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A primeira vez que o vi foi em um bar chamado Ophelia's em uma noite

de quinta-feira. Eu estava lá para afogar minhas tristezas depois de um dia


difícil, ele estava lá para escapar da tempestade. Depois de uma troca breve, mas
incrivelmente cruel, o estranho bonito fugiu antes que eu tivesse a chance de
repreendê-lo. Furiosa e com dois coquetéis bebidos, eu o segui porta afora,
determinada a dar ao audacioso Adônis um pedaço da minha mente – e o
guarda-chuva que ele havia esquecido.

Correndo atrás dele de salto e mal conseguindo acompanhar a chuva


congelante, terminei minha perseguição quando percebi para onde ele estava
indo.

Eles dizem para nunca julgar alguém a menos que você conheça sua
história.

Eu nunca poderia ter antecipado a sua...

E eu nunca poderia ter previsto a forma como nossos caminhos se


cruzariam novamente – ou que um dia me encontraria me apaixonando por um
homem com uma cavidade vazia onde seu coração deveria estar, um homem tão
insensível quanto bonito, tão complicado quanto hipnotizante.

Eles dizem para nunca julgar alguém a menos que você conheça sua
história.

Esta é a nossa.
“Não me diga que você ama a chuva quando não fica para vê-
la secar, depois que ela se apaixonou por você.”

– Lauren Eden, Of Yesteryear


Para Jennifer, a estranha mais gentil que já conheci.
Astaire

Não era para chover hoje.

Estou no tapete de borracha da entrada de um bar


chamado Ophelia's, encharcada até os ossos, a água fria de
janeiro pingando do meu casaco de lã em riachos, os dedos
dos pés dormentes nos meus saltos pontudos.

A placa do banheiro feminino pisca em neon, e não


perco tempo trotando para o fundo do espaço estreito, me
esquivando pelas portas de vaivém e me posicionando na
frente do primeiro espelho vazio que encontro.

No instante em que encontro meu olhar no reflexo, sei


que deveria ter ficado em casa esta noite.

Que tipo de pessoa marca no aniversário de um ano da


morte de seu noivo um encontro às cegas?

Uma pessoa que não pode dizer não a nada e nem a


ninguém – eu sou essa pessoa.

A Sra. Angelino tinha boas intenções, tentando me


arrumar com o sobrinho, e eu sabia melhor, concordando em
ir apesar de cada átomo do meu corpo gritar para que eu lhe
contasse a verdade... que simplesmente não estou pronta.

Penduro meu casaco em um cabide de parede próximo e


volto a me olhar no espelho.

— Fraca. — Eu bato minha bolsa na pia de porcelana


branca e começo a cavar dentro em busca de uma escova de
cabelo, um laço, qualquer coisa para domar minhas ondas
úmidas de loiro-bebê. — Fraca, fraca, fraca.

Eu localizo uma miniescova úmida e um elástico tão


esticado que poderia arrebentar sem aviso, então eu ajeito
meu cabelo para trás, torcendo-o em um coque baixo e
prendendo-o na nuca.

Quando eu olho para cima novamente, eu percebo que


meu rímel se acomodou abaixo da linha dos meus cílios – não
exatamente o olhar esfumaçado que eu pretendia.

Puxando uma toalha de papel do distribuidor próximo,


eu dobro em quatro antes de colocá-la em água morna.

Atrás de mim, a porta do box do banheiro se abre e uma


loira de pernas compridas em um vestido de suéter de cor cru
cortado e botas pretas de cano alto sai, curvando-se sobre a
pia um segundo depois para lavar as mãos. Nossos olhares se
cruzam enquanto tento remover os restos do meu Great
Lash1, e ela oferece um meio sorriso simpático.

1 Nome do rímel que ela usa da marca Maybelline


— Você está bem? — A mulher pega uma toalha de
papel, sem pressa. Suas unhas cor de rosa são brilhantes e
envernizadas, seus dedos longos e finos. Tudo nela é suave e
elegante, um contraste chocante contra minha condição
atual.

— Não estava esperando ser pega pela chuva. Deveria


encontrar alguém em alguns minutos. Espero que ele não
apareça.

— Tarde demais para cancelar?

— Eu não sei o número dele. Uma colega de trabalho


armou para nós. É o sobrinho dela. Tudo que sei é que ele
tem um metro e oitenta de altura, cabelos escuros e seu
nome é Garrett. Ela diz que ele é incrivelmente bonito, mas ela
é tia dele, então... — Eu rio pelo nariz com o absurdo de toda
essa situação, e é então que eu noto uma mecha de cabelo
ainda espetada. Com cuidado, puxo o elástico e refaço meu
coque baixo, alisando as palmas das mãos sobre minha crina
meio seca. Mas não há nada que eu possa fazer sobre o rímel
totalmente seco sob meus olhos. — Não consigo conhecer um
completo estranho assim.

A mulher estuda meu rosto antes de colocar sua bolsa


enorme ao lado da pia.

— Acontece que eu trabalho no balcão de maquiagem


Catherine DeAngelo no shopping nos fins de semana. — Sua
voz é leve, cantante — O que significa que estou com você,
garota.
Em segundos, ela puxa um pacote do tamanho viagem
de toalhas de removedor de maquiagem com infusão de
camomila e os oferece com uma piscadela.

— Você é uma santa. Verdadeiramente. Muito obrigada.


— Eu puxo um pano do estojo e me limpo, mas quando
termino, pareço mais exausta do que renovada.

Eu juro que os círculos sob meus olhos estão um tom


mais escuro do que antes – provavelmente de tanto esfregar e
esfregar – e meus cílios claros são praticamente invisíveis.

Eu expiro, me lembrando de que aparência não é tudo,


que há uma chance dele achar minha aparência de rato
afogado... cativante?

— Uh oh. Eu conheço esse olhar. Espere. —


Mergulhando a mão no fundo da bolsa, ela tateia antes de
tirar um punhado de batons e máscaras em miniatura. Ela
verifica os nomes no fundo dos tubos de ouro brilhante antes
de me entregar um. — Essa cor ficaria perfeita em você. Não
se assuste com o brilho que fica no tubo. É completamente
diferente depois de ativado. Ah, e aqui está um pouco de
rímel. Esses são novos, aliás. Caso você tenha alguma coisa
sobre germes.

— Oh querida. Eu ensino no jardim de infância. Os


germes não me assustam. — Eu bato minha mão antes de
aceitar graciosamente seus presentes.
Tirando a tampa do batom, encontro uma marca ousada
da cor de papoulas psicodélicas, mas confio nessa mulher,
então a coloco sobre meus lábios. A recompensa é
maravilhosa, como uma lavagem de cor fresca em minha
boca rosa pálida, trazendo instantaneamente minha pele
pálida de volta à vida. Eu passo duas camadas de rímel em
seguida. Não é uma mudança de vida, mas oferece uma
distração das olheiras, então considero uma vitória.

— Para que conste, você está chique como o diabo, mas


você estava linda antes. — Ela joga a bolsa sobre o ombro
ágil, uma mão no quadril. — E qualquer idiota que se
importasse que você foi pega em uma tempestade não valeria
um segundo encontro, de qualquer maneira.

— Eu sei... é só... este é o primeiro encontro que eu


tenho em... muito tempo.

Cinco anos para ser exata.

Não entro nessa história de noivo morto porque acho


que tende a deprimir as pessoas – inclusive eu, e nem mesmo
sei o nome da minha nova fada madrinha.

Desembalar todo aquele peso sobre uma estranha de


bom coração seria cruel.

— Não, eu entendo. Encontros são difíceis. É ainda mais


difícil quando você está sem prática. — Colocando a mão no
meu ombro ao sair, ela me dá um aperto reconfortante. — Eu
sou Ophelia, a propósito. Meu pai é o dono deste lugar. Diga
a Eduardo no bar que sua primeira bebida é por minha
conta.

Com isso, ela se foi.

Eu me dou uma última olhada no espelho antes de


puxar meus ombros para trás, recolher minhas coisas e ir
para o bar.

The Killers toca nos alto-falantes no teto e um grupo de


homens de meia-idade com cabelos penteados e ternos caros
pede uma rodada de doses de tequila.

Não me preocupo em vasculhar a sala em busca de


Garrett, vou direto para Eduardo no bar, descontando meu
cupom verbal em troca de um gim-tônica de primeira linha, e
depois me sirvo de um punhado de pretzels porque eu não
como desde as onze horas de hoje.

Dez minutos depois, o calor me percorre.

Minha respiração se acalma, não mais engatada e


irregular.

Meus ombros descongelam, permitindo-me derreter


confortavelmente em meu assento.

Duas mesas abaixo, um casal com taças de Martini.

A mesa de ternos e gravatas está apreciando cervejas


escuras agora.
Três mulheres, todas vestidas com sua melhor roupa
casual de escritório, lamentam sobre bebidas coloridas em
copos altos à minha esquerda. À minha direita está um banco
vazio.

O relógio acima da porta marca seis e vinte e sete.


Parece que ele está, de fato, me deixando sozinha.

Cuidado com o que você deseja...

— Posso pegar mais um desses? — Eu levanto meu copo


quando Eduardo me verifica.

Esta noite eu beberei para Trevor – para sua memória,


para o que poderia ter sido.

Um minuto depois, minha velha bebida é substituída.


Eu particularmente não gosto de gim-tônica, mas essa
sempre foi a preferida de Trevor. Ele nunca gostou de IPAs2
ou cervejas artesanais ou Jager-bombs3-com-os-caras. E ele
odiava qualquer coisa remotamente doce. Ele gostava muito
de um bom clássico de primeira classe – o que era adequado
porque ele era um bom clássico de primeira classe.

Meus olhos começam a queimar, mas eu forço as


lágrimas para longe.

Disse a mim mesma que não choraria hoje.

2 São cervejas amargas devido a concentração de lúpulos, extremamente aromáticas, refrescantes e


fáceis de beber. Um estilo que veio da Índia.
3 Um drinque feito da combinação do Jägermeister com o energético.
O Senhor sabe que fiz isso mais do que o suficiente nos
últimos doze meses.

Tomando um gole, minha atenção é sequestrada por


uma rajada de ar gelado que varre o bar e o estremecimento
de sacudir o chão que segue quando a porta bate.

Olhando por cima do ombro, vejo um homem de cabelos


escuros, facilmente com um metro e oitenta de altura. Ele
retrai seu guarda-chuva molhado pela chuva e o inclina
contra a parede antes de ir em direção ao bar, e então ele
rouba o último lugar no final – cinco lugares abaixo de mim,
pendurando seu sobretudo de lã no encosto do banco antes
de se sentar.

Eduardo o cumprimenta, limpando a mesa à sua frente


com uma toalha limpa, meio curvado e balançando a cabeça
em rápida sucessão.

Espero até que o Eduardo volte com a bebida do homem


– que parece ser uma dose tripla de vodca pura sobre dois
quadrados perfeitos de gelo em um copo antiquado – antes de
me apropriar de um olhar mais atento sobre o homem
misterioso.

Através da névoa sombria de Ophelia, meu olhar


desfocado luta para se fixar em primeiro lugar. E então eu o
vejo perfeitamente.

Maçãs do rosto cinzeladas.


Cabelo cor de obsidiana 4impecavelmente penteado.

Ombros largos dificilmente aparecendo em um suéter de


cashmere azul marinho.

Mandíbula terrivelmente atrativa

Este poderia ser...?

Esse é o sobrinho da Sra. Angelino?

Eu tomo um gole generoso de gim-tônica, pensando na


melhor forma de me apresentar. Minhas palmas formigam e
eu as esfrego contra o topo das minhas coxas, puxando uma
respiração superficial.

Há uma chance de que este homem não seja Garrett, e


quanto mais eu penso sobre isso, provavelmente ele não é.
Eu ainda não o peguei vasculhando a sala em busca de
alguém.

Mas ainda – se for ele, eu odiaria que ele pensasse que


estou furando o encontro. Eu nunca faria isso com ninguém,
por qualquer motivo. O mantra da minha vida pode ser
resumido ao dizer “faça aos outros...”.

Limpando minha garganta, eu me inclino em sua


direção. — Desculpe?

Ele não me ouve.

4 Cor escura.
Acenando minha mão para capturar sua atenção, digo
novamente: — Oi. Desculpe.

Nada ainda.

É como se ele estivesse em seu próprio mundo – a três


metros de distância.

O sorriso amigável da professora de jardim de infância


oscilando em meus lábios manchados de papoula desaparece
com a percepção de que estou sendo ignorada.

— Oi, com licença... — Terceira vez é o charme. Eu


aceno mais uma vez, balançando meus dedos do jeito que
você educadamente acenaria para um garçom de restaurante.

O homem se vira para a esquerda, as sobrancelhas


escuras franzidas e o olhar fixo na minha direção – e então
ele faz a coisa mais louca: levando o dedo aos lábios, ele me
cala.

Ele. Me. Cala.

Como uma criança.

Olhando para frente, tomo outro gole, o copo tremendo


em minha mão enquanto um coquetel de pensamentos enche
minha cabeça. O espelho atrás do bar captura meu reflexo, e
não é bonito, mas desta vez não tem nada a ver com o coque
louro-claro úmido e duro ou as mudanças do banheiro do
bar.
A decência humana básica é a única coisa que mais
valorizo neste mundo, e este homem não tem nada disso.

Todo o peso de seu olhar penetrante me ancora em meu


assento, e cada átomo do meu corpo está gritando para que
eu fique, para não marchar três metros abaixo no bar para
dar a ele um pedaço de minha mente.

Mas hoje marca o aniversário de um dos piores dias da


minha vida, fui pega por uma tempestade e meu encontro
não veio, e estou com cerca de dois coquetéis dentro do
corpo.

Meu autocontrole não existe.

Com a bebida na mão, deslizo da cadeira e caminho em


direção ao babaca irritantemente bonito com o suéter de
quinhentos dólares, mas antes que eu tenha a chance de
dizer uma única palavra, ele fala primeiro: — Você parece
incrivelmente insegura sobre algo. Você está bem?

— Desculpe? — Estou olhando feio, e nunca olho feio.


Isso não é bom. Este homem está prestes a revelar um lado
meu que eu nunca soube que existia. E do que diabos ele
está falando? Insegura? — Que tipo de...

— Que tipo de idiota incomoda um estranho sem


motivo? — Ele comanda minha pergunta como se a
possuísse. — Deixe-me perguntar uma coisa, quando você me
viu entrar, me viu sentar no final do bar, longe de todos, que
parte disso te deu a impressão de que eu queria ser
incomodado?

O homem tem razão – especialmente se ele não for


Garrett.

Mas isso ainda não o torna menos irritante.

— Eu não estava tentando incomodar você, eu estava...

— Sério? — Seus lábios carnudos puxaram em um


sorriso tenso, seu tom tão afiado quanto incrédulo. — Porque
tenho quase certeza de que você estava acenando para mim,
sorrindo e dizendo 'Oi, com licença' naquela vozinha bonitinha
cinquenta mil vezes... Você estava tentando me incomodar.

— Você é sempre tão cruel?

— Você está sempre tão desesperada? — Ele não perde o


ritmo.

Meu aperto fica mais forte no meu copo. Eu adoraria


jogar o resto desta bebida em seu pretensioso suéter de grife.

Sorte dele que não é meu estilo.

Além disso, seria uma pena desperdiçar todo aquele


licor da prateleira superior com um bastardo da prateleira
inferior.

— Para sua informação, eu deveria encontrar alguém


aqui esta noite. Alguém que se encaixa na sua descrição, —
eu digo.
Sua mandíbula se contrai.

Ele toma um gole de sua bebida olhando para frente,


exibindo um sorriso malicioso que anuncia uma covinha
perfeita no meio de sua bochecha. — Claro que você estava.

— O que, você acha que isso é algo que eu faço para


conhecer homens? — Minha voz está mais aguda do que eu
pretendia.

— Você disse isso. — Suas sobrancelhas sobem


enquanto ele centraliza sua bebida em um suporte de
bebidas.

— Não se iluda. Você não faz meu tipo.

Ele aspira. — Eu sou o tipo de todo mundo.

Estou... sem palavras.

Ele é idiota de verdade?!

Este estranho vexatório não é apenas cruel, sem coração


e sem a decência humana básica, ele também é o epítome da
arrogância.

— Você pode sair agora. — Ele acena para mim, mas


estou atordoada em silêncio enquanto tento organizar meus
pensamentos para que eu possa deixá-lo com um último
toque de resposta.

— Está tudo bem aqui? — Eduardo está curvado do


outro lado do bar, seu olhar vigilante passando entre nós. Eu
juro que ele apareceu do nada – isso ou eu estava muito
distraída pela audácia obstinada desse homem para notá-lo
se aproximando de nós.

O arrogante Adônis me lança um olhar antes de voltar


sua atenção para o barman.

— Estamos bem, Eduardo. — Diz ele. — Eu estava


dando à nossa amiga aqui uma lição de etiqueta, adequação e
decoro básico.

Mais uma vez, não tenho palavras.

Levantando-se do banquinho do bar, ele termina o resto


de sua bebida com um gole suave antes de ir para o armário
de casacos, dirigir-se para a porta e desaparecer na noite fria
e escura.

As gotas de chuva caem nas janelas, obscurecendo tudo


e qualquer coisa do outro lado do vidro.

Desvencilhando meu olhar infrutífero daquela direção,


ele pousa em um guarda-chuva encostado na parede ao lado
da porta.

Seu guarda-chuva.

O preto escuro.

A cor de sua alma – ou o espaço vazio em seu peito onde


seu coração deveria estar.

Apropriado.
Sem pensar duas vezes, coloco uma nota de vinte no
balcão e visto o casaco.

Um momento depois, estou agarrando a coisa estúpida e


mergulhando na chuva, rezando para pegá-lo a tempo.

Por mais furiosa que eu esteja, por mais enfurecedor


que ele seja, às vezes a melhor coisa a fazer é lutar contra a
crueldade com bondade. É algo que aprendi cedo na minha
vida e algo que ensino aos meus alunos desde o segundo em
que eles entram na minha sala de aula.

Eu o localizo no final do quarteirão, esperando o


semáforo mudar.

Pegando meu ritmo, eu galopo sobre concreto rachado e


esburacado, passo por moradores locais com guarda-chuvas
– e chego ao final da rua bem a tempo de a luz piscar de
branco neon para laranja sinal de alerta, me forçando a
parar.

Eu espero onde estou, meu olhar fixo nele, caso ele vire
em uma rua lateral.

Os semáforos começam a mudar e, em segundos, a faixa


de pedestres fica branca.

Eu corro, ignorando as pungentes gotas de chuva fria


caindo sobre minha pele, o ar frio cortando minhas roupas e
o aperto doloroso em minha mandíbula que impede meus
dentes de rangerem.
Estou a apenas meio quarteirão dele quando ele se vira
e desaparece dentro de uma empresa local.

Mas não é qualquer negócio... é a funerária Paulley-


Hallbrook – um lugar que conheço bem.

Um momento depois, estou parada do lado de fora das


mesmas portas que ele entrou há poucos momentos,
congelada em todos os sentidos da palavra.

A chuva diminui, suavemente.

E então para.

Cheiro de terra molhada enche meus pulmões quando


eu testemunho o homem misterioso de cabelo escuro e
coração cruel sendo saudado por uma senhora em um
terninho carvão.

Ela coloca a mão em seu ombro e dá a ele um


estremecimento de desculpas antes de escoltá-lo embora.

Eu queria dar a ele o guarda-chuva para lhe ensinar


uma lição de compaixão.

A ironia disso não passou despercebida.


Bennett

— Desculpe estou atrasado. Vim assim que pude, —


minto.

Eu não me apressei para vir aqui.

Eu demorei.

E parei na rua para tomar um drinque e primeiro reunir


meus pensamentos – um erro, em retrospectiva, graças a
uma mulher audaciosa, mas isso não é realmente
importante.

— Por favor, desculpas não são necessárias. — A agente


funerária – um tipo de avó que cheira a flores mortas e
perfumes baratos e dá muitos abraços e apertos de braço –
pendura meu casaco encharcado em um cabide de madeira
em seu escritório. Deixei meu guarda-chuva no bar. Eu não
vou voltar para isso. — Por que você não se senta lá e
podemos começar?

Eu verifico meu relógio.

Sento-me.
Rezo para que isso não leve a noite toda.

A mulher, cujo crachá diz CLAUDETTE PAULLEY,


DIRETORA, se espreme em sua cadeira do outro lado da
mesa e pega um pequeno livreto de uma pilha à sua
esquerda. A capa mostra um caixão branco brilhante cercado
por arranjos florais perfeitos demais para serem reais.

— Quando falamos ao telefone mais cedo — ela disse, —


você mencionou a cremação. Isso ainda...

— Sim. — Não tenho tempo para suas perguntas


imprudentes e demoradas.

Uma vez que minha mente está tomada, nunca há como


mudá-la.

— Tudo bem então. — Ela me dá um sorriso suave. Seu


batom rosa brilhante ultrapassa as linhas ao redor de sua
boca.

— Por que não discutimos o serviço? — Ela olha para


mim e depois para suas mãos torcendo. Devo deixá-la
nervosa. — E então eu posso te mostrar algumas opções de
urnas adoráveis...

— Não haverá serviço. — Eu me movo nesta cadeira


impossivelmente desconfortável. — E você pode escolher a
urna. Surpreenda-me.

Seu lábio forma um 'o' enrugado e ela pisca antes de


reanimar. — Entendo isso.
— Larissa não tinha muitos amigos. — Pelo menos
nenhum que eu permitiria a cem metros deste lugar. — E no
que diz respeito à família, somos bastante privados. Um
pequeno memorial deve ser suficiente. Uma ou duas horas
neste sábado, se você puder nos acomodar.

Claudette procura meu rosto em busca do que presumo


serem emoções, mas seu tempo seria melhor gasto
trabalhando os detalhes finais do memorial de Larissa.

Pegando uma agenda preta com capa de couro, ela abre


para a data de hoje antes de lamber o dedo indicador e
passar para sábado.

— Poderíamos fazer das dez ao meio-dia. — Ela pega um


lápis com o logotipo em uma caneca cheia de outros lápis
com o logotipo.

Elegante

— Você não tem nada antes?

Ela aperta os olhos. — Bem, certamente poderíamos


mudar isso. O momento é normalmente mais uma questão de
conveniência. Se colocarmos muito cedo pode ser difícil para
algumas pessoas chegarem aqui, especialmente se vierem de
fora da cidade.

— Posso garantir que isso não será um problema. — Eu


verifico meu relógio de novo, não porque eu tenho outro lugar
para estar, mas porque essa mulher precisa terminar já com
esse show de merda.
Ela rabisca algumas palavras em sua agenda com uma
caligrafia confusa e trêmula. — Oito até as dez, então. Agora,
no que diz respeito ao obituário, tenho um formulário que
você pode preencher ou posso repassar tudo com você
pessoalmente.

— O formulário está bom.

Sua cadeira de carvalho amarelo range quando ela abre


uma gaveta da mesa, e então ela pega uma prancheta de
plástico lascada e um pedaço de papel antes de entregá-los.

Este lugar é todo chique e formal.

Minha mãe, amante da alta-costura, certamente não


poupou despesas quando mandou o cadáver sem vida de
Larissa para cá.

As perguntas são infinitas e não sei a resposta para


metade delas.

As respostas para a outra metade são estranhas e


desnecessárias.

Não tenho tempo para escrever uma biografia de merda.

Escrevo a data de nascimento dela na primeira linha –


22 de fevereiro.

Eles já têm sua data de morte.

Todo o resto é irrelevante.


Astaire

— Posso te perguntar uma coisa? — De volta ao bar de


Ophelia, deslizo meu copo de água vazio na direção de
Eduardo. Estou sentada aqui há mais de uma hora,
esperando ficar sóbria o suficiente para ir para casa. — É
meio aleatório...

Isso não é verdade.

Minha pergunta não é aleatória – não sei por que disse


isso.

— Certo. — Ele dá de ombros, olhando um casal


enquanto eles tropeçam para fora da porta.

— Quem era aquele cara? — Eu aponto para o banco


vazio do bar no final. — Aquele que estava aqui antes?

— Aquele que você expulsou daqui? — Ele funga. Não


sei dizer se ele está irritado, divertido ou outra coisa.

— Ele esqueceu seu guarda-chuva... — eu sou rápida


em defender minhas ações — Mas sim. Quem era aquele?
— Shane Bock. — Ele limpa uma partícula de
condensação do topo do balcão com o pano.

— Ele é daqui?

— Ele é. — Eduardo levanta as mãos. — Mas olhe, o que


quer que tenha acontecido entre vocês dois antes, eu não
quero qualquer parte nisso. Parecia muito intenso.

— Para dizer o mínimo. — Eu balanço minha cabeça,


nossa conversa ainda fresca na minha cabeça girando. — Eu
deveria encontrar alguém aqui esta noite e pensei que fosse o
cara. Nem tive a chance de perguntar se ele era Garrett antes
de começar a me acusar de dar em cima dele. Quem faz isso?

— Garrett, você disse? Um cara esteve aqui antes com o


nome de Garrett. Ele estava procurando se encontrar com
alguém, mas não esperou tanto. Acho que foi por volta dos
seis? Não ficou mais de dez minutos.

Meu estômago afunda.

Deve ter sido quando eu estava no banheiro tentando


salvar meu visual de encontro noturno.

— Cabelo escuro? Alto?

— Algo assim — ele confirma.

Este dia pode se ferrar. Verdadeiramente.


Eu verifico a hora no meu telefone. Eu poderia jurar que
estive aqui a noite toda, mas só se passaram algumas horas,
no máximo.

Por segurança, decido beber mais um copo d'água e


esperar mais uma hora – porque é isso que as pessoas
decentes fazem, e eu sou uma pessoa decente.

Também estou decentemente curiosa.

— Aquele cara, Shane — digo a Eduardo quando ele


passa para me ver um pouco depois.

Uma melancólica canção do Muse toca nos alto-falantes


e, do lado de fora, um homem acende um cigarro para uma
mulher de vestido vermelho. O lugar fica mais vazio a cada
minuto.

— Ah. Voltamos a isso? — Ele descansa o punho contra


o bar, fingindo aborrecimento. Ou talvez ele esteja realmente
irritado.

Nesse ponto, não importa.

A curiosidade está dirigindo o navio e não há como


voltar atrás.

— Você disse que ele é daqui?

— Já ouviu falar da Shane Bock Corporation?

— Não. — Eu descanso meu cotovelo no topo do bar e


meu queixo na minha mão, toda ouvidos.
— Você não é daqui, é?

Eu bebo minha água. — Mudei para cá há dois anos.


Arranjei um emprego como professora de jardim de infância
na Starwood.

— Adorável — ele diz, embora eu acredite que esteja


sendo sarcástico. — Dois anos aqui e você nunca viu uma
ponte Shane Bock? Nunca passou pelo Shane Bock Park?
Caminhou pela trilha Shane Bock?

Eu vasculho meu cérebro e não consigo pensar em uma


única vez em que encontrei alguma coisa de Shane Bock. E
que tipo de homem nomeia todas essas coisas com seu
próprio nome? A menos que seja um nome de família? Talvez
seu avô fosse um Shane, embora eu não consiga imaginar
que esse fosse um nome comum há setenta e tantos anos.

— A família dele — continua Eduardo, — é praticamente


da realeza de Chicago. Tem certeza de que nunca ouviu falar
da Shane Bock Corporation?

Eu balancei minha cabeça.

— Eles são donos daquela fábrica no lado oeste —


continua ele, apontando, — aquela que faz produtos
plásticos. E eles são donos daquelas lojas de móveis que
estão por todo o estado. Uma agência nacional de seguros,
um time de beisebol da liga principal...
Eu levanto a palma da mão. — Certo. Entendi. Ele tem
bens acumulados e diversificados. Mas ele é sempre tão...
extremo?

Não conto a ele sobre a casa funerária de propósito – na


esperança de que Eduardo saiba de alguma coisa e
compartilhe voluntariamente. Maldição, se contar a ele que o
segui até a casa funerária da esquina... sendo louca ou não,
mas estou me dando uma chance por esta noite.

Eduardo pondera minha pergunta, os cantos de sua


boca fina curvando-se enquanto ele levanta um único ombro.
— Honestamente, ele vem aqui cerca de uma vez por semana,
e é o máximo que eu já o vi falar com alguém. Você deve se
considerar com sorte.

Eu rio porque ele só pode estar brincando... Só me


encontro com uma expressão sombria.

Estou a segundos de responder quando algo pega o


canto do meu olho.

Um logotipo prateado.

Na alça do guarda-chuva.

SCHOENBACH CORPORATION

Schoenbach... Shane Bock.

— Posso pegar mais alguma coisa? Outra água? —


Eduardo muda de assunto, batendo os dedos na beirada do
balcão.
Juntando uma golfada de ar desbotado com perfume e
uísque, eu balanço minha cabeça e, no instante em que ele
vai embora, pego meu telefone na bolsa. Com dedos elétricos,
digito o nome "Schoenbach" em um mecanismo de busca,
combinando-o com palavras como "obituário" e "Paulley-
Hallbrook Funeral Home" e "Worthington Heights, Illinois".

Mas não recebo nada.

O homem continua um mistério... um homem misterioso


enigmático e enfurecedor com uma história implorando para
ser desvendada para que eu possa entender o que aconteceu
esta noite.

Duas horas depois, estou deitada na cama, telefone na


mão, procurando em vão por algo, uma pista, qualquer coisa,
mas tudo que consigo descobrir é que seu primeiro nome é
Bennett e ele dirige a Corporação Schoenbach.

Todo o resto está envolto como uma mortalha.

Até a biografia no site de sua empresa tem duas linhas:


Bennett Schoenbach é um residente vitalício de Worthington
Heights. Sucedendo seu pai e seu avô, Bennett assumiu a
propriedade da Schoenbach Corporation em 2014.
Crescendo, tive uma mãe adotiva que costumava me
dizer que todo mundo tinha uma história, que eu não deveria
julgar ninguém sem saber. À medida que fui crescendo,
aprendi que julgar é da natureza humana. Na faculdade, um
professor teorizou que se tratava de nossa ancestralidade
Neandertal, quando a sobrevivência dependia de avaliar as
intenções e capacidades das pessoas ao nosso redor.

Pego meu controle remoto e coloco no canal Turner


Classic Movies, abaixando o volume até que mal posso ouvir
a melodia reconfortante da voz de Rita Hayworth ao fundo,
me embalando para dormir.

Talvez eu esteja cansada e pensando demais, talvez


ainda esteja tentando compreender os eventos desta noite,
mas quero saber sua história.

Estou indo conhecer a sua história.

De uma forma ou de outra.

Não sei como, mas vou.

E tenho certeza que vai explicar tudo.


Bennett

— O relatório de despesas de alcott. — Eu assusto


minha assistente, Margaux, sexta-feira de manhã. Ela quase
derramou seu café em sua blusa de ilhós, os olhos
arregalados enquanto se fixavam em mim.

Ela não esperava me ver hoje, o que é uma pena.

Todos esses anos trabalhando juntos e a mulher nem


me conhece. Eu a teria despedido no início, mas sua lealdade
ao meu pai durante sua permanência aqui me impediu de
puxar o gatilho.

Meu avô sempre foi muito leal. Ele acreditava que isso
deveria ser generosamente recompensado e nunca dado como
certo. Além disso, se ela pôde lidar com ele, ela pode lidar
comigo. E isso conta para alguma coisa.

— Você disse que ia enviar ontem à noite — eu refresco


sua memória, meu dedo batendo na borda de sua mesa
desorganizada.
No Natal passado, dei a ela uma semana extra de férias
remuneradas e quando ela se foi, trouxe um organizador
profissional para dar uma “reforma” em sua área, pensando
que eu estava fazendo a ela (e o resto de nós que temos que
passar por essa bagunça enorme diariamente), um favor. A
limpeza impecável durou meras seis semanas antes dela
voltar completamente aos velhos hábitos.

Eu tentei.

— O-oi, Sr. Schoenbach. — Ela gagueja quando a deixo


nervosa. Meu pai tinha uma queda por ela. Agora estou me
perguntando se ele também teve tesão por ela. Ela é
completamente incapaz de fazer este trabalho. — Eu... eu
estava terminando...

Eu verifico meu relógio. São quinze para as oito. Seu


café está cheio até a borda e o monitor do computador está
escuro como breu. Seu batom cor de orquídea está
desbotado, como se ela tivesse se envolvido em um bate-papo
ocioso recentemente.

Mentirosa.

Ela segue meu olhar, seus lábios balançando enquanto


ela busca uma resposta, mas eu me afasto antes que ela
tenha a chance.

A caminho do meu escritório, conto quatro pessoas


sussurrando, seis olhando fixamente e um triste idiota da
contabilidade que se atreve a conversar comigo nesta hora
ímpia.

Tenho certeza de que todos estão se perguntando por


que diabos estou aqui no encalço de uma tragédia familiar.

Infelizmente não é da conta deles.

Fecho a porta do escritório e me sento à minha mesa,


virando-me para encarar a paisagem urbana do lado de fora
da janela. O horizonte de Chicago está surpreendentemente à
vista hoje, o céu atrás dele em uma sombra surreal de um
círculo de sonho laranja-baunilha.

Se eu fosse um homem sentimental, estaria me


afogando em uma poça de lágrimas pelo fato de que o sol
nasceu esta manhã sem Larissa.

Mas sou prático.

E estou bem ciente de que a vida continua com ou sem


nós.

Não somos nada no esquema das coisas.

E este é apenas mais um amanhecer de janeiro.

Outra sexta-feira.

E eu sou apenas outro Schoenbach, pronto para me


enterrar em reuniões e papelada até que seja a hora
apropriada em que um homem pode desfrutar de dois dedos
de uísque, e então eu vou sair – pegando as escadas dos
fundos para que não tenha que ter uma conversa estranha e
desejar um bom fim de semana aos que usam ternos e as
saias de acordo com a minha folha de pagamento.

Tenho certeza de que a maioria da minha equipe me


despreza, não importa que eu anonimamente cubra as
mensalidades da escola particular da filha de Yuri, doei um
Toyota Camry para nosso homem de manutenção mais
estável quando seu Punto não conseguia mais fazê-lo vir
trabalhar com segurança. Não importa se eu faço doações em
todos os seus nomes para a Halbrook Heart Disease
Foundation todo mês de janeiro. Esqueça que secretamente
paguei a hipoteca de Margaux no primeiro ano em que
assumi, quando o marido dela perdeu o emprego (e sua
batalha contra o câncer de pulmão seis meses depois).

Tenho autoconsciência o suficiente para compreender


que trabalhar para mim não é um passeio no parque, então
tento amenizar o golpe quando posso. Em privado.
Anonimamente. Sempre.

Não preciso de carma ou elogios.

Eu tenho sete e-mails respondidos na minha manhã


quando Margaux chama pelo telefone de mesa.

— Sim? — Eu expiro no receptor.

— Sr. Schoenbach? Sua mãe está aqui.

Encantador.
— Mande-a entrar. — Eu desligo e termino de escrever
minha última resposta, conseguindo clicar em 'enviar' no
instante em que Victoria Tuppance-Schoenbach passa pela
porta dupla.

Levanto-me para cumprimentá-la – não por respeito,


mas porque não estou com humor para as gargalhadas
passivo-agressivas que ela vai dar se eu não fizer isso.

— Querido. — Ela atravessa a sala, seus lábios finos e


vermelhos franzidos em um bico falso, os braços estendidos.
Inclinando-se sobre a minha mesa, ela segura meu rosto com
as mãos enluvadas e beija o ar ao lado da minha bochecha.
— Muito obrigada por lidar com os preparativos na noite
passada. Eu estava na área esta manhã. Pensei em vir aqui
para ver como você está. Como foi?

Depois de sair da casa funerária na noite passada, eu


pretendia enviar uma mensagem de texto com os detalhes de
sábado, mas em vez disso mandei uma mensagem para
Deidre-do-6A e a fiz vir para uma última bebida – e chupar
meu pau.

— Tudo bem, mãe. O memorial é na manhã de sábado.


De oito até as dez.

— Que tragédia, não é? — Ela estala a língua, olhando


para o abismo cênico da cidade atrás de mim. —
Honestamente, era o melhor.

— Desculpe?
— Desde o momento em que ela entrou em nossas
vidas, ela só causou problemas. — Ela mantém a voz baixa,
apesar do fato de que este escritório é à prova de som e um
mundo longe de qualquer outra pessoa que pode ou não ser
intrometida o suficiente para ouvir. — Você sabe, eu nunca
gostei daquela garota.

— Você não gosta de ninguém.

É uma doença incurável.

Trazida pelo DNA do berço.

Transmitido de geração em geração como um defeito


genético.

Não tendemos a nos importar muito com ninguém, a


menos que esteja servindo a um propósito pessoal direto e
útil.

— É justo presumir que você não comparecerá? — Eu


levanto uma sobrancelha.

Minha mãe engasga, uma mão espalmada em seu


coração. — Você pode imaginar o que as pessoas diriam se eu
não o fizesse? Meu Deus, Bennett. Você sabe como eles falam
por aqui. Eu preferiria encontrar as mulheres para um
brunch no The Marigold na manhã? Sim. Claro que sim. Mas
não ir não é uma opção.

Um simples sim, estarei lá teria bastado...

— Sua honestidade é... revigorante — eu digo.


— É muito cedo para sarcasmo, querido. Por favor. O
suficiente.

— Você já falou com Errol? — Eu mudo de assunto.

Puxando suas pérolas, ela respira resignada. — Eu falei.


Ele está ciente da morte prematura de Larissa e planeja
comparecer a sua homenagem, mas não levará sua esposa.
Ambos sabemos que isso é bom. Larissa e Beth nunca se
deram bem. Óleo e água, essas duas.

Provavelmente não ajudou que minha mãe envenenou o


relacionamento delas desde o início, prendendo-as uma
contra a outra como um jogo doentio e distorcido, apenas
para sua própria diversão.

Todas as suas diferenças de lado, Beth e Larissa nunca


tiveram uma chance onde minha mãe estava envolvida.

Ela é uma destruidora, essa mulher.

Ela destrói tudo que é bom neste mundo, quer ela


queira ou não.

Ela destruiu nossa família, seu casamento, meu pai...

É como se ela não pudesse evitar se intrometer, para


garantir que todos os outros estejam tão infelizes quanto ela.

— Tudo bem, então. — Ela se levanta, endireitando a


bainha de seu casaco boucle. — Tenho um milhão de
pequenas coisas para fazer esta manhã e tenho certeza de
que você também tem, então vou deixá-lo em paz.
Graças a Deus.

Meu e-mail ecoa com o relatório de despesas de


Margaux – quinze horas atrasado.

— E Bennett? — Minha mãe para na porta, voltando-se


para mim. — Ligue para o seu irmão. Vocês dois não se falam
há anos e eu odiaria que as coisas ficassem estranhas na
manhã de sábado.

— Vou fazer — eu minto.

Quem disse que a morte aproxima as famílias nunca


conheceu os Schoenbach.
Astaire

O som de crianças rindo e arrastando os pés pelo


corredor na sexta de manhã é minha deixa para silenciar
meu telefone.

Eu coloco na minha gaveta de cima para o dia e pego


meu café, roubando mais alguns goles antes que a loucura do
dia comece.

Eu encontrei o obituário de Schoenbach – se você pode


chamá-lo assim – no início desta manhã. A funerária postou
isso ontem à noite.

Seu nome era Larissa Cleary-Schoenbach, e ela tinha 27


anos quando faleceu. Não mencionou nenhuma família,
nenhuma causa de morte, nenhuma fotografia. Nada mais do
que uma data de nascimento e uma única linha sobre um
serviço memorial privado ao nascer do sol amanhã de manhã
e as palavras SOMENTE COM CONVITE em letras vermelhas
em negrito. Tudo em maiúsculas.
Passei alguns minutos pesquisando — Larissa Cleary-
Schoenbach — no Google esta manhã. Mas não consegui
encontrar nada.

Sem mídia social.

Sem LinkedIn.

Nenhum artigo de jornal arquivado de qualquer tipo.

Nenhum arquivo de graduação; ensino médio, faculdade


ou outro.

É como se essa mulher nunca tivesse existido.

— Bom dia, bom dia! — Eu tomo meu lugar na frente da


sala, sorrindo e acenando e tentando enganá-los durante o
dia. Sextas-feiras são difíceis. As crianças estão exaustas, a
capacidade de atenção está diminuindo. Meus alunos
penduram suas jaquetas e bolsas em seus ganchos e depois
seguem para o quadrado designado no tapete. — Feliz sexta-
feira!

Eu mantenho o sorriso no rosto, canto nossa música


matinal e começo a lição do dia, mas hoje não posso evitar,
sinto que estou apenas seguindo o ritmo. Minha mente está
fixada naquele homem do bar na noite passada – e na mulher
misteriosa que ele está enterrando.

Com o nome hifenizado e idade semelhante, é justo


presumir que ela era sua esposa.
No começo eu achei estranho que ela tivesse um serviço
memorial particular ao nascer do sol, mas talvez o nascer do
sol fosse sua praia? E talvez o falecimento dela tenha sido tão
trágico e indescritível que tudo o que ele quer é proteger sua
privacidade?

No momento em que as crianças saem para o primeiro


recreio, noventa minutos depois, eu preparei uma linda
história de amor para os dois. Eu imaginei um romance
apaixonado de amor à primeira vista.

Viagens a Paris.

Uma proposta ao pôr do sol.

Danças lentas em bares vazios.

Preguiçosas tardes de domingo tomando chá e trocando


poesia.

Passeios de sábado em Lincoln Park.

Beijos de véspera de Ano Novo nas varandas nevadas do


hotel, seus cílios cobertos de flocos de neve enquanto ele a
envolve com força para mantê-la aquecida.

No fundo do meu coração, quero acreditar que ele foi


lindo e maravilhosamente gentil com ela.

Que ele a amava mais do que qualquer coisa no mundo


inteiro.
Que a morte dela quebrou seu coração em um milhão de
pedaços irreparáveis.

Quero acreditar que essa foi a causa de sua crueldade


na noite passada.

Que ele está simplesmente com raiva do mundo por tirar


dele o amor de sua vida.

A morte e a perda podem afetar você. Isso pode mudar


toda a sua personalidade, se você permitir. Alguns dos meus
dias mais sombrios aconteceram nos meses após a morte de
Trevor.

Quero acreditar que Bennett tem amigos e família que o


ajudam a superar isso, mas na noite passada Eduardo
mencionou que, quando Bennett aparece, ele nunca fala com
ninguém – o que me leva a supor que ele só vai sozinho.

Talvez ele seja dolorosamente privado?

Talvez ela fosse seu mundo inteiro? Tudo que ele tinha?

Será que eles tiveram uma briga e não se falaram


quando ela morreu?

As crianças voltam do recreio, tirando os lenços e as


luvas, as bochechas coradas e os olhos úmidos de frio.
Fazendo meu caminho para frente da sala de aula para
começar a próxima lição, eu decido fazer o que Trevor faria se
ainda estivéssemos aqui: eu dou ao estranho cruel da noite
passada o benefício da dúvida.
E então eu continuo com meu dia.

O último sino do dia soa às 14:55 e eu levo minha classe


para a linha de ônibus.

Cinco minutos se passam, depois dez, e quando os


ônibus e minivans lotados e Suburbans reluzentes, Denalis e
Escalades já se foram, fico com uma aluna restante. — Acho
que somos só nós, — eu digo para uma Honor Smith de
aparência desanimada. Esta não é a primeira vez, nem será a
última vez que ela tem que esperar para ser pega — Por que
você não volta para a sala de aula? Podemos esperar por Lucy
lá.

— Srta. Carraro, posso sentar na cadeira do leitor


especial? Por favor, por favor, por favor? — Ela desliza sua
mão na minha, gira uma onda escura e brilhante em torno de
seu dedo mínimo e sorri enquanto caminhamos de volta. Seu
espírito mudou de abatido para otimista com a percepção de
que ela não teria que compartilhar o pufe de segunda mão
pelo qual todas as crianças brigam.

— Claro que você pode, querida.

Eu não favorito estudantes. Nunca. Mas eu amo essa


menina em pedaços. De certa forma, quando eu olho para
ela, é como se toda a minha infância estivesse olhando para
mim.

A mais nova mãe adotiva de Honor cuida de outras


quatro crianças, e as coletas depois da escola envolvem correr
de um lado da cidade para o outro, de escolas primárias a
secundárias e de ensino médio, e orar aos deuses do trânsito
para que não haja atrasos ou desvios fora do plano.

Eu tinha mais ou menos a idade dela quando fui


colocada em minha primeira casa.

Mal sabia eu, seria minha primeira de treze.

Eu tinha tanta esperança, tanta confiança nos adultos


alistados para cuidar de mim. Os anos que se seguiram
foram um coquetel de tudo o que é certo e errado neste
mundo, mas no final, nada disso me quebrou – e muito disso
devo à bela mulher que me adotou quando eu era rebelde e
inteligente, uma sabe-tudo de quatorze anos.

De muitas maneiras, ela salvou minha vida.

Ou a salvei.

Eu quero isso para Honor. Quero que alguém a ensine


que seu passado não precisa ditar seu futuro, que ela vale a
pena.

A última vez que soube, seu lugar no sistema é


temporário. Lucy mencionou para mim um dia em uma
conversa que a mãe de Honor tinha se envolvido com drogas
e prostituição e ela não tinha certeza de quanto tempo ela a
teria, mas isso foi há meses, e ela não mencionou uma
palavra sobre nada desde então.

Se as coisas fossem diferentes – se Honor fosse adotável


e eu não vivesse de salário em salário, eu a faria minha em
um piscar de olhos.

Até então, eu a tenho das 8h às 15h, cinco dias por


semana, e alguns minutos depois da escola, quando Lucy
está atrasada.

Honor lê baixinho para si mesma e me pego pensando


em Bennett Schoenbach novamente.

Pego o obituário de Larissa no meu telefone mais uma


vez.

Eu me coloquei no lugar dele.

E decido que ele não era nada mais do que uma boa
pessoa tendo um dia ruim.

Se tivéssemos nos conhecido em circunstâncias


diferentes, tenho certeza de que o teria achado nada além de
adorável.
Bennett

Estou de mau humor na sexta-feira à noite, escuto


Chopin tão alto que a velha socialite da porta ao lado vai ligar
para o síndico do prédio a qualquer minuto, e então eu me
sirvo de dois dedos de malte único Lagavulin.

O mundo lá fora ficou escuro horas atrás, como faz


nesta época do ano, e eu sairia para tomar um ou dois
drinques, mas o memorial de Larissa é pela manhã e não vou
me punir sofrendo por isso tendo pouco sono.

Afundando em uma poltrona de couro no meu escritório,


eu pego meu telefone e procuro nas minhas ligações
perdidas, parando quando chego na noite em que Larissa
morreu.

Doze.

Ela me ligou doze vezes, a maioria delas com um minuto


de intervalo.

Ela ligou uma dúzia de vezes antes de desistir de mim.


Nunca conheci ninguém tão necessitada quanto ela.
Sempre foi algo. Ela estava sempre se envolvendo com tipos
nefastos. Sempre encontrando conforto nos braços de
usuários e abusadores. Eu parei de pagar a fiança há anos.

Eu desisti dela primeiro.

Só que nunca deixei isso explicitamente claro, suponho.

Eu simplesmente parei de atender suas ligações.

Parei de enviar o dinheiro dela.

Parei de pagar a fiança dela da prisão.

Achei que a mensagem era alta e clara e, além disso, as


ações sempre falavam mais alto do que palavras. Não há
necessidade de sentar e explicar minhas decisões.

Ter que olhar para seu corpo azul claro em uma placa
congelada de aço inoxidável no necrotério da cidade na
semana passada e confirmar que ela era, de fato, Larissa
Schoenbach, foi a primeira vez que a vi em sete anos.

Não sei o que ela queria na noite em que morreu.

Tudo o que sei é que alguém tirou a vida dela fora de um


clube de strip decadente no lado sul de Chicago.

A polícia acha que foi um tiroteio ou um negócio de


drogas que deu errado, e ela estava no lugar errado na hora
errada – o que é irônico, porque toda a sua vida poderia ser
resumida assim.
Ela estava sempre no lugar errado na hora errada.

Tornar-se uma Schoenbach foi a pior coisa que poderia


ter acontecido com ela.

Ela era muito mole no meio.

Muito fraca.

Muito crédula.

Muito confiante.

Ela nunca foi uma de nós.

Minha mãe acabara de passar por uma histerectomia de


emergência e da noite para o dia tornou-se a missão de sua
vida ter uma filha. Mas ela não queria um bebê. Não. Ela não
queria lidar com fraldas, uso de penico, narizes ranhosos ou
humilhantes acessos de raiva públicos.

Larissa estava no sistema e disponível para adoção.

Como eu disse... lugar errado, hora errada.

Ela tinha nove anos quando minha mãe a trouxe para


casa e, olhando para trás, tenho certeza de que ela a levou ao
Neiman's ou Saks antes porque a garota estava vestida como
um poodle show... laços de cetim, cabelo fofo, vestido rosa
grande, sapatos de couro envernizado brilhantes com fitas
para cadarços.

Minha mãe desfilou com ela pelo terreno, exibindo-a


para cada jardineiro, empregada, chef e mordomo antes de as
duas se juntarem a nós para um jantar formal de cinco
pratos, onde Larissa arrotou entre mordidas de bife au
poivre, colhida em suas pastinacas assadas, e tentou comer
sem utensílios.

Em questão de uma hora, o novo orgulho e alegria de


minha mãe se transformou em puro horror.

Não tenho certeza do que minha mãe estava pensando


ao adotar uma criança. Ela dificilmente poderia amar os dois
filhos que trouxe ao mundo – como ela pensou que poderia
amar o filho de um estranho, está além de mim.

O primeiro ano foi o mais difícil de assistir. Doloroso,


realmente. Não havia vínculo. Sem amor.

Não que isso fosse um choque.

Antes que qualquer coisa fosse finalizada, mamãe se


recusou a mandá-la de volta temendo como isso se refletiria
nela. Sabendo que as pessoas falariam. Preocupada que
todos pensassem que ela tinha fracassado.

Victoria Tuppance-Schoenbach era casada com um dos


homens mais ricos de Chicago, vivia em uma das
propriedades mais caras da região, dirigia os veículos mais
caros, tirava as férias mais luxuosas e deu à luz dois lindos,
fortes, saudáveis e atléticos meninos inteligentes.

Deus me livre de ligar sua reputação a algo abaixo da


média.
Sinceramente, acho que ela estava com medo de que o
mundo a visse como ela realmente era – uma mulher
egocêntrica, miserável, de coração frio, materialista com um
traço narcisista de uma milha de largura.

Então ela manteve Larissa.

E assim que ela encontrou uma vaga no prestigioso


Betancourt Boarding School a cinco horas de distância, ela a
despachou com duas malas e um baú cheio de todas as suas
coisas bonitas. A porta do quarto dela estava trancada, nem
mesmo os funcionários podiam entrar. Era como se minha
mãe preferisse fingir que Larissa nunca aconteceu.

Depois disso, vimos estritamente nossa nova irmã nos


principais feriados e pausas de verão que a escola Betancourt
estava fechada.

Com Larissa em casa, nunca foi como ter uma irmã –


era como ter uma pessoa que sua família era financeiramente
obrigada a sustentar, uma pessoa que tornava suas reuniões
familiares difíceis e estranhas ainda mais rígidas e estranhas.

Pequena tripulação bizarra que éramos, nunca me


preocupei em conhecê-la mais do que o necessário. Nunca me
esforcei para ficar com ela ou desejar-lhe feliz aniversário ou
qualquer uma dessas trocas ingênuas e perdulárias.

Nunca a vi como uma irmã em qualquer sentido da


palavra.
Suspeito que o sentimento era mútuo – exceto, é claro,
quando ela precisava que eu limpasse uma de suas
bagunças.

Logo no início, Errol gostou dela rapidamente. Embora


se eu conheço meu irmão – e acredite em mim, eu conheço –
ele fez isso para me irritar.

Nós dois estamos em conflito desde que me lembro, e o


desgraçado viu uma oportunidade de me fazer sentir excluído
e a aproveitou. Errol e Larissa eram inseparáveis, trocando
segredos e piadas internas, jogando tênis, assistindo filmes e
relaxando à beira da piscina ouvindo música.

Mas a piada estava com ele.

Eu nunca me importei.

Eu ainda não me importo.

Talvez o fizesse se pudesse – mas se importar é uma


fraqueza, um portal para a autodestruição.

E eu sou tão indestrutível quanto eles vêm.

Aumento o volume do Chopin, tomo um gole do meu


uísque e afundo na cadeira. Estou a segundos de fechar
meus olhos e escapar para um mundo distante quando meu
telefone vibra na mesa de centro.

— Olá?
— Sim, é Bennett Schoenbach? — Há uma mulher mais
velha do outro lado, sua voz desconhecida.

— Quem é?

— Meu nome é Jeannie Hanaway e trabalho no


Departamento de Família e Serviços Sociais. Você tem um
momento para falar comigo sobre Larissa Schoenbach?

— Não. Eu não tenho. E lamento informá-la, mas


Larissa faleceu esta semana.

Meu polegar se prepara para o botão vermelho e estou


prestes a encerrar a ligação quando a mulher diz: — Estou
ciente de que ela faleceu. É por isso que estou ligando. Este
assunto é relacionado a isso e é bastante urgente.

Sentando na minha cadeira, limpo minha garganta. —


Certo. Qual é o problema?

— De acordo com minha papelada, Larissa designou


você como o único guardião de sua filha no caso de sua
morte.

O silêncio se instala entre nós.

Eu estou estático. — Eu não sei que tipo de truque


doentio e distorcido você está tentando fazer, mas se você me
ligar de novo com esse absurdo, terá notícias do meu
advogado.

— Com... com licença... E-eu... — A gagueira dela nada


mais é do que uma atuação, tenho certeza.
— Larissa nunca teve um filho.

O papel farfalhar na outra extremidade. — Eu posso


garantir que ela teve. O nome dela é Honor e ela mora aqui
na cidade. Ela tem estado sob um orfanato nos últimos anos,
enquanto a Sra. Schoenbach tentava se colocar de pé. Acho
que estou confusa aqui. Eu pensei...

— Isso é sobre dinheiro? É alguma tentativa bizarra de


extorquir minha família? Lucrando com a morte da minha
irmã? Porque se for, você está...

— Não. Oh Deus, não, Sr. Schoenbach. Entendo que


isso deve ser um choque para você, mas posso garantir que
não é uma piada, nem extorsão, nem nada parecido. Como eu
disse, meu nome é Jeannie Hanaway. Você pode encontrar
minhas informações de contato no site do Departamento de
Família e Serviços Sociais do Estado. Posso fornecer o nome
do meu supervisor, se desejar. Eu gostaria de marcar uma
reunião cara a cara o mais cedo possível se você...

Eu encerro a ligação.

Eu me recuso a acreditar que Larissa tem uma filha de


seis anos porque se ela tivesse – ela com certeza não a teria
deixado comigo.
Astaire

Meu dedo paira sobre O botão 'ENVIAR' na manhã de


sábado e reli meu e-mail pela décima vez.

Isso é uma loucura.

Pessoas normais não fazem isso.

Mas, desde nosso encontro casual na quinta à noite,


não consigo parar de pensar no homem no bar, em sua
esposa morta e no mistério que envolve seu obituário.

Não apenas isso, mas fico imaginando o que Trevor faria


se ainda estivesse aqui, o que diria.

Ele tinha um coração do tamanho do Texas – um


coração que agora bate no corpo de outra pessoa.

Ele era fluente em compaixão e altruísmo,


constantemente saindo de seu caminho para ajudar os
outros. Segurando portas para estranhos, não importa o quão
tarde ele estivesse correndo. Resgatando animais da rua e
saindo de seu caminho para encontrar abrigos que não os
matam. Oferecendo seu troco em cada chaleira vermelha ou
jarro de doação de posto de gasolina.

E essas eram apenas as pequenas coisas.

Esta manhã, tomando café e torradas com manteiga,


decidi procurar o endereço de e-mail de Bennett no site de
sua empresa, criar um endereço de e-mail anônimo para mim
e redigir uma mensagem sincera na esperança de que isso
possa trazê-lo conforto neste momento difícil.

Bebendo o resto do meu café morno, dou uma última


leitura.

PARA: Bennett.Schoenbach@SchoenbachCorp

DE: AnonStranger@Rockmail

ASSUNTO: Condolências

CARO BENNETT,

Você não me conhece, mas recentemente soube de sua


perda e queria expressar minhas mais profundas
condolências. Não sou estranha à perda. Há um ano, meu
noivo se envolveu em um acidente de carro e infelizmente não
sobreviveu. Ninguém pode prepará-lo para algo assim. Num
minuto, você está caminhando, vivendo seu dia a dia, seu
futuro cheio de esperanças e sonhos, e no minuto seguinte...

Bem, tenho certeza que você sabe.


Na primeira ou duas semanas, você terá uma
demonstração de solidariedade das pessoas mais próximas a
você – e talvez até mesmo de alguns conhecidos distantes que
se sentem afetados por essa tragédia. Mas quando a fanfarra
acabar e todos continuarem com suas vidas, você será forçado
a continuar com a sua também.

Pode parecer impossível.

E será a coisa mais difícil que você terá que fazer.

Mas estou aqui para te dizer, você pode fazer isso.

E se você quiser conversar, desabafar, lamentar... estou


aqui.

Mande-me um e-mail.

Ou não.

Depende totalmente de você.

Eu só queria que você soubesse que não está sozinho.

Com as mais sinceras condolências,

Um estranho anônimo

Prendo minha respiração e pressiono 'enviar'. Um som


sibilante um segundo depois confirma que a mensagem foi
enviada. Não há como voltar atrás agora. Não sei se estou ou
não ultrapassando meus limites.
Não espero uma resposta, mas o envio desta mensagem
não foi sobre isso.

Quero que ele saiba que não está sozinho, que há outra
pessoa neste mundo que entende a magnitude devastadora
de sua dor.

No fundo do meu coração, eu sei que Trevor teria feito o


mesmo.

Não...

Trevor teria enviado um cartão escrito à mão. Um


arranjo de flores também.

Mas, neste caso, um e-mail deve bastar.

Fechando a tampa do meu laptop, coloco-o de lado e


limpo os pratos do café da manhã. A janela sobre a pia da
cozinha mostra uma manhã em tons de cinza com um toque
de luz quebrando a atmosfera nebulosa.

O memorial ao nascer do sol de Larissa deve começar a


qualquer minuto.

Penso no estranho – Bennett, no que ele deve estar


passando. Eu o imagino vestindo seu melhor terno,
endurecendo suas emoções e fazendo uma cara de bravo ao
cumprimentar seus amigos e familiares.

Eu penso no estranho.

Eu penso nele a manhã toda.


Bennett

Chego ao memorial quinze minutos atrasado, mal


conseguindo passar pela enxurrada de visitantes que lotam a
pequena casa funerária. A julgar pela aparência deles, estou
disposto a apostar que estão todos aqui em nome da minha
mãe.

Amigos.

Conhecidos.

Fofoqueiros de escalada social.

Uma Victoria Vadia-Schoenbach “enlutada” está ao lado


de uma foto grande (e desatualizada) de uma Larissa
sorridente em sua formatura em Betancourt, com a pele clara
e os olhos vibrantes, pois ela ainda não tinha descoberto as
emoções do cristal de metanfetamina, pó de anjo e heroína
preta de alcatrão.

Minha mãe está vestida com Chanel da cor da morte da


cabeça aos pés, cercada por uma aura de elaborados arranjos
florais brancos, sua aliança de casamento enorme brilhando
sob a luz suave. Engraçado, ela quer que todos acreditem que
ela ainda usa a maldita coisa, apesar do fato de que eu a vi
tirá-la na noite após o funeral do meu pai e trancá-la em uma
caixa em seu armário.

Todos esses anos depois, eu ainda não a vi usando até


este momento.

Frente unida e tudo mais, tenho certeza.

Eu me posiciono em um canto desocupado da sala,


observando enquanto ela aperta as mãos.

Lá vêm os sorrisos agridoces.

O choroso aceno com a cabeça.

Os abraços prolongados.

Tento não fazer uma careta enquanto ela enxuga as


lágrimas invisíveis do canto dos olhos.

É um ato coreografado e, por um momento, estou


revivendo o memorial de meu pai há cinco anos, quando ela
fez uma performance digna de um Oscar de uma viúva de
luto, soluços dignos de contração, joelhos dobrados e coisas
do gênero.

Não importava o fato de que eles não dormiam na


mesma cama em uma década ou o fato de que cada um deles
teve amantes secretos – não que eu tenha descoberto essa
informação intencionalmente. Evidentemente, ser pego fazia
parte da emoção de cada um deles.
Dez minutos depois, o show de merda ainda está forte.

Tenho sido incomodado por um punhado de visitantes,


quando entra o homem do momento: o menino de ouro da
minha mãe.

— Errol, querido... — Mamãe ameniza sua excitação,


mantendo-a em um volume apropriado para o funeral, e
acena para ele com uma única mão enluvada.

Sua esposa, Beth, está agarrada em seu braço,


silenciosamente examinando a sala em busca de rostos
familiares, eu suponho. Engraçado. Eu poderia jurar que
minha mãe disse explicitamente que Beth não viria. Errol
deve ter falado com ela.

Talvez ele não pudesse suportar a ideia de correr para


mim sozinho, sem seu amortecedor humano para protegê-lo
das adagas. Não posso evitar atirar em sua direção sempre
que somos forçados a respirar o mesmo oxigênio.

Mas Beth está vestida de cinza – um movimento


intencional, tenho certeza.

Preto sugeriria que ela está de luto.

Preto sugeriria que ela se importava com a morte de


Larissa.

Minha mãe segura o rosto magro de Errol, suas mãos


ternas, e o agradece por ter vindo antes de beijar o ar ao lado
das bochechas coradas e saudáveis de Beth e apertar suas
mãos recém-cuidadas.

— Você viu seu irmão? — Ela pergunta.

Errol dá de ombros e balança a cabeça.

Mãe examina a sala.

Beth pede licença e vai ao banheiro feminino.

Se eu fosse uma pessoa boa e decente, provavelmente


diria olá, faria minha presença conhecida, faria um show e
seria um bom Schoenbach.

Mas, em vez disso, permaneço ancorado no meu canto,


observando o resto da sala lamentar uma mulher que era
muito fraca para ser uma de nós, muito perdida neste mundo
para ter tido uma chance, muito mole para ter sobrevivido à
sujeira do mundo infestado de drogas em que ela buscava
consolo.

— Bennett, oi. — Beth sai do banheiro feminino alguns


minutos depois, caminhando em minha direção, seus saltos
de fundo vermelho arranhando o carpete de malha justa. —
Meu Deus, já faz tanto tempo.

Sua boca se curva em um meio sorriso, meio beicinho,


como se ela estivesse feliz em me ver, mas soubesse que não
é apropriado fingir estar animada neste momento.

Inclinando-se, ela beija minha bochecha, seu vestido


pressionado contra meu terno por tempo suficiente para que
seu perfume francês se agarre ao tecido e ataque meus
pulmões muito depois de ela me soltar.

— Como você tem estado? Como você está indo? — Ela


esfrega meu braço, a cabeça inclinada enquanto olha para
mim. — Errol sente sua falta, sabe... fala sobre você o tempo
todo... se pergunta como você está... nós dois nos
perguntamos como você está...

— Estou bem, Beth.

Nunca entendi sua afinidade por mim, mas foi


instantâneo, a partir do momento em que ele a trouxe para
casa. Ao longo dos anos, resumi isso ao fato de Beth ser filha
única e desesperadamente ansiosa por uma chance com o
irmão mais novo que ela nunca teve. Não acho que seja nada
mais sinistro do que isso. Beth é uma mulher simples, com
motivos simples, a maioria deles resumindo-se a coisas como
dinheiro, status e reconhecimento de nome – três coisas que
ela ganhou por ser casada com meu irmão.

Não pergunto sobre Errol. Ela vai apenas me dar uma


resposta enlatada mais falsa do que o duplo Ds projetando-se
de seu peito ossudo.

— Você quer vir dizer oi? Estou feliz por ser a


intermediária. — Ela morde o lábio inferior, olhos implorando
como se ela desse a mínima. A verdadeira razão pela qual ela
deseja uma reconciliação neste momento é porque ela acha
que eu poderia finalmente dar a Errol um assento na mesa da
Schoenbach Corporation. Um lugar na mesa equivale a um
título chique com um cheque de pagamento volumoso que
realmente sustentaria seu estilo de vida confortável para que
eles pudessem finalmente parar de oferecer jantares luxuosos
e férias valiosas com cartões de crédito esgotados e atrasar
sua segunda hipoteca a cada poucos meses.

Meu pai teria deixado metade de sua empresa para meu


irmão se Errol não tivesse recusado sua oportunidade na
Harvard School of Business – estipulação singular de meu
pai.

Mas Errol recusou, optando por frequentar uma escola


de arte cara para que pudesse viver sua melhor vida hipster.

— Irei em alguns minutos. — Examino a sala, que ficou


vazia nos últimos minutos, e me convenço a acabar com isso.

Beth volta para o marido, que parece ter saído da capa


da GQ com seu terno azul-marinho Givenchy e seu coque
masculino penteado para trás. Deslizando o braço no dele,
ela fica na ponta dos pés para sussurrar algo em seu ouvido.
Ele responde e a beija.

Nossa mãe está alheia a tudo isso, cumprimentando


outra amiga dela antes de enxugar os olhos pela milionésima
vez.

Decido atravessar a sala, mas não antes de verificar


meu e-mail de trabalho primeiro.

Claudia, do RH, deveria me enviar uma reclamação por


escrito que alguém da folha de pagamento fez contra um de
nossos VPs, e eu preciso saber que tipo de incêndio estarei
apagando na segunda de manhã ou se é algo que exigirá uma
ligação no fim de semana para nosso principal advogado
corporativo.

Minha tela pisca e minha caixa de entrada é atualizada,


enchendo o retângulo de vidro com dezenas e dezenas de
mensagens não lidas – nenhuma de Claudia.

Alguns dias, penso em atirar em cada preguiçoso da


equipe original de meu pai e substituí-los por tubarões que
não têm medo de fazer seu maldito trabalho.

Dias como este, estou tentado demais.

Ao folhear e excluir mensagens paro quando chego a


uma com o assunto: CONDOLÊNCIAS de um remetente
chamado Anon Stranger.

Com certeza é uma fraude, mas muito intrigado para


ignorá-lo, toco na tela e puxo a mensagem.

Um minuto depois, li o e-mail dessa pessoa não uma,


não duas, mas três vezes, meu sangue fervendo mais quente
a cada vez.

Sem pensar duas vezes, compilo minha resposta não


filtrada e clico em enviar.

A porra da coragem das pessoas.


Astaire

Ele respondeu.

Pisco duas vezes, esfrego os olhos e atualizo a página.

O e-mail não lido permanece. Eu não estou imaginando


isso.

Minha manhã foi preenchida com roupa suja, uma


caminhada rápida até a biblioteca para devolver alguns livros,
uma visita ao Elmhurst Theatre para verificar a programação
de voluntários e, em seguida, um breve intervalo de tudo para
assistir All About Eve – qualquer coisa que eu pudesse fazer
para tirar minha fixação de Bennett Schoenbach e sua
curiosa situação.

Mas logo depois do jantar, cedi e me permiti verificar


meu e-mail... só para garantir.

Eu clico em sua resposta, observando a hora de envio


sendo 8h41.

Ele devia estar no memorial quando escreveu isso...


PARA: AnonStranger@Rockmail

DE: Bennett.Schoenbach@SchoenbachCorp

ASSUNTO: RE: Condolências

Estranho anônimo,

Sua simpatia, condolências e comiserações não são


necessárias, nem desejadas. Você não conhece minha
situação. Você não poderia entender meus sentimentos em
relação a essa perda, nem deveria, porque não é da sua conta.

O fato de você ter se sentido obrigado a expressar seus


sentimentos anonimamente, do outro lado da tela de um
computador sabe Deus aonde, é declarado francamente:
patético.

Isso é alguma coisa doentia que você faz? Você vasculha


obituários em jornais e envia e-mails para seus familiares? O
que te dá o direito de incomodar estranhos? Para trazer suas
tragédias sobre você? Certamente você tem coisas melhores
para fazer com seu tempo, sim?

Faça-me um favor e cuide da sua vida.

Mas primeiro, vá se foder.

Atenciosamente,

Bennett Schoenbach
A picada de lágrimas quentes nublam minha visão por
alguns segundos antes de eu forçá-las a ir embora. Eu tinha
tanta certeza de que não receberia nada dele, que não parei
para pensar em como me sentiria se ele me enviasse uma
resposta mordaz.

Talvez eu ultrapassei meus limites, mas minhas


intenções eram nobres. Se o e-mail o aborreceu tanto, tudo o
que ele precisava fazer era excluí-lo e bloquear meu endereço
de e-mail – não que eu fosse mandar um e-mail uma segunda
vez.

Ando pelo meu apartamento, organizo meus


pensamentos e me sirvo de uma taça de vinho tinto antes de
me sentar na frente do meu computador e clicar em
'responder' contra o meu melhor julgamento.

PARA: Bennett.Schoenbach@SchoenbachCorp

DE: AnonStranger@Rockmail

ASSUNTO: Re: re: Condolências

Caro Bennett,

Permita-me que me apresente – meu nome é Astaire (sim,


como em Fred Astaire) e passei por mais dificuldades e
tragédias em meus vinte e seis anos do que a maioria das
pessoas experimentará em sua vida. Normalmente não me
apresento dessa forma, pois não acredito que devamos ser
definidos por nossos passados ou coisas que nos aconteceram,
mas parece um fato relevante para compartilhar com você
dado o contexto desses e-mails.

Quando criança, fui colocada em um orfanato. Eu nunca


conheci meu pai. Nunca conheci minha mãe de verdade. Eu
morei com treze famílias antes de ser adotada por uma mulher
mais velha que nunca teve filhos e decidiu arriscar-se com uma
rebelde adolescente.

Meus anos com minha mãe adotiva foram os melhores


que já conheci. Ela me ensinou tudo que eu precisava saber
sobre vida, amor, perseverança e perdão. Mas, no meio do meu
primeiro ano de faculdade, ela foi diagnosticada com câncer no
cérebro em estágio IV e, em poucos meses, ela se foi.

Mesmo assim, continuei. Por ela. Por mim. Pelo futuro que
prometi viver para ela.

Mais ou menos na mesma época, conheci um homem que


se tornaria meu noivo. Tivemos uma aula juntos – ambos
estudando Educação. O homem podia iluminar uma sala, e foi
sua inteligência que me atraiu primeiro, seguido por seu sorriso
contagiante e olhos brilhantes que me fizeram perder a linha
de pensamento sempre que ele me olhava com aquele olhar...

E nem me fale sobre o coração dele – era, sem dúvida, a


melhor parte dele, o que diz muito porque cada parte dele era
incrível.
Mas, um ano atrás, na semana passada, ele estava
voltando da escola de ensino médio onde ensinava matemática
e foi atingido de frente em um cruzamento movimentado a
menos de um quilômetro do apartamento que dividíamos.

Como eu disse no meu primeiro e-mail, ele não


sobreviveu.

O ano passado oscilou entre surtos de puro inferno e a


dor mais intensamente devastadora que um ser humano pode
suportar, mas na semana passada, consegui engolir isso, me
arranhar do chão e marchar para um bar chamado Ophelia's
para encontrar um homem para um encontro às cegas.

Eu não sabia como ele era... apenas que ele era


essencialmente alto, moreno e bonito.

E lá, no final do bar... estava você.

Tentei chamar sua atenção com o único propósito de


garantir que você não fosse o homem que eu procurava, mas a
maneira como você respondeu, as coisas que disse a uma
completa estranha, foram duras e rudes.

E antes que eu tivesse a chance de explicar, você foi


embora.

Mas você esqueceu seu guarda-chuva e ainda estava


chovendo, então corri atrás de você, esperando alcançá-lo para
poder devolvê-lo, porque esse é exatamente o tipo de pessoa
que sou.
Quando te encontrei, você tinha desaparecido em uma
funerária.

Mais tarde naquela noite, consegui juntar alguns detalhes


para saber seu nome. E passei a maior parte do dia que se
seguiu me convencendo de que você tinha acabado de perder o
amor da sua vida e que sua indelicadeza sem remorso era um
resultado direto disso – não porque você seja um homem
insensível e de coração frio.

Meu coração doeu por você, por sua perda, por como você
deve estar sofrendo, por isso entendo o fato de ter atacado
uma estranha de uma forma tão dolorosa.

Esta manhã, por um capricho, decidi enviar-lhe um e-


mail... algumas palavras gentis para que você saiba que não
está sozinho neste mundo, porque Deus sabe que eu apreciaria
ter usado a mesma coisa um ano atrás.

Mas agora eu sei que estava errada sobre você.

Você é cruel por ser cruel.

Mas tudo isso dito, não me faz menos triste por sua
perda.

Atenciosamente,

Astaire Carraro.

Passo o mouse sobre o botão 'enviar', mordendo a parte


interna do lábio.
Quando me sentei para redigir esta mensagem, dez
minutos atrás, eu queria desabafar, tirar as palavras do meu
sistema. Eu não tinha intenção de enviar a coisa. Mas não é
como se eu tivesse algo a perder neste momento, e
provavelmente nunca mais cruzarei com ele novamente.

Dane-se.

Pego minha taça de vinho, jogo os restos para dentro e


mando a maldita coisa.
Bennett

— Oh, bom. Você está em casa. — Minha mãe passa por


mim no sábado à noite, entrando no meu apartamento. —
Você não atendeu minhas ligações depois do memorial, então
presumi que você estava saindo com uma de suas amigas.
Ou você sabe, o de sempre... me ignorando.

— Eu estava prestes a sair. Posso ajudar em algo? —


Fecho a porta antes de segui-la até o bar, onde ela começa a
preparar uma vodka cranberry que é mais vodka do que
cranberry.

Meu telefone vibra com uma chamada.

Uma rápida olhada me diz que é aquela assistente social


da noite passada.

— Eu queria discutir esta pequena rixa em andamento


com seu irmão. — Ela coloca a bolsa no balcão antes de tirar
o casaco e pendurá-la nas costas de uma cadeira.

— Por favor, mãe. Não se incomode.


Ela levanta uma sobrancelha fina como um lápis. —
Incomodar-me? Querido, vocês dois são meu mundo. Me dói
ver o quanto a morte de seu pai destruiu seu relacionamento.
Vocês eram tão próximos antes.

Eu mordo minha língua. Minha mãe raramente estava


por perto, raramente se envolvia mais do que deveria quando
estávamos crescendo e isso não faz nada além de solidificar
tudo. Tenho certeza de que, naquela cabeça delirante e cheia
de notas de dólar dela, éramos os melhores amigos.

Nunca fomos.

Nunca seremos.

Não nesta vida.

— Você não acha que o tratamento do silêncio já dura o


suficiente? — Ela se vira para me encarar, os olhos tão
selvagens quanto as penas exóticas que revestem o capuz de
seu casaco. — Cinco anos, Bennett. Cinco anos. Tudo o que
ele quer é estar em sua vida novamente. E um cargo na
empresa.

Eu engasgo com a minha risada antes de limitar a vodka


do frigobar.

Eu estou interrompendo ela com uma bebida porque ela


não é bem-vinda para ficar tempo suficiente para duas.

— Você espera que meu irmão, que mal consegue


manter sua galeria de arte à tona e agora está mergulhando
no mundo dos livros de autoajuda, apesar do fato de nunca
ter feito um curso de psicologia em sua vida... seja bem-vindo
para ajudar a administrar a corporação?

Minha mãe pisca, expressão ilegível.

— Você e eu sabemos que qualquer salário que eu


pagaria a ele seria gasto antes que o primeiro depósito
chegasse à sua conta bancária — acrescento. — Não só isso,
mas minha recepcionista é mais qualificada do que ele para
uma vaga na diretoria.

— Acho que essa seria uma ótima oportunidade de


aprendizado para ele. — Ela toma um gole antes de endireitar
seus ombros com os meus, uma dica de que ela não tem
intenção de recuar. — Você fez coisas incríveis com a
empresa desde que entrou. Você seria uma grande inspiração
para ele.

— Certo. Errol aspira ser igual ao irmão mais novo


algum dia.

— Eu sei que vocês dois podem ser competitivos às


vezes...

— Às vezes.

— Mas com a perda de Larissa... — Ela pisca para


afastar as lágrimas falsas.

— Por favor, mãe. Chega de ato. É um insulto. Estou


bem ciente de como você realmente se sente por ela.
Sua mão esquerda sobe para seu quadril estreito e suas
sobrancelhas se cruzam. — Você só sabe o que pensa que
sabe.

— Eu sei o suficiente.

Ela revira os olhos. — Ela não era tão perfeita quanto


você pensava.

— Eu nunca sugeri que ela era perfeita.

— Obviamente você pensou muito sobre ela. Você


sempre estava resgatando-a, ajudando-a.

Minha mandíbula fica tensa. — Alguém tinha que fazer.

— Bem, só estou dizendo... você se importava muito com


ela.

Eu não a corrijo.

Eu não me importava com ela – eu tinha pena dela.

Grande diferença.

— De qualquer forma — ela continua, — eu a ajudei do


meu jeito ao longo dos anos. Eu limpei muitas bagunças dela.
Eu nunca senti a necessidade de transmiti-las a você para
fazê-lo se sentir culpado.

Eu apertei os olhos. — Do que você está falando? Você


não está fazendo nenhum sentido.
Ela bebe seu coquetel, que agora está quase pronto. —
Não sinto necessidade de entrar em detalhes com você.

— Você não pode dizer algo assim e esperar que eu


desista.

— Claro que posso, querido. — Ela inspira. — De


qualquer forma, eu só vim dizer a você que Errol ficou
extremamente magoado com a maneira como você o evitou no
memorial de Larissa hoje. Ele tinha toda a intenção de fazer
as pazes e então você apenas... o descartou na frente de
todas aquelas pessoas. Doloroso e humilhante. E em um dia
tão doloroso.

Eu sorrio, repetindo aquela cena do memorial em minha


mente: subindo para oferecer uma demonstração de apoio à
minha mãe, fingindo que não tinha notado Errol parado ali,
com as mãos nos bolsos de sua calça skinny enquanto ele
balançava para frente e para trás nos saltos de seus
Ferragamo Oxfords recém-lustrados.

Não se trata de Errol ou da distância. Isso se resume ao


fato de que alguns de seus amigos da alta sociedade notaram
a guerra fria em tempo real entre os irmãos Schoenbach, e
ela está preocupada que as pessoas vão falar.

Minha mãe brinca com os botões enormes de seu casaco


de lã antes de enfiar a bolsa de cetim debaixo do braço e
olhar para a porta.
Meu telefone vibra novamente, desta vez com uma
mensagem de um amigo esperando para me encontrar para
bebidas.

— Espere — eu digo, pensando na ligação bizarra da


assistente social. — Larissa teve uma filha?

Mamãe para bruscamente, a mão apertando o peito,


embora mantenha as costas para mim – uma reação peculiar
para uma mulher que sempre foi inflexível até o âmago.

— Responda à pergunta. — Eu ando em direção a ela,


me posicionando na frente da porta para que ela seja forçada
a me olhar nos olhos.

Ela olha para o piso de mármore do saguão, a boca


rindo.

— Mãe. — Minha voz é severa. Posso ser tão implacável


quanto ela, se não mais.

Seus ombros pequenos sobem e descem enquanto ela


aplaina seus lábios vermelhos. — Já disse, Bennett. Eu
limpei algumas de suas bagunças ao longo dos anos, e
nenhuma vez eu disse uma palavra delas para qualquer um
de vocês. Qual é o sentido de dragar tudo isso agora?

— Então é verdade. — Endireito minha espinha. — Ela


tem uma filha.
Minha mãe revira os olhos, toma o último gole de sua
vodka cranberry e coloca o copo vazio em uma base de cristal
perto do bar. Ela sabe que não vou deixar isso passar.

— Eu tinha tudo arranjado. — Sua língua estala como


se ela estivesse irritada de novo. — Eu arranjei para ela
morar em um bom condomínio em Minneapolis pelo restante
da gravidez, e eu encontrei uma família adorável que iria
adotar o bebê – um cirurgião formado em Stanford e sua
linda esposa. Larissa deveria ter o bebê, assinar e voltar para
Chicago para terminar seu curso e seria como se nada tivesse
acontecido... — Ela engole. — Mas então ela mudou de ideia.
Ela queria ficar com o bebê. Disse que ela não poderia
continuar com isso. Algo sobre saber como é ser descartada
ou alguma bobagem assim. De qualquer forma, ela voltou
para Chicago e teve aquele bebê com ela, e eu fiz o que tinha
que fazer.

— O que você fez, mãe?

Seus olhos cinzentos se fixam nos meus. — Eu a


deserdei. Cortei-a. Disse a ela que estava cansada de ajudá-la
em todos os sentidos da palavra. Que era hora dela aprender
a se virar sozinha. A próxima coisa que eu soube é que ela
estava se misturando com a turma errada de novo, e bem,
você sabe o que resultou de tudo isso.

— Isso é frio. — E digo isso como um dos bastardos


mais frios que já respirou esse ar de Windy City.
— Não me julgue — ela cospe, o rosto contraído. — Eu
fiz o que tinha que fazer para proteger esta família. Para
proteger o nome Schoenbach. Para manter nossa linha de
sangue, sinônimo de qualidade e exclusividade.

— Não somos uma maldita marca, mãe. Somos seres


humanos, porra.

A força de seu tapa aqueceu minha bochecha esquerda,


mas eu resisto ao desejo de aliviar a dor com a palma da
mão. Isso vai passar.

— Cuidado com seu tom comigo, Bennett. — Ela retrai a


mão, segurando-a contra o peito arfante. Imagino que o tapa
a machucou mais do que a mim. — E não se atreva a me
tornar a vilã nisso.

— Eu certamente não a chamaria de heroína.

Cravando a lapela entre os dedos, ela abre a boca para


dizer algo e então para, me dando uma olhada.

Eu me afasto e ela se lança para a porta, parando no


caminho para voltar.

— Se você soubesse as coisas que fiz para proteger esta


família... não seria tão rápido em julgar — diz ela. — Na
verdade, você estaria me agradecendo.

Com isso, ela bate à porta atrás dela.

Espero alguns minutos, garantindo que não nos


cruzemos no saguão, e então pego minhas chaves, telefone e
casaco, mando uma mensagem para o meu motorista e vou
para o saguão para esperar.

Ordeno que ele me deixe em um lugar de costume, para


que eu possa encontrar um ex-colega para uma bebida, e
passo os quinze minutos de carro tentando entender o fato de
que Larissa teve uma filha – e que ela a deixou para mim.

Nunca em minha vida eu sequer acalentei a ideia de ter


um filho.

Eles são pegajosos. Bagunçados. Barulhentos.

Eles fedem.

Eles roubam seu sono e comandam seus fins de semana


com passeios ao zoológico e prática de futebol.

Honestamente, a ideia de ser uma figura paterna envia


uma onda de náusea para mim.

Eu nunca poderia criar um filho – muito menos o filho


de outra pessoa.

O táxi me deixa na frente do Ophelia's, e eu sigo para


tomar uma vodka dupla com gelo para clarear minha cabeça.

Mesmo na morte, estou limpando a bagunça de Larissa.


Astaire

— O que vamos beber esta noite? — Pergunta a


garçonete, que é o oposto de Eduardo desde a maneira como
ela me cumprimenta com um sorriso alegre até a forma como
ela canta com a música de Greta Van Fleet tocando ao fundo.

Eu já gosto dela.

Não sei o que me obriga a pôr os pés no bar Ophelia’s


apenas três noites após meu incidente com o estranho mais
cruel do mundo, mas aqui estou eu, sentada na mesma
cadeira exatamente no mesmo bar, tentando me convencer de
que o destino não seria tão cruel a ponto de nos forçar a nos
cruzarmos duas vezes em uma semana.

Além disso, eu precisava sair do meu apartamento.

Já se passaram horas desde que enviei aquele segundo


e-mail e Bennett ainda não respondeu. Ou ele não viu – ou
viu, riu, deletou, bloqueou meu e-mail e continuou com sua
vida.

De qualquer maneira, é tudo igual.


— Surpreenda-me. — Eu pisquei.

Seus olhos brilham. — Tudo certo. Eu posso te


surpreender. Mas, primeiro, responda a esta pergunta: se
você pudesse viajar para qualquer cidade do mundo agora,
para onde iria?

— Fácil. Paris. — É onde Trevor e eu íamos para a lua


de mel. Estávamos economizando como loucos no ano que
antecedeu sua morte e, na semana antes de ele morrer,
íamos comprar as passagens e reservar um quarto de hotel
com vista para a Torre Eiffel.

Não consigo contar quantas vezes assistimos An


American in Paris e depois ficamos acordados até as primeiras
horas da manhã, fazendo planos, nos preparando para a
nossa grande viagem.

A garçonete pisca para mim antes de se virar e pegar


várias garrafas e se transformar em uma cientista louca
licenciada para bebidas alcoólicas. Um minuto depois, ela me
presenteia com um coquetel amarelo claro em uma taça de
champanhe de cristal.

— Para você — ela diz. — Um Soixante Quinze, também


conhecido como francês 75.

Eu tomo um gole sem perguntar o que tem nele – eu


queria ser surpreendida, afinal. O gosto de limão,
champanhe, açúcar e gim dançam na minha língua.
— Bom, certo? — Ela limpa uma mancha úmida na
minha frente com a toalha.

— Surpreendente. — Pego um gole generoso e ela vai


embora, orgulhosa, para ajudar outro cliente.

Da minha cadeira, observo meu entorno. O lugar está


mais movimentado esta noite do que na quinta-feira,
naturalmente.

Casais se beijando.

De mãos dadas.

Grupos tilintando de copos.

Riso.

Muitas risadas.

Trevor e eu nos mudamos para cá há dois anos, tendo


ambos conseguido empregos no distrito escolar de
Worthington. Quando não estávamos trabalhando naquele
primeiro ano, estávamos totalmente planejando o casamento
– o que infelizmente deixava um tempo mínimo para
socializar e fazer amigos em nossa nova cidade. Todos os
nossos amigos de faculdade estão de volta à Indiana, e não os
vejo tanto quanto gostaria.

Eles voltaram logo depois que ele morreu, se revezando


nos fins de semana comigo, pegando meus restos e tentando
me recompor com distrações e tentativas nos momentos
bons. Mas depois de um tempo, todos eles voltaram para
suas próprias vidas.

Eu tive que fazer o mesmo.

É engraçado, quando você é mais jovem, você acha que


suas amizades são eternas, você acha que sempre estará lá
um para o outro, que nada vai mudar, não importa o que
aconteça. E no dia a dia, nada muda. Mas então um dia você
acorda e percebe que as prioridades mudaram, as pessoas se
casaram, conseguiram empregos em todo o país, começaram
famílias.

No início, você mantém contato online, conversando e


enviando mensagens por horas a fio, quando se encontram
online ao mesmo tempo. Mas, eventualmente, a vida também
atrapalha isso e você pode ter sorte de receber uma
mensagem de "Feliz Aniversário" uma vez por ano.

A distância é sempre sutil no início, gradual e, em


seguida, é enorme.

— Duplo Belvedere. — Uma figura alta e escura


preenche o espaço ao meu lado, sua voz vagamente familiar
enquanto ele chama a animada garçonete desta noite. — E
um Manhattan.

O cavalheiro de colônia cara toma o lugar ao meu lado


enquanto espera ela entregar seu pedido, e eu roubo um
olhar pelo canto do meu olho.

Mandíbula cinzelada. Cabelo escuro. Lábios carnudos.


É oficial.

O universo tem um senso de humor perverso.

Eu mantenho meu foco na parte de trás do bar,


torcendo a haste da minha bebida entre o polegar e o
indicador, tentando não prestar atenção a ele enquanto as
palavras do meu último e-mail dançam na minha cabeça.

— Eu te conheço... como eu te conheço? — Suas


palavras zumbem em meu ouvido enquanto inalo seu cheiro
inebriante.

Eu encolho os ombros, controlando toda e qualquer


emoção em favor de manter uma cara de pau.

— Você estava aqui na outra noite, não estava? — Ele se


inclina para mais perto, trazendo consigo o cheiro de
dinheiro, privilégio e influência.

Tomando um gole, mantenho meu olhar treinado à


frente. — Provavelmente.

— Pescando de novo?

Idiota.

— Como você sabe?

Ele cheira. — Palpite de sorte.

A garçonete entrega suas bebidas, dois copos de cristal


colocados sobre duas bases para copos de papel reciclado.
Ele enfia a mão na carteira e coloca um par de notas de vinte
na mesa, o peso de seu olhar persistente e deixando meus
sentidos em chamas.

Não está claro neste momento se ele leu meu último e-


mail.

Bennett desliza o Manhattan para o lugar ao lado dele


antes de verificar seu telefone. Ele deve estar esperando por
alguém.

— Por que você está aqui? — Ele pergunta.

Finalmente, eu me viro para ele. — Desculpe?

— Venho aqui o tempo todo e agora, de repente, estou


vendo você duas vezes na mesma semana. Por que você está
realmente aqui?

A coragem deste homem.

— Perseguindo você. — E então acrescento: —


Obviamente.

Ele bebe sua vodka e me estuda.

— Você deve estar incrivelmente entediado agora — eu


digo.

— Obviamente.

— Quando você me viu aqui, sentada sozinha, isso o fez


acreditar que eu queria ser incomodada? — Eu o alimento
com sua linha da outra noite. Talvez seja mesquinho, mas
talvez eu não me importe. Ele já me acusou de pescar
homens e passou a confirmar sarcasticamente que só está
falando comigo porque está entediado.

Ou talvez tudo isso seja vingança pelos e-mails.

Talvez ele esteja brincando comigo.

Jogando de volta o resto da minha bebida, eu deslizo


para fora da banqueta e jogo minha bolsa por cima do ombro.

— Aonde você vai? — Ele pergunta, me olhando de cima


a baixo.

— Isso não é fofo, essa coisa que você está fazendo — eu


digo. — Você não é charmoso. Você não é alguém com quem
eu remotamente tenha vontade de passar meu sábado à
noite. Eu estou indo para outro lugar.

— Fique.

— Eu não sou um cachorro.

— Eu vejo isso. — Ele toma um gole de sua bebida, seu


olhar me perfurando, quase me prendendo no lugar. — Ainda
assim, você não deveria partir. Não por minha conta.

— Você fala com todos que encontra desta forma? —


Não estou me referindo à formalidade com que ele fala – o que
me lembra um jovem Rudolph Valentino ou mesmo um Clark
Gable. Este homem não é do tipo "mano" ou "bruh". Ele está
em um nível todo particular.

— Qual forma?
— Com desprezo e condescendência — digo.

— Sim.

Revirando os olhos, coloco algum dinheiro no balcão e


tiro meu casaco da parte de trás do banco do bar.

— Você não vai mesmo ir embora, vai? — Ele me


observa. — Deixe eu te pagar uma bebida. Eu me sinto
péssimo por você não ter aproveitado o primeiro. Você quase
bebeu no segundo em que me sentei ao seu lado.

Impressionantemente perceptivo.

Mas ainda um idiota.

— Se eu deixar você me pagar uma bebida, você vai me


deixar em paz? — Eu olho para o Manhattan ao lado dele,
com seus cubos de gelo derretendo, me perguntando se seu
ego frágil anseia por atenção para acalmar a queimação de
ser deixado.

Por um momento, eu o vejo como um humano


danificado e não um idiota descarado.

Minha mãe adotiva costumava dizer: — É preciso todos


os tipos, — o que sempre interpretei como significando que o
mundo seria monótono se fôssemos todos iguais. E eu
concordo. Mas isso não significa que eu precise me sujeitar a
esse indivíduo não entediante em particular.

É uma pena, realmente. Eu dei a ele o benefício da


dúvida. Meu coração se partiu por ele.
E então ele enviou aquele e-mail...

Eu contemplo sua oferta, permanecendo em uma área


cinza indecisa por vários longos e óbvios segundos antes que
ele alcance meu pulso e me puxe para mais perto.

— Eu não quero estragar a sua noite. — Um brilho de


lobo reside em suas íris azuis claras.

Um segundo depois, ele sinaliza para a garçonete e


aponta para mim e minha taça vazia.

Não sei dizer por quê... mas decido ficar.

Meu assento ainda está quente e seu olhar está mais


intenso do que antes, e quando finalmente me atrevo a
encontrar seu olhar com um dos meus, tenho quase certeza
de que vejo algo mais neles – algo muito familiar.

Meu coquetel com limão chega em minutos e Bennett


Schoenbach levanta seu copo até o meu.

Algo me diz que estamos brindando à mesma coisa.

Solidão.
Bennett

— Eu não odeio nada. Ou qualquer um — declara a loira


atraente ao meu lado enquanto toma seu terceiro coquetel.
Nós estivemos conversando – falando merda sobre nada e
tudo – pela última hora enquanto o Manhattan de Jax se
desmancha em água ao meu lado. O bastardo ficou preso
com sua namorada pegajosa e não vem.

Até agora, ela me disse que adora filmes antigos.

Qualquer coisa da velha Hollywood.

Ela é voluntária nos finais de semana (surpresa,


surpresa).

Mas estou mais interessado no que ela não gosta – esses


são os tipos de coisas que dizem o que você precisa saber
sobre alguém.

— Mentirosa. Todo mundo odeia alguém. — Eu bebo


meu uísque, meu olhar treinado em seu delicioso beicinho
cor de pêssego.
Desentendimentos são as melhores preliminares, e eu
tenho toda a intenção de levar este raio de sol para casa
comigo esta noite e transar com ela até termos orgasmos
múltiplos antes de chamar um táxi e rezar para que nunca
nos encontremos novamente, porque eu não faço repetições.

Quanto mais eu conseguir que ela me ache


cerebralmente repulsivo, mais quente será o sexo.

Ela já está atraída por mim, isso posso deduzir. A


maneira como seus olhos passam por mim, a maneira como
seu olhar permanece na minha boca, a maneira como ela
toca seu cabelo quando pensa que não estou olhando. A
maneira como ela revira os olhos quando ri.

Lutando como ela pode, ela me quer.

E nem trocamos nomes.

— Você diz isso com tanta convicção. — Ela aperta os


olhos. — Mas você não poderia estar mais errado. Eu nunca
odiei ninguém na minha vida.

— Mentirosa.

Eu me concentro em seus lábios carnudos, me


perguntando qual seria o gosto deles entre os meus dentes, e
quando ela alcança seu copo, dou uma olhada em suas coxas
cobertas de legging, imaginando sua pele de cashmere sob
minhas palmas.
— A vida é muito curta para odiar alguém. — Ela
encolhe os ombros. — Além disso, você recebe o que dá,
sabe? Se você sair por aí odiando as pessoas o tempo todo,
elas vão odiar você de volta.

— E o que há de errado nisso?

— Tudo. — Suas palavras são cheias de respiração e


certeza.

— Você não tem ideia de como é libertador não dar a


mínima para o que as pessoas pensam de você. Você poderia
me dizer que me odeia e não vou sentir nada. Vou para casa
dormir como um bebê.

Ela aperta os olhos. — Eu não acredito em você.

Eu bebo minha bebida e olho para frente. — Eu não


preciso que você acredite.

— No fundo você quer ser querido, amado, tanto faz.


Mas você está com medo. Então você usa essa armadura
idiota que faz com que todos imediatamente o detestem
porque então você está no controle. Você decide se alguém
gosta de você ou não.

Eu aceno para o barman, levantando meu copo vazio. —


O que te faz pensar isso?

— Porque ninguém é tão horrível na vida real. — Ela


pega outra bebida, olhando de soslaio. — E eu me recuso a
acreditar que você é tão horrível quanto gostaria que as
pessoas acreditassem.

— Você cobra por hora por isso? Pensei que éramos


apenas dois estranhos compartilhando uma bebida. Não
percebi que você estava me psicanalisando todo esse tempo.

— Sinto muito, mas essa coisa que você faz é um


mecanismo de defesa. Muitas pessoas fazem isso. E, pela
minha experiência, quanto mais duro alguém é por fora, mais
suave ele é por dentro. — Ela encolhe os ombros
humildemente, mas exibe um sorriso alegre na boca fodível.

Ela acha que me descobriu.

Ela não poderia estar mais errada.

— Na minha experiência, bancar o psicólogo de poltrona


é uma perda de tempo completa. — Eu estourei sua bolha.

— Não posso evitar. É o que eu faço. — Seus olhos


brilham, o mais pálido azul marmorizado, e ela morde o lábio
inferior para evitar um sorriso. — Eu acho as pessoas
fascinantes.

— Você me acha fascinante?

— Pessoas em geral — ela corrige. — O que eu acho é


que se você quiser ser técnico, você se enquadra nessa
categoria.

— Por que você realmente veio aqui esta noite? — Mudo


de assunto porque o magnetismo entre nós está claramente
se intensificando e é hora de parar de brincar. Eu estava
brincando com ela antes, quando a acusei de vir aqui para
'pescar' homens, mas estou começando a suspeitar que não
estava tão longe da verdade. Ela é uma mulher linda sozinha
em um bar popular em uma perfeita noite de sábado,
entretendo flertes de um homem que nem se deu ao trabalho
de saber seu nome.

— Por que isso importa?

— É só uma pergunta.

Ela levanta um ombro. — Queria sair do meu


apartamento. Este lugar fica a curta distância. Você?

— Era para encontrar um amigo para beber.

— Ela te deixou?

— Nunca disse que era uma amiga.

Seu olhar cai para o guardanapo.

Está muito escuro no bar para saber se ela está


corando, mas posso presumir.

Eu considero isso uma confirmação de que as coisas


estão absolutamente indo na direção certa.

Eu traço meus dedos na parte superior de seu joelho. —


Tenho que dizer... não me lembro da última vez que tive uma
conversa de verdade com alguém aqui.
É um movimento coxo e uma linha ainda mais fraca,
mas tudo em que consigo pensar é em levá-la para casa, e
minha impaciência está levando o melhor de mim.

Ela me olha através de uma franja de cílios escuros


antes de seu olhar cair na minha mão. — Você não é tão bom
quanto pensa que é, Casanova.

Um momento depois, sua palma repousa sobre a minha,


e ela retorna minha mão com a gentileza de uma virgem
angelical.

— Você está certa. — Eu jogo minhas mãos no ar por


meio segundo. — É apenas mais um dos meus... atos.

A bebida dela está quase acabando. A julgar pelo rumo


taciturno que nossa conversa tomou, uma quarta está
provavelmente fora de questão.

— Você me dá licença por um segundo? — Ela desliza


para fora do banco do bar, pendura a bolsa no ombro e vai
para a parte de trás do bar, deixando o casaco para segurar
seu lugar.

Bebo minha vodka e vejo como ela esbarra na filha do


dono no caminho. Ophelia DeGrasse é uma daquelas pessoas
que pode falar com você uma vez e, da próxima vez que você
topar com ela, é como encontrar um velho amigo.

Além disso, ela namora exclusivamente mulheres.


Ou ela está apenas sendo amigável com a porra do meu
raio de sol porque elas se conhecem... ou ela está dando em
cima dela.

É difícil dizer de todo a distância até aqui, mas suponho


que não importa porque tenho certeza que não vou levar a
bunda dela esta noite.

Eu sabia que não devia fazer um movimento tão cedo.


Eu deveria ter mantido a conversa. Fingir interesse em saber
mais sobre ela. Mas o licor russo correndo em minhas veias
evidentemente me tirou do jogo e minha impaciência levou o
melhor de mim.

Minha efervescente loira borbulhante fora de alcance


desaparece no banheiro feminino.

Eu peço água e mando uma mensagem para o meu


motorista.

Eu me recuso a sentar aqui chafurdando em rejeição


quando tenho dezenas de mulheres no meu telefone que
iriam de Uber para minha casa em um piscar de olhos se eu
dissesse a palavra.

Estou pela metade com minha água quando ela volta.


Limpando a garganta, ela se senta e bebe o resto de sua
bebida. Ficamos sentados em silêncio durante os dois
minutos mais longos da minha vida antes que ela se virasse
para mim.

— Você nem perguntou meu nome — ela diz.


— O quê?

— Você esteve flertando comigo a noite toda, me


pagando bebidas. Você colocou sua mão no meu joelho. E
você ainda não perguntou meu nome.

— Eu não preciso.

Seus olhos encontram os meus e ela me estuda. — Ah.


Então você já sabe disso.

Eu sorrio. — Isso não foi o que eu quis dizer.

— Eu devo ir. — Ela desliza para fora de seu assento. —


Obrigada pelas bebidas.

Meu telefone acende com uma mensagem do meu


motorista.

Ele está quase aqui.

Eu me levanto, coloco meu telefone no bolso, tiro meu


casaco, jogo algum dinheiro no balcão e saio primeiro.

Deus não permita que ela pense que eu estou seguindo


ela.

Nunca persegui uma mulher em minha vida. Não vou


começar agora.

Eu fico sob um toldo preto, minha respiração se


transformando em nuvens leitosas de janeiro sob um céu
azul-escuro claro.
Deslizando meu telefone para fora, decido verificar meu
e-mail do trabalho enquanto espero minha carona. Como é
sábado, não recebo nada urgente e estou prestes a fechar o
aplicativo quando vejo um e-mail de resposta de Anonymous
Stranger.

Meu polegar paira sobre o botão delete por meio


segundo antes de decidir ver o que essa pessoa audaciosa
tem a dizer desta vez. Como nunca acreditei em deixar
ninguém dar a última palavra (e porque me divirto de
maneira barata com essas trocas), pretendo responder na
próxima chance que tiver.

Estou com três frases profundas quando percebo que


essa mulher está me contando um romance com uma história
triste, provavelmente uma tentativa de justificar sua decisão
de se inserir na tragédia de minha família.

Ela era uma filha adotiva...

Ela nunca conheceu seu pai...

Sua mãe adotiva morreu...

O noivo dela morreu...

Uma genuína música country – tudo o que falta é um


Blue Heeler fugitivo e um Chevy quebrado na beira da
estrada.

De jeito nenhum isso é verdade – e mesmo assim


continuo lendo, esperando a parte em que essa maluca está
prestes a me pedir dinheiro. É quando chego ao final que o
sorriso divertido no meu rosto desaparece e tudo ao meu
redor fica preto.

A mulher no bar, a mulher que me fodeu com os olhos a


noite toda e então de repente e inexplicavelmente perdeu todo
o interesse... não é outra senão Anonymous Stranger.

E ela sabia o tempo todo.

Ela acha que sou cruel?

Ela não viu nada ainda.

Um momento depois, a porta se abre e Astaire se junta a


mim, abotoando seu casaco marfim e deslizando suas mãos
delicadas em luvas de couro apertadas de cor clara. O mais
leve sopro de seu doce perfume corta o ar frio da noite
quando um carro passa por ela, as lanternas traseiras
refletindo no asfalto úmido de inverno até desaparecer na
colina.

Ela começa a dizer algo, mas eu a silencio com um


beijo... suave e lento, do tipo que a faz derreter contra mim,
exalando seu hálito doce enquanto meus dedos traçam o lado
de sua bochecha, suas costas contra a fachada de tijolo do
Ophelia's.

Nossos olhos se encontram.

Ela não resiste.


Na verdade, seus lábios se abrem para aceitar minha
língua, presenteando-me com o sabor sutil de frutas cítricas
açucaradas e champanhe com um toque de protetor labial de
romã.

Ela é tão doce quanto eu esperava.

Como se fosse uma deixa, meu motorista estacionou ao


lado do meio-fio.

Eu termino o beijo, roçando a ponta do meu polegar em


seu lábio inferior. Meu olhar de mil metros a perfura e eu me
afasto.

— Essa é a minha carona. — Eu aceno em direção ao


SUV em marcha lenta.

— Eu não vou para casa com você.

— Isso não foi um convite. — Há um calafrio na minha


voz que faz sua expressão desvanecer.

Com isso, eu desapareço dentro do calor satisfatório do


meu banco traseiro e a deixo na calçada, no frio brutal de
janeiro.
Astaire

— Astaire, aí está você. Estava esperando que eu te


pegasse antes do sinal. — A Sra. Angelino, que leciona na
terceira série no final do corredor, entra na minha sala de
aula na segunda de manhã, com uma xícara de café em
forma de maçã na mão. — O que aconteceu semana passada?
Com Garrett? Ele disse que você nunca apareceu?

Eu pretendia encontra-la, explicar o que aconteceu, mas


ela estava doente na sexta-feira e eu não queria incomodá-la
em casa no fim de semana.

— Eu sinto muito. — Eu estava prestes a verificar meu


e-mail, mas fechei a tela de login. — Peguei chuva na quinta
à noite, então, quando cheguei ao bar, fui ao banheiro
feminino para me limpar. Quando eu saí, o barman me disse
que ele tinha ido embora. Eu não tinha o número dele, senão
teria...

Ela ri, batendo a mão antes de brincar com o colar de


argila em forma de estrela pendurado no peito coberto pelo
suéter. — Oh, querida, isso é minha culpa. Eu pretendia dar
a você o número dele, mas devo ter me esquecido. Ele pensou
que você o deixou esperando. Ele vai se divertir com isso
quando eu disser que você estava apenas se enfeitando e se
arrumando no banheiro feminino. Você quer tentar
novamente esta semana? Mesmo lugar, mesma hora?

— Hum, claro. — Forço um sorriso, não tenho certeza se


estou com vontade de fazer tudo de novo depois dos eventos
da semana passada.

Para ser honesta, ainda estou me recuperando do beijo


de Bennett Schoenbach no sábado à noite – principalmente
lutando com o quanto eu gostei, mas também tentando
envolver minha cabeça em torno de seu "foda-se" para
menores.

Eu entendo – ele estava com raiva porque nós flertamos


a noite toda e eu recusei seu avanço..., mas a maneira como
ele olhou para mim quando se afastou, como se estivesse
atirando punhais em minha alma, está gravada em minha
mente. Repeti aquele beijo, aquele olhar cem vezes desde
aquela noite e por qualquer motivo, não consigo tirar isso da
minha cabeça.

Não consigo tirá-lo da minha cabeça.

— Podemos tentar um lugar diferente? — Eu pergunto.


— Algo além de Ophelia’s?
— Querida, é claro. Isso é com vocês dois. Enviarei um
e-mail com o número dele quando voltar para a minha sala e
vocês podem resolver tudo.

O primeiro sino da manhã toca e o corredor começa a se


encher de tênis arrastando os pés, mochilas saltitantes e
jovens risonhos.

A Sra. Angelino me deixa com um aceno de dedo antes


de sair correndo da minha sala de aula. Faltando cinco
minutos para o sinal da tarde, decido verificar meu e-mail.
Passei todo o dia de ontem me convencendo do contrário.
Dizendo a mim mesma que quando ele descobrisse que eu
sabia quem ele era no sábado à noite, que eu era o remetente
anônimo dos e-mails, nada de bom poderia resultar disso.

Mas a curiosidade diminuiu minha decisão e estou


achando difícil me concentrar – um problema, vendo como o
dia escolar começa em breve e meus alunos merecem minha
atenção total e exclusiva.

Eu digito minha senha e pressiono enter.

Sem novas mensagens.

Exalando, não tenho certeza se estou aliviada ou se isso


me deixa mais nervosa, pois antecipo um inevitável
desconhecido.

Ou ele ainda não leu, ele leu e excluiu... ou está


esperando até que encontre a resposta perfeita.
Se for o último, algo me diz que não vai ser gentil.
Bennett

Eu reli minha resposta a Astaire na manhã de segunda-


feira, meu dedo indicador tocando a tecla de retorno.

PARA: AnonStranger@Rockmail

DE: Bennett.Schoenbach@SchoenbachCorp

ASSUNTO: RE: re: re: Condolências

Astaire,

Parabéns – você conseguiu me deixar sem palavras por


um recorde de trinta e duas horas. Agora que tive algum tempo
para envolver minha cabeça em torno desta situação fodida em
que você me colocou, eu tenho alguns pensamentos próprios
que gostaria de compartilhar.

Nunca em meus trinta anos conheci alguém com uma


capacidade tão impressionante de tecer um conto de ficção
vigoroso e banal com a audaciosa intenção de se inserir nos
assuntos pessoais de um estranho.
Mas você não parou por aí.

Você começou a mostrar seu rosto no Ophelia’s


novamente, aceitou bebidas minhas, agiu como uma Virgem
Maria Celestial e iluminadora apesar de me foder com os olhos
por horas – o tempo todo sabendo que seria uma questão de
tempo antes que eu lesse seu e-mail e saber exatamente quem
você era.

Não tenho certeza de qual é o seu jogo final. Se você está


procurando por dinheiro, simpatia ou um idiota para cair em
suas manobras, está desperdiçando seus esforços. Minha
generosidade financeira é inexistente, eu não poderia me
importar menos com suas tragédias falsas, e chicotear nunca
foi meu estilo.

Por favor, faça a si mesma um grande favor e encontre


outro idiota para cair em seus golpes.

Tenho coisas mais importantes para fazer com meu


tempo.

Não seu (e nunca será),

Bennett

PS: Obrigado por chamar minha atenção para a minha


predileção por crueldade – eu não fazia ideia. Definitivamente
estarei trabalhando nisso de agora em diante.
— Sr. Schoenbach, seu compromisso das 9 da manhã
está aqui. — A voz falsa e alegre de Margaux berra no alto-
falante do interfone da minha mesa, puxando-me com força
do meu momento. Eu pressiono o botão laranja e digo a ela
para mandá-la entrar antes de clicar em 'enviar' no meu e-
mail.

Um momento depois, Jeannie do Departamento de


Família e Serviços Sociais entra em meu escritório com um
grosso arquivo de caso enfiado debaixo do braço.

— Jeannie? Bennett. — Estendo minha mão, mas não


digo que seja um prazer conhecê-la. Esta não é uma reunião
de trabalho idiota e não estamos aqui para nos tornarmos
amigos. Estamos aqui para resolver a bagunça que Larissa
deixou para trás na forma de uma criança órfã. — Entre.

Ela se senta na minha cadeira de convidado e eu volto


para o outro lado da minha mesa.

— Agradeço sua disposição em se encontrar comigo —


diz ela. — Eu entendo que tudo isso deve ser um choque para
você, dado o fato de que você não estava ciente da Honor.

Ela fala devagar, escolhendo as palavras com tenacidade


cuidadosa. Não tenho certeza se ela acreditou em mim no
início.

Ainda não tenho certeza se ela acredita.

Mas isso não vem ao caso.


Abrindo uma pasta de papel manilha, ela me entrega
um formulário. Uma rápida varredura e deduzo que estou
segurando uma cópia da certidão de nascimento da criança.

Honor Elizabeth Smith: Nasceu em 5 de março.

Mãe biológica – Larissa Cleary-Schoenbach.

Eu devolvo. — Não há nenhum pai biológico listado.

Jeannie estremece. — Correto. Ela se recusou a dar um


nome. Disse que era complicado, que o pai não tinha
conhecimento da criança e não gostaria de estar na vida dela.

Eu solto uma respiração forte, os dentes cerrados. Com


base nos tipos de perdedores com os quais Larissa estava
passando seu tempo, algo assim não seria implausível.

— Smith — li o sobrenome da garota em voz alta.

Jeannie encolhe os ombros. — Ela não entrou em


detalhes, mas legalmente, uma pessoa pode dar a seu filho o
nome que quiser. Existem mais de dois milhões de Smiths
nos Estados Unidos – o sobrenome mais comum no país.
Imagino que ela tenha escolhido isso para evitar dar à filha o
sobrenome do pai. Mas é claro que é impossível saber.

Ela me entrega outra folha de papel – desta vez com


uma fotocópia em preto e branco da criança. Granulado, mas
não granulado o suficiente para negar que ela compartilha o
sorriso de sua mãe – um que ocupa metade de seu rosto
como o de Larissa sempre fazia. Seu cabelo é escuro. Não sei
dizer se é marrom ou preto. O cabelo de Larissa era tão claro
que ficava translúcido na luz certa, pelo menos quando ela
era criança. Escureceu um pouco quando ela ficou mais
velha, mas nunca foi tão escuro.

Aparências à parte, ela parece uma criança feliz, seja lá


o que isso valha.

— Honor mora aqui em Worthington Heights — diz


Jeannie, — em uma casa temporária com uma família adotiva
local. Ela tem estado dentro do sistema a maior parte de sua
vida. Houve momentos em que Larissa foi capaz de cumprir
os requisitos de custódia dados a ela pelos tribunais..., mas
sempre parecia que ela daria um passo à frente, apenas para
cair dez passos para trás. Ela nem sempre era capaz de ficar
limpa, não era capaz de fornecer um alojamento seguro e
aceitável para a criança. Entrou e saiu da prisão por drogas e
prostituição...

Eu levanto a mão para silenciá-la. — Estou ciente de


sua ficha criminal. A recapitulação é desnecessária.

Jeannie acena com a cabeça. — Claro. Eu só estava


tentando dar uma ideia de como foram os primeiros cinco
anos da vida de Honor.

— Por que ela não foi adotada?

— Não funciona assim. Os tribunais gostam de manter


as famílias unidas sempre que possível e várias tentativas
devem ser feitas. Como eu disse, tivemos muito progresso... e
depois alguns erros. Mais recentemente, ela estava tendo
aulas de paternidade ordenadas pelo tribunal, indo para a
clínica de recuperação regularmente, e começou a trabalhar
em uma fábrica de plástico local em tempo integral.

Estou ciente.

Na verdade, eu consegui o emprego para ela lá (sem que


ela soubesse), visto que minha empresa é dona da fábrica. O
RH não queria contratá-la por causa de seu histórico de
trabalho instável, mas eu disse a eles que não era uma
opção. A posição na linha de montagem não era algo que ela
pudesse fazer carreira, mas era um trabalho honesto.

Disseram-me que ela durou quatro meses.

— Ela estava dando grandes passos — continua


Jeannie, torcendo as mãos e olhando pela janela atrás de
mim, os olhos distantes e a voz tingida de tristeza. Tenho a
impressão de que ela se importava com Larissa, que Larissa
não era apenas mais um arquivo de caso em sua gaveta. —
Ela queria ser o que Honor precisava, mas infelizmente...

Eu levanto minha mão novamente.

Não há necessidade de cavar mais fundo neste deserto


deprimente.

Pego o resto do arquivo do caso e folheio as grossas


pilhas de papelada que não significam absolutamente nada.
— Não entendo por que ela deixaria sua filha comigo.
Não estou qualificado para criar um filho, nem jamais desejei
um filho. Não só isso, você não acha estranho que ela não
tenha mencionado a existência desta criança para mim uma
vez sequer? — Eu massageio minha têmpora, afundando em
meu assento.

De qualquer forma, eu cansei disso, nada disso faz


sentido.

Se minha mãe não a tivesse cortado, ela não teria


motivo para continuar mantendo a criança em segredo.

Toda essa situação é desconcertante.

Jeannie respira fundo, balançando a cabeça. — As


pessoas fazem coisas estranhas o tempo todo. Posso dizer
que, de todas as minhas interações com ela ao longo dos
anos, houve momentos em que ela não estava com a mente
clara. É difícil saber qual era a lógica dela com tudo isso.

— Eu acho que é seguro dizer que não houve. — Afasto


o arquivo. — O que acontece se eu disser não?

Jeannie levanta as sobrancelhas castanho-acinzentadas,


os ombros afundando, a decepção gravada nas linhas finas
de seu rosto de meia-idade.

— Bem... se você recusasse a custódia — diz ela, —


normalmente entraríamos em contato com parentes
próximos. Normalmente são outras tias ou tios, avós. Se
ninguém pudesse cuidar da criança, ela permaneceria no
sistema estadual até ser adotada... O que pode levar anos.
Ela poderia morar em dezenas de casas antes de encontrar
um lar permanente e, mesmo assim, não há garantia.

— Poupe-me da viagem de culpa. Estou simplesmente


coletando informações.

— É... claro — ela gagueja, as mãos cruzadas no colo. —


Eu sei que há muito em que pensar, muito a considerar.
Posso dizer que Honor é uma menina linda e doce.
Extremamente inteligente. Extrovertida. Saudável.
Encantadora. Não posso imaginar que será difícil encontrar
uma colocação permanente para ela, mas é claro, não há
garantia. Eu tenho mais algumas fotos, se você quiser ver...
Ela é uma boneca.

Eu bufo.

Como se a fofura de uma criança pudesse fazer ou


quebrar minha decisão...

Eu não sou minha maldita mãe.

Jeannie está alheia ao meu desdém por sua sugestão, e


sua expressão se ilumina enquanto ela examina o arquivo de
papelada e produz um punhado de fotos coloridas, a maioria
delas transparentes.

Ela me entrega uma – um retrato escolar do tamanho de


uma carteira, e faço tudo o que posso fazer para não perder a
cabeça quando encontro o distinto olhar azul-gelo de
Schoenbach olhando para mim.
O cabelo escuro.

Os olhos azuis claros e profundos e a franja de cílios


pretos.

A tez bronzeada cremosa.

Esta menina não se parece em nada com Larissa – e


tudo com um Schoenbach.

Errol Schoenbach, se eu tivesse que adivinhar.

As palavras de minha mãe ecoam em minha mente: —


Se você soubesse as coisas que fiz para proteger esta família...
para proteger nosso nome...

Um escândalo como este teria destruído a reputação de


prestígio de minha mãe, abalado seu círculo social, feito
piada com nosso nome e prejudicado nossos negócios. As
réplicas desse segredinho sujo teriam sido sentidas por anos,
e dado o clima difícil da alta sociedade de Chicago, não posso
imaginar que houvesse alguém voltando de algo tão
humilhante como isso.

Seu filho tem uma filha com sua irmã adotiva? Isso não
é algo que as pessoas vão esquecer tão cedo, ou nunca.

Ela teria sido uma rejeitada.

Revelar essa informação seria suicídio social para


alguém como minha mãe, uma sentença de morte da pior
espécie.
— Honor está com uma boa família por enquanto — diz
Jeannie. — Mas eles não estão procurando adotar... na
verdade, sua mãe adotiva acabou de descobrir que está
grávida. Não planejado. Surpresa completa. Gêmeos, nada
menos. Mas isso significa que, nos próximos meses, eles
terão que reduzir o número de filhos que acolherão – se é que
que vão decidir continuar a acolher. Há uma boa chance de
Honor ser transferida para um novo lar nos próximos meses,
e não há garantia de que será no mesmo distrito escolar. Ela
frequenta a Starwood Academy e está absolutamente
prosperando lá...

— É o bastante.

Jeannie se senta mais reta, a boca ainda aberta, mas


nenhum som emergindo.

— Vou buscá-la. — Coloco as fotos de volta na pasta –


tudo, menos o retrato da escola.

— V-você tem certeza?

Eu dificilmente estou qualificado para criar um filho,


mas olhando para a imagem cuspida de meu irmão, a
menininha angelical que foi varrida para debaixo do tapete
como um segredinho sujo, tudo para que minha mãe pudesse
tomar um brunch no Diamond Ivy Club aos domingos e férias
com Vanderbilts, Astors e Rothschilds – me faz sentir que de
alguma forma eu tenho que fazer isso.
— Apenas me dê algumas semanas para colocar
algumas coisas em ordem. — Eu me levanto, abotoo meu
paletó e a levo para sair. — Entrarei em contato.

Jeannie sai, sem palavras, arrastando os pés em seus


sapatos ortopédicos.

Eu tranco a porta atrás dela e volto para minha mesa


para escrever um e-mail para minha assistente dizendo a ela
para abandonar todo e qualquer projeto não relacionado à
prazos, limpar minha agenda para a semana e me encontrar
em meu escritório quando ela terminar.

Pegando meu café, eu me levanto da minha mesa e olho


para a paisagem cinzenta da cidade lá fora, contemplando
todas as maneiras como minha vida está prestes a mudar a
partir deste momento.

Estou pensando em algumas dessas maneiras quando o


calor úmido penetra na minha camisa social. O tecido
grudando na minha pele, e quando olho para baixo, descubro
que minha caneca está vazando e minha camisa está
estragada para o dia.

Pego uma sobressalente no armário e vou para o


banheiro privativo para me trocar.

De pé diante do espelho, desabotoo cada botão,


começando do topo. Três botões depois, meu olhar pousa na
cicatriz de um ano que desce pelo centro do meu peito, a
lembrança física de que o coração de outro homem bate
dentro de mim.

Vinte e cinco por cento dos pacientes de transplante de


coração não viverão para ver mais cinco anos, e somente por
essa razão, eu seria um tolo se adotasse essa garota, para
jogar com o destino.

Mas se eu pudesse dar a ela alguns anos de


estabilidade, prepará-la para uma vida inteira de
oportunidades, então tudo isso teria valido a pena.

Posso ser um bastardo cruel, mas não sou um monstro.

Há uma diferença.
Astaire

Eu passo outra camada de protetor labial rosa sobre


meus lábios e fecho meu pó compacto antes de pegar minha
bolsa da gaveta da minha mesa na quinta-feira.

A escola está vazia, a maioria dos funcionários já voltou


para casa durante o dia e, em trinta minutos, devo encontrar
o sobrinho da Sra. Angelino em um lugar italiano chamado
Fino para nosso segundo encontro às cegas.

Com as chaves na mão, caminho até o estacionamento,


meu casaco aberto.

Sem nuvens no céu.

Nenhuma gota de chuva salpicando na calçada.

Eu inalo uma respiração rápida e destranco meu carro.


Não estou exatamente com humor para um encontro, mas eu
poderia usar algumas horas para sair da minha cabeça, ser
social, desfrutar de uma bebida ou duas.

Tento me concentrar nos aspectos positivos e ignorar a


voz irritante na minha cabeça implorando para que eu veja
meu maldito e-mail. Eu estive tão bem esta semana, não
tendo logado desde segunda-feira... Se Bennett escreveu de
volta, não soube disso. Achei que ia ficar mais fácil a cada dia
que passa, mas, na verdade, minha curiosidade se
intensificou.

O encontro desta noite deve ser uma boa distração.

Saindo do estacionamento, passo por uma minivan


abarrotada de crianças animadas de várias idades e uma mãe
sem maquiagem com um coque bagunçado e uma caneca de
café azul-petróleo na mão.

Isso me faz pensar na mãe adotiva de Honor, que se


atrasou para buscá-la novamente hoje, só que desta vez ela
ficou e conversou por alguns minutos, sussurrando enquanto
me informava que ela e seu marido estão esperando gêmeos
neste verão e depois me surpreendendo com uma bomba
ainda maior – que a assistente social de Honor encontrou um
lugar permanente para ela.

Lucy não sabe quando Honor vai se mudar ou para onde


ela vai – só que ela definitivamente vai partir em algum
momento.

Sinto um aperto no peito quando a imagino entrando na


minha sala de aula com seu sorrisinho contagiante e rabos de
cavalo tortos, mas estou feliz por ela.
Desejo a ela a mais incrível e fantástica infância – uma
infância cheia de amor e memórias e um lugar para sempre
chamar de lar.

Em dez minutos, estou estacionando em frente à Fino –


que por acaso fica na mesma rua do Ophelia’s.

Meu Volvo cinza usado se destaca entre a miríade de


Porsches brilhantes e Maseratis polidos e, a julgar pelas
letras elegantes no toldo branco diante de mim, há uma
chance de que eu esteja malvestida, mas tanto faz.

Estou aqui.

Eu estou fazendo isto.

Envolvida pelo calor do restaurante um momento


depois, sou saudada por uma jovem anfitriã que não sorri.
Seus quadris balançam em seu vestido colado enquanto ela
me acompanha até uma cabine em forma de U ao lado das
janelas da frente.

Eu deslizo para o couro cor de vinho e corro minhas


mãos ao longo das toalhas de mesa de linho imaculadas.

Um conjunto de velas dançam em torno de um pequeno


vaso de rosas rosa claro na peça central.
Garrett ainda não chegou, o que está bem. Eu
deliberadamente cheguei cedo desta vez.

Um jovem com uma camisa de botão e calças sem fiapos


me serve água antes de me entregar o cardápio de bebidas.

— Pinot Noir seria ótimo — eu digo sem olhar para as


seleções.

Ele acena com a cabeça, indo em direção ao bar, e é


então que vejo um homem alto, moreno e indiscutivelmente
bonito vindo em minha direção. Nossos olhos capturam. Ele
sorri. Eu sorrio.

— Astaire? — Ele pergunta quando está mais perto.

— Você deve ser Garrett. — Eu me levanto e ele me


cumprimenta com um abraço. Um abraço. Ele já é caloroso e
pessoal – tudo o que Bennett Schoenbach não é, não que isso
importe.

— Espero que você não tenha esperado muito tempo. —


Ele tira o paletó preto e o pendura em um gancho entre a
nossa cabine e a seguinte antes de entrar.

— Um minuto, nem tanto. — Estou sorrindo tanto que


minhas bochechas doem, então volto atrás. Não tenho ideia
de por que estou tão tonta de repente.

Estou nervosa?

Animada?
Aliviada por ele não ser um idiota de coração cruel?

— Ouça, sinto muito sobre a semana passada. — Seu


olhar suaviza, sua expressão apologética quando ele coloca
sua mão sobre a minha. — Esperei dez, quinze minutos e
comecei a pensar que havia confundido as datas ou os
horários. E é claro que tia Jane se esqueceu de me dar seu
número. De qualquer forma, me sinto péssimo com a
confusão.

Ele dá um meio sorriso quando fala, e suas palavras são


doces e sem pressa, leite e mel.

— Nem se preocupe com isso. — Eu coloco meu cabelo


atrás da orelha.

Nosso garçom aparece com uma garrafa aberta de Pinot


e duas taças de vinho. Eu não sabia que tinha pedido uma
garrafa.

Rezo para que esta conta se encaixe no meu salário de


professora...

— Você bebe Pinot? — Aponto para a segunda taça


enquanto o garçom abre e derrama a coragem líquida
vermelha em meu cálice que está esperando.

— Sou um cara de gim-tônica, na verdade. Vou levar um


desses. Forager, se você tiver. — Ele pede a bebida de Trevor.
Um bom sinal, espero. — Muito obrigado.

O garçom acena com a cabeça antes de sair.


— Então sua tia me disse que você trabalha no setor
financeiro? — Eu bebo meu vinho e tento não deixar meu
olhar se demorar em seus ombros largos ou em seu sorriso
branco como a neve, perfeito.

Os olhos de Garrett brilham em harmonia com a luz


bruxuleante das velas, e a maneira como ele olha para mim
me faz perder a linha de pensamento por um segundo, muito
parecido com a primeira vez que coloquei os olhos em Trevor.

— Gerente de fundos de cobertura em Gainey-Hodge, no


centro da cidade, — diz ele. — Comecei como um estagiário
recém-saído da faculdade, fiz networking, fiz alguns contatos,
passei alguns anos trabalhando oitenta horas por semana e...
sim. Aqui estou. Tia Jane disse que preciso me divorciar do
meu emprego e me casar com uma mulher de verdade.

Ele ri pelo nariz e imagino que sua relação com a Sra.


Angelino seja saudável e amorosa.

Não sei muito sobre corretores de ações ou qualquer


coisa nessa área, mas sei que os administradores de fundos
de cobertura tendem a ser extremamente inteligentes,
motivados e bem-sucedidos – qualidades definitivamente
admiráveis na pessoa certa.

— Tia Jane me disse que você é professora de jardim de


infância?

Eu concordo. — Eu sou.
— Isso é adorável. — Ele sorri, mostrando duas
covinhas, e eu juro que meu coração dá uma cambalhota. —
Você realmente parece uma professora de jardim de infância.

— E como são os professores do jardim de infância?

— Eles têm esse ar de doçura. Essa gentileza. Olhos


gentis. Sorriso bonito.

Nossos olhares se mantêm, mas o momento é


interrompido assim que nosso garçom entrega sua bebida.

— Gostariam de ouvir os especiais da noite? — O jovem


nos entrega cardápios de jantar com capa de couro antes de
tagarelar sobre uma série de opções que parecem caras.

— Se você pudesse nos dar um minuto, seria ótimo. —


Garrett olha para mim enquanto fala com ele. — Temos a
noite toda. Não há necessidade de acelerar as coisas, certo?

Estou a segundos de concordar quando algo chama


minha atenção do bar.

Não, não é alguma coisa.

Alguém.

Bennett.

Juro que sinto a cor drenando do meu rosto em tempo


real quando seu olhar penetrante cruza com o meu, e me
forço a desviar o olhar, mexendo no guardanapo de pano no
meu colo e limpando minha garganta. A blusa envolvendo a
parte superior do meu corpo pode muito bem ser uma sauna,
minha pele formigando com o calor sob o tecido sedoso, mas
eu resisto à vontade de me agitar ou me abanar.

— Você está bem? — Garrett pergunta.

Eu pego meu vinho, reunindo um sorriso convincente.


— Sim. Eu estou bem. Desculpe. Pensei ter visto alguém que
conhecia.

Garrett se vira, olhando para o bar, mas as costas de


Bennett estão de frente para nós agora e ele está instalado
entre um punhado de outros clientes, se misturando bem.
Voltando a atenção para o menu, ele diz algo sobre o bife,
mas não consigo me concentrar em suas palavras.

— Sinto muito, você me daria licença por apenas um


segundo? — Eu saio correndo da cabine e sigo as placas do
banheiro até a parte de trás do restaurante, e quando estou
fora da vista de Garrett, eu me encosto na parede, de braços
cruzados, e espero.

Vinte segundos se passam, talvez trinta, quando


Bennett aparece na esquina.

— Eu sabia — digo.

— Você sabia o quê?

— Você me seguiu até aqui.

Ele bufa, as mãos descansando em seus quadris. — Não


se iluda, Astaire.
Ele definitivamente leu o e-mail...

— Então explique o que você está fazendo aqui. — Eu


cruzo meus braços com mais força. Eu odeio a maneira como
ele diz meu nome.

— Você sabe que este é um restaurante público.

— Ok, então apenas admita que você está me seguindo.

Seu olhar se estreita e ele exibe um meio sorriso torto.


Não sei dizer se ele está rindo de mim ou mexendo comigo. —
Não estou te seguindo – embora talvez alguém devesse.

— O que isso deveria significar?

— Você é uma vigarista. — Ele não pisca, como se


estivesse apenas declarando um fato. — Uma predadora.

— Desculpe-me, o quê? — Eu engasgo com minhas


palavras. Nunca na minha vida fui chamada de algo
remotamente parecido com predadora.

— Você encontra homens ricos e encontra maneiras de


se inserir na vida deles por motivos que só posso supor ter a
ver com ganho financeiro.

— Não sei aonde você quer chegar, mas estou em um


encontro às cegas agora e...

— Certo. Um encontro com um cara que, por acaso, está


usando um relógio de vinte mil dólares. Você já contou a ele
sua história triste? Sobre sua terrível infância e seu falso
noivo morto?

Tento responder, mas as palavras ficam presas. Minha


visão embaça. Lágrimas pesadas escorrem pelo meu rosto
antes que eu tenha a chance de enxugá-las.

— Saia — digo quando percebo que ele está bloqueando


a porta do banheiro feminino.

— Astaire.

— Mova-se. — Deus, me ajude, se esse idiota não sair do


caminho, vou derrubá-lo.

Bennett dá um passo para o lado, torcendo o lábio como


se ele estivesse prestes a dizer algo, mas eu desapareço para
dentro antes que ele tenha a chance. O cheiro de limpador de
banheiro industrial e essência de canela atacam meus
pulmões, proporcionando uma distração sensorial muito
necessária que me tira do meu estado de choro.

Eu serei amaldiçoada se o deixar estragar esta noite.

Pego uma toalha de papel do dispensador e limpo meu


rímel antes de reaplicar um pouco de protetor labial, lavando
as mãos e respirando fundo.

Quando eu saio, o bastardo se foi.

Graças a Deus.
Mas quando eu volto para minha mesa... meu par
também.
Bennett

Eu passo meu cartão contra a fechadura do elevador da


cobertura e espero as portas se abrirem.

Não estou arrependido pelo que fiz esta noite – por


avisar aquele bastardo triste no terno Prada que a mulher
com quem ele estava curtindo sua noite adorável não era
nada mais do que uma prostituta com rosto de anjo.

No começo ele não quis acreditar em mim... até que eu


me apresentei – o sobrenome primeiro, é claro. Não tenho
medo de me mostrar quando a situação exige. Porém, eu
tinha o bom gosto sobre a coisa toda, mantive minha voz
baixa, compartilhei minhas preocupações com ele de 'irmão
para irmão'.

Quando terminei, o idiota não conseguiu sair de lá


rápido o suficiente. Ele se levantou, tirou o paletó do cabide,
jogou uma nota de cem amassada na mesa e saiu de lá.

Eu também dei o fora de Dodge.


Não adianta ficar para mais, depois da sua chorosa
última performance ganhadora do Oscar no banheiro
feminino.

Deus, ela é boa.

Verdadeiramente.

Ela quase me convenceu de que era autêntica no sábado


à noite. A conversa fluiu. Ela se segurou. Não conseguia tirar
os olhos de mim.

Estou convencido de que o único motivo pelo qual ela


puxou o freio em sua pequena operação foi porque ela sabia
que, depois que eu li seu e-mail, seu plano tinha sido
descoberto, não haveria um dia de pagamento lucrativo e
seus esforços teriam sido em vão.

Eu jogo meu casaco nas costas de uma cadeira e coloco


minhas chaves e carteira no balcão antes de ir para uma sala
de estar escura iluminada pelo céu noturno filtrado pelas
janelas nuas.

Foi puro acaso esta noite que eu a avistei dentro do


Fino.

Eu estava voltando de minha consulta com o


cardiologista quando por acaso olhei e localizei minha
pequena Estranha Anônimo bebendo vinho tinto e rindo com
um cavalheiro alto, moreno e de aparência extremamente
rica, que não tinha nada além de olhos caleidoscópio para
nossa doce Astaire.
Ele fez com que eu lembrasse de mim, alguns dias atrás
– sem os olhos caleidoscópio, é claro, e eu tive que fazer
minha devida diligência e alertar o pobre rapaz.

Verificando a hora, volto para o meu quarto, tiro as


roupas do dia e coloco um moletom e uma camiseta, e me
sento na minha cama.

Amanhã vou entrevistar babás para o Honor – algo que


nunca pensei que faria em um milhão de anos. Margaux
deveria me enviar todos os seus currículos junto com uma
programação antes dela sair para o dia, então eu pego meu
telefone e olho meu e-mail de trabalho.

Com certeza, ela enviou tudo às 4:58 PM – dois minutos


antes. Estou prestes a selecionar a mensagem dela quando
noto algo acima dela – um e-mail que saiu às pressas e
enviado apenas três minutos atrás.

Sorrindo, eu alimento minha curiosidade.

PARA: Bennett.Schoenbach@SchoenbachCorp

DE: AnonStranger@Rockmail

ASSUNTO: RE: re: re: re: Condolências

Bennett,

Se você quer ser infeliz, ótimo. Essa é sua prerrogativa.


Mas isso não lhe dá o direito de sair por aí destruindo a
felicidade de todos. Não sei por que você acha que sou algum
tipo de golpista ou que teria algum motivo para mentir para
você. Eu nunca te pedi nada. Eu apenas mostrei gentileza,
compaixão e simpatia. Talvez esses sejam estranhos para
você. Talvez você seja tão avarento e habitualmente abatido
que essas coisas são uma linguagem que você não poderia
começar a entender.

As coisas que fiz... enviar esses e-mails... vieram de um


bom lugar, mesmo que você se recuse a acreditar nisso. E
encontrar você no último fim de semana foi mera coincidência –
não que você possa dizer o mesmo sobre esta noite.

Talvez eu devesse ter falado no sábado passado – e


acredite em mim, eu quis muitas vezes – mas estava curtindo
meu tempo com você. Você me fez rir, você me fez sentir viva
novamente pela primeira vez desde a perda de Trevor, e eu
estava me agarrando a esse sentimento até que você colocou
sua mão no meu joelho – então percebi que não poderia deixar
isso ir mais longe, não consegui adicionar insulto à injúria indo
para casa com você, porque você iria ler meu e-mail mais cedo
ou mais tarde.

Então eu me vi fora dessa situação, pois era a coisa certa


a fazer e, claramente, era o melhor porque você é o PIOR tipo
de ser humano.

Você está além de irredimível.


Por favor, se por alguma razão insana você me encontrar
de novo, faça um favor a nós dois e siga o outro caminho. Eu
prometo fazer o mesmo.

Muitas felicidades.

Astaire

Sentando na cama, eu clico na lâmpada ao meu lado e


disparo uma resposta.

PARA: AnonStranger@Rockmail

DE: Bennett.Schoenbach@SchoenbachCorp

ASSUNTO: RE: re: re: re: re: Condolências

Astaire,

Muitas felicidades? Seriamente? Que tipo de merda sem


inspiração é essa? Achei que você fosse uma manipuladora
profissional? Certamente você pode inventar algo mais original
do que os melhores desejos.

Mas estou divagando.

Na extrema chance de você não ser uma vigarista


caçadora de ouro, então você me deve um enorme pedido de
desculpas, bem como um agradecimento ainda maior.
Tenho certeza de que você está se perguntando o porquê,
então deixe-me explicar. Quando me encarreguei de abordar o
seu par para deixá-lo saber exatamente com quem ele estava
lidando, eu me aproximei dele por trás – onde aconteceu que
eu fui capaz de ter um vislumbre da foto do pau que ele estava
mostrando para outra mulher.

É uma imagem que eu pagaria uma quantia absurda de


dinheiro para "desver", mas vendo como estamos a anos-luz
longe desse tipo de tecnologia, terei que esperar e rezar para
que um dia o visual de suas cinco polegadas será apagado da
minha memória. Talvez um dia, eu seja capaz de comer
cogumelos de novo, sem aquele gráfico nauseante passando
pela minha mente.

Até então, como eu disse... você deveria me agradecer.

Além disso, já que estamos falando sobre seu encontro,


acho que é apenas apropriado apontar o fato de que você
claramente tem um tipo – só que o doppelgänger5 de hoje foi
um insulto para o resto de nós altos, morenos, bem-sucedidos,
e tipos incrivelmente bonitos porque foi conversando com o
pobre coitado que pude deduzir que o relógio de vinte mil
dólares em seu pulso era, de fato, uma farsa.

Talvez você esteja pensando: — Mas Bennett, não me


importo se o relógio dele era real ou falso, estávamos nos
divertindo muito e isso é tudo que importa —. O que eu diria: —

5Doppelgänger é um sósia ou duplo não-biologicamente relacionado de uma pessoa viva, por vezes
retratado como um fenômeno fantasmagórico ou paranormal e geralmente visto como um
prenúncio de má sorte, ou ainda para se referir ao "irmão gêmeo maligno" ou ao fenômeno da
bilocação.
Autenticidade é tudo. Acredite nas pessoas quando elas
mostram quem são e não quem elas dizem que são.

De qualquer forma, de nada, Astaire.

Seu conselho (nada mais, nada menos),

Bennett

Aperto 'enviar' e jogo meu telefone de lado.

Meu corpo cozinha sob as cobertas, minhas pernas


inquietas e doloridas para se mover. Eu jogo as cobertas,
ando em meu quarto e sigo pelo corredor para me servir um
Lagavulin 6 , algo para me ajudar a relaxar em um estado
calmo – se é que isso é possível neste momento.

Não tenho certeza de qual é o meu problema.

Normalmente não sou tão prolixo, pelo menos não


quando se trata de mulheres. Acho que quanto menos você
fala, mais impactante é a mensagem, mas parece que sempre
que estou lidando com ela, não consigo desligar. O vômito de
palavras é incontrolável. De todas as fodidas formas.

Estou tomando minha bebida noturna quando fico


imaginando seu rosto com os olhos marejados, o jeito que ela
disse “Saia” entre os dentes cerrados antes de desaparecer no
banheiro. Metade de mim acredita firmemente que tudo isso é
uma fraude. Uma fraude habilmente elaborada.

6 Um tipo de Whisky.
A outra metade de mim está começando a se
perguntar...

E essa outra metade também está se fixando no fato de


que ela saiu em um encontro com uma versão baunilha de
imitação barata de mim – uma versão de mim que a fez sorrir
de orelha a orelha, maior do que ela sorriu no sábado
passado quando eu dei a ela merda por ser o raio de sol que
ela é.

Marchando de volta para o meu quarto, tiro meu


telefone da cama e atualizo meu e-mail.

PARA: Bennett.Schoenbach@SchoenbachCorp

DE: AnonStranger @Rockmail

ASSUNTO: RE: re: re: re: re: re: Condolências

Bennett,

Eu tinha um monte de coisas digitadas, mas as apaguei.

Minha mãe adotiva tinha um ditado: machucar pessoas


machuca pessoas. Você está claramente sofrendo – e talvez me
machucar faça você doer menos.

Não quero ser um casal de estranhos mal compreendidos


lutando na Internet.

Algo me diz que nós dois somos melhores do que isso.


Se você precisa de um amigo, alguém com quem
conversar – aqui está meu número: 555-667-8265.

Atenciosamente,

Astaire

Eu fecho meu e-mail, escureço a tela do meu telefone e


apago a luz.

A psicologia reversa não funciona comigo.

Eu não preciso de um amigo.

E eu com certeza não preciso dela.


Astaire

— Olá. — Passo por Jane no corredor na sexta à tarde.


Ela me dá um sorriso e um aceno de cabeça, mas não diz
mais uma palavra – que é o que ela está fazendo a semana
inteira.

Só posso imaginar o que Bennett disse ao sobrinho para


fazê-lo fugir do Fino, o que significa que só posso imaginar o
que ela pensa de mim agora...

Já se passaram oito dias desde que enviei meu número


de telefone a Bennett e não recebi nem mesmo um e-mail de
confirmação ou texto de qualquer tipo – não que eu esperasse
que ele aceitasse essa oferta. Alguém como ele não vai dizer:
— Puxa, quer saber? Você está certa. Estou infeliz e preciso de
um amigo!

Homens assim não são vulneráveis.

Eles se sentem insultados com a ajuda, afrontados com


a suposição de que são carentes de alguma forma,
emocionalmente ou não.
Mas não me arrependo nem um pouco e dormi como um
bebê todas as noites desde então. O e-mail que quase enviei
no lugar daquele foi desagradável e amargo e francamente,
escrito de um lugar escuro dentro de mim que eu nunca
soube que existia.

Eu não consegui mandar. Não eram coisas que eu diria


a alguém na cara deles, então digitá-los em um e-mail
parecia barato e baixo.

Indo para a sala dos professores para tirar algumas


cópias antes que meus alunos cheguem do recreio da tarde,
tiro meu telefone do bolso de trás enquanto espero a máquina
antiquada agrupar e grampear. Apenas no segundo em que
minha tela ganha vida, sou saudada com uma mensagem de
um número local desconhecido e as palavras: LIGUE PARA
MIM.

Torcendo o estômago, percebo que podem ser várias


pessoas... Mas no fundo do meu coração, tenho a sensação
de que sei exatamente quem é.E ele terá que esperar.
Bennett

— Já estava na hora — eu respondo quando ela me liga


às seis e quinze da sexta-feira à noite. Marco minha página
na República de Platão e a coloco ao lado do meu uísque.

— Bennett? — A voz de Astaire é uma marca confusa de


açúcar doce do outro lado da linha. — Eu pensei que fosse
você...

— Vou mandar uma mensagem com meu endereço.


Venha às oito. — Enviar mensagem de texto para alguém
para que ele ligue para você, para que você possa dizer que
vai enviar uma mensagem parece irritantemente complicado,
mas eu queria ter certeza de que estávamos na mesma
página, queria que ela soubesse que meu convite é sério e
queria garantir meu convite não seria ignorado.

E talvez eu quisesse ouvir sua voz.

— Eu tenho planos. — Ela faz uma pausa, seguida por


uma curta exalação.

— Você é uma péssima mentirosa.


— Não entendo do que se trata.

— Você irá. — Giro meu copo no suporte para bebida e


tomo um gole, olhando para o inferno de fogo que é minha
lareira envolta em calcário. — Quando você chegar aqui.

Com isso, eu desligo. Tenho certeza de que sua


curiosidade é insuportável depois de uma semana de silêncio,
mas eu tinha meus motivos – motivos que com certeza vou
compartilhar com ela quando ela vier.

Porque ela está vindo.

— Você vai me dizer por que você me convidou? —


Astaire está na minha porta, um fino véu de perfume floral e
almiscarado emana de seu casaco cor de nuvem enquanto ela
agarra a alça da bolsa.

— Alguém já disse que você é adorável quando está


tentando falar sério? Entre. — Eu saio do caminho e vejo
enquanto ela entra no meu foyer, o espaço amplo quase a
engolindo por completo enquanto sua sapatilha de bailarina
acolchoa suavemente contra o ladrilho travestido brilhante.

Virando-se para mim, ela inclina a cabeça. Meu olhar


pousa em sua boca carnuda, que mal é brilhante o suficiente
para me dizer que ela aplicou uma camada de protetor labial
antes de vir aqui.

Esta mulher é uma bela confusão de contradições –


todas as quais pretendo usar a meu favor esta noite.

— Você disse que não queria ser apenas dois estranhos


discutindo na Internet. — Eu pego seu casaco. — Então eu
pensei que deveríamos discutir pessoalmente.

— Sério? Você me convidou para ir à sua casa para que


pudéssemos... discutir... pessoalmente?

— Entre outras coisas. — Coloco seu casaco no armário


de casacos, mas ela mantém a bolsa como se fosse sua tábua
de salvação, como se eu fosse um assassino em série louco e
ela estivesse preparada para sacar uma lata de spray de
pimenta vencida que carrega há anos. — Posso oferecer-lhe
uma bebida?

Aponto para o corredor e me dirijo ao bar.

Ela segue, mantendo uma distância cuidadosa.

— Infelizmente, não tenho champanhe, então não


poderei fazer aqueles coquetéis que você estava tão
apaixonada no outro fim de semana. — Eu examino minha
coleção de bebidas destiladas importadas. — Mas eu tenho
quase tudo que seu coração deseja.

— Água seria ótimo. Obrigada.


Eu me viro para ela. — Não me insulte, Astaire. Eu
convidei você para minha casa e me ofereci para fazer uma
bebida para você, e eu não faço isso para qualquer pessoa.

— Eu não vou ficar muito tempo. Só vim porque pensei


que você precisava de... algo.

Sim. Eu preciso de algo...

Eu preparo um uísque sour para mim, mexendo com o


dedo antes de lamber o excesso. E então eu pego para ela
uma garrafa de Evian do frigobar embaixo do balcão. Ela
aceita a água, mas a deixa tampada, e então me segue até a
sala de estar, onde se senta no sofá Chesterfield em frente à
lareira.

— Eu te devo desculpas — eu digo.

Suas sobrancelhas levantam e ela tira uma mecha


ondulada loira brilhante de seu ombro, sentando-se mais
reta, as orelhas praticamente empinadas como um Corgi
galês7.

— Eu mandei alguém cavar um pouco — eu continuo. —


Sua história confere. Tudo isso. E eu sinto muito por suas
perdas.

Seu nariz torce. — E você não poderia ter me enviado


esse pedido de desculpas por e-mail?

7 Raça de cachorro.
— Em primeiro lugar, é a etiqueta apropriada. Em
segundo lugar, eu não queria que a mensagem se perdesse
na interpretação. — Eu tomo um gole para esconder meu
sorriso. Eu não deveria estar rindo. Minhas desculpas são
sinceras, mas aquele olhar de cervo nos faróis que ela está
me dando é uma distração divertida de proporções cativantes.

Astaire se levanta, sua bolsa ainda debaixo do braço.

— Obrigada. Agradeço a hospitalidade e as desculpas,


mas tenho que ir.

— Encontro quente esta noite? — Eu a bebo, do topo de


suas ondas brilhantes e recém-feitas ao seu suéter preto
apertado e jeans ainda mais apertados, ao cheiro quente de
flores flutuando em sua pele macia.

Há uma chance de ela se vestir assim porque vai sair


mais tarde.

Há uma chance maior de ela se vestir assim para mim.

Ela não responde.

— Por favor, me diga que você não vai se encontrar com


Pau Cogumelo novamente. — Eu rio pelo nariz. — Porque você
pode fazer muito melhor do que isso.

— O que você está fazendo, Bennett? O que é isso? —


Ela me estuda, a mandíbula cerrada, o olhar azul bebê
cortando o espaço entre nós. — Você está tentando ser
charmoso? Você está tentando fazer as pazes? O que você
quer de mim?

— Não se preocupe com o que eu quero. Isso não é sobre


mim. — Eu minto.

Mais ou menos.

Isso é sobre nós dois.

Eu tenho algo que ela quer. Ela tem algo que eu quero.

É um jogo de soma zero8 que estamos jogando, mesmo


que ela ainda não tenha percebido.

Uma vitória para mim... é uma vitória para ela.

Astaire recupera o fôlego antes de deixá-lo ir. — Não


tenho tempo para isso, Bennett. Diga-me o que você
realmente quer ou vou embora.

— Eu quero que você fique com raiva de mim — eu digo


sem pausa. — Eu quero que você me diga como você
realmente se sente. Eu disse coisas terríveis para você. Tratei
você mal. Eu quero que você sinta todas as coisas que você
nunca se permitiu sentir porque está muito ocupada sendo
superior na vida. Então vá em frente, Astaire. Odeie-me.
Diga-me exatamente o que você pensa de mim.

— O que? Não. — Seus braços se cruzam sobre o peito.

8Em teoria dos jogos e em teoria econômica, um jogo de soma zero se refere a jogos em que o
ganho de um jogador representa necessariamente a perda para o outro jogador.
— Eu fui cruel com você. Além de cruel. Você
compartilhou coisas pessoais comigo e, por sua vez, eu a
insultei. Você tem todos os motivos para me detestar. E você
deveria.

— Foi um mal-entendido. Eu não vou te odiar por isso.


— Há gentileza deslocada em seus olhos; gentileza que eu não
mereço.

— Veja, esse é o seu problema, Astaire. — Eu tomo um


gole. — Você é muito mole em um mundo cheio de bordas
irregulares.

A inocência em seus olhos me lembra de uma Larissa


muito mais jovem.

Tão cheia de esperança e otimismo inabalável.

Esta vida come gente como eles no café da manhã.

— Discordo. Eu acho que o mundo é suave e pessoas


como você são as bordas irregulares. Você sai por aí cortando
e destruindo tudo de bom. — Ela está apontando para mim.
Isso é bom. É um começo.

— Claramente você está chateada comigo. Por que não


dar um passo adiante? — Eu me aproximo, ajudando-me com
uma de suas ondas loiras angelicais antes de deixá-la cair em
seu ombro. Inalando seu doce perfume, acrescento: — A vida
lhe deu uma mão ruim, Astaire.

— E seu ponto?
— Não é saudável reprimir toda essa raiva.

— É quando não há raiva para ser reprimida — Ela não


perde o ritmo. Pode ser que seja uma fala que ela pratica em
voz alta para si mesma em frente ao espelho em casa até
acreditar.

— Não te deixa com raiva que seus pais amem as drogas


mais do que você? Que ninguém queria adotar você até os
quatorze anos? Que a mulher que finalmente a adotou teve
alguns bons anos com você antes de ser tirada desta Terra?
Que você conheceu o homem dos seus sonhos, apenas para
perdê-lo em um acidente de carro estranho poucos meses
antes do seu casamento? Nada disso te deixa com raiva?

Seu lábio inferior treme. Estou passando. Fazendo


progresso.

Empurrando-a exatamente para onde eu quero que ela


vá.

— Eu não vim aqui para relembrar meu passado. — Ela


não vai olhar para mim. Seu peito sobe e desce com
respirações interruptas.

— Fique brava, Astaire. — Eu chego mais perto.

— Por que você está fazendo isso?

— Jogue isso em mim. — Mais perto ainda. Nada separa


nossas bocas, exceto alguns centímetros de tensão espessa e
madura.
— Eu acabei por aqui. — Ela se move, passando
furtivamente por mim.

Consigo pegá-la pelo pulso e guiá-la de volta, gentil o


suficiente para que ela saiba que não a estou forçando a
ficar.

Ela está livre para ir, mas quero que ela me ouça.

Ela precisa me ouvir.

— Quando a vida te chuta quando você está pra baixo,


lute de volta. Não fique aí e pegue isso. — Eu digo. — Não se
alimente de algum mantra de adesivo que a faça se sentir
melhor por dez segundos.

— Então, eu deveria ser cruel e miserável o tempo todo?

— Não o tempo todo... às vezes.

— Estou feliz, Bennett. — Sua tentativa de um tom


convincente é uma piada, um insulto para nós dois. — Eu
não quero ser como você.

— Às vezes não temos escolha. Às vezes fazemos o que


temos que fazer.

Seu peito sobe e desce enquanto nossos olhos se fixam,


e eu estreito a distância entre nós, meus dedos passando em
seu queixo delicado.
Eu sei o que acontece quando você mantém a escuridão
dentro. Um dia ela força sua saída, mais escura, com mais
raiva do que nunca. E não há como dizer como isso o faz agir.

Eu esmago sua boca de romã com um beijo e a puxo


contra mim.

Chamas lambem o interior da lareira ao nosso lado e


atrás de nós, as luzes da cidade cintilam.

Astaire me beija de volta, ofegando por ar, mas se


recusando a parar enquanto tropeçamos para trás e
afundamos nas almofadas de couro do sofá. Eu a puxo para o
meu colo, suas coxas montadas em mim enquanto ela esfrega
contra mim, beijos tão fortes e determinados que doem – o
melhor tipo.

Eu quase rasgo seu suéter e ela abaixa sua boca na


minha novamente, suas mãos trabalhando na minha cintura,
deslizando por baixo da minha boxer, espalmando meu pau
enquanto ele fica mais duro para ela a cada segundo.

O magnetismo entre nós é potente, perigoso.

Uma estranha excitação interna inunda minhas veias


antes de carregar em correntes explosivas.

Ela esfrega contra mim e eu deslizo meus dedos por


baixo do cós da calça jeans antes de apertar o botão e puxar
o zíper.
Sua boca colide com a minha novamente, desta vez mais
língua do que dentes, mas quando ela alcança minha camisa,
eu pego suas mãos.

— A camisa fica. — Eu movo para seu sutiã, soltando o


gancho e puxando-o para baixo em seus braços cobertos de
pele de ganso.

Não tenho vergonha da minha cicatriz, mas ela tende a


diminuir o calor do momento – especialmente com os tipos
simpáticos e com coração de ouro. Não quero que Astaire faça
perguntas, tenha pena de mim – quero que ela monte no meu
pau e não me preocupe se terei uma coronária massiva aos
trinta anos.

Seus lábios ferozes roçam os meus e ela faz um


movimento sutil para pegar minha camisa novamente, e
novamente, eu redireciono suas atenções... para outro
lugar... na forma de meus dedos deslizando por baixo da
bainha encharcada de sua calcinha de renda. Eu os deslizo
entre seus lábios quentes e úmidos de sua boceta antes de
mergulhar dois deles dentro dela.

Jogando a cabeça para trás, ela exala, o corpo


estremecendo e a boca curvando-se para os lados – pura
felicidade com um toque de loucura estrangulada.

Deslizando meus dedos nela, eu os trago para sua boca,


convidando-a a provar o que estou fazendo com ela... A doce
tortura, a excitação conflitante de desejar a mesma pessoa
que faz seu sangue ferver.
— Eu quero você lá — aponto para o final do sofá. —
Curvada.

Seus olhos se suavizam, talvez confusão.

Meu corpo dói por ela.

Pensar demais e adivinhar não tem parte nisso.

— Eu vou te foder por trás, Astaire — eu soletrei para


ela. — Eu quero que você sinta tudo de mim. Cada
centímetro, porra, até as partes mais profundas de você.

Ela hesita.

— O que? Você pensou que eu ia te foder no estilo


missionário? Olhar em seus olhos e dizer o quão bonita você
é enquanto nós dois fingimos que isso não é apenas sexo? —
Eu expiro.

Ela não diz nada.

— Você sabe que não é disso que se trata. — Eu a viro


no meu colo para que ela fique de costas, minha mão macia
em volta de seu pescoço enquanto eu me inclino e respiro em
sua orelha antes de dar uma mordidela. — Você e eu
sabemos por que eu te convidei aqui esta noite. E nós dois
sabemos por que você veio. Eu quero você, Astaire. E você me
quer. Ambos temos nossos motivos e não há nada de errado
com nenhum deles.

O silêncio se instala entre nós, nada além de respirações


superficiais e o brilho suave da lareira. Bem quando eu tenho
certeza que ela está prestes a derreter contra mim, ceder aos
seus desejos mais íntimos, ela sai de cima de mim e começa a
juntar suas roupas do chão como se ela tivesse um avião
para pegar – ou algum lugar melhor para estar.

— Eu sinto muito. — Ela tira uma mecha de cabelo do


rosto, mergulhando, agarrando sua calcinha e sutiã e
recolhendo tudo em seu braço. — Eu não posso fazer isso. Eu
não faço encontros casuais. E mesmo se eu fizesse... eu não
poderia fazer isso com você.

Sem fôlego, ela enfia a calcinha e o jeans apertado e não


se incomoda com o sutiã, enfiando-o na bolsa antes de puxar
o suéter pela cabeça. O tecido macio abraça seus seios
inchados e forma tendas ao redor de seus mamilos. Ela
examina a sala, olhando fixamente para o foyer – sua fuga.

Jesus Cristo, a mulher não pode sair daqui rápido o


suficiente.

Ela não olha para mim, mas não está chorando. Na


verdade, ela não está mostrando um pingo de emoção. Se eu
tivesse que adivinhar, ela quer dar o fora daqui e fingir que
nada disso aconteceu.

Boa sorte com isso, querida...

Ela vai pensar sobre isso esta noite, sobre mim, sobre o
quão quente o sexo poderia ter sido, sobre todas as formas
estranhas, mas estimulantes, que eu poderia tê-la feito
sentir... pelo resto de sua vida.
Levantando-me, coloco minha cueca boxer e a
acompanho até a porta, pegando seu casaco no armário. É
melhor eu não falar. É melhor que eu a deixe ter seu
momento. Não vou convencê-la a dormir comigo e tenho
certeza de que não vou implorar para que ela fique.

— Eu sinto muito. — Sua mão repousa na maçaneta,


seu olhar treinado na porta. Ainda assim, a mulher não
encontra meu olhar.

— Pare de se desculpar, Astaire.

E com isso, eu a deixei ir.


Astaire

Se não fosse pelo fato de ainda poder sentir o calor de


sua boca na minha, ainda sentir a tensão dolorida entre
minhas coxas quando fecho os olhos, teria certeza de que os
eventos da noite passada foram um sonho.

Enfio minha chave na fechadura da entrada dos fundos


do Elmhurst Theatre na manhã de sábado, vestida para
limpar. Os proprietários ofereceram uma festa de gala com o
tema Great Gatsby na noite passada, completa com música
ao vivo e serviço de bufê, e como estou no comitê de
voluntários, me ofereci para aparecer como primeira pessoa
para ajudar na limpeza.

— Bom dia, Astaire! Há donuts e café na sala dos


professores — Conrad, um colega voluntário, me diz quando
atravesso o saguão. — Fique à vontade.

— Obrigada, Con. — Eu abro um sorriso e aceno com a


cabeça, pego alguns suprimentos do armário de limpeza e
vou para a varanda para começar. Meu estômago está tão
embrulhado que eu não conseguiria comer mesmo se
tentasse.

Eu nunca deveria ter ido para a casa dele.

Era claramente uma armadilha, uma armação.

Ele sabia exatamente o que estava fazendo me atraindo


ali sob pretextos misteriosos, desculpando-se como um
perfeito cavalheiro, então agindo quando tinha certeza de que
me tinha onde precisava de mim – aberta, vulnerável, confusa
com nossa atração hipnótica mútua.

Não tenho certeza do que aconteceu comigo ontem à


noite quando o deixei me beijar e comecei a pular em seus
ossos como uma lunática faminta por sexo, mas quando ele
me disse que queria me inclinar sobre o sofá, de repente me
senti mais um objeto do que um ser humano.

Suas palavras me trouxeram de volta à realidade.

Para algumas mulheres, ser objetificada é excitante,


mas nunca foi minha praia.

Como uma pessoa que passou a primeira década e meia


de sua vida ansiando por conexões de qualquer tipo, não
posso fazer sexo casual.

E com certeza não posso fazer isso com Bennett.

Com seu brilho de lobo e sua veia cruel de um


quilômetro e meio, me misturar com ele é a última coisa que
eu preciso. Mas ainda não consigo superar o fato de que ele
mandou alguém me checar.

A ideia de Bennett Schoenbach tirando um tempo de


sua agenda lotada para solicitar que alguém investigasse meu
passado...

Ele pensa em mim. Quando não estamos juntos, fica


pensando em mim. Ele queria tanto saber mais sobre mim
que contratou alguém para fazer seu trabalho difícil.

Mas por quê?

O homem poderia facilmente ter deletado nossa


sequência de e-mails e deixado por isso mesmo.

Afinal, ele deixou claro que tinha coisas melhores para


fazer com seu tempo. Mas ele deu um passo adiante. Ele foi
além do que a maioria das pessoas faria.

Devo tê-lo intrigado.

Eu estaria mentindo se dissesse que ele não me intriga.

Existem camadas e camadas sob sua fachada


galvanizada9.

Mais profundo do que ele deixa transparecer.

Ele tem mais demônios do que um homem deveria.

9A Galvanização é o processo de aplicação de uma camada protetora de Zinco ou ligas de Zinco a


uma superfície de aço ou ferro de modo a evitar a corrosão destes.
E por esse motivo, eu preciso deixá-lo ir... pois nada de
bom pode vir disso.
Bennett

— Bennett, você não vai dizer 'parabéns' ao seu irmão e


à esposa dele? — Minha mãe bate os cílios falsos, as mãos em
concha sob o queixo pontudo enquanto nós quatro estamos
sentados sob um lustre de cristal no Peridot na manhã de
sábado.

Normalmente eu teria recusado o convite, mas ela me


atraiu aqui sob falsos pretextos, alegando que precisava que
eu assinasse um documento de imposto corporativo – o que
ela fez.

Assim que terminei, ela me convidou para um brunch


rápido.

Tão logo eu relutantemente concordei (devido ao ronco


em meu estômago e ao fator de conveniência) meu irmão e
sua esposa se arrastaram para a sala de jantar e se
esgueiraram para a mesa.

Eu estava armado.

E por um bom motivo.


A família Schoenbach está se expandindo.

Beth oferece um sorriso caloroso. Errol limpa a


garganta, o olhar disparando da hortênsia verde para mim e
de volta.

— Tenho certeza de que é um pouco chocante — Beth


fala comigo, mas olha para o marido. — Não esperávamos
que acontecesse tão rapidamente. A agência de adoção disse
que pode levar anos para conseguir um bebê saudável.

Seus lábios fúcsia vacilam.

Eu não compro sua excitação.

Desde o início do casamento, ela fez de tudo para evitar


começar uma família com Errol.

Primeiro, havia toda a desculpa de "somos muito


jovens". Em seguida, foi "temos muito tempo". Quando
chegaram aos trinta anos e, aparentemente, estavam
totalmente no modo de "tentar engravidar", meses após
meses de misteriosos testes de gravidez negativos. Ela alegou
que seu médico disse que eles deveriam esperar dois anos
antes de procurar a ajuda de um especialista em fertilidade.

Beth esperou dois anos pelo dia. Imagino que Errol a


estava perseguindo e ela sabia que estava ficando sem
desculpas.

Errol, por motivos que ainda não compreendi, está


decidido a ter uma família.
Beth (por motivos próprios, presumo) nunca parou de
tomar as pílulas anticoncepcionais.

Eu sei disso porque no meio do ano passado eles


estavam na cidade e aconteceu uma confusão na farmácia.
Compartilhamos as mesmas iniciais. A balconista do balcão
entregou sua sacola de papel por engano. Eu estava na
metade do quarteirão quando percebi o erro e voltei para
trocar seu compacto Yasmin por minhas pílulas antirrejeição.

Não que ela esteja ciente de nada disso, mas seu


segredo está seguro comigo porque eu não dou à mínima.

— É um menino — diz Errol. — Vem na segunda


semana de maio.

Pego minha água gelada.

Bebo. Aceno com a cabeça. Desvio o olhar.

Na mente distorcida de minha mãe, suponho que ela


pense que isso vai unir nossa família, nos aproximar,
finalmente.

Beth desliza o braço no de Errol. — Escolhemos alguns


nomes, mas acho que queremos esperar até encontrar o
garotinho primeiro.

— Você vai ser tio, Bennett. Não é adorável? — Mãe


pergunta. — Abundam as bênçãos. Muito cedo para
champanhe?

Ela ri. Beth ri. Suas mãos se encontram sobre a mesa.


Eu coloco meu copo na mesa, meu olhar passando por
cima da mesa para o de minha mãe. — Sim, as bênçãos
abundam. Quem teria pensado que você se tornaria avó duas
vezes em um ano?

Seu rosto se contorce e sua boca se move, silenciosa. Eu


oficialmente deixei Victoria Tuppance-Schoenbach sem fala –
não foi uma tarefa fácil.

— Do que ele está falando? — Errol pergunta.

O olhar de Beth viaja ao redor da mesa enquanto ela


espera que um de nós explique.

— Você não ouviu? — Eu me sento mais ereto. — Nossa


querida e doce irmã tinha uma filha, e era seu último desejo
que eu a adotasse.

Minha mãe aperta os olhos com força, reajustando o


guardanapo no colo, recuperando a compostura.

— Mãe, isso é verdade? — Errol se vira para ela.

— Ela tem cinco, quase seis — eu respondo por ela,


vendo como o gato conseguiu sua língua. — Cabelo escuro.
Grandes olhos azuis de Schoenbach.

As sobrancelhas de Beth franzem. Eu imagino que ela


esteja juntando algo – provavelmente algo errado.

— Provavelmente uma coincidência — mamãe


finalmente fala, pegando sua água. — Muitas pessoas têm
olhos azuis, Bennett.
Eu escondo meu sorriso satisfeito com um gole de água
a tempo de olhar para fora e ver ninguém menos que Astaire
Carraro atravessando a rua. Ao que parece, ela está deixando
o Elmhurst Theatre. Eu verifico meu relógio. O que diabos ela
estaria fazendo lá tão cedo em uma manhã de sábado?

Seu cabelo claro está preso em um coque bagunçado no


topo de sua cabeça. Uma xícara de café de isopor está
aconchegada em uma das mãos, um lenço xadrez está
enrolado em seu pescoço e uma bolsa de camurça desleixada
pendurada em seu corpo.

Ela atravessa a rua com um grupo de pedestres, vindo


nesta direção.

Um batimento cardíaco errante treme em meu peito.

— Desculpas. — Eu me levanto, seguro o botão do meu


casaco e empurro minha cadeira. — Mas algo acabou de
acontecer.

As sobrancelhas da minha mãe se franziram. Se ela está


prestes a protestar, ela se interrompe. Tenho certeza de que
ela sabe que é melhor eu ir embora agora, antes de
desenterrar mais a lama que ela passou os últimos cinco
anos enterrando.

— Beth e Errol... Boa sorte. — Eu vou para o saguão,


pego meu casaco do guarda-roupas e corro para fora, mal a
alcançando antes que ela chegue à próxima faixa de
pedestres. — Astaire.
Ela não olha para cima ou ao redor. Ela olha para
frente. Quando chego mais perto, vejo seus fones de ouvido
brancos.

— Com licença — eu me espremo entre uma mulher


andando com um poodle e um homem rolando sem rumo o
Wall Street Journal em seu telefone, e então bato em seu
ombro.

Ela se vira para olhar por cima do ombro no momento


em que a luz pisca em branco e a pequena multidão começa a
cruzar.

A mandíbula de Astaire cai e ela arranca um fone de


ouvido. — Oh, vamos lá.

— Só para constar, eu não estava te seguindo. — Eu


levanto minhas mãos, caminhando ao lado dela. — Eu estava
no Peridot tomando um brunch e vi você da janela...

— Conveniente. — Ela leva a mão ao ouvido, mas eu a


abaixo.

— Eu só queria ter certeza de que você estava bem...


Depois de ontem à noite.

— A maioria das pessoas... eu não sei... liga ou manda


mensagem — ela diz. — Eles não se limitam a perseguir.

A mulher com o poodle estica o pescoço e me lança um


olhar.
— Estou falando sério. Eu só quero saber se você está
bem.

— Com certeza. — Ela toma um gole de café, os dedos


saindo das luvas de tricô. Um toque de bálsamo labial rosa
colore a tampa branca, significando onde seus lábios
estiveram.

Deus, esses lábios.

Doces e macios que eu faria qualquer coisa para provar


de novo...

Depois que ela fugiu ontem à noite, enviei uma


mensagem de texto para Deidre do 6A, pensando que poderia
fechar meus olhos e fingir que era Astaire para terminar
mentalmente o que eu tinha começado, apenas quando ela
apareceu, ela tingiu seu cabelo de castanho escuro, começou
a tirar as roupas antes que minha porta fechasse e me disse
que tinha vinte minutos antes de ter que encontrar um cara
do Tinder para beber.

Imediatamente perdi a ereção, disse-lhe para se vestir e


mandei-a de volta ao sexto andar sem dizer mais nada.

Eu preciso da coisa real.

Eu preciso de Astaire.

E na noite passada, quase a peguei.

Quase.
Isso é o que eu ganho por ser honesto, por dizer a ela
que não era nada mais do que sexo.

É um verdadeiro enigma que estou enfrentando: Astaire


Carraro precisa de vinho e jantar antes de deixar um homem
entrar nela, e eu preciso estar dentro de Astaire Carraro.

— O que você vai fazer nesta sexta? — Eu pergunto.

Ela aperta os olhos.

Ou talvez seja um estremecimento. Um estremecimento


doloroso.

De qualquer forma, não é o suficiente para me deter.

— Eu quero levar você para sair. — Eu cutuco seu braço


com o meu, uma tentativa de ser brincalhão e alegre, o que é
indiscutivelmente uma língua estrangeira para mim. — Num
encontro. Um encontro de verdade.

— Não.

Eu tusso uma risada. — Não? Apenas não?

— Não. — Ela anda mais rápido.

Eu combino meu ritmo com o dela. — Algum motivo em


particular?

Seus lábios se torcem para um lado. — É uma má ideia.


Eu deslizo minha mão em torno de seu cotovelo e a puxo
de lado, para fora do bando de estranhos que nos rodeia, e
encontro uma seção de tijolo fora de uma loja abandonada.

— Não posso desfazer sua primeira impressão de mim.


— Eu capturei seu olhar curioso. — Ou sua segunda. Ou a
sua terceira. Mas eu seria negligente se não tentasse te
mostrar um momento melhor.

Astaire agarra o café com as duas mãos, mastigando o


canto interno da boca. — Somos como noite e dia, você e eu.
E eu sei que você só quer uma coisa.

— Você não sabe disso.

— Você disse isso ontem à noite. Você me disse que eu


sabia por que você realmente me convidou...

Justo. — Tudo certo. Bem. Acho você incrivelmente


sexy, Astaire. Eu não vou mentir. Mas também não consigo
tirar você da minha cabeça. Eu fecho meus olhos e você é
tudo que vejo. Eu reli seus e-mails todos os dias, porra,
mesmo que eles sejam tão irritantes quanto foram da
primeira vez. E talvez não concordemos, mas isso não é
necessariamente uma coisa ruim.

Sua expressão se suaviza.

Estou passando.

Preciso tirar essa mulher da minha cabeça, e a única


maneira de fazer isso é tirá-la do meu sistema. Só então serei
capaz de tirá-la da minha vida. Só então poderemos
finalmente seguir em frente com essa desculpa bizarra para
uma intervenção divina.

— Envie-me seu endereço, Astaire. — Não digo a ela que


já sei, que verificações de antecedentes vêm como padrão com
essa informação. — Pego você às sete na sexta-feira.

Não dou a ela a chance de dizer não. Eu vou embora. E


eu não olho para trás.

Eu não preciso.

Eu a verei novamente em seis dias.


Astaire

Passei perfume atrás das orelhas na sexta à noite –


depois verifico meu pulso. Juro que está batendo duzentas
vezes por minuto e isso não pode ser normal.

Então, novamente, nem é aceitar um encontro de um


homem que é a antítese de tudo que você defende.

Uma foto de noivado emoldurada de tempos mais felizes


atrai meu olhar do canto da minha cômoda. Tudo sobre isso
parece errado, mas em outro nível, eu sei que não é. Não
posso deixar de sentir que, se Trevor estivesse selecionando
alguém para eu seguir em frente, Bennett Schoenbach seria a
última pessoa em sua lista.

Ele me levará para a cidade esta noite, para algum


restaurante no terraço com vista para o cais. O céu está claro
esta noite, então deve haver muitas estrelas cobrindo nossa
visão. Com qualquer outra pessoa, seria uma característica
romântica, mas com Bennett... não tenho certeza se é isso
que ele quer.
Ele diz que não consegue me tirar da cabeça, e eu
estaria mentindo se dissesse que não fiquei lisonjeada com
isso. Eu sou humana.

Imagino que parte de sua fixação se reduz ao fato de que


sempre queremos o que não podemos ter.

Ele não pode me ter.

Ou, pelo menos, ele não podia.

Até hoje à noite.

Mas manterei minhas roupas. Esta noite é para nos


conhecermos. Alimentar nossas respectivas curiosidades com
conversa e tempo de qualidade.

Nada mais nada menos.

Uma batida na porta manda meu coração descontrolado


para o chão.

Ele está aqui.

Eu me dou outra olhada, alisando minhas mãos para


baixo em meu vestido preto justo, colocando uma mecha
ondulada atrás de uma orelha e alisando uma camada rápida
de protetor labial rosa antes de pisar nos calcanhares e trotar
para a porta.

— Oi. — Ele usa um terno azul-marinho impecável, um


relógio de prata e um sorriso.
É estranho vê-lo sorrir. Não natural. Mesmo que ele
pareça lindo fazendo isso.

— Estas são para você. — Ele me entrega um buquê de


rosas rosa claro embrulhado em papel pardo e amarrado com
um laço de cetim preto. O logotipo no embrulho me diz que
ele não poupou despesas, saindo de seu caminho para parar
no The Darling Peony em Halstead para pegá-los.

Quem estou enganando? Ele provavelmente tem um


assistente que cuida desse tipo de coisa.

— Elas são lindas. Obrigada. — Aceno para ele entrar e


ele me segue até a cozinha, olhando com as mãos nos bolsos,
enquanto encho um vaso com água e arrumo as rosas da
melhor maneira que posso.

O vaso é muito pequeno e as rosas caem.

Ambos fingimos não notar.

— Você teve uma boa semana? — Coloco o vaso ao lado


da pia, para que as rosas tenham um pouco de luz do dia ao
amanhecer. Manter uma conversa fiada enquanto finjo que
tudo sobre este momento não é estranho como o inferno é
ironicamente... estranho.

Ele está realmente indo para a cidade com essa coisa


toda de encontro. Puxando todos os obstáculos.
Comportando-se como um perfeito cavalheiro. Este não é o
homem que conheci.
É... lisonjeiro.

Enervante também, mas no bom sentido.

— O carro está esperando lá embaixo. — Ele verifica o


relógio. — Provavelmente deveríamos sair se quisermos pegar
nossas reservas.

— Claro. — Eu pego minha bolsa fora do balcão – uma


compra de prateleira de liquidação que consegui encontrar no
fundo do meu armário na noite passada, e nós fazemos nosso
caminho para o corredor. Juro que seus dedos roçam nas
minhas costas enquanto eu travo, embora possa facilmente
ser meus nervos.

É a coisa mais estranha ficar nervosa com esse


encontro. A maioria das pessoas fica nervosa quando quer
impressionar alguém, quando espera que tudo dê certo, então
haverá um segundo encontro e um terceiro. Eles ficam
nervosos quando gostam de alguém e desejam mais do que
qualquer coisa que esse sentimento seja mútuo.

Nenhuma dessas coisas se aplica e, ainda assim, aqui


estou eu, corada e rezando para que ele não perceba como
minha respiração está superficial enquanto pegamos o
elevador para o andar principal.

As portas batem e se abrem, depositando-nos no saguão


improvisado, que nada mais é do que um espaço de cinco por
dez cheio de caixas de correio e alguns quadros de avisos –
nada como a cobertura de Worthington Heights que ele
chama de lar.

Bennett chega à porta principal, me conduzindo a um


SUV parado onde um homem uniformizado espera, com as
mãos cruzadas na cintura.

— Astaire, este é meu motorista, George — diz ele. —


George, esta é Astaire Carraro.

Não posso deixar de me perguntar se ele dá o nome e o


sobrenome de todas os encontros ao motorista.

Eu deslizo pelo banco de trás, o couro quente e macio


como manteiga contra a parte de trás das minhas coxas. A
cidade é linda a esta hora da noite, toda iluminada e cheia de
vida, cheia da energia elétrica de uma sexta à noite.

Ele desliza ao meu lado, nossas coxas se tocando no


momento em que nos afastamos.

— Desculpa, Astaire, preciso responder alguns e-mails


pessoais. — Bennett pega seu telefone. A tela se ilumina,
exibindo as linhas de preocupação que se espalham por sua
testa. — Assim que chegarmos, garanto que você terá toda a
minha atenção.

Eu concordo. — Faça o que você precisa fazer.

Virando-me para absorver a sinfonia do trânsito de uma


viagem, decido acalmar meus nervos, viver o momento e me
concentrar em todas as perguntas que vou fazer a ele mais
tarde.

Estou morrendo de vontade de saber o que move


Bennett Schoenbach.

E esta noite, vou descobrir.

O cardápio é preço fixo e não consigo nem pronunciar o


nome desse lugar, mas o violonista espanhol que faz sua
ronda é adorável. Estamos cercados principalmente por
casais. Taças de vinho tilintando. Pequenos bolsões de riso. O
brilho sonolento da luz das velas. Vistas deslumbrantes do
cais abaixo. Um céu estrelado mais bonito do que qualquer
pintura que já vi.

O amor está no ar.

E então há nós.

Está muito escuro para ver muito mais do que nossos


contornos e os brilhos em nossos olhos enquanto uma chama
lenta pisca entre nós. Vinho tinto intoxica minhas veias,
pronto para soltar meus lábios sem aviso.
— Por que você me verificou? — Espero até que
estejamos resolvidos e nossos pedidos tenham sido feitos
antes de mergulhar na primeira questão candente da noite.

— Isso veio do nada. — Ele sorri para sua taça de vinho.

— Você me disse que tinha coisas melhores para fazer


com o seu tempo, então parecia estranho que você tivesse
tempo para verificar sobre mim.

— Eu não perdi tempo. Contratei alguém para ter tempo.


Grande diferença. Meu tempo ainda era gasto fazendo coisas
melhores. — Bennett pisca. — Mas para responder a sua
pergunta... eu verifiquei você porque estava curioso. E porque
eu posso. Alguma outra questão urgente?

— Quem era Larissa?

Suas sobrancelhas escuras se erguem e sua boca


carnuda fica plana. — Ela era minha irmã. Minha irmã
adotiva.

— Sinto muito pela sua perda.

Bennett concorda.

Não digo a ele que presumi que ela era sua esposa. E eu
com certeza não direi a ele que invoquei essa linda história de
amor entre eles.

— Você estava por perto? — Passo a mão no guardanapo


de linho no meu colo.
— Não particularmente, não. — Ele toma um gole,
desvia o olhar, olha para trás.

— Você planejou o memorial dela, no entanto — eu digo.

— Alguém tinha que fazer.

— Você tem outros irmãos? — Eu não consigo evitar.


Com cada resposta que ele dá, minha mente evoca uma dúzia
de perguntas adicionais.

— Um irmão. Dois anos mais velho. E antes que você


pergunte, não, não estamos perto. — Ele toma outro gole. —
Meu pai morreu há cinco anos. Minha mãe mora por aqui.
Você frequentemente a encontrará tomando um lanche ou
fazendo compras quando ela não está mexendo panelas e
fabricando tanto drama quanto humanamente possível.

Eu desembrulho esses detalhes, tento organizá-los e


colocá-los em caixinhas para dar sentido a tudo isso. Ele não
é próximo de sua família. Existem rachaduras e quedas. Eu
perguntaria por que, mas estaria extrapolando
grosseiramente seus limites.

— Você já foi casado? — Eu pergunto.

Ele sorri. — Você não está perdendo tempo aqui, está? E


não. Nunca. Nunca fui, nunca serei. É um conceito antiquado
– pessoas que pertencem umas às outras gostam de
propriedade. Não serve a nenhum propósito nos dias de hoje.
— Talvez não se trate de pertencer um ao outro como
propriedade, mas de dar seu coração a alguém para cuidar.
Como um presente.

Ele se senta direito. — Já pensou em escrever cartões


comemorativos?

Eu rio pelo nariz. — O que posso dizer? Sou


extremamente sentimental.

— E você? Quer dizer, você me deu a história de sua


vida naquele e-mail do tamanho de um romance, mas tenho
certeza de que há mais nisso. Sua mãe adotiva, como ela era?

Eu torço a haste do meu cálice entre meus dedos. — Ela


foi incrível. Italiana pura. Maior que a vida. Cabelo grande.
Sorriso maior. Os maiores abraços. A risada mais alta.
Costumávamos brincar que você podia ouvi-la rindo a dois
estados de distância. — Lágrimas picam meus olhos, mas eu
as forço para longe. Eu não consigo falar dela quase o
suficiente. — O nome dela era Linda. E ela mudou minha
vida.

Seu olhar penetrante me cobre. Ele escuta, não diz


nada.

— Ela era professora primária — continuo. — Ensinava


na quinta série em uma escola pública em Indianápolis, de
onde eu sou. Ela e o marido estavam sempre esperando a
hora certa para começar uma família – mas eles esperaram
muito e isso simplesmente não aconteceu. Ele eventualmente
a deixou por uma mulher mais jovem. Teve alguns filhos com
ela. Foi quando Linda decidiu que estava cansada de esperar
o momento perfeito para se tornar mãe. Um ano depois, ela
teve sua primeira filha adotiva – eu. Não foi fácil no começo.
Para qualquer uma de nós. Eu tinha certeza de que ela iria
me rejeitar como os outros fizeram, então eu a empurrei
antes que ela tivesse a chance de provar que estava nisso por
um longo tempo. Mas, eventualmente, ela quebrou todas as
minhas paredes. Ela dedicou cada momento livre que tinha
para me conhecer – o meu verdadeiro eu, para me ajudar a
descobrir quem eu era e quem eu queria ser e quem eu seria
quando não tinha sequer pensado no próximo fim de semana.
Da maneira mais estranha, é como se ela soubesse que só
tinha um tempo limitado comigo e estava tentando ensinar o
máximo de lições de vida que podia.

Eu paro, pegando meu vinho, engolindo o nó dolorido na


minha garganta.

— Ela não viveu para me ver terminar meu primeiro ano


de faculdade. — Eu coloco meu copo na mesa. — Mas
ninguém nunca disse que a vida é justa.

— Você e suas citações de adesivo de para-choque. —


Bennett abre um sorriso que tira todo o peso desse momento,
e sou grata por isso.

Antes que eu tenha a chance de responder, nosso


primeiro prato chega e trocamos nossa conversa pesada por
garfos, barrigas cheias e tópicos de conversa mais amigáveis.
— Eu convidaria você para entrar, mas sinto que este é
o lugar perfeito para terminar esta noite. — Eu corro minha
mão pela lapela de seu paletó, olho parando nos botões de
sua camisa enquanto lembro-me de sua obstinação ao deixá-
lo na outra noite.

O Bennett Schoenbach que me acompanhou até minha


porta no final do nosso encontro é diferente daquele que
apareceu poucas horas atrás, com as flores nas mãos. Seus
olhos estão mais suaves. Sua postura mais relaxada.

Eu sei agora que ele estudou na Harvard School of


Business. Seu pai era empresário. Seu avô fundou a
Schoenbach Corporation logo após a Segunda Guerra
Mundial com um empréstimo bancário de cinco mil dólares e
uma perseverança imparável. Seu relacionamento com sua
mãe e irmão é tenso e ele não era próximo de sua irmã
adotiva – embora nunca tenhamos nos aventurado
profundamente nesses territórios. Outra hora, talvez. O
homem era um livro aberto, sofrendo com minhas perguntas
incessantes com sorrisos educados e respostas espirituosas,
e eu não queria abusar da sorte.

— Obrigada. — Eu removo minhas chaves da minha


bolsa. — Por hoje à noite. Por tudo.
Ele verifica seu relógio. — Ainda é cedo, se você quiser
tomar uma bebida no Ophelia's.

Sem vergonha.

Poderíamos ter nos divertido perfeitamente esta noite,


mas por baixo de tudo está um homem que quer mais do que
qualquer coisa no mundo dormir comigo por algum motivo
insano.

Ficando na ponta dos pés, beijo sua bochecha. — Boa


noite, Bennett.

E então eu sigo para dentro, cheirando a sua colônia


opulenta, meio desejando que ele fosse realmente o homem
que fingia ser esta noite.
Bennett

— Honor, eu gostaria que você conhecesse seu tio,


Bennett. — Jeannie pega a garota pela mão, conduzindo-a
pelo meu foyer, seus sapatos de lona brilhante raspando no
chão recém-encerado enquanto ela me encara com os
maiores olhos azuis que eu já vi. Suas marias-chiquinhas são
brilhantes e onduladas, acentuadas com fitas rosa. Isso me
lembra do dia em que minha mãe trouxe Larissa para casa,
afofada e enfeitada como um cachorro de exposição.

Imagino que Jeannie quisesse garantir que a criança


causasse uma boa impressão, mas é desnecessário porque
minha mente já está tomada.

Eu me agacho até o nível dela. O vago cheiro de sorvete


de morango e talco de bebê enche minhas narinas – um
cheiro que esta cobertura nunca conheceu.

Ela não está sorrindo como nas fotos da escola.

Na verdade, ela parece totalmente apavorada.


— Prazer em conhecê-la, Honor. — Eu estendo minha
mão. — Estava ansioso para conhecê-la e espero que se sinta
confortável aqui.

As palavras de Astaire em nosso encontro de oito dias


atrás ecoam em minha mente, a maneira como ela falou de
sua mãe adotiva, a maneira como aquela mulher mudou toda
a trajetória da vida de Astaire para melhor em apenas alguns
anos curtos e significativos.

Não sou um homem sentimental nem nunca fui emotivo


em qualquer sentido da palavra, mas sua história me
emocionou de uma forma que nunca antes.

Se Larissa tivesse uma “Linda” própria, as coisas


poderiam ter sido diferentes.

Leva um momento, mas Honor libera a mão de Jeannie,


seus lábios rosados se curvam para os lados, e ela corre para
os meus braços, quase me derrubando no processo. Seus
braços envolveram meu ombro em um aperto mais forte do
que uma criança da sua idade deveria poder.

Por um segundo interminável, ela me inspira e se agarra


a mim para salvar sua vida.

Eu não conheço essa criança.

Não sei por que sua mãe a deixou comigo.

Ainda não sei se sou capaz de ser o que ela precisa


neste mundo.
Mas sei que ela não pediu para nascer nesta família – e
vou fazer tudo ao meu alcance para garantir que ela não sofra
mais um minuto por isso.

Eu a deixei me segurar por mais um tempo, seu coração


batendo tão rápido contra o meu que derruba meu espírito
em um humilde pino.

— Você gostaria de ver seu novo quarto? — Eu levanto.

Ela balança a cabeça, embora ainda sem sorrir, e pego


sua mão. Ela desliza para o meu lado de boa vontade, e então
ela caminha comigo para uma sala no final do corredor.

— Se você não gostar da cor, podemos mudá-la. — Eu


imagino que ela nunca ouviu essas palavras em sua vida. —
E eu estou trabalhando em estocar para você alguns
brinquedos bons. Eu queria esperar primeiro. Não tinha
certeza do que você gostava.

Ela solta minha mão e caminha até a cama de dossel


branco centrada entre duas grandes janelas. Subindo, ela se
acomoda no meio, o colchão pillowtop 10 e a abundância de
travesseiros e cobertores rosa claro a envolvendo.

— Tão macio — ela sussurra, passando a mão


minúscula ao longo de um travesseiro de pelúcia.

Contratei uma decoradora local para fazer o trabalho,


dando a ela um cronograma impossível, mas rédea livre e um

10 Uma camada a mais de colchão para dar maciez.


orçamento generoso – desde que fosse apropriado para uma
menina de cinco anos.

— Você gostou, Honor?

Ela concorda. Vigorosamente. Você pensaria que eu


estava oferecendo algodão doce e bonecas.

— Você vai ficar com sua família adotiva por mais


algumas semanas. Contratei uma mulher muito legal para
cuidar de você enquanto estou trabalhando e ela não pode
começar até o final do mês. — Acrescento: — O nome dela é
Eulália.

Honor desliza para fora da cama e caminha pelo quarto,


começando pela mesa de cabeceira com a luminária de
elefante rosa e indo até a cômoda de vime extralarga com o
espelho antigo emoldurado em ouro e a coleção de clássicos
infantis encaixados entre os suportes de livros das bailarinas.
Ela desliza um dos livros para baixo, abre-o e se joga no
chão, folheando-o com os olhos arregalados.

— Você gosta de livros? — Eu a vejo correr seu


minúsculo dedo indicador ao longo das frases.

Ela concorda. Novamente, vigorosamente.

— Honor é uma leitora excelente para seu nível de série,


— diz Jeannie da porta atrás de mim. — Srta. Carraro disse
que ela é a primeira da classe.

Srta. Carraro...
A profissão de Astaire apareceu naquele relatório de
histórico, eu a puxei na outra semana, então eu sabia que ela
dava aulas em uma escola primária antes de compartilhar
isso comigo em nosso encontro na semana passada, mas não
prestei atenção ao nome da escola.

Há quinze primárias públicas em Worthington Heights.

Quais são as chances de haver duas Srta. Carraro


dando aulas no jardim de infância?

— Estou feliz em ouvir isso, Honor — eu digo. — Eu


também sou um fã de literatura.

Ela me olha com o nariz enrugado. — O que é lit-er-a-


chur?

— Livros — eu esclareço. — Devemos continuar nosso


tour?

Honor levanta, desliza o livro de volta onde ela o pegou e


salta pelo quarto. Deslizando sua mão de volta na minha, ela
olha para mim com aqueles olhos azuis familiares e um
sorriso que ocupa metade de seu rosto.

Eu mostro a ela seu banheiro privado.

Depois, o escritório, a academia e a lavanderia – não que


ela vá acessar essas coisas regularmente... Só quero que ela
se encontre.
Terminamos com a sala de estar, a sala de jantar e a
cozinha, onde ela sobe em um banquinho e se serve de uma
banana na fruteira.

— Honor, você precisa perguntar — Jeannie dá a ela um


gentil lembrete.

— Está tudo bem — eu digo. — Tudo neste apartamento


pertence a ela agora.

Imagino que precisarei ensinar regras, limites e


maneiras adequadas a ela, mas, por enquanto, quero que ela
se sinta confortável. Eu quero que ela saiba que esta é a casa
dela. Ela não é uma convidada.

Tudo aqui é tanto dela quanto meu.

Jeannie verifica a hora em seu telefone. — Nós devemos


ir. A menos que haja mais alguma coisa?

O olhar confuso de Honor passa entre nós. — Eu não


vou ficar?

— Você vai se mudar em duas semanas a partir de hoje


— eu digo. — Lembra?

Desanimada, ela sai furtivamente do banco do balcão e


leva um tempo arrastando os pés até Jeannie.

Isso quebra meu coração gelado em dois imaginando o


que está acontecendo em sua mente. Ela é jovem demais para
entender, mas velha o suficiente para saber que os adultos
sempre fazem promessas que nunca cumprem.
Indo até ela, eu me agacho e coloco minhas mãos nas
laterais de seus braços, olhando-a diretamente nos olhos. —
Duas semanas. Você tem minha palavra.

Jogando seus braços em volta de mim, ela me abraça


com força uma última vez. Quando a tiro de cima de mim,
vejo um sorriso do tamanho do Texas.

Eu as acompanho até a porta e tranco quando elas se


vão. De costas contra a parede, corro minhas mãos pelo
cabelo e exalo um fôlego que não percebi que estava
segurando.

Estou muito além da minha cabeça.

Mas estou totalmente comprometido.

Volto para o meu quarto para me vestir para uma


corrida quando percebo que não tive a chance de entender o
fato de que Astaire é a professora do jardim de infância de
Honor. No fim de semana passado, eu a levei para Txikito,
onde nós compartilhamos uma deliciosa garrafa de vinho
espanhol e ela fez muitas perguntas, e depois ela se recusou
a sequer beber um drink juntos.

Decidi recuar porque sei o que acontece quando alguém


se aproxima muito forte – tem o efeito pretendido oposto.

Além disso, a ausência torna o coração mais afetuoso.

Tenho certeza de que ela passou toda a semana passada


se perguntando por que deixei de falar com ela.
Ela vai ouvir de mim em breve.

Estou vestido com um short e uma camiseta, uma


toalha pendurada no ombro enquanto faço meu caminho
para a minha academia em casa, quando alguém bate na
porta.

Fico tentado a ignorar quando permito que a


curiosidade leve a melhor sobre mim.

Eu espio pelo olho mágico, gemo e abro a porta. — O


que diabos você está fazendo aqui?

— Nós precisamos conversar. — Errol parece uma


merda. Círculos escuros sob seus olhos. Cabelo oleoso preso
atrás das orelhas. Jeans rasgado. Camiseta branca.
Conhecendo-o, tudo isso faz parte de um look chique
abandonado que ele está procurando.

— Ocupado. — Tento bater à porta na cara dele, mas ele


coloca o pé, me impedindo.

— Dois minutos.

— Ocupado.

— É sobre a garota.

— Oh, você quer dizer a criança que você gerou com


nossa irmã adotiva? Aquela garota?

Seus olhos se arregalam e então se estreitam. — Por


favor, Bennett. Deixe-me entrar por dois minutos.
Eu estudo seu rosto triste, aquele que parece com o
meu, as proporções apenas diferentes o suficiente para que
ocasionalmente sejamos confundidos com gêmeos.

— Bem. — Eu me afasto e o deixo entrar, mas só porque


estou morrendo de vontade de dizer a ele exatamente o que
penso dele e esta é a oportunidade perfeita.

Errol começa a dizer algo. Fecho a porta e levanto a mão


para silenciá-lo.

— Em primeiro lugar, o que diabos há de errado com


você? — Eu cruzo meus braços com força sobre meu peito.
Ele não responde. Não pisca. Apenas me encara como se
estivesse se perguntando o que eu sei e o que não sei. — Não
é uma pergunta retórica, Errol.

— Você não pode adotá-la. — Ele finalmente fala, mas


há uma sugestão de tremor em sua voz.

— Por que diabos não?

— Porque está tudo fodido.

Eu suspiro e coço a parte de baixo do meu nariz com as


costas do meu polegar. — Não. O que você fez foi uma merda.
Adotá-la é a melhor maneira de dar uma chance a essa
garota. Ela merece um bom lar.
Errol sorri. — E você acha que pode dar isso a ela? Com
seus métodos de workaholic11 e homem das mulheres?

— E o que você propõe? Você e Beth a adotam? Viver


como uma grande família feliz com seu filho pequeno e filha
secreta?

Ele não responde, o que considero um sim.

— Você está maluco. — Eu pego um punhado de meu


cabelo. — Se isso é o que Larissa queria, ela teria especificado
isso, tenho certeza. Há uma razão para ela me escolher. Você
não é nada mais do que um doador de esperma. Uma
desculpa nojenta, fodida da cabeça, desculpa para um doador
de esperma.

— Você não entende.

— Então me esclareça.

— Nós estávamos apaixonados.

— Acho que vou ficar doente de verdade. — Não consigo


olhar para ele.

— Ouça-me, Benn. Estávamos apaixonados e sabíamos


que nunca poderíamos ficar juntos. Eu nem sabia que ela
estava grávida! Ela parou de falar comigo por cerca de um
ano. Achei que fosse por que me casei com Beth. Eu pensei
que ela estava com o coração partido demais para voltar

11 Viciado em trabalho; Trabalhador compulsivo.


atrás. Acredite em mim, se eu soubesse que havia uma
criança envolvida...

— O quê? O que você teria feito? Você teria mergulhado


e salvado o dia? Teria se divorciado de Beth e casado com sua
irmã adotiva? Tenho certeza de que mamãe teria lhe dado um
selo de aprovação brilhante em tudo isso.

— Eu a teria apoiado. Financeiramente. Isso é tudo que


eu poderia ter feito, dadas às circunstâncias.

— Você dificilmente pode se sustentar financeiramente.


Não pense que eu não sei sobre todos os empréstimos
pessoais que você fez, todas as esmolas que você aceitou de
nossa mãe ao longo dos anos, porque vocês dois não
conseguem viver com seus recursos extremamente generosos.

Errol fica em silêncio por um instante. Ele não vai olhar


para mim.

— Você vai confessar tudo isso a Beth? — Eu estudo seu


rosto, a preocupação gravada em sua testa bronzeada pelo
sol. — Porque eu não posso imaginar que ela queira ter algo a
ver com você ou sua filha biológica se ela descobrir a verdade.

Seu olhar se volta para o meu.

— De acordo com minha matemática, Honor deve ter


sido concebida logo após sua lua de mel — acrescento. —
Então é isso. E também havia o fato de que Beth odiava
Larissa com paixão, por motivos que nunca entendi
totalmente, nem tentei entender. Achei que tinha a ver
principalmente com os modos intrometidos de nossa mãe,
mas agora estou começando a me perguntar se ela sabia de
suas... perversões. Então me diga, irmão, você honestamente
acredita que sua esposa vai aceitar e criar esta menina como
se ela fosse dela?

— Não fale sobre minha esposa como se você soubesse


alguma coisa sobre ela.

— Eu posso conhecê-la melhor do que você pensa. Por


exemplo, você sabia que ela estava tomando pílulas
anticoncepcionais quando vocês dois estavam gastando
milhares de dólares em tratamentos de fertilidade?

A mão de Errol segura a metade inferior de seu rosto e


ele força uma respiração forte pelas narinas dilatadas. —
Você é um mentiroso do caralho.

— Não faz diferença para mim se você acredita ou não.


— Eu encolho os ombros. — Mas estou disposto a apostar
dinheiro que ela não quer ter filhos. Essa coisa da adoção só
está acontecendo porque ela está ficando sem desculpas.
Você e eu sabemos que este bebê será criado por uma equipe
de babás – babás que certamente serão bancadas por nossa
mãe, porque Deus sabe que vocês dois não podem pagar por
elas. Mas isso não é da minha conta...

As mãos de Errol se apertam ao lado do corpo, sua pele


fica vermelha e ruborizada e, sem aviso, o patético bastardo
tenta me acertar com um gancho de esquerda – que bloqueio.
Eu aperto sua mão em punho até que ele se contorça, e
então o empurro contra a parede. Ele desliza para baixo, seu
corpo magro caindo em uma pilha no chão do hall de
entrada. — Saia da minha frente e nunca mais pergunte
sobre aquela criança.

Meu irmão se apoia contra a parede enquanto se


levanta, e então ele se mostra, me lançando olhares furiosos
o tempo todo.

Quando ele sai, ligo para meu investigador particular.

— Tenho outro trabalho para você — digo quando ele


atende. — Se eu der um número de celular, você pode obter
registros de mensagens de texto de seis, sete anos atrás?
Talvez mais?

— Sem uma ordem judicial?

— Você precisa de uma se eu for o dono da linha? —


Uma década atrás, comprei um plano de celular para Larissa
– principalmente por razões de segurança. Houve um breve
período em que não tive notícias dela e queria ter certeza de
que ela sempre seria capaz de me contatar se precisasse de
alguma coisa. Não apenas isso, mas era uma tábua de
salvação para ela, uma maneira de ligar para o 9-1-1 caso
tivesse uma emergência.

Com o passar dos anos e ela começou a abusar de


minha generosidade e disposição de ajudar, posso ter parado
de atender suas ligações, mas nunca parei de pagar sua
conta de celular.

Ele está quieto. — Pode haver uma maneira, sim. Não


estou fazendo nenhuma promessa, mas vou ver o que posso
fazer. Envie-me o número da conta, número de telefone, tudo
isso.

Eu termino a ligação e envio um e-mail para ele


imediatamente.

Se meu irmão ficar com o cabelo rebelde e tentar fazer


alguma manobra novamente, estarei melhor equipado para
lidar com suas ameaças com uma das minhas – transcrições
de todas as mensagens de texto que os dois trocaram.

Se aquele bastardo doente quiser ter Honor, ele terá que


arrancá-la de minhas mãos frias e mortas.
Astaire

— O que você está fazendo? — Bennett pergunta do


outro lado da linha na tarde de domingo.

— Ei, estranho. — Eu abaixo o volume do meu alto-


falante Bluetooth, Radiohead desaparecendo no nada. —
Achei que você não morasse mais neste planeta.

— Ainda moro. O que você está fazendo?

— Cortando maçãs.

— Você sabe que pode comprá-las assim. Já cortadas.


Ou você pode comê-las da maneira que Deus planejou.

Eu bufo. — Maçãs de papel. Cartolina. É para uma


atividade que estamos fazendo esta semana. Quer ajudar?

— Por mais cativante que pareça, estou na verdade no


meio de um projeto próprio e esperava que você tivesse
algumas horas para ajudar.

— Não tenho notícias suas há nove dias e agora você


quer minha ajuda com alguma coisa?
— Somos amigos, não somos?

— Nós somos? — Eu conto seis maçãs. Mais vinte para


fazer. E ainda nem cheguei às sementes ou caules.

— Você é uma das cinco pessoas no mundo que agora


conhece a minha história de vida e eu sou bem versado na
sua, então sim. Suponho que agora nos considero amigos.

— Engraçado. Você não me parece alguém que costuma


rotular as coisas. — Eu corto a próxima. — Mas talvez você
faça quando é conveniente. Você sabe, quando você precisa
de algo.

— Você está chateada comigo por algum motivo?

— Chateada? Não. Você me trouxe flores, me levou para


um encontro chique, teve uma conversa profunda e
significativa, me acompanhou até minha porta como um
perfeito cavalheiro e depois não me ligou por nove dias. Por
que eu ficaria chateada com isso?

— Justo. Mas, em minha defesa, tenho lidado com um


problema pessoal nas últimas semanas, e esta última semana
exigiu todo o meu foco e atenção.

— Bem, quando você coloca dessa maneira...

Bennett suspira no outro lado da linha. — Minha irmã,


aquela que morreu... ela tinha uma filha. Uma filha de cinco
anos. E eu vou assumir a custódia dela em breve. Tenho me
preparado para a chegada dela, entrevistado babás,
mobiliado o quarto dela... desculpa se você esperava ter
notícias minhas antes, mas posso lhe garantir, você nunca
deixou meus pensamentos.

— Você está adotando sua sobrinha?

— Eu estou.

— Huhmm.

— O que isso deveria significar? — Ele pergunta.

Eu passo para a próxima maçã. — Você não me parece o


tipo de figura paterna, só isso.

— Eu vou aceitar isso. Também não me acho o tipo de


figura paterna.

— Tão louco que realmente concordamos em algo pela


primeira vez!

— Há uma primeira vez para tudo — diz ele. — Agora,


voltando ao favor... eu preciso comprar alguns brinquedos
para o quarto dela. Tenho uma lista de coisas que ela gosta,
mas não tenho a menor ideia do que seja nenhuma dessas
coisas, e já que você trabalha com crianças da idade dela,
acho que você tem melhor conhecimento para...

— Você quer que eu vá comprar brinquedos para você?


Você não tem assistentes que fazem essas coisas para você?

— Não para mim. — Suas palavras são concisas, lentas.


— Comigo.
Dizer que Bennett parece deslocado nesta loja de
brinquedos de quatro andares no coração de Chicago seria
um eufemismo12.

Ele examina uma boneca, virando a caixa e lendo o


verso. — Eu não entendo como isso... urina.

Eu rio, tirando-a de suas mãos e colocando-a em um de


nossos dois carrinhos de compras transbordando. — Tudo
que você precisa entender é que ela vai adorar.

Nós empurramos nossos carrinhos para fora do corredor


de bonecas e nos dirigimos para a seção STEM 13 do outro
lado. Ele tem carregado Barbies, bebês e conjuntos de
artesanato para joias, mas é hora de voltar para casa em
alguns brinquedos relacionados ao aprendizado.

Pego um microscópio falante da prateleira. — Temos um


desses em minha sala de aula. Ele tem esses pequenos slides
de plástico e você pressiona esses botões na parte inferior e
ele diz o que são. Meus alunos adoram.

Ele o pega de mim, o coloca em seu carrinho e, em


seguida, pega um conjunto de fabricação de vulcão.

12 Eufemismo é uma figura de linguagem que emprega termos mais agradáveis para suavizar uma
expressão.
13 Sigla para Science (ciência), Tecnology (tecnologia), Engineering (engenharia) e Mathematics

(matemática). Essa sigla é usada para designar brinquedos educativos.


— Você sabe que isso fará bagunça, certo? — Eu
pisquei.

Não tenho certeza de quão experiente ele é com


crianças, mas estou disposta a supor que seu piso nunca viu
uma migalha e seus balcões nunca viram uma explosão de
bicarbonato de sódio e vinagre.

— Ela tem uma cozinha de brinquedo? — Aponto para


outra seção cheia de cozinhas em miniatura, sem dúvida
mais agradáveis do que a do meu apartamento. — Nessa
idade, as crianças adoram representar. É bom para a
imaginação também.

Duas crianças perseguem uma à outra pelos corredores,


esquivando-se de nós e se espremendo, rindo. Um deles diz:
— Com licença. — Eu observo sua reação. Algumas pessoas
podem murmurar baixinho, irritadas. Outros podem rir,
achando isso cativante. Crianças sendo crianças.

Ele não faz nada.

Eu me inclino e mantenho minha voz baixa. — Às vezes


acho bom lembrar que crianças são crianças e não soldados.

Quando eu tinha oito anos, morei com uma família por


seis meses. O pai era militar aposentado e dirigia a casa com
precisão de sargento. Não tínhamos permissão para falar fora
de hora. Não tínhamos permissão para rir, gargalhar ou
correr loucamente, nem mesmo no quintal.

Na minha opinião, as crianças deveriam ter infância.


— Está pronto? — Eu pergunto.

— Sim. Nós provavelmente deveríamos verificar. Acho


que ela está cheia de brinquedos.

— Não. — Eu rio pelo nariz, colocando minha mão em


seu braço. — Quero dizer... você está pronto para isso? Para
ser pai?

Ele se vira para mim, lentamente, suas sobrancelhas


escuras anguladas. — Você pode estar pronto para algo
assim?

Eu encolho os ombros. — Este humano em miniatura


vai mudar cada aspecto de seu mundo inteiro. Fazer você
sentir coisas que você nunca soube que poderia sentir.
Espero que você esteja pelo menos um pouco pronto...

— Eu tenho ajuda. Não pode ser tão difícil.

— Sua família ajudará?

— Claro que não. — Ele franze a testa. — Eles não estão


exatamente a bordo de nada disso – não que isso importe.
Mas contratei uma das melhores babás da cidade e soube
que ela frequenta uma das melhores escolas públicas de
Worthington Heights. Starwood Academy. Talvez você já
tenha ouvido falar dela?

Um estranho nó se torce no meu meio.

— Honor — eu sufoco seu nome. — Honor é sua


sobrinha.
Ele concorda. — Disseram-me que a professora dela é a
Srta. Carraro...

— Você a deixará ficar? — Existem pelo menos três


outras escolas primárias entre a Starwood e a vizinhança de
Bennett, sem mencionar uma miríade de escolas particulares
de primeira linha espalhadas pelo condado.

— Claro. Ela está ajustada e indo bem. Não tem sentido


mudar isso. — Ele empurra seu carrinho em direção ao
elevador.

— Quando você ia me dizer? — Eu empurro o meu ao


lado dele, o mundo ao meu redor turva.

— Eu descobri ontem. Na verdade, eu não a conhecia


até ontem. — Entramos no elevador e ele pressiona o botão
para o nível principal. — Eu não tinha ideia de que ela existia
até a semana que Larissa morreu. Nenhum de nós sabia.
Exceto minha mãe. Mas isso é uma história para outro dia.

Em todas as minhas fantasias idealistas e votos de boa


sorte, sempre imaginei Honor indo para alguém como Linda.
Alguém com calor e uma risada contagiante e um gosto pela
vida.

Eu estudo Bennett com o canto do olho enquanto


descemos.

O homem é a antítese do calor.


— Honor significa muito para mim — digo a ele quando
pisamos no andar principal e vamos para os registros. — Não
há nada que eu não faria por ela. Eu quero estar lá para ela.
Eu quero ajudar você. Se houver algo que você precise...

— Astaire. Eu sei. Por que você acha que eu liguei para


você hoje?

Encontramos um caixa com dois clientes à nossa frente


e entramos na fila, um carrinho transbordando nos
separando e interrompendo nossa conversa.

Dez minutos depois, saímos da loja, brinquedos nas


mãos, e indo para seu SUV em marcha lenta, onde George
espera. Leva um pouco de manobra, mas conseguimos
colocar tudo no porta-malas e no banco, com um punhado de
bolsas bem acomodadas no banco do passageiro da frente.

No caminho para casa, paramos para um café. Bennett


dá nossos pedidos a George, que corre para o café
movimentado, dando-nos alguns momentos a sós.

— Por que você continua me olhando assim? — Ele


pergunta.

— Como o quê? — Eu não tinha percebido que estava


olhando até agora.

— Não sei, é por isso que estou perguntando.


Eu levanto um único ombro enquanto um sorriso pinta
minha boca. — Eu acho... acho que estou simplesmente feliz
por você. E estou feliz por você me deixar fazer parte disso.

Ele revira os olhos, fingindo aborrecimento. — É claro


que você apenas tem que espalhar seus raios de sol sobre
tudo isso.

— Sabe, eu estava errada sobre você.

— Como assim? Exatamente?

Há beleza sob sua fachada cruel. Eu vejo isso. Eu sinto.


Mesmo que ele se recuse a acreditar em mim. Está
acorrentado sob um ego impenetrável e gelado.

— Acontece que você tem um coração, afinal.


Bennett

— E há quanto tempo essa tontura está acontecendo? —


Dra. Rathburn desliza um estetoscópio gelado ao longo da
frente do meu peito na tarde de quarta-feira, evitando a
cicatriz elevada no centro.

— Um dia, talvez dois. Três, no máximo.

— E a febre? Quando você percebeu isso?

— Ontem.

Ela expira com os lábios franzidos e retorna o


estetoscópio ao pescoço. — Da próxima vez que isso
acontecer, você precisa avisar imediatamente.

Eu puxo minha camisa de volta no lugar.

— Você está tomando seus remédios antirrejeição? — A


médica olha por cima de óculos de arame.

— Como um relógio.

— Descansando?
— Oito horas por noite. — Com um punhado de
exceções.

— Comendo bem? Muitas plantas, gorduras


monoinsaturadas e proteínas magras?

Eu concordo. Doces nunca foram minha fraqueza.

— Algum novo fator de estresse em sua vida


recentemente? — Ela pergunta.

Eu balancei minha cabeça. Não conto a ela sobre Honor


porque sei o que ela dirá, e não será nada que já não tenha
considerado.

— Reduzindo suas horas de trabalho? — Ela estuda


meu rosto como se ela estivesse pronta para me chamar
atenção — A última vez que você esteve aqui, você disse que
estava trabalhando setenta, às vezes oitenta horas por
semana.

— Certas coisas estão além do meu controle.

— Já ouviu falar em delegar? — Ela lava suas mãos.

— É claro que você não conheceu a equipe que herdei de


meu pai.

Voltando para o meu lado, ela ajusta os óculos. — Olha,


Bennett. Ou você pode fazer as coisas do meu jeito, adicionar
alguns anos de qualidade à sua vida e manter esse seu
coração emprestado funcionando... ou você pode continuar
dando desculpas e terminar de volta ao ponto de partida,
esperando que outra pessoa morra para que você possa
continuar a viver esta vida que você claramente dá como
certa.

Meus meses pós-transplante passam pela minha cabeça


como um rolo de luz ruim. Uma longa lista de enfermeiras e
cuidadores cuidando de mim 24 horas por dia por meses,
reabilitação cardíaca, biópsias e consultas intermináveis.

Nunca me senti tão fraco, tão indefeso.

E jurei nunca mais me sentir assim.

A Dra. Kay Rathburn é uma das melhores cirurgiãs


cardiovasculares do país.

Ela também é uma atiradora direta.

— Eu sei que você não quer ouvir isso — diz ela, — mas
acho que precisamos admitir. Faça uma biópsia do tecido
cardíaco, certifique-se de que não haja infecção ou
inflamação.

Eu verifico meu relógio. Devo encontrar Astaire para


jantar em uma hora.

— Não se preocupe com isso agora. Não posso esperar.


É imperativo que nós... — A sala começa a escurecer e a voz
da Dra. Rathburn se transforma em nada.

E o mundo ao meu redor fica preto.


Astaire

Eu bato em sua porta às cinco e quinze da noite de


quarta-feira, fazendo malabarismos com uma sacola de papel
pardo transbordando em um braço enquanto minha sacola
balança no meu ombro oposto. A coisa toda foi ideia dele –
cozinhar o jantar juntos em sua casa.

Ele mencionou que não estava com vontade de sair, que


queria uma noite tranquila.

Está silencioso do outro lado.

Sem música. Sem passos.

Eu bato novamente. Espero.

— Bennett? — Eu chamo mais alto e bato uma terceira


vez antes de colocar minhas coisas no chão e ligar para ele.
Cinco toques depois, recebo seu correio de voz. — Ei, sou eu.
Estou na sua casa... talvez você tenha ficado preso no
trânsito? De qualquer forma, só queria que você soubesse
que estou aqui.
Encostada na parede, mato algum tempo no meu
telefone, puxando todos os aplicativos que consigo pensar
para consumir alguns minutos enquanto espero. Mas quando
dez minutos se transformam em quinze e quinze se
transformam em vinte, decido ligar para ele novamente.

Cinco toques.

Correio de voz.

— Ei... acho que você se envolveu no trabalho, então


vou apenas fazer o check-out esta noite. Se você receber isso
nos próximos minutos, me ligue. Se não... vamos pensar em
algo para outra hora. — Eu termino a ligação, coloco meu
telefone na minha bolsa e pego a sacola do supermercado,
demorando para voltar para o elevador.

Peço um Uber quando chego ao saguão e, quando chega


cinco minutos depois, ainda não tenho notícias dele.

Tenho certeza de que seja o que for, há uma explicação


perfeitamente boa.
Bennett

— Parece que você veio aqui no início de uma rejeição


humoral — a Dra. Rathburn está ao lado da minha cama,
prancheta na mão, uma enfermeira esvoaçando ao redor do
quarto.

Não me lembro de ter saído da sala de exames para esta


cama de hospital – nem sei quem me vestiu com este vestido
de flanela coberto de flores. O céu está escuro lá fora. Pelo
que sei, estive fora por algumas horas... ou alguns dias.

— Você está com meu telefone? — Meus pensamentos


vão imediatamente para Astaire.

— Bennett, você ouviu o que eu disse? — O tom da Dra.


Rathburn está mais firme do que há um segundo, cada sílaba
acentuada. — Seu corpo está rejeitando seu coração.

Eu me sento — Achei que você tivesse dito que, depois


de ultrapassar a marca de um ano, seria estatisticamente
raro que isso acontecesse.
— Estatisticamente, Bennett. Sempre há exceções. E
esses números foram baseados em rejeições celulares
agudas. As rejeições humorais podem ocorrer meses ou anos
após o transplante. Essencialmente, o que está acontecendo é
que seu corpo está produzindo anticorpos que danificam seus
vasos sanguíneos – especificamente aqueles que vão para o
coração. Isso provavelmente explica a tontura que você tem
sentido e também por que desmaiou na sala de exames.

— Ok, e agora?

— Vamos fazer um tratamento no seu sangue para


filtrar os anticorpos e, em seguida, colocar um esteroide em
curto prazo. Aumentar um de seus medicamentos
antirrejeição. Se não conseguirmos controlar isso, podemos
pensar em uma cirurgia de coração aberto no futuro, mas
ainda não chegamos a esse ponto.

— Tudo certo. — Eu me reajusto, tentando ficar


confortável em uma cama de hospital impossivelmente
desconfortável. — Enfermeira, você sabe aonde estão meus
pertences pessoais?

— Bennett, preciso que você leve minhas orientações a


sério. Dormir o suficiente. Boa nutrição. Estresse mínimo.
Algumas semanas de folga do trabalho para relaxar e, em
seguida, não mais do que quarenta horas por semana no
escritório quando você voltar. Viva mais. Trabalhe menos.
Faça as coisas que te deixam realmente feliz e deixe o resto.
Vou fazer a minha parte para garantir que você tenha a vida
mais longa e saudável possível, mas você também precisa
fazer a sua parte.

A enfermeira atrás dela coloca um saco plástico


transparente na minha bandeja, meu nome rabiscado na
etiqueta. Dentro estão minhas chaves, celular e carteira. Eu
perguntaria onde diabos estão minhas roupas, mas não
quero que gritem de novo.

— Há alguém para quem devemos ligar para você? — A


enfermeira pergunta.

— Não. — Vou ligar para Astaire pessoalmente. Mais


tarde. Quando eu tiver um resquício de privacidade. Ainda
não tenho certeza do que vou dizer a ela. Eu mais ou menos
contei a ela toda a história de minha vida na noite em que
tivemos nosso primeiro encontro. Não sei como ela se sentirá
sobre o fato de que deixei de fora uma parte significativa e
recente disso. Não só isso, mas ela vai se preocupar. E ela vai
pirar. E não há nada de sexy nisso para nenhum de nós.

Posso estar deitado em uma cama no andar da ala


cardíaca do Hospital Mercy Cross, mas ainda sou um homem
de sangue vermelho com toda a intenção de fazer o que quer
que seja com ela – seja lá onde for.

— Há alguma pergunta que eu possa responder para


você? — Dra. Rathburn desliza as mãos nos bolsos da frente
do seu jaleco branco.

— Quanto tempo vou ficar aqui?


— Nós agendamos você para o procedimento na primeira
hora da manhã. Depois disso, faremos mais alguns testes. Se
tudo correr bem, daremos alta a você no início da noite — diz
ela, dirigindo-se à porta.

A enfermeira me entrega um cardápio de hospital.

Eu deveria jantar com Astaire esta noite, na minha casa.


Ela sugeriu jantar alguma noite nesta semana, mas eu não
estava me sentindo bem, então a convidei para ir à minha
casa, pensando que uma noite tranquila nos daria o melhor
dos dois mundos.

Esta manhã, eu estava saindo do escritório do meu


advogado, após atualizar meu testamento e deixar tudo para
Honor, quando quase desmaiei no elevador para a entrada
principal.

Após o transplante no ano passado, eu estava bem


situado em todos os sinais de aviso de rejeição e passei em
meu check-up de um ano com louvor.

A negação levou o melhor de mim nos últimos dias.

— Pressione sete no telefone do seu quarto para discar


para a cozinha — diz a enfermeira antes de me entregar um
botão vermelho. — Pressione isto se precisar de uma
enfermeira. Vou pegar um pouco de água gelada para você e,
em seguida, volto para ver como está você em cerca de uma
hora.
— Obrigado. — Coloco o menu e o botão de chamada de
lado e pego meu telefone da sacola plástica. Uma dúzia de
chamadas perdidas – apenas duas delas de Astaire. A bateria
está criticamente fraca e, claro, não tenho carregador.

Quando eu estava passando por uma reabilitação


cardíaca no ano passado, lembro-me de uma das enfermeiras
me dizendo que alguns pacientes de transplante cardíaco
nunca apresentam sinais de rejeição – eles simplesmente têm
uma parada cardíaca sem qualquer aviso.

Estou vivendo com um coração emprestado em tempos


emprestados, e a gravidade desses fatos, juntamente com o
fato de que estou adotando uma criança, me paralisam por
um momento.

Se eu cair morto daqui a um ano, preciso ter outra


pessoa na fila para cuidar daquela menina.

Imagino como Astaire se sairia como mãe.

Há uma gentileza nela, uma suavidade em sua


disposição que ainda não encontrei em outra pessoa. Seu
temperamento alegre pode ser exaustivo às vezes, mas seu
coração está sempre no lugar certo. E claramente ela adora
crianças.

Ela é paciente, inteligente, curiosa e doce.

Sua voz sozinha foi feita para histórias de ninar.


É a coisa mais estranha... e talvez sejam os remédios ou
talvez eu bati minha cabeça quando desmaiei... mas acho que
sinto falta dela agora.

É como se houvesse um vazio indescritível na sala onde


ela deveria estar, como se um pedaço de mim estivesse
faltando.

Eu bato uma mensagem de texto no meu telefone, nada


mais do que MERCY CROSS HOSPITAL, PISO 4, SALA
4677 seguido por TRAZER CARREGADOR DE TELEFONE.
Então eu deito na minha cama, fecho os olhos e espero pelo
que parece uma eternidade.
Astaire

Faz pouco mais de um ano desde a última vez que pisei


dentro das paredes de tijolos bege do Hospital Mercy Cross,
quando Trevor estava com morte cerebral e conectado a
máquinas e sua mãe estava assinando a doação de seus
órgãos – exatamente o que ele queria.

Nunca sonhei que voltaria.

Certamente nunca pensei que Bennett não


comparecesse aos nossos planos para o jantar porque estava
aqui.

— Ei — diz ele quando me vê demorando na porta de


seu quarto privado. — Entre.

Nunca gostei do cheiro de hospitais.

Antisséptico. Plástico esterilizado. Flanela branqueada.


Flores frescas morrendo.

Limpo minhas mãos, coloco minha bolsa no balcão e tiro


meu casaco.
— Você está bem? — Eu vou para o lado dele.
Instintivamente, pego sua mão e então me paro quando vejo a
intravenosa colada no topo. — O que aconteceu? E por que
você está na unidade cardíaca?

Tudo nele é estranho neste cenário.

Sem seu traje elegante.

Nenhum rubor saudável pintando sua pele bronzeada.

Nenhum brilho perverso em seus olhos.

Nenhuma piada inteligente preparada em sua língua.

Bennett se senta, ajeitando os travesseiros atrás das


costas, e então puxa a parte de cima de sua bata de hospital
até que seu peito e ombros fiquem expostos.

E então eu vejo.

A cicatriz grossa e rosa descendo até o meio de seu


peito.

— Há um ano, fiz um transplante de coração. — Ele me


estuda, embora para quê, não tenho certeza. — Esta semana,
comecei a dar sinais de rejeição.

Minha respiração fica presa enquanto espero que ele


continue.

— Eu vou ficar bem. Por enquanto. Tenho um


procedimento pela manhã e eles farão mais alguns testes.
— Por que você não mencionou isso antes? A coisa do
coração?

Ele levanta uma sobrancelha. — Porque isso nunca


surgiu na conversa.

Não o lembro daquela noite em que se recusou a tirar a


camisa. O homem está deitado em uma cama de hospital –
agora não é hora de começar uma briga.

Pego uma cadeira e a puxo para mais perto de sua


cama. Não vou a lugar algum. Ficarei o tempo que ele
precisar.

— Estatisticamente, vinte e cinco por cento dos


pacientes de transplante de coração não sobrevivem nos
primeiros cinco anos — diz ele.

— Pare. Não vamos nos concentrar nisso. Vamos nos


concentrar nos setenta e cinco por cento que sobrevivem após
os primeiros cinco anos...

O leve arrastar de pés atrás de mim e uma batida rápida


na porta interrompe nosso momento, e me viro para
encontrar sua enfermeira vindo em nossa direção.

— Sr. Schoenbach, você ainda não pediu o jantar e a


cozinha fecha em meia hora, — ela diz enquanto verifica o
pulso dele. — Provavelmente deve colocar algo no estômago
antes de tomar a próxima dose às nove.
— Você quer que eu saia rapidinho? Pegar algo para
você? — Eu ofereço. — Se você quiser, posso correr até sua
casa e pegar algumas coisas para você?

Ele contempla sua resposta. Imagino que ele não esteja


acostumado a ser tão carente, tendo que contar com a
bondade dos outros. Não pode ser fácil para alguém como ele,
tão autônomo em todos os aspectos de sua vida.

— Eu trouxe um carregador de telefone como você


pediu. — Aponto para minha bolsa no balcão e, antes que ele
tenha a chance de responder, pego seu telefone e encontro
um local para ligá-lo ao lado dele. Virando-me para a
enfermeira, digo: — Vou garantir que ele coma alguma coisa
esta noite.

Assim que ela sai, Bennett me olha de cima a baixo. —


Você não tem que fazer tudo isso.

— Eu sei. — Eu pisco, e então me sirvo das chaves do


apartamento em um saco plástico em sua bandeja. — Roupas
limpas? Chinelos de casa? Livros? Algum outro conforto de
casa que eu possa oferecer enquanto pegarei seu jantar?

Ele balança a cabeça negativamente.

— Eu já volto... — Pego meu casaco e bolsa e caminho


suavemente pelo chão de ladrilhos até o elevador no final do
corredor. Quando as portas se fecham, não posso deixar de
me perguntar se o coração batendo dentro do peito de
Bennett... é de Trevor.
Mas nunca saberemos.

Esses registros são selados, privados.

E nenhuma quantidade de dúvidas trará Trevor de volta.

A casa de Bennett cheira exatamente como me lembro –


cedro e valência com um toque de bourbon de baunilha. Eu
localizo uma pequena bolsa de lona em seu armário e a
preencho com uma muda de roupa, um par de chinelos, um
livro dobrado de filosofia grega em sua mesinha de cabeceira,
bem como uma bolsa de higiene pré-embalada que encontrei
em seu banheiro.

Há uma quietude deprimente no ar esta noite. O céu


noturno cobrindo sua sala de estar na escuridão, nada além
do tique-taque do relógio de nogueira em sua lareira.

Não parece certo estar aqui sem ele.

Passo pela cozinha e dou uma olhada nos cardápios


presos na lateral da geladeira para ver o que ele gosta. Há um
lugar mediterrâneo não muito longe daqui e um punhado de
entradas está circulado em tinta azul. Bastante fácil. Eu ligo
e faço um pedido.
Saindo, eu tranco sua porta atrás de mim, mas quando
me viro para fazer meu caminho para o elevador, estou cara a
cara com um par vagamente familiar de olhos azul-gelo
pertencentes a um homem com cabelo preto como carvão,
brilhante e lustroso. Ele usa jeans cinza escuro rasgado e
uma jaqueta de camurça que enche minhas narinas com o
cheiro forte de couro curtido. Uma versão mais magra e
ameaçadora de Bennett.

— Bennett está em casa? — Suas palavras são


ofegantes, suas mãos tremendo enquanto descansam em
seus quadris. Se eu tivesse que adivinhar, este é o irmão dele.

O irmão com quem há sangue ruim...

As olheiras se aninham sob seus olhos semicerrados


enquanto ele espera minha resposta.

— Não. — Eu deixo por isso mesmo. Se Bennett não


contou a ele que está no hospital, tenho certeza de que não
vou.

— Suponho que você não saiba onde posso encontrá-lo?


— Seu olhar atento mergulha para a mochila pendurada no
meu ombro, couro mogno com o monograma de Bennett
costurado na lateral com linha preta.

— Eu sinto muito. — Eu me viro, continuando minha


jornada para o elevador, quando sou acompanhado por seus
passos.

— Desculpe. Não entendi o seu nome?


Eu paro no meio do caminho, mas não me viro para
encará-lo.

— Onde você está indo com as coisas do meu irmão? —


Ele aponta para a mochila, as sobrancelhas franzidas como
se exigisse uma resposta.

— Eu preciso ir... — Eu continuo para o elevador,


apertando o botão de chamada e exalando uma oração
silenciosa de gratidão quando as portas se abrem
imediatamente. Felizmente, o irmão de Bennett não sobe à
bordo – ele me encara com uma expressão peculiar que eu
não conseguiria ler nem se tentasse.

— Diga a ele para ligar para Errol — diz ele quando as


portas começam a fechar. — Diga a ele que é extremamente
urgente. Por favor.
Bennett

Meu telefone vibra na mesa da bandeja. Eu o arranco do


carregador. — Sim?

— Ei, sou eu — diz meu investigador do outro lado da


linha.

— Teve sorte com as mensagens?

— Nah. Ainda não. Ainda estou trabalhando nisso. O


telefone dela era... antiquado... então está dando mais
trabalho do que eu esperava, mas de qualquer maneira, eu
estava ligando de volta para falar sobre outra coisa que você
queria que eu investigasse? A coisa do doador de coração?

Semanas atrás, quando ele me deu o relatório de


histórico de Astaire, incluía uma cópia do obituário de seu
noivo. A data de sua morte foi em 7 de janeiro – o mesmo dia
do meu transplante. A única informação que recebi foi que ele
tinha 25 anos e se envolvera em um acidente de carro. Seu
nome era confidencial. Nunca dei muito crédito a
coincidências antes, mas esta era muito enervante para
ignorar.
— Você tem um nome para mim?

— Tenho. Agora você não ouviu isso de mim porque eu


não quero que minha fonte seja descartada. Não entre em
contato com a família ou faça qualquer coisa maluca, certo?

— Claro.

— O nome era Trevor Gaines. Viveu aqui em


Worthington Heights. Ensinou matemática na Caldecott
Junior High. Originalmente de...

— É o bastante. Obrigado. Avise-me quando tiver as


outras informações que solicitei. — Termino a ligação a tempo
de ouvir o farfalhar das sacolas plásticas e os passos suaves
de Astaire.

Ela deposita minha mochila de couro em uma cadeira


de hóspedes no canto antes de colocar minha comida e
talheres de plástico na minha bandeja.

— Espero que você esteja com fome. Posso ter pedido


demais... — Ela fala em um meio sussurro reconfortante,
seus movimentos fluidos.

Quando me sento, ela ajusta os travesseiros nas minhas


costas.

Eu não pensaria em fazer essas coisas por ela se nossa


situação fosse inversa. O fato de que cuidar dos outros é tão
fácil para ela que não faz nada mais do que destacar o quanto
somos errados um para o outro.
— Astaire.

Ela para de colocar meus travesseiros e pousa a mão no


meu ombro. — Você precisa de algo mais?

Estou a dois segundos de dizer a ela para parar de me


adorar tanto quando mudo de ideia e digo um simples —
Obrigado.

Ela acena com a mão, como se não fosse grande coisa,


mas é grande coisa. Isso significa que ela se preocupa comigo
mais do que deveria. Eu deveria ter enviado um assistente
para pegar minhas coisas. Poderia ter encomendado meu
jantar. Eu nunca deveria tê-la deixado fazer isso.

O coração do amor de sua vida bate em meu peito.

Nunca amei nada, nem metade do que ela


provavelmente o amou.

Essa coisa toda é estranha e emaranhada... é por isso


que não posso deixar ir mais longe.

Especialmente se vou precisar da ajuda dela com Honor


no futuro.

— Agradeço isso, mas você deve ir para casa agora.


Durma um pouco. Você tem que trabalhar pela manhã. — Eu
corto meu frango, evitando contato visual, porque já posso
sentir o manto de pena em seu olhar delicado.

— Não estava planejando ficar. Eu sei que você precisa


dormir. — Ela enfia uma mecha de cabelo atrás da orelha. —
Mas, hum... quando eu estava saindo da sua casa, encontrei
alguém...

Eu paro de mastigar e olho para cima.

— Errol. — Um micro estremecimento pinta seus traços


suaves.

Eu dou uma investida satisfatória em um feijão verde


com meu garfo.

— Ele é o seu irmão, não é? — Ela dá um passo mais


perto. — Ele disse para você ligar para ele. Disse que é
extremamente urgente.

Eu bufo. — Não vai acontecer. Mas obrigado por


transmitir a mensagem.

— Ele perguntou se eu sabia onde poderia encontrar


você — diz ela. — E ele perguntou meu nome, para onde eu
estava indo...

— E o que você disse a ele?

— Nada — ela responde rapidamente. — Nada mesmo.


Eu disse a ele que tinha que ir, entrei no elevador e saí. Eu
não sei a história entre vocês dois ou por que existe sangue
ruim, então eu...

— Minha família inteira tem sangue ruim, Astaire. E isso


é tudo que você precisa saber. — Eu descanso meu garfo
contra a lateral do recipiente de isopor. Eu perdi meu apetite.
— Isso é um pouco exagero, você não acha? Você não
tem sangue ruim.

Do jeito que ela fala, quase acredito nela.

Eu quero acreditar nela.

— Faça-me um favor e tire os óculos cor de rosa pela


primeira vez na vida. — Meu tom é seco, minhas palavras
insensíveis. Fico olhando para o quadro branco na parede
oposta, onde uma enfermeira escreveu seu nome ao lado de
um rosto sorridente de olhos brilhantes – como se isso fosse
me deixar feliz. — Seria melhor você não me idealizar.

O olhar de Astaire é pesado, sua presença paralisada


por um momento interminável.

— Você obviamente teve um dia difícil... E eu tenho


trabalho pela manhã... vou sair para que você possa
descansar. — Sua voz está quebrada enquanto ela reúne
suas coisas e se move para a porta. Parando ela acrescenta:
— Espero que você se sinta melhor logo.

Com isso, ela se foi.

Eu claramente a aborreci, mostrei a ela um lado meu


que ela provavelmente esperava nunca ver novamente, mas é
para o bem maior.

Algum dia ela vai entender.


Astaire

Um zelador do hospital limpa o chão do quarto de


Bennett na sexta à tarde.

Outro tira os lençóis, assobiando uma melodia


desconhecida.

Eu limpo minha garganta. — Desculpe. O homem que


estava aqui. Eles o moveram?

A mulher que assobia encolhe os ombros. — Verifique


na estação da enfermagem.

Meu batimento cardíaco sopra em meus ouvidos


enquanto eu corro pelo corredor e encontro uma enfermeira
em uniforme vermelho curvada sobre uma estação de
computador. Minha mente percorre centenas de cenários –
alguns deles não tão bonitos. Não consegui dormir ontem à
noite, então passei uma hora inteira pesquisando
transplantes de coração, estatísticas, expectativa de vida,
complicações... eu entendo agora porque o homem é tão
pessimista sobre sua condição.
— Lamento incomodá-la, mas estou procurando Bennett
Schoenbach. Ele esteve aqui ontem à noite, mas não está em
seu quarto. Eu estava me perguntando se ele foi movido? —
Meu olhar vai de seu crachá para seu computador e para a
mancha de café em sua blusa.

Ela olha para cima, lábios retos, e então digita algumas


letras em seu teclado e aperta os olhos para a tela. —
Liberado. Duas horas atrás.

Agradeço a ela e vou direto para o elevador, percorrendo


o corredor de 400 metros até o estacionamento.

Pensei nele o dia todo hoje, verifiquei meu telefone em


todas as oportunidades que tive, esperando que houvesse
uma atualização ou mensagem e, no final, imaginei que ele
estava ocupado ou descansando e conversaríamos mais tarde
esta noite.

Dei a ele o benefício da dúvida porque tinha certeza de


que ele me manteria informada na primeira chance que
tivesse, porque é isso que os amigos fazem.

Pelo que eu sei, sou a única pessoa que sabia que ele foi
internado ontem – então por que ele não me disse que teve
alta?

É uma cortesia comum.

Isso, combinado com a maneira como ele falou comigo


depois que eu trouxe seu jantar ontem à noite, é um tapa na
cara.
No momento em que chego ao meu carro, minha mente
está feita.

Vinte minutos depois, estou em sua porta.

Bato três vezes antes de ele finalmente abrir. Seu cabelo


está penteado e molhado, e uma camiseta branca grudada
em seus ombros largos, enquanto um moletom azul marinho
pendura em seus quadris estreitos. Sua pele tem uma
tonalidade mais saudável do que na noite anterior e o cheiro
amadeirado de loção pós-barba exala de sua pele úmida.

— Acabei de sair do hospital. — Eu agarro a alça da


minha bolsa e tento manter minha voz calma. Eu não vim
aqui para lutar. — Você poderia ter avisado que recebeu alta.

Ele não me convida a entrar, na verdade, ele se ancora


na porta, o cotovelo apoiado na soleira enquanto me olha com
uma expressão curiosa.

— Você não é minha guardiã, Astaire.

Eu mordo minha língua, engolindo o que eu realmente


quero dizer. — Eu pensei que éramos amigos.

Bennett exala. — Somos.


— Então, por favor, me explique por que você de repente
voltou a ser o Sr. Hyde 14 sem nenhuma explicação? — Eu
jogo a mão no ar, fungo uma risada incrédula. — Você fica
irritado quando não se sente bem? Você está ansioso? É algo
que eu disse?

Ele não diz nada, o que apenas faz meu sangue ferver.

— Por favor, me ajude a entender. — Eu aperto minhas


mãos.

— Qual é o ponto?

— Qual é... o... ponto? — Eu retorno sua pergunta,


enfatizando cada palavra. — Acho que não há nenhum... eu
só... nas últimas semanas, estávamos nos dando tão bem,
nos divertindo... você estava se abrindo para mim, confiando
em mim... então, na noite passada, eu saio por uma hora e
quando eu volto, você é uma pessoa completamente diferente.
Seria bom saber de onde isso está vindo.

— Aposto que seria..., mas infelizmente ainda não


importa.

— Você odeia ser vulnerável. Você odeia a ideia de


parecer fraco. Você tem vergonha de sua família. Você tem
essa fachada de ferro que coloca entre você e o resto do
mundo, — eu digo. — Eu sei essas coisas sobre você. Eu as
conheço desde o início. E ainda assim, corri para o seu lado

14 Referência ao personagem do filme/livro: O Médico e o Homem.


no segundo em que você me mandou uma mensagem na
noite passada.

— Você não precisava.

— Não seja ridículo. — Cruzo meus braços sobre meu


peito.

— Acho que estamos indo muito rápido. — Ele arrasta


os dedos pelo cabelo úmido, os lábios pressionados.

— Nós? — Eu pergunto. — Nós? Bennett, você me


convidou para um encontro. Você me levou para fazer
compras para sua sobrinha. Você me convidou para jantar
em sua casa. Você me mandou uma mensagem de texto com
o número do seu quarto de hospital, que tomei como um
convite.

— Tudo certo. Bem. Eu tenho sido muito rápido... isto é


melhor?

Na verdade, não. — O que aconteceu naquela hora que


mexeu com você? Algo assustou você.

— Nada me assustou, Astaire. — Ele zomba.

Como ouso insultá-lo, sugerindo que ele tem medo de


alguma coisa...

— Você sabe... você é o primeiro amigo de verdade que


eu tenho desde que perdi Trevor... — minha voz enfraquece,
quebra, e eu respiro fundo. — Eu não sei por que você
mudou de repente, mas acho que pelo menos mereço uma
explicação.

— Você merece. Mas não receberá uma.

Um milhão de coisas a mais que eu quero dizer, um


milhão de pensamentos surgem em minha mente, mas eu os
engulo. Não há sentido em discutir com uma parede de
tijolos.

Eu saio, andando de volta para o elevador enquanto


tento empurrar um coquetel de emoções para a parte mais
profunda de mim para que eu não me perca na frente dele.

Sinceramente, acreditava que éramos amigos.

Eu estava até começando a sentir um frio na barriga


quando ele olhava para mim. Eu nutria fantasias e devaneios
que não tinham nada a ver com isso. E meu estômago dava
uma cambalhota a cada notificação por mensagem de texto.

Mas ele não é nada mais do que aquele estranho de


coração cruel do bar.

E isso é tudo que ele será.

— Astaire. — Ele diz meu nome enquanto eu alcanço o


botão de chamada.

Eu fico de costas para ele.

— Astaire, espere. — Sua voz está mais perto agora.


O elevador chega. As portas se abrem. Sua mão segura
meu cotovelo e ele pressiona o botão fechar.

Minha carona desaparece.

— Olhe para mim. — Ele me vira para encará-lo, mas


minha atenção está fixada no tapete estampado. — Olhe para
mim.

Com um dedo sob meu queixo, ele levanta suavemente


meu olhar para ele.

— Você está chorando. — Ele traça a ponta do polegar


em minha bochecha.

Eu o afasto. — Não faça isso.

— Não fazer o quê?

— Aja como se você se importasse.

Seu peito sobe e desce. — Eu me importo muito, porra.

Ele desliza sua mão sobre a minha e me leva de volta


para seu apartamento. Um momento depois, estamos
sentados em seu sofá. Ele enterra o rosto nas mãos,
respirando com dificuldade antes de afundar nas almofadas e
olhar para a paisagem cinzenta da cidade além da parede de
janelas.

Os segundos parecem minutos, gotejando a cada tique-


taque do relógio da lareira.
E então ele pega minha mão. — Astaire, há algo que
preciso lhe contar.

Meu coração bate forte no peito e minha mão treme na


dele. Essas não são palavras que normalmente acompanham
boas notícias. A última vez que as ouvi foi no dia do
diagnóstico de câncer de Linda. Um pouco antes disso, meu
pai adotivo estava dando a notícia de que minha mãe havia
parado de tentar recuperar a custódia e eu era oficialmente
protegida pelo estado.

— Pedi ao meu cara para fazer algumas escavações. —


Seu olhar detém o meu. — Acontece que meu doador de
coração... era seu noivo.

Suas palavras não são registradas até que eu as repasse


em minha cabeça mais algumas vezes.

— Por quê? — Tenho uma dúzia de perguntas, mas essa


vem primeiro. — Por que você verificou isso?

— Porque a data no obituário do seu noivo combinava


com a data do meu transplante. E com base nas informações
não identificativas que recebi, as coisas estavam se
encaixando. Eu queria saber.

— Você tem certeza?

Ele acena, sem hesitação. — Trevor Gaines. Vinte e


cinco anos. Professor de matemática de Worthington Heights.
7 de janeiro.
As lágrimas cegam minha visão e não consigo enxugá-
las rápido o suficiente. Sem dizer uma palavra, Bennett
desaparece na sala ao lado, voltando com um punhado de
lenços de papel e tomando o lugar ao meu lado novamente.

Tenho a impressão de que ele não lida bem com as


lágrimas – mas são lágrimas de felicidade.

Ele me estuda, imóvel, como se não soubesse o que


fazer, o que dizer.

Se eu pudesse falar, diria a ele que simplesmente


compartilhando esta informação, e estando aqui comigo é
mais do que suficiente.

— Você está bem? — Ele espera alguns minutos antes


de perguntar.

Secando meus olhos, eu aceno novamente e novamente.


E então eu jogo meus braços ao redor dele e o abraço mais
forte do que já abracei alguém em minha vida. Seu coração
bate contra o meu.

O coração de Trevor.

Bennett me deixa segurá-lo e, depois de um tempo, ele


me segura também.

Eventualmente, eu o liberto. Eu afundo de volta.


Arrastando em uma respiração irregular. Olho
profundamente em seu olhar azul-gelo pela primeira vez
novamente.
— Obrigada por compartilhar isso comigo. — Eu pego
sua mão.

— Você não está chateada com isso? — Ele aperta os


olhos.

— Deus, não. Por que eu estaria? — Limpo um lenço


amassado no canto do olho. — Lembra quando eu disse que o
ano passado foi repleto de momentos brilhantemente
dolorosos, mas lindos?

Ele concorda.

— Este é um deles. — Minha voz é um sussurro


quebrado, mas eu continuo. — Uma parte de Trevor – a
melhor parte dele – consegue viver por sua causa.

Ele não diz nada e sua atenção se volta para a janela.


Eu posso praticamente ouvir seus pensamentos... Ele acha
que estou sendo muito otimista.

Linda sempre me disse que tudo acontece por um


motivo.

Tudo.

Há uma razão pela qual Bennett Schoenbach foi


colocado no meu caminho naquela noite.

E de novo...

E de novo.
Eu me aproximo, levantando minha mão em seu peito
com um pouco de relutância. — Você se importa se eu...

Com um momento de consideração, ele pega minha mão


e pressiona a palma contra o tecido fino de sua camiseta
branca, sobre o batimento constante do coração de Trevor.

De olhos fechados, concentro-me nas batidas suaves.

— Isso é tão surreal. — Um sorriso aparece em meus


lábios e uma lágrima escorre pela minha bochecha. — Eu
gostaria que você pudesse tê-lo conhecido.

Eu inalo esse momento em todos os sentidos da palavra


e, em seguida, removo minha mão do peito de Bennett.
Quando eu abro meus olhos, eu o encontro olhando.

— Como você se sente sobre isso? — Eu pergunto. —


Quer dizer, isso é uma loucura, certo? Quais são as
hipóteses?

— É uma coincidência selvagem, mas é só isso. Uma


coincidência.

Eu sopro uma lufada de ar entre meus lábios. —


Bennett, isso é grande. Isso é muito maior do que qualquer
um de nós pode...

— Vamos lá. — Ele inclina a cabeça. — Estou feliz que


você teve seu pequeno momento, mas não vamos atribuir um
significado mais profundo a ele.

— Meu pequeno momento?


— Eu não quis dizer isso.

Eu me inclino para frente, os cotovelos sobre os joelhos,


organizando meus pensamentos enquanto observo a
variedade de objetos decorativos colocados perfeitamente ao
longo de sua mesa de centro. Objetos que um decorador
provavelmente escolheu para ele, objetos que provavelmente
nada significam para ele, porque o homem vive uma vida
vazia de sentido de qualquer tipo, porque o significado faz
você sentir coisas e sentir coisas o aterroriza.

— Estamos de volta a isso? — Eu pergunto. — As falas


apáticas e condescendentes?

— Claro que não.

— Você tem certeza? — Eu me viro para ele. — Porque


preciso saber se estou lidando com Jekyll15 ou Hyde agora.

— Pare.

— Sério, Bennett. Nunca conheci ninguém tão quente e


frio em toda a minha vida e conheci alguns indivíduos
realmente especiais...

Ele aperta a ponta do nariz. — Eu só... eu não quero


que você se machuque.

— E como isso aconteceria?

15 Referência ao personagem do livro/filme: O médico e o Monstro.


Ele franze a testa. — Eu não quero que você pense que
sou uma segunda vinda desse cara, uma segunda chance de
estar com ele novamente.

Eu levanto. — Você está se ouvindo? Esse pensamento


não passou pela minha cabeça uma única vez. Eu não estou
delirando.

Ele me olha em silêncio. Pela primeira vez, gostaria que


ele me deixasse entrar nessa sua cabeça. Consegui extrair
pedaços aqui ou ali, mas imagino que as verdades mais
profundas ainda estejam trancadas.

— Tudo na noite passada... — Eu ando pela área em


frente a sua lareira. — Ontem depois que eu voltei da sua
casa... era sobre você ter o coração de Trevor?

Ele não confirma, nem nega.

— Eu acho que não entendo como isso muda alguma


coisa — eu digo. — Você achou que eu ficaria com raiva?

— Não.

— Você achou que eu projetaria meu amor por Trevor


em você? — É uma teoria selvagem, mas apresento de
qualquer maneira.

Sua mandíbula cede. — Algo parecido.

— Eu nunca faria. Só para esclarecermos. Havia apenas


um dele. — Eu digo. — E sempre haverá apenas um de você.
— Você sabia que a expectativa de vida média após um
transplante é de nove a dezesseis anos? — Sua flagrante
mudança de assunto corta a sala.

Engolindo, eu aceno. — Eu sei disso. Passei toda a noite


passada colocando minhas mãos em cada pedaço de
informação que pude, porque eu queria saber o que você
estava enfrentando – para que eu pudesse enfrentar com
você.

— Tudo bem, digamos que estou um ano abaixo e faltam


oito – é algo a que você quer se apegar? Depois de tudo que
você passou? Depois de todos que você perdeu?

— Então esse é o seu raciocínio por trás de me afastar?


Você quer evitar que eu me machuque? — Eu paro de andar
e descanso minhas mãos em meus quadris. — Porque se você
me perguntar, eu acho que é o contrário.

— Não seja um maldito mártir, Astaire.

— Não aja como um santo, como se você estivesse me


afastando porque você tem os melhores interesses no
coração.

— O que te faz pensar que isso é sobre mim? — Ele


pergunta.

— Do que você está falando?

— Honor.
Lembro-me daquele domingo na loja de brinquedos,
quando ofereci minha ajuda em qualquer função. — Então
você acha que se as coisas piorarem entre nós, eu não estarei
por perto para Honor?

— Nunca se sabe.

— Eu não posso acreditar que você realmente pensa


isso. Se você tivesse alguma ideia do quanto eu adoro aquela
garotinha... ela me pegou para o resto da vida. Diga a palavra
e eu estou lá.

— Às vezes as pessoas têm boas intenções — diz ele. —


E outras vezes a vida fica no caminho.

— Uau. Ok. — Pego minha bolsa da mesa de centro e


jogo por cima do ombro.

— Aonde você vai?

— Casa. Estou com dor de cabeça por batê-la contra a


parede de tijolos de sua personalidade na última meia hora.
— Eu caminho até à porta.

Bennett me segue, embora não esteja claro se ele está


me levando para fora ou tentando me impedir.

Virando-me para ele, eu rio pelo nariz e ofereço um meio


sorriso agridoce, — Sabe, eu estava realmente começando a
me apaixonar por você. Borboletas, devaneios, todas aquelas
coisas boas sobre as quais você provavelmente nada sabe. Eu
pude ver o que há de bom em você quando nem mesmo você
conseguia ver, e me senti honrada por você estar me
deixando entrar, porque tenho a impressão de que você não
faz isso com muita frequência. Como uma idiota, pensei que
significava alguma coisa.

Eu encolho os ombros.

— Mas acontece que não significava nada.


Absolutamente nada. — Eu continuo. — Porque você ainda
está tão sem coração e miserável quanto na noite em que...

Não consigo terminar minha frase porquê de repente


minhas costas estão pressionadas contra sua porta e seus
lábios estão reivindicando os meus.
Bennett

Ela derrete contra mim, uma doce rendição, sua boca


está quente como fogo.

Eu seguro seu rosto em minhas mãos, meus dedos se


emaranhando em seu cabelo loiro sedoso enquanto sua
língua dança com a minha.

Tudo o que ela disse esta noite estava certo.

Cada. Fodida. Coisa.

Às vezes, falar com ela é como olhar em um espelho que


só mostra as partes mais profundas de você, as partes que
você não quer olhar, embora saiba que estão lá. É
desconfortável. Doloroso às vezes. Mas em trinta anos, ainda
não conheci uma mulher que pudesse olhar para mim e ver
todas as peças que ninguém mais pode ver.

Nós tropeçamos para trás, fazendo nosso caminho para


o meu quarto, as roupas caindo em camadas deixando um
rastro no hall.

Lábios macios. Língua melada. Alma cristalina.


Posso lutar o quanto quiser, mas Astaire é uma iguaria.

Se eu a deixar sair daqui, sei que vou me arrepender


pelo resto da minha vida.

Nunca haveria outra ela.

Nunca poderia haver outro isso... seja lá o que for.

Não temos um pedaço de roupa quando chegamos ao


meu quarto, e eu quase a atiro no centro da minha cama,
subindo em cima dela e roubando o gosto de cada buraco,
cada curva, cada ângulo de seu corpo macio e doce
começando em sua boca... trabalhando em sua mandíbula...
parando em seu pescoço... levando meu tempo entre seus
seios inchados... arrastando minha língua pelo centro de sua
barriga curvada até que eu me acomodo entre suas coxas.

Eu levanto suas pernas sobre meus ombros e arrasto


minha língua ao longo de sua entrada molhada.

Ela agarra um punhado de lençóis da cama, liberando o


gemido mais baixo.

No último mês, eu não quis nada mais do que quebrá-la,


quebrar sua doçura, porque isso só me lembrava de minhas
próprias fraquezas. Eu a odiava por ser suave. E eu queria
que ela me odiasse de volta.

Eu circulo seu clitóris inchado antes de prová-la


novamente, e seu corpo estremece contra a cama em
resposta. Deslizando dois dedos dentro dela, eu acaricio seu
ponto G e continuo a devorar sua boceta de veludo.

— Você... tem certeza de que devemos estar... — ela


pergunta, sem fôlego.

Eu sei o que ela está insinuando.

Parando, eu subo sobre ela, pressionando beijos em sua


cintura. — Vamos devagar.

Sexo lento e romântico geralmente não é minha praia,


mas também não são mulheres como Astaire.

Eu deslizo minhas mãos ao longo de suas coxas antes


de envolvê-las em volta da minha cintura e puxá-la para mais
perto. Nossos olhares capturam. Eu mergulho e esmago em
sua boca com um beijo, compartilhando seu gosto na minha
língua.

— Você não tem ideia do quanto eu queria isso — eu


sussurro, meus lábios roçando os dela. — Queria você...

Correndo os dedos pelo meu cabelo, ela morde o lábio


inferior. — Isso vai ser apenas sexo para você? Porque se
for...

— Não, Astaire. Isso não vai ser apenas sexo para mim.
— Eu a beijo novamente, nossos corpos pressionados um
contra o outro, moendo, provocando.

Eu beijo seu pescoço antes de me afastar para pegar um


pacote de camisinha da gaveta de cima da minha mesa de
cabeceira. Rasgando-o entre os dentes, jogo o pacote de lado
e rolo a borracha no meu eixo antes de retornar.

Correndo minha mão entre suas coxas, eu as abro mais,


antes de mergulhar meu dedo em sua boceta molhada. Seu
estômago cede e ela exala enquanto eu provo sua doçura
mais uma vez antes de acariciar sua entrada com a cabeça do
meu pau.

Um segundo depois, eu mergulho meu comprimento


bem fundo dentro dela, preenchendo-a enquanto suas unhas
cavam em minhas omoplatas. Impulso após impulso, ela me
fode de volta, estabelecendo um ritmo enquanto nossas bocas
se encontram entre suspiros sem fôlego.

Impulso por impulso, vamos mais forte, mais rápido,


mais fundo.

Não estamos nem perto de terminar, e já mal posso


esperar para tê-la novamente.

— Calma — sussurra Astaire, suas mãos deslizando


para a parte inferior das minhas costas. — Aproveite... não
vou a lugar nenhum e temos a noite toda...

Nossos olhares se fixam e ela tira uma mecha de cabelo


da minha testa, seus lábios inchados torcendo em um sorriso
de lado enquanto ela olha nos meus olhos de uma forma que
ninguém nunca fez antes, como se ela estivesse olhando para
as partes isoladas e obscuras de mim.
Eu penso no que ela disse antes, que ela estava se
apaixonando por mim.

Não me dei a chance de deixar aquelas palavras


afundarem na hora, de parar e ouvir o que ela estava
tentando me dizer, porque eu estava muito ocupado tentando
me convencer de que estava fazendo a coisa certa.

As palavras permanecem na ponta da minha língua.

Eu também estou apaixonado por você.

Eu não as digo.

Eu não posso. Ainda não.

Mas a coisa mais louca acontece: ela desliza os dedos


em volta do meu pescoço, me beija suave e lentamente e
sussurra as palavras: — Eu sei.

Faz alguns minutos que me despedi de Astaire com um


beijo no sábado de manhã, quando alguém bateu na porta.
Fecho o chuveiro, coloco de novo meu moletom e corro até a
porta. Eu imagino que ela esqueceu algo.

Ou talvez ela tenha voltado para mais uma rodada...


Eu verifico o olho mágico para ter certeza – apenas para
encontrar o contorno magro e familiar de Victoria Tuppance-
Schoenbach.

Ela bate novamente. — Abra, Bennett. Eu sei que você


está em casa. Acabei de passar por uma de suas conquistas
no corredor. Não vou embora até você responder.

E ela quis dizer isso também.

Ela é conhecida por armar acampamento por horas


quando necessário, fazendo com que seus assistentes lhe
tragam lanches, revistas e carregadores de telefone.

Fortalecendo minha determinação, eu abro a porta.

Seu olhar pousa imediatamente no meu peito nu. —


Meu Deus, Bennett. Você não tem decência?

— Eu estava prestes a tomar um banho... você deveria


ter ligado.

Ela entra, passando por mim. — Tenho ligado para você


a semana toda.

O olhar atento de minha mãe varre o espaço, como se


ela estivesse procurando por pistas ou sinais ou evidências,
embora eu não tenha certeza do que.

— Ouvi dizer que você esteve de volta ao hospital esta


semana. — Ela se vira para me encarar, as mãos cruzadas.
Não preciso perguntar como ela ficou sabendo.
Conhecendo meu irmão, imagino que ele seguiu Astaire
depois que a viu saindo de minha casa naquela noite com
minha bolsa a tiracolo.

— Está tudo bem, querido? — Ela pergunta. Mas antes


que eu possa responder, ela acrescenta: — Bem, suponho
que devo presumir que sim, visto que você não pensou em
ligar para sua querida mãe e dizer a ela que foi internado.

— Estou bem. Agora, em que posso ajudá-la, mãe?

— Precisamos discutir aquela criança novamente. — O


nojo tinge sua voz.

— Essa criança tem um nome.

— Por ser uma decisão que afeta a todos nós,


precisamos lidar com isso como uma família. Fazer o que é
melhor para toda a família.

— Eu não vejo como isso vai afetar você. Ela vai morar
comigo. Eu a estarei criando. Você não tem que fazer
absolutamente nada.

Ela zomba. — Você não acha que as pessoas verão vocês


dois por aí? Você não acha que eles vão se perguntar por que
a criança se parece tanto com um Schoenbach? E se eles
descobrirem que ela é filha de Larissa? Não é preciso ser um
gênio para juntar as peças.
Eu encolho os ombros. — Não é problema meu. Talvez
se você tivesse criado Errol para ser um pouco menos como
você e um pouco mais como um ser humano decente, ele não
teria transado com a irmã e nenhum de nós estaria nesta
situação.

Eu me preparo para um tapa que não vem, e então


percebo que ela está olhando para minha cicatriz.

Quando fiz minha operação no ano passado, ela me


visitou uma vez. E uma vez foi o suficiente para nós dois. E
enquanto as coisas estavam pacíficas sem ela entrando e
saindo e fingindo se importar, ainda doía saber que eu
importava tão pouco para minha própria mãe.

— Bennett, tentei argumentar com você, mas se você


não ceder nessa questão, está me deixando sem escolha. —
Ela endireita os ombros e levanta o queixo pontudo do jeito
que faz quando está prestes a me dar um braço forte. — Seu
irmão está preparado para ir a um juiz para solicitar um teste
de paternidade ordenado pelo tribunal, provando que ele é o
pai biológico da criança. Uma vez que isso seja estabelecido,
ele está preparado para lutar pela custódia legal e física
exclusiva – e ele vai vencer. Depois disso, o destino dela
estará nas mãos dele. Ele pode renunciar a seus direitos
parentais e colocá-la de volta no sistema, onde ela está agora.
Então, depende de você, querido. Você quer que ela passe o
próximo ano de sua vida sendo sacudida e arrastada de um
tribunal de família para outro? Ou você quer fazer isso da
maneira mais fácil?
Meu coração bate forte, sangue jorrando em meus
ouvidos.

Está tudo vermelho.

Então preto.

Então claro como o cristal.

Outra noite, quando Errol estava aqui implorando para


eu assinar à custódia, ele evitou a questão de Beth porque
essa era sua intenção o tempo todo – ganhar à custódia,
apenas para renunciar a seus direitos. Com um pouco de
manipulação cuidadosa, ele poderia fazer todas essas coisas
sob o nariz dela.

— Você é um tipo perversa e vil de ser humano — cuspo


as palavras que desejo dizer desde que me lembro. — Você
me dá nojo.

Ela bufa. — Eu diria que é preciso um para conhecer o


outro, mas isso seria te dar muito crédito. Você não é mau,
Bennett. Você é fraco. — Seu olhar pinga para minha cicatriz
e volta. — Você nasceu fraco. E você vai morrer fraco. —
Passando por mim, ela suspira. — Graças a Deus seu pai não
viveu para ver você assim. Desafiador. Nem um pingo de
lealdade. É patético, de verdade.

Eu abro a porta. — Ameace-me mais uma vez, mãe, e


veja o que acontece. Tente usar esta criança como peão mais
uma vez. Por favor. Eu te desafio.
Ela se vira para responder, lábios vermelhos torcidos,
mas eu bato a porta na cara dela.

E então eu faço uma ligação.


Astaire

Eu quebro um pedaço de chocolate amargo na noite de


sábado e entrego para Bennet. Casablanca transmite na TV
acima de sua lareira, que eu sempre pensei que era uma
pintura emoldurada até hoje. Um cobertor compartilhado
cobre nosso colo e uma tigela de pipoca meio comida repousa
sobre a mesa de centro.

Ele está colado ao filme – uma coisa boa porque a


maioria das pessoas ama ou odeia este, e acontece que é um
dos meus favoritos. Linda e eu costumávamos assistir
Casablanca em dias de neve, dividindo pipoca de micro-ondas
e Twizzlers, citando cada linha de cor.

Prendo minha respiração quando Bogie diz sua famosa


frase: — De todas as casas de gim em todas as cidades, em
todo o mundo, ela entrou na minha...

Estranhamente fortuito, mas guardo isso para mim.


Bennett é pragmático demais para atribuir significados mais
profundos a qualquer coisa. Ele olharia para mim como se eu
tivesse duas cabeças. Além disso, não quero me precipitar. As
coisas entre nós mudaram, nivelaram-se de certa forma, mas
é tudo tão novo, tão frágil.

Estou levando um dia de cada vez.

Ele também está... à sua maneira.

O médico ordenou que ele relaxasse nas próximas


semanas. Sem trabalho. Sem estresse. É praticamente uma
tortura para ele, mas estou fazendo minha parte para
garantir que ele continue e para que seu tempo de
recuperação seja o mais relaxante possível.

— Astaire, preciso te perguntar uma coisa. — Ele se


inclina para frente, pegando o controle remoto e pausando o
filme. — Eu preciso de um favor seu. Bem, não tanto como
um favor, mas como um compromisso. E quero que saiba que
não pergunto isso levianamente.

Aleatório.

— Ok...

Sua boca pressiona e suas sobrancelhas escuras se


encontram. — Se alguma coisa acontecer comigo, eu preciso
ter certeza de que Honor tem alguém. Alguém para cuidar
dela. Alguém digno de cuidar dela.

— Claro. Eu disse que vou ajudar no que puder. Você


sabe disso.

— Quero dizer, legalmente — diz ele. — Ela não pode –


em nenhuma circunstância – ir para minha mãe ou irmão.
Eu engulo o chocolate derretido na minha língua e
aceno. — Você tem certeza disso?

Não aponto o fato de que acabamos de nos conhecer no


mês passado, que ele mal me conhece. E se ele ficar enjoado
de mim? E se ele conhecer outra pessoa e se apaixonar?
Quiser começar uma família com ela? O que então?

— Ela vai precisar de uma figura materna em sua vida


— diz ele. — Há coisas que não serei capaz de dar a ela.

— Há muitos pais solteiros por aí que se dão bem.

— Tenho certeza que sim. Mas eu conheço meus limites,


Astaire. Eu conheço meus pontos fortes. Nutrição e ternura e
tudo isso – é uma língua estrangeira para mim. Você... você
tem todas essas coisas. Você é todas essas coisas.

— Você aprenderá conforme avança — digo, inclinando-


me para beijá-lo. Eu o amo assim – vulnerável e admitindo
pela primeira vez que está com medo de alguma coisa na
vida.

— Estou falando sério, Astaire. Você é a única pessoa


em quem confio, a única que se sente bem por ela. — Ele leva
a mão à minha bochecha, expira, sua testa pressionada
contra a minha.

— Tem certeza disso?

— Mais do que tudo.


Eu engulo o nó na minha garganta, forço para baixo
qualquer preocupação com isso explodindo em nossos rostos.
— Se é isso que você quer, Bennett... então eu ficaria
honrada.

Ele exala, como se estivesse preocupado que eu não


concordasse. E então ele me beija. Difícil. Grato.

— Eu sei que nós dois nos ferramos no departamento de


família. — Eu tiro um cabelo escuro de sua testa. — Mas, de
certa forma, esta é a nossa chance de ter nossa própria
pequena família improvisada. Podemos ter nossas próprias
regras. Seremos bons um com o outro. Podemos até ter
tradições, se quiser. Não importa o que aconteça entre nós,
eu sempre estarei lá para vocês dois. Eu prometo.

Bennett leva minha mão à boca, depositando um beijo


leve. — Obrigado.

— Claro.

— Vou ligar para meu advogado na segunda-feira e


pedir que ele redija a papelada imediatamente.

Sua urgência me pega desprevenida, mas não questiono.


Ele me parece um homem que gosta de estar preparado.
Tenho certeza de que não é nada mais do que isso.

— Linda e eu não passávamos muitos natais juntos,


mas tínhamos uma tradição... na véspera de Natal,
comprávamos chocolate quente com hortelã e dirigíamos por
horas olhando todas as luzes de natal, cantando canções de
natal no topo de nossos pulmões. — Eu sorrio. — E no Dia
dos Namorados, ela sempre me dava um cartão de mãe e
filha. Eu achei estranho no começo, mas ela me disse que o
Dia dos Namorados é sobre amor, e o amor vem em todas as
variedades. Todo verão, passávamos três semanas em Marco
Island, Flórida, visitando a irmã dela e ficando em um
condomínio na praia. Eu sempre perguntei a ela por que três
semanas. Ela estava de férias o verão inteiro, sendo
professora e tudo, e ela me disse que amava sua irmã, mas
isso era quase o máximo de tempo que as duas podiam
passar juntas sem arrancar os cabelos uma da outra.

Bennett ri pelo nariz.

— Você tinha alguma tradição em sua família? — Eu


pergunto.

— Nenhuma.

— Nada? Realmente?

— Nada disso — ele diz. Sua voz está melancólica e seus


olhos estão vidrados, embora eu não ache que ele tenha
percebido.

Tirando o cobertor de nosso colo, subo em seu colo e


seguro seu rosto em minhas mãos. — Teremos que começar
algumas por conta própria então.

Eu o beijo, inalando seu perfume amadeirado.

— Receio não saber por onde começar — diz ele.


Eu o beijo novamente. — É aí que eu entro...

Suas mãos engancham meus quadris, puxando-me


contra ele enquanto sua dureza aumenta. Há fome, ganância
na forma como sua boca esmaga a minha, e meus dedos se
agarram em seu cabelo espesso.

— Eu não sei o que faria sem você — ele sussurra, os


lábios arranhando nos meus. Mãos deslizando sob minha
bunda, ele me levanta do sofá e me carrega para seu quarto,
onde fazemos amor como se tivéssemos todo o tempo do
mundo – cada um de nós silenciosamente ciente de que
amanhã nunca é uma promessa.
Bennett

— O que você está fazendo aqui? — O rosto de Astaire se


ilumina quando entro em sua sala de aula escura na segunda
à tarde. Ela mencionou antes que as crianças vão almoçar
das 11h às 11h25, com um recesso de vinte minutos depois,
e eu estava na área, então o horário funcionou.

— Eu estava na livraria na rua abaixo. — Coloco um


livro embrulhado para presente em sua mesa – um velho
favorito repleto da filosofia de Marco Aurélio. — Pensei em
tentar alcançá-la por alguns minutos.

— Obrigada. — Ela coloca a mão no livro, mas o deixa


embrulhado. — Você está ocupado hoje?

— Tentando.

— Você não foi ao escritório, não é? — Ela pergunta.

Eu bufo. — Claro que não.

Levantando-se, ela dá a volta em sua mesa e me envolve


em um de seus abraços suaves que são sua marca registrada.
Estou percebendo cada vez mais que tudo – e todos – ela
toca, ela trata como se fosse frágil, o único de seu tipo.

Minhas mãos apertam sua cintura. Eu a puxo para mim


e roubo um beijo. — Você vem hoje à noite?

Ela luta contra um sorriso. — Como você não está


cansado de mim ainda? Passamos o fim de semana inteiro
juntos...

— Tenho me feito exatamente essa mesma pergunta o


dia todo — digo. — Mas a oferta permanece.

— Eu estarei lá. — Ela me beija rapidamente e se afasta


quando um sino toca nos alto-falantes. — Minhas crianças
estão voltando do recreio. Obrigada pelo presente. Vou vê-lo
hoje à noite.

Volto para o carro que está esperando e digo a George


para me levar para casa.
Astaire

— Desculpe...

Estou no supermercado segunda-feira à noite, pegando


algumas coisas para o jantar antes de ir para a casa de
Bennett, quando alguém bate no meu ombro. Virando-me,
tento não engasgar com a forte inalação que me toma quando
percebo que estou cara a cara com o irmão de Bennett, Errol.

Há uma mulher ao lado dele. Alta e magra, feições


angulosas, cabelo castanho brilhante, lábios nus, uma franja
de cílios grossos e negros como carvão. Chique em todos os
sentidos da palavra.

— Você é amiga de Bennett, não é? — Ele pergunta. —


Acredito que nos conhecemos outra noite.

Seguro minha cesta de compras com força, com as duas


mãos.

— Eu sou Errol, irmão de Bennett. — Ele estende a mão


esguia. Eu coloco a minha mão na sua, mas apenas por
educação. — Esta é minha esposa, Beth.
Não sei muito sobre Errol e, se o visse na rua,
consideraria que ele é um cara normal. Vibrações Hipster.
Bem viajado. Beth poderia ser uma influenciadora do
Instagram com sua figura saudável e características
naturalmente agradáveis. Mas as palavras de Bennett tocam
no fundo da minha mente... ele disse especificamente que
não queria que Honor fosse para sua mãe ou irmão sob
nenhuma circunstância.

— E você é? — Errol pergunta.

— Astaire. — Ofereço meu nome apenas porque sou


completamente pega de surpresa, encurralada no fundo da
seção de hortifrutigranjeiros. — Foi bom ver você de novo.

Tento sair, mas eles estão essencialmente me


bloqueando.

— Vocês dois estão namorando? — Beth pergunta.

— Eu... perdão? — Eu tropeço em minhas palavras. Não


apenas sua pergunta saiu do campo esquerdo, mas eu não
saberia como responder se tentasse. Saímos em alguns
encontros. Temos saído um pouco. Mas ainda não falamos
sobre rótulos ou exclusividade.

— Errol disse que viu você saindo da casa de Bennett na


outra noite com a bolsa dele — ela diz com um encolher de
ombros casual. — Eu apenas presumi.

— Você está sempre presumindo, não é, querida? —


Errol ri, uma mão enfiada no bolso da calça jeans apertada.
— Errol e eu recentemente voltamos para Worthington
Heights — diz Beth. — Estamos dando um tempo em nossas
viagens e começando uma família... seria ótimo se nós quatro
pudéssemos jantar algum dia? Já faz uma eternidade desde
que Bennett teve uma namorada, e nunca é divertido ser a
terceira roda16...

Ela desliza o braço no do marido e lhe dá um sorriso de


nariz enrugado.

— Beth — diz Errol. — Você está colocando a pobre


mulher em saia justa.

Beth coloca a mão no meu braço. — Eu sinto muito. Eu


faço isso. Eu fico muito à frente de mim mesma. Espero não
estar incomodando você. Eu só... não passamos muito tempo
com Bennett atualmente, e seria bom ter uma desculpa para
nos atualizar.

Errol se inclina para mais perto de sua esposa.

— Deixe-a ir. — Seus olhos percorrem todo o meu corpo,


seu olhar é mordaz e julgador. — Pelo que sabemos, eles são
apenas... casuais.

Eu posso ler nas entrelinhas.

Ele acha que sou a chamada de sexo de Bennett.

— Eu sinto muito. Eu devo ir. — Eu limpo minha


garganta e dou um passo em direção a eles, tão perto que

16 Ser “a vela” em um encontro com um outro casal, como se estivesse sobrando.


eles não têm outra escolha a não ser sair do caminho, e eu
não perco tempo procurando o próximo caixa disponível.

Há algo estranho nesses dois.

Cinco minutos depois, estou colocando dois sacos de


mantimentos no banco de trás, verificando por cima do
ombro para ter certeza de que não estão prestes a me
encurralar no estacionamento, mas não estão em lugar
nenhum.

Exalando, entro no carro, fecho as portas e vou até a


casa de Bennett, verificando o retrovisor muitas vezes ao
longo do caminho.

— Você nunca vai adivinhar quem eu acabei de


encontrar. — Eu descarrego os mantimentos, alinhando os
produtos ao lado da pia de Bennett.

Ele levanta uma sobrancelha e encolhe os ombros. —


Quem?

— Seu irmão e sua esposa.

Bennett franze a testa. — Onde?

— No supermercado... eles me encurralaram com os


tomates. Foi a coisa mais estranha. Errol nos apresentou e,
em seguida, Beth começou falando sobre nós quatro fazendo
um encontro duplo e então seu irmão disse a ela para deixar
isso para lá e então olhou para mim como se eu fosse uma
peça secundária sua e...

— Por favor, me diga que você disse não a eles.

Eu lavo um tomate e seco com uma toalha próxima. —


Claro. Estranho eu ter topado com ele uma segunda vez em
uma semana, sabe? Quais são as hipóteses?

Ele fica quieto por um instante. — Eu sei que eles


acabaram de voltar para Worthington Heights, mas sim. É
definitivamente estranho.

— Ele está... me seguindo? — Em seguida, enxáguo um


pimentão verde. — Você fala sobre ele como se ele fosse um
monstro vilão... e a maneira como ele olha para mim...

Bennett dá a volta na ilha de mármore, vindo por trás de


mim e passando os braços em volta da minha barriga.
Pressionando sua boca contra o lado do meu pescoço, ele me
beija. E então ele diz: — Eu cuido dele.

Embora sua promessa seja reconfortante, também é


desconcertante que ele não negou exatamente que seu irmão
pudesse estar me seguindo.

— Eu gostaria de saber, no entanto — eu digo. — Ele é


perigoso?
— Eu disse a você, Astaire. — Ele beija meu pescoço
mais uma vez. — Eu cuido dele.

Um momento depois, ele desempacota a segunda sacola


de mantimentos, e eu pego uma faca da gaveta de talheres.
Honor vem neste fim de semana, e temos apenas mais
algumas noites como esta... sozinhos... E quero aproveitar
cada último minuto delas.

Vou sentir falta do nosso tempo solo juntos, mas tenho


certeza que se nos concentrarmos no positivo, toda a emoção
e a bondade acontecendo em nosso meio, as coisas só podem
melhorar a partir daqui.

Como elas não poderiam?


Bennett

Estou na metade do caminho na terça-feira quando


recebo uma mensagem do meu investigador: VERIFIQUE
SEU E-MAIL. ASSIM QUE POSSÍVEL.

Uma rápida olhada no meu relógio me diz que estou


quase atrasado. Astaire me pediu para encontrá-la neste
antigo teatro em que ela é voluntária. Ela queria me dar um
passeio particular porque é um de seus lugares favoritos no
mundo – seu santuário, como ela o chama.

Ela me disse para não ter esperanças, que não é nada


chique, mas o que faltou em exibicionismo, mais do que
compensou com sua rica história.

Toco no ícone do meu e-mail, no elevador até o saguão e


espero minha caixa de entrada ser atualizada. Um minuto
depois, estou deslizando para o banco de trás do meu SUV
enquanto George se dirige para a parte da cidade de Astaire.

Consigo localizar seu e-mail imprensado entre um e-


mail de toda a empresa anunciando donuts na sala de
conferências e alguns itens de spam que meu filtro não
detectou.

Há mais anexos do que posso contar, então começo pelo


primeiro.

Transcrições de mensagens de texto.

Páginas após páginas.

Todos eles enviados entre Larissa e Errol, todos eles


voltando anos – até o momento em que dei a ela este telefone,
na verdade. Ela tinha vinte anos, o que significa que
demoraria cerca de um ano para engravidar do filho de Errol.
Os anos anteriores não foram contados, mas a julgar pelo que
estou lendo aqui, seja o que for que seja isso... não era nada
novo.

A tensão percorre meus ombros e minha mandíbula


aperta enquanto eu leio mensagens aleatórias.

LARISSA: EI!! ESTOU NA CIDADE!! POSSO TE VER?

ERROL: SÓ SE VOCÊ FIZER AQUILO COM SUA


LÍNGUA NOVAMENTE...

Mais abaixo na página...

ERROL: BETH ESTÁ FORA DA CIDADE ESTE FIM DE


SEMANA. VOCÊ ESTÁ PRONTA PARA OUTRA MARATONA?
APOSTO QUE PODEMOS QUEBRAR O ÚLTIMO RECORDE.

LARISSA: PRECISO TRABALHAR. :-(


ERROL: VOU PAGAR A VOCÊ.

LARISSA: QUANTO...?

ERROL: CINQUENTA A FODA. SETENTA E CINCO SE


EU PUDER ACESSAR SEM CAMISINHA...

LARISSA: EU NÃO ESTOU NA PÍLULA MAIS.

ERROL: POR QUE NÃO PORRA?

LARISSA: $$$

Eu passo para a próxima página.

ERROL: ENVIE-ME ALGUMAS NOVAS FOTOS. ESTOU


ENTEDIADO COM AS VELHAS.

LARISSA: NÃO POSSO AGORA. TALVEZ MAIS TARDE?

ERROL: ???

LARISSA: DESCULPE.

ERROL: VOCÊ PODE ME LIGAR? VOCÊ SABE QUE EU


AMO QUANDO VOCÊ FALA SUJO PARA MIM.

LARISSA: AGORA NÃO. MAIS TARDE?

ERROL: QUAL É PORRA DO SEU PROBLEMA


ATUALMENTE?

ERROL: ENCONTROU OUTRA BUNDA PARA


PREENCHER TODAS AS SUAS FANTASIAS DO BIG
BROTHER?
ERROL: VOCÊ SABE QUE É QUENTE SÓ QUANDO É
VOCÊ E EU, PORQUE NÃO PRETENDEMOS FINGIR QUE
ESTÁ FODIDO. JÁ ESTÁ FODIDO...

ERROL: VENHA. ESTOU EM CASA. ESTOU


MORRENDO AQUI. HÁ DOIS MESES. POSSO FINGIR QUE
ELA É VOCÊ. TUDO QUE EU QUERO É VOCÊ, MAS NÃO É
O MESMO.

LARISSA: ESTOU NO TRABALHO AGORA. POR FAVOR,


PARE DE MANDAR MSG.

ERROL: QUE HORAS VOCÊ ESTÁ OFF?

ERROL: ???

LARISSA: 8 HORAS

ERROL: ESTOU RESERVANDO UM QUARTO PARA


NÓS. VOU ENVIAR A VOCÊ O NÚMERO MAIS TARDE.

LARISSA: ACHO QUE NÃO DEVEMOS FAZER ISSO


MAIS...

ERROL: POR QUE NÃO PORRA?

LARISSA: ESTOU GRÁVIDA.

ERROL: SIM. OK. TANTO FAZ. RI MUITO.

LARISSA: [FOTO]
ERROL: NA VERDADE, DEVO ACREDITAR QUE ESSE
É SEU TESTE DE GRAVIDEZ POSITIVO, E NÃO ALGUMA
FOTO QUE VOCÊ ROUBOU DE IMAGENS DO GOOGLE?

LARISSA: SIM...

ERROL: NÃO É MEU.

LARISSA: VOCÊ É O ÚNICO COM QUEM DORMI ESTE


ANO.

ERROL: ESTE ANO?! DEVO ME SENTIR ESPECIAL?


DEUS, VOCÊ É UMA PORRA DE VAGABUNDA.

ERROL: O BEBÊ PODE SER DE QUALQUER UM.

LARISSA: VOCÊ QUERIA ME FODER SEM CAMISINHA


DA ÚLTIMA VEZ, LEMBRA-SE? E VOCÊ PROMETEU QUE
PUXARIA E NÃO...

ERROL: SE LIVRE DISSO.

LARISSA: NUNCA.

ERROL: POR FAVOR, ME DIGA QUE NÃO ESTÁ


FALANDO SÉRIO.

LARISSA: SE VOCÊ NÃO VAI ME AJUDAR, SÓ DIGA.


NÃO TEREI ESCOLHA A NÃO SER PEDIR AJUDA À NOSSA
MÃE...

ERROL: SIM, CERTO. VOCÊ NÃO É TÃO IDIOTA.

ERROL: ???
ERROL: VOCÊ AINDA ESTÁ AÍ?

ERROL: O QUE, AGORA VOCÊ VAI APENAS ME


IGNORAR?

ERROL: LARISSA.

ERROL: SÉRIO, NÃO FALE COM A NOSSA MÃE. ELA


FARÁ ISSO DEZ VEZES PIOR PARA VOCÊ.

ERROL: LARISSA...

George faz o SUV parar lentamente em frente ao teatro


de Astaire. Eu engulo a queimadura de bile subindo pelo
fundo da minha garganta. Nem tenho certeza se consigo ler
as outras centenas de páginas de mensagens de texto, mas
algo me diz que são todas iguais.

É impossível saber há quanto tempo ele a estava


fodendo.

— Chegamos, Sr. Schoenbach. — George para no


estacionamento.

Astaire acena para mim da calçada, embrulhada em seu


lenço cor de neve e luvas, quicando nos seus tênis como se
ela estivesse prestes a me dar um passeio privado por sua
Disneylândia pessoal.

Eu deslizo meu telefone para longe – por enquanto, e


então eu forço as mensagens sujas e nojentas para o fundo
da minha mente. Vou aproveitar meu tempo com ela.
E quando eu terminar, vou arruinar aquele filho da
puta.
Astaire

— Ei! — Eu jogo meus braços em volta dele, e ele me


cumprimenta com um beijo distraído na bochecha. — Está
pronto?

Sacudo as chaves e o pego pela mão, conduzindo-o pelas


portas principais e parando na bilheteria de mogno.

— Essa é a bilheteria original de 1921. — Eu aponto. Ele


concorda. Ele está aqui apenas para me agradar, eu sei, mas
vou tentar manter as coisas leves e interessantes. Às vezes
tenho que me lembrar que nem todo mundo é viciado em
teatro...

— Este tapete. — Eu aponto para o chão. — Não é


original, mas é uma réplica. Nós o limpamos
profissionalmente a vapor uma vez por mês, mas está
chegando ao ponto em que provavelmente não aguentará
mais do que mais algumas limpezas...

Em seguida, levo-o ao bar – um número no estilo Art


Déco saído de um romance de F. Scott Fitzgerald.
— O bar em si é original, como você pode ver por todos
os cortes e arranhões que foram preenchidos ao longo dos
anos, mas o tampo de mármore preto foi adicionado há
alguns anos para fins de durabilidade e os bancos também
são novos.

Novamente ele acena. Finge interesse.

— Eu sinto muito. Isso deve ser extremamente chato


para você. — Eu estremeço. — Nós não temos que continuar.
Você quer comer alguma coisa em algum lugar?

— Não, não. — Ele aperta minha mão. — Não é chato.

— Você não está nisso de jeito nenhum. Eu posso dizer.


E tudo bem.

— Astaire, por favor. Continue. Continue o tour. — Ele


me dá outro beijo – um beijo igualmente distraído, só que
este pousa em meus lábios.

Ele está tentando me fazer sentir melhor?

Eu o conduzo pelo saguão. — O papel de parede aí?


Pintado à mão por uma artista local de Chicago dos anos 20 –
Geraldine Halliday. Ela era famosa naquela época. Conhecida
por usar folha de ouro real e passar horas e horas
misturando obsessivamente o verde 'deco' perfeito. De
qualquer forma, como você pode ver, está bem desbotado e
certamente já viu dias melhores, mas os proprietários não
conseguem derrubá-lo porque é praticamente uma obra de
arte inestimável. Além disso, você sabe, tiraria toda a coisa de
preservação que eles têm aqui. Eles só gostam de substituir
as coisas quando é absolutamente necessário. Se algo pode
ser restaurado, eles o restauram.

Seu olhar pinga sobre o papel de parede geométrico,


permanece no tapete de réplicas padronizadas e examina o
espaço vazio.

— Oh, eu tenho que mostrar a você as famosas


cadeiras... — Eu o puxo por um corredor diferente, para uma
vitrine iluminada exibindo duas cadeiras de teatro de
aparência comum. — Quando este teatro foi inaugurado em
1921, Douglas Fairbanks e Mary Pickford estavam na cidade.
Na época, eles eram o casal mais poderoso de Hollywood.
Pense em Brad e Angelina, mas nos anos vinte. De qualquer
forma, eles vieram aqui na noite de estreia para assistir à
estreia de The Idle Class de Charlie Chaplin, encontraram
alguns assentos no fundo e tentaram aproveitar o show sem
serem notados. Mas a notícia se espalhou e as pessoas
definitivamente notaram. Eles não conseguiram terminar o
show, mas os donos conseguiram entrar em contato com eles
no dia seguinte. Convidou-os para uma exibição privada. Eles
tinham todo o lugar só para eles. Posteriormente, os
proprietários retiraram as cadeiras da área geral de assentos
e, essencialmente, as consagraram. Tanto quanto se sabe,
nenhuma alma se sentou em qualquer uma dessas cadeiras
desde aquele dia.

Ele passa a mão pelo queixo. — Não sei quem são essas
pessoas, mas parece fascinante.
— Psh. — Eu dou uma cotovelada em seu lado. — Você
não os conhece ainda... mas fique comigo por tempo
suficiente e você vai.

A maioria das pessoas que organizam excursões


privadas a Elmhurst geralmente ficam entusiasmados com a
exibição de Fairbanks-Pickford – e geralmente é nossa peça
de resistência, melhor deixar para o final.

— Ok, agora temos a varanda, nos bastidores... — Eu


divago em voz alta. — Vestiários...

— Eu pensei que isso fosse um cinema.

— Funciona como ambos. Temos um palco e também


uma tela que desce. Embora eu não ache que eles tenham
mostrado um filme aqui em vinte anos. Eles não foram
capazes de atualizar o equipamento de projeção. Fundos
insuficientes. Então agora o lugar é alugado principalmente
para palestras, recepções de casamento, eventos privados. É
triste, mas acho que é melhor do que deixá-lo cair e
desmoronar.

— Eu suponho.

— Se eu tivesse todo o dinheiro do mundo, restauraria


este lugar à sua glória anterior e, então, faria exibições
semanais dos clássicos. Você pode imaginar assistir Citizen
Kane ou Key Largo em um lugar como este? Exatamente
como era desfrutado uma vida atrás? Uma verdadeira
experiência de teatro... — Eu o levo para os camarins em
seguida. Eles são escuros e lotados, não tão glamourosos
quanto a maioria das pessoas espera quando vêm aqui, mas
ainda assim uma parte essencial deste estabelecimento.

Terminamos a turnê na varanda, com vista para o palco


com suas ricas cortinas de veludo e sua franja dourada
sedosa.

— Tanta história aqui — eu digo, deslizando meu braço


em volta de suas costas e encostando em seu braço. — Tanta
beleza. Juro que encontro algo novo para apreciar sempre
que venho aqui.

— Com que frequência você vem aqui? — Ele olha para


baixo.

— Eles têm cerca de dez ou quinze voluntários no


momento. Normalmente ajudamos na limpeza e manutenção.
Eles enviam e-mails quando precisam que entremos. Às vezes
é uma vez por semana, às vezes menos. — Eu suspiro. — Os
proprietários estão falando em vender o lugar. Só espero que
caía nas mãos certas. Parece que estão demolindo marcos
históricos e substituindo-os por prédios de apartamentos. Eu
entendo que a área está crescendo loucamente e as pessoas
precisam de moradia, mas não consigo me imaginar dirigindo
pela Worth Avenue e não ver a icônica marquise de Elmhurst
iluminando as calçadas à noite. Enfim... estou entediando
você?

— De modo nenhum. — Ele pressiona um beijo na


minha testa.
Meu estômago ronca. Não como desde as onze de hoje.
Vim direto aqui depois do trabalho. — Você está com fome?

Bennett se vira para mim, seus frios olhos azuis se


estreitaram em um estremecimento de desculpas. — Eu sinto
muito, Astaire. Algo aconteceu esta tarde. Receio ter que
encurtar isso.

Isso explica sua distração esta noite.

Eu empurro um pequeno sorriso para mascarar minha


decepção. — Não se preocupe.

Nós descemos a escada estreita, em direção ao saguão.


Eu preparo minhas chaves para trancar atrás de nós. Uma
rápida olhada pela janela mostra George parando na frente,
luzes de emergência piscando, como se ele nunca tivesse
saído.

Bennett tinha toda a intenção de fazer dessa uma


parada rápida.

— Tudo certo? — Eu pergunto enquanto abro a


fechadura e verifico a maçaneta.

Uma sugestão de uma careta revela seu belo rosto. — É


complicado.

— Posso ajudar em alguma coisa?

Ele mal olha para mim. Não posso deixar de me


perguntar se devo levar isso para o lado pessoal...
Talvez uma ex voltou em cena?

Talvez ele esteja tendo dúvidas?

Talvez minha turnê pelo teatro o entedie até as lágrimas


e demonstre como nossos interesses são diferentes?

— Você quer falar sobre isso? — Tento manter minha


pergunta leve, evitando tons que possam sugerir que estou
me sentindo confusa com tudo isso.

— Não há nada para falar. É apenas algo que preciso


lidar, e quanto mais cedo eu lidar com isso, melhor.

Eu acalmo meus pensamentos.

Não parece que isso seja sobre mim...

Só que não dói menos saber que ele não se sente


confortável se abrindo para mim sobre isso depois de tudo.

— Estou estacionada na parte de trás — digo a ele


enquanto ele olha para seu SUV. — Eu acho... me liga
depois?

— Claro. — Ele segura meu rosto com a mão, me dá um


beijo lento, este um pouco menos apressado do que os dois
últimos. — Vou compensar você, Astaire. Eu prometo.

Com isso, ele se foi.


Bennett

— Bennett, só queria confirmar se a Srta. Carraro


assinou os papéis da tutela, — disse meu advogado, James
Paulson, por telefone.

Eu odeio deixar Astaire como eu fiz, mas com aquelas


mensagens de texto fervilhando em minha caixa de entrada e
a ameaça de meu irmão se intrometer na situação de Honor,
eu preciso chegar à frente do jogo aqui, o que significa
conhecer possíveis contratempos antes que eles aconteçam.

— Gostaria de saber — eu digo. — O que aconteceria se


o pai biológico de Honor de repente aparecesse na foto e
quisesse a custódia?

James pigarreou. — Ele renunciou a seus direitos


parentais antes?

— Para os fins deste cenário, digamos que ele não sabia


que ela existia...

— Se ele realmente não sabia da existência dela e queria


ser um pai com a custódia, ele teria a oportunidade de
pressionar por isso, sim. Isso envolveria petições aos
tribunais, processos de custódia, os trabalhos. Por quê? Você
acha que isso se tornará um problema? — Ele pergunta.

— Espero que não.

— Posso dar o nome de um cara... Ele lida com o direito


da família e ele tem muito mais prática nessa área do que eu.
Mas devo dizer que casos como esse podem ficar caros e feios,
e se você não for o pai biológico, pode estar diante de uma
batalha difícil e perdida. Na maioria das circunstâncias, o
sangue quase sempre vence no tribunal de família, impedindo
o abuso, o vício em drogas e assim por diante.

Eu permaneço na porta do futuro quarto de Honor,


absorvendo a abundância de rosa e branco e fofura.

Tanta coisa está mudando, tão rápido.

— Quer que eu envie um e-mail com o nome do cara? —


James pergunta.

— Certo. — Eu termino a ligação e dou uma última


olhada ao redor do quarto de Honor antes de fechar a porta.

A conversa de Astaire sobre redefinir o que significa ser


uma família, ter nossas próprias tradições e ser um trio
muito unido estava começando a soar muito boa para ser
verdade, mesmo que eu nunca tenha revelado.

Suponho que seja da natureza humana querer pertencer


a algo... a alguém. Para saber o seu lugar no mundo. Ter
aquela pessoa ou poucas pessoas que estarão lá para você
incondicionalmente, não importa o quê.

Estamos tão perto...

E agora há uma boa chance de meu irmão estragar


tudo.

Para mim. Para Astaire. Para Honor.

Fecho a porta dela, vou para o meu escritório e imprimo


as mensagens de texto – centenas de páginas quentes com
cheiro de tinta cuspidas uma após a outra. Quando termino,
seguro-os com um clipe de fichário e os coloco no canto da
minha mesa.

Não me importo em chantagear o bastardo – não se isso


significa manter nós três juntos.
Astaire

Estou em uma cafeteria na quarta-feira depois da


escola, meu laptop e meu caderno de notas espalhados por
uma mesa nos fundos, quando sinto o peso familiar de um
olhar desconhecido.

— Astaire, certo?

Eu olho para cima, apenas para encontrar o sorriso


excessivamente amigável de Beth Schoenbach.

— Eu pensei que fosse você. — Ela acena com a mão


bem cuidada e se aproxima. — Tão louco encontrando você
de novo... você vem sempre aqui?

Ela desliza na minha frente, um pequeno copo de papel


de café na mão.

— Ainda estamos nos orientando por aqui. Muita coisa


mudou desde a última vez que vivemos aqui. É como uma
cidade completamente diferente. — Beth bebe seu café,
deixando uma impressão quase imperceptível de batom nude
na borda. Ela está com leggings pretas justas, Adidas, e uma
jaqueta jeans clara, pronta para uma foto rápida do
Instagram se o momento exigir, eu imagino.

Eu verifiquei seu perfil na outra noite. Eu não conseguia


dormir, mas também fiquei curiosa depois de conhecê-la no
supermercado. Ela parecia tão amigável, tão benigna. Como
alguém assim poderia ter um casamento tão feliz com alguém
supostamente mau como Errol? Mas seu perfil na mídia
social os pinta como qualquer outro casal atraente, de classe
média alta, sem filhos e que vive no mercado de luxo, com o
mundo na ponta dos dedos.

Percebo que eles e seus cães parecem felizes como


mariscos no Instagram e no Facebook, mas os dois pareciam
além de felizes. Incrivelmente felizes. Invejavelmente felizes...

E Bennett anda por aí como se houvesse uma nuvem de


chuva sobre sua cabeça na metade do tempo. Ele está
melhorando, mas ainda assim. É assim que ele é. Não posso
deixar de me perguntar se há uma corrente de ciúme entre os
irmãos? Será que Errol tem o que Bennett sempre quis...
Contentamento?

— Sinto muito pelo meu marido na outra noite. — Ela se


inclina, meio revirando os olhos, meio rindo. — Ele acha
estranho como sou amigável com pessoas que nem conheço,
então às vezes tenta me conter. Mas ele está na academia
pela próxima hora, então podemos conversar.
Ela bate com a mão esquerda, pisca e pega o café, a
pedra brilhante em seu dedo anular captando a luz
incandescente acima, a ponto de distraí-la.

Beth segue meu olhar, oferecendo um sorriso humilde.


— Então, você e Bennett... vocês dois estão ficando sério?

Eu tento o meu melhor para espiar ao redor da sala sem


deixar isso óbvio, pensando na outra noite quando perguntei
a Bennett se Errol era capaz de me seguir e ele não negou
exatamente.

— Hum, nós temos passado um tempo juntos — eu


escolho minhas palavras com cuidado.

— Fico feliz em ouvir isso. — Ela concorda. — Já faz


muito tempo que Benny não tinha nada estável. Espero que
ele esteja sendo bom com você...

— Por que ele não estaria?

Ela encolhe um ombro ossudo. — Bennett... ele é


complicado. Temperamental. Defensivo. Pude ver como
alguns de seus outros relacionamentos acabaram, e nunca foi
bonito. Os homens Schoenbach são notoriamente...
intrincados. Emocionalmente, é assim que eles são.

Eu bebo meu chá. — Ok...

— Eles não são como a maioria dos caras, — ela


continua. — Eles vão arruinar você. Eles vão arruinar você
para qualquer outra pessoa. Um dia você acorda e percebe
que está condenada se ficar e está condenada se for...

Ela olha para o lado e, por um momento, hesito em dizer


qualquer coisa porque acho que ela está prestes a derramar
uma lágrima.

Mas o momento passa.

— Desculpe — ela diz. — Eu não quero ficar


emocionada. Só estou passando por muita coisa...

Sei que é melhor não manter a conversa mais profunda,


mas também tenho um coração.

— Tenho certeza de que seja o que for... vai passar —


digo a ela, envolvendo-me o menos possível, enquanto ainda
consigo ser simpática.

— Eu não sei. — Ela suspira, virando-se para olhar pela


janela ao nosso lado. — Errol e eu devemos adotar um bebê
em alguns meses. Mudamos de volta para cá para ficar perto
da família e Bennett não quer nada conosco – o que me deixa
boquiaberta, porque sei que ele e o irmão tiveram diferenças
ao longo dos anos, mas ainda são família. E você pensaria
que agora que ele vai adotar sua filha e nós vamos ter nosso
filho, ele deixaria tudo de lado...

— ...espera. Eu sinto muito. Recapitule. Você disse que


Bennett vai adotar a filha dele. Você quer dizer a sobrinha
dele?
— Não. Filha dele, — ela pisca e se endireita. — Quero
dizer, tecnicamente ela é as duas coisas.

Eu aperto os olhos por cima da mesa. — Eu não


entendo.

Por uma fração de segundo, imagino o rosto de Honor ao


lado do de Bennett e percebo agora que não é improvável.
Eles compartilham o mesmo cabelo escuro, os mesmos olhos
cristalinos.

Oh meu Deus.

Ele ficava dizendo que não tinha ideia de por que ela
deixaria sua filha com ele... mas se ele é o pai, faz todo o
sentido.

— Ele não disse que está adotando uma menina? — Ela


pergunta, batendo os cílios.

— Não. Ele disse. Mas ele disse que era sua sobrinha...
Ele nunca disse que era sua filha. — Eu bato a tampa do meu
laptop e fecho meus livros de notas, e então eu guardo
minhas coisas.

— Oh, Jesus. Eu sinto muito. Eu falei demais. Você está


claramente chateada. — Ela coloca a mão sobre o meu
computador, como se isso pudesse me impedir. — Astaire,
sinto muito.

Eu aceno minha mão e deslizo meu laptop debaixo dela.


— Está bem. Você não tem nada pelo que se desculpar. Isso
é... extremamente bom saber. Mas eu tenho um lugar para ir,
então...

Ela desliza para fora da cabine, remexendo-se e


mordendo o lábio inferior enquanto me observa recolher
minhas coisas.

Quase não chego ao carro sem vomitar em uma lata de


lixo na calçada.

O pensamento de Larissa – uma também criança adotiva


– sendo adotada por esta família privilegiada apenas para ser
manipulada, aproveitada, usada de forma tão nojenta pelas
pessoas que deveriam amá-la...

Um milhão de pensamentos gritam na minha cabeça no


caminho para sua casa – nenhum deles é gentil.

Quando chego à sua porta, não tenho nenhuma


lembrança de como cheguei aqui. Apenas uma mente
preenchida com o tipo de palavras que você reserva para um
monstro.

Com o punho cerrado, bato em sua porta – apenas para


vê-la abrir pela metade na primeira batida.

Eu dou um passo para trás.

Ele nunca deixa sua porta destrancada. Certamente


nunca a deixa aberta.
— Bennett? — Eu grito antes de abrir mais a porta. Só
que não vai abrir mais. E quando eu espreito minha cabeça,
eu o encontro deitado no chão – inconsciente.

Eu me espremo pela abertura e caio no chão, verificando


seu pulso. Está fraco, mas está lá. Seu peito sobe e desce
com cada respiração lenta. Ele deve ter desmaiado.

Tirando meu telefone da bolsa, ligo para o 9-1-1. Eles


ficam na linha comigo até os paramédicos chegarem e,
quando perguntam se eu gostaria de ir junto, hesito antes de
finalmente concordar.

Um pedaço de mim acredita que Beth estava mentindo.


E tudo em mim quer dar a ele o benefício da dúvida. Até eu
falar com ele, até chegar a seu lado, não posso abandoná-lo.

Assim não.

Mas também não consigo olhar para ele sem me


perguntar... e se for verdade?
Bennett

— Não gosto do seu ECG. E esses números... isso não é


o que eu esperava ver depois daquela rodada de esteroides. —
A Dra. Rathburn folheia meu prontuário, estalando a língua,
os lábios finos franzidos. — Você está pegando leve, certo?
Sem trabalho? Sem se empurrar? Minimizando o estresse?

— Sim. — Falo com a médica, mas minha atenção está


fixada em Astaire. Sentada em uma cadeira de hóspedes no
canto da sala, ela mordiscou as unhas, mal conseguindo
olhar para mim. Na verdade, eu não acho que ela disse mais
do que um punhado de palavras desde que acordei.

Não creio que foi fácil para ela voltar para casa e me
encontrar desmaiado na porta. Honestamente, não me
lembro o que estava fazendo quando aconteceu, mas pelo
menos tive o bom senso de destrancar o lugar para que
alguém pudesse me encontrar. Minha faxineira é a única com
uma chave e ela vem às sextas-feiras...

— Vou fazer mais alguns testes, Bennett — diz a


médica, colocando a mão em meu ombro. — Nós vamos
descobrir isso. Colocar você de volta em operação. Alguma
pergunta?

— Não. Obrigado, doutora. — Lanço outro olhar para


Astaire, seu joelho quicando.

Eu nunca a vi tão... agitada.

Ela está tendo dúvidas. Tem que ser. Deus sabe que sua
vida não foi nada além de tragédia após tragédia – por que ela
deveria se acorrentar a mais uma?

— Se você está tendo dúvidas — digo quando finalmente


estamos sozinhos — não vou culpar você.

Seu joelho para e seus olhos do oceano piscam em


minha direção. — O quê?

— Me desculpe se isso te assustou. Se você não quiser


mais fazer isso, estou lhe dando uma chance.

— O quê? Não. — Ela diz. Mas seu tom está longe de ser
convincente. O que quer que esteja em sua mente, ela não vai
tocar no assunto agora, não quando me vir neste estado
frágil...

— Ei, você se importaria de correr até minha casa e


pegar algumas coisas para mim? — Eu pergunto. — Por um
lado, eu não acho que tenho meu telefone. Pegue um
carregador também. Uma muda de roupa. Minha necessaire.

Astaire pula da cadeira, assentindo. — Sim. Claro. Volto


em breve.
Ela não pode sair daqui rápido o suficiente.
Astaire

Eu dobro suas roupas e coloco-as no fundo da sua


mochila antes de pegar sua necessaire. Minha conversa com
Beth está girando em minha cabeça desde esta tarde, e não
consegui dizer mais do que algumas palavras para Bennett
no hospital – não que houvesse tempo para conversar.

Tudo aconteceu tão rápido.

E ele ficava entrando e saindo da sala por horas a fio.

São 23 horas e, no entanto, é como se eu piscasse meus


olhos e as últimas horas tivessem acontecido.

Honor ainda está marcada para vir este sábado. Até


agora ele não mencionou nada sobre atrasar isso, e eu nem
sei se ele poderia se quisesse. Independentemente de quando
tivermos nossa conversa, pretendo ajudar em cada etapa do
caminho. Quero que esta seja uma ocasião memorável para
ela, nada além de sorrisos e abraços de boas-vindas.

Fecho o zíper da bolsa e a arrasto pelo corredor,


parando quando passo pela porta aberta de seu escritório e
localizo seu telefone preto brilhante virado para cima no
centro de sua mesa.

O quarto é imaculado, revestido de couro e madeira


polida na cor de ébano. Acentos de latão. Arandelas antigas
douradas. Vistas deslumbrantes da cidade que rivalizam com
as de sua sala de estar. Sua biblioteca pessoal abrange o
comprimento e a largura de duas paredes, e eu levo um
momento rápido para examinar as seleções – a maioria não-
ficção, uma abundância de filosofia grega antiga. Você pode
dizer muito sobre um homem pelo que ele lê, e sua coleção
pinta um quadro vívido de um homem obcecado por
contemplações.

Quando termino, pego seu telefone, que está em cima de


uma pilha presa com fichário do que parecem ser impressões
de mensagens de texto.

Não quero ler a primeira linha, mas meus olhos


acidentalmente a examinam antes mesmo de perceber o que
estou olhando, e é tão terrível que não posso deixar de ler a
próxima... e a próxima... e a próxima.

Minha respiração engata. Meu estômago cai no chão.


Com o coração na garganta, folheio as primeiras páginas,
meu autocontrole sequestrado pelo redemoinho nojento de
curiosidade sórdida em minha barriga.

Cada página é pior do que a anterior.

Vil. Sujo. Mensagens nojentas.


Linguagem abusiva e controladora.

Assédio.

Imagens explícitas e comprometedoras que enviam calor


às minhas bochechas.

E então a gravidez.

Seguido de chantagem.

Ameaças.

Silêncio.

Eu coloco a pilha de volta onde a encontrei, lutando


contra uma onda de náusea, não que haja algo sobrando no
meu estômago de qualquer maneira.

Se essas mensagens são entre Bennett e Larissa... então


tudo que Beth disse era verdade.

Honor é filha de Bennett.

E Bennett é um monstro.
Bennett

Quando Astaire retorna, ela coloca minha bolsa em uma


cadeira sobressalente e entrega meu telefone e carregador.
Ela não diz uma palavra. Os arranhões silenciosos de seus
tênis contra o chão de ladrilhos. O zíper de sua bolsa. As
exalações pesadas vindas de sua direção.

Algo está errado.

— Astaire — eu digo.

— Mm hm?

— Tudo está certo?

Seus braços se cruzam – uma postura defensiva. —


Claro.

— Dizem que é apenas uma inflamação. Outra rodada


de esteroides e eu devo estar pronto para ir. Eles podem me
testar em um ciclo de remédios antirrejeição diferentes. —
Tento acalmar suas preocupações, mas ela balança a cabeça
muito rapidamente, como se ela nem estivesse ouvindo.
— Isso é bom. — Ela mastiga a parte interna do lábio.

— Eu devo estar em casa na sexta-feira com certeza.


Então posso deixar tudo pronto para a chegada de Honor.
Você disse que devíamos pegar os balões dela, certo? E um
ursinho de pelúcia?

— Eu cuido de tudo.

O relógio da TV marca 23h38. Está tarde. Ela está


exausta. Essas últimas horas foram tão desgastantes para ela
quanto foram para mim, eu imagino.

— Eu sei que isso é muito para você. — Eu pego sua


mão e a puxo para mais perto.

Quando ela finalmente me olha nos olhos, me deparo


com algo que nunca vi nos olhos dela antes – medo.

Talvez quando ela me vê, ela pense em como perdeu sua


mãe. Perdeu Trevor. Talvez isso esteja se tornando muito real
para ela, muito rápido, e ela está finalmente começando a
pensar sobre isso.

— Tudo vai ficar bem — digo a ela. — Agora vá para


casa, descanse um pouco. Conversaremos amanhã.

— Tem certeza disso?

Eu aceno para ela. — Sim. Não se preocupe comigo.

Eu me acomodo de volta na minha cama, bem acordado


e olhando para a tela de TV em branco do outro lado do
quarto. Pelo canto do olho, eu a pego olhando para mim antes
de ir. Ela está a dez metros de distância, mas pode muito
bem haver um oceano entre nós.

Ela está se afastando.

E não posso culpá-la por isso.


Astaire

— Astaire, precisamos conversar.

Estou arrumando flores em um vaso de cristal em sua


ilha na sexta à noite, quando ele diz as palavras que tenho
vontade de dizer desde duas noites atrás. Um balão rosa de
"bem-vinda ao lar" flutua entre nós, preso por um saco de
areia embrulhado em celofane combinando. Um ursinho de
pelúcia cinza sorridente com um medalhão de platina com
monograma em volta do pescoço completa a exibição de boas-
vindas.

Estamos prontos para ela amanhã.

— Ok. — Eu dou a ele toda a minha atenção, firmando


minhas mãos trêmulas em meus quadris. — E aí?

Ele me estuda. — Diga-me você. Você tem agido de


forma estranha desde o hospital.

Todas as palavras correm para frente ao mesmo tempo,


nenhuma delas encontrando o caminho para fora. A Dra.
Rathburn enfatizou a importância de mantê-lo calmo e
relaxado – temo que isso possa incitá-lo.

— Honor é... sua filha? — Eu deixo escapar a pergunta


mais estranha e cruel que nunca sonhei que faria a este
homem.

— O quê? — Ele respira fundo. — Astaire... por que


você... o que faz você...

Não tenho certeza se ele está pasmo ou tentando ganhar


tempo enquanto apresenta uma explicação.

— Encontrei Beth na quarta-feira — digo. — Ela me


contou tudo.

Seus lábios se torcem em um sorriso divertido e o alívio


pinta seu rosto esculpido. — Oh Deus. Ok. Sim. Isso explica
tudo.

Eu cruzo meus braços.

— O que ela te disse exatamente? — Ele pergunta.

— Que Honor é sua filha e é por isso que Larissa a


deixou com você — eu digo. — E eu tenho que dizer, Bennett,
a semelhança é incrível quando eu penso sobre isso. Ela é
sua imagem esculpida.

Seu sorriso divertido desaparece e ele apoia as mãos


contra o balcão. — Beth está parcialmente correta. Honor é
uma Schoenbach. Mas ela não é minha... ela é de Errol.
— Conveniente.

Seus olhos brilham, segurando os meus. — Pela minha


vida, Astaire. Pela porra da minha vida. No coração que bate
no meu peito. Eu não sou o pai biológico dela.

Ele contorna a ilha, tira minhas mãos trêmulas do meu


corpo trêmulo e as segura nas suas.

— Olhe para mim. — Ele fala com os dentes cerrados,


embora suas palavras sejam calmas.

No instante em que meu olhar encontra o dele, a energia


entre nós se inflama, embora com o quê, eu não posso ter
certeza. Só sei que poderia cortar, é tão grosso.

Eu quero acreditar nele, eu quero.

Mas as palavras são apenas isso.

Palavras.

— Eu vi as transcrições das mensagens de texto. — Eu


engulo o nó na minha garganta. — Quando eu estava
pegando o seu telefone no seu escritório... eu as vi. Elas
estavam em cima da sua mesa.

— Meu Deus... essas mensagens não eram entre mim e


Larissa se é isso que você quer chegar. — Ele passa as mãos
pelos cabelos. — Jesus Cristo. Você honestamente acredita
que eu seria capaz de algo tão cruel? Tão vil?

Não respondo por quê... não sei.


No final do dia, tudo isso é tão novo e podemos muito
bem-estar um degrau acima dos estranhos.

Até que ponto uma pessoa pode conhecer outra pessoa?

— Você me conhece melhor do que isso — diz ele. —


Honestamente, você me conhece melhor do que ninguém
neste momento. Eu disse a você coisas que nunca disse a
ninguém. Passei mais tempo com você nas últimas seis
semanas do que com qualquer mulher nos últimos seis anos.

— Eu quero acreditar em você, Bennett. Eu quero. Mas


vai demorar mais do que isso...

Ele está andando agora.

— Você me disse que você e Larissa nunca foram


próximos — eu digo.

— Certo.

— Então, por que ela deixaria a filha para você?

— Pergunta de um milhão de dólares. — Ele para de


andar, os braços cruzados. — Tenho me perguntado a mesma
coisa nas últimas semanas.

— Não, quero dizer... de uma perspectiva lógica, parece


que... ela deixaria Honor para você porquê... ela é sua.

Seus olhos se estreitam. — Nada que Larissa fez era


lógico. Ainda estou tentando descobrir o que diabos ela
estava pensando transando com Errol. Nada disso faz
sentido. A única coisa que consigo pensar é que o bastardo a
estava manipulando. Sabia que ela era vulnerável. Usou isso
a seu favor.

Ele se inclina sobre a ilha, os punhos cerrados, a


mandíbula cerrada.

— Suponho que você não leu a transcrição inteira,


porque se tivesse lido, você teria visto vários casos em que
Errol fez referência a Beth — diz Bennett.

Eu expiro.

Ele tem razão. Eu não li todos eles.

Eu só li o suficiente para perceber o que eram, e então


dei o fora de lá antes de ficar doente de novo.

— Como você conseguiu essas mensagens? — Eu


pergunto.

— Quando Larissa tinha vinte anos, comprei um


telefone celular para ela. Ela estava sempre se metendo em
problemas, nunca poderia pagar a conta daquele que tinha.
Eu queria ter certeza de que ela sempre teria uma maneira de
entrar em contato comigo, não importa o que acontecesse,
que ela tinha um telefone que nunca seria desligado. — Ele
faz uma pausa. — Eu parei de pagar a fiança depois de um
tempo. Parei de atender suas ligações. Mas continuei
pagando a conta. — Ele faz uma pausa. — Demorou um
pouco, mas conseguimos que a operadora desenterrasse
mensagens de vários anos entre Larissa e Errol.
— Então, por que você as tem?

— Porque minha mãe está ameaçando fazer meu irmão


abrir um processo de paternidade.

— Seu irmão quer a custódia?

— Ele quer a custódia legal – que ele então abrirá mão


para que ela volte para o sistema. — Ele balança a cabeça. —
Para eles, Honor é uma marca negra no nome de nossa
família. Uma mancha humana. Eles querem fingir que ela
não existe. Eu a adotando os impede de fazer isso.

— Ele não pode fazer isso, pode? — Eu pergunto. — Ele


não pode simplesmente... intervir e assumir depois de todo
esse tempo.

— Falei com meu advogado. Ele parecia pensar que as


chances estavam contra mim nisto — diz ele. — É por isso
que tenho as transcrições. Tenho provas de que Errol sabia
da existência de Honor e deixou claro que não queria nada
com ela. Também pinta um quadro bastante vívido da
dinâmica abusiva de seu relacionamento. Se você pode
chamar assim.

— Então... por que Beth acha que Honor é sua?

— Beth está sendo manipulada. Errol e minha mãe a


convenceram de que Honor é minha porque ela claramente se
parece com uma Schoenbach e se ela soubesse a verdade, o
casamento deles acabaria e eles perderiam o bebê que estão
adotando. Muito em jogo.
— Ela não iria se perguntar por que ele está requerendo
a custódia?

— Eles a manteriam fora do caminho. Não é difícil.


Mentir é o que minha mãe e Errol fazem de melhor. Eles
chegaram a uma arte.

— Talvez ela já saiba.

— O que você quer dizer? — Ele pergunta.

— Ela fez este comentário... que os homens de


Schoenbach arruínam suas mulheres. Algo sobre como ela
não pode ficar, mas não pode ir embora. E então ela ficou
toda emocionada.

Ele revira os olhos. — Beth tem um gosto pelas coisas


boas da vida. Errol é o seu bilhete para isso. Não descarto a
chance de ela saber de seu modo mulherengo. Duvido muito
que Larissa tenha sido a primeira mulher com quem ele fodeu
sem ser sua esposa... E ele está implorando para começar
uma família há anos. Beth não quer filhos. Mas ela quer
continuar sendo uma Schoenbach. Ela ficará muito triste se
ficar e miserável se ela for embora.

— Todas essas coisas teriam sido boas de saber...

Seus lábios se pressionam. — Eu estava tentando


mantê-la fora disso. Poupar você do meu drama familiar.

Eu arrasto uma respiração irregular e me aproximo dele.


Levantando minha mão, coloco do lado de sua bochecha.
Meu instinto está me dizendo para acreditar nele. Meu
coração também.

— Vou fazer um teste de DNA — ele oferece. — Farei o


que for preciso para que você acredite em mim. Eu nunca...

Eu o silencio com um beijo lento. — Eu sei.

Envolvendo meus braços sobre seus ombros largos, eu o


puxo contra mim e o seguro.

Às vezes, tudo que você pode fazer por alguém é estar


presente.

— Eu não vou deixar que ele a leve — ele sussurra.

— Eu sei que você não vai.

— E quando isso acabar, eu vou matá-lo. Eu vou matar


aquele bastardo.

Eu sorrio. — Não, você não vai.

— Quando eu terminar, ele vai desejar estar morto.


Bennett

— Eu corri para comprar donuts. Rosa com granulado


branco. — Astaire equilibra uma caixa de papelão na mão, no
sábado de manhã antes de colocá-la ao lado do buquê de
flores.

Jeannie chegará com Honor a qualquer minuto.

— Flores. Balões. Donuts. Acho que está tudo pronto. —


Beijo sua bochecha antes de preparar uma xícara de café. —
Mas algo me diz que o que ela mais vai amar... é você.

Honor não faz ideia de que Astaire e eu estamos


namorando.

Queríamos esperar até que fôssemos só nós três, sentá-


la, explicar que somos bons amigos que passam muito tempo
juntos. Por enquanto, eu pensei que era imperativo que ela
estivesse aqui neste momento. Ter um rosto familiar – alguém
que ela adora – só vai enriquecer essa experiência para ela.

Três batidas na porta.


— Elas estão aqui. — Astaire se levanta na ponta dos
pés e me dá um abraço rápido como um raio antes de deslizar
sua mão na minha e me levar para o saguão. — Isso é tão
emocionante. Já estou com os olhos marejados...

Eu sorrio baixinho, respiro fundo e abro a porta.

— Olá, olá... — A boca de Jeannie se curva em um


sorriso reservado, mas seus olhos estão vidrados. Todo esse
tempo, eu nunca parei para pensar em como este momento
deve ser agridoce para ela, sabendo que ela provavelmente
nunca verá essa criança novamente. Ela segura uma caixa de
papelão média, e Honor se esconde atrás dela, brincando de
esconde-esconde e lutando contra um sorriso.

— Por favor, entre. — Eu me afasto e Honor gira em


torno das pernas de Jeannie e corre em minha direção,
envolvendo minhas pernas em um pequeno aperto, que sinto
todo o caminho até o meu peito.

Jeannie coloca a caixa no chão ao lado do tapete da


entrada. Pelo que posso ver, contém algumas roupas. Um
ursinho de pelúcia esfarrapado com um olho pendurado.
Uma boneca nua. E uma caixa de joias de plástico.

— Srta. Carraro! — Honor grita, embora ela ainda esteja


grudada em mim como cola. — O que você está fazendo aqui?

— Eu queria fazer parte do seu dia especial — diz ela.

— Yay! — Honor se alegra.


— Oi, Jeannie. Sou Astaire Carraro. Professora de
jardim de infância de Honor e uma boa amiga de Bennett. —
Astaire cumprimenta Jeannie com um aperto de mão. —
Prazer em conhecê-la.

— Você também — diz Jeannie.

— Temos donuts se você estiver com fome. — Astaire


aponta para a cozinha.

Honor ainda está agarrada à minha perna. Quando


Larissa veio até nós, lembro-me de como ela se apegava a
qualquer um que a deixasse se apegar a eles. Ela era como
uma sombra. Sempre lá. Por um tempo, fui eu. Então foi o
jardineiro. O cozinheiro. Meu irmão. Qualquer um que
prestasse atenção nela, de repente, era seu novo melhor
amigo.

Só quando eu era muito mais velho percebi que tudo o


que ela queria era ser amada.

Alcançando, eu pego Honor pela mão. — Espero que


você esteja com fome. Jeannie, gostaria de se juntar a nós no
café da manhã?

Ela dá um tapa na mão. Percebo agora que ela está


lutando contra as lágrimas. — Eu não vou ficar, mas
obrigada. E você tem meu número, caso tenha dúvidas ou
precise de alguma coisa.

Jeannie se vai. Bem desse jeito. E assim, somos nós


três.
O lugar fica quieto por um momento, como se o mundo
estivesse mudando seu eixo, realinhando-se em uma nova
direção. A partir deste momento, nossas vidas nunca mais
serão as mesmas.

Honor.

Astaire.

Eu.

Ninguém sabe o que o futuro traz. Não é possível. Tudo


que sei é que, enquanto tivermos um ao outro, podemos
resistir a qualquer tempestade.
Astaire

— Me empurre mais alto! — Honor grita com toda a


força de seus pulmões na tarde de domingo, bombeando suas
perninhas enquanto ela balança. Está incomumente quente
para esta época do ano – ensolarado o que significava que era
a oportunidade perfeita para sair um pouco e tomar um
pouco de ar fresco. Acontece que há um pequeno parque
adorável a alguns quarteirões da casa de Bennett.

Ontem foi um sonho. A chegada de Honor aconteceu


sem problemas. Ela amou seu urso, seu medalhão, as flores,
os donuts, os balões, seu quarto rosa – mas acima de tudo,
ela amava Bennett.

Ele tinha certeza de que eu seria o item quente do


ingresso e, claro, ela estava feliz em me ver, mas Bennett era
absolutamente a estrela do show.

Embora eu não o chamasse exatamente de natural com


crianças, acho que ele está pegando o jeito. Ontem à noite,
depois do jantar, dei um banho em Honor e, quando saímos,
ele já havia apagado as luzes do quarto dela e selecionado
uma história de ninar para ler para ela.

Acho que ele vai ficar bem com toda essa coisa de
paternidade...

Ele fica em frente ao balanço, a câmera voltada para


fora enquanto tira uma foto.

Eu empurro Honor mais alto e nossos olhos se prendem.

Ele sorri.

Eu sorrio.

Se eu pudesse aproveitar este momento para sempre, eu


o faria. É perfeição em sua forma mais pura e simples. Uma
memória de família em formação.

Meu coração incha.

Quando eu olho em seus olhos, quando ouço a


convicção em sua voz quando ele fala sobre sua família e sua
dedicação à Honor, eu sei no fundo do meu coração que ele é
um bom homem.

E acredito nele sobre Errol.

Quando terminamos no parque, Bennett nos surpreende


com uma ida a uma sorveteria local em sua vizinhança. No
caminho para casa, ele segura minha mão enquanto Honor
pula à frente, suas tranças escuras balançando enquanto ela
canta uma música da escola.
Pela primeira vez em anos, estou envolta em calor da
cabeça aos pés e há uma plenitude em minha alma.

É uma sensação que senti apenas duas vezes antes –


uma com Linda e novamente com Trevor.

E esse sentimento... é o lar.

Com eles, estou em casa.


Bennett

— Posso fazer mais alguma coisa antes de sair, Sr.


Schoenbach? — Eulália pergunta segunda à noite enquanto
Honor e eu tomamos nossos lugares à mesa de jantar. Astaire
teve que trabalhar até tarde esta noite, alguma oficina
obrigatória para professores, então somos só nós dois.

— Não. Obrigada, Eulália. Até amanhã. — Coloco o


guardanapo no colo, sentindo o olhar atento do outro lado da
mesa.

A Honor faz o mesmo. Ela é boa nisso – perceber algo e


copiar. Ela é uma pequena esponja humana. Uma mímica.

Pego meu bourbon.

Ela pega sua água.

Nós bebemos.

Trocamos sorrisos.

— Você parece tão pequena no final da mesa. Por que


você não se senta ao meu lado? — Eu ofereço.
Ela desce da cadeira e desliza cuidadosamente o jogo
americano e a tigela de macarrão com queijo para a cadeira à
minha direita.

— Como foi na escola hoje? — Penso em nossos jantares


iniciais em família com Larissa. Minha mãe nunca
perguntaria sobre seu dia e meu pai nunca se importaria em
perguntar sobre o dia de ninguém. Deveríamos sentar
quietos, comer nossos jantares e parecer adoráveis fazendo
isso.

— Boa. — Ela mastiga. — Srta. Carraro nos deu um


recesso extra hoje. Ela disse que éramos muito bons e que
merecíamos.

Olho para a cadeira à minha esquerda, onde ela estaria


sentada se estivesse aqui, e não consigo evitar a sensação de
que estamos perdendo uma peça vital nesta pequena
operação.

— O que você fez hoje? — Honor pergunta.

É uma pergunta que não estou acostumado a ter de


responder, então paro um momento e tento me lembrar das
últimas horas.

— Vamos ver. — Eu corto meu filé mignon. — Eu li um


livro. Dei um passeio lá fora...

— Você não foi trabalhar?

— Estou fora do trabalho por algumas semanas.


Honor me examina, nariz enrugado. — Por quê? Você
está doente ou algo assim?

— Só estou pegando leve por um tempo.

— O que isso significa? — Ela pergunta.

— Pegando leve? Significa desacelerar, fazer menos,


aproveitar as pequenas coisas.

— Oh. Ok. — Ela mastiga seu macarrão, olhando para a


vela apagada no centro da mesa. — A Srta. Carraro vem hoje
à noite?

Eu balancei minha cabeça. — Infelizmente não.

Ela faz beicinho. Mas apenas por um momento.

Ela é uma criança feliz. Graças a Deus. Ainda não tive


lágrimas ou acessos de raiva, embora saiba que são normais
e é apenas uma questão de tempo. Mas até aí tudo bem.

— Você a verá amanhã de manhã — acrescento. — E ela


vai te trazer para casa depois da escola.

— Yay! — Honor salta em seu assento antes de


apunhalar outra garfada de macarrão com queijo. Há
simplicidade e integridade em estar perto dela, e tenho a
impressão de que esse é exatamente o tipo de coisa que senti
falta durante toda a minha vida. — Eu amo muito a Srta.
Carraro!
Eu fungo uma risada antes de tomar meu bourbon. —
Eu também, garota. Eu também.
Astaire

— Srta. Carraro, adivinhe? — Honor disse da parte de


trás do meu carro na terça à tarde. Pareceu redundante
mandar Eulália levá-la para casa hoje, já que eu planejava vir
de qualquer maneira. — Adivinhe, adivinhe?

— O quê, o quê, o quê? — Eu combino sua empolgação


com a minha, sorrindo para ela no espelho retrovisor.

— Tio Bennett ama você!

Eu paro bruscamente no sinal vermelho à frente. Já


trabalhei com crianças por tempo suficiente para saber que
você nunca sabe o que vai sair de suas bocas.

Mas também trabalhei com elas por tempo suficiente


para saber que, na maioria das vezes, estão repetindo algo
que ouviram alguém dizer.

— Você ouviu o que eu disse, Srta. Carraro? Tio Bennett


ama você — diz ela.
— Sim, querida. Eu te ouvi. — Eu aperto o volante em
dez e dois17, o coração disparado. — Q-quando ele disse isso?

Tudo está acontecendo tão rápido.

— Noite passada. No jantar. — Segue-se o zíper de sua


mochila, depois o farfalhar do papel enquanto ela se mantém
ocupada.

— O que ele disse exatamente? — Eu paro no


estacionamento de seu prédio.

— Eu não sei... eu disse que amo a Srta. Carraro e ele


disse que eu também. — Ela afirma isso como um fato. —
Você o ama?

O único outro homem que amei foi Trevor, e cada um de


nós demorou um ano para reunir coragem para dizer essa
palavra.

Amor não é uma palavra que uso levianamente.

Não é algo que costumo tentar apressar também.

— Você o ama, Srta. Carraro? — Ela pergunta


novamente.

Dizem que a definição mais verdadeira de amor é desejar


a felicidade para os outros mais do que para si mesmo.

17É a maneira antiga que os novos motoristas eram instruídos (antes do advento do airbag) para
colocar a mão no volante. Ou seja: A mão esquerda em "10" (posição do relógio) e a direita na
posição "2".
E para ser honesta comigo mesma, não posso passar
mais do que um punhado de minutos sem minha mente
vagando para Bennett, imaginando o que ele está fazendo,
repetindo um momento sexy compartilhado, sonhando
acordada com seu toque, contando as horas até que eu possa
vê-lo de novo...

Eu seria capaz de ir embora agora e não sentir falta


dele? Não sentir nada? Nunca olhar para trás?

Não. Nem perto.

Eu estaciono o carro e ajudo Honor a sair, trancando


enquanto nos dirigimos para o elevador.

— Sim, Honor. — Eu pressiono o botão de chamada. —


Eu também o amo.

— Tio Bennett, estamos em casa! — Honor deixa sua


mochila no tapete do vestíbulo, tira os sapatos e corre para a
próxima sala, seus passos tamborilando enquanto ela
procura por Bennett.

Coloco sua chave reserva na minha bolsa. Foi no fim de


semana passado quando ele me surpreendeu com isso. A
coisa era brilhante, imaculada, claramente nunca usada
antes.
Minha cabeça gira quando penso em como tudo está se
movendo rápido, mas enquanto eu estiver curtindo o passeio,
talvez isso não importe?

Às vezes, quando você sabe, você sabe.

— Tio Bennett, onde você está? — Honor trota pela sala,


indo na outra direção.

— No escritório — ele chama do corredor.

Eu a sigo até seu escritório, que tem cheiro de couro,


cedro e livro e me inclino contra a porta, observando
enquanto ela corre para seus braços.

— Você teve um bom dia na escola, Honor? — Ele é tão


correto com ela, falando com ela como um adulto em
miniatura e não com uma voz bonitinha de bebê que eu ouço
muitos pais usarem.

— O melhor — ela diz. — E tio Bennett, adivinha?

— O quê? — Ele pergunta, os olhos iluminados.

Ela se vira para mim, apontando, rindo. — Srta. Carraro


ama você!

Sua expressão divertida cai. O calor queima minhas


bochechas enquanto seu olhar procura o meu.

Sempre há uma chance de as crianças interpretarem


mal o que ouvem ou colocar as coisas em suas próprias
palavras. Eu deveria ter dado a ela uma resposta vaga, dito a
ela que iria discutir isso com seu tio em particular, mas fui
pega de surpresa, distraída por essa suposta revelação.

Bennett se levanta de sua mesa. — É mesmo, Honor?


Ela disse que me amava?

— Honor, por que você não vai se lavar e brincar um


pouco antes do jantar? — Eu digo a ela.

Ela pula para fora da sala. Um momento depois, a porta


de seu quarto abre e fecha.

— Ela me disse que você disse isso primeiro — eu digo.


— Mas as crianças interpretam as coisas fora do contexto às
vezes, então...

— Eu disse isso. — Ele se move em minha direção. — E


ela não tirou isso do contexto. Embora eu esperasse que você
pudesse ouvir de mim primeiro...

— Você vai aprender rapidamente que as crianças


repetem tudo... — Eu rio.

Ele fecha o espaço entre nós, pega meu rosto em suas


mãos fortes e abaixa sua boca na minha, transpondo
dolorosamente as longas quarenta e oito horas desde a última
vez.

Eu inalo seu cheiro inebriante, me deleito na forma


como ele se mistura com o cheiro de papel e couro e madeira
polida, e me derreto contra ele.
— Eu te amo, Astaire. — Seus lábios roçam os meus
quando ele para, para respirar.

— Eu também te amo.

Ele me envolve em seus braços e eu pressiono minha


bochecha contra seu peito. O coração de Trevor – o coração
de Bennett – dedilha em um ritmo perfeito.

Quando eu tinha vinte e dois anos, Trevor me levou ao


meu primeiro parque temático. Eu nunca tinha subido em
uma montanha-russa até aquele dia, e ele me levou nesta
hiper montanha-russa com temática de cobra ridiculamente
extrema que ia de zero a sessenta em três segundos e tinha
um dos picos mais altos e descidas mais íngremes do mundo.

Eu nunca segurei tão forte em minha vida.

Gritei a plenos pulmões.

E houve momentos em que tive certeza de que morreria


antes de chegarmos ao fim.

Mas quando acabou, houve essa agitação, essa


sensação de calma, essa estranha sensação de realização,
como se eu tivesse conquistado algum monstro terrivelmente
assustador – e que nunca foi a montanha-russa da qual eu
tinha medo, porque a montanha-russa era perfeitamente
segura... eram minhas crenças sobre a montanha-russa.

Na minha cabeça, eu me convenci de que era perigoso,


que poderia me machucar.
Talvez essa coisa com Bennett esteja acontecendo
rápido, talvez seja aterrorizante, mas talvez seja esse o ponto.
Talvez seja a melhor coisa a respeito. E estou disposta a
apostar que é tão paralisante para ele quanto para mim –
mas enquanto tivermos um ao outro, chegaremos em
segurança juntos no final.

As chamas da lareira tremem, o relógio da lareira bate.

Bennett folheia uma página de seu livro.

Honor coloca um pedaço de papelão em seu quebra-


cabeça de Dora, o cabelo molhado do banho e cheirando a
baunilha e damasco e vestida como a Minnie Mouse da
cabeça aos pés. É hora de colocá-la na cama, mas estou
absorvendo cada segundo deste momento.

Bennett fecha seu livro, observando Honor. Acho que ele


não percebeu, mas está sorrindo.

Ele faz muito isso agora – sorri.

Antes era raro. Agora é constante. É como se essa


coisinha doce simplesmente entrasse em sua vida e deixasse
sua alma um pouco mais à vontade, dando-lhe a chance de
consertar as coisas para Larissa.
— É disso que se trata — eu digo. — Todo mundo
sempre se concentra nas coisas grandes. Os grandes eventos
que você pode marcar uma data. Aniversários. Graduações.
Milestone 18 . Mas isso é o que importa. Os preciosos
momentos entre os grandes. Pense nisso. Ninguém quer
reviver sua formatura ou algum aniversário arbitrário. Mas
eu garanto a você, se você desse a alguém a chance de reviver
um dia perfeitamente normal, eles fariam isso em um piscar
de olhos.

Ele pega minha mão e me puxa contra ele. Ele não diz
nada e deixa minhas palavras caírem onde podem, enquanto
observa esta nova versão de sua vida se desenrolar diante
dele.

— Nós provavelmente deveríamos levá-la para a cama —


eu sussurro.

— Certo. — Ele se levanta, coloca seu livro de lado. —


Honor, por que você não guarda seu quebra-cabeça e me
encontra em seu quarto para uma história?

Eu faço meu caminho para o seu quarto para me


preparar para dormir. No último fim de semana, ele esvaziou
algumas gavetas para mim, bem como algum espaço em seu
banheiro – isso junto com a chave que ele me deu, e ele quase
me pediu para morar com ele.

Mas acho que não.

18Milestone ou marco é um "ponto ou evento significativo no projeto, programa ou portfólio".


Também podem ser conhecidos como ponto de controle ou ponto de verificação.
Uma coisa de cada vez.

Prendo o cabelo, lavo o rosto, escovo os dentes e visto


uma de suas camisetas antes de subir para baixo dos lençóis
lisos e frios da enorme cama de Bennett.

Menos de cinco minutos depois, ele se junta a mim.

— Ela está dormindo. — Ele desliza ao meu lado,


puxando-me para seus braços. — Nem consegui terminar o
livro antes dela começar a roncar. Não achei o livro tão chato,
embora eu deva dizer que era visivelmente repetitivo em
algumas partes.

— A maioria dos livros infantis são...

Eu rolo para o meu lado e engancho meu braço sobre


seu peito, inalando o cheiro de algodão desbotado de sua
camiseta que se mistura com a colônia desbotada em sua
pele quente.

— Não sei quanto tempo me resta, Astaire... — Seu peito


sobe e desce e, no escuro, vejo o branco dos olhos, o olhar
fixo no teto acima. — Pode ser um ano ou nove anos ou trinta
e três...

— Vamos tentar não pensar nisso.

— Não temos escolha, Astaire. Não podemos ignorar o


fato de que minha... vida... é uma bomba-relógio.
Eu pressiono meu ouvido contra seu peito, fecho meus
olhos e ouço. O baque forte do outro lado me enche de
esperança.

— Antes de te conhecer, antes de tudo isso... nunca


importou para mim. O futuro nunca importou para mim. Mas
agora... é tudo que penso — diz ele. — Eu quero a lareira, os
quebra-cabeças e as histórias para dormir. Eu quero as
pequenas coisas significativas. As noites tranquilas. Minha
vida não tinha sentido até que conheci você, Astaire. Eu
nunca poderei voltar disso.

Seu coração bate mais rápido agora, trotando a galope.

— Eu quero voltar para casa para você todas as noites.


Quero dormir ao seu lado, sempre. Eu quero falar sobre
nossos dias. Eu quero ensinar Honor como é o amor, o amor
verdadeiro. O que significa ser uma família. — Ele segura
meu rosto com a mão e o inclina para cima.

Abro os olhos, prendendo a respiração a cada


inspiração. — Então o que você está dizendo?

— Estou pedindo que você faça a vida comigo, Astaire.

Não há anel. Ele não está de joelhos dobrados. E não há


menção de casamento. Mas, à sua maneira, o que ele está
pedindo de mim é muito maior do que tudo isso.

— Então o que você diz? — Ele me puxa para seu colo,


senta-se e acende a lâmpada ao nosso lado. — Está dentro?
Seu olhar examina o meu, sua respiração lenta e
constante, paciente – inadequada para um homem que não
tem todo o tempo do mundo.

Não sei como isso vai acabar, mas não consigo imaginar
me afastando da bela vida que poderíamos ter juntos, seja
tragicamente breve ou maravilhosamente eterna.

— Estou dentro — digo através de uma visão turva.

Sua boca arqueia para os lados e ele reclama minha


boca com um beijo que envia arrepios do topo da minha
cabeça às solas dos meus pés. Meus lábios se abrem para
aceitar sua língua e eu deslizo minhas mãos sobre seus
ombros. Um momento depois, ele está tirando sua camiseta
dos meus ombros. O contorno de seu pênis fica mais duro,
mais grosso conforme nossas bocas se conectam e eu me
esfrego contra ele.

Deslizando a minha calcinha de lado, ele desliza um


dedo entre a minha abertura, provocando meu clitóris antes
de empurrá-lo mais fundo dentro de mim.

Mas eu quero mais.

Eu quero seu calor enchendo a dor entre minhas coxas.

Eu sufoco um gemido antes de sussurrar em seu


ouvido, quase implorando para ele fazer o que quer comigo.

Seus beijos se tornam cortantes e gananciosos enquanto


ele me vira de costas e empurra minha calcinha o resto do
caminho para baixo. E sua boca roça a minha antes que ele
se mova para o sul, provocando um mamilo ereto com a
língua enquanto a ponta dos dedos trilha minha parte interna
das coxas e param no ápice.

Eu o puxo para perto, alcançando seu pau e libertando-


o dos limites de seu moletom azul marinho de cintura baixa.
Ele enche minha palma, quente e forte, pulsando com o
desejo correspondente.

— Eu te quero tanto... — Eu esfrego embaixo dele,


impaciente e disposta.

Nossos olhos se fixam no escuro.

— Estou tomando pílula... — eu o lembro.

Bennett desliza as mãos sob minha bunda,


pressionando sua dureza contra minha umidade, e nos vira,
até que estou montada nele e ele tem uma visão de um
milhão de dólares.

— Mostre-me o quanto você me quer. — Há um brilho


em seus olhos e uma provocação em seu tom.

Eu balanço meus quadris sobre sua ereção latejante,


provocando-o de volta, e então eu me deslizo sobre seu
comprimento, centímetro por centímetro torturante, até que
ele me enche ao máximo. Suas mãos procuram meu corpo
antes de se estabelecerem em meus quadris, e eu balanço
para frente e para trás, com a intenção de cavalgar até o fim –
em todos os sentidos da palavra.
Eu amo este homem.

Eu o amo, amo, amo.


Bennett

— Você está sentado? — Meu advogado pergunta


quarta-feira à tarde. — Eu tenho notícias.

— O que está acontecendo?

James respira pesadamente na outra extremidade. —


Seu irmão entrou com uma ação para estabelecer a
paternidade.

Afundo na cadeira da escrivaninha, olhando a gaveta


que contém a pilha de transcrições de texto. Com tudo que
aconteceu na semana passada, eu não tive a chance de
descobrir exatamente como pretendia usá-los, mas agora eu
sei.

— Obrigado pela informação. — Tento desligar a ligação,


mas James protesta. — James, está tudo bem. Eu tenho isso.
Ligarei para você se precisar de mais alguma coisa.

Eu pressiono o botão vermelho, puxo meus contatos e


seleciono o nome de Errol. A linha toca três vezes antes que o
bastardo responda.
— Venha — eu digo. — Nós precisamos conversar.

— Achei que isso chamaria sua atenção. — Errol está


parado na minha porta há meros cinco segundos quando sou
forçado a me conter para não derrubá-lo no chão. Embora eu
adore dar a ele a surra que ele merece, eu o convidei aqui
para uma discussão. Por enquanto, terei que reviver a
memória afetuosa de quebrar seu nariz na casa da piscina no
colégio, quando o peguei tentando se aproveitar de uma
garota bêbada de Worthington Heights High que estava a dois
segundos de desmaiar e claramente incapaz de consentir.

Além disso, não estou com vontade de limpar seu


sangue patético do chão do meu hall de entrada.

— Me siga. Há algo que preciso mostrar a você. — Eu


caminho para o meu escritório com os ombros para trás e a
cabeça erguida. Minha cabeça se enche de confiança porque
peguei o desgraçado e agora ele vai pagar.

— O quê? Isso é sobre o quê? — Errol pergunta


enquanto entra.

Pego as transcrições da gaveta de cima da minha mesa e


as empurro para ele. — Alguma coisa disso parece familiar
para você?
Ele endireita a pilha, estreitando os olhos enquanto
deslizam sobre o discurso nojento.

— O que é esse lixo inventado?

— Esse lixo é a prova do caso sórdido que você teve com


sua irmã adotiva. E embora seja apenas um pouco da sua
perversão nojenta, há evidências mais do que suficientes para
mostrar que você a estava fodendo, você a abusou psicológica
e emocionalmente, a manipulou e sabia muito bem sobre a
gravidez. — Eu aponto para a pilha. — Tenho certeza de que
Beth adoraria ler as coisas doces e maravilhosas que você
disse sobre ela quando estava fodendo sua irmã pelas costas.

Errol olha para os papéis, mas seus olhos param de


escanear. Ele está perdido em pensamentos, ao que parece.
Sua pele fica com um tom doentio de cinza, seus lábios
pressionados, como se ele pudesse vomitar a qualquer
momento.

Sempre soube das intenções de minha mãe em manter


Honor fora desta família, mas percebo agora que entendi tudo
errado com Errol. Ele não estava tentando proteger seu
casamento tanto quanto estava tentando apagar toda e
qualquer lembrança do homem que ele é por dentro.

O monstro doentio e sórdido de um homem.

A parte dele que ele odeia.

E mesmo se ele nunca visse Honor novamente (e ele não


verá), saber que seu irmão mais novo a está criando, fazendo
a coisa certa – iria matá-lo. Isso o consumiria, pouco a pouco,
dia a dia.

— Um pouco de história para você — eu digo,


saboreando a oportunidade de chutar o homem quando ele
está caído. — Já que ninguém nesta família jamais pensou
em jogar um osso para a pobre garota, eu tive a decência de
pelo menos dar a ela um telefone celular. Por razões de
segurança. Como eu era o dono da linha, bastou alguns
telefonemas e a operadora conseguiu me fornecer
transcrições de cada mensagem – texto e imagem – enviada
entre vocês dois. Está tudo aqui. Cada pequeno segredo
distorcido que você pensou que poderia enterrar.

Minhas palavras estão cheias de hipocrisia e eu não


poderia me importar menos.

— Eu tenho tudo em um e-mail. Estou literalmente a


um clique de enviar isso para sua esposa, para nossa mãe,
para literalmente qualquer um que possa achar algo obsceno
o suficiente para escrever uma história de capa ou fazer disso
uma manchete de jornal — eu digo. — Sua vida, como você a
conhece, estaria acabada, Errol. Nenhuma esposa linda e
leal. Nenhum filho. Nenhuma mãe que escreve cheques para
sustentar seu estilo de vida confortável. Nenhum círculo
social robusto. Ninguém comprando sua arte. Chega de
colher os benefícios do seu sobrenome. Você seria motivo de
chacota, uma piada. Para o resto da sua vida.

— Você não faria isso.


— Eu gostaria.

— Você faria isso com a criança? Fazê-la passar por


tudo isso?

— Se isso significa protegê-la de você e de nossa mãe,


então sim. — Dou a volta na mesa, diminuindo a distância
entre nós, nariz com nariz. — Eu faria isso em um piscar de
olhos.

— Falando em batimentos cardíacos — diz ele,


semicerrando os olhos, — ouvi dizer que você não tem estado
muito bem ultimamente.

Meu olhar se estreita. — Eu sei exatamente aonde você


quer chegar, Errol, e isso é irrelevante para esta discussão.
Faça-me um favor e vamos continuar no caminho certo.
Tenho coisas mais importantes do que você para cuidar esta
tarde.

Eu verifico o relógio. Honor e Eulália devem voltar da


escola a qualquer minuto, e não o quero perto de nenhuma
delas.

— Então, o que vai ser, Errol? — Eu pergunto. —


Sabendo que posso derrubar seu castelo de cartas com o
clique de um botão, você ainda sente a necessidade de
avançar com seu ridículo processo de paternidade? Ou você
vai fazer a coisa certa pelo menos uma vez em sua vida
patética?

— Supere-se — ele cospe.


— Desculpe?

— Não fique aí e fale como se você fosse muito melhor


do que eu. Você tem trinta anos, mas pode muito bem ser um
velho miserável. Você acha que salvar essa criança e dar a ela
uma vida privilegiada vai te redimir? Apagar todas as coisas
ruins que você fez? Não é assim que funciona, Bennett.

— Eu nunca disse que sou perfeito, mas tenho certeza


que não vou me colocar no seu nível. Você fodeu sua irmã.

— Irmã adotada.

Eu jogo minhas mãos para cima, bufando. — Como se


isso o tornasse melhor.

— Aquela garota merece uma família — diz Errol. —


Deixe-a ficar no sistema. Deixe uma família que realmente a
quer, a adote.

— Eu a quero. E eu já a adotei. Os papéis foram


arquivados. Ela é oficialmente uma Schoenbach, legalmente
ou não.

Ele geme. — Você mal consegue se cuidar, como vai


cuidar de uma criança?

— Eu tenho ajuda, não que seja da sua conta.

— O que, aquela loira com voz de bebê que você está


transando? Essa é a sua ajuda? — Ele tem muito a perder
aqui para ser tão presunçoso, mas eu sei o que ele está
tentando fazer. — Você e eu sabemos que você vai estragar
tudo mais cedo ou mais tarde. Há uma razão pela qual você
não pode mantê-las por mais de alguns meses. Elas
descobrem que bastardo de coração frio que você é e o
deixam como o encontraram – miserável e sozinho.

— Mais alguma coisa que você deseja adicionar? — Eu


permaneço imperturbável – o oposto do efeito que ele está
procurando. Ele pode vomitar todo o veneno que quiser sobre
Astaire. Não estou dando a ele uma reação. Não estou dando
a ele nenhuma indicação do quanto ela significa para mim,
porque ele encontrará uma maneira de usar isso contra mim.

Tudo com que sempre me importei, ele encontrou uma


maneira de estragar tudo.

Meu primeiro carro – um Challenger antigo que meu pai


restaurou especialmente para mim. Adorávamos carros
clássicos (uma das poucas coisas que tínhamos em comum),
e esse presente significava muito para mim. Eu não o tinha
há mais de uma semana quando Errol o levou para um
passeio alegre... E de alguma forma conseguiu batê-lo em
uma árvore enquanto saía com um punhado de cortes e
arranhões.

A primeira namorada séria que tive em meu último ano


do ensino médio – Errol voltou da faculdade para o verão,
agarrou-se a mim como se tivesse sentido minha falta,
quando na verdade ele estava tentando impressionar minha
namorada com seu eu mais velho, mais sábio, mais maneiras
mundanas. No fim de semana após o quatro de julho, eu o
encontrei esgueirando-a até seu quarto por uma entrada
lateral (sem o conhecimento deles), e ouvi as molas de seu
colchão e seus gemidos exagerados a noite toda.

Minha primeira edição autografada de Além do Bem e do


Mal, de Fredrich Nietzsche – um presente de nosso falecido
avô, de quem eu era muito próximo... ele usou como lenha
para uma de suas infames festas com fogueiras.

Estou cem por cento convencido de que a única razão


pela qual ele está tão sedento por um lugar no conselho de
administração da corporação é para que possa arruiná-la
também.

Não vou deixá-lo estragar isso.

— Onde diabos você a encontrou? — Ele pergunta. —


Ela tem que ser louca pra cacete se ela está ficando com você.
Tem certeza de que esse é o tipo de figura materna que você
quer perto da criança? E quanto tempo até você enjoar-se
desta e chutá-la para o meio-fio?

— Para que conste, ela é incrível com a criança, mas


esse é o ponto. É por isso que a estou mantendo por perto.
Ela é mais para a Honor do que para mim — eu minto.
Enquanto ele acreditar que sou indiferente a ela, ele não
desperdiçará sua energia. — Ela ajuda com Honor e é um
bom acordo que temos, mas é só isso. Um arranjo. Não há
amor. Sem expectativas. Certamente não é um futuro. Se ela
ficar enjoada de mim, que fique. Nesse ínterim, ela é boa para
a Honor.
— Ela sabe disso?

— Ela é uma mulher inteligente.

— Então, basicamente, você está brincando de casinha.


— Ele bufa, as mãos nos quadris como se tivesse espaço para
me castigar. — É típico de você usar as pessoas. Você sabe
como são as mulheres. Ela vai ficar apegada à criança,
apegada a você, e eventualmente a coisa toda explodirá na
sua cara e quem vai se machucar no final? Não você, seu
idiota de coração frio.

— Não vejo como isso preocupa você no final. — Eu dou


de ombros e verifico meu relógio. Honor deve estar em casa a
qualquer minuto. — De qualquer forma, terminamos aqui. A
discussão acabou. Se você tem meio cérebro, você sairá daqui
e irá direto para o escritório do seu advogado e fará com que
ele desista do processo de paternidade imediatamente. Se o
processo não for retirado até o final da semana, pressionarei
o envio desses e-mails.

Prendo minha mão em seu ombro magro, aperto-o e o


conduzo para fora do meu escritório. Só quando chegamos ao
final do corredor e viramos a esquina, encontro Astaire em pé
no meio do saguão.

— O que você está fazendo aqui? — Eu pergunto.

Errol leva seu doce tempo se apresentando até a porta.


Antes de ir, ele se vira para me lançar um sorriso cruel.
A mochila de Honor está a seus pés e o som de
desenhos animados toca na sala de estar.

Eu estava tão envolvido em minha conversa com Errol


que não ouvi ninguém voltar para casa.

— Eulália... — A voz dela está embargada e os olhos


estão marejados de lágrimas. — Eu a mandei para a loja...
disse a ela que levaria Honor para casa... eu... eu tenho que
ir.

— Astaire, espere. — Eu a alcanço, mas ela me afasta.

Não preciso perguntar o quanto ela ouviu.

— Não é o que parecia — eu digo enquanto ela gira a


maçaneta da porta. — Sério, deixe-me explicar.

Ela não diz nada. Ela não vai olhar para mim. Quando
ela se vira para fechar a porta atrás dela, as lágrimas
umedecem seu rosto e, finalmente, ela olha para mim através
dos cílios molhados.

— Eu queria que isso fosse real. — Suas palavras são


abafadas e quebradas. — Mas no fundo da minha mente,
sempre me perguntei se era bom demais para ser verdade.
Agora eu sei.

Antes que eu tenha a chance de responder, ela fecha a


porta.

Não vou fazer uma cena e não posso persegui-la, não


com Honor aqui.
Inclinando-me contra a porta, eu a deixei ir.

E é a coisa mais difícil que já fiz – mas vou recuperá-la.

Farei o que for preciso para provar que o que temos não
é bom demais para ser verdade – é verdade.
Astaire

Lágrimas nublam minha visão durante todo o trajeto de


volta para casa.

Flocos de neve gigantes derretem no meu para-brisa,


manchando enquanto meus limpadores os arrastam.

Eu tinha planejado toda a noite – queria levar Bennett e


Honor ao parque para construir um boneco de neve. Eu até
arrumei botões e uma cenoura para o nariz, além de um
chapéu e um lenço sobressalente. Quando Eulália apareceu
na hora da retirada, perguntei se ela não se importaria de
correr até a loja comprar algumas coisas para o jantar e disse
que levaria Honor para casa.

Seria uma surpresa.

Mas descobri que a surpresa era minha.

As palavras de Bennett dominam todos os meus


pensamentos, tocando repetidamente, até o ponto em que
ainda posso ouvi-las tão claramente quanto da primeira vez.
— Para que conste, ela é incrível com a criança, mas esse é o
ponto. É por isso que a estou mantendo por perto. Ela é mais
para Honor do que para mim... ela ajuda com Honor e é um
bom arranjo que temos, mas é só isso. Um arranjo. Não há
amor. Sem expectativas. Certamente não é um futuro. Se ela
ficar enjoada de mim, que fique. Nesse ínterim, ela é boa para
a Honor.

Tudo entre nós foi uma mentira.

Tudo.

Tudo o que ele precisava era uma figura materna


substituta para sua sobrinha... E a bunda ao seu lado não
era nada mais do que um privilégio, vendo como seus fins de
semana de solteiro cheios de sexo casual estão fora de
cogitação pelos próximos treze anos.

Estou na metade do caminho para casa quando penso


no que Beth disse na semana passada, sobre os homens de
Schoenbach arruinando suas mulheres.

Errol era um monstro à sua maneira, mas há uma


chance de Bennett ser feito de um tecido semelhante.

Afinal, eles compartilham o mesmo sangue.

E os homens de Schoenbach claramente têm uma queda


por usar mulheres.

Assim que chego ao meu apartamento, vou ao banheiro


para jogar água fria no rosto, evitando a luz porque não
preciso me olhar no espelho para saber como é ser uma
idiota.

Eu poderia ter dito a ele tantas coisas, mas estaria


perdendo meu fôlego.

Cada conversa que já tivemos foi uma mentira – um


desperdício total de tempo.

As palavras faladas não têm efeito sobre ele, sejam


dadas ou recebidas. Ele faz o que quer, a quem quer, e
pronto.

Eu coloco roupas confortáveis, silencio meu telefone e


me enrolo no sofá enquanto Gentlemen Prefer Blondes toca
ao fundo. Meus olhos estão na tela, mas não estou vendo. É
apenas para preencher o vazio. Para me fazer companhia.
Para me lembrar que ainda existem coisas neste mundo que
eu amo.

Mesmo que Bennett não possa mais ser um deles.

Sinto uma dor no peito, um vazio profundo que não


existia há uma hora.

E então me dou conta – ele não tinha coração, então


roubou o meu.
Bennett

— Estamos apenas esperando a Dra. Rathburn, então


você estará livre para ir — disse a enfermeira em meu check-
up na tarde seguinte. Ela fecha a porta da sala de exames e o
relógio de plástico com a marca da empresa farmacêutica
bate na porta.

A escola de Honor termina em quinze minutos, mas


levará pelo menos vinte minutos para chegar lá quando eu
sair. Mais, se houver tráfego.

Eu, originalmente, dei a Eulália a tarde de folga porque


Astaire planejou trazer Honor para casa com ela depois do
trabalho, mas dados os eventos de ontem, obviamente isso
não vai acontecer.

Cinco minutos se passam.

Depois dez.

Ainda sem Dra. Rathburn.


Há uma hora, liguei para Eulália para saber se ela
poderia vir esta tarde, mas ela já estava em Gary, visitando o
sobrinho.

Sem outra escolha, mando uma mensagem para Astaire


e pergunto se ela pode trazer Honor para casa hoje.

Exatamente às 15h01, ela responde com um "sim".

Nada mais, nada menos.

A mochila brilhante de Honor é a primeira coisa que vejo


quando chego em casa. Quando dou a volta no corredor, a
segunda coisa que vejo é Astaire.

— Ei. — Coloco minhas chaves no balcão da cozinha.

A bolsa dela está pendurada no ombro. É difícil dizer se


é porque ela acabou de chegar aqui ou porque queria estar
pronta para partir assim que eu voltasse para casa.

— Obrigado por trazê-la para casa. Minha consulta


demorou muito. — Eu digo.

— Não é um problema. — Ela evita o contato visual. —


Ela está jogando no quarto.

O silêncio invade o espaço entre nós.


— Você recebeu minhas ligações? — Eu faço uma
pergunta óbvia. Estou ligando para ela desde o momento em
que ela saiu ontem à noite.

— Eu recebi. E seus correios de voz e mensagens de


texto. Recebi todos eles.

— Ok. Então... podemos falar sobre eles?

— Não. — Ela olha para a porta e respira fundo que faz


seus ombros estremecerem antes de finalmente voltar sua
atenção para mim. — Você é o pior tipo de pessoa. Você usa
as pessoas e mente e está além de cruel. Vou cumprir minha
promessa de estar lá para Honor de qualquer maneira que ela
precise de mim, mas você e eu terminamos.

— Astaire. — Eu chego mais perto dela. — Deixe-me


explicar.

Ela estende a mão para me impedir. — Você só vai me


dizer o que eu quero ouvir. Mas não estou interessada nisso.
Eu quero a verdade. E isso não é algo que você é capaz de me
dar. Então, não, Bennett. Estamos acabados.

Eu a deixo ir mais uma vez – mas será a última vez que


o faço.

Eu disse o que disse a Errol, e ela ouviu o que ouviu. Eu


não posso voltar atrás. E posso ficar aqui e explicar até ficar
com o rosto azul se ela permitir, mas no final do dia, não é o
que você diz – é o que você faz.
Eu tenho que mostrar a ela o que ela significa para mim
Astaire

— Ei, estranha, faz muito tempo que não te vejo! —


Ophelia envolve os braços em volta de mim no instante em
que entro em seu bar homônimo na sexta à noite.

Eu precisava sair um pouco e agora que Bennett tem


Honor, imaginei que este seria um lugar seguro para buscar
refúgio por algumas horas. Além disso, ficar sentada
pensando e sentindo pena de mim mesma, envelhece depois
de um ou dois dias.

— O que estamos bebendo? — Ela pergunta.

— Gim-tônica. — Eu sento no bar. Eu pediria aquela


bebida de champanhe com limão que o último barman
preparou para mim, mas não consigo me lembrar do nome
para salvar minha vida.

— Eduardo, traga um gim-tônica para a garota. —


Ophelia bate no balcão. O perfume de rosas e violetas exala
dela enquanto ela se move, e seus lábios são do tom mais
brilhante de rosa que eu nunca soube que existia.
Esta tarde, Honor perguntou se eu viria hoje à noite. Ela
não pressionou quando eu disse que não, e isso não pareceu
incomodá-la. Felizmente, ela é muito jovem para entender
que a dinâmica entre Bennett e eu mudou.

Eu sempre estarei lá para ela. Sempre.

Ophelia trota para o outro lado do bar e prepara um


Martini com duas azeitonas recheadas. — Ouvi dizer que você
está saindo com Schoenbach.

— O quê? Onde você ouviu isso? — Eu pergunto.

A primeira vez que conheci Ophelia, nunca dei meu


nome a ela. A segunda vez que a encontrei aqui, tivemos uma
conversa rápida no banheiro feminino e eu aproveitei para me
apresentar adequadamente. Ela é afetuosa e é uma daquelas
pessoas que você encontra uma vez e com a qual sente uma
conexão instantânea.

— As pessoas falam por aqui. — Ophelia pisca e acena


para Eduardo. — Schoenbach costumava ser um cliente
regular. O que se diz na rua é que ele foi visto pela última vez
aqui com você... E não voltou desde então.

Eduardo desliza uma base para copos de papelão na


minha frente antes de entregar minha bebida.

— Obrigada — eu digo, voltando-me para ela. —


Estávamos nos vendo. Eu acho. Se você pode chamar assim.
Mas não estamos mais. Acontece que tudo o que ele me disse
era mentira.
— Jura? — Ela dá a volta no bar, senta-se ao meu lado
e pousa a cabeça na mão, o que considero um convite aberto
para derramar minhas tripas.

Então eu faço.

Eu conto tudo para ela.

Ou pelo menos, meu lado de tudo.

Deixo alguns detalhes escandalosos, algumas das peças


irrelevantes que Bennett compartilhou comigo em sigilo.

Mas ela captou a essência. Quando eu termino, ela


exala, murcha e sem palavras. Seu martini ainda intocado.

— Eu não sei... — ela finalmente fala. — Simplesmente


não faz sentido.

— Que parte? — Eu bufo e tomo minha bebida.

— Tudo isso. — Ophelia franze a testa. — Eu conheço o


homem há anos. Anos. E eu nunca o vi namorar ninguém,
certamente nunca o vi com a mesma mulher mais de uma
vez. Ele passou todo esse tempo com você e teve todo aquele
esforço e todo aquele trabalho e basicamente pediu que você
passasse o resto da sua vida com ele... apenas para que a
garotinha que ele adotou tivesse uma figura materna?

— Ele confiou em mim. Ele sabia que eu era boa com


crianças. E eu já tinha uma conexão com ela, então sim. Aos
seus olhos, provavelmente eu era sua melhor opção. — Eu
tomo outro gole. — Além do sexo normal. Não vamos
esquecer isso. Deus sabe que ele não pode mais levar
mulheres aleatórias para casa nos fins de semana.

— É só que... o homem que você está descrevendo


parece tão egoísta — diz ela. — E o Schoenbach que conheço
há anos é tudo menos isso.

— O que você quer dizer?

— Todos os anos, temos uma campanha de alimentos


para o Dia de Ação de Graças. Todo ano ele doa um caminhão
de comida enlatada. Dois anos atrás, Eduardo mencionou
que arranjou um segundo emprego porque teve que
substituir o telhado da casa de sua mãe em Naperville –
Schoenbach veio na noite seguinte e fez um cheque para o
telhado. No ano passado, meu pai precisou de uma cirurgia
no joelho, mas o seguro barato que ele tem cobria apenas
uma parte, e dificilmente cobria a fisioterapia de que ele
precisaria depois disso. Bennett cuidou disso.

— Essas são coisas extremamente generosas, mas acho


que estamos comparando maçãs e laranjas aqui...

— O que quero dizer é que Bennett gosta de cuidar das


pessoas. E ele trata a todos como família. Ao menos, à sua
maneira. Eu sei que ele não é próximo de sua própria família,
então eu meio que sempre atribuí a isso. — Ophelia dá de
ombros, mexendo seu Martini com um palito. — No final do
dia, ele é um cara rico e solitário com um coração de ouro
puro. Tipo... Batman.
Eu rio pelo nariz.

É bom rir de novo. Lembra-me que sou humana.


Continuo viva. Ainda capaz de sentir o outro espectro de
emoções.

— Juro por Deus, Astaire — ela diz. — Se eu gostasse de


rapazes, estaria dando em cima dele. Eu faria o que fosse
preciso para bloquear. Isto. Pra. Baixo.

— É bom que ele ajude as pessoas...

— Ele não ajuda apenas as pessoas — diz ela. — É mais


profundo do que isso com ele. Eu acho que ele se ressente de
seu dinheiro, então ele o dá, mas ele é tão bom no que faz
que ganha mais dinheiro do que pode gastar. — Ela joga as
mãos para cima. — Apenas minha teoria. Mas eu acho que
há muito autoaversão por trás de todo esse benfeitor. E talvez
seja por isso que ele afasta tanto as pessoas. Ele nunca teve
um relacionamento real desde que o conheço. Ele sempre fez
a coisa casual. Ficar com mulheres bonitas e aleatórias
sempre que tem vontade. Me faz pensar que ele não se sente
digno de ser amado.

Ela toma um gole.

Eu tomo um gole.

Um momento depois, depois que suas palavras se


estabeleceram, eu falo. — Isso é profundo.
— Eu também estou bêbada. — Ophelia ri,
pressionando a mão no meu braço. — Então, leve tudo isso
com um grão de sal.19

— Você o faz parecer tão encantador... — Eu traço meus


dedos ao longo do logotipo na lateral do meu copo, perdida
em pensamentos. — Mas não consigo parar de pensar no que
ele disse.

— Você o deixou explicar?

Eu balancei minha cabeça. — Não. Ele só vai me dizer o


que eu quero ouvir. Ele vai dizer que não quis dizer isso. Mas
se eu voltar para ele, vou questionar tudo, o tempo todo.
Sempre fico pensando se ele me quer porque me ama ou
porque forneço algo de que ele precisa, algo que ele não
consegue em nenhum outro lugar.

— Querida, ouça a si mesma. — Ela coloca a mão no


meu ombro. — Vou dizer algo e não quero que você me
entenda mal, ok?

Eu me preparo e aceno.

— Esse homem pode ter qualquer mulher que ele quiser.


Qualquer. Mulher. E você é uma loira inteligente, bonita, de
vinte e poucos anos que adora crianças. Você realmente acha
que é a única loira inteligente e bonita de vinte e poucos anos
que adora crianças no mundo? Aposto que poderia dar uma
olhada neste bar e encontrar pelo menos cinco outras que se

19Significa tomar uma afirmação, por exemplo, com certo ceticismo, mantendo a consciência de que
ela pode ser falsa ou não corresponder completamente com a verdade.
encaixem nesse perfil. Schoenbach também poderia fazer
isso. Mas ele escolheu você. Ele quer você.

Exalando, termino minha bebida, mais tonta com os


pensamentos do que quando entrei.
Bennett

A parte inferior do meu laptop queima quando o


ventilador ganha vida na sexta à noite. Honor termina seu
terceiro quebra-cabeça da noite e eu reli o e-mail que estou
prestes a enviar pela trigésima e última vez.

PARA: AnonStranger@Rockmail

DE: Bennett.Schoenbach@SchoenbachCorp

ASSUNTO: Nenhum

Astaire,

É sexta à noite. A neve cai silenciosamente lá fora. A


lareira enche a sala com um brilho aconchegante. Honor está
trabalhando em seu terceiro quebra-cabeça da noite. E você
deveria estar aqui. Conosco.

Lamento que você tenha ouvido essa conversa.

Mas estou ainda mais triste por você ter acreditado.


Eu disse o que disse, Astaire. E você está certa – eu sou
um mentiroso.

Eu disse ao meu irmão que não me importava com você


porque você é minha fraqueza. E se ele soubesse o que eu
realmente sinto por você, ele iria destruir isso do jeito que ele
destruiu tudo que eu sempre me importei no passado.

Então essa é a explicação.

Você pode escolher acreditar ou não.

Nietzsche diz: “Quem quer que lute contra monstros deve


cuidar para que, no processo, ele não se torne um monstro. E
se você olhar por tempo suficiente para um abismo, o abismo
olhará de volta para você.”

Ao lutar contra meu irmão, me tornei um monstro...


mentindo, manipulando e chantageando-o para conseguir o
que queria.

Não me arrependo de proteger aqueles que amo.

Eu me arrependo de ter machucado você.

Por favor, Astaire. Volte para mim.

Você é a única pessoa no mundo com quem quero viver.

Seu (e sempre serei) ...

Bennett
Astaire

Eu chego na Starwood bem cedo na segunda-feira de


manhã, meu carro é um dos três outros no estacionamento.

Eu não poderia demorar mais um minuto no


confinamento do meu apartamento. Passei a maior parte do
fim de semana em uma névoa, consumida por pensamentos
me arrastando de uma direção para a outra. Devo ter me
convencido a ligar para ele uma centena de vezes, depois me
convenci a desistir mais uma centena.

Tentei preencher minhas horas com tarefas servis sem


sentido.

Lavanderia.

Limpeza.

Organizando.

Coloquei meia dúzia de filmes, mas não consegui


terminar nenhum. Cada vez que olhava para fora, me
lembrava do boneco de neve que íamos construir na semana
passada... e então os pensamentos giravam em espiral
novamente.

Domingo à tarde, eu me agarrei e me aventurei para


uma caminhada, apesar da temperatura de vinte e dois graus
e do vento violento. Eu fiz todo o caminho até Elmhurst,
apenas para encontrar com fechaduras alteradas e uma placa
de “sob nova administração”.

Eles mencionaram a venda do lugar, mas ele nunca


esteve à venda, pelo que eu sabia. O mínimo que eles
poderiam ter feito era enviar um e-mail...

No caminho de volta, parei para tomar um chá quente


no meu café favorito e depois me sentei perto da lareira
crepitante para me aquecer e passar mais tempo antes de
voltar para casa.

Bennett encheu meu telefone com mensagens, textos e


chamadas perdidas nos últimos dias. Não ouvi nenhum, mas
não porque não quero ouvi-lo, mas porque gostaria de ter a
cabeça limpa antes de mergulhar de volta em... tudo isso.

Estou muito emocionada para pensar direito.

Não confio em mim mesma para tomar a decisão certa –


seja ela qual for.

Verifico minha caixa de correio na sala dos professores.

Faço um café.
Caminhando pelo corredor, avisto a luz acesa no sala da
Sra. Angelino. Quando eu passo, ela olha para cima de sua
mesa – então olha para baixo antes que eu tenha a chance de
dizer oi.

Nada de novo.

Estou a cinco passos de distância quando paro no meio


do caminho e penso em voltar, parar em sua porta e explicar
a situação o melhor que posso.

Mas então eu me convenço do contrário.

O que eu diria mesmo? Eu conheci esse estranho em


um bar, ele me viu em um encontro com seu sobrinho e o
assustou? Só posso imaginar o que Bennett disse a ele – se
eu tivesse que adivinhar, era algo como eu ser um vigarista
ou caçadora de ouro.

Se tudo o que precisamos é alguma informação falsa de


terceira mão para fazer seu olhar se desviar cada vez que nos
cruzamos, então ela não vale o oxigênio que eu respiraria
tentando explicar essa situação complicada.

Além disso, não está aqui, nem lá.

Água debaixo da ponte – tudo isso.

Um ponto estranho na linha do tempo sem fim que é


minha vida.

Abro minha sala de aula, acendo a luz e penduro meu


casaco no gancho atrás da porta do armário – mesma rotina,
mas parece diferente, como se eu tivesse entrado em um
universo paralelo onde tudo está um pouco torto.

O céu lá fora clareou desde que cheguei aqui, o nascer


do sol pintando o céu em tons cremosos de laranjas e roxos
com uma seção de azul pálido da cor dos olhos de Bennett.

Eles estão dizendo que a neve vai derreter nos próximos


dias, o que tornará vários lamaçais, além de severos recessos,
mas eu não me importo. Estamos muito mais perto da
primavera, e com a primavera vem a chuva.

Eu costumava achar isso deprimente, até que Trevor


disse que amava a maneira como ela lavava tudo e deixava as
coisas um tom mais verde do que antes.

Não olhei para a chuva da mesma forma desde então.

Trevor era bem assim – vendo o lado bom nos momentos


mais sombrios.

Eu marco um 'x' até a data de ontem no meu calendário.


A festa do Dia dos Namorados está chegando, o que sempre
me faz pensar no primeiro Dia dos Namorados que passei
com Trevor. Éramos calouros na Indiana State, falidos.
Fizemos uma pizza congelada de três dólares e assistimos PS
Eu te amo da conta emprestada de um amigo na Netflix. Foi a
primeira vez desde o diagnóstico de Linda que passei algumas
horas livre dos fardos da vida. Quando eu não estava
trabalhando meio período na copiadora do campus e tirando
dezesseis horas de créditos por semana, eu ia e voltava para
os tratamentos, exames e consultas de Linda.

Trevor esteve comigo em cada um desses momentos.

Ele nunca saiu do meu lado.

Nunca reclamou.

Ele trazia seu laptop e seu dever de casa e


simplesmente... estava lá.

Às vezes acho que metade do amor é apenas aparecer.

Um pigarro na porta me tira do meu devaneio


melancólico.

Parada na porta está Honor, ao seu lado, está Bennett.


Bennett

— Honor, oi. Bennett, você percebe que a aula só


começa daqui a quarenta e cinco minutos... — ela se levanta
de trás da mesa, puxando a barra do cardigã rosa.

Honor passa por nós, pendura seu casaco e bolsa em


seu cubículo e se sente em casa no canto de leitura.

— Estava esperando que eu pegasse você. — Eu levo


meu tempo me aproximando dela. — Recebeu meu e-mail?

Seu olhar se estreita. — O e-mail? Não. Eu não sabia


que estávamos de volta a isso.

— Nós não estávamos. Mas você não estava atendendo


minhas ligações ou mensagens de texto, e eu não iria à sua
casa como um ex-namorado psicótico. — Eu fungo uma
risada, tentando manter esta luz. — Eu realmente adoraria
uma chance de explicar tudo – com detalhes meticulosos, se
desejar.

— Aqui não. Agora não.

— Obviamente.
— Eu preciso preparar minha sala para hoje, então se
pudéssemos...

— Eulália vem buscar Honor hoje. Ela disse que poderia


ficar o mais tarde que eu precisasse. — Eu digo. — Por que
eu não te pego por volta das quatro? Há algo que quero
mostrar a você e podemos conversar no caminho.

Há menos tensão em seus ombros do que nas últimas


vezes que a vi, e ela não está cruzando os braços, tremendo
ou evitando meu olhar.

É um bom começo.

Talvez ela precisasse de algum tempo para se acalmar e


pensar sobre isso.

Isso ou ela esgotou todos os nervos emocionais e é


imune à maneira como minha presença a faz se sentir.

— Ok — diz ela.

— Ok? — Quero ter certeza de que estou ouvindo


corretamente...

— Ok.
Astaire

— Onde estamos indo? — Eu aperto meu cinto de


segurança no banco do passageiro da frente do SUV de
Bennett na segunda-feira depois do trabalho.

Ele está dirigindo.

Eu nunca o vi dirigir.

O couro escuro abaixo de mim é macio e quente e flocos


de neve caem no capô, derretendo com o impacto.

Estou preparada para ouvi-lo.

Não estou preparada para o que virá depois disso.

— Você verá em cerca de vinte minutos. — Ele sai do


estacionamento de visitantes do meu apartamento e segue
em direção ao quadrante sudoeste da cidade.

A música clássica toca suavemente. Eu reduzo a


temperatura do passageiro e desabotoo meu casaco.

Limpando a garganta, digo: — Eu li seu e-mail...


Ele me olha com o canto do olho. — E?

— Foi... convincente.

— Só convincente?

— Você tem jeito com as palavras, Bennett. Você pode


ser persuasivo quando precisa — As casas por onde
passamos ficam maiores a cada quarteirão. Não sei se já
estive nesta parte de Worthington Heights, mas ouvi falar. —
Acho que gostaria de entender melhor a dinâmica entre você
e Errol. Não entendo por que você não pode simplesmente ter
contado a verdade para ele. Ou por que você teve que discutir
sobre mim...

— Meu irmão e eu temos uma história complicada,


enraizada no ciúme e na competição desde que éramos
pequenos – principalmente devido ao meu pai sempre nos
empurrar para superarmos um ao outro. Eu sempre fui o
mais forte, o naturalmente atlético e ágil. Ele sempre foi
melhor em qualquer coisa que exigisse atenção aos detalhes...
desenhar, esculpir, construir computadores, qualquer coisa
que tivesse a ver com as mãos. Academicamente estávamos
pescoço a pescoço até ficarmos mais velhos e ele se tornar
menos focado em seus estudos e mais focado em suas
atividades extracurriculares... — Bennett aponta a seta para
a esquerda e verifica seu retrovisor. — De qualquer forma,
quando se tratava de escolher cursos e faculdades, meu pai
nos incentivou a estudar em Harvard e estudar
administração de empresas. Era de se esperar que
assumiríamos o controle da empresa quando fôssemos mais
velhos. Meu irmão recusou. Ele queria estudar arte. Meu pai
não gostou disso, então ele começou a despejar toda sua
atenção e afeto – se é que você pode chamar assim – na
minha direção e mais ou menos fingindo que meu irmão não
existia. Depois disso, foi uma guerra. Qualquer coisa que
meu pai me deu, qualquer garota que eu estivesse vendo,
qualquer coisa que ele acreditasse que significava alguma
coisa para mim – ele destruiria de qualquer maneira que
pudesse.

— Ok, ele era um jovem adulto e petulante. Isso foi há


muito tempo. Não sei o que isso tem a ver comigo.

— Cinco anos atrás, nosso pai morreu. Ataque cardíaco


maciço. Veio do nada. Na leitura do testamento, descobrimos
que ele deixou metade de seus bens para nossa mãe – e a
outra metade para mim. Errol não recebeu nada. — Bennett
diminui a velocidade até parar do lado de fora de um
conjunto de portões de ferro e então abaixa a janela,
digitando um código de seis dígitos. Os portões se abrem e ele
dirige para dentro, fazendo uma curva em torno de um
caminho circular e parando completamente em frente a uma
enorme propriedade de calcário com telhados profundos e
intrincadas cristas de ferro fundido. Portas duplas, brilhantes
e pretas, com aldravas de cabeça de leão de aço inoxidável,
adornam o centro de tudo. Uma fonte de mármore preto
repousa sem vida e preparada para o inverno no centro do
caminho.
Tudo nesta apresentação é tão frio quanto lindo.

Nada disso se parece como casa.

— Foi aqui que cresci — diz ele. — Dezessete mil pés


quadrados e oito acres de puro inferno não adulterado. —
Bennett leva mais um momento. — Foi aqui que aprendi o
que era família. O que família não era. Pelo menos pelos
padrões de Schoenbach. Foi aqui que minha mãe trouxe
Larissa para casa pela primeira vez e rapidamente percebeu
que ela mordia mais do que podia mastigar.

Eu imagino ser uma criança, ouvindo que você foi


adotado por sua família eterna, dirigindo até esta bela
propriedade... apenas para perceber que foi colocado com o
pior tipo de pessoa.

— Minha vida inteira foi um jogo de xadrez gigante.


Tudo foi um movimento. Estratégico. Manipulativo. Às vezes
eu era a torre. Às vezes eu era o rei. Outras vezes, era um
peão. Todos nós tivemos sua vez.

Sem pensar, eu o alcanço, deslizando minha mão na


dele.

— Lembra-se da semana passada quando eu disse a


você o que meu irmão planejava fazer assim que obtivesse a
custódia de Honor? — Ele pergunta.

— Sim?
— Na quarta-feira recebi um telefonema do meu
advogado. Acontece que o idiota entrou com o processo de
paternidade. Liguei para Errol, convidei-o, mostrei-lhe as
transcrições das mensagens de texto. Eu disse a ele que se
ele pretendesse continuar com o processo, eu garantiria que
todos que ele conhece recebessem uma cópia deles. — O
polegar de Bennett roça o topo da minha mão. — Ele sabia
que estava encurralado, então começou a fazer perguntas
sobre você. Ele estava tentando farejar o que eu sentia por
você. Eu não poderia deixá-lo pensar que eu me importava
com você porque ele teria encontrado uma maneira de
explorar isso, de usar isso contra mim.

— Sim, mas ele não me conhece. E não tenho nada a


esconder... — Não tenho um único esqueleto no meu armário
e nunca me envolvi em nada remotamente escandaloso. Não
há nada que seu irmão pudesse descobrir sobre mim.

— Você não conhece Errol ou do que ele é capaz. Ele é


um sociopata. Ele não tem bússola moral. Um manipulador
habilidoso que se sente um passo acima da lei. E minha mãe
é duas vezes pior. Eles formam uma equipe horrível. Não há
como dizer o que eles fariam se isso significasse conseguir o
que querem – e eles querem Honor fora de cena.

Eu olho para a casa mais uma vez, e um arrepio me


percorre. — Podemos sair daqui?

— Claro. — Ele solta minha mão e começa a dirigir.


Estamos a um quilômetro de distância antes que
qualquer um de nós fale novamente.

— Você entende por que eu tive que dizer o que disse?


— Ele pergunta. — Eu tive que proteger Honor. Eu tinha que
proteger você.

Eu concordo. Se o que ele está dizendo é verdade... E


meu pressentimento é que ele está... então faz todo o sentido.

— Lamento que você tenha que ouvir isso. E lamento


que você tenha passado os últimos dias duvidando se o que
temos é real, mas eu juro, Astaire. É a coisa mais real que já
senti. Eu não posso te dizer como se sentir, mas é real para
mim. — Paramos em um sinal vermelho quando ele retirou
um grande envelope branco, dobrado ao meio, do visor acima.
— Isto é para você.

O envelope está em branco do lado de fora. Abro e pego


uma pilha de papéis, todos com o logotipo de um advogado
no topo.

A primeira linha diz CONTRATO DE COMPRA.

— O que é isso? — Eu pergunto.

O sinal fica verde e seguimos em frente.

— Basta ler — diz ele.

A papelada é datada de sábado passado.


Eu examino o documento legal até chegar à linha que
afirma claramente que o TEATRO ELMHURST é, doravante,
propriedade de ASTAIRE CARRARO.

— Oh meu Deus. — Eu deixei os papéis caírem no meu


colo.

— Você adora aquele lugar — diz ele. — Você mencionou


durante a excursão que os proprietários estavam pensando
em vender, então eu fiz algumas verificações com todo o meu
tempo livre nas últimas semanas. Acontece que eles tinham
uma lista de bolso 20 com um comprador interessado que
tinha a intenção de demoli-lo e substituí-lo por condomínios.

— Você salvou o Elmhurst... — Eu limpo uma única


lágrima feliz antes de entrelaçar meus dedos com os dele. —
Você é um santo. Realmente. Você não tem ideia do quanto
isso significa para mim. Mas eu não tenho os meios para
restaurá-lo... eu não tenho o...

— Estendi de lado uma relação de confiança que deve


gerar interesse suficiente para cobrir a manutenção contínua.
Também reservei uma conta para cobrir as reformas, atuais e
imprevistas.

Faz sentido agora porque os proprietários não enviaram


um e-mail. Aposto que Bennett pediu a eles que calassem
porque queria ser ele a me contar.

20 Uma listagem de bolso é qualquer tipo de listagem de imóveis mantida por um corretor de
listagem ou vendedor que não disponibiliza a listagem para outros corretores no escritório ou para
outros membros do serviço de listagem múltipla (MLS). Uma lista de bolso também pode ser
referida como uma "lista exclusiva".
— Além disso, você sabia que os três andares acima do
teatro foram usados como espaço de armazenamento nos
últimos vinte anos? — Ele pergunta.

— Mesmo? Nunca tivemos nenhum motivo para subir lá.

— Honor e eu visitamos o lugar no fim de semana


passada e achamos que seria um lugar maravilhoso para se
viver.

— O que...?

— Esse bairro fica em uma área promissora, ideal para


famílias, perto da escola dela, muitos parques... — diz ele. —
Ela não precisa crescer em uma cobertura. Ela precisa
crescer em um lar. Portanto, vamos torná-lo um lar e
ficaríamos honrados se você se juntasse a nós nesse
processo.

— Você está me pedindo para morar com você?

— Eu estou — Ele se vira para mim.

— Uau. — Eu me inclino para trás em minha cadeira


quente, observando o mundo cinza passar.

— Eu sei que é muito para absorver de uma vez. E


quero que saiba que não espero uma resposta imediata — diz
ele. — E independentemente da sua escolha, o teatro e tudo o
que vem com ele... é meu presente para você.
Lembro-me de minha conversa com Ophelia na última
sexta-feira, quando ela o chamou de homem rico e solitário
com complexo de Batman.

Também me lembro do que ela disse sobre como ele


poderia ter qualquer loira, de vinte e poucos anos, que ama
crianças – e ainda assim ele me quer.

Voltamos para meu apartamento em silêncio, juntos,


mas sozinhos com nossos pensamentos.

— Vou acompanhá-la — diz ele.

— Obrigada por me mostrar onde você cresceu hoje. Eu


imagino que não foi fácil para você voltar lá.

Ele oferece um sorriso triste. — É a primeira vez que


ponho os pés na propriedade da minha mãe em anos.

— Eu... — minhas palavras são capturadas. — Lamento


não ter dado a você a chance de explicar.

— Astaire, por favor. Não se desculpe. O que você ouviu


foi terrivelmente perturbador. Você tinha todo o direito de
tirar um tempo para se acalmar antes de me ouvir.

— Você me disse uma vez que eu deveria acreditar nas


pessoas quando elas me mostrassem quem são — eu digo. —
E eu estou me chutando porque desde o começo, você me
mostrou quem você realmente era. Seu coração de ouro
estava nos detalhes. Nas pequenas coisas. Durante todo esse
tempo. E eu odeio ter duvidado de você por um minuto.
Ele fecha o espaço entre nós, levantando a mão para o
meu quadril. — É natural questionar as coisas,
especialmente quando elas parecem boas demais para ser
verdade.

— Sim — eu digo. — Essa coisa que nós temos. É como


um sonho às vezes, é muito bom.

— Eu não poderia concordar mais.

Eu levanto minha mão para sua bochecha, as pontas


dos dedos passando em sua mandíbula afiada, e sua boca
abaixa na minha. O calor floresce pelo meu corpo e, pela
primeira vez em quase uma semana, o vazio apertado em
meu peito se foi.

— Eu te amo muito, Astaire. — Ele tira uma mecha de


cabelo do meu rosto. — Você é tudo para mim. Nunca vai
haver mais ninguém.

— Eu também te amo. — Eu inalo seu cheiro familiar,


arrastando-o em meus pulmões e segurando-o por um
momento. Minha boca se curva para um lado e meu dedo
roça sua cintura. — Você quer entrar um pouco...?

Ele reivindica meus lábios mais uma vez. — Só um


pouco, depois vou levá-la de volta para casa comigo. Onde
você pertence.
Bennett

— O que ela está fazendo, tio Bennett? — Honor


pergunta da terceira fila enquanto George lê um jornal no
banco do motorista e Astaire vai até o túmulo de Trevor. — O
que são todas essas coisas cinzentas? Por que alguns deles
são maiores do que os outros?

— Ela está visitando um amigo — eu digo.

— Um amigo que mora em uma daquelas coisas


cinzentas?

— O amigo mora no céu, como sua mãe. As coisas


cinzentas são... — Deus, eu sou péssimo nisso. Se Astaire
estivesse aqui, ela saberia exatamente o que dizer, mas ela
soltou esta pequena excursão sobre nós no último minuto. —
As coisas cinzentas têm seus nomes e datas de aniversário
nelas, e é assim que as lembramos.

— Então o amigo dela mora com minha mãe? — Ela


pergunta.

Eu pondero minha resposta. — Sim.


— Você acha que eles se conhecem?

George bufa baixinho, seus olhos sorrindo no retrovisor


quando ele olha para cima.

— Eu imagino que eles se conheçam agora. — Olho pela


janela a tempo de ver Astaire voltando.

Ela desliza ao meu lado com um sorriso com lágrimas


nos olhos.

Eu coloco minha mão em sua coxa. — Tudo certo?

Astaire concorda. — Hoje seria seu vigésimo sétimo


aniversário.

É tudo o que ela diz, e eu não me intrometo. Eu sei que


o que ela teve com Trevor foi especial, mas tenho que lembrar
que foi especial à sua maneira. O que ela tem comigo é
separado, diferente e especial à sua maneira.

— Todo mundo de cinto? — George pergunta.

Eu deslizo minha mão na de Astaire e verifico o banco


de trás para ter certeza de que Honor ainda está presa em
seu cinto.

— Sim, vamos sair — eu digo.

Estamos passando uma tarde na cidade, parando por


algumas horas no aquário antes de assistir a uma matinê da
Disney – duas coisas que nunca sonhei que faria nesta vida.
Quando terminarmos, George nos deixará para uma
noite à dois, com jantar no Sol Bleu e uma noite no Península
Hotel. Ele levará Honor para casa, onde Eulália a estará
esperando.

Astaire não gosta de gestos exagerados, mas depois da


semana que tivemos, precisamos desta noite.

E algo me diz que será uma digna dos livros...


Astaire

— Você é tão bom com ela — eu sussurro da porta de


Honor na noite de domingo. Ela adormeceu no sofá depois do
banho, aninhada contra Bennett com seu ursinho de pelúcia
cinza debaixo de um braço.

Ele desliga a lâmpada da cômoda e fecha a porta sem


fazer barulho, encontrando-me no corredor. — Acho que a
cansamos neste fim de semana.

Eu bocejo. — O mesmo.

Seus dedos traçam minhas costas enquanto nos


dirigimos para seu quarto – nosso quarto.

Ontem à noite, ele me levou para um encontro surpresa


à noite na cidade que consistia em comida francesa incrível,
sexo quente, sexo mais quente, um sono de mil anos na cama
mais macia conhecida pelo homem, sexo matinal no chuveiro
e serviço de quarto com café da manhã de morrer.

No caminho para casa, ele perguntou se eu oficialmente


iria morar com ele.
Eu disse a ele que poderíamos tornar isso oficial neste
verão, depois de nossa viagem de três semanas a Marco
Island – uma tradição que vamos manter em memória de
Linda.

Cambaleamos para a cama, enrolamo-nos


desordenadamente juntos e exalamos a insanidade da
semana passada.

Ou pelo menos eu faço.

Tenho a sensação de que Bennett nunca perdeu as


esperanças, nunca duvidou por um segundo que tudo daria
certo no final.

— Por que você acha que Larissa queria que eu tivesse


Honor? — Bennett pergunta através de um bocejo.

— Isso é aleatório...

Ele suspira. — Eu sei. Só está na minha cabeça.

— Não é algo que você pode simplesmente ligar para o


seu cara e obter uma resposta uma semana depois —
provoco. — Tenho certeza que você não está acostumado com
isso.

— Verdade.

— Você vai ter que fazer as pazes com nunca saber. —


Eu rolo na direção dele, descansando meu braço sobre o calor
radiante de sua parte superior do corpo. — Mas gosto de
pensar que ela viu algo em você que você nunca foi capaz de
ver em si mesmo.

— Como o quê?

Eu luto contra um sorriso, sabendo o quão insano isso


vai soar. — Quando as pessoas olham para você, elas veem
Bruce Wayne... ou veem o Batman. Acho que você era o
Batman dela.

Bennett está quieto, quieto.

E então ele ri. Risos

Bennet Schoenbach... rindo.

E no escuro, eu o vejo enxugar uma única lágrima.

— Meu Deus, Astaire, essa é a coisa mais engraçada... e


mais triste que já ouvi. — Ele me puxa contra ele. — Mas da
maneira mais estranha, faz todo o sentido.

Eu seguro seu rosto e pressiono um beijo contra seus


lábios. — Eu sempre soube que você era um molenga gigante
por dentro, Schoenbach. Agora vá dormir.

— Amo você.

— Amo você também.


Bennett

Três meses depois...

— Eu atenderei! — Os passos de Honor pisam no


corredor na sexta à noite e viram em direção à porta antes
que eu tenha a chance de impedi-la.

Não seria a pizza. Nós só pedimos cinco minutos atrás.

— Você está esperando alguém? — Astaire levanta os


olhos da pilha de papéis que está corrigindo e pausa Quanto
Mais Quente Melhor.

Eu balanço minha cabeça, coloco meu primeiro


exemplar de Phaedo de lado antes de seguir minha filha até a
porta – que ela já abriu.

— Bennett, oi. — Deidre do 6A está do outro lado da


soleira, acenando com o dedo para mim com um sorriso
confuso nos lábios vermelhos. — Eu estava saindo para
passar a noite. Você não atendeu o telefone e eu não te via há
algum tempo, então eu ia ver se você queria se juntar a mim,
mas parece que você tem companhia.
Seu olhar cai para Honor antes de levantar para mim
novamente.

— Deidre, esta é minha filha — eu digo.

Honor desliza sua mão na minha, encostando-se em


mim. Há alguns meses, ela perguntou se poderia me chamar
de "papai". Claro que dei a ela um sonoro sim. Ela me tem
para o resto da vida. Mas, no fundo, eu tinha certeza de que
demoraria um pouco até que parecesse natural.

Oh, como eu estava errado.

— Vamos comer pizza. Você quer entrar? — Honor


pergunta. — Minha mãe está na outra sala assistindo a um
filme chato, mas você pode montar um quebra-cabeça
comigo, se quiser.

Eu olho para trás, me perguntando se Astaire pode ouvir


isso.

Honor nunca se referiu a ela como sua mãe antes.

— Oh, não, obrigada, querida. Eu não quero me


intrometer no seu... tempo com a família. — Deidre fala com
minha filha, mas olha para mim. Seu olhar avelã está vítreo,
seu tom compensando a dor de rejeição que imagino que ela
esteja experimentando.

Nossas ligações nunca foram mais do que ligações – pelo


menos não para mim. Mas imagino que sempre houve uma
corrente de esperança mal colocada em seu lado – uma que
escolhi ignorar.

Tenho trabalhado para ser sensível aos sentimentos dos


outros recentemente. Ajuda ter uma namorada que é um livro
aberto e uma garotinha que vivencia todos os tipos de
emoções na queda de um chapéu.21

— Obrigado por passar por aqui, Deidre. — Eu coloco


minha mão na porta e faço uma nota mental para excluir o
número dela. — Tudo de bom pra você.

Quando eu volto para a sala de estar, Honor já está lá.


Ajoelhada na frente de Astaire, ela está pulando
animadamente de joelhos.

— O que está acontecendo? — Eu pergunto.

— Honor acabou de perguntar se ela poderia me chamar


de mãe. — Astaire me estuda. — Eu disse a ela que é algo
que você e eu discutiríamos mais tarde.

— Ok! — Imperturbável, Honor retorna ao seu quebra-


cabeça no chão. Um minuto depois, ela está entediada com
isso, optando por pular pelo corredor até seu quarto.

— Você se incomodaria se ela me chamasse de mãe? —


Astaire pergunta quando Honor está fora do alcance da voz.
— Quer dizer, estou bem com isso, se é isso que ela quer... E
se é isso que você quer.

21 Quis dizer muito rápido, sem pensar muito.


Sento-me ao lado dela, colocando seus papéis na mesa
de centro e puxando-a para o meu colo.

— No que me diz respeito, Astaire, você é a mãe dela


agora. — Eu tiro uma mecha de cabelo macio de sua
bochecha, colocando-a atrás da orelha. — Você a acomoda.
Você lê as histórias dela. Você dá banho nela. Você enfaixou
seus joelhos arranhados. Você canta as canções dela. Você
ama o pai dela incondicionalmente – mais do que ele
provavelmente merece.

Consigo dar um sorriso lento para ela.

— Somos uma família — digo a ela. — Nós três. Esta é


sua família. Você pertence aqui. Conosco.

— Eu sei — ela diz. Ela acha que estou perseguindo-a


de novo sobre a mudança. — Meu aluguel termina em junho,
lembra?

— Não é disso que estou falando.

Astaire levanta uma sobrancelha.

— Eu quero tornar isso oficial — eu digo.

— Você uma vez me disse que achava que o casamento


era uma instituição desatualizada...

— E de muitas maneiras ainda me sinto assim – exceto


quando se trata de você. — Eu seguro seu rosto em minhas
mãos, provo seus lábios. — Pode me chamar de antiquado,
mas a ideia de passar o resto da vida cuidando de você me faz
sentir coisas que nunca pensei ser capaz de sentir.

— Sim? Como o quê?

Eu a beijo novamente, minha boca roçando a dela. —


Tudo.

— Tudo?

— Eu estava entorpecido antes de te conhecer — eu


digo. — Mas com você, estou vivo pela primeira vez. Você
torna tudo novo e excitante e eu sei que pareço um cartão de
felicitações agora, mas não me importo porque quero passar o
resto da minha vida com você, Astaire Carraro. E quero que
saiba que te amo mais do que jamais amei qualquer coisa em
toda a minha vida. Você é minha pessoa. Você é minha razão.
Você é todo o meu maldito mundo.

Lágrimas nublam seus olhos e suas palmas repousam


contra meu peito. Tenho certeza de que meu coração está
batendo a cem milhas por hora.

— Case-se comigo, Astaire Carraro. — Não tenho anel e


essa proposta não foi planejada, mas não sou nada mais do
que um oportunista. — Passe o resto de sua vida comigo.
Com a gente.

Seu olhar azul bebê procura o meu e por um momento,


eu juro que flashes eternos diante de mim como cenas de um
filme.
Astaire em branco.

Astaire segurando um bebê nos braços.

Astaire torcendo por Honor em um jogo de basquete.

Astaire nos forçando a posar para fotos em frente a


algum castelo do parque temático.

Astaire deitada na cama ao meu lado enquanto cito


Platão e nos divertimos em uma discussão intensa e
estimulante sobre a filosofia grega antiga antes de pularmos
um no outro...

— Sim. — Ela traça a ponta do dedo ao longo do meu


queixo antes de se inclinar para um beijo. — Sim, eu me
casarei com você, Bennett Schoenbach.
Bennett

Três anos depois...

— Como estou? — Astaire passa as palmas das mãos no


vestido dourado cintilante que envolve seu corpo – e combina
com sua alma.

— Linda — eu balanço nosso filho, Charlie, no meu


quadril. Seus olhos azuis de Schoenbach brilham quando ele
vê sua mãe. — E tarde. Deveríamos descer as escadas há dez
minutos...

— Atire, atire, atire. — Ela se inclina sobre a


penteadeira, deslizando um batom rosa-pink sobre os lábios
carnudos. — Eulália está aqui?

— Ela está com Honor na sala de jogos.

Claro. Essas duas são inseparáveis. E Eulália é


praticamente da família neste momento, a coisa mais
próxima de uma avó que nossos filhos jamais terão.
Astaire segura a bainha do vestido nas mãos e calça um
par de sapatos de salto alto cravejados de cristal antes de
pegar sua bolsa de pele sintética.

É a grande reabertura do Elmhurst, três anos em


construção.

Embora esperássemos ter o local instalado e


funcionando muito antes, também queríamos dar-lhe uma
restauração completa, o que implicou em licenças, bloqueios,
centenas de telefonemas para especialistas, intermináveis
horas de trabalho buscando diversas antiguidades
relacionadas a teatros de todo o mundo — Entre muitas
outras coisas.

Houve também o projeto e a remodelação do espaço de


armazenamento na casa dos nossos sonhos...

A venda da minha empresa.

O ano que passamos ricocheteando ao redor do globo,


em qualquer lugar que o vento nos soprasse...

O casamento na Suíça com Ophelia oficializando...

O nascimento de nosso filho no ano passado...

Agora que estamos de volta em casa e acomodados,


começamos recentemente o processo de estudo em casa, na
esperança de criar um filho ou dois em um futuro próximo
com a intenção de adotar em algum momento.
— Estou tão nervosa. — Ela sorri para nosso filho, faz
cócegas na parte inferior de seu queixo e se inclina para um
beijo, deixando uma mancha em forma de boca em sua
bochecha rechonchuda. — Espero que todos gostem do que
fizemos.

— Como eles não poderiam? Será como entrar direto em


1921. Você pegou um teatro decadente e o transformou em
uma joia do bairro. Pessoas virão de todos os lugares para ver
este lugar. Agora vamos embora. Não sei se você olhou para
fora ultimamente, mas a fila já está no fim do quarteirão...

Astaire corre para a janela, olhando para baixo. — Oh


meu Deus. Isto é...

Deixamos Charlie com nossa indispensável Eulália na


brinquedoteca e descemos as escadas, entrando pela entrada
privativa que instalamos durante a reforma.

— Está pronta? — Eu pego a mão dela. Ela concorda.

No instante em que viramos a esquina, somos recebidos


com um estridente — SURPRESA!

Pedi ao gerente que reunisse os voluntários originais,


aqueles com quem Astaire trabalhou anos atrás, para deixá-
los entrar mais cedo para um momento privado juntos.

Astaire engasga, leva as mãos à boca e corre em direção


a eles, dando abraços como doces em um desfile.
Com o passar dos anos, aprendemos que não importa
quão pequena ou desconectada seja sua família de origem,
porque amigos também podem ser uma família. Ophelia e
Astaire são como irmãs hoje em dia. E ela fez inúmeras novas
conexões em todo o mundo, assim como um punhado de
amigas mães de vários grupos de recreação pela cidade.

Eu tenho me mostrado mais também...

— Expandindo seus horizontes de amizade além de Jax e


seus outros 'às vezes' amigos — como ela tão delicadamente
colocou uma noite.

Minha próxima consulta com a Dra. Rathburn é daqui a


um mês. Felizmente, não tive crises ou sinais de rejeição
desde meu último episódio, três anos atrás.

Astaire diz que é porque finalmente aceitei o amor em


meu coração e esse amor cura tudo.

Apesar de tudo, a vida é boa.

Infelizmente, não posso dizer o mesmo do meu irmão.


Ouvi boatos de que a adoção deles fracassou e também ouvi
que Beth conheceu alguém novo – algum tatara – Rothschild
que ela conheceu em um evento de arrecadação de fundos
que participaram juntos. Beth pode ter fingido ignorância na
maioria das vezes quando se tratava de meu irmão, mas ela
nunca foi estúpida. Ela deve ter visto que o barco estava
afundando e ela pulou na primeira chance que teve.
Minha mãe quase teve um enfarte quando descobriu que
eu vendi a corporação – ou pelo menos foi o que ouvi da
minha secretária na época. Desativei seu cartão de acesso ao
prédio e minha equipe estava sob ordens estritas de
direcionar minha mãe a uma conta falsa de correio de voz
que eu tinha pedido o departamento de TI para filtrar
especificamente suas mensagens incessantes.

Mas as ligações pararam eventualmente, e ela nunca


tentou comparecer a um de seus infames encontros cara a
cara.

Rumores dizem que ela se internou em um "Santuário


de bem-estar" para descansar e relaxar pouco depois que a
venda foi finalizada, mas aqueles que a conhecem afirmam
que ela teve um pequeno colapso nervoso e tem vivido como
uma reclusa na casa de nossa família.

Não posso dizer que me sinto mal por ela. Não posso
dizer que tenho me importado com o que ela está fazendo
atualmente. Estou muito ocupado para me preocupar com
assuntos insignificantes ou pessoas miseráveis e egoístas.

As únicas coisas que merecem um grama do meu


tempo... estão neste prédio.

Tudo mais é ruído.

— Está começando a chover — Astaire puxa minha


manga. — Devíamos deixá-los entrar mais cedo.
— Martin, destranque as portas, por favor — digo ao
gerente.

Estava chovendo no dia em que conheci o tipo estranho


que mudou para sempre a trajetória da minha vida para
melhor – e desde então, sempre vi a chuva como um sinal de
boa sorte.

Fim

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