão segurando o meu braço. Foi então que criei
coragem. Ainda segurando o terço do padre Augusto na
mão, pressionei o objeto contra o rosto dele.
Uma fumaça cinza e o cheiro do enxofre veio de encontro
com o meu rosto, devido à pouca distância que eu estava
dele. O Mensageiro nos primeiros segundos ficou
estático. Senti um calor forte no meu braço, vinda da
mão que me segurava. O calor aumentava. O homem
tentava me queimar para que eu desistisse daquela
atitude ridícula.
Mas fui insistente. Sentia braço arder, como se estivesse
sendo marcada com um ferrete. Mas ainda assim não
tirei o terço do rosto dele. Eu podia ver que ele também
sentia os efeitos. O cheiro de enxofre e a fumaça
cresciam.
Foi então que meu inimigo não aguentou e me soltou,
levando as mãos no rosto cheio de feridas devido ao
contato com o terço. Assim como ele, eu também não
estava ilesa. Meu antebraço, o local exato onde ele me
segurava, estava em carne viva, com alguns pontos com
sangue. Estava machucada. Mas não havia tempo para
curativos naquela hora.
Aproveitando o momento de dor do Mensageiro, dei
continuidade ao meu plano. Sem ele notar, me posicionei
atrás dele. Ele estava encurvado, com a cabeça
abaixada. Isso abriu uma folga no colarinho branco, na
nuca. Desenrolei o terço da minha mão e, no momento
certo, coloquei o objeto dentro da camisa do Mensageiro.
No primeiro instante, ele ainda continuava com as mãos
no rosto, incomodado com a dor. Porém, quando ele
notou que o terço lhe queimava as costas,
desesperadamente começou a se despir. Sacudia as
roupas, esquecendo que a camisa estava para dentro da
calça.
Ele gritava de dor. A fumaça cinza saía agora por entre as
fibras de sua camisa e o cheiro de enxofre se tornava
mais forte. Ele estava tão bem vestido, que estava se
enrolando todo com os botões que compunham os trajes.
Assim que o Mensageiro começou a difícil missão de
evitar que o objeto de Deus queimasse seu corpo,
aproveitei a brecha e levantei. Tomei novamente a
direção da entrada da igreja, quando algo agarrou meus
tornozelos. Era Carlos novamente. Ele havia escapado do
outro Devorador e não vi a aproximação dele.
Novamente fui levada para o chão. A mão de Carlos me
machucava. Ele colocava tanta força que meu pé
começou a adormecer um pouco devido à falta de
circulação de sangue.
Mais uma vez ele me suspendeu no ar, desta vez de
cabeça para baixo. Com o outro pé eu tentava chutá-lo
na cabeça, o que o fez irritá-lo ainda mais. Com a força
excessiva que tomava conta do corpo dele, Carlos me
virou e começou a encarar meus olhos. Os dele
brilhavam agora. Pareciam duas pedras opalas. Eram
magníficas. Lindas de se admirar. Não conseguia ter
forças para desviar o olhar. Mesmo se tivesse, não sei se
queria desviar. De alguma forma, sentia uma sensação
de paz tomar conta do meu espírito.
Um frio percorria cada nervo meu, mesmo com o calor do
verão. Estava percebendo, sem conseguir me mover, que
aos poucos minha alma estava sendo convidada a sair do
meu corpo.
Eu estava completamente entregue a tal sensação. Meus
movimentos já não respondiam e meus olhos estavam
fechados. Meus ouvidos já não captavam muita coisa.
Estava em completo torpor. Sentia muitas dores, mas
não conseguia gritar ou chorar. Parece que minha vida
estava chegando ao fim. E talvez fosse melhor assim.
Nunca tive uma vida fácil mesmo. Talvez fosse hora de
descansar a alma. Isso também seria melhor para Carlos,
que se alimentaria e acabaria de vez com essa dor que
está corroendo seu corpo.
A última sensação que tive foi de estar caindo na
escuridão. Não estava mais ouvindo ou enxergando.
Apenas deixava meu corpo cair, até que, finalmente,
encontrei o fim. Com um baque seco, meu corpo deixou
de cair. E ali fiquei.
CAPÍTULO 16

Subitamente tomei um choque de adrenalina. Abri os


olhos, assustada. O ar inflava meus pulmões
desesperados. Não estava entendendo muito bem, mas a
paz que eu tinha havia sumido. Meus ouvidos e olhos
passaram a ter a percepção de antes e meu corpo voltou
a responder os meus comandos. Eu estava estirada no
piso da entrada da igreja.
O que havia acontecido?
Barulhos de coisas quebrando e urros voltaram aos meus
ouvidos. Fui me levantando, buscando os sons. Eles
vinham do jardim. Os dois Devoradores estavam no chão,
brigando novamente. Mais próximo das escadas, o
Mensageiro estava com o peito nu, livre do terço que eu
havia colocado. Porém o objeto causou-lhe bastante
estrago. Suas costas estavam visivelmente queimadas,
da nuca até a cintura, em uma linha única. Nesta região
a pele do Mensageiro parecia dividir as costas ao meio,
além das erupções cutâneas parecidas com os de Carlos
nos arredores do ferimento. Ele tremia. Certamente pela
dor. Não pensava que um mísero terço poderia ser o
ponto fraco daquele poderoso demônio.
E o que aconteceu afinal? O que me trouxe novamente à
consciência?
Lembro-me que Carlos estava tirando a minha alma
quando fiquei inconsciente. Olhei à minha direita e
percebi que havia alguns vasos quebrados e terra
espalhada pelo piso. Acho que quando o novo Devorador
viu Carlos iniciando o ritual de retirada da minha alma,
ele veio de encontro com Carlos para impedir que se
alimentasse. Não havia outra dedução a não ser essa.
Ironicamente, fui salva pelo inimigo.
Rapidamente o novo Devorador agarrou os pés de Carlos
e, como se fosse um peso, arremessou-o para longe,
novamente para o cemitério. Agora foi a vez dele, o
inimigo, de olhar penetrantemente para mim. Antevi seu
movimento e comecei a correr em direção à porta da
igreja. Meu pé direito estava formigando, e isso dificultou
muito a minha corrida. Atrás de mim, o novo Devorador
corria, rosnando, doido para acabar comigo.
Estava em disparada em direção à porta da igreja.
Mancava demais, mas me mantinha de pé. A passada do
Devorador era maior que a minha, e ele estava me
alcançando.
Finalmente minha mão alcançou a maçaneta, girando-a.
Com muita força, fui empurrando-a para dentro, fazendo
com que a porta abrisse em meio a rangidos.
Ao entrar no recinto, desabei no chão, exausta. Deitada,
girei o meu corpo para ver o inimigo chegando cada vez
mais perto. Era tudo o que eu queria. Se a lógica
mantivesse naquela noite, o Devorador seria queimado
por estar dentro da casa de Deus. Mas ele também
estava com Fome e estava nas mesmas condições que
Carlos. Não queria saber de outra coisa, senão a minha
alma.
Enquanto ele avançava, uma voz o alertou do perigo.
- Pare, imbecil! Você não pode entrar na igreja! – era o
Mensageiro, em meio a dores. O Devorador estancou o
passo na hora certa. Ainda deslizou por alguns metros,
consequência da velocidade em que estava. Parou a
poucos centímetros da batente.
O inimigo ficou me encarando. Seus olhos brilhantes não
desistiam de mim. Levantei-me e me aproximei da
entrada.
Ao reparar nos olhos do Devorador, só via angústia, dor,
infelicidade. Mas não via maldade. Pelo menos não
naquela forma em que ele se encontrava. Infelizmente,
não podia me dar ao luxo de ser piedosa com qualquer
um daqueles seres.
Assim que me aproximei da porta, o Devorador ainda
esticou o braço para tentar me puxar. Por sorte fui mais
rápida e desviei da investida, indo para trás da porta de
madeira ainda aberta. Convoquei novamente as forças
que me restavam e as que eu já não tinha mais e, com
os ombros, fui fechando a passagem. Sabia que aqui eles
não ousariam pisar.

***

Agora dentro da igreja, precisava pensar sobre como


ajudar Carlos. Sabia que qualquer coisa dentro daquele
lugar poderia ser útil. Mas o que? Como matar? E ainda
tinha a questão da insanidade de Carlos. Como fazer com
que ele volte ao normal, sem se alimentar da minha
alma?
Do lado de fora da igreja, alguns barulhos de quebra-
quebra se intensificaram, ecoando através das paredes
de pedra. Avancei pelo corredor central, olhando para os
lados. Pilastras colossais enfileiradas tanto a direita
quanto a esquerda sustentavam o teto de arco cruzado.
Enquanto eu andava entre as cadeiras, pensava sobre o
que fazer.
Não sabia o que estava procurando.
Tampouco sabia o que fazer com o que eu estava
procurando.
Minha pesquisa também foi frustrante no altar. Subi os
degraus. Foquei na mesa do altar, mas ela estava vazia.
Ao fundo reparei na peça de ouro que ia do chão ao teto.
No centro dela, a imagem de Jesus pregado com a
inscrição Inri sobre a cabeça. Ao seu redor, preenchendo
a enorme placa dourada, esculturas de anjos em alto
relevo voavam de encontro a Cristo. Seus rostos eram
tristes. Melancólicos. Lamentavam por ver o sofrimento
de Jesus. Embora fosse tudo muito bem feito,
infelizmente nada dali me ajudaria.
Parei por um momento. Novamente olhei ao meu redor.
Uma, duas, três vezes. Mas não conseguia me
concentrar. Minha cabeça, assim como o meu corpo,
começava a mostrar sinais de cansaço.
Meus olhos pararam de procurar. Invés disso, rondei as
paredes que contornavam o altar, até voltar para a nave.
Virei à esquerda, passando pelas pilastras. Estava agora
na lateral da nave, onde próximo ao altar havia um lance
de escadas. Ele descia. Para onde, eu não sei. Mas estava
disposta a descobrir.
Segui para baixo. A escada me levou a um corredor
simples, repleto de portas. Algumas estavam abertas,
indicando móveis de quarto dentro delas. Todas
idênticas. Imaginei que ali servia de hospedagem para
alguns membros da igreja que estavam de passagem. Fui
entrando nas que estavam abertas, mas novamente não
encontrei nada de interessante.
Fui avançando pelo corredor. Virei a direita quando só
restava este caminho. Meus pés rastejavam diante do
antigo piso de pedras. Finalmente o caminho terminava
em uma porta de madeira, com uma janela de vidro
fumê na altura do rosto. No meio do vidro, a palavra
sacristia estava estampada, revelando o local onde o
padre Augusto se preparava antes de rezar as missas.
Entrei no local, sendo a minha última esperança de
encontrar algo para ajudar Carlos. Ali , me deparei com
uma sala não muito grande, porém muito organizada.
Dentro dela havia alguns móveis de madeira antiga,
provavelmente do início do século, como uma pequena
mesa e duas cadeiras. Havia também uma estante que
continha dezesseis gavetas enfileiradas em quatro
colunas. Acima, aproveitando o tampão do móvel, uma
bancada continuava. A estante terminava verticalmente
na metade da parede, com prateleiras e no centro um
pequeno compartimento fechado com portas de vidro.
Dentro do tal compartimento, podiam-se ver alguns
instrumentos, como o cálice e a âmbula, junto com a
pala. Na bancada, padre Augusto já tinha separado todo
o resto do instrumentário. Missal, Galhetas... enfim, tudo
preparado para a missa da manhã que ele celebraria.
Celebraria.
Depois de passar o olho pela sala, concluí mais uma vez
que acabei perdendo tempo ao entrar ali. Virei-me de
volta para porta, na esperança de encontrar algo em
outro lugar.
Já estava girando a maçaneta, quando vi algo reluzir no
vidro fumê da porta. Parei por um instante. Observei
novamente o brilho. Vinha de dentro da sacristia. Girei os
calcanhares e pude notar o que era. Estava ali, no
cantinho da sala, apoiada na quina da parede, escondido
do lado da estante. Como fui estúpida! Como não a vi ali?
- É disso que eu estava precisando! Exatamente disso! –
eu disse, enquanto segurava-o com as duas mãos.
CAPÍTULO 17

Dirigi-me direto para a porta de acesso da igreja. Iria


voltar para o campo da guerra. Barulhos de coisas
quebrando vinha do lado esquerdo, lá fora, onde fica o
cemitério. Carlos e o inimigo deviam estar lutando ainda.
Apoiei o objeto que encontrei em uma das folhas da
porta, enquanto puxava a outra. Aos poucos ela foi
cedendo, abrindo meu caminho para fora da igreja.
Assim que consegui puxá-la um pouco, pela fresta, uma
mão agarrou meu pescoço.
Os olhos ferozes do Mensageiro brilhavam, e com uma
força descomunal ele me apertava. Por um momento
pensei que ele fosse quebrar meu pescoço. Ainda do lado
de dentro, com os braços e pernas, travei meu corpo,
impedindo que ele me puxasse para fora da igreja.
Mesmo com o braço começando a esfumaçar e exalar o
cheiro de enxofre, o Mensageiro não me largava.
Diante da força dele, meu corpo, sob o risco de morte,
injetava mais adrenalina, mantendo o meu estado de
alerta. Estava cansada sim, mas não podia ceder.
Procurei com uma das mãos o objeto que eu havia
deixado apoiado na folha da porta que não estava
aberta. O mensageiro havia me puxado um pouco pra
fora, me fazendo perder o espaço necessário para pegar
o objeto. Tive que adotar outra estratégia. E rápido, pois
com a pressão da mão do Mensageiro entre o meu
pescoço, o ar também me faltava.
Rapidamente pensei. Com o braço pressionando a porta
para que não fosse tragada pela força do inimigo,
comecei a dar ligeiros baques na folha. Aos poucos o
objeto foi inclinando, inclinando, inclinando... até tombar
no meu braço. Eu o peguei, mas o movimento fez com
que eu me soltasse da porta, fazendo com que o
Mensageiro me trouxesse para o exterior da igreja.
- Maldita! Agora você não me escapa! – ele disse,
enquanto seus olhos queimavam e sua boca trazia todo o
ódio de suas palavras. E isso foi bom. Ele não viu o que
eu trazia comigo.
O objeto era composto por uma haste de ferro de bronze
de mais ou menos um metro e meio de altura. Na ponta,
a imagem da cruz e de Cristo pregado nela, também
feita do mesmo material que a haste. Tratava-se da cruz
processional, usada no início das cerimônias, carregada
até o altar.
Imediatamente, interpus a cruz entre mim e o
Mensageiro, pressionando sobre o seu peito nu. A peça
ao tocar no corpo dele, chiou. Ele grunhiu alto, me soltou
e se afastou. Literalmente como o diabo fugindo da cruz.
O Mensageiro agora estava encurvado, sofrendo com a
ferida feita no seu peito. Gritava de dor. O corpo
fragilizado anteriormente com o terço nas costas – e que
ainda buscava recuperação – agora agonizava com a
ferida em forma de cruz na região do abdômen.
Recuperei o ar que me faltava com a pressão da mão do
Mensageiro no meu pescoço. Arquejava os pulmões,
buscando cada vez mais pelo ar. Reestabeleci a
respiração. Rapidamente me levantei e corri em direção
aos Devoradores, enquanto deixava para trás o
Mensageiro, ainda sofrendo com a dor.
Avancei pelo meio do jardim. O crucifixo processional
pesava tanto quanto as minhas pernas. Dificultava um
tanto a minha corrida. Mas com muito custo cheguei até
o acesso do cemitério. Lá, os mortos ainda estavam com
as mãos para fora da terra, e neste momento algumas
delas haviam prendido Carlos na grama. Ele estava
deitado de costas para o chão, enquanto a alguns metros
o outro Devorador avançava em sua direção.
O inimigo posicionou seus pés nas laterais de Carlos. Ele
sorria. Sabia que a luta havia acabado. Carlos estava
completamente dominado pelos mortos. Logo pensei que
o Devorador viria atrás de mim, ignorando o seu
antecessor. Mas não foi bem assim.
O inimigo levou as duas mãos à cabeça de Carlos, que
rosnava. Como em um transe, o inimigo olhou fixamente
para os olhos dele, intensificando o brilho. Carlos ainda
relutava, tentava intensificar o seu também. Houve uma
guerra entre os dois. De quem iria dominar o controle de
se alimentar da alma do outro. Ambos estavam
fadigados. Mas a Fome parecia lhes dar uma energia
misteriosa.
Depois de um longo período de entrave, Carlos cedeu. O
seu sucessor aproveitou o momento e dominou a
situação. Uma áurea começou a brilhar em torno do
corpo de Carlos. O rosnado deu lugar a gritos de dor. O
inimigo estava iniciando o ritual de extração da alma.
Enquanto eu observava aquela cena, ouvia atrás de mim
uma gargalhada, algumas vezes sendo interrompida por
lamentos de dor. O Mensageiro já estava a par do que
estava acontecendo, ainda encurvado devido a recente
ferida que lhe causei. Parecia que estava se divertindo
com aquela situação. Minha vontade era de esfregar a
cruz na cara dele pra despachá-lo diretamente para o
inferno. Mas se eu quisesse salvar Carlos, não poderia
me dar ao luxo de perder tempo com o Mensageiro.
Num impulso de coragem, adentrei a grama do cemitério
carregando o crucifixo. Eu estava do lado oposto onde
estavam Carlos e o novo Devorador de Almas. A luz que
emanava do corpo de Carlos me dava a certeza de que
eu precisava correr mais do que conseguia.
Eu estava a vinte metros de distância deles, quando já
podia ver os primeiros sinais do espectro da alma de
Carlos saindo e se aglomerando acima do corpo dele.
Precisava me apressar mais ainda. Já não bastasse ter
que correr e carregar a cruz, ainda tive que sair
desviando das mãos dos mortos que ainda insistiam em
brotar da terra.
Dez metros. A aura branca espectral estava ficando cada
vez maior. A alma de Carlos estava esvaindo do corpo.
Atrás de mim, o Mensageiro corria de forma bizarra,
ainda com dores, tentando me conter. Analisando a
velocidade dele e a distância em que estávamos, não ia
conseguir me deter.
Cinco metros. A alma de Carlos já estava completamente
fora do corpo. O novo Devorador já tinha completado o
procedimento de retirada. Seus olhos já não possuía um
brilho tão intenso. Seus músculos relaxaram. Diante a
chama branca que flutuava acima do corpo de Carlos, o
Devorador o envolveu com as mãos. Lentamente ele foi
aproximando a alma de Carlos à sua boca. Tentei correr
mais ainda, mas minhas pernas já não me obedeciam.
Elas pesavam como se fossem feitas de chumbo. Tentava
me apoiar no crucifixo processional, mas a única coisa
que eu conseguia era me manter de pé.
O inimigo parou e virou-se para mim. Atrás dele, as mãos
dos mortos soltaram o corpo de Carlos, recolhendo-se
para debaixo da terra novamente.
Eis que a luz que emanava dos olhos do devorador
desapareceu.
Em um movimento rápido, o novo Devorador colocou a
áurea branca dentro da sua boca.
CAPÍTULO 18

- Nãããããoooo!
Minha espinha gelou. O desespero começou a tomar
conta de mim. Depois de tanto escapar, tanto fugir, será
que o Mensageiro tinha razão no fim das contas? Jamais
teríamos paz enquanto estivéssemos vivos?
Em um ato de desespero, agarrei a haste do crucifixo
com as duas mãos e, com um golpe que veio da
esquerda para a direita, acertei o rosto do Devorador. A
mandíbula saiu do lugar tamanho o impacto. Ele
manteve a boca fechada para evitar que a alma saísse
de sua boca, contendo o forte urro de dor. Juntei o que
sobrara das minhas forças e apliquei um segundo golpe,
desta vez de baixo para cima. A ponta da cruz acertou o
queixo do inimigo, que voou verticalmente e caiu de
costas no chão.
O Devorador caiu sentindo os golpes. Estava um pouco
grogue, embora ainda não tenha ainda aberto a boca.
Sem piedade, segurei a haste com força e encostei a cruz
no peito dele. Antes que ele percebesse o que estava
acontecendo, o cheiro de enxofre começou a subir para o
meu nariz, e a carne chiando com o contato com a peça
começava a causar mais dor a ele. Maldição! Ele tinha
que abrir aquela boca, antes que a alma de Carlos fosse
engolida totalmente!
Foi então que ele notou o que eu estava fazendo. Como
se acordasse em choque, ele olhou para o peito, que
ainda ardia sob o objeto celestial. Com extremo
desespero, ele procurou com os braços afastar a cruz. Eu
tentava impedi-lo, segurando a haste com força. Mas
obviamente ele era mais forte que eu, e não teve
dificuldades de jogá-la de lado. Pedaços de sua pele
vieram junto com o crucifixo. Ele não segurou. Com a dor
de ter parte do corpo dilacerado, ele abriu a boca,
berrando alucinadamente. Sua voz parecia vir dos
confins das trevas, direto do inferno. Eu observava tudo
aquilo a pouco metros, jogada na grama, com o crucifixo
ainda nas mãos.
Foi de relance, mas pude ver o milagre que eu tanto
esperava. Ao gritar, o Devorador abriu a boca. Foi a
brecha para que a aura de Carlos saísse. Estava menor,
bem menor do que quando foi retirada. Mas ainda assim
flutuava novamente para o seu corpo verdadeiro. Estava
voltando para Carlos.
Ao mesmo tempo, o inimigo olhava para mim com uma
expressão diferente. Maligna. Feroz. Desta vez ele vinha
para acabar comigo. E compreendia tamanha convicção.
Eu estava fraca. Não conseguia mais me levantar. A
única coisa que poderia me salvar era a cruz.
Que Deus me ajudasse, mesmo eu não merecendo!
O Devorador veio contra mim. Estiquei a cruz em sua
direção, mas imediatamente foi repelida por uma de suas
mãos. Sem forças, o crucifixo escapou da minha mão,
indo parar a alguns metros de distância. Olhei para um
dos lados. O Mensageiro ainda nos observava, desta vez
otimista. Não era para menos. Eu já tinha perdido as
esperanças.
Eis que um baque violento derrubou o inimigo para o
chão novamente.
- Carlos! – gritei.
O antigo Devorador havia recuperado a vida, embora
ainda estivesse sob o domínio da Fome. Estava tão fraco
quanto o seu sucessor, porém com o ataque surpresa,
agora estava em cima do inimigo.
Carlos aplicou o primeiro soco no lado esquerdo do peito
do novo devorador. Como revide, o inimigo pegou-lhe o
pescoço, pressionando forte. Carlos não desistia e
golpeava sem parar o rosto do adversário, inundando-o
com o sangue que escorria das feridas. O inimigo estava
resistindo, até Carlos acertar-lhe uma joelhada na região
do peito, exatamente onde a ferida causada pela cruz
estava marcada. O rapaz imediatamente largou o
pescoço de Carlos e levou as mãos para o local
machucado, se contorcendo.
Diante da vantagem na luta, Carlos aproveitou a
situação. Era a chance de dar o troco. Resolver essa
questão de uma vez por todas.
Seus olhos intensificaram a cor opala. A energia que
emanava do corpo dele era intensa, envolvendo o
inimigo. Aliás, o inimigo já não sentia mais dor. Mas sim
frio. Sem pestanejar, Carlos começou o ritual da extração
da alma de seu inimigo.
Ouvi passos vindos da esquerda. O Mensageiro vinha em
nossa direção com certa dificuldade, numa tentativa
frustrada de correr.
- Pare seu imbecil! É você quem deve morrer!
Levantei, cambaleando. Fui em direção a cruz
processional. Pegando-a novamente e me posicionando
entre o Mensageiro e Carlos.
- O que está fazendo, sua vagabunda?!
- Você não vai dar mais nenhum passo. Não enquanto
Carlos não terminar!
O Mensageiro tentava me circundar, evitando o contato
com a cruz. Eu me mantinha entre eles, não permitindo
que o enviado do Demônio interferisse na ocasião. Atrás
de mim, ouvia os gritos de dores do inimigo. Assim como
aconteceu com Don Celsio e padre Augusto, a aura do
novo Devorador foi aos poucos saindo do seu corpo. A luz
brilhava cada vez mais forte, trazendo o espectro para
fora da matéria. Aquele momento era incrível, e ao
mesmo tempo assustador. Acreditar que espíritos
existem é completamente diferente do que literalmente
ver uma alma sair de corpo de uma pessoa.
Aos poucos a voz do novo Devorador foi sumindo junto
ao vento. Seus gritos já não podiam mais ser ouvidos. A
boca permanecia aberta, embora não pronunciasse uma
única palavra. Seus olhos estavam abertos, porém
duvido que ainda pudesse ver alguma coisa. Mesmo se
visse, observaria uma chama branca flutuando sobre sua
cabeça e Carlos a apanhando com as mãos, antes de
colocá-la dentro da boca.
Os olhos de Carlos começaram a brilhar mais forte,
indicando que ele estava iniciando a ingestão da alma. O
Mensageiro estava bufando de raiva. Queria a qualquer
custo avançar contra Carlos, mas eu estava ali, pronto
para protegê-lo. Dar o tempo necessário para que ele
devorasse a alma do inimigo. Tempo que o inimigo não
teve quando tinha a situação sob o seu controle.
Enquanto eu montava guarda, Carlos terminava de
ingerir a alma do seu sucessor. Ele estava parado, agora
em silêncio. De costas para mim, não pude notar qual foi
a reação desta refeição. Eu estava com medo. Se a alma
do inimigo não tivesse sido o suficiente para aliviar a
Fome de Carlos, com certeza a próxima seria eu. Não
sabia se devia girar a cruz na direção de Carlos, e assim
permitindo a aproximação do Mensageiro, ou se
continuava na mesma posição, protegendo-nos do
enviado do Mal, porém deixando a brecha para que
Carlos me atacasse.
Eu estava de olho no Mensageiro. Os olhos dele já não
buscavam a mim ou a cruz. Estavam completamente
focados em Carlos. Havia uma tensão muito grande por
parte de todos. Eu apenas virava a cabeça de relance
para tentar saber qual era a situação de Carlos. Precisava
definir o próximo passo.
Correr ou ficar?
CAPÍTULO 19

Lentamente fui despertando. Não sabia onde eu estava,


ou o que fazia antes de me apagar. Aquela sensação de
perdido quando não sabemos o que se passa ao nosso
redor me atormentava. Minha visão, que antes estava
escura, voltou a enxergar. Meus músculos sinalizavam
para mim um certo cansaço. Estranhamente estava de
pé. Foi então que tudo o que aconteceu anterior veio à
minha cabeça, me atingindo como uma bala de canhão.
Girei os pés na direção contrária. Às minhas costas,
Micaela estava segurando uma barra com uma cruz na
ponta. Além dela, o Mensageiro me encarava, sem o
olhar sarcástico que carregava durante as nossas
missões. Ele estava sem camisa, cheio de feridas.
- O... o que aconteceu? – eu disse.
Virei o rosto e vi um corpo estatelado na minha frente.
Um rapaz, jovem, aparentava uns vinte anos de idade,
vestido de calça preta e um colete preto, possuía cabelos
negros e longos jogados para frente. Estava inerte.
Estava morto.
- Quem era ele? Vai me dizer que eu...?
- Sim – interrompeu o Mensageiro – ele era o seu
sucessor, Carlos. Conforme o prometido pelo meu
Mestre, caso você quebrasse o nosso acordo. Mas você o
matou, Carlos. Você se alimentou da alma dele.
Olhe novamente para o cara morto. Ele não tinha cara de
que valia alguma coisa. Mas ainda assim algo me fazia
sentir pena dele, de participar de todo aquele circo.
- Foi uma escolha dele. Assim como foi a sua, Carlos – o
Mensageiro disse, como se estivesse lendo meus
pensamentos.
Olhei furioso para o meu ex-mentor. Para eles, isso
incluindo o Diabo, éramos apenas peças de tabuleiro.
Isso na verdade eu já sabia. Só não esperava que
fôssemos considerados justamente os peões.
- Então Carlos? Vejo que recobrou a consciência, mas a
Fome foi sanada?! – ele disse, rindo baixinho.
De fato ele tinha razão. Havia recobrado a consciência
sim, mas ainda o estômago me doía.
- Essa dor jamais cessará enquanto você não se
alimentar da alma dessa vadia! – ele gritou dessa vez,
apontando para Micaela – Até quando vai resistir à Fome,
Carlos? Até se transformar novamente naquele monstro,
que impiedosamente devorou a alma do seu sucessor?
Não se iluda! Mais cedo ou mais tarde, você terá que
devorar a alma dela!
- Por que isso? PORQUE ELA?! – esbravejei.
- PORQUE ELA FEZ UM PACTO COM O MEU MESTRE,
IMBECIL! ELA PEDIU QUE VOCÊ RETORNASSE. NÃO FOI
FEITO? O QUE ESTÁ ERRADO CARLOS? ALIÁS, QUEM ESTÁ
ERRADO?! – ele respondeu à altura, com a voz
extremamente grave. Por um momento o Mensageiro
fechou os olhos, se recompondo, buscando se
tranquilizar. – Porque está surpreso, Carlos? Achei que
você fosse mais frio. Não teve nenhum problema em
acabar com a raça dos outros inúteis que compactuaram
com o meu Mestre. Porque essa hesitação? O fato de
terem vivido juntos lhe impede de cumprir com o seu
pacto?
Claro que a resposta era sim. Eu tinha aceitado essa
nova vida justamente para poder me reencontrar com
Micaela. Ela sabia sobre o que eu era quando era vivo,
mas ainda assim tinha decidido permanecer comigo.
Éramos um casal de filhos-da-mãe, que mexia com
coisas erradas. É verdade. Mas enquanto estávamos
juntos, mesmo com a amargura do meu coração que
insistiu permanecer até a minha morte, ainda assim me
sentia feliz por ela estar do meu lado, mesmo sabendo
quem eu era.
- Seu maldito. Tudo isso foi premeditado! Você sabia
desde o começo que eu havia voltado justamente por
causa dela. Por que agora quer que eu acabe com a vida
dela?! – gritei mais enfurecido ainda.
- Porque essas são as regras do jogo, seu idiota! E você
as aceitou!
Minha vontade era de cada vez mais afundar a cara do
desgraçado até o fundo do seu crânio. Ainda comecei a
andar na direção dele, doido para ensiná-lo a não falar
besteiras para as pessoas erradas. Mas duas mãos, que
antes seguravam a cruz mortal para os seres do inferno,
pousaram levemente no meu peito, procurando me
afastar daquele demônio. Micaela havia se posto na
minha frente, bloqueando a minha passagem,
encostando seu corpo no meu e seus braços se
enrolando no meu tórax. E então foi que eu me dei conta
do quanto eu sentia falta da paz que aquele abraço me
transmitia. Eu, um cara frio, feitor de tantas maldades,
me rendendo a um simples, porém vicioso abraço
daquela mulher.
Olhei para Micaela, e seus olhos castanhos
transbordavam lágrimas sobre um extenuante sorriso. A
certeza que eu tinha do porque de não matá-la para
saciar a Fome era mais racional do que nunca.
O Mensageiro, que até o momento estava estático, com a
mão comprimindo parte do peito ferido, foi lentamente
deixando o cemitério, caminhando para o jardim da
igreja. Ficamos observando-o, para ver o que ele faria.
Ele foi até o outro extremo, parando em um ponto um
pouco escondido por algumas plantas que saíam da terra
no canteiro central. Embora a visão estivesse um pouco
atrapalhada, pude ver um objeto prata reluzir em uma
das mãos dele. O já conhecido cetro de Cérberus. Os
olhos do cão do inferno voltaram a brilhar em contato
com a mão do Mensageiro, o que nos fez aproximar dele,
curiosos para ver o que ele estava aprontando.
- Carlos, lembre-se disso: o caminho que escolheu trilhar
não tem volta.
- EU NÃO ESCOLHI! FUI CHANTAGEADO! VOCÊ ESTAVA
LÁ! VOCÊ VIU!
- Nem você, nem ela estarão a salvos. Assim que eu
estiver pronto, voltarei com um novo Devorador, que
lutará novamente contigo, e posteriormente terminará
com a vida dela. – ele dizia, apontando o cetro desta vez.
– Você sabe que não haverá toca em que poderá se
esconder. Se você acha que não teve escolha, eu lhe dou
uma agora.
- E qual é?
O Mensageiro sorriu diabolicamente para mim, sem me
dizer uma palavra. Ainda assim, foi o suficiente para que
eu entendesse o que ele quis dizer.
- Espero que faça a escolha certa. Enquanto isso estarei
no inferno, me recuperando e preparando o novo
Devorador de Almas.
O Mensageiro levantou o cetro, intensificando o brilho
rubi dos olhos de Cérberus. Ao conseguir uma luz
considerável, ele projetou a cabeça do cão no chão, onde
o vento fez um mini redemoinho, abrindo uma fenda
negra na grama. Logo em seguida, ele olhou novamente
para mim, como se quisesse me dizer que este momento
ainda não seria a última vez que nos veríamos. E então
se lançou no buraco escuro, caindo nele e
desaparecendo rumo às entranhas da Terra.

***

Micaela me abraçava forte. Logo após a fuga do


Mensageiro, tratamos de cobrir o corpo do padre
Augusto. Pegamos um lençol em um dos quartos da
igreja e cuidamos de enrolá-lo no cadáver. Antes disso,
Micaela fez questão de posicionar o terço usado contra o
Mensageiro entre as mãos do padre.
Sentamos na escada da entrada da igreja. Ambos
estavam extremamente exaustos, além da Fome que
continuava apertando o meu estômago. Micaela me
contou tudo o que se passou enquanto eu estava
inconsciente. A aparição do meu sucessor, a luta insana
que tive com ele, a morte do padre, a invocação dos
mortos por parte do Mensageiro... até a volta da minha
consciência.
Eu estava pensativo. Diante de tudo isso, o Mensageiro
ainda jurou que voltaria, que aconteceria tudo
novamente. Até quando viveríamos desse jeito? Até eu
matá-lo? Aliás, tem como matá-lo? Ainda assim, quem
me garantiria que o Diabo não arrumaria outro
Mensageiro? Continuava a pensar na última coisa que ele
me disse antes de se despedir.
Você sabe que não haverá toca em que poderá se
esconder. Se você acha que não teve escolha, eu lhe dou
uma agora.
Para que aquilo tudo terminasse, só havia duas
alternativas. Ou eu morrer, ou Micaela morrer. O
problema são as consequências. Eu não teria a mínima
coragem de acabar com a vida da pessoa que mais me
entendeu neste mundo. Ao mesmo tempo, se fosse eu o
morto, Micaela seria devorada de qualquer maneira,
ficando exposta para o próximo Devorador de Almas.
Eram duas escolhas que não havia final feliz.
- Carlos? – Micaela me chamava, com a cabeça ainda
sobre o meu ombro. Ela me olhava confusa. Sabia que eu
estava pensando em algo, e estava tentando descobrir. –
Está pensando no que faremos agora?
- De certa forma. – respondi, com o semblante sério.
Peguei-me apertando ainda mais Micaela em meus
braços, procurando achar uma resposta para aquela
pergunta.
- Eu sei, fui uma idiota. Não acreditava que esse negócio
de pacto resultaria nessa confusão macabra. Talvez seja
por isso que eu tenha frequentado a igreja desde que
vim pra cá. – ela riu, de forma debochada.
Levantei-me e fiquei por um momento parado. Micaela
olhava para mim, surpresa com a minha atitude. Ela
também se levantou, com uma expressão bem
preocupada.
- O-o que houve? O que você está pensando em fazer?
Tentei desviar o meu olhar, mirando o chão. Minhas mãos
se agitavam, tocando uma a outra. Sei que ela não
concordaria com aquilo, mas já sabia o que fazer. Era a
única alternativa de mantê-la viva.
Abracei-a novamente. Ela, sem entender, ficou parada,
deixando ser abraçada. Aos poucos senti a minha blusa
ficando molhada, devido às lágrimas que saiam dos olhos
de Micaela. Ela encurtou os braços, deixando-os entre
nós. Suas mãos agarraram com força a minha camisa, o
que a fez se aproximar ainda mais de mim.
- Você não pode fazer isso.
- Não há outra alternativa, Micaela. Se eu continuar neste
mundo, mais cedo ou mais tarde a Fome vai se
manifestar com mais intensidade e perderei o controle,
como aconteceu agora há pouco. Irei te matar.
- Mas se você for, eles também irão me matar. – ela
retrucou.
- De qualquer forma, eles irão nos matar. Mas eu sei de
uma ideia que pode te manter viva. Mas para isso terei
que morrer.
Micaela apertou ainda mais a minha camisa, como se
fosse impedir que eu fosse embora.
- Escute aqui, garota – eu disse, afastando-a a suficiente
para que ela me olhasse nos olhos – Até hoje ninguém
ressuscitou. Não seria um pobre bastardo como eu que
seria o primeiro privilegiado a permanecer vivo depois de
morto. O que me foi concedido foi apenas um
prolongamento da minha existência. Mas a partir do
momento que estou atrelado a essa maldição de devorar
as almas dos outros, já não posso considerar que eu
esteja vivendo.
Micaela relutou essa ideia por um momento. Estava
exausta e cansada. Depois de tudo o que passou nos
últimos tempos, depois da alegria de ter me encontrado,
acharia que tudo ficaria bem. Até aparecer essa história
surreal de Demônio, almas e etc. Busquei Explicá-la o
que eu faria. Fui detalhando todo o plano. E o motivo de
que eu deveria partir.
Ela olhava para mim incrédula.
- Como pode ter certeza de que vai conseguir fazer isso?!
- Eu não sei – respondi, pensativo. – Mas é a única
solução que me veio a cabeça.
Micaela sabia que o que eu dizia podia dar certo. Mas
ainda assim a necessidade de se separar novamente de
mim ainda parecia muito dolorosa para ela.
- Entenda querida. Estou morto. Essa é a verdade. Era
para eu estar debaixo da terra. Talvez no inferno.
Infernizando o demônio – tentei brincar. Consegui tirar
uma risada isolada naquele rosto sofrido. – Invés de
chorar a minha ida, procure se lembrar dos momentos
que vivemos juntos. E outra: você tem uma vida inteira
pela frente! Não a desperdice. – parei por um momento –
Sei que é foda dizer o que vou falar agora, mas procure
sair dessa vida que vivíamos. Somos dois miseráveis
numa terra de selvagens. Fico com medo que tenha
outros iguais a Celsio, que possam te fazer um mal pior.
- Sei disso – ela começou – Pra te dizer a verdade... bem,
eu já estava pensando nisso... Há muito tempo estou
cansada dessa vida subumana... o padre Augusto já
havia me orientado a mudar de profissão. Eu estava
confusa em um primeiro momento sobre a opção que ele
me sugeriu, mas depois de tudo isso... bem, acho que no
fim das contas não seria uma má ideia aceitar a sugestão
do padre.
Foi então que ela me disse qual era a tal sugestão. Na
hora, sofri um baque. Surpreso, não imaginava Micaela
fazendo aquilo. Mas depois pensando bem, acho que até
para ela se proteger dos seres do inferno, na verdade
seria uma excelente ideia.
- Faça isso. Será melhor para você, em todos os aspectos.
– eu a disse, sorrindo.

***

De mãos dadas, nos dirigimos até a entrada da igreja


gótica. Ela foi subindo comigo o pequeno lance de
escadas, até a grande porta de madeira. As lágrimas
saíam como gotas de uma chuva fina daquele belo par
de olhos. Ela tentava contê-las, talvez para não me
assustar. Mas já não era o suficiente. Por mais que eu
não demonstrasse, sim, eu estava com medo.
Ao chegar na frente da porta, paramos. Ficamos em
silêncio por um momento. Micaela me envolveu em um
abraço morno, aconchegante. Sua cabeça estava
apoiada no meu peito. Deixei-me envolver por aquele
momento, abraçando-a também. Ali, naquele instante,
éramos um corpo só. Sentia o pulsar de seu coração.
Estava acelerado. Seus braços pressionavam ainda mais
meu corpo contra o dela. Aquele abraço não estava
apertado. Estava extremamente carinhoso. Queria ficar
daquele jeito por mais tempo. Talvez o tempo necessário
até que ela adoecesse e viesse a morrer. Até o fim de
nossa existência.
Por fim selamos aquele relacionamento com um beijo.
Não parecido com aqueles que dávamos enquanto
estávamos na cama. Mas um beijo suave. Doce, e ao
mesmo tempo amargo. Um gesto que dizia muitas
palavras, mas entre elas, as principais talvez fosse
“obrigado” e “até breve”.
- Obrigado por ter mudado minha vida de certa maneira,
desde o dia que me abrigou. – ela me disse, sorrindo e
ainda com lágrimas nos olhos. – E até breve, pois sei que
quando eu morrer irei para o mesmo lugar que você
estará.
E foi assim que me desfiz do abraço de Micaela. Não
houve relutância por parte dela. Ela era suficiente
madura para entender toda a situação. Isso seria uma
das coisas que mais sentiria falta nela. Claro, além do
carinho que ela sentia por mim.
- Está pronta?
- Sim.
- Como combinado.
- Sim.
Eu dei o primeiro passo. Estava nervoso. Nunca pensei
que fazer aquilo seria tão difícil. Encostei na porta de
madeira, abrindo-a. A nave da igreja surgiu, trazendo
uma energia negativa muito forte para mim. Uma
vertigem profunda me atingiu, mas me mantive em pé.
Enfim, fui dando continuidade ao plano.
Dei dois passos para dentro da igreja. Parei, girei o corpo
e vi do lado de fora a expressão de tristeza de Micaela.
- Até mais, minha querida. – eu disse. Ela nada falou.
Invés disso, começou a chorar com mais intensidade.
Eu já tinha passado tantas coisas na minha vida, que não
sabia mais qual foi o momento mais triste para mim.
Mas, sem sombra de dúvidas, o som do choro de Micaela
foi a coisa mais melancólica que levaria comigo para a
eternidade.
Sem dizer mais nada, olhei uma última vez para ela. Ela
já estava de costas, esperando que eu finalmente fosse
embora. Aos poucos fui empurrando a folha de madeira.
O rangido era ouvido diante do silêncio que ecoava do
entorno da igreja. O barulho cessou com o baque do
lacre da fechadura.
Já do lado de dentro, girei a chave, trancando a porta.
Não tardou muito para que minha pele começasse a
sentir a corrosão causada pela casa de Deus. Lentamente
fui caminhando pelo corredor central. A Fome começava
a se manifestar novamente, com algumas pontadas no
estômago. Já não me importava mais com ela. Ao invés
disso, comecei a repensar sobre tudo o que eu vivi. Coisa
que não tive tempo de fazer antes da minha primeira
morte.
Minha pele continuava queimando enquanto me
aproximava do altar. Já começava a sentir algumas dores
por causa das feridas. Ao estar no altar, ajoelhei diante
da imagem de Cristo na cruz.
- Eu sei que nunca fui bom moço. Sequer devia estar
dirigindo a palavra ao Senhor. Mas há algo que me
preocupa. – eu dizia à imagem. Era estranho dizer, mas a
cabeça do Cristo parecia pender para a minha direção,
como se prestasse atenção em mim. – Eu gostaria de te
pedir um imenso favor. – dei uma breve pausa – Não, não
vou pedir para que me leve para o seu reino. Sei onde é
o meu lugar. Mas alguém não merece ir para o mesmo
lugar que eu.
Minha pele começou a expor buracos nas feridas,
derramando o sangue que corria pelo meu corpo. A dor
começava a se tornar insuportável. Como se eu estivesse
sendo queimado vivo.
- Ela confia no Senhor! Ela irá... viver uma nova... vida
para redimir os pecados do passado. Aaaaahh!!! – gritei
com a dor dilacerante – Se caso o Senhor... tiver alguma
piedade... não tenha de mim... mas dela.
Aaaaaaaahhhhh!!!!!!
A dor estava mais forte. Olhei para as feridas, e o sangue
corria com mais intensidade. Voltei meus olhos para
Cristo – Para que... quando a hora dela chegar... ela
possa ir embora em paz... coisa que não tive... em
nenhum momento... durante a minha morte.
Meu corpo queimava como se tivesse sido jogado vivo na
fogueira. Eu já não estava conseguindo dizer mais nada,
tamanha a dor. Aos poucos meu corpo foi cedendo.
Tombei no chão do altar. Não conseguia me levantar.
Apenas me curvar, tentando aliviar a dor. Mas era
impossível. Olhei para a saída, onde a porta que Micaela
guardava do lado de fora estava trancada. Já era tarde
demais para voltar atrás.
Observei meu corpo novamente. Minhas extremidades
das mãos e pés já começavam a virar cinzas. Olhei uma
última vez para a imagem de Cristo. Ele ali, parado,
pregado na cruz, com a expressão triste. Sei que ele via
aquela cena. Sei que ele lamentava pela minha situação.
Engraçado dizer, mas mesmo sendo apenas uma peça
feita para adornar o lugar, parecia realmente uma pessoa
velando a minha passagem.
E então, tudo ficou escuro.
Como na minha primeira morte.
CAPÍTULO 20

Meus olhos abriram novamente naquele lugar. Mais uma


vez eu não sabia quanto tempo passou durante a minha
passagem para o mundo dos mortos. Mas lá estava eu de
novo. A terra em brasas, e os gêiseres brotando da
superfície aquática.
Havia retornado ao inferno.
Andei por algumas horas. Só estive ali uma vez desde
então, mas era como se eu já soubesse o caminho. Não
tardou para que eu encontrasse a entrada da caverna do
mundo das trevas.
Depois de descer as escadas que me levava ao último
piso do inferno, a minha frente agora se encontrava a
ponte que me levava ao portão do penhasco. Avancei e
toquei na porta. Eram tão quentes quanto a lava que
passava sob a ponte! Por isso que o Mensageiro, na
minha primeira visita, não a abriu com as mãos! Ardiam
pra caralho! Embora tenha posto toda a minha força para
tentar abri-la, ela não se mexeu. Afastei-me, com as
mãos queimadas. Olhei novamente para a gigantesca
porta, pensando em como iria passar por ela.
Assim como da primeira vez em que estive ali, o portão
de ferro chumbado começou a ranger, abrindo-se por
vontade própria, me mostrando o interior do penhasco.
Na ponta dele, o Mensageiro olhava-me surpreso, ao lado
de outro cara. Este, ao contrário do anterior, era mais
forte que eu, com tatuagens cobrindo todo o corpo, indo
dos pés até o pescoço. Era careca, embora ainda fosse
jovem, e o olhar maligno que ele transmitia era insano.
Agora sim o Mensageiro encontrou um sucessor digno
para mim. Não sei se conseguiria enfrentá-lo como
enfrentei o outro. Mas de qualquer forma, não podia fugir
agora. Tinha que seguir com o meu plano.
- Ora, ora... Vejam! O bom filho retorna à casa! Há, há,
há! – riu a voz que ecoava pelas paredes de pedras. O
Demônio se divertia com a minha presença.
- Mas, o que pensa que está fazendo?! Como ousa
retornar, depois de tudo o que aconteceu?! – o
Mensageiro resmungou entre os dentes. Seu rosto ainda
estava marcado pelo terço que Micaela lhe esfregou.
Imaginava como estaria o seu peito, já que o estrago foi
bem maior. Sua expressão de ódio era incontida. Ele
vinha na minha direção, provavelmente querendo
arrancar a minha cabeça.
- Cai fora! Não tenho mais nada que tratar contigo. – eu
disse ao Mensageiro. Ele estancou os passos. – Vim aqui
para conversar com o Demônio. A sós.
Houve um estado de silêncio. Pude notar que ninguém
esperava aquelas palavras.
- O que você está tramando, infeliz? – me perguntou o
Mensageiro.
- Que tal outro pacto, Diabo? Desta vez um que eu possa
cumprir! – eu gritei.
Novamente houve um longo silêncio.
- Você acha que tem algum imbecil aqui?! – gritou o
Mensageiro – Já não basta o que você fez lá no mundo
dos vivos. Está em busca do quê? Clemência?
- Isso não é da sua conta! – respondi.
A resposta só fez descontrolar ainda mais os nervos do
Mensageiro. Imediatamente ele virou-se para o novo
Devorador de Almas, ordenando que me atacasse. Mas
assim que o novo Devorador começou a caminhar na
minha direção, a voz demoníaca invadiu novamente o
espaço do penhasco.
- PARE! Deixe-me ficar a sós com o rapaz, Mensageiro. O
que tínhamos para conversar já foi dito. Agora vá fazer o
que eu lhe mandei. Saia!
O Mensageiro olhou com ódio para mim, mas sem dizer
uma palavra. Em seguida, virou-se em direção à saída,
gesticulando para que o seu novo discípulo o
acompanhasse.
Antes mesmo do Mensageiro sair, o Demônio voltou sua
atenção para mim.
- Pois bem, qual é a sua proposta?
- Quero me tornar o seu Mensageiro.
Aquilo foi um choque para todos. O Diabo nada falou. O
Mensageiro estancou os passos, seguido pelo meu
sucessor. Até a lava que escorria abaixo do penhasco
diminuiu a velocidade de seu percurso. Eu tive certeza de
que aquela proposta pegou todo o inferno de surpresa.
- Ora seu... – rosnou o Mensageiro.
- Hum... – disse o Demônio – e qual o pretexto para se
candidatar a ser o meu imediato?
Silenciei-me por um momento. Abri os meus braços,
como se quisesse me mostrar.
- Bom, o fato de eu estar aqui já mostra o quão
incompetente é o seu atual subordinado, não é?
Atrás de mim, os sapatos do Mensageiro estalavam com
violência no chão de pedra. Ao me virar, senti o impacto
da mão dele segurando a minha garganta.
- Você quer ser o novo Mensageiro? É isso, seu verme
desprezível? – novamente ele rosnou, desta vez perto do
meu ouvido. – Está vendo isso? – ele me mostrou o cetro
de Cérberus – aquele quem o possuir se torna o
Mensageiro. E neste caso, como pode ver, ele está na
minha mão. – ele soltou um leve sorriso – Será capaz de
tirá-lo de mim?
Incrível foi que, sendo um ser tecnicamente superior a
mim, o Mensageiro achou que estivesse no controle da
situação.
Só não contava com o interesse do Demônio em me
ouvir.
- Solte-o – bradou a voz pelas fendas das rochas.
O Mensageiro desta vez não obedeceu.
- Eu mandei largá-lo, não me escutaste? – a voz ecoou
novamente. Ainda assim, o Mensageiro continuava
segurando o meu pescoço, cada vez mais com força.
Com a desobediência do Mensageiro, a prata do cetro de
Cérberus começou a reluzir, transformando a coloração
fosca em brilhosa, e emitindo um calor maior do que eu
podia sentir ali, bem nos confins do inferno.
- Não te esqueças, Mensageiro, que, embora sejas o
portador do cetro de Cérberus, quem o comanda sou eu.
Quem o fez fui eu! – a voz grave demoníaca soou com
ódio.
O Mensageiro desestabilizou com o calor do objeto. Ele
relutou em largar o cetro, mas não aguentou o calor.
Quando notou que o calor não ia terminar, abriu a mão,
mas o cetro não caiu. O calor já tinha unido a prata com
a carne. De forma inconsciente, ele tirou a outra mão de
minha garganta e desesperado, tentou arrancar o cetro
da mão grudada.
Aproveitei a distração do Mensageiro e, num golpe
rápido, apliquei-lhe uma voadora que o fez cair de costas
no chão. O impacto fez com que o cetro desgarrasse da
carne e fazendo com que o Mensageiro urrasse de dor.
Coincidentemente, o centro veio rolando,
despretensiosamente, até parar ao encostar no meu pé.
Abaixei-me e o peguei. O Mensageiro, ainda no chão, me
olhava com raiva, ainda tentando aliviar a dor que sentia
da carne dilacerada.
- Bem, como você dizia, o Mensageiro é aquele quem
possui o cetro de Cérberus. – eu o disse, sorrindo – Então,
agora ele está comigo.
- Me devolva! – ele bradou, enquanto voltava a se
equilibrar.
- Será capaz de tirá-lo de mim? E se de repente... – eu
apontei o cetro em direção ao penhasco.
- Não. Você não faria isso...
Ainda olhando para o Mensageiro, fui me dirigindo em
direção ao fim do caminho. Sabia o quanto aquela peça
era valiosa. Estranhamente, o Diabo estava calado. Com
certeza se divertia com a nossa briga.
- Seu filho-da-puta, você não vai jogar o cetro! – o
Mensageiro berrou, correndo na minha direção. Quando
ele se aproximou, fiz o movimento de arremesso na
altura do chão. O cetro saiu da minha mão e foi rolando
em direção ao precipício.
O Mensageiro tirou sua atenção de mim e correu com
mais intensidade atrás do cetro. Durante a corrida ele
tropeçou em alguns momentos, perdendo um pouco o
equilíbrio, mas permanecendo de pé. O objeto de prata
continuava o seu caminho rumo a queda direta para a
lava da caverna. Faltando uns dois metros para isso
acontecer, o Mensageiro – num movimento incrível – se
jogou, arrastando-se em direção ao penhasco. No
momento certo, ele conseguiu tomar a frente do cetro e
detê-lo, fazendo parar a poucos centímetros da queda.
Ele, por sua vez, não conseguiu frear. Só teve tempo de
cair e se segurar na borda do penhasco com as pontas
dos dedos.
Aproximei-me. Novamente o cetro estava aos meus pés.
Bem, não só o cetro. Adiante, o Mensageiro se
chacoalhava, tentando se salvar. Ele buscava apoio nos
pés, mas não havia saliência na rocha onde ele pudesse
pisar.
- Seu desgraçado! Ajude-me! – ele se enervou com a
minha omissão.
Fiquei parado, ainda observando-o. Era estranho. Aquele
ser, que desde o conheci era seguro de si, sarcástico,
tinha resposta para tudo, agora se encontrava ali,
temerário, embora ainda agressivo, mas implorando por
ajuda.
Lentamente fui me agachando e meus olhos
encontraram com os dele.
- Até que enfim. Puxe-me pra cima. Vamos! – ele gritou.
Não o obedeci. Honestamente, eu estava indiferente com
toda aquela situação. Precisava concluir o meu plano.
- E quem disse que vou te salvar?
Levantei-me. Dali, a minha vista se resumia ao mar de
lava que estava abaixo de nós e a rocha do fim do
caminho. Entre eles, oito dos dez dedos seguravam a
ponta do penhasco, evitando a queda do Mensageiro.
Ergui a perna direita. Num movimento rápido, pisei com
tudo em quatro dedos de uma das mãos do Mensageiro.
Ouvi um urro. O Mensageiro largou a pedra com a dor
sofrida. As falanges foram esmagadas com o impacto.
- Filho-da-puta! Que o diabo arranque o seu couro! Que
sofra eternamente no inferno!
Aproximei novamente dele.
- Antes dele arrancar o meu, eu vou me livrar do teu.
E com um outro golpe, desta vez com o pé esquerdo,
esmaguei os dedos restantes.
O que veio a seguir foi um grito de desespero. Olhei para
baixo, a tempo de ver o Mensageiro balançando o braço,
tentando reaver um equilíbrio que ele não teria ao ar
livre. Eu via desespero e angústia em seus olhos,
enquanto seu corpo caía em direção ao magma
estupidamente fervente. A primeira parte a tocar no
manto incandescente foram as costas. O baque fez com
que a lava respingasse ao redor, atingindo alguns pontos
daquele mar de inferno e da rocha que o contornava. Lá
de baixo, o grito veio como uma bala de canhão. Era de
arrepiar qualquer um. A lava foi aos poucos corroendo a
carne do Mensageiro. Aos poucos foi consumindo seus
órgãos. O grito cessou, enquanto a lava tomava parte do
cérebro. Seus olhos já não tinham vida. Em menos de um
minuto, o Mensageiro estava coberto por completo pela
manta de magma.

***

- Incrível – o Demônio tornou a falar – Não teves piedade


do meu servo. És de fato uma alma terrivelmente
maligna. És digno de substitui-lo.
Ao dar as costas para o penhasco, notei o novo
Devorador parado, me observando. Havia esquecido que
ele estava ali.
- E você? Porque não foi ajudar o seu patrão?
- Eu ia, mas ele – disse, apontando o dedo para cima,
indicando o vazio da caverna – entrou na minha mente,
ordenando que não interferisse na luta de vocês. – ele
deu um sorriso – Fiz certo. Afinal, o mais forte sobreviveu.
- Você consegue ser mais podre que eu – retruquei.
- Não há almas boas por aqui, senhor. Por isso que
estamos aqui. – ele respondeu.
Parei, encarando-o de cima para baixo.
- Qual o seu nome, filho?
- Guilherme, senhor.
- Certo – eu concordei, ainda um pouco afastado dele –
Agora, Guilherme, cai fora. Preciso ter uma conversa a
sós com o nosso patrão.
Talvez deve ter sido a força e a frieza que demonstrei na
luta contra o Mensageiro, mas o novo Devorador sequer
titubeou em deixar o local. Assim que pisou fora da
caverna, o portão de ferro se fechou.
- Pois bem, suponho que queiras me pedir algo em troca
pelos seus serviços, certo? O que é um pacto sem que
haja interesse pelos dois lados?! Há, há, há! – prontificou
o Demônio.
- Sim. E sei que você sabe o que eu quero.
O Demônio ficou em silêncio por um tempo, antes de
voltar a dialogar.
- Carlos, meu subordinado. Sabes tão bem quanto eu que
nunca fiz exceções. Aqueles que fazem pacto de um jeito
ou de outro pertencem a mim. Não tem volta.
- Está bem. – eu concordei – Você tem razão. Aqueles que
te procuram merecem vir para cá, ou serem
simplesmente eliminadas, como eu fazia. Então, como
novo Mensageiro, posso sugerir quais almas merecem o
não ser devoradas, certo?
O Diabo parou por um momento.
- Hum... de certo modo... isto faz parte do seu serviço.
- Pois bem. Então teremos um pacto, certo?
A voz se calou por um momento. Estava pensativo. Sabia
que eu o tinha encurralado.
- Você é tão tinhoso quanto eu, jovem insolente. – ele
disse – Sei o que pensas. Sei o que queres. Agora
entendo porque tiraste a existência do Mensageiro
anterior.
- É, fazia parte do plano.
- Você já é experiente no assunto, não é? – ele riu.
- Digamos que pratiquei muito durante a minha vida. – eu
deixei sair um sorriso no canto da boca. – E então, temos
um trato?
Mais uma vez houve um silêncio. Desta vez menor do
que o anterior.
- Sim. Até porque não tenho escolha. Não tenho outro
Mensageiro.
- Ótimo. – relaxei os ombros, como se tivesse tirado uma
grande rocha das costas. Sem me despedir, dei as costas
para o precipício. O Portão de ferro abriu-se novamente.
Do outro lado, Guilherme me esperava.
- Vamos garoto. Vou apresentar o seu novo mundo. A
começar pela sua moradia.
- Não posso ficar simplesmente na minha casa? – ele
perguntou.
- Depende. Você quer ser visto pelos seus vizinhos,
mesmo dado como morto? Quer arriscar em ser visto?
Ele parou por um momento. Sabia que depois de ter
aceitado aquela condição de ser um demônio Devorador
de Almas, não poderia mais ter os mesmos privilégios
que tinha quando era vivo. Assim como acontecia
comigo, eu sei que ele sempre se lembrará das
condições que o manteria de pé.
- Vou te mostrar seu novo lar. Você vai gostar. Morei lá na
minha época de Devorador. – eu disse, dando um tapinha
camarada nas costas de Guilherme.
EPÍLOGO

- Graças a Deus! Graças a Deus! – gritei.


Felizmente tudo aquilo não passou de um sonho.
Eu estava acordada, quase caindo da cama. O lençol já
não me cobria, estando todo enrolado no chão. O suor na
testa e a respiração ofegante me traziam as lembranças
daquele sonho horrível, que incrivelmente aparecia do
nada, dentro do contexto dos outros sonhos, e me
assustava todas as noites.
Tão incrível quanto o pesadelo era a hora que eu saía
dele. Olhei para o relógio. Três da manhã. Sabia que
aquilo não era normal. Era de outro mundo. Talvez um
aviso de que aquele disfarce que arrumei após a morte
de Carlos não iria muito longe.
Fiquei durante longos minutos deitada. Como nas outras
noites, bastava fechar os olhos novamente e tentar
relaxar que logo o sono vinha. Mas naquela noite estava
agitada o suficiente para permanecer na cama.
Irritada, me levantei. Como sempre, deixava uma garrafa
de água em cima da minha penteadeira. Aproximei-me
dela e fui enchendo um copo. Fui golando aos poucos o
líquido, que ia descendo refrescante pela minha
garganta. Enquanto bebia, me peguei novamente
pensando no meu pesadelo.
Eu sempre sonhava com algo diferente no começo. Um
sonho bom, sem sustos. Mas, ao cruzar por alguma
porta, ou algo que me levava a um ambiente diferente a
que eu estava, começava o trecho que sempre se repete.
Um lugar vazio. Cinza sob um silêncio absoluto. Não
havendo pessoas, ou qualquer tipo de ser. Ali estava eu.
De repente, do meu lado direito, o cinza dá lugar a um
tom mais azulado, com manchas brancas. Uma brisa
acariciava meu rosto. Adorava aquilo. O som de pássaros
parecia ressoar com vivacidade, mesmo não havendo
aves por ali. Era pacífico o momento.
Eu me esgueirava no limite entre o cinza e o azul. Não
conseguia entender o que era aquilo, mas era
embriagante. Era uma sensação que me levava para fora
do cinza. Fazia-me aventurar no azul. O som dos
pássaros soava mais harmônico e isso me incitava a
seguir para a imensidão da nova cor.
Eis que criei coragem. Primeiro o pé direito. Ele tocou no
azul. Assim como o cinza, ele era sólido, possível de se
caminhar. Não hesitei em apoiar o outro pé. Lentamente,
fui andando pelo desconhecido caminho celeste. Eu me
sentia anestesiada pela sensação de bem-estar. Era o
lugar perfeito para viver toda a eternidade. Bastava
fechar os olhos e deixar que tudo ao redor tomasse conta
de você.
Olhei para trás. Lá no cinza, um homem abria e fechava
os braços acima da cabeça, acenando para mim. A boca
dele mexia de forma rápida, mas não havia som. Eu
estava um pouco longe dali, mas via que ele se
movimentava desesperadamente. Fui voltando para ver
quem era.
Era Carlos.
Ele parecia falar algo que não chegava aos meus
ouvidos.
Era estranho.
Ele veio correndo até a borda que diferenciava o cinza do
azul. Ao tentar passar para o lado onde eu estava, ao
contrário de mim – que conseguia pisar com firmeza –, o
pé dele não conseguiu o apoio e seu corpo mergulhou no
azul.
Fui correndo para o local onde Carlos caiu. Olhava para
baixo. Parecia que eu estava em um piso de vidro.
Enxergava-o caindo cada vez mais na imensidão azul. Ele
caia virado para mim, esticando o braço, pedindo auxílio.
Eu me desesperava, tentando quebrar aquela proteção
que me deixava de pé.
Mas não conseguia.
Pulava, socava.
Nada.
Não conseguia mergulhar no azul para ajudá-lo.
Em um certo momento, quando Carlos já estava bem
distante de mim, o fundo azul abaixo dele parecia se
rachar, como uma fenda numa rocha. Uma coloração
vermelha tomava conta do buraco que começava a se
formar. Labaredas de fogo eram expelidos dali, e gritos
de pessoas ecoavam para fora.
No fim do sonho, eu não conseguia salvar Carlos da
queda. Sempre via o corpo dele ser engolido pelo fogo e
logo em seguida o buraco se fechava como uma cicatriz.
O choque era suficientemente forte para me acordar.
O sono já tinha ido embora. Ainda faltavam duas horas
para que as demais irmãs acordassem para se preparar
para a missa matinal. Ainda assim, preferi já me arrumar
para o dia que estava por vir.
Abri o guarda-roupas. Esticada no cabide, a bata me
aguardava para que eu a tirasse dali. Peguei-a e a levei
até ao banheiro, suspendendo-a no gancho preso atrás
da porta. Tirei o pijama, ficando completamente nua e
entrei direto no chuveiro. Abri o registro e a água, que
não era tão morna como acusava a chave de
temperatura. Caía como granizo sobre a minha cabeça.
Antes que me esqueça, preciso dizer onde estou agora.
Já faz mais de um mês desde a partida de Carlos para o
inferno, e logo após o acontecido, segui os conselhos do
falecido padre Augusto.

***
Eu tinha acabado de chegar na cidade, quando soube
que aquele papinho do Celsio de que me transformaria
numa dançarina famosa não passava tudo de uma
balela. Na verdade ele havia me transformado em uma
garota de programa do hotel-cassino dele, e muitas
vezes eu fazia trabalhos para fora. Nunca tentei escapar,
já que sabia que Celsio era bem influente naquela cidade
e eu não tinha ninguém ali para me ajudar. Se eu
tentasse fugir, sabia que eu seria caçada pelos seus
homens.
Depois de um dos programas que realizei fora do
cassino, resolvi voltar a pé para o complexo do Deuses
do Olimpo. O sol já despontava no horizonte e o clima
estava agradável. Mas nada disso tranquilizava o ódio
que eu sentia da vida. Fui rumando ao sul, na direção do
cassino. Sabia que no meio do caminho tinha o maior
parque da cidade. Geralmente eu o contornava. Mas
nesta manhã eu estava com tanto ódio, tanto ódio com
tudo aquilo que eu estava passando, que não me
importei em passar por algum tipo de perigo. Até porque,
naquele horário, com o sol já iluminando as copas das
árvores, duvidava que alguém se atrevesse a mexer
comigo. E mesmo assim, se eu fosse abordada por algum
assassino ou estuprador, eu estava disposta para descer
a porrada nele.
Fui caminhando por dentro do parque. Não o conhecia
muito bem, mas não deveria ser tão difícil. Bastava
caminhar em linha reta e eu chegava até o outro lado.
Após longos minutos andando por entre as plantas,
descobri uma clareira que havia no meio do parque. Na
verdade era um terreno grande, ocupado por um
cemitério, ao lado de uma grande igreja gótica.
A igreja do padre Augusto.
Àquela hora, a missa já tinha sido realizada e a catedral
gótica já estava aberta para visitações. Eu estava tão
farta de viver aquela vida de submundo, que resolvi
entrar na igreja, mesmo carregando nas minhas costas
todos os pecados adquiridos desde então.
Foi a partir deste dia que comecei a me confessar com
padre Augusto. Nas primeiras vezes fui muito relutante
em falar sobre a minha vida. Obviamente tinha medo de
que algo saísse daquela igreja e que pudesse causar
represálias por parte de Celsio. Mas aos poucos, o padre
Augusto mostrou ser um grande profissional, além de um
amigo.
Nas últimas confissões que fiz com ele, antes dele
morrer, ele insistiu comigo:
- Minha filha, porque não venha viver a vida de Cristo?
Tenho um contato no convento da cidade que poderá
ajudá-la. Estou certo de que a irmã Carmen irá recebê-la,
mesmo com todos os aspectos do seu passado. Assim
não precisará mais viver essa vida de luxúria.
No primeiro momento, sequer liguei para isso. Embora
seria uma forma de me livrar dessa vida de escrava
sexual, ainda assim tinha a perseguição dos homens de
Celsio. Não podia arriscar mais pessoas por motivos
pessoais.
Porém, após a maldita luta contra o Mensageiro e seu
novo Devorador de Almas, tanto eu quanto Carlos
chegamos à conclusão de que o Inferno não me deixaria
em paz. Mesmo sem o novo Devorador de Almas em
ação, eu ainda era uma alma imprestável e, assim
quando o Mensageiro conseguisse um outro servo, não
demoraria para que viesse atrás de mim.
Carlos havia me dito do seu plano, embora sem muitos
detalhes. Ele deveria ir ao Inferno para tratar do assunto
com o próprio Diabo. Faria um pacto de servidão eterna
em troca da minha alma. Era a única maneira para me
dar um pouco de paz em vida e me livrar das Trevas na
morte.
Será que ele conseguiu?
Não sei. Depois que ele se jogou para dentro da igreja e
ter se autocarbonizado, fora os pesadelos que tenho com
ele, nunca mais vi vestígio algum de Carlos. Ou do
Mensageiro. Ou de um novo Devorador.
Naquela mesma noite, também tomei uma decisão.
Assim como Carlos foi para o Inferno para resolver a
situação, resolvi me preservar (vai que o Mensageiro
resolvesse atacar antes que Carlos conseguisse realizar o
pacto com o Demônio...). Assim, corri até o convento
sugerido pelo padre Augusto. Por ficar um pouco distante
da cidade, só consegui chegar lá no fim da manhã.
Como previsto pelo padre Augusto, fui recepcionada pela
a irmã Carmen, que me atendeu ainda ressabiada.
Expliquei em partes minha situação – obviamente omiti o
fato de que eu estava sendo perseguida pelos seres do
Inferno – e, ao falar o nome do padre, ela deixou a
desconfiança de lado e não hesitou em me acolher. Se a
lógica se confirmasse, nenhum ser das Trevas seria
capaz de entrar em um lugar de Cristo. Então, aqui estou
eu, dentro do convento administrado pela irmã Carmen.

***

Após ter tomado o meu banho e colocado a bata, saí do


meu quarto. Como sempre, os corredores do convento
estavam silenciosos. Nem um vento sequer soprava para
aliviar um pouco o calor. Olhei para o relógio no meu
pulso, escondido pela veste. Faltava pouco para as
quatro da manhã. Mais uma hora e as irmãs estariam
acordadas para começarem os trabalhos do café-da-
manhã. Eu também era uma das quem cuidava disso. E
iria, claro. Nunca faltei a um compromisso aqui dentro,
em questão de respeito por terem me aceito.
Caminhei até a porta principal. Embora estava fechada,
eu tinha a chave. Isso porque era eu quem sempre
pegava os pães bem cedo, quando o padeiro estacionava
o carro na frente do convento e abastecia nossa cozinha.
Porém ainda faltava muito para o padeiro chegar. Ele
costumava passar umas seis da manhã. Ainda restavam
duas horas.
Abri a porta. O céu estava ainda escuro, embora já se
podia notar os primeiros tons de azul surgindo no
horizonte. Na frente da porta do convento havia um lindo
jardim, contendo flores dos mais variados tipos. Naquela
época do ano, as flores estavam desabrochando e as
suas cores tomavam conta do verde. Aquela madrugada
estava refrescante para a manhã que prometia calor.
No meio do jardim havia alguns bancos de ferro. Escolhi
um deles e sentei-me. Fechei os olhos. Minha mente
começou a desenhar dentro da escuridão a figura de
Carlos. Deixei-a agir naturalmente. Admito que estava
angustiada em saber como ele se saiu lá no Inferno. Se
tinha conseguido ludibriar o Demônio. Essa era uma
pergunta que me atordoava todos os dias.
Meu devaneio foi interrompido. Uma luz era disparada,
ainda que fraca, no meu rosto. Ao abrir os olhos
novamente, minha atenção se voltou para o outro lado
da rua, de onde estava vindo a luz. Através das grades
de ferro que estavam instaladas acima do muro de um
metro e meio, eu podia ver seis pequenas luzes
escarlates. Elas se movimentavam em direção ao portão
de acesso. Além da cor escarlate, de acordo com o
movimento, uma luz prata também reluzia. Eu já tinha
visto aquilo. Sabia o que eu podia esperar.
Porém, invés de me afastar, decidi me levantar e fui
seguindo em direção ao portão. Não estava com medo.
Sabia que estava protegida dentro de uma das
propriedades de Deus. Estava mesmo era curiosa. Tinha
muitas perguntas a fazer para aquele que possui o cetro
de Cérberus.
O Mensageiro.
Ele tinha chegado primeiro do que eu no portão. O terno
branco estava impecável. A gravata estava
elegantemente encaixada no colarinho e descia até a
abotoadura do paletó. Porém, a postura dele era
diferente. A estatura dele também era diferente.
Fui me aproximando. À medida que ia chegando ao
portão, meu coração batia cada vez mais veloz. Pensava
que minha visão me enganava. Eu via um outro rosto
diferente daquele que eu repudiava. Era um rosto que
me trazia segurança e alegria por estar ali.
Eu conhecia aquele rosto e almejava tocar novamente
naquele corpo.
- Carlos! – gritei, eufórica.
Corri até o portão, buscando desesperada no molho pela
chave que o abria. Consegui localizá-la e enquanto eu
tentava colocá-la na fechadura – difícil quando se está
tremendo – eu o olhava, admirando aquele sorriso de
canto que só ele sabia fazer. Assim que consegui me
livrar do portão da tranca, abri-o com força e, num salto
me agarrei em Carlos de uma forma que parecia não
querer soltá-lo nunca mais. Bem, de fato era o que eu
queria.
- Ora, não sabia que uma freira podia agarrar um homem
no meio da rua – ele brincou, enquanto me abraçava
também.
Eu comecei a chorar. Parecia aquelas menininhas
inocentes de colegial quando vê o namoradinho.
- Então o plano deu certo! – eu disse.
- Bem, de certa maneira.
Interrompi o abraço, afastando minha cabeça do ombro
dele.
- Certa maneira? Como assim?
Ele me afastou com serenidade. Ele parecia mudado.
Parecia mais tranquilo.
Carlos começou a me contar tudo o que aconteceu
durante a sua segunda passagem pelo Inferno. Disse
sobre como exterminou o Mensageiro e o pacto feito com
o Demônio. Por um momento eu vi a tristeza brotar no
semblante dele, ao dizer que, ao se tornar Mensageiro
conseguiu me livrar dos ataques dos Devoradores.
Porém, isso não irá impedir que eu siga para o Inferno
após a minha morte.
- Enquanto você estiver aqui, viva, virei te ver. É uma
forma de me certificar que tudo estará bem.
- Você está no comando dos Devoradores. Tenho certeza
de que ficarei bem.
Ele deu um pequeno sorriso.
- Não se esqueça com quem estamos lidando. Ele é
traiçoeiro. Não podemos deixar brechas.
- Eu sei, querido. Eu sei.
Eu o abracei novamente. Ainda encostada nele, o
perguntei:
- E quando eu morrer e for para o Inferno? Como será?
Ele me olhou com surpresa.
- O que foi? – eu o perguntei.
- Pensei que ficaria assustada com a ideia de ir para lá. –
ele me respondeu, meio sem jeito.
- Não estou. – disse, abraçando-o com mais força – O
meu maior medo era justamente o contrário.
Não poder ir para lá e nunca mais vê-lo.
Ainda abraçada, levantei minha cabeça, buscando os
olhos dele. Concluí com extrema serenidade:
- Não me importo de ir para o Inferno com você.
Aguarde-me e, quando chegar a minha hora, então
poderemos ficar juntos por toda a eternidade. Para
sempre.
FIM

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