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BuGIATO, Caio - Marxismo e Relações Internacionais
BuGIATO, Caio - Marxismo e Relações Internacionais
2
MARXISMO E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
3
DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank
DIAGRAMAÇÃO: Willames Frank
DESIGNER DE CAPA: Willames Frank
S319p
BUGIATO.Caio, (Organizador)
ISBN: 978-65-88994-15-3
4
CAIO BUGIATO
Organizador
MARXISMO E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
5
Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento
6
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................ 9
Capítulo 1........................................................................................ 18
MARX E A FORMAÇÃO DO SISTEMA
INTERNACIONAL MODERNO
Luis Fernandes
Capítulo 2 ....................................................................................... 33
A INTERPRETAÇÃO MARXISTA SOBRE O LIVRE-
COMÉRCIO E O EXEMPLO DO NAFTA
Carlos Serrano Ferreira
Capítulo 3 ....................................................................................... 71
BREVES ANOTAÇÕS SOBRE IMPERIALISMO,
ESTADO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Luiz Felipe Osório
Capítulo 4 ..................................................................................... 101
IMPERIALISMO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
DOS CLÁSSICOS AOS COMTEMPORÂNEOS
Caio Bugiato
Tatiana Berringer
Capítulo 5 ..................................................................................... 123
HEGEMONIA E IMPERIALISMO: CARACTERIZAÇÕES
DA ORDEM MUNDIAL CAPITALISTA APÓS A II
GUERRA MUNDIAL
Ana Garcia
7
Capítulo 6 ..................................................................................... 144
A CONTRIBUIÇÃO NEOGRAMSCIANA PARA OS
ESTUDOS INTERNACIONAIS
Leonardo Ramos
Capítulo 7 ..................................................................................... 179
POULANTZAS, ESTADO E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Caio Bugiato
Capítulo 8 ..................................................................................... 205
LUTA HEGEMÔNICA E POPULISMO: SOLUÇÕES
AGONÍSTICAS PARA O DESAFÍO IDENTITÁRIO
Mayra Goulart
Capítulo 9 ..................................................................................... 234
REVOLUÇÕES E RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
CONTRIBUIÇÕES E CARÊNCIAS DO MARXISMO
Paulo G. Fagundes Visentini
Capítulo 10 ................................................................................... 250
A TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DO MARXISMO LATINO-
AMERICANO ÀS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Maíra Machado Bichir
REFERÊNCIAS ........................................................................ 280
8
APRESENTAÇÃO
9
dizer sobre as relações internacionais, pois seria uma teoria
economicista que reduziria os fenômenos da política
internacional à dinâmica da economia capitalista; não ofereceria
uma teoria sobre o Estado (o principal agente das relações
internacionais); seria meramente uma perspectiva normativa
dedicada à utopia socialista e incapaz de realizar análises da
realidade concreta; ou até mesmo seria mais uma dentre as várias
perspectivas eurocêntricas que não caberia nas análises sobre a
periferia.
No Brasil, o campo segue a mesma linha, exceto talvez
na área da Teoria de Relações Internacionais (TRI). Nessa área,
contudo, alguns “manuais” de Teoria das Relações
Internacionais apresentam uma teoria marxista pertinente às
Relações Internacionais em que o Marxismo (ou alguma
abordagem de inspiração marxista) aparece como uma possível
teoria de RI. Não obstante, as entradas do Marxismo ocorrem
de forma caricata, ocultam a potencialidade desse pensamento
crítico para a área e revelam seu desconhecimento sobre o vasto
campo que é o Marxismo e suas variadas contribuições acerca
das relações internacionais. O que nos chama atenção é que
algumas abordagens nem sequer citam ou fazem referência aos
estudos marxistas, sobretudo ao se referir a Marx e Engels, que
supostamente teriam permanecido alheios às questões da política
internacional. Ocultam os copiosos estudos de Marx e de Engels
sobre o tema. Ao posso que, na realidade, é de conhecimento de
estudiosos/as da área que Marx e Engels procuraram entender
uma série de fenômenos internacionais do século XIX, cujas
análises foram publicadas em periódicos da época. A guerra, a
política externa das grandes potências, o colonialismo na
periferia, as crises econômicas e o livre comércio e a expansão
do modo de produção capitalista para fora da Europa são alguns
dos temas tratados pelos amigos de letras e lutas. Tais
abordagens, enfim, demonstram uma ideologia que permeia a
10
sistemática exclusão do Marxismo como teoria explicativa dos
fenômenos internacionais. Destarte, entendemos que, tal como
a luta de classes na sociedade capitalista, a marginalização do
Marxismo expressa uma luta de ideias entre defensores e
oponentes do capitalismo.
Assim sendo, não podemos deixar considerar o
argumento de Kees van der Pijl (2014)1, segundo o qual a
formação do mainstream das RI (as teorias do Realismo,
Liberalismo e posteriormente do Construtivismo), são uma
construção de ideias que projetam a supremacia ocidental na
forma de uma hegemonia intelectual funcional ao centro do
capitalismo e, desta forma, obscurecem as relações de
dominação e exploração implícitas no mundo liberal. Essa
construção tem origem na reação de Woodrow Wilson, ao final
da Primeira Guerra Mundial, ao internacionalismo da Revolução
Russa, pois seus Quatorze Pontos são uma cópia
contrarrevolucionária do programa bolchevique. Coube à
nascente disciplina na segunda década do século XX iniciar um
processo intelectual para ofuscar e marginalizar o rico debate em
curso, na época, sobre autodeterminação dos povos à luz de uma
crítica ao imperialismo e, em seguida, ao Marxismo em geral.
Portanto, as RI surgiram para desvincular os fenômenos
internacionais das lutas de classes e o processo de acumulação
de capital, que no fim das contas promove o capitalismo como
o estado natural e superior da vida humana. E ainda no decorrer
do seu desenvolvimento, teorias e análises desse campo,
pautados pelo seu mainstream, têm procurado ratificar estratégias
de dominação de Estados, governos e classes ao universalizar
conceitos abstratos que explicariam as relações internacionais
sem qualquer vínculo com o capitalismo. Além de encaixar o que
está fora do mainstream no balaio das “teorias críticas”.
1Foi o professor Giorgio Romano Schutte que nos chamou atenção para
essa obra e esses argumentos de Pijl.
11
Entretanto, com esse livro que o/a leitor/a tem em
mãos propomos realizar um encontro entre o Marxismo e as RI,
trazendo à tona contribuições do materialismo histórico sobre as
relações internacionais, desconhecidas por estudiosos/as da
área2. Voltado para a comunidade acadêmica brasileira de
Relações Internacionais, o livro consiste em uma coletânea de
textos de autores/as brasileiros/as que apresentam conceitos,
teorias e temáticas específicas, além de marcar o início de uma
possível intervenção no quadro intelectual descrito nessa
apresentação. Destacam-se as reflexões que cada capítulo traz
para possíveis e vindouros desenvolvimentos teóricos e
promoções de análises de situações concretas. Assim os dez
capítulos a seguir tratam, em uma perspectiva multidisciplinar
como é pertinente à área, de temas das principais disciplinas dos
cursos de Relações Internacionais e convida à pesquisa sobre o
oculto Marxismo, tão demonizado quanto desconhecido nos
quatro cantos do mundo, do capitalismo em barbárie.
No capítulo 1, Luís Fernandes parte da crítica segundo
ao qual ao longo do último século as orientações teóricas
predominantes na disciplina de Relações Internacionais
tenderam a considerar a teoria marxista irrelevante ou de
rendimento heurístico limitado para os estudos da área. O autor
disputa essa apreciação, e argui que Marx (e Engels) no Manifesto
Comunista forneceu chaves teóricas fundamentais para
compreender a formação e o desenvolvimento do sistema
internacional moderno. Dentre estas, se destacam sua
identificação da ruptura histórica que constituiu o próprio
mundo moderno (a partir da gênese, consolidação e expansão
12
global do modo de produção capitalista), gerando
deslocamentos sociais que levaram à formação de poderes
estatais centralizados na Europa, sobre os quais se ergueu o
sistema internacional. A partir desta gênese, o desenvolvimento
mundial foi marcado pela interação sempre tensa e contraditória
de dimensões transnacionais e internacionais. Segundo
Fernandes, esta abordagem teórica permite captar tanto a
natureza heterogênea do sistema internacional, quanto às
especificidades de variadas formações sociais nacionais e sua
interação.
No capítulo 2, Carlos Serrano Ferreira aborda dois
temas centrais nas Relações Internacionais: o livre-comércio e a
integração comercial. O objetivo geral é apontar a existência de
forma distinta de pensar a integração comercial, que transcende
a dicotomia entre livre-comércio e autarquia, introduzindo a
perspectiva marxista da luta de classes e sua expressão mediada
na luta entre nações. O autor apresenta ainda o pensamento de
alguns autores marxistas: Karl Marx, Vladimir Lênin e os
teóricos marxistas da dependência.
No capítulo 3, Luiz Felipe Osório faz um mapeamento
inicial das perspectivas teóricas sobre imperialismo, a partir das
teorias marxistas do Estado e das relações internacionais. O
autor passa por três debates, pautados na historicidade do
capitalismo por crises estruturais e grandes guerras entre as
potências, dada pela teoria materialista do Estado. O texto então
se estrutura pelo entrelaçamento de duas balizas de
sistematização do pensamento sobre imperialismo, que não são
mandatoriamente correspondentes: a) a cronológica que abarca
a periodização histórica em três fases, desde sua gênese no final
do século XIX (1870 a 1945), passando por suas transformações
(1945 a 1970), até sua forma hodierna no século XXI (1970 até
os dias atuais); e b) a teórica que ordena as diversas perspectivas
sobre imperialismo pela ênfase que o conceito confere aos
13
aspectos econômicos (lei do valor, seus movimentos e suas
manifestações), aos políticos (luta e correlação de classes e de
grupos) e à inter-relação destes dentro do espectro marxista.
Munido desses critérios, o capítulo objetiva estimular discussões
e servir de fermento para reflexões vindouras sobre o horizonte
ainda pouco explorado do Marxismo nas relações internacionais.
No capítulo 4, Caio Bugiato e Tatiana Berringer
apresentam as principais ideias que constituem as teorias do
imperialismo, as clássicas e as contemporâneas. Entre os autores
clássicos abordam o pensamento de Karl Kautsky, Vladimir
Lenin e Rosa Luxemburgo, militantes e intelectuais socialistas
que procuram refletir sobre as relações internacionais no início
do século XX. Entre os autores contemporâneos, abordam o
pensamento de David Harvey, William Robinson e Alex
Callinicos, os quais de certa maneira retrabalham as teorias
daqueles de modo a teorizar e analisar a realidade internacional
contemporânea. Além de uma apresentação sintética sobre os
teóricos, buscam relacionar suas ideias ao identificar como se
reproduz o legado dos primeiros nos últimos e fazem
apontamentos críticos sobre as teorias atuais para entender as
relações internacionais contemporâneas.
No capítulo 5, Ana Garcia traz à tona os conceitos de
hegemonia e imperialismo nas RI usados por diferentes
correntes teóricas. Segunda a autora, o uso dos conceitos de
hegemonia e imperialismo é intercalado na literatura de Relações
Internacionais para explicar uma ordem internacional
hierárquica sob dominação de uma potência. O termo
“imperialismo” é utilizado em geral por marxistas, enfatizando o
elemento da coerção, que, diferentemente do imperialismo
clássico, hoje se dá de forma opaca e indireta. Já “hegemonia” é
usado de forma ampla por teóricos críticos, realistas e
institucionalistas, enfatizando elementos do consenso, como
14
regras, normas e instituições internacionais. O período de
dominação dos EUA é caracterizado com ambos os termos.
No capítulo 6, Leonardo Ramos busca apresentar as
contribuições dadas por uma perspectiva neogramsciana para o
entendimento das dinâmicas de ordem e poder na economia
política global. Para tanto, o autor divide o texto em duas
grandes partes: na primeira, é apresentado o pensamento de
Gramsci em seu contexto para, em um segundo momento, ser
desenvolvida uma releitura de Gramsci para além de seu
contexto. Assim, tal releitura ocorrerá a partir do engajamento
com alguns autores neogramscianos, como Robert W. Cox,
Stephen Gill, William I. Robinson, Adam Morton e John Agnew.
Neste processo, é feita uma discussão sobre a incorporação da
obra de Gramsci na economia política global, com destaque para
os impactos da globalização para a Pax Americana e,
consequentemente, para o processo de internacio-
nalização/transnacionalização do Estado.
No capítulo 7, Caio Bugiato trata da teoria do Estado e
da teoria do imperialismo de Nicos Poulantzas contida em suas
obras: Poder político e classes sociais, As classes sociais no capitalismo hoje
e A crise das ditaduras: Grécia, Espanha e Portugal. O autor aborda
as ideias sobre o Estado capitalista, o bloco no poder e as classes
e frações de classes sociais, além da pouco conhecida teoria do
imperialismo. Nesse sentido, é possível verificar que Poulantzas
construiu uma rica teoria que entende as relações internacionais
de forma complexa e baseada na luta de classes e que sua
contribuição para o campo das Relações Internacionais
comporta enorme potencial.
No capítulo 8, Mayra Goulart trata da abordagem
neogramsciana de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau. Centrada
nos conceitos de luta hegemônica e populismo, esta análise é
realizada mediante uma genealogia que visa abordar as
manifestações de ambas as categorias na América Latina
15
correlacionando teoria e práxis. Após esse primeiro esforço, que
objetiva situar a obra dos autores como um ponto de inflexão na
tradição marxista, são desenvolvidos três desdobramentos
axiológicos desse movimento. O primeiro, diz respeito à relação
entre o conceito de populismo e o marco teórico estabelecido
em Hegemonia e Estratégia Socialista – por uma política democrática
radical (1985). O segundo, apresenta tal formulação como uma
síntese entre abordagens teóricas que ultrapassam os limites do
marxismo tradicional. O terceiro movimento, por sua vez,
salienta alguns riscos inerentes ao populismo enquanto operador
que, embora possua uma afinidade com a contra-hegemonia, tem
seu potencial emancipatório drenado pela excessiva ênfase na
figura do líder.
No capítulo 9, Paulo G. Fagundes Visentini dialoga com
a área de Segurança Internacional e Defesa. De acordo com o
autor, o fenômeno da guerra tem sido um dos focos centrais dos
Estudos de Defesa. Todavia, as revoluções pouco são estudadas
em seu impacto internacional, entre os quais a provocação de
guerras, pois geralmente são encaradas como “subversão”
interna, mesmo que provocada por agente externo. As
revoluções não apenas perturbam a ordem mundial, mas a
redefinem, juntamente com a agenda de defesa. Assim, por
exemplo, não é possível analisar a China apenas como um
Estado, pois sua percepção de defesa possui elementos que
remetem à revolução e seu regime político. Por isso, é necessário
agregar o impacto das revoluções nos estudos de defesa.
No capítulo 10, Maira Machado Bichir trata da Teoria
Marxista da Dependência (TMD), que emerge na década de 1960
em meio à agudização das contradições econômicas e sociais na
região latino-americana e à polarização política entre revolução
e contrarrevolução, que representou um marco decisivo na
análise das relações internacionais. A TMD reúne em seu corpo
teórico elementos do marxismo “clássico” e de uma tradição de
16
pensamento forjada na América Latina, com a preocupação de
compreender e transformar a nossa realidade a partir de um
olhar próprio. Ainda, para Bichir, os autores e autoras da TMD
explicitam as profundas hierarquias de poder que caracterizam o
sistema internacional, evidenciando a modalidade particular de
acumulação e reprodução do capital nos países dependentes, os
mecanismos de transferência de valor dos países dependentes
para os países imperialistas e seus impactos no exercício do
poder político pelos Estados dependentes. É na subversão do
olhar, da narrativa, da análise, cujo ponto de partida se desloca
para os países dependentes latino-americanos, em que reside a
potencialidade da teoria marxista da dependência, tanto para as
Relações Internacionais, quanto para o próprio Marxismo.
Boa leitura!
17
Capítulo 1
MARX E A FORMAÇÃO DO SISTEMA
INTERNACIONAL MODERNO3
Luis Fernandes4
UFRJ.
18
por exemplo, critica o célebre texto do Manifesto Comunista por
desenhar uma imagem transnacional da expansão global do
capitalismo, ignorando a sua dimensão internacional
(ROSENBERG, 1996, p.8).
Em linha oposta a essa prevenção da ortodoxia
disciplinar em relação à teoria marxista, este texto argumenta que
o pensamento de Marx fornece chaves teóricas fundamentais
para compreender a formação e a dinâmica do sistema
internacional moderno – e que estas contribuições não têm sido
valorizadas até mesmo pelas abordagens mais próximas ao seu
pensamento na disciplina, como as diferentes versões de “teoria
crítica” ou a teoria do “sistema-mundo”. Destaco, em particular,
uma dimensão crucial da “dialética da modernidade” revelada
por Marx que tem sido pouco explorada ou discutida: o da
articulação contraditória de processos transnacionais e
internacionais na constituição capitalista do mundo moderno.
Arguo, mais ainda, que a identificação teórica desta articulação
contraditória é chave para desvendar a constituição e o
desenvolvimento do sistema internacional moderno.
19
concebe a realidade social como totalidade historicamente
produzida (sendo avesso, portanto, a ontologias e métodos
analíticos que retalham o conhecimento social em
compartimentos estanques). A compatibilização das duas
tradições teóricas é problemática. Ao tentar situar as proposições
teóricas de Marx nas principais polêmicas que conformam a
narrativa dominante sobre a evolução da disciplina, a maioria dos
estudiosos tendeu a apresentar o pensamento de Marx como
caudatário das reflexões que afirmam a existência de uma
sociedade “mundial” ou “internacional”. ·.
Como foi bem observado por Fred Halliday (1999.
Sobretudo o capítulo 3), no entanto, o pensamento marxiano
não se encaixa muito bem em nenhum dos lados dessas grandes
polêmicas. Ele é simultaneamente “utópico” (ao formular um
projeto alternativo de emancipação social) e “realista” (ao
enfatizar os interesses materiais que comandam a ação humana
e o papel desempenhado pela força na história); “científico” (ao
pretender descobrir leis do desenvolvimento social) e
“normativo” (ao destacar explicitamente a vocação
transformadora da sua filosofia); “mundial-sistêmico” (ao realçar
a integração do globo em um único mercado mundial) e
“estadocêntrico” (ao reconhecer, teórica e politicamente, a
centralidade do poder de Estado para o exercício da dominação
no plano doméstico e internacional). Apesar desta relação
ambivalente e problemática com os paradigmas que viriam a
polarizar o estudo acadêmico das relações internacionais, Marx
forneceu indicações absolutamente cruciais para compreender a
gênese e evolução do sistema internacional moderno. É o que
pretendo demonstrar em seguida.
20
MARX E A DIALÉTICA DA GLOBALIZAÇÃO NA
MODERNIDADE
21
marxismo surgiu, desde cedo, como teoria e prática da “dialética
da modernidade” (THERBORN, 1995, p. 248). Ele captou,
simultaneamente, o potencial emancipador embutido em
desenvolvimentos como a industrialização, a urbanização, a
alfabetização em massa, a dissolução de valores tradicionais, e a
orientação voltada para um futuro aberto (não mais concebido
como mera repetição do passado); e a natureza
opressiva/desumana dos novos mecanismos de exploração, do
despotismo fabril, e da generalização de uma racionalidade
instrumental fria e calculista com a mercantilização de dimensões
cada vez mais amplas da vida social.
Nas páginas do Manifesto, Marx e Engels identificam,
como processo constitutivo do mundo moderno, a expansão
global do capitalismo histórico a partir dos seus confins iniciais
no noroeste da Europa. Em um processo fulminante e
avassalador, o novo modo de produção integrou, pela primeira
vez na história, todo o globo em único mercado, subordinando,
subvertendo e suplantando variadas formas de cultura e
sociedade preexistentes. Nos marcos desta impressionante
ruptura, as potências europeias subjugaram, em poucas décadas,
até mesmo os antigos impérios do Oriente, que haviam
sustentado um desenvolvimento material superior ao da Europa
durante séculos (até o advento da Revolução Industrial). ·.
Marx revela como esta ruptura histórica foi preparada
pela expansão global do capital mercantil na época dos
descobrimentos e pela colonização que se lhe seguiu. O texto do
Manifesto antecipa, aqui, um ponto que viria a ser desenvolvido
mais amplamente pelo autor no famoso capítulo 24 do Volume
1 de O Capital: o do papel da espoliação colonial no processo
histórico de “acumulação primitiva” que viabilizou o advento do
capitalismo moderno (i.e., industrial) no noroeste europeu. O
que Marx destaca é o impulso dado ao advento de novas formas
22
de produção na Europa pela intensificação dos fluxos globais de
comércio (via a exploração das novas rotas para os mercados da
Índia e da China, a colonização da América e o advento do
comércio colonial). Foi precisamente a necessidade de atender
esses mercados cada vez mais amplos que forçou a suplantação
da antiga produção feudal-corporativa, inicialmente pela
pequena produção independente, em seguida pela produção
manufatureira, e, por fim, pela grande indústria (capitalista)
moderna. É esta que, no Século XIX, colhe os frutos semeados
pelas descobertas, unificando o mundo em um mercado único
sob domínio inglês.
O capitalismo europeu, assim, já nasce imbricado a
fluxos globais de comércio e riqueza. Ele se forma e desenvolve,
portanto, como sistema transnacional desde o seu início. Mas
este é apenas um lado da história. O outro é que a crescente
centralização da propriedade, produção, riqueza e população
propiciada pela transição a formas econômicas mais modernas
tornou a nova burguesia ascendente (inicialmente comercial,
depois manufatureira, por fim industrial e bancária) um importante
contraponto social à dispersão do poder aristocrático. O
resultado foi um processo de centralização política que resultou
na formação de estados nacionais unificados no noroeste da
Europa, sob a égide do poder secular absolutista5. Os poderes
23
fragmentados da antiga sociedade feudal foram “reunidos em
uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse
nacional de classe, uma só barreira alfandegária” (MARX e
ENGELS, s.d., p.25). Segundo a abordagem realista
predominante na constituição e consolidação da disciplina de
Relações Internacionais, teria sido justamente o reconhecimento
mútuo desses poderes territoriais soberanos no Tratado de Paz
de Vestefália em 1648 ⎯ ao término da sangrenta Guerra
[religiosa] dos Trinta Anos ⎯ o marco fundador do sistema
internacional moderno.
A transição para o capitalismo no noroeste europeu,
assim, constituiu simultaneamente um sistema transnacional
(integrado a um mercado global em formação, nos marcos do
qual a nova forma de produção se generalizou) e um sistema
internacional (constituído por estados centralizados soberanos,
inicialmente apenas na Europa). A própria formação dos
impérios coloniais mercantis ⎯ e as grandes guerras comerciais
que ela engendrou ⎯ foi consequência das tentativas de
monopolizar à força os recém-constituídos fluxos globais de
comércio e riqueza, usando o novo poder político concentrado
dos estados nacionais. Estes, por sua vez, deflagraram processos
de unificação e integração dos seus respectivos mercados
internos, expropriando as terras comunais que viabilizavam
economias camponesas de subsistência (i.e., forçando os
camponeses a se transformar em “trabalhadores livres” sem
terra). No Século XIX, o recém-consolidado capitalismo
europeu se valeu do poder concentrado dos grandes estados
centralizados para subordinar efetivamente o conjunto do globo
à sua dinâmica, inicialmente através de uma agenda universal
liberalizante (que favorecia o capital britânico) e, depois, via a
montagem de novos impérios coloniais concorrentes (o
imperialismo). A articulação tensa e contraditória de dimensões
24
globais e nacionais, portanto, está entranhada na modernidade
capitalista desde os seus primórdios.
A ILUSÃO DA CONVERGÊNCIA
25
universalista ainda está longe de substituir “a estreiteza e o
exclusivismo nacionais” como referência principal de identidade
(como atesta o recrudescimento de movimentos chauvinistas e
racistas pelo mundo afora). As inúmeras literaturas nacionais e
locais ainda estão longe de serem engolidas por uma “literatura
universal” única. Mesmo em relação a eventos históricos
contemporâneos ao texto do Manifesto, vale registrar que foi
necessária uma artilharia de sentido muito menos figurado do
que a dos “preços baixos” para dobrar as “muralhas da China”
e manter as rotas do comércio do ópio nesse país abertas para
traficantes ingleses.7
A imagem predominante no texto é, de fato, a de uma
expansão territorial fulminante do capitalismo pelo globo, que,
tal qual fogo na pradaria, consome todas as culturas e civilizações
que encontra pelo caminho e torna crescentemente irrelevantes
as fronteiras das comunidades políticas nacionais. A dimensão
propriamente internacional do processo ⎯ que a própria obra
fornece indicações teóricas fundamentais para compreender ⎯
fica em segundo plano. Mas isso torna o pensamento marxiano
vulnerável à mesma crítica dirigida às teorias ocidentais da
modernização no Século XX pelos teóricos do
desenvolvimento, da dependência e do “sistema-mundo”: a de
que, uma vez integrado economicamente o globo, não se pode
esperar que as regiões incorporadas mais tardiamente
reproduzam o mesmo padrão de desenvolvimento dos países
onde o capitalismo se originou.8 Esta crítica foi antecipada por
26
Trotsky ao afirmar que, dado desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo nos marcos do mercado mundial por
ele criado, “a Inglaterra, em certa época, revelou o futuro da
França, de certo modo o da Alemanha, mas de modo nenhum o
da Rússia e o da Índia” (TROTSKY, 1977, p. 1009). Em outras
palavras, o mundo unificado pelo capitalismo não é moldado
homogeneamente à imagem das suas sociedades centrais.
Para além das considerações metodológicas, há também
razões histórico-contextuais para essa subestimação da
dimensão internacional nas páginas do Manifesto. A obra é
redigida apenas dois anos depois do cancelamento das Corn Laws
na Inglaterra (que marcou o fim das práticas mercantilistas e o
triunfo da agenda liberal dos industriais britânicos), em um
período marcado pela dissolução dos antigos impérios coloniais
nas Américas (para o qual concorreu ativamente o poderio
inglês) e pela emergência de fortes movimentos liberais de
oposição ao absolutismo no Continente europeu. O liberalismo,
com sua ideologia desestatizante e desintervencionista, surgia
como a teoria e prática par excellence do capitalismo industrial. O
impacto das experiências de industrialização tardia nos Estados
Unidos, Japão e Alemanha ⎯ que se valeram, de forma
absolutamente não-liberal, do poder centralizado dos seus
respectivos estados nacionais para promover ativamente a sua
industrialização ⎯ só veio a ser sentido mais tarde9. As práticas
do controle político sobre o dinheiro (via monopólio dos Bancos
Centrais sobre a sua emissão) e do recrudescimento da expansão
colonial por parte dos países capitalistas centrais também só se
generalizaram posteriormente. Tudo isto contribuiu para que a
9 Foi com base nesse impacto que Engels formulou, mais ao final da sua
vida, o conceito de “capitalismo de Estado”. Ver ENGELS, 1977, pp. 53-
5.
27
imagem da modernidade capitalista pintada nas suas páginas
fosse predominantemente transnacional.
28
e XXI, comprimindo as dimensões do tempo e do espaço no seu
interior. Mas, segundo a pista teórica legada por Marx, esses
desenvolvimentos só vieram acelerar, de forma desigual e
diferenciada, um processo secular que é inerente ao (e
constitutivo do) capitalismo desde a sua origem. Neste sentido,
o desenvolvimento e a difusão da informática e das
telecomunicações no final do Século XX cumpriram papel
análogo ao desenvolvimento e difusão do telégrafo e da telefonia
no final do Século XIX. É justamente o desenvolvimento
combinado desses dois processos ⎯ a integração de mercados
globais e a globalização da forma política do estado soberano ⎯
que dá ao sistema internacional a sua configuração
contemporânea, marcada por uma distribuição extremamente
desigual (mas mutável) do poder político, militar, diplomático e
econômico.
29
enfrentar e derrotar a dominação imperialista das potências
capitalistas centrais, agora sob a égide do capital financeiro – a
forma mais concentrada, e centralizada assumida pelo capital
monopolista.11
Essa concepção estratégica esteve na origem da maior
parte das experiências socialistas que polarizaram o
desenvolvimento do sistema internacional no Século XX,
sobretudo a partir da constituição do antigo “campo socialista”.
O fato é que, inspirados pelas formulações teórico-estratégicas
de Lênin (que se baseou na chave teórica fornecida por Marx
sobre a relação entre a expansão global do modo de produção
capitalista e a questão nacional para se situar nos embates do seu
tempo), a União Soviética e os demais países socialistas
transformaram o apoio (militar, político, econômico e
diplomático) às lutas de libertação nacional em pedra angular das
suas respectivas políticas externas. Com isso, transformaram
profundamente o sistema internacional no Século XX ao
alavancar um processo de descolonização global.
A formulação teórico-estratégica proposta por Lênin
indicava que a constituição de Estados nacionais soberanos
pelos povos dominados, colonizados, semicoloniais poderia
contrapor o poder territorial destes à dominação do capital
financeiro, viabilizando projetos de desenvolvimento nacional
de conteúdo anti-imperialista que abrissem caminhos mais ou
menos prolongados de transição para o socialismo. A questão se
repõe neste início de Século XXI, nas condições geradas pelo
colapso do antigo “bloco socialista” e pelo enfraquecimento
relativo das posições de poder das potências capitalistas que
dominaram a evolução do sistema internacional nos dois últimos
séculos.
30
CONCLUSÃO
12
Este ponto é desenvolvido mais amplamente no livro de
ROSENBERG, 1994.
31
assumir a sua separação como um ponto de partida não-
problemático, em vez explicar teoricamente o seu surgimento.13
A compreensão histórica formulada por Marx permite
desvendar precisamente esse surgimento, fornecendo uma chave
teórica crucial para a compreensão do sistema internacional
moderno. Mas a plena exploração do potencial explanatório
dessa chave exige que restabeleçamos, teoricamente, o equilíbrio
contraditório entre as dimensões transnacional e internacional
da dialética da globalização que acompanha a gênese,
consolidação e expansão do capitalismo. Exige, em particular,
que exploremos, a partir das chaves teóricas fornecidas por
Marx, a natureza heterogênea do sistema internacional, em
oposição aos modelos lógicos construídos sobre a premissa de
estados homogêneos que predominaram nas leituras realistas das
relações internacionais. Nesta dimensão, as reflexões de autores
como o próprio Lênin, Gramsci e até nosso saudoso Ignácio
Rangel sobre a variada combinação de estruturas econômico-
sociais nas formações sociais nacionais que se constituíram no
rastro da expansão global do capitalismo podem agregar um
complemento teórico importante para o estudo marxista das
relações internacionais14.
32
Capítulo 2
A INTERPRETAÇÃO MARXISTA SOBRE O
LIVRE-COMÉRCIO E O EXEMPLO DO
NAFTA15
Carlos Serrano Ferreira16
Nunquam est fidelis cum potente societas 17.
Fedro (séc. I a.C. – séc. I d.C.)
INTRODUÇÃO
33
relativamente generalizado, entre os economistas de que é
possível estabelecer uma relação positiva entre comércio e
crescimento económico” (COSTA, 2010, p.73). Inegável é a
contribuição que traz o crescimento do comércio intrafirma, nos
marcos das empresas transnacionais, graças às melhorias nas
comunicações e nos transportes, permitindo que se crie um
“sistema de produção global” (COSTA, 2010, p.78), apesar das
implicações que possam ter para os governos, pois os preços
serão derivados de decisões administrativas e não refletindo os
custos reais (COSTA, 2010).
No entanto, mesmo com quase todos os espaços
econômicos contemporâneos estando “organizados para se
adaptarem a um ambiente de abertura e liberalização crescentes
ao comércio externo e aos fluxos de capital” (COSTA, 2010,
p.18), ainda “vivemos num mundo marcado por fortes
assimetrias [... das quais] não estamos conscientes da sua
verdadeira magnitude. ” (COSTA, 2010, p.18). Estas se
expressam numa crescente desigualdade na distribuição de
rendimentos (COSTA, 2010), que chega a paradoxal realidade
em que os 80 mais ricos do mundo da lista da Forbes detêm a
mesma riqueza que os 50% mais pobres (3,5 mil milhões de
pessoas), e em 2016 o 1% mais rico do mundo deterá mais
riqueza que os outros 99% (OXFAM, 2015).
Também a desigualdade entre as nações é enorme.
Olhando-se a partir dos dados estatísticos do World Development
Report do Banco Mundial de 2014 vê-se que os 35 países
categorizados de high income possuíam em 2012 69,4% do PIB
mundial, enquanto os 32 países categorizados como low income18
possuíam no mesmo ano apenas 0,7%. Os high income possuíam
18A lista completa dos países por renda se encontra em World Bank, 2014,
p.295.
34
um PIB per capita de US$ 37.595, enquanto os low income
possuíam apenas US$ 584, ou seja, 64 vezes menos que os
primeiros (WORLD BANK, 2014, p.297).
Isto faz com que mesmo um defensor do livre-comércio
como Joseph Stiglitz (2002, p.X), que afirma crer que a
“globalization – the removal of barriers to free trade and the
closer integration of national economies – can be a force for
good and that it has the potential to enrich everyone in the
world, particularly the poor”, assuma que quando no Banco
Mundial ele pôde ver em “firsthand the devastating effect that
globalization can have on developing countries, and specially the
poor within those countries” (STIGLITZ, 2002, p.X).
Particularmente, os dados demonstram que a ligação
direta entre comércio e desenvolvimento humano não é algo tão
claro. Vejam-se as estatísticas constantes do relatório Human
Development Report (UNDP, 2014, p.211). A variação não é tão
grande entre os quatro grupos de países por nível de IDH na
integração no comércio internacional19 no que respeita a
porcentagem do comércio internacional no PIB. Os países de
IDH muito elevado possuíam em 201220 em média 63,1% do
PIB relacionados com o comércio internacional; os de IDH
elevado, 60%; os de IDH médio, 63,3% e os de IDH baixo
66,1%, estando em relação à média mundial de 62,4% os países
de maior IDH apenas 0,7 pontos acima, enquanto os de IDH
baixo estão 3,7 pontos acima. No entanto, um indicador mais
35
expressivo é o peso do mesmo nos países menos desenvolvidos:
74,3%, 11,9 pontos acima da média mundial. Se não é possível
estabelecer uma ligação direta de determinação negativa entre
abertura comercial e desenvolvimento humano, também não é
possível fazer o mesmo no sentido oposto. Fica ainda menos
perceptível a relação entre a potencialidade do comércio
internacional com outros indicadores, quando comparados esses
índices da porcentagem no PIB do comércio internacional e
outros dados por região, como se mostra na tabela abaixo
desenvolvida a partir do mesmo relatório já citado.
36
Como se vê, caso sejam excluídos os Estados Árabes
pela anormalidade de sua situação, extremamente dependentes
das exportações de petróleo, a região com maior integração
comercial é a Europa e Ásia Central, o segundo maior IDH
Regional e segundo maior rendimento nacional bruto per capita
por paridade de poder de compra, o que poderia sinalizar para
uma correlação dos mesmos. Contudo, é exatamente a América
Latina e Caraíbas, em último lugar em peso do comércio
internacional, que se encontra em primeiro lugar entre os IDH
regionais e primeiro em rendimento nacional bruto per capita
por PPC. Por sua vez, a África Subsaariana, que está
imediatamente atrás de Europa e Ásia Central em porcentagem
do comércio internacional no PIB é o pior IDH e pior
rendimento nacional bruto per capita por PPC.
Os dados acima são apresentados apenas como
elementos de contextualização, pois, apesar de não ser, como já
dito anteriormente, minimamente clara a correlação direta entre
comércio internacional e desenvolvimento, os agregados deixam
de revelar as desigualdades internas dos mesmos, tanto em
desenvolvimento, como em tipo de inserção comercial, o fator
mais importante, incluindo a natureza dos produtos exportados
e importados, bem como o número de parceiros comerciais.
Frente a estes dados, ainda assim, os liberais afirmam
que o “comércio livre é benéfico para todos os agentes
económicos” (COSTA, 2010, p.81) e os processos de integração
comercial seguem avançando. O que é notável é que se a
primeira vaga de Acordos Regionais Comerciais, iniciada na
Europa em 1957, com a CEE, e em 1960, com a EFTA, eram
estabelecidos entre países do mesmo nível de desenvolvimento,
já na segunda vaga dos anos 1980 ocorre a primeira integração
entre países de níveis diferentes de desenvolvimento com o
37
NAFTA (North American Trade Agreement) que entrou em
vigor em 1994 entre EUA, Canadá e México (COSTA, 2010).
Diante dessa realidade, até mesmo um marxista
extremamente crítico das relações Norte-Sul, como um dos
criadores da Teoria da Dependência, Theotonio dos Santos,
afirma a necessidade da integração econômica, como etapa
transitória de uma mudança civilizacional rumo à gestão
planificada global, sendo as integrações regionais “ya la
manifestación intermedia de ese proceso [... pues] la dimensión
de las nuevas escalas de producción es cada vez más planetaria;
es preciso pensar y actuar a ese nivel para estar a la altura de las
posibilidades creadas por la revolución científico-técnica”
(SANTOS, 2004, p.17).
Mas, esta defesa da integração econômica por um
marxista latino-americano não é contraditória com a crítica ao
livre comércio na óptica dos liberais, pois pressupõe uma
negação da possibilidade de integração entre países de níveis de
desenvolvimento dessemelhantes, enxergada esta não em uma
perspectiva emancipatória dos países mais atrasados, mas numa
perspectiva de criação ou aprofundamento de relações de
dependência dos países periféricos em relação aos países
centrais. Coloca-se a dicotomia entre duas formas de integração,
que na América Latina recoloca nas palavras de Theotonio dos
Santos o dilema entre Bolívar – a integração latino-americana –
e Monroe – o pan-americanismo, este que integra de forma
subordinada os países latino-americanos e caribenhos em relação
aos EUA.
Essa perspectiva de integração entre iguais afasta os
nacionalistas e os críticos radicais (em geral marxistas), pois se
eles “defendem que o comércio livre pode desestruturar as
economias nacionais, [e] agravar as desigualdades de
desenvolvimento entre os vários países e prejudicar o ambiente”
38
(Costa, 2010, p.81), os marxistas se distinguem dos
protecionistas como o estadunidense Alexander Hamilton
(séc.XVIII), o alemão Georg Friedrich List (século XIX) ou os
estruturalistas cepalinos, como Raúl Prebisch (anos 1950). Pois,
se não são partidários do livre-comércio, também não são
defensores nem de autarquias, nem de um protecionismo
educador de um List. Não se encaixam em nenhuma das duas
grandes visões que List (1909) contrapõe como distintas formas
de pensamento econômico: cosmopolitical economy, que defende o
livre comércio, a pensar numa perspectiva global da
Humanidade, e a political economy que “inquiry how a given nation
can obtain (under the existing conditions of the world)
prosperity, civilisation, and power, by means of agriculture,
industry, and commerce” (LIST, 1909, p. II.XI.2). Para os
marxistas, o livre-comércio mundial e o mercado não trazem
melhorias nem desenvolvimento como dizem os liberais, nem
centram sua análise na disputa pelo poder nacional, como List,
ou em medidas corretivas que possibilitem o desenvolvimento
com vistas a melhor inserção no mercado mundial, como os
estruturalistas cepalinos. Os marxistas têm uma visão integrada,
que não separa os diversos elementos da política e da economia.
Contudo, neste momento em que se vive sob a égide do
slogan da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher
‘There is no alternative’ o pensamento marxista sobre a questão é
pouco analisado. O objetivo assim deste capítulo é apontar a
existência de formas distintas de pensar a integração comercial
que transcendem a dicotomia entre livre-comércio e autarquia,
apresentando o pensamento marxista, que introduz no debate a
luta de classes e sua expressão mediada na luta entre nações –
sem esta anular a luta de classes nacional e internacional.
Como o tema de integração econômica é muito lato, se
restringirá aqui aos processos de integração comercial entre
39
países de nível dessemelhantes de desenvolvimento. Proceder-
se-á uma análise sobre o pensamento de alguns autores marxistas
que trazem contributos ao tema e refletem uma atualização
conforme as transformações que se processaram no modo de
produção capitalista internacional (a passagem do capitalismo
livre-concorrencial de Karl Marx para o capitalismo imperialista
de Vladimir Lênin) e que abordaram as relações entre o centro e
a periferia sistêmicas a partir de pontos diferentes da realidade
imperialista (do centro, no caso de Lênin; da periferia, no caso
da Teoria Marxista da Dependência de Ruy Mauro Marini e
Theotonio dos Santos). Obviamente, não se procederá uma
exposição de toda a bibliografia e elaborações desses autores,
pois ultrapassaria os limites deste capítulo, mas, se realizará uma
exposição breve do pensamento de cada um destes sobre o tema
específico. Por fim, como um (breve) estudo de caso de forma a
aplicar essas análises marxistas empiricamente, se analisará a
primeira integração comercial de tipo desigual, o NAFTA.
Karl Marx:
40
Para Marx, o capitalismo enquanto um sistema
anárquico e destrutivo inclui o comércio, que como distribuidor
da riqueza produzida participa do jogo do mercado, uma forma
irracional de gestão da produção. Ressalve-se que ainda que
existam elementos racionais em suas partes, como alertam os
economistas marxistas Paul A. Baran e Paul Sweezy, “[...] es
imposible inferir nada sobre la racionalidad total de un sistema
basándose en el nivel de racionalidad que pueden haber
alcanzado algunas de sus partes” (BARAN; SWEEZY, 1967,
p.17). Afinal, “o concreto é concreto porque é a síntese de
múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade”
(MARX, 2011, p.54), sendo a realidade um eterno devir de uma
totalidade contraditória movida por seus antagonismos. É uma
característica central do capitalismo, “[...] uno de los rasgos
peculiares, que la racionalización de sus partes, [...] no está
acompañada por un aumento de la racionalidad del orden social
y económico como totalidad” (BARAN; SWEEZY, 1967, p.17).
Na sociedade capitalista, as relações entre os produtores
assumem a forma da troca de mercadorias, e com a
intermediação do dinheiro “[...] os atos de compra e de venda
aparecem como dois atos mutuamente indiferentes, atos
separados no espaço e no tempo” (MARX, 2011, p.144). Então,
a racionalidade da organização do comércio, com toda a
estrutura que desenvolve em seu entorno, assume a forma de
uma empresa racional, mas é, de fato, uma aparência que
encobre a estrutura irracional de distribuição e troca de riquezas
onde
41
maneira natural e espontânea; totalidade que
[...] resulta da interação dos indivíduos
conscientes, mas que não está em sua
consciência nem lhes está subsumida como
totalidade. (MARX, 2011, p.144)
42
essa não percepção das relações sociais materiais que se
estabelecem no capitalismo eles se tornam prisioneiros de novas
dependências das quais nem mesmo tomam consciência.
Marx tratará da expansão em seu tempo do capitalismo,
em particular através das transformações impostas pelo
comércio internacional – com frequência produto de ações
extraeconômicas e militares. Verá como este leva à destruição
das estruturas pré-capitalistas, como na colonização inglesa na
Índia e a desestruturação do sistema de aldeia hindu, “[...] que
dava a cada uma dessas pequenas unidades a sua organização
independente e a sua vida distinta” (MARX, s.d.b, s.p.). Isto não
ocorre “[...] tanto em virtude da interferência brutal do cobrador
de impostos britânico ou do soldado britânico, mas do trabalho
do vapor inglês e do comércio livre inglês” (MARX, s.d.b., s.p.).
Se causou uma miséria de “[...] espécie essencialmente diferente
e infinitamente mais intensiva do que a que todo o Indostão teve
de sofrer anteriormente” (MARX, s.d.b, s.p.), “[...] a colonização
britânica transformou a Índia num país capitalista, [ainda que]
dependente da agricultura” (Amin, s.d., s.p.). É nesse sentido que
Marx (s.d.b., s.p.) afirmava que a Inglaterra estava a “[...] causar
uma revolução social no Indostão” ainda que “[...] movida pelos
interesses mais vis e [que] era estúpida na sua maneira de os
impor”.
Pode parecer estranho o aparente elogio de Marx ao
processo colonial na Índia, mas isto só é possível entender nos
marcos de seu pensamento dialético, pois os fatos e as relações
não são ‘coisas’ com significados intrínsecos, são entendidos em
sua relação com a totalidade, no caso, em relação com o
momento de expansão do capitalismo então ainda progressivo.
Pois, um “[...] de los principales resultados de los trabajos
científicos de Marx, fue demostrar que el capitalismo, después
de constituir un gran avance en el desarrollo de las fuerzas de
43
producción y en la evolución de una sociedad más racional, se
transforma en su proprio opuesto y llega a ser un sistema
irracional y retrógrado” (BARAN; SWEEZY, 1967, p.15).
Naquele momento, Marx podia afirmar que a Inglaterra
tinha “[...] uma dupla missão a alcançar na Índia: uma destrutiva,
outra regeneradora – aniquilação da velha sociedade asiática e a
instalação dos fundamentos materiais da sociedade ocidental
[leia-se: capitalista] na Ásia” (MARX, s.d.c, s.p.). Contudo, a
manutenção da colonização no período imperialista, de
decadência capitalista, tornou essa ação antes civilizadora e
progressista em uma ação bárbara e reacionária, geradora de
dependência, com resultados nada progressistas, como
exemplificam os efeitos da introdução do capitalismo nas
relações agrárias indianas: “O preço desta medida capitalista
assimétrica no desenvolvimento agrícola foi as condições de
pobreza extrema em que vive a maioria da população indiana”
(AMIN, s.d., s.p.).
É a alteração do momento histórico e do papel do
capitalismo – antes progressista, agora reacionário – tendo Marx
vivido no primeiro momento, que explica sua defesa do livre-
comércio. Esta se vê em seu discurso Sobre a questão do livre-câmbio,
em 7 de janeiro de 1848, realizado para a Associação
Democrática de Bruxelas, onde trata do livre-comércio em geral,
e particularmente sobre a “[...] abolição das leis sobre os cereais
na Inglaterra [que] é o maior triunfo que o livre-câmbio alcançou
no século XIX” (MARX, s.d.d., s.p.). Neste afirma que “sujeitar
a direitos protetores os cereais estrangeiros é infame, é especular
sobre a fome das populações” (MARX, s.d.d., s.p.).
Contudo, todo o discurso, dialeticamente, é
extremamente virulento contra os defensores do livre-comércio.
Ataca ironicamente os “[...] bons sentimentos que os faziam
agir” (MARX, s.d.d., s.p.), como do político e defensor do livre-
44
cambismo, o inglês John Bowring (1792-1872), que chegou a
afirmar em reunião pública que “Jesus Cristo é o free-trade”
(MARX, s.d.d., s.p.). Aqui inclui Marx a questão da luta de
classes, quando pergunta “como, aliás, poderiam os operários
compreender a filantropia subitânea dos fabricantes, desta gente
que ainda estava ocupada no combate ao projeto de lei [...] com
o qual se queria reduzir o dia de trabalho dos operários das
fábricas de doze para dez horas?” (MARX, s.d.d., s.p). Afirma
que, mesmo dentro da dinâmica de luta de classes entre
operários e burgueses, existiria uma aliança possível contra os
proprietários de terra, pois o livre-comércio serviria para o
operário “[...] destruir os últimos restos da feudalidade e para ter
pela frente um único inimigo” (MARX, s.d.d., s.p.), ainda que
não existam ganhos imediatos, pois “[...] no estado atual da
sociedade [...] o livre-câmbio [...] é a liberdade do capital”
(MARX, s.d.d., s.p.), sendo este livre para explorar ainda mais os
trabalhadores e ampliar a exploração. Isto, pois “enquanto se
deixar subsistir a relação entre o trabalho assalariado e o capital,
a troca das mercadorias entre elas em vão se fará nas condições
mais favoráveis: haverá sempre uma classe que explorará e uma
classe que será explorada” (MARX, s.d.d., s.p.). A redução dos
preços agrícolas que compõe a base do valor da força de trabalho
reduzirá o salário, pois “se todas as mercadorias estiverem mais
baratas, o trabalho, que é também uma mercadoria baixará
também de preço [...] proporcionalmente muito mais do que as
outras mercadorias. O trabalhador, depois de ter confiado na
argumentação dos economistas, verificará que o franco se
derreteu em seu bolso, e que não lhe restam senão cinco soldos”
(MARX, s.d.d., s.p.).
Marx defende o livre-comércio, pois este faz avançar as
forças produtivas, mas não defende que melhorará as condições
45
dos trabalhadores. Toda a argumentação se reduz ao seguinte: o
livre-câmbio aumenta as forças produtivas. Se
46
crise, sendo assim benéfico aos trabalhadores do ponto de vista
histórico – mesmo que tendo resultados imediatos maléficos aos
trabalhadores – pois, “nos nossos dias, o sistema do livre-câmbio
é destruidor. Ele dissolve as antigas nacionalidades e leva ao
extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Em
uma palavra, o sistema da liberdade de comércio apressa a
revolução social. É somente neste sentido revolucionário,
senhores, que eu voto em favor do livre-câmbio” (MARX, s.d.d.,
s.p.).
Como o livre-comércio é a expansão mundial da livre-
concorrência interna aos Estados, e o capitalismo não pode ser
superado com uma volta atrás, retornando ao passado, mas
apenas em um sistema superior, o protecionismo – nisto Marx
se aproxima de List – não é uma alternativa ao livre-comércio e
ao capitalismo, mas um caminho para ele. É assim
47
sobre a outra, e questiona a teoria das vantagens comparativas –
que eterniza teoricamente as desigualdades produtivas
produzidas pela história, em muitos casos pela força:
Lênin e o imperialismo:
48
monopólios, oligarquias, tendências para o
domínio em vez de tendências para a
liberdade, exploração de um número sempre
crescente de nações pequenas e fracas por
um punhado de nações extremamente ricas
ou poderosas: tudo isto originou os traços
específicos do imperialismo que permitem
caracterizá-lo como um capitalismo
parasitário ou putrefacto. (LENINE, 1974,
p.167).
49
criou as condições do que seria chamado de dependência pela
TMD.
O que a análise leninista demonstra é que o comércio
não é livre de fato. A expansão da exportação de capitais pelos
países imperialistas distorce os vínculos que se estabelecem entre
os monopólios e os países dependentes, “[...] no mercado
público a concorrência é substituída pela utilização de “relações”
com vista à obtenção de transações vantajosas. Antes da
concessão de um empréstimo, é vulgaríssimo exigir que ele seja
utilizado, em parte, na compra de produtos ao país mutuante”
(LENINE, 1974, p.86). Mais do que isso: a transformação do
capitalismo de força progressista em força decadente muda o
caráter que o comércio possuía de força progressiva em força
reacionária, construtora de dependência.
50
developed countries. [...] Consequently,
most of our theory fails to explain the
structure and development of the capitalist
system as a whole and to account for its
simultaneous generation of
underdevelopment in some of its parts and
of economic development in others.
51
desempenha um papel significativo no aumento da mais-valia
relativa nos países industriais”. Outra parte necessária dessa
dependência é a grande descoberta de Marini: a superexploração
da força de trabalho. As nações dependentes, afetadas pela troca
desigual – engendrada pela especialização no período colonial e
refeita em novos patamares após o processo de industrialização
em níveis inferiores tecnológicos ou desnacionalizados –
“procuram compensar a perda de renda gerada pelo comércio
internacional por meio do recurso de uma maior exploração do
trabalhador” (MARINI, 2005a, p.153). É parte central da
reprodução da dependência o comércio internacional e o livre-
comércio.
Contudo, a análise das relações de dependência não
pressupõe a defesa do protecionismo ou da autarquia. Como
aponta Marini, a questão fundamental é que a ruptura com a
dependência pressupõe uma integração, econômica e comercial,
mas entre os países dependentes, como na América Latina,
sendo “pré-requisito indispensável para nossa integração à
economia mundial” (MARINI, 2005b, p.232), agora que as
forças produtivas se tornaram globais (SANTOS, 2004). Marini
adenda a questão de classe – que é redundante, pois só é possível
romper com a dependência e realizar uma integração soberana e
não desigual quando comandada rumo ao socialismo pelas
forças populares – ainda que aqui apresentada de forma mediada
na conjuntura de ofensiva burguesa:
52
ser uma mera negociação, destinada tão
somente a garantir áreas de inversão e
mercados, para se converter num grande
projeto político e cultural, tal como tem sido
concebida pela melhor tradição da esquerda
latino-americana. (MARINI, 2005b, p.233)
53
sentido de ruptura com a dependência se
impulsionada pelos setores populares.
O CASO DO NAFTA:
54
que recibe México como porcentaje del PIB
se duplicó en el periodo posterior al TLCAN
en comparación con el periodo
inmediatamente anterior de 1980 a 1993, al
pasar del 1.3% al 2.6% del PIB.
(ESQUIVEL, 2014).
55
(Efeito Tequila), e a ausência de dados para 2001, o crescimento
econômico entre 1996 e 2013 foi inferior a 1990 em 12 anos;
igual no ano de 1998 e superior apenas em três anos (1996, 1997,
2000), sendo que nos anos inferiores foi negativo em 1995 e
2009, e abaixo dos 2% em cinco (2002, 2003, 2007, 2008 e 2013),
sendo quase nulo em 2008 e 2013. Se comparado ao
desempenho do total da América Latina e Caribe, após o período
1996-2002, onde o México cresceu mais que o restante dos
países latino-americanos e caribenhos, no período 2003-2013
isto só ocorreu em 2012. Contudo, a situação em relação ao
principal parceiro do NAFTA foi melhor, tendo crescido acima
das taxas americanas em 11 anos (1996 a 1998, 2000, 2004, 2006
a 2008, 2010 a 2012) e abaixo em seis anos (1999, 2002, 2003,
2005, 2009, 2013).
56
2000 6,6 3,9 4,0
2001 ----- 0,3 0,9
2002 0,8 -0,8 1,7
2003 1,4 2,0 2,8
2004 4,2 5,9 3,7
2005 3,0 4,5 3,3
2006 3,7 4,1 2,6
2007 1,9 4,5 1,7
2008 0,1 2,8 -0,2
2009 -5,9 -2,4 -2,8
2010 4,0 5,0 2,5
2011 2,7 3,1 1,6
2012 2,8 1,5 2,3
2013 0,3 1,7 2,2
Fontes: Para 1990, 1995-1999, CEPAL (2000); Para 2000-2005, CEPAL
(2005); Para 2006-2013, CEPAL (2014). Para os EUA, o World Bank
Open Data, do Banco Mundial (https://data.worldbank.org/).
57
similar y, a pesar de ello, crecieron más que
México. Esto incluye, por cierto, a países que
pasaron por una crisis muy grave, como es
el caso de Argentina. (ESQUIVEL, 2014)
58
Isso, no entanto, é uma alteração em relação ao período
entre 1980 e 1990, onde a média de crescimento do PIB
mexicano foi maior que a latino-americana e caribenha (1,9%
contra 1,1%) (CEPAL, 2000)22, superior a outros quinze países
(Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, El Salvador, Guatemala,
Haiti, Nicarágua, Panamá, Peru, Uruguai, Venezuela, Barbados,
Guiana, Trinidad e Tobago) e inferior a apenas sete (Chile,
Colômbia, Costa Rica, Honduras, Paraguai, República
Dominicana, Jamaica) (CEPAL, 2000). Já os EUA tiveram uma
média de crescimento de 3%. Se tomados só o período 1985-
1990, o México cresceu 1,8%, a América Latina e o Caribe 1,7%
e os EUA 3,5%. No qüinquênio seguinte ao NAFTA
(descartando 1995, de crise excepcional) entre 1996 e 2000 o
México cresceu 5,52%, a América Latina e o Caribe 3,1% e os
EUA 4,24%. Mas, conforme o tempo avança, o impulso inicial
do NAFTA se perde e se inverte: entre 2002-2005 (não há dados
para o México em 2001) o México cresceu 2,35%, a América
Latina e o Caribe 2,9% e os EUA 2,85%; entre 2006 e 2009, o
México decresceu -0,05%, a América Latina e o Caribe cresceu
2,25% e os EUA 0,32%; entre 2010 e 2013, o México cresceu
2,45%, a América Latina e o Caribe 2,82% e os EUA 2,15%. Isto
aponta como a aproximação e o aprofundamento do México
com uma economia maior, colocando sua dinamicidade na
dependência de seu vizinho do Norte, não só reduziu com o
tempo o seu crescimento, como ampliou a vulnerabilidade em
relação a uma potência que vem apresentando sinais de
decadência enquanto potência hegemônica (ARRIGHI, 1996;
MARTINS, 2011). Atualmente, os “[...] ciclos del PIB [de]
México y de Estados Unidos están altamente sincronizados. Ello
59
se debe principalmente al alto grado de integración de la
economía mexicana a la estadounidense – en particular, desde la
firma del Tratado de Libre Comercio” (DELAJARA, 2012, p.1).
De fato, “o México pertence geograficamente à América do
Norte, e desde sua incorporação ao Nafta, em 1994, se
transformou num pedaço inseparável da economia americana”
(FIORI, 2013, s.p.).
Contudo, a sincronização não significou convergência.
Se em 1993 o PIB por trabalhador do México equivalia a 35%
dos EUA, em 2012 era 30%; já o PIB per capita mexicano era
31,4% do estadunidense em 1993 e 29% em 2012 (ESQUIVEL,
2014). Mesmo
60
A sincronização com os EUA aprofundou as
desigualdades regionais, pois “[...] la creciente integración al ciclo
productivo de la economía de Estados Unidos [...] llevó a las
empresas manufactureras mexicanas a concentrarse
geográficamente en la región norte de México, en los estados
fronterizos con EUA” (DELAJARA, 2012, p.1).
61
Ainda assim, “[...] la entrada de competidores asiáticos de
México al mercado de manufacturas de exportación no parece
haber afectado el grado de sincronización cíclica entre las
medidas agregadas de actividad económica de México y EUA”
(DELAJARA, 2012, p.5), pois teve apenas um “[...] efecto
temporal, debido a que las nuevas circunstancias llevaron a las
empresas exportadoras mexicanas a especializarse en categorías
de productos en las cuales permanecieron competitivas”
(DELAJARA, 2012, p.5).
É verdade que desde meados dos anos sessenta,
“Mexico allowed the creation of foreign owned maquiladoras
[Itálico original] assembly plants with a duty-free treatment
through its ‘Border Industrialization Program’” (CHIQUIAR;
RAMOS-FRANCIA, 2004, p.5). Porém, estas ganharam
impulso e generalização com o NAFTA. As maquiladoras
permitiram às firmas estadunidenses “[...] take advantage of
Mexico’s proximity and lower wages to conduct routine,
unskilled labor-intensive operations within their production
processes” (CHIQUIAR; RAMOS-FRANCIA, 2004, p.5). Isto,
pois a “[...] diferença salarial entre os Estados Unidos e o México
é tão grande que para muitas empresas é atrativo deslocar os
segmentos mais intensivos do processo de produção”
(RAJCHENBERG, 2006,p.775). Estas maquiladoras, em “[...]
termos econômicos, significa[m] o barateamento dos custos de
produção: a montagem das peças deixa[m] de ser feita nos países
em que a mão-de-obra é bem mais cara do que naqueles em que
se instalam as empresas maquiladoras” (RAJCHENBERG, 2006,
p.775). Estas importam “[...] virtually all materials from the U.S.,
use Mexican labor to conduct assembly activities, and re-export
the final product” (CHIQUIAR; RAMOS-FRANCIA, 2004,
p.5). Estas,
62
Em contraste, em 1982, as exportações de
manufaturados continham 91% de insumos
nacionais. (RAJCHENBERG, 2006, p.775)
63
quando seu rendimento começa a declinar” (RAJCHENBERG,
2006, p.775). As maquiladoras são utilizadas como “[...] arma das
multinacionais para pressionar a queda dos salários, com a
ameaça de levar as montadoras para outros países da América
Latina ou para a China” (RAJCHENBERG, 2006,p.775). Isso se
reflete principalmente sobre as “mulheres jovens, que são a
maioria, [que] têm salário médio de U$0,50 por hora, carecem de
segurança trabalhista e de beneficíos e freqüentemente são
vítimas de assédio sexual” (AGUILAR, 2006, p.844).
Do início do NAFTA até 2006 “se instalaram mais de
2.700 maquiladoras, que emprega[vam] 1,3 milhão de
trabalhadores” (AGUILAR, 2006, p.844). Entre os efeitos
sentidos pela classe trabalhadora mexicana após o NAFTA este
forçou “milhões de mexicanos a aceitarem salários menores do
que o mínimo nacional de US$3,40 por dia. O custo de vida
experimentou aumento de 274%, enquanto os salários
diminuíam 30%” (AGUILAR, 2006, p.844). Não foi só isso: os
“[...] trabalhadores, tanto dos Estados Unidos como do México,
passaram a sofrer violações nos seus direitos trabalhistas”
(AGUILAR, 2006, p.844). Mesmo o rico Canadá sofreu com a
perda de “[...] boa parte de seu setor manufatureiro, e as
desigualdades agravaram-se, ameaçando seus programas sociais
e de proteção do meio ambiente” (AGUILAR, 2006, p.844).
64
Tabela 3 – Saldo Comercial mexicano entre 1990-2011
Ano Exportações Importações Saldo Saldo da
(em milhões de (em milhões de Balança Balança
dólares) dólares) Comercial Comercial
(milhões excluindo as
US$) exportações
petroleiras
(milhões US$)
1990 30.4 31.3 -0.9 -11.0
1991 31.3 38.2 -6.9 -15.1
1992¥ -------------- -------------- -2.453 --------------
1993 51.886 65.367 -13.481 -20.899
1994 60.882 79.346 - 18.464 -25.909
1995 79.542 72.453 7.089 -1.334
1996 96.000 89.469 6.531 -5.123
1997 110.431 109.808 624 -10.699
1998 117.460 125.373 -7.913 -15.047
1999 136.703 142.064 -5.361 -15.281
2000 166.455 174.458 -8.003 -24.386
2001 158.443 168.396 -9.954 -22.752
2002* 161.046.0 168.678.9 -7.632.9 -15.660.1
2003* 164.766.4 170.545.8 -5.779.4 -15.857.4
2004* 187.998.6 196.809.7 -8.811.1 -21.245.4
2005* 214.233.0 221.819.5 -7.586.6 -23.081.4
2006* 249.925.1 256.058.4 -6.133.2 -25.513.0
2007* 271.875.3 281.949.0 -10.073.7 -27.618.4
2008* 291.342.6 308.603.3 -17.260.7 -32.239.1
2009* 229.703.6 234.385.0 -4.681.4 -15.050.3
2010* 298.473.1 301.481.8 -3.008.7 -14.490.9
2011* 349.375.0 350.842.9 -1.467.8 -15.148.8
¥ Só foi possível encontrar o saldo comercial, mas sem especificações dos outros valores.
* A última coluna exclui, além das exportações petroleiras, as importações petroleiras (discriminadas pela
primeira vez no Informe de 2011). Fonte: Informe anual do Banco do México, para os anos de 1990 e
1991 (1991); para o ano de 1992, o Informe de 1993; Para 1993 (1995), para os anos de 1994 a 1996,
Informe de 1996; para 1997 a 1999, o Informe de 1999; Para 2000 e 2001 o Informe de 2002; para 2002
a 2010, Informe de 2011. Para 2011, Informe de 2012 23.
65
Os problemas existem mesmo no centro do tratado, na
parte comercial. Como os dados da balança comercial indicam,
a entrada no NAFTA produziu após o primeiro ano de vigência
(1994) o maior déficit da série (-18.464) e saldos positivos apenas
entre 1995-97, contudo estes foram incapazes de cobrir o déficit
de 1994. Após isto, todos os anos foram de saldos negativos, o
que demonstra que o problema é permanente nos marcos do
NAFTA. Os saldos negativos só não foram mais graves graças
às exportações petroleiras, que tem crescido e passaram de 8,3%
do total das exportações em 2001 para 16,1% em 2011
(SÁNCHEZ, 2012), ainda que tenha avançado o “[...]
desmantelamiento neoliberal deliberado para reducir a la
industria al extractivismo, a la simple extracción y exportación
del crudo de escaso valor agregado” (CHÁVEZ, 2014). A maior
parte do déficit é com os EUA: no último ano antes da entrada
em vigência do NAFTA, em 1993, 60% das exportações
mexicanas eram manufaturados vendidos aos EUA e 64% das
importações mexicanas provinham do país vizinho; em 2002-
2003 ascendiam a 70% das exportações os manufaturados
dirigidos aos EUA; por sua vez, a participação das exportações
de manufaturados estadunidenses vendidos ao México sobre o
total das exportações de manufaturados dos EUA subiu no
mesmo período de 9,6% para 14,2% e a participação dos
manufaturados mexicanos nas importações americanas subiu de
6,5% para 11% (CHIQUIAR; RAMOS-FRANCIA, 2004). “Ao
término do século XX, 90% das exportações mexicanas eram
dirigidas para ele [os EUA], quando em 1982 os Estados Unidos
representavam 50% dos intercâmbios comerciais”
(RAJCHENBERG, 2006, p.775). E, apesar do aumento das
exportações mexicanas com o NAFTA, “as importações de bens
de capital igualmente cresceram: durante os primeiros anos de
66
existência do tratado, as importações de bens de capital subiram
quase 100%” (RAJCHENBERG, 2006, p.775).
Um “[...] sintoma de ruptura dos vínculos sociais, [é] o
auge da economia do crime, na qual desempenha um papel de
primeira ordem o narcotráfico, cuja magnitude real não pode
obviamente ser conhecida” (RAJCHENBERG, 2006, p.775-
776). Mas, um resultado não difícil de medir é o desemprego
gerado: só até 2006 foram fechados 400 mil postos de trabalho
na indústria estadunidense e mais de 700 mil no setor
manufatureiro (AGUILAR, 2006). E, “[...] também no México,
o NAFTA produziu sensível redução de empregos, lançou à
pobreza cerca de 8 milhões de pessoas pertencentes à classe
média, eliminou mais de 28 mil pequenas empresas, que não
podiam competir com as multinacionais” (AGUILAR, 2006,
p.844).
Um bom resumo do México no pós-NAFTA é dado por
Fiori (2014, s.p.):
67
O crescimento da pobreza é um dos aspectos mais
graves dessa experiência, pois se o impulso para o crescimento
foi se esgotando após algum tempo, o salto para a pobreza foi
rápido, passando de 21,46% para 50,97% apenas nos quatro
primeiro anos (1994-1998) (EL OBSERVADOR, 2002).
Como resultado dessa hecatombe econômica e social, ao
contrário das promessas pré-NAFTA de redução da emigração
para os EUA, esta explodiu: em 1990 a estimativa de mexicanos
morando nos EUA era de 4,4 milhões de pessoas, em 2011
superava os 11,7 milhões, um crescimento de mais de 150% no
período e de 4,8% ao ano! (ESQUIVEL,2014). Durante a “[...]
década de 1990, o número de emigrantes para os Estados Unidos
cresceu 97% e durante os três primeiros anos do novo século,
13%” (RAJCHENBERG, 2006, p.775). Entre as causas, está a
crise no campo mexicano sob o impacto do NAFTA: nos
primeiros oito anos 2,7 milhões de granjeiros mexicanos
abandonaram suas terras (EL OBSERVADOR, 2002).
Por sua vez, a emigração mexicana para o Norte não foi
facilitada pela existência do NAFTA, pois desde 2009 se impôs
a exigência de visto pelo Canadá, e recrudesceram as medidas
nos EUA, como o Secure Fence Act de 2006, de Bush, que
ampliou o aparato repressivo, construiu o “muro da vergonha”
separando a fronteira, com mais de mil e cem quilômetros, e
liberou a “caça” humana de imigrantes nos limites sul dos EUA
(CHÁVEZ, 2014).
Por fim, cabe ressaltar que os efeitos do NAFTA vão
além da desigualdade entre nações e interna a cada país, mas
minam as bases mínimas democráticas, ao ampliar os poderes
das grandes corporações monopolísticas e diminuir a capacidade
de intervenção popular, como aponta Joseph Stiglitz, que não
pode ser “acusado” de marxista. Este aponta para o Capítulo 11
do NAFTA que
68
[...] gives more rights to foreign investors
than to domestic investors. It allows them
compensation (in a legal process that is far
from transparent) for “regulatory takings”
(reductions in the value of, say, a property or
business because of some regulation), even
though Congress and the courts in America
have systematically rejected such
compensation. It provides investors redress
for what they view as injuries suffered,
without providing comparable help for
ordinary citizens who suffer as a result of
injuries caused by foreign firms damaging
the environment. (CARNEGIE COUNCIL
ON ETHICS AND INTERNATIONAL
AFFAIRS, 2003, p.12-13)
CONCLUSÃO
69
Unidos; b) no nível das relações econômicas gerais, ampliou-se
o controle e a capacidade de exploração dos grandes monopólios
sobre as duas economias, mas principalmente sobre o México;
c) no nível das relações de classe, tanto a classe trabalhadora
estadunidense quanto a mexicana foram afetadas pela ampliação
do desemprego e as pressões pela rebaixa dos salários, com os
efeitos precarizantes e de ampliação da exploração. A interação
entre o nível a) e c) levou a que a classe trabalhadora mexicana
sofresse as consequências mais intensas, com a desestruturação
social e seus diversos sintomas, como a feminização da força de
trabalho – com uma exploração ainda mais profunda, a redução
salarial abrupta e o crescimento da narcoeconomia.
É claro que é necessário aprofundar o estudo sobre o
caso do NAFTA e sobre outras integrações desiguais, mas este
capítulo aponta para a validade e superioridade da teoria marxista
na análise sobre o Livre-Comércio e as Integrações Regionais. E,
confirma-se o caráter desestruturador para os países periféricos
da integração comercial com os países centrais. Como
consequência prática mais importante disto é que deve se indicar
aos países periféricos, dependentes, que devem suspender os
debates sobre integrações com os países centrais e aprofundam-
se os processos de integração econômica entre os países
periféricos.
70
Capítulo 3
BREVES ANOTAÇÕS SOBRE
IMPERIALISMO, ESTADO E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS25
Luiz Felipe Osório26
INTRODUÇÃO
71
(que apesar de breve, já manifesta contraposições interessantes)
impõem às correntes teóricas e aos embates políticos novas
tarefas.
No plano prático, o cenário de degradação ilustra o
panorama nefasto: elevação dos índices de violência;
acirramento das convulsões sociais, com a respectiva
concentração de renda; patentes explorações econômicas e
sociais, balizadas pelo racismo, intolerância e xenofobia; e
exacerbação das rivalidades interestatais, acompanhadas de
movimentos militares e de conflitos pontuais, presentes em
todos os quadrantes do globo. No teórico, após o breve período
de brumas no fechamento do século XX, a realidade
internacional trouxe à baila novamente a imprescindibilidade do
debate crítico sobre o papel do Estado no capitalismo,
fomentados pelas reverberações nefastas do fenômeno da
intensificação da internacionalização das relações de produção,
que se reflete pelas diversas áreas do saber.
A miséria e o horror que povoam a concretude das
relações internacionais impelem pela consideração premente do
imperialismo, tanto na prática quanto na teoria, como elemento
indisfarçável e estrutural. Refletir sobre esse vocábulo não é um
exercício simples. Ele traduziu os rumos do desenvolvimento do
capitalismo desde o século XIX, tendo oscilado como nenhum
outro na trajetória sistêmica. De conceito crítico passou a
criticado, de virtuoso a desvirtuado. De tema reluzente foi
relegado às sombras, tido como ultrapassado e esgotado, até seu
ressurgimento. Com fulcro em sua incômoda atualidade, a visão
crítica acerca das relações internacionais volta-se para o
manancial do imperialismo. Esse fenômeno é de tamanha
amplitude que não cabe em si, ou em fronteiras artificiais, seus
desdobramentos ocorrem e/ou afetam o âmbito internacional
por essência. Imperialismo e relações internacionais mesclam-se
72
como se fossem gêmeos siameses, não se podendo tratar de um
sem mirar o outro. A inerente interface não é, entretanto, obra
do acaso ou uma construção dada e inacabada. Sim, ela foi
erigida ao longo dos anos, tendo a historicidade dessa figura um
aspecto nodal, ganhando feições distintas. Nesse diapasão, é
imprescindível apontar sua especificidade necessária, para que
não se perca a precisão teórica em abordagens abstratas, a-
históricas e transcendentais.
O conceito de imperialismo carrega consigo há séculos
conteúdos e estereótipos que podem retroceder ao patamar da
imprecisão teórica. Desde o resgate dos impérios da antiguidade,
como o romano, passando pelos grandes poderes feudais,
atravessando as monarquias absolutas modernas, até chegar à era
dos impérios contemporânea28, todo esse arco histórico foi e
pode ser pintado aleatoriamente sob a tinta do imperialismo.
Ainda que se verifique a existência de violência, opressões e
explorações como condicionantes em todos os momentos, o
atrelamento ao aspecto quantitativo enclausura o cientista à
aparência da investigação fenomênica, perdendo a precisão da
lente analítica em um espaço difuso e distinto em suas bases. O
passo científico decisivo para desvendar a real essência do
imperialismo toma a direção da compreensão dos mecanismos e
da estrutura que lhe conferem especificidade, ou seja, o seu
aspecto qualitativo29, que permite identificar o imperialismo, a
partir de certo ponto histórico, com conteúdo e forma
73
particulares, que contrastam irremediavelmente em relação a
experiências anteriores.
Em que pese às coincidências pontuais ou aos traços
excepcionalmente semelhantes, não há como delinear liames que
aproximem ínterins tão díspares quanto o Império Romano da
antiguidade e os impérios contemporâneos do pós-século XIX.
Apesar de o significado ancestral do léxico latino30 trazer consigo
o uso da força e a dominação, os fenômenos históricos não são
coincidentes nem mesmo comparáveis. Isso porque a violência
para a imposição da vontade dos mais fortes é um fenômeno que
transcende as sistematizações históricas. Pode ser verificado
desde a antiguidade até a contemporaneidade. O que não
significa dizer que o conceito de imperialismo se reduz à coerção,
nem que deve ser retomado e traçado a partir dos primórdios
das civilizações. Nesse sentido, é fulcral traçar nortes que
orientem a narrativa científica.
74
centrais em nada se assemelharem31. Em outras palavras, o
imperialismo alicerça-se e desdobra-se em um contexto político-
econômico muito específico, aquele moldado pelas relações
sociais capitalistas concretas. No cerne desse construto está a
forma mercantil, da qual derivam os mecanismos de
operacionalização dessa sociabilidade, como a forma política
estatal (no qual se insere o Estado burguês, o Estado-nação ou
o Estado nacional), o qual é o ator que caracteriza nominalmente
a interação dos agentes. Assim, o imperialismo finca seus
sustentáculos na manifestação mais plena do capitalismo, o
sistema internacional, por meio do pilar econômico, a
acumulação capitalista permeada pela contradição entre
nacionalização e internacionalização dos capitais no mercado
mundial, e do vetor político, pela organização política dada em
uma multiplicidade, uma coletividade de Estados, agrupados em
rede dinâmica de permanente competição entre forças desiguais
materialmente.
Assim, antes de maiores aprofundamentos conceituais,
é fundamental pontuar que a compreensão do imperialismo
passa necessariamente pelo entendimento do capitalismo, e
consequentemente do Estado nacional. Logo, falar em
imperialismo é tratar de capitalismo; abordar as relações
internacionais é tocar em capitalismo. Essa primeira demarcação
conduz ao escapamento das armadilhas que encontra pelo
caminho do desvendamento do significado de imperialismo.
31Em sua visão específica sobre a teoria do valor, cuja ênfase é o sistema
moderno produtor de mercadorias, Kurz (2003) contribui decisivamente
para o esclarecimento dessa especificidade capitalista ao fenômeno
imperialista, munido de sua concepção atrelada à nova crítica do valor. O
império romano, por exemplo, não foi edificado mundialmente sobre a
forma do valor, constituindo em seus limites um sistema universal de
produção de mercadorias. O grau de socialização e o centro estrutural ao
redor do qual gravita a sociabilidade capitalista são incomparáveis.
75
Abandonando as visões totalizantes vulgares, é preciso superar
as vertentes contemporâneas que buscam se acoplar nas
concepções críticas e, assim, confundi-las. Não faltam livros ou
estudos que ambicionaram mapear o imperialismo, seja para
compreendê-lo, seja para enterrá-lo ou até para ressuscitá-lo.
Desde análises compartimentadas (conceituando-o por vieses
apartados, como somente um vocábulo político ou estritamente
econômico), até perspectivas positivas e negativas, bem como
abordagens teóricas e empíricas, é possível identificar leituras
dos mais díspares matizes políticos. Mais que um conceito
acadêmico, tornou-se antes uma palavra de ordem e uma
bandeira luta de política32. Portanto, pululam tentativas de
apropriação33. A miríade de enfoques atrapalha muito, pois leva
à confusão e, consequentemente, às imprecisões teóricas e
conceituais. A multiplicidade de escritos sobre a questão não a
esgota, todavia; requer ser elucidada.
A explicação plena e ampla do imperialismo como
manifestação específica do capitalismo é dada pelo horizonte
teórico das Relações Internacionais. O panorama atual demanda
um estudo orgânico e sistemático das relações internacionais, o
qual perpassa inexoravelmente o estabelecimento de balizas
metodológicas que viabilizem um olhar coerente e rigoroso
sobre sua trajetória. Com fulcro nessa empreitada, é pertinente
adentrar nas Relações Internacionais, enquanto campo
científico. Nesse exercício, cabe ao leitor atentar para as falácias
postas pelas abstrações que cooptam essa seara científica para
76
uma verve orgulhosamente e manifestamente ostentada como
conservadora34. É interessante ressaltar como a narrativa
científica das Relações Internacionais trata suas promíscuas
relações com os aparatos governamentais, gabando-se de ser
uma ciência que se limita a repetir e, eventualmente, a sofisticar
os discursos e posições oficiais dos Estados nacionais. Quando,
em verdade, ratificam estratégias de dominação, universalizando
conceitos em abstrações que travestem interesses de classes
sociais singulares. Há toda uma literatura que se evoca ser a
dominante no estudo das Relações Internacionais que alicerça o
início da verve acadêmica e científica da matéria nos estertores
da Primeira Guerra Mundial35. Na emergência de um novo
cenário, de decadência britânica e ascendência estadunidense em
um condomínio fraternal de poder que se impunha ao, então,
ameaçado mundo capitalista, pós-1917. Como se, por exemplo,
as discussões anteriores, notadamente as da Segunda
Internacional, os debates pioneiros e a polêmica entre Lênin e
Kautsky sequer tivessem existido36.
A partir da expansão do capitalismo pelos quadrantes do
globo, a investigação científica inaugurou novos patamares, mas
77
manteve o caráter enviesado37. A aridez teórica predomina em
seu horizonte. Há uma flagrante limitação entre os paradigmas
teóricos, calcados na inócua discussão entre
idealismo/liberalismo38 e realismo, e seus desdobramentos39.
Por exclusão o que não se encaixa nesse eixo é colocado no
balaio das (descuidadamente chamadas) teorias críticas. A
imprecisão e a incorreção desse agrupamento dificultam ainda
mais o estudo alternativo. Para que a crítica que não fique
comprometida é fundamental extrapolar o monopólio anglo-
saxão, sem o qual não se consegue enxergar além da superfície.
O pensamento único e tecnicista busca descolar-se das críticas
ao apresentar-se como puro, aparentando rigor científico. As
Relações Internacionais padecem do mesmo mal da
especialização que contamina as ciências sociais como um todo.
A falta de uma abordagem ampla que enfoque o objeto de
estudo, mas a ele não se circunscreva, agregando outras áreas, é
a regra e não a exceção. A inter ou multidisciplinaridade das
78
Relações Internacionais não é a sua mácula, como pensam os
puristas, ao contrário, é a sua imanência, que não se coaduna ao
dogmatismo da departamentalização e consequente segregação
das áreas do conhecimento.
Por isso, o marxismo revela-se a ciência apta a decifrar
os enigmas esfíngicos das relações internacionais. O marxismo é
a ciência internacionalista por essência, aquela capaz de captar a
plenitude do capitalismo, modo de produção que somente se
completa em âmbito internacional. Em meio ao contexto
histórico e estrutural da heterogeneidade entre países que
predomina no sistema internacional, nada melhor do que evocar
a concretude da totalidade social dos fenômenos sociais para
apreender sua essência. A inserção do marxismo nos debates
internacionais, além de imprescindível, é incontornável para
superar a aparência de sofisticação e penetrar até o cerne da
realidade. É a tradição marxista que conferirá as balizas
metodológicas e teóricas para que se possa haurir a interpretação
científica sofisticada, completa e fidedigna às relações
internacionais. São os autores marxistas que enfocam o papel do
Estado e do capitalismo na dinâmica internacional. Por isso, eles
têm como categoria central o imperialismo, atribuindo a esse
fenômeno político-econômico a devida luminosidade.
79
desenvolver os nortes do conhecimento científico. Em suma,
como a visão de Marx é focada na anatomia da sociedade
capitalista40, o marco temporal só pode ser a
contemporaneidade, a consolidação e o espraiamento do modo
de produção capitalista pelo mundo. É somente no capitalismo
que o imperialismo adquire especificidade, tornando-se
elemento estrutural, sem o qual não se consegue compreender
plenamente a essência das relações internacionais.
Historicamente, verificou-se a existência de formas em torno da
exploração, violência e dependência, que adquiriram uma face
determinada com o capitalismo, a partir da reprodução das
relações de produção pelos quadrantes do globo. A dinâmica
globalizante já era anunciada pelo alemão de Trier, na obra
conjunta com Engels, em meio à realidade industrial daquele
ínterim.
80
Impelida pela necessidade de mercados
sempre novos, a burguesia invade todo o
globo terrestre. Necessita estabelecer-se em
toda parte, explorar em toda parte, criar
vínculos em toda parte. Pela exploração do
mercado mundial, a burguesia imprime um
caráter cosmopolita à produção e ao
consumo em todos os países. (MARX e
ENGELS, 2010, p. 43).
81
da crítica à economia política já é possível descobrir elementos
que conferem o substrato teórico necessário para as análises. Em
seu tempo, Marx já delineara os traços que contornariam debates
que perpassaram a história do capitalismo e das relações
internacionais.
82
suas ideias em um século de ebulição e de consolidação da classe
operária43. À sua época fez brilhantes análises sobre o
colonialismo britânico em locais distintos, denunciando a
essência dessa prática, as quais repercutiram mundialmente
(CARNOY, 1994). Malgrado os relevantes escritos de Marx
sobre política internacional, nos quais, em artigos de conjuntura,
publicados em periódicos44, impunha sua visão sobre as
experiências ultramarinas britânicas, o pensador alemão não
legou obras sistematizadas e acabadas sobre o tema. Mesmo
assim, a tendência expansiva do capital foi ressaltada ao longo de
seus escritos. “A tendência de criar o mercado mundial está
imediatamente dada no próprio conceito de capital”. (MARX,
2011, p. 332).
Para além de esboços e rascunhos, também em sua obra
magna, Marx (2013), ao tratar das relações de produção,
enfatizava a dinâmica entre anarquia e despotismo que cercava
os capitais, que dentro de si são arbitrários, mas entre si são rivais
em franca disputa descoordenada e sem limites espaciais. Nesse
sentido, o capital somente existe em multiplicidade, coletividade;
por meio da interação entre os muitos capitais as leis gerais do
capitalismo se concretizam. Um único capital universal é uma
contradição em termos. É característico do capitalismo, o qual
se desenvolve pela competição, que é a fonte e a expressão da
83
anarquia da produção. Logo, para Marx (2013), as relações
sociais capitalistas tomam a forma dual de anarquia e
despotismo. Entre muitos capitais há a anarquia; dentro de cada
capital, o despotismo. Cada relação, anarquia e despotismo, é a
condição uma da outra. Assim também o é entre os Estados,
dentro das suas fronteiras perante seus nacionais (sujeitados a
seu direito), soberano, despótico; e fora, na inter-relação com
seus pares, reina a anarquia, a falta de um comando central e
hierarquicamente superior.
Não obstante a ausência de uma seção explícita sobre o
assunto, um olhar mais atento conduz o leitor às chaves da
reflexão marxiana, que passam necessariamente pela forma
capitalista mais desenvolvida, o mercado mundial. Ainda na
seção I do livro I a tendência à internacionalização e a relevância
do âmbito do mercado mundial ficam patentes, quando trata do
dinheiro mundial, que ao deixar a esfera interna de circulação,
despe-se das vestes nacionais, adentrando o mercado mundial.
84
É somente no livro III d’O Capital, na reunião inacabada
e editada por Engels, que as observações mais assertivas
aparecem. Intitulado o processo global da produção capitalista,
este volume derradeiro da crítica à economia política argumenta
basicamente que o mercado mundial constitui em geral a base e
a atmosfera vital do modo de produção capitalista, sendo o
pressuposto e o resultado da reprodução das relações sociais
capitalistas (MARX, 2017). Essa percepção sugere que o
mercado mundial não é produto da soma de vários Estados ou
de suas economias nacionais, senão, é a condição por meio da
qual existem as relações entre Estados. O mercado mundial
apresenta-se como a forma universal de existência capitalista.
Em outras palavras, é por meio do mercado mundial que a
mercadoria deixa de ser nacional para ser irrepreensivelmente
capitalista. Com esse legado teórico, não foi imprescindível,
portanto, para Marx, escrever um livro específico sobre o tema
para que este ganhasse consistência e um posterior
desenvolvimento notável. Muito além de seu tempo, o filósofo
de Trier já interpretava com argúcia os desdobramentos da
intensificação das relações de produção capitalistas45.
As transformações na produção industrial, com o
fortalecimento dos monopólios, a concentração e centralização
produtiva, a emergência do setor financeiro e a exportação
crescente de capitais, bem como o acirramento das rivalidades e
a intensificação do uso da violência e do domínio pelo mundo,
impulsionaram as relações de produção capitalista para outros
patamares. Marx não viveu esse momento de exponencial
transmutação e internacionalização do capitalismo, mas suas
premissas foram, todavia, ratificadas ao longo dos tempos. Os
autores que lhe sobrevieram, e dele extraíram a matriz teórica,
buscaram interpretar suas ideias acerca das relações
85
internacionais e o capitalismo, tendo em vista a inédita expansão
das relações de produção pelo mundo. Nessa seara, impõem-se
os debates do imperialismo que não apenas inauguram, mas
fundamentalmente carreiam o estudo das relações internacionais
contemporâneas.
Logo, o fenômeno imperialista demanda ser debatido,
conforme as vertentes marxistas, em termos de desenvolvimento
do capitalismo. É fulcral ir além de análises rasas que se limitam
à identificação imediata entre imperialismo e exportações de
capitais ou políticas invasivas e intervenções militares. Assim, o
edifício teórico marxista do imperialismo é erigido, ainda que em
seus vários andares se encontrem interpretações distintas em
meio a importantes momentos de inflexão em sua trajetória. A
partir desse construto é que se verifica a interface entre
imperialismo e relações internacionais, estimulando a visão
conjunta e entrelaçada de ambos. O próprio Marx já
testamentara pistas que cimentariam os alicerces das
investigações sobre a tendência expansiva e universalizante do
capital, rastro que foi seguido, com maior ou menor linearidade,
por aqueles que partiram e partem das premissas marxianas. Na
miríade de vetores que se apresentam e nas oscilações sofridas
pelo conceito, emerge a tarefa de sistematização e de organização
das interpretações consideravelmente distintas, que são inviáveis
de ser homogeneamente agrupadas. Portanto, a terceira
demarcação introdutória tangencia a observação de que, mesmo
dentro do espectro marxista, há que se ressaltar a plêiade de
abordagens assimétricas. Sobre essa tarefa premente debruça-se
este estudo.
86
capitalismo e relações internacionais. Por isso, a construção de
uma argumentação em ciclos teóricos e históricos que desaguará
no cume do edifício marxista, cunhado aqui como plena crítica,
sem deixar de aventar possibilidades para o aprofundamento e o
consequente desenvolvimento do profícuo e necessário, mas
ainda atrofiado, diálogo entre marxismo e relações
internacionais. Por conseguinte, o livro estrutura-se pelo
entrelaçamento de duas balizas de sistematização do
pensamento sobre imperialismo, que não são mandatoriamente
correspondentes: a) a cronológica que abarca a periodização
histórica em três fases, desde sua gênese na transição entre os
séculos XIX e XX até sua forma hodierna no século XXI, tendo
em vista a transformação do capitalismo em meio à concretude
das relações internacionais, indo de 1870 a 1945, de 1945 a 1970
e de 1970 até os dias atuais; e b) a teórica que ordena as diversas
perspectivas sobre imperialismo pela ênfase que o conceito
confere aos aspectos econômicos (lei do valor, seus movimentos
e suas manifestações), aos políticos (luta e correlação de classes
e de grupos) e à inter-relação destes dentro do espectro marxista.
Munido desses critérios, o trabalho será costurado em três
grandes debates.
No que toca à demarcação temporal, há uma
aproximação quanto à maioria da literatura. O que se deduz do
levantamento bibliográfico é que os autores, em sua maioria,
traçam as etapas do imperialismo, tendo em conta as grandes
transformações mundiais46. Por denominações distintas e
87
caracterizações similares, grande parte dos autores consagrados
apontam três momentos. Assim, Andersson (2001), Callinicos
(2009), Harvey (2005); Hirsch (2010); Kurz (2003), Martins
(2011), Míguez (2013); Panitch e Gindin (2004; 2006); ten Brink
(2008); Valencia (2009); Wood (2014) dividem as transmutações
do imperialismo em um primeiro período, clássico ou
policêntrico, que iria de 1870 até 1945; um segundo que
perpassaria a Guerra Fria, até 1991, chamada de imperialismo
das superpotências, bipolar, neomarxista; e um terceiro que iria
desde a derrocada da União Soviética e a consolidação da
globalização até os tempos hodiernos, cunhado como
imperialismo pós-Guerra Fria, monocêntrico, ou era da
globalização. Nessa toada, o eixo da pesquisa gravita em torno
de três ciclos, cuja conformação se aproxima da historicidade
capitalista (alicerçada nas crises estruturais) tomada pela escola
regulacionista francesa47, incorporada e adaptada pela teoria
88
materialista do Estado de Hirsch (2010) e, parcialmente, por
Callinicos (2009) e, essencialmente, por Mascaro (2013a).
Logo, não há um pressuposto lógico e linear na história
ou efeitos teóricos mecânicos deduzidos da lei do valor que
norteiem o desenvolvimento capitalista, mas a complexa e
contraditória interação histórica entre os atores sociais e as
práticas materiais concretas, enraizadas nas condições sociais de
produção. O mérito reluzente desse arcabouço teórico toca a
inter-relação das diferentes fases do desenvolvimento capitalista
com as estratégias de valorização apresentadas, com as formas
político-institucionais correspondentes e com relações sociais de
forças. Por essa perspectiva, as categorias intermediárias da
economia política propostas para conduzir a discussão acerca
das fases de ruptura e estabilidade do capitalismo são o regime
de acumulação e o modo de regulação (BOYER, 1990). O
regime de acumulação é primordialmente econômico, mas a ele
não se limita, envolvendo uma combinação particular de
89
produção e consumo que pode ser reproduzida, não obstante a
tendência a crises no capitalismo. A apropriação do resultado do
trabalho de outrem acontece legitimada por um núcleo
institucional (formal e informal), constituído pelas formas e
práticas sociais, suficiente e voltado à acumulação, o modo de
regulação. Esse conjunto institucional, ao lado de um vasto
complexo de normas, assegura a reprodução capitalismo. A
dualidade (regime de acumulação e modo de regulação) não é a
junção de elementos indiferentes entre si nem a superposição de
dois iguais, mas a coexistência estrutural, que revela um
determinado grau de articulação entre seus termos (JESSOP,
1991). Com fulcro nesses dois vetores, estabelecem a trajetória
do capitalismo em três momentos: capitalismo liberal (aqui
chamado de debate pioneiro), fordismo e pós-fordismo. As
crises não são interregnos excepcionais, mas elementos
estruturantes e impulsionadores das três fases.
No que se refere ao fio condutor das ideias, o
afastamento é mais notado. O relevo aqui atribuído ao cerne das
intepretações é distinto. O percurso conceitual do imperialismo
é norteado (imerso no amplo espectro da tradição geral do
pensamento marxista, mas com ele não se coincide
necessariamente, com aproximações e distanciamentos) e
permeado pela ênfase, em sua definição, atribuída aos aspectos
econômicos e políticos. Nesse sentido, procura-se escapar do
alicerce que baseia a maioria da literatura especializada, aquele
que muito antes fora identificado como ultrapassado48, centrado
nas caracterizações do imperialismo, se ultraimperialismo,
superimperialismo ou imperialismo coletivo, na tentativa de
edificar as controvérsias sobre as polêmicas inaugurais a partir
90
do embate entre Lênin e Kautsky. Independentemente das
caracterizações temporais, as vertentes que insistem nesses
pilares estão munidas das devidas adaptações49. Para além dessa
dinâmica, ressaltam-se sistematizações bem originais, como as
de Callinicos (2009); Côrrea (2012); Kurz (2003); Leite (2017);
Martins (2011); Míguez (2013); e ten Brink (2008). Essa pesquisa
não adota, entretanto, nenhuma delas especificamente, mas
busca extrair das contribuições válidas seus pontos positivos.
Em verdade, o motor das inflexões do imperialismo não deve
ser detido em separado da trajetória teórica do pensamento
marxista em geral, mas inserido nas transformações e rumos
tomados pelo capitalismo e sua reflexão crítica. Logo, o norte
teórico que irá conduzir o liame organizativo está no destaque
conferido à economia, à política ou à interação de ambos pelos
desdobramentos das visões marxistas, como o fazem, cada qual
a seu modo, Elbe (2010); Hirsch (2010); Mascaro (2013a);
Boucher (2015). Portanto, a interface dos eixos histórico-
teóricos ocorre em três momentos: no primeiro, inaugura-se a
concepção economicista, que estaria atrelada ao período de
expansão do capitalismo até a Segunda Guerra Mundial; no
segundo, há o rompimento dos limites eurocentristas e uma
ampliação do foco do imperialismo, por meio de uma visão
abrangente, sistêmica, que se situa em uma transição de
paradigmas, mas com viés economicista ainda reluzente, em um
curto interregno que irá aproximadamente de 1945 a 1970; e no
terceiro, um arco que irá desde a crise do fordismo na década de
1970, passando pela consolidação do pós-fordismo na década de
1990, até os dois atuais, verifica-se a explosão de horizontes,
91
criando um amplo universo (para além de, mas sem descartar o
economicismo), que pode ser sistematizado a partir da ascensão
do politicismo, suas variáveis (parcial politicismo) e suas
contestações (plena crítica), o que abre caminho para se alcançar
a crítica materialista do imperialismo.
O debate inaugural é chamado de pioneiro50. Do último
quartel do século XIX até a Segunda Guerra Mundial é factível
traçar um fio condutor entre as ideias que investigaram com
profundidade as transformações do capitalismo.
Exaustivamente discutido, tendo em vista a genialidade e a
centralidade de suas concepções para os desdobramentos das
concepções futuras, o rol de autores abordados é quase
consensual. Tomando os intelectuais que declaradamente
inspiram-se na matriz marxiana de pensamento, e naquele
momento se viam como continuadores ou sucessores diretos,
emparelham-se Hilferding, Luxemburgo, Kautsky, Bukharin e
Lênin. Reservada a peculiaridade de cada um, há elementos que
permitem conjugá-los em um mesmo interregno. As
preocupações que carreiam os autores dessa época estão
vinculadas às razões da expansão das relações capitalistas pelo
mundo e seus desdobramentos, como as rivalidades interestatais,
competição e guerras decorrentes. Gravitando em torno dessas
premissas, cada qual assume uma postura particular, expondo
suas singularidades dentro dessa gama. Em larga medida,
constatavam as transformações evidentes do modo de produção
e seus efeitos pelo mundo. O aumento da concentração da
92
produção, a crescente exportação de capitais, a emergência dos
monopólios, a intervenção e organização estatal nas economias,
as fusões entre capitais e o surgimento do capital financeiro, as
incursões coloniais e a eclosão de guerras pelo mundo eram
traços inevitáveis da realidade vivente. Esses sinais evidenciavam
a expansão do capitalismo pelo globo, o que, por sua vez,
ilustrava crise e o consequente acirramento das contradições do
modo de produção, abrindo frestas que poderiam levar à sua
transição socialista ou à sua superação revolucionária. Após a
fase do capitalismo concorrencial, as condicionantes detectadas
apresentavam a era do capitalismo monopolista, derradeira. As
leituras desse cenário pautavam-se pelo viés economicista,
atribuindo à base material econômica a força determinante das
relações sociais, inclusive do ente político estatal, observando o
Estado como resultado da dinâmica financeira, atendendo
inevitavelmente aos interesses burgueses.
O segundo debate é o fordista51. Em um contexto muito
díspar em relação ao predecessor, as visões pioneiras são
revisadas e adaptadas à nova realidade concreta, que irá de 1945
até a década de 1970. Nesse rol, expandem-se as reflexões sobre
o imperialismo, esgarçando os limites do continente europeu e
abarcando outras regiões pelo mundo. Estabelece-se, com efeito,
uma dualidade de concepções centrais, que negam e reafirmam
o imperialismo, adaptando-o às novas condicionantes; e de
visões voltadas à periferia, as quais contribuem e inovam
substancialmente ao debate, logo, sendo objeto de uma
investigação mais detida. Nesse diapasão, estão presentes a
corrente do capital monopolista, os teóricos marxistas da
93
dependência e os terceiro-mundistas52. A emergência dos
Estados Unidos, enquanto potência hegemônica, e a ascensão da
União Soviética que simbolizava a chegada da esquerda ao
poder, bem como o espraiamento das relações capitalistas pelos
quadrantes do mapa-múndi, conferiram ao capitalismo uma
nova face. A reconfiguração ocorreu em moldes fordistas, em
uma composição das forças políticas em torno do bem-estar
social que permitiu atingir, nas porções centrais, índices de
crescimento sem parâmetros no histórico do modo de produção.
Nas regiões periféricas, questionava-se o porquê do bloqueio à
modernização e da industrialização seletiva. Revisado, o conceito
de imperialismo, tendo os pioneiros como baliza (a ênfase às
crises de acumulação, à competição interestatal e às guerras), é
diluído em outros aspectos, como a dominação do centro à
periferia e as relações de dependência desta ao capitalismo
central. Em que pese às mudanças substanciais no modo de
organização do capitalismo, ressalta-se que esse debate fordista,
em termos teóricos, mais se aproxima do que se afasta dos
pioneiros. O verniz economicista continua perceptível nas
análises, o que não as permitem romper completamente com
seus antecessores, mas os colocam senão como um
complemento notável das ideias inaugurais do imperialismo. Por
essa caracterização e por sua brevidade cronológica, o debate
fordista pode ser apontado como um fértil interregno de
transição até a inflexão no ínterim sucessor.
94
O terceiro e corrente debate é o pós-fordista53. Gestado,
em meio à crise do fordismo nos anos setenta, e consolidado
com o espraiamento da globalização financeira, na década de
1990, esse lapso temporal perdura até a atualidade. Na ampla
gama de autores que se inscrevem, em meio à dinâmica
cronologicamente irregular e teoricamente variada e inovadora,
é fulcral dividi-los em três vertentes, o politicismo, o politicismo
parcial e a plena crítica. Em um contexto de desconstrução do
modelo de bem-estar social e de introdução dos ditames
neoliberais, a transformação do rosto do capitalismo impacta
fortemente nas relações políticas, econômicas e sociais.
Mesclando o eclipse e a retomada do conceito de imperialismo,
ele é reconstruído sob novas bases teóricas. A partir desse ciclo,
a matriz economicista passa a dividir espaços com os enfoques
politicistas e aqueles que inter-relacionam ambos. Nesse estágio,
a internacionalização das relações de produção ganha outros
patamares, uma vez que a produção deixa de residir sobre a base
nacional-estatal e passa a disseminar-se pelo mundo, em uma
organização difusa e desconcentrada. Do fordismo transita-se
para o toyotismo, no sentido de racionalizar ainda mais a
organização do trabalho. O Estado altera as diretrizes na
intervenção em prol de políticas públicas e direitos sociais,
95
reconfigurando-se ainda mais aberto aos sabores e aos
dissabores do mercado internacional. Assim, a derrocada dos
índices sociais e a baixa do padrão de vida geral são inevitáveis.
Emerge um modelo concentrador de renda e orientado para o
atendimento de interesses financeiros específicos, minando os
acordos socialdemocratas do pós-guerra. Consequência direta da
nova correlação é o espraiamento ainda mais intenso e, agora,
mais poroso de conflitos e tensões pelo mundo, em ações
violentas difusas e incomuns, alterando significativamente o
panorama global. Inúmeras tentativas de releitura dessa inflexão
emergem, em uma dinâmica amorfa, pela vastidão de diferentes
perspectivas. Em meio aos impactos sofridos na academia pelas
mudanças, ganham destaque o viés politicista, seus
desdobramentos e suas críticas. A partir dessa sistematização do
pensamento imperialista, ficará mais nítido o caminho até o
cume do edifício marxista, a crítica materialista do imperialismo.
Os ciclos não são herméticos. O que significa dizer que
o entrelace das matrizes teóricas nos diferentes momentos é
inafastável. Por exemplo, no debate fordista é possível encontrar
posições que meramente adaptam as concepções pioneiras à
realidade do novo interregno temporal sem inovar
substantivamente, assim como se verifica que, mesmo no debate
pós-fordista, as visões economicistas ainda se manifestam
presentes e de grande relevância, inclusive. Por conseguinte, não
se tenta aqui delimitar a porosidade das ideias, mas de marcar os
períodos de inflexão na trajetória de desenvolvimento da
teorização sobre imperialismo. Por isso, a demarcação em três
fases, a pioneira (da Europa para o mundo), a fordista, aquela
que alarga o escopo, focando no sistema mundial como um todo,
e a pós-fordista, eivada pela explosão de reflexões sobre
imperialismo. Naturalmente, não se tem o escopo de esgotar o
96
assunto (o que sequer seria possível); o intuito é munir a
literatura especializada de estímulo para discussões vindouras.
O importa ressaltar aos leitores neste ensaio é que o foco
do estudo é o imperialismo e as teorias marxistas do Estado, em
sua articulação com as relações internacionais, naturalmente.
Pelo arcabouço teórico desenvolvido nessa obra ficará patente a
relevância desse fenômeno para a plena compreensão do
assunto. Há outros conceitos que se inter-relacionam a ele e
flertam com um limiar tênue dentro da reflexão de autores que
serão aqui abordados. Por exemplo, a hegemonia. Esse vocábulo
demanda muito cuidado na sua discussão. Por mais que apareça
mesclado ao imperialismo em algumas perspectivas, pelo óbvio
e necessário respeito às abordagens que se alicerçam na
hegemonia para a explicação das relações internacionais,
enfatiza-se que o conceito de hegemonia não será tratado nessa
pesquisa (apesar de todo seu apelo entre os autores de verve
politicista), quando muito evocado lateralmente, pela
inevitabilidade de sua presença e pela consideração da primazia
do imperialismo, que coloca a reflexão da hegemonia como
auxiliar, muito mais tangente a questões conjunturais que
estruturais54.
54Em função dessa postura teórica, autores que obtêm grande apelo entre
a doutrina de Relações Internacionais, como aqueles chamados de escola
neogramsciana (vocábulo que por si só já é problemático e passível de
questionamentos sobre sua definição) não serão devidamente abordados.
O que os une nesse grupo é o desenvolvimento e a adaptação das
premissas expostas por Gramsci, aplicando-as às relações internacionais.
Desde Robert Cox, Stephen Gill, Mark Rupert, William Robinson, Adam
Morton até Andreas Bieler, dentre outros, há toda uma construção teórica
crítica que se alicerça em torno deles. As ideias expostas nessa obra
tangenciarão no máximo as diretrizes dos autores aqui tratados, que com
os neogramscianos estabelecem um diálogo profícuo, mas com eles não
se confundem, como nos casos de Giovanni Arrighi, expoente das teorias
do sistema-mundo, e de Leo Panitch e Sam Gindin, marcos do viés
97
Mediante a exposição dessas notas introdutórias, dadas
as limitações pontuais, o objetivo do ensaio é justamente
estimular discussões e fermentar reflexões sobre a centralidade
do tema para as Relações Internacionais, enquanto campo
científico.
OBSERVAÇÕES FINAIS
98
leitura de Marx iniciada na década de 1970 para explicar a teoria
do Estado.
O capitalismo constitui-se em sua forma mais
desenvolvida no sistema internacional. O mercado mundial é o
âmbito de manifestação mais alargada do capitalismo. É a arena
que capta os fenômenos capitalistas por completo. É a base e a
atmosfera de vida do modo de produção capitalista. Logo,
estudar o Estado e o capitalismo sem adentrar nas questões
internacionais, é como tocar o violino com apenas uma das
mãos56. O Estado capitalista não surge isoladamente, mas em
coletivo, enquanto um sistema de Estados, sendo essa
multiplicidade um traço estrutural do capitalismo. O espaço
geográfico do capital não é o das fronteiras estatais, senão o
internacional. Portanto, o imperialismo somente pode ser
debatido por um viés atento à estrutura e à dinâmica do
capitalismo global e do sistema de Estados.
Em suma, na cena hodierna, em meio ao acirramento
das contradições via desconstituições das miragens
modernizantes do capitalismo pós-fordista, é premente revisitar
o conceito de imperialismo, retomando sua grandeza, o que não
é uma tarefa simples, mas demanda a assunção de uma postura
teórica e prática, que impulsione o leitor para a fuga do conforto
das certezas. Diante do cenário de brumas, a inclinação ao
marxismo faz-se pertinente por dois motivos. O primeiro é
relativo à busca de válvulas de escape ao contexto atual de lutas.
O segundo toca a necessidade de um horizonte teórico para
conduzir a militância política à transformação. Compreender os
rumos hodiernos é uma tarefa que perpassa inexoravelmente a
discussão entre imperialismo, Estado e relações internacionais.
99
Em um momento de crise de acumulação mundial, o
retorno aos ensinamentos anteriores, franqueia alternativas para
o pensamento e para a luta por novos horizontes. A superação
do capitalismo passa pela desconstrução de suas engrenagens. O
imperialismo, indubitavelmente, é uma de suas peças cardiais.
100
Capítulo 4
IMPERIALISMO E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS: DOS CLÁSSICOS AOS
COMTEMPORÂNEOS57
Caio Bugiato e Tatiana Berringer58
INTRODUÇÃO
respectivamente.
59 O termo clássico, de modo lato, significa a obra que é capaz de captar e
explicar o espírito de seu tempo e assim adquire uma magnitude que, não
importa o tempo decorrido, deve ser revisitada.
101
contemporâneos, abordamos e pensamento de David Harvey,
William Robinson e Alex Callinicos, os quais de certa maneira
retrabalham as teorias daqueles de modo a teorizar e analisar a
realidade internacional contemporânea. Além de uma
apresentação sintética sobre os teóricos, buscamos relacionar
suas ideias ao identificar como se reproduz o legado dos
primeiros nos últimos e fazemos apontamentos críticos sobre as
teorias atuais para entender as relações internacionais
contemporâneas. O texto a seguir está dividido em duas partes
principais: na primeira tratamos dos clássicos, e na segunda dos
contemporâneos, para então completar com breves
considerações finais.
OS CLÁSSICOS
102
indústria em relação às limitações da agricultura. Ademais,
segundo Kautsky, a concorrência na indústria é maior e acarreta
a adoção de técnicas mais avançadas (modernização) por cada
empresa. A concorrência torna a acumulação uma necessidade
para os capitalistas industriais, forçados a expandir e modernizar
sua(s) empresa(s), aumentando sua demanda por meios de
subsistência e matérias-primas e pelo aumento do mercado para
seus produtos60. Em suma, existe um problema no processo de
acumulação do capital que é “a tendência, dentro de
determinado território, para o desenvolvimento mais rápido da
produção industrial que da produção agrícola” (KAUTSKY,
2002a, p. 455). Essa tendência se torna um estímulo intenso para
a ampliação do território agrícola. Desse descompasso ainda
surgem os problemas da superprodução, uma vez que a
produção industrial não encontra mercado para ser absorvida, e
do aumento de preços, dado que os produtos agrícolas não
atendem à demanda do crescimento industrial. Uma forma de
resolver esse descompasso é o imperialismo, que “se trata de um
tipo particular de tendência política, que certamente tem como
causa o capitalismo moderno, mas não coincide de fato com ele”
61 (KAUTSKY, 2002a, p. 444).
103
O imperialismo foi especialmente gerado
pelo sistema de aplicação de capitais em
países agrários. Como por exemplo, pela
construção de ferrovias buscando o
desenvolvimento das regiões pouco
povoadas. Para protegê-las e assegurar seu
funcionamento para os capitalistas, era
necessário e dever dos governos defender
tais interesses. Os governos, a casa dos
capitalistas, naturalmente, servem para estes
fins de maneira eficiente (KAUTSKY, 1914,
s/p. Tradução nossa).
104
Como o imperialismo é um meio de expansão do
capitalismo, uma tendência, uma forma de política externa, ele
pode ser modificado. Essa mudança passa pelo capital
monopolista em geral62, “a política das frações capitalistas
dominantes na fase do capitalismo avançado” (KAUTSKY,
2002b, p. 471). Assim como a concorrência no mercado nacional
gera o monopólio, o mesmo ocorre nas relações do mercado
internacional, isto é, pode ocorrer a associação das grandes
potências imperialistas, e como resultado a formação de
monopólios internacionais, pondo fim à corrida armamentista.
O drama da guerra permite aos capitalistas enxergarem maiores
possibilidades de obtenção de mais-valia a partir de uma fase que
evite o confronto bélico. É possível então transformar a política
do imperialismo em uma política de aliança entre os
imperialistas, uma nova fase com “uma nova política, ultra-
imperialista, que substitua a luta entre os capitais financeiros
nacionais pela exploração comum do mundo, por parte de
capital financeiro internacionalmente unificado” (KAUTSKY,
2002b, p. 488).
O ultra-imperialismo é uma fase do capitalismo em que
as principais potências mundiais renunciam à corrida
armamentista (por não haver mais sentido nesses conflitos para
o capital) e se reúnem numa federação. Esta federação é definida
como uma cartelização da política externa caracterizada por uma
105
aliança dos imperialistas, com objetivo de estabilizar o sistema
internacional e garantir a dominação da burguesia O ultra
imperialismo não é uma trégua, da qual resultaria a paz. A trégua
seria usada por cada Estado para acumular armamentos novos e
reabrir as feridas da guerra (revanchismo), tornando inevitável
uma segunda guerra mundial. Por isso é decisivo o decurso da
guerra – que pode levar à destruição total – e a saída da guerra
(acordos de paz), pois estes determinarão se o ódio se exaspera
entre os Estado e se retomam a corrida armamentista ou se
constroem as bases do ultra-imperialismo, uma fase de paz entre
as potências capitalistas.
106
a incidência das demandas da oligarquia financeira nas suas
instituições.
É da formação dos monopólios, da oligarquia financeira
e das íntimas relações entre burguesia e Estado que surge o
imperialismo, um processo de busca de mercados exteriores63
em que a acumulação do capital é acompanhada do uso força
militar. Lenin chama de imperialismo este processo estrutural
que forma monopólios e promove a exportação de capital, com
íntima relação entre burguesia e Estado, gerando uma
competição intensa entre potências capitalistas. Nesta
concorrência interimperialista as burguesias de seus respectivos
Estados nacionais lutam pela anexação e pelo controle de novos
territórios e mercados, para garantir a reprodução do capital.
107
Ademias, como uma espécie de “efeito colateral”, a exportação
de capitais repercute no desenvolvimento do capitalismo em
outras formações sociais em que são investidos, criando bases e
acelerando o desenvolvimento do capitalismo em escala
mundial. Impossibilitar a
Lenin define o imperialismo como um fenômeno do
desenvolvimento capitalista (capitalismo monopolista), cujos
traços fundamentais são os seguintes: A) forte tendência à
centralização da produção em trustes e em cartéis, que resultam
em grandes monopólios, desempenhando um papel decisivo na
vida econômica; B) a fusão do capital bancário e do capital
industrial, que cria, baseado neste capital financeiro, uma
poderosa oligarquia (burguesia) financeira; C) a exportação de
capitais adquire uma importância decisiva, diferentemente da
exportação de mercadorias; D) as grandes potências capitalistas
partilham o mundo entre si, criando esferas de influência e
ocupando territórios; E) para efetivação da divisão territorial do
mundo, é travada uma luta intensa entre as grandes potências,
uma luta intercapitalista. O que não exclui novas partilhas
(LENIN, 2005).
A partilha do mundo envolve uma política militar de um
Estado no plano internacional, que tem como adversários outras
potências capitalistas (esse é o foco da teoria do imperialismo de
Lenin, o confronto entre grandes potências capitalistas). Os
capitalistas não partilham o mundo levados por perversidade,
mas segundo o capital, pelo grau de concentração a que se
chegou e os novos mercados que o capital demanda, e segundo
a força, a capacidade militar de cada Estado, que varia de acordo
com o desenvolvimento econômico e político das formações
sociais. Se no centro do sistema internacional ocorre a tensão
entre os Estados capitalistas, na periferia a oligarquia financeira
estende sua rede de dependência financeira e diplomática sobre
108
as colônias e semicolônias (Estados formalmente independentes,
mas economicamente dependentes e politicamente
subordinados aos Estados centrais).
Em suma, para Lenin (2005) a exportação de capitais que
caracteriza o imperialismo ocorre num contexto mundial em que
as burguesias estão divididas em formações sociais nacionais,
cujo poder é representado pela força do seu respectivo Estado
nacional. A exportação de capitais envolve a mediação dos
Estados e coloca suas burguesias em confronto potencial. Sua
conclusão é que acumulação na fase do capitalismo monopolista
origina uma tendência às guerras intercapitalistas. Ou seja, o
imperialismo leva à guerra.
109
da sociedade capitalista estaria dividido em dois Departamentos:
I- produção de meios de produção (máquinas, ferramentas,
instrumentos) e II- produção bens de consumo. No ciclo da
economia – da produção ao consumo – o produto do processo
produtivo se repartiria, para os dois Departamentos, em capital
constante (utilização de máquinas, ferramentas, instalações,
energia, matéria-prima, etc.), em capital variável (remuneração da
força de trabalho) e mais-valia (parte dos capitalistas, seja para o
consumo individual, seja para novos investimentos na
produção).
O problema identificado por Luxemburgo nesse
esquema é a ausência de demanda capaz de comprar as
mercadorias produzidas – a partir da parte da mais-valia como
investimento novo na produção – em um novo ciclo produtivo.
Se essa parte fosse absorvida na produção, não haveria
reprodução ampliada da economia, mas sim reprodução simples,
em que inexiste acumulação de capital, ou seja, não existe o
próprio capitalismo. Entretanto, os capitalistas (muito menos os
proletários) não seriam capazes de absorver essa parte, não
seriam capazes de realizar a mais-valia acumulada. A pergunta a
ser respondida por Luxemburgo então é: quem compra a parte
do produto do processo produtivo referente à mais-valia que
seria investimento novo? Assim ela introduz no esquema
consumidores não capitalistas, de regiões onde o sistema
capitalista não existe, capazes de realizar a mais-valia e viabilizar
a acumulação do capital.
Nesse esquema o capitalismo, que padece de uma
espécie de subconsumo, estaria sempre procurando conquistar e
criar mercado em áreas não capitalistas, no interior dos países
capitalista e no exterior. Essa crise permanente de realização da
mais-valia impulsiona os capitalistas a encontrar compradores
para produtos excedentes, devastando economias não
110
capitalistas muitas vezes por meio da violência. É um processo
de acumulação primitiva66, por meio do qual o sistema capitalista
destrói o que Luxemburgo chama de economias naturais e as
subordina como economia mercantil, onde se realiza a mais-
valia.
111
acumulação em todas suas fases históricas” (LUXEMBURGO,
1985, p. 311).
À medida que o capitalismo se expande e assume o
espaço das economias pré-capitalistas, perde sua capacidade de
acumular (pois assim seria pertinente o esquema de Marx67, em
que o capitalismo abrange todo o globo), uma vez que há não
mais, ou são cada vez mais raras, as áreas não capitalistas. A
realização e a capitalização da mais-valia se tornariam
impossíveis, o sistema tenderia ao colapso e começaria uma era
de guerras e convulsões sociais, que caberia a revolução socialista
resolver.
OS CONTEMPORÂNEOS
112
estadunidense. Sua tese se baseia no pensamento de Rosa
Luxemburgo e no conceito de acumulação primitiva de capital
de Marx e da socialista polonesa. Segundo ele, a crise de
superacumulação dos anos 1970 impôs um problema e uma
nova lógica ao capitalismo mundial que está intimamente ligada
às formas como o imperialismo se apropria dos espaços e do
tempo. A sobre-acumulação em um sistema territorial significa
que há uma conexão entre a lógica de mais-valia extraída do
trabalho e de mais-valia gerada pela renda, roubo ou fraude. No
neoliberalismo estas lógicas se entrelaçam com a financeirização
intensificando o processo de extração do excedente.
Para Harvey, o conceito de acumulação por espoliação
indica que esse processo de fraude, roubo, depredação e/ou
violência não é característico apenas do momento de transição e
implantação do capitalismo (da fase originária), como defendia
Rosa Luxemburgo. Tampouco se concentra na relação entre
Estados dominantes e dominados, especialmente a extração de
recursos de formações sociais periféricas, ou pré-capitalistas. É,
na realidade, parte intrínseca da lógica sistêmica do novo
imperialismo. Os principais mecanismos de acumulação
primitiva descritas por Marx eram: 1) a mercantilização e
privatização da terra forçando a expulsão dos camponeses; 2) a
alteração direito de propriedade comunal, coletiva ou estatal em
propriedade privada; 3) a extinção do direito aos bens comuns;
4) transformação da força de trabalho em mercadoria
eliminando a formas de produção e consumo alternativas; 5) os
processos coloniais neocoloniais ou imperiais de apropriação
dos ativos, sobretudo dos recursos naturais; 6) monetarização
das trocas e tributos, particularmente da terra ; 7) o tráfico de
trabalho escravo; e 8) os juros, a dívida pública e o sistema de
crédito. Na fase neoliberal, além destas oito formas,
acrescentaram-se: o papel do mercado de ações, os fundos de
113
pensão, as fusões e aquisições, a destruição de ativos pela
inflação, o endividamento da população, as desapropriações
pelas manipulações de ações e de crédito e o direito de
propriedade intelectual defendido pela Organização Mundial do
Comércio (que aponta para a licença e defesa das materiais
genéticos, a monetarização da produção cultural e artística, a
privatização da água e dos recursos naturais, e tantas outras).
O foco do autor não é a competição entre os Estados,
mas o papel das grandes corporações para os territórios e as
populações. O capitalismo contemporâneo tem como fonte de
acumulação não apenas o processo de produção que gera mais-
valia (a contradição entre capital e trabalho), mas um processo
de espoliação (violência) da terra e dos recursos naturais e das
riquezas locais. O excedente é absorvido por uma lógica de
deslocamento temporal dos investimentos em projetos de capital
de longa duração como gastos sociais em educação e pesquisa,
que adiam o retorno do capital em circulação para o futuro; e/ou
é deslocado espacialmente para a abertura de novos mercados,
novas plantas, novas fontes de riqueza e de empregos. A
combinação dessas das formas de uso do excedente produzem a
necessidade da construção de infraestrutura para a produção e
para intensificar o consumo no espaço e no tempo. Cria-se então
um círculo de acumulação liderada pelas grandes corporações
multinacionais que envolve a construção de parques industriais,
portos, aeroportos, sistemas de comunicação, armazenamento e
distribuição de água, construção de casas, hospitais, escolas, etc.
Trata-se da lógica acelerada de expansão e intensificação
do capital em várias regiões do mundo. A realocação do capital
e da mais-valia para esses investimentos requer o auxílio
financeiro e institucional dos Estados, especialmente a
capacidade de gerar crédito. Uma quantidade de capital fictício é
criada para ser realocado nos projetos futuros de investimento,
114
gerando uma crise fiscal e de endividamento dos Estados em um
sistema interligado, que impõe a aplicação dos investimentos de
longo-prazo dispersos globalmente. Prevalece então uma lógica
de capital-fixo no espaço e no tempo que se contrapõe às teses
que sustentam que a livre circulação e fluidez do capital
financeiro como marca do neoliberalismo. Essa lógica impinge,
em muitos casos, a necessidade de destruição de absorção do
capital e da mais-valia existente nas formações sociais. Segundo
ele, é fundamentalmente um processo de expansão capitalista,
que não é apenas baseada na exportação de capitais e
mercadorias como defendia Lenin, mas uma lógica de fixação do
capital no território e de exportação das formas de produção-
relações de trabalho e gestão das empresas.
As grandes corporações multinacionais são as principais
locomotivas econômicas do capitalismo contemporâneo e a
abertura de novos mercados não tem servido para aumentar a
competição, mas sim, é utilizada para proliferar o poder
monopolizado das corporações sobre as relações sociais,
econômicas, ecológicas e políticas. Por isso, apesar de haver um
discurso forte, o livre mercado não é um pilar real do
neoliberalismo. Há, na verdade, uma aliança entre as classes
dominantes das economias centrais, hegemonizadas pelos
Estados Unidos, que buscam o equilíbrio da balança de poder
entre elas a fim de celebrar acordos e regulamentações
internacionais (como foi o Consenso de Washington) que
possibilitem um conjunto de políticas econômicas que garantam
a geração de excedente de capital. O centro político, a despeito
do crescimento chinês ainda são os Estados Unidos e as
organizações financeiras internacionais (Fundo Monetário
Internacional e Banco Mundial). Portanto, o que acontece lá é
vital para a forma de articulação do novo imperialismo.
115
Willian Robinson: classe capitalista transnacional e aparato
de Estado transnacional
116
de grupos e classes sobre outras. A transpenetração e a
integração acelerada nos últimos anos do século XX das gigantes
corporações conglomeradas que dirigem a economia global
deixou de ser um processo de corporações individuais de um
Estado particular e crescentemente se tornaram representante
do capital transnacional. O Estado-nação e as burguesias
nacionais seriam, portanto, estruturas e formas históricas que se
transformaram nas últimas décadas, tornando-se obsoletas. As
teses de Lenin e Rosa Luxemburgo não seriam mais capazes de
explicar as mudanças do capitalismo nas últimas décadas,
especialmente, a forma de hegemonia dos Estados Unidos.
Como uma classe hegemônica em escala global, a CCT
crescentemente integrou os circuitos locais a sua própria lógica
e impôs uma direção geral e o caráter mundial para a produção
e para as condições sociais, políticas, culturais da sociedade
capitalista global. A classe capitalista transnacional financeira é
hegemônica mundialmente.
Há ainda uma sobreposição dos membros que dirigem
as grandes corporações e dos funcionários dos organismos e
fóruns internacionais, muitos dos gerentes das grandes empresas
já foram ministros das finanças ou funcionários Fundo
Monetário Internacional e Banco Mundial, ou Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico/OCDE. Isso
configura a existência de uma classe dirigente/quadros da classe
capitalista transnacional.
Os mecanismos do capital transnacional incluem: a
massiva expansão da classe transnacional e o espraiamento das
suas filiais; o crescimento do investimento externo direto (fusões
e aquisições); o fenômeno crescente transfronteirização através
do incremento dos fluxos de capitais e dividendos intra e entre
firmas localizadas em um ou mais países; a propriedade
transnacional de ações de capital; a diversificação de alianças e
117
estratégias de todos os tipos, como a criação de associações
empresariais transnacionais, a disseminação das bolsas de valores
para a maioria dos países do mundo que negociam ações da
CCT, e a vasta terceirização global da subcontratação; e a
globalização do sistema financeiro como parte da financeirização
da economia global.
Segundo Robinson, os grandes acordos de comércio e
investimentos como o Acordo Transpacífico permitem que os
Estados sejam condenados/julgados pelas empresas
multinacionais em tribunais ou cortes internacionais, e a criação
de cadeias globais de valor, que conectam empresas e criam redes
e divisões de trabalho e funções de produção em escala
transnacional eliminando os tratamentos diferenciados entre
capital nacional e capital externo, e atacando fortemente o papel
dos Estados nacionais são indícios da formação da classe e do
Estado transnacionais.
Outra questão que ele aponta é a invalidação da ideia de
que existe a relação entre a invasão do Iraque e os interesses das
grandes empresas de petróleo dos Estados Unidos, pois, foi uma
companhia francesa e depois uma chinesa que mais se
beneficiaram do conflito.
O texto publicado em 2017 afirma que mesmo com a
crise global de 2008 este processo de transnacionalização se
intensificou ao invés de ter sido retraído, especialmente, porque
há um movimento de centralização e concentração de capital
cada vez maior na mão dessas grandes corporações
transnacionais, uma vez que 1% das companhias controlam 40%
dos fluxos de bens e capitais, as 50 maiores empresas são
instituições financeiras globais. Assim, há então um processo de
constituição de uma lógica que não pressupõe o conflito entre
Estados, mas que tem como base a concentração e centralização
de capitais.
118
Alex Callinicos: capitalismo imperialista e conflitos
geopolíticos
119
sempre em competição com as grandes corporações de outros
Estados.
Callinicos defende que com o final da Segunda Guerra
Mundial o Estado estadunidense construiu uma estratégia de
poder internacional, buscando aprofundar alianças com a
Europa Ocidental e com o Estado japonês: a chamada tríade.
Nesse sentido, a globalização seria um acordo tácito, pouco
formal, entre os Estados imperialistas no mundo
contemporâneo. O autor destaca que o exercício do poder dos
Estados da tríade passou a contar com novos instrumentos – os
organismos internacionais – que permitem que a dominação não
seja necessariamente via intervenção militar direta e controle de
territórios. A OTAN, o Conselho de Segurança da ONU, o
Plano Marshall e o acordo de Bretton Woods, garantiram que os
Estados Unidos liderassem esse bloco de poder, tendo aliados
nas principais regiões do globo, em especial, na Europa
Ocidental e no Leste Asiático. Essa aliança visava, sobretudo,
conter o avanço da URSS e da China nessas respectivas regiões.
No Oriente Médio, região que sempre foi palco de disputa entre
as grandes potências, dada a localização geográfica e a fonte de
recursos naturais, firmou-se uma relação umbilical com o Estado
de Israel, que garante o equilíbrio de poder e o controle
geopolítico da região.
Para ele, a existência da tríade não elimina as
contradições entre os Estados. Seguindo a ideia de Lênin de que
no capitalismo, assim como as empresas de um mesmo ramo
estão sempre em competição, as grandes corporações também
competem entre si, por isso, os Estados dirigidos pelos
interesses das suas burguesias conflitam constantemente. O
autor relembra a famosa frase de Clausewitz “a guerra é a política
por outros meios”, para dizer que quando se acirram os conflitos
e se esgotam as possibilidades de entendimento ou persuasão, o
120
uso da força se torna um imperativo. Ele lembra que os Estados
francês e alemão se opuseram à invasão do Iraque em 2003 e
recusaram ajuda ao governo Bush e em 2008 bloquearam a
admissão da Ucrânia e da Geórgia à OTAN; os Estados Unidos
fizeram uma campanha, em 2005, para bloquear a decisão da
União Europeia de acabar com o embargo de armas imposto à
China após o massacre da Praça Tianmanem em 1989; e o Banco
Central dos EUA e o Banco Central Europeu também tiveram
posições opostas após a eclosão da crise financeira em 2007-
2008 quando um defendeu o aumento da taxa de juros e o outro
a redução. Em suma, o mundo atual não é um concerto de poder
entre as grandes potências.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
121
dos Estados nacionais está nas mãos dos capitalistas que formam
uma rede no sistema internacional interestatal, que organiza a
economia e a geopolítica mundiais. Tamanho controle e
organização produzem novas instâncias políticas de governança,
o embrião do Estado transnacional, e a ausência de rivalidades
entres as grandes potências, o que significa um período de paz.
C) Por sua vez Callinicos reproduz a tese leniniana segundo a
qual a capitalismo monopolista gera competição entres Estados
dirigidos pelos interesses das suas burguesias. Por mais que o
conflito mundial entre estes esteja amenizado pela hegemonia do
Estado e da burguesia dos Estados Unidos, a guerra tende a
eclodir quando se acirram os conflitos e se esgotam as
possibilidades de entendimento ou persuasão, ou seja, quando
os acordos que balizam tal hegemonia passarem a ser
contestados e enfrentados por outros Estados e suas burguesias.
Essa referência nos clássicos indica que a teoria e o
debate sobre imperialismo e os elementos que implicam nesse
fenômeno ainda são importantes e atuais para analisar as relações
internacionais. Contudo não impediu que os teóricos
contemporâneos incidissem na reificação do Estado – aos
moldes da teoria realista em Relações Internacionais –, na
desconsideração dos processos políticos das lutas de classes no
interior dos Estados nacionais e na desvinculação desta
dimensão com as relações internacionais e suas implicações
recíprocas. Essas incidências dificultam o procedimento de
analisar a complexidade e a plenitude da estrutura internacional
e da conjuntura econômico-política dos fenômenos pesquisados.
Pois, a luta de classes não ocorre apenas no interior, mas também
entre dos Estados nacionais.
122
Capítulo 5
HEGEMONIA E IMPERIALISMO:
CARACTERIZAÇÕES DA ORDEM
MUNDIAL CAPITALISTA APÓS A II
GUERRA MUNDIAL68
Ana Garcia69
INTRODUÇÃO
123
O presente capítulo se propõe a revisar parte da
literatura existente sobre os conceitos de hegemonia e
imperialismo por autores ligados a diferentes correntes de
pensamento das RI, a fim de esclarecer como e quando cada um
destes conceitos é usado. Primeiramente serão averiguadas
algumas de suas definições, para depois analisar seus usos para
caracterizar o período de dominação dos EUA após a segunda
guerra mundial. Este breve ensaio não esgota a vasta literatura
existente sobre estes conceitos, tampouco poderá fazer um
estudo de caso detalhado. Propõe-se, no entanto, explicar as
diferentes caracterizações, e os elementos enfatizados em cada
uma delas, procurando esclarecer parte do campo teórico do
estudo da ordem mundial.
124
políticos”, sendo necessário um método apropriado para
redefini-lo, dando-lhe um significado “bem definido, eticamente
neutro e objetivo” para que seja útil à análise da Economia
Política Internacional (COHEN, 1976, p. 15). Desde este ponto
de partida, o autor define imperialismo como “tipo de relações
internacionais caracterizadas por uma assimetria particular – a
assimetria de dominação e dependência. (...) O imperialismo refere-
se àquelas relações particulares entre nações inerentemente
desiguais que envolvem subjugação efetiva, o exercício real da
influência sobre o comportamento” (COHEN, 1976, p. 20,
grifos no original). O conceito seria operacional. A forma do
imperialismo pode ser o controle direto, através da extensão da
soberania política, ou indireto, com penetração econômica e
pressões diplomáticas ou militares.
O autor baseia-se no realismo para afirmar que a política
de poder é determinante da ordem internacional, e a raiz
principal do imperialismo está na “organização anárquica” do
sistema internacional. A anarquia vai disciplinar o
comportamento dos Estados, levando-os à busca da
maximização de sua posição de poder individual a fim de
assegurar sua segurança nacional. Desta forma, o imperialismo
teria sua origem “na organização externa dos Estados”
(COHEN, 1976, p. 223).
A visão de Cohen reflete o paradigma realista do sistema
internacional. A expansão de poder (territorial, econômica,
política e militar) dos Estados é justificada para manutenção de
seus status-quo, o que apresenta uma ambiguidade, uma vez que
é necessário expandir e crescer para manter a situação original
de poder. A política de expansão do Estado imperial se torna
uma “escolha racional”, perdendo elementos morais e éticos. O
poder adquire conotação neutra, e a política de poder e expansão
se torna um movimento quase mecânico. As consequências da
125
guerra, racismo, exploração e subalternização de outras nações,
povos e classes acabam sendo silenciadas. Observamos aqui a
dissociação entre capitalismo e imperialismo. Outros autores
também buscaram o uso historicamente específico do conceito
de imperialismo, e a separação de seus aspectos econômicos e
políticos (ver por ex. Smith, 1981).
É com os pensadores marxistas que o conceito de
imperialismo será definido de forma mais complexa e
abrangente. A teoria marxista clássica do imperialismo é de
Lênin. Para este, o imperialismo do final do século XIX é
consequência direta da fase de monopólio do capitalismo nos
países avançados, ou seja, a combinação, em uma só empresa, de
diferentes ramos da indústria (LENIN, 2005, p. 19). Este
desenvolvimento leva também a uma centralização de capital-
dinheiro em alguns bancos, que passam de simples operadores e
intermediários, a “monopólios onipotentes”, que dispõem do
capital-dinheiro da maior parte das industrias, conferindo-lhes
nova função: a capacidade de controle da economia de toda a
sociedade (LENIN, 2005, p. 31). Ao mesmo tempo, Lênin
explica que a relação entre banqueiros e industriais não está
absolutamente separada, senão que há mais bem uma “união
pessoal”. Se os industriais só têm acesso a seu capital através dos
bancos, também estes precisam colocar este enorme capital em
investimentos de retorno. Assim é formado o “capital
financeiro”, o capital bancário transformado em capital
industrial (HILFERDING apud LENIN, 2005, p. 47)70.
126
Com a formação do capital financeiro inicia-se o
processo chave do imperialismo capitalista: exportação de
capital. O excedente de capital em alguns países é exportado para
nações pré-capitalistas, onde são construídas as condições para
o desenvolvimento capitalistas destas áreas (como ferrovias e
infraestrutura), sempre dadas em troca de algo para proveito
próprio, impondo gastos do mesmo empréstimo na compra de
produtos do país credor. A exportação de capitais aumenta a
exportação de mercadorias, e com isso inicia-se o alargamento e
aprofundamento do capitalismo em todo o mundo (LENIN,
2005, p. 64-65).
Qual é o papel da guerra para Lênin? Enquanto ele
entendia o imperialismo moderno a partir do (sustentado pelo)
capital financeiro, Kautsky (1914) enfatizou o seu lado político.
Para este, a ocupação e subjunção de áreas agrárias produziu
fortes contradições entre os países industrializados, levando a
uma corrida armamentista. Contraditoriamente, a própria
economia capitalista estaria ameaçada por esta competição,
sendo de interesse dos próprios capitalistas a união pacífica entre
os grandes Estados, se estes quiserem continuar explorando as
áreas agrárias. Kautsky previa uma translação da cartelização do
capital para a política externa: uma fase de “ultra-imperialismo”,
ou uma “aliança sagrada” entre Estados imperialistas. Quanto
mais durasse a guerra, mais exaustos estariam seus participantes,
fazendo-os querer evitar a repetição de conflitos armados.
Em resposta a Kautsky, Lênin reafirmava a centralidade
do capital financeiro nesta fase do imperialismo, que mostrava
tendência de anexação não só das áreas agrárias, mas também
das industriais. O capital financeiro e os trustes acentuavam (e
não diminuíam) as diferenças entre os ritmos de crescimento dos
diferentes países e regiões da economia mundial. Com isso, “faz
parte da própria essência do imperialismo a rivalidade de várias
127
grandes potências nas suas aspirações por hegemonia, isto é, a
apoderarem-se de territórios não tanto diretamente para si,
como para enfraquecer o adversário e minar a sua hegemonia”
(Lênin 2005, p. 92). Perguntava, então, “como podem resolver-
se as contradições, sob o capitalismo, a não ser pela força? ”
(LENIN, 2005, p. 97, grifo no original). Uma aliança pacífica
entre as potências seria uma trégua entre guerras, gerando um
ciclo de formas de luta pacífica e não-pacífica sobre uma mesma
base de vínculos imperialistas (LENIN, 2005, p.121).
Autores atuais apontam para a necessidade de avançar
das teorias clássicas do imperialismo, uma vez que estas já são
insuficientes para explicar a atual fase do capitalismo mundial.
Para Panitch/Gindin (2004), o imperialismo demonstrava ser
um movimento duplo e simultâneo: o aprofundamento do
capitalismo para dentro e sua expansão para fora. Os autores
afirmam que a relação entre capitalismo e imperialismo somente
pode ser entendida a partir de uma teoria do Estado. Quando
Estados pavimentam, monitoram ou administram o caminho
para a expansão de seu capital para fora, isto só pode ser
entendido em termos do papel relativamente autônomo do
Estado na manutenção da ordem social e na garantia das
condições de acumulação do capital dentro das fronteiras
(PANITCH; GINDIN, 2004, p. 7). Além de compreender a
predominância conjuntural de um Estado, para a atual fase do
imperialismo é necessário entender a penetração estrutural em
antigos rivais pelo Estado imperial, característica principal do
que eles chamarão de “American informal empire”71.
128
Para Ellen Wood (2003), a lógica das teorias do
imperialismo clássico é a mudança de foco de operações internas
nos países capitalistas avançados para relações externas, ou
interações e conflitos entre Estados capitalistas e o mundo não-
capitalista (WOOD, 2003, p. 124-128). Enquanto que no
imperialismo tradicional a dominação colonial e exploração
econômica eram transparentes, a principal caracterização do
“novo imperialismo” é a dominação não-direta, que torna as
relações opacas. As formas de coerção econômicas são
diferentes da política e militar: a “compulsão” é impessoal, opera
como imposição do “mercado”. As relações são formalmente
reconhecidas, e se dão entre entidades legalmente iguais e livres,
ou seja, Estados soberanos, assim como trabalhadores e patrões,
credores e devedores (WOOD, 2003, p. 1-4). Mas a coerção
“extra-econômica” - política, militar, jurídica – se mantém
essencial, especialmente quando ações militares dos principais
países são fundamentadas pela “neutralidade dos interesses da
sociedade internacional” (WOOD, 2003, p. 5).
Portanto, para entender o “novo imperialismo”, é
necessário entender a natureza da relação entre forças
econômicas, políticas, militares e ideológicas no capitalismo.
Este é especialmente capaz de dissociar o econômico do extra-
econômico, porém, segundo Wood, o Estado-nação é mais
essencial ao capital que nunca. Somente ele pode ser o garantidor
administrativo e coercivo da ordem social, das relações de
propriedade, da estabilidade e previsibilidade contratual, ou de
qualquer outra condição básica requerida pelo capital em seu
cotidiano (WOOD, 2003, p. 139). Com isso, o novo
imperialismo depende cada vez mais de um sistema de múltiplos
129
Estados e soberanias locais, ao mesmo tempo em que, para
administrar este múltiplo sistema de Estados, é necessário um
único poder militar, capaz de manter todos “na linha” (WOOD,
2003, p. 142), função exercida pelos EUA.
130
uma derrota (os inimigos estavam no poder), e de uma reflexão
sobre as táticas e estratégias do inimigo, para poder derrotá-lo.
O conceito de hegemonia de Gramsci refere-se
diretamente a sua noção de Estado de forma ampliada: sociedade
política e sociedade civil. A hegemonia se forma com a
supremacia de determinado grupo ou classe social e sua liderança
moral e intelectual na sociedade civil. Este grupo exerce
liderança antes de chegar ao governo. Neste momento ele se
torna dominante, mas mesmo depois de se afirmar no poder,
não pode deixar de “liderar” (GRAMSCI, 1971, p. 58). Para
Gramsci, “dominar” não é igual a “liderar”: este requer certas
concessões aos grupos subordinados, para que eles “concedam”
(mesmo que indiretamente) e se tornem parte do projeto de
dominação de dado grupo.
A hegemonia pressupõe, portanto, levar em
consideração os interesses e tendências dos grupos sobre os
quais a hegemonia deve ser exercida. Isto significa que o grupo
dominante terá que fazer certos sacrifícios de tipo econômico-
corporativo, desde que não toquem no essencial de seu poder
econômico (GRAMSCI, 1971, p. 161). Este “equilíbrio
compromissado” faz com que o desenvolvimento e expansão do
grupo particular sejam concebidos e apresentados como força-
motriz de uma expansão universal. Segundo Gramsci, o Estado se
torna o reflexo destes interesses particulares apresentados como
universais (GRAMSCI, 1971, p. 182).
A hegemonia da classe dominante é, assim,
institucionalizada no aparato político, mas formada e sustentada
na esfera na sociedade civil (Estado ampliado). Quando a classe
dominante perde o consenso na sociedade, ela não exerce
liderança, mas dominação, precisando para isso exercer força
coerciva (GRAMSCI, 1971, p. 272). A ideologia liberal buscou
separar o Estado da sociedade civil, afirmando que a atividade
131
econômica pertence a ela, e o Estado não deve intervir nem
regulá-la. Mas se ambos são parte do mesmo, então, segundo
Gramsci, “deve estar claro que o liberalismo também é uma
forma de regulação estatal, introduzida por meios legislativos
coercivos” (GRAMSCI, 1971, p. 160). Hegemonia e sociedade
civil são, portanto, dois conceitos interdependentes e devem ser
pensados de forma conjunta (BUTTIGIEG, 2005).
Alguns autores críticos e marxistas buscaram adequar o
conceito Gramsciano em sua complexidade para as Relações
Internacionais. No entanto, na concepção predominante na
academia norte-americana, o realismo, a visão de hegemonia é
centrada no poder do Estado em sua forma simples: instituição
de autoridade política. Um expoente do realismo, Gilpin,
equivale poder, hegemonia, império e Estado dominante como
sinônimos. Para ele, a história demonstra que a guerra tem sido
inevitável para solucionar tensões geradas pelo desequilíbrio na
distribuição de poder no sistema internacional. Hegemonia é
consequência inevitável da vitória de pelo menos um Estado ou
grupo (GILPIN, 1981, P. 197-8). Segundo o autor, uma guerra
hegemônica se caracteriza por: contestação direta entre poder
dominante e Estados revisionistas, mudanças na natureza e a
governança no sistema, e meios de violência quase ilimitados
(GILPIN, 1981, p. 200). As grandes transformações na história
mundial foram derivadas de guerras hegemônicas entre rivais
políticos, cujo resultado é o reordenamento do sistema a partir
de ideias e valores do Estado vencedor (GILPIN, 1981, p. 203).
Gilpin afirma que marxistas e realistas compartilham da
visão de que, enquanto for possível a expansão territorial e de
recursos, a lei do desenvolvimento desigual pode operar sem
alterar a estabilidade do sistema como um todo. No entanto,
quando seus limites são alcançados, o sistema entra em crise, o
que levou a uma intensificação do conflito e ao colapso final do
132
sistema em duas grandes guerras (GILPIN, 1981, p. 201).
Observa-se que o mesmo processo histórico caracterizado por
Gilpin como guerra hegemônica, para Lênin é denominado
guerra inter-imperialista.
Ao contrário de Gramsci, Gilpin afirma que a tática de
fazer concessões aos poderes menores para assegurar o status-
quo pode demonstrar um sinal de enfraquecimento do hegemon,
gerando um ciclo vicioso de demandas por mais concessões
(GILPIN, 1981, p. 207). Este ponto expõe a diferença da
concepção de hegemonia como poder militar, política, territorial
e econômico (semelhando a imperialismo), inversamente de
autores que trabalham com “consenso e coerção”. Para estes, a
habilidade de construção de consenso a partir de concessões
legitimará a liderança do hegemon, que usará a coerção somente
quando necessário. Assim, as formas de concessão e
compromissos internacionais são instrumentos de legitimação
do poder.
Gilpin aponta que paz se equivale a uma “estabilidade
hegemônica”, uma vez que ela é assegurada e vigiada por um
poder maior, que coordena a política mundial a partir da sua
visão de mundo (GILPIN, 1981, p. 209). Também Kindleberger
(1973) aponta que a crise e a Grande Depressão dos anos 30
poderia ter sido evitada se a Inglaterra tivesse tido capacidade, e
os EUA vontade política de exercer liderança
(KINDLEBERGER, 1973, p. 291-2). Ambos foram incapazes
de preservar o “bem público”, voltando-se para si, privilegiando
questões particulares ao invés do bem comum, que seria a
estabilidade do sistema como um todo. As visões de Gilpin e
Kindleberger deram origem à chamada “teoria da estabilidade
hegemônica”, desenvolvida posteriormente por Keohane
(1993), expoente do paradigma institucionalista das RI. De
acordo com este, as estruturas hegemônicas de poder dominadas
133
por um só país conduzem à formação de regimes internacionais
fortes, com regras precisas e obedecidas por todos
(KEOHANE, 1993, p. 111)72. Os regimes econômicos
internacionais fortes dependem de um poder hegemônico, ao
passo que fragmentação do poder entre países em competição
leva à fragmentação do regime. A concentração de poder indica,
portanto, estabilidade.
Keohane afirma que poderes maiores e menores têm
incentivos para colaborar dentro de um regime internacional: “a
potência hegemônica ganha capacidade de configurar e dominar
seu entorno internacional, enquanto que administra um fluxo
suficiente de benefícios a pequenas e médias potências para
convencê-las de que coincidem [em interesses]” (KEOHANE,
199E, p. 115). Por outro lado, na medida em que a distribuição
de recursos (especialmente econômicos) se torna mais equitativa,
aumentam os custos do hegemon em manter estabilidade e o
cumprimento das regras, e os regimes se debilitam. Inicia-se
assim um período de transição e de instabilidade (KEOHANE,
1993, p. 116-7).
Nota-se aqui que a hegemonia adquire uma conotação
benigna. Assim como um “Leviatã” daria fim a um “estado de
natureza de todos contra todos”, também o hegemon pode
minimizar os efeitos da anarquia internacional. Desta forma, o
“bem comum” (estabilidade, paz, ordem) seria garantido.
Diferentemente de Gramsci, quem, através do conceito de
hegemonia, denunciava a opressão e subalternidade de uma
134
classe frente a outra, para estes teóricos do realismo e do
institucionalismo, a desigualdade social e internacional não é um
mal em si, podendo ser “um mal necessário” para garantir a
ordem do sistema.
Autores críticos buscaram revidar a noção de uma
hegemonia “benévola”, trabalhando, a partir da teoria
gramsciana, os instrumentos de manutenção do poder na ordem
mundial. Cox (1987) define hegemonia como uma dominação
de forma particular, onde um Estado cria uma ordem baseada
ideologicamente em ampla medida de consentimento,
funcionando de acordo com princípios gerais que, de fato,
asseguram a contínua supremacia do Estado líder, e sua classe
social dominante, oferecendo, ao mesmo tempo, alguma medida
de satisfação aos menos poderosos (COX, 1987, p. 7). Deste
modo, para se tornar hegemônico, um Estado precisa fundar ou
proteger uma ordem que seja universal em sua concepção, mas
em que outros Estados sintam em parte compatível com seus
próprios interesses (COX, 1993, p. 61).
Neste tipo de ordem, a produção em países particulares
se torna conectada ao sistema mundial de produção. A classe
dominante no Estado hegemon encontra aliados em classes de
outros países. Uma sociedade mundial incipiente emerge no
sistema interestatal, e os próprios Estados se tornam
internacionalizados, de modo que seus mecanismos e políticas
são ajustadas ao ritmo da ordem mundial (COX, 1987, p. 7).
Assim, a hegemonia mundial se forma sobre uma sociedade civil
globalmente concebida, e não somente a partir das relações
interestatais.
Um importante mecanismo de universalização de
normas da hegemonia mundial são as organizações
internacionais. Através delas são incorporadas as regras que
facilitam a expansão de ordens mundiais hegemônicas,
135
legitimando ideologicamente as normas desta ordem. Ao mesmo
tempo, elas mesmas são produto da hegemonia de um Estado
dominante, e são capazes de facilitar a cooptação de elites dos
países periféricos, e absorver ideias contra-hegemônicas (COX,
1993, p. 62). Para Arrighi (1993), a formação de uma hegemonia
mundial está diretamente ligada à formação social hegemônica
da classe dominante no âmbito doméstico. Um Estado se torna
hegemônico mundialmente quando pode reivindicar com
credibilidade que é a força-motriz da uma expansão universal do
poder coletivo de sua classe dominante com relação a outros
Estados, assim como com relação às classes subalternas
(ARRIGHI, 1993, p. 151). Este tipo de reivindicação é mais
plausível em situações de caos sistêmico, onde há falta de
organização generalizada e escalação de conflitos73. Na medida
em que o caos sistêmico aumenta, a demanda pela instalação de
ordem se generaliza entre dominantes e dominados. Qualquer
Estado em condições de satisfazer esta demanda se apresenta
como potencial hegemon (ARRIGHI, 1993).
136
os autores realistas e institucionalistas que fazem uso do termo
hegemonia, a “Pax Americanna” foi uma forma benévola de
ordem mundial, na qual as instituições e regimes internacionais
foram privilegiados para organizar a coesão contra a ameaça
soviética, o que, em grande medida, significou mais custos aos
EUA, se comparado a poderes hegemônicos anteriores.
Gilpin (1975) enfatiza o papel das empresas
multinacionais como principal instrumento da hegemonia global
americana, cujos outros pilares são a posição do dólar como
moeda de troca internacional, e a supremacia militar e nuclear
(GILPIN, 1975, p. 138-40). Segundo o autor, os interesses das
corporações e o interesse nacional dos EUA se sobrepõem e
complementam: a expansão mundial das corporações atende aos
interesses geopolíticos americanos, sendo elas território de
controle e legislação dos EUA, assim como ajudam a atenuar o
déficit fiscal do dólar; ao mesmo tempo, a política externa
americana apoia a expansão das empresas, com crédito, acordos
comerciais, e seu peso como poder hegemônico mundial
(GILPIN, 1975, p. 146-7). Com efeito, os lucros feitos pelas
companhias no exterior apoiam o Estado americano a cobrir
gastos pesados em operações diplomáticas e militares, tendo sido
essenciais para financiar a posição hegemônica global dos EUA
(GILPIN, 1975, p. 149).
Gilpin afirma que a construção de hegemonia através de
alianças (especialmente com Europa e Japão)74 demandou
concessões, como por exemplo a tolerância da concorrência
137
econômica. Instrumentos diretos de transferência de capital,
como o plano Marshall, colocaram aos EUA um peso financeiro,
que não ocorreu com a Inglaterra em seu período auge
(GILPIN, 1975, p. 151).
Keohane (1993) aponta que a liderança hegemônica dos
EUA durante a década de 1950 foi responsável, administrando
benefícios a seus aliados, mas também lhes impondo restrições.
Os EUA fizeram sacrifícios de curto prazo para criar uma ordem
“próspera e estável” a seu favor no longo prazo. Os interesses
do “mundo livre” se combinava com os interesses dos EUA para
determinar uma estratégia de liderança, facilitada em grande
medida pela ameaça soviética (KEOHANE, 1993, p. 315-21).
No entanto, a “longa década” de 50 foi frágil e curta, uma vez
que os EUA não puderam administrar bem a combinação dos
interesses particulares internos com a preocupação de manter
alianças internacionais. Keohane aponta que os EUA teriam
contraído a “enfermidade dos fortes” – a negação em ajustar-se
às mudanças – especialmente nas áreas de finanças e petróleo,
onde a política norte-americana estava debilitada pela
incoerência entre demandas políticas internas e os imperativos
internacionais de longo prazo. (KEOHANE, 1993, p. 347).
Ikenberry (2001) caracteriza a ordem mundial nos anos
90 como “hegemonia de acionistas”: uma forma benévola de
poder (“soft power”) construída pelos EUA a partir de suas
instituições domésticas democráticas, maduras, abertas, com
regras previsíveis, e vinculadas a uma rede de instituições
multilaterais. Através destas são estabelecidas parcerias estáveis
e vinculantes, que asseguram a ordem econômica e militar
dominada pelos EUA, ao mesmo tempo em que constrangem e
restringem o poder de ação do próprio hegemon
(IKENBERRY, 2001, p. 20-22). Desta forma, a ordem
138
hegemônica construída pelos EUA seria um espelho de suas
próprias instituições domésticas (IKENBERRY, 2001, p. 19).
Este ambiente muda com o 11 de Setembro de 2001. O
termo “Império Americano” é retomado com otimismo por
neoconservadores, e a administração Bush afirma uma
“soberania contingente” e o direito de intervenção preventiva
(IKENBERRY, 2004). Para o autor, porém, o termo “Império”
não cabe para descrever a estrutura de dominação americana. Se,
de fato, os EUA mantiveram políticas imperiais frente à América
Latina e ao Oriente Médio, com relação a maior parte dos países,
a ordem mundial teria sido um sistema negociado, onde os EUA
buscaram a participação de outros Estados em termos
mutuamente acordados. O império americano seria uma
“ilusão”, pois suas instituições limitam e legitimam seu próprio
poder (IKENBERRY, 2004).
Contrária a esta argumentação, pode-se afirmar que as
instituições e organizações internacionais não serviram para
constranger ou limitar o poder dos EUA, senão que para
alcançar a universalização de normas e expandir sua hegemonia
mundial (COX, 1989; COX, 1993). Cox aponta para dois
fenômenos centrais do período da “Pax Americanna”: a
internacionalização da produção – enquanto a força de trabalho
permaneceu fragmentada pelas múltiplas soberanias estatais – e
a internacionalização do Estado, que passou a ajustar no plano
doméstico as imposições da economia globalizada, e a participar
da formação do consenso internacional estruturado
hierarquicamente (COX, 1989, p. 244-254). Arrighi (1993)
aponta para a relativa reconfiguração do Estado, com
considerável restrição de direitos e poderes dos Estados
soberanos pelas instituições da hegemonia americana. Os
princípios, normas e regras aos quais os Estados eram
submetidos aumentaram e se tornaram mais estreitas (se
139
comparadas ao período de hegemonia britânica), enquanto que
o crescente número de organizações supranacionais adquiriram
mais poder autônomo para “sobre-governar” o sistema
interestatal (ARRIGHI, 1993, p. 182).
Pode-se observar que a ordem hegemônica estabelecida
pelos EUA no mundo capitalista no pós-Segunda Guerra
transcende o poder bélico, e tem nas instituições internacionais
(organizações interestatais e corporações privadas) seus pilares
de legitimação e imposição da ordem. No entanto, o consenso
atingido através de alianças e instituições não poderia dispensar
o elemento militar, principal mecanismo de poder entre as
potências da Guerra Fria. Para Magdoff (1975), o imperialismo
e o militarismo são fatores determinantes da evolução e
supremacia tecnológica americana, assim como da repatriação
das riquezas no interior do país. A guerra deve ser entendida em
seu sentido amplo, abarcando todos os tipos de intervenção
militar (MAGDOFF, 1975, p. 33). As despesas militares
americanas têm impacto na provisão de matérias primas,
desenvolvimento de bens duráveis, e pesquisa tecnológica de
alto nível, tendo impactos assim em toda a economia.
Para Panitch/Gindin (2004), o imperialismo atual se
caracteriza pela capacidade do Estado americano de penetrar e
coordenar os outros Estados líderes capitalistas. O dinamismo
do capitalismo americano e o seu apelo mundial, combinado
com uma linguagem universalista da ideologia de democracia
liberal, apoiam a capacidade do império informal de ir além dos
impérios anteriores. Segundo os autores, somente o Estado
americano reivindicava para si o direito de intervir contra a
soberania de outros países, e somente ele reservou para si o
direito “soberano” de rejeitar normas e regras internacionais
quando necessário. Neste sentido “only the American state was
actively ‘imperialistic’ ” (PANITCH; GINDIN, 2004, p. 16). Assim,
140
a ordem capitalista mundial se organizou e regulou pela via de
reconstrução de outros Estados como elementos integrais do
império informal americano.
Os autores se diferenciam dos teóricos críticos baseados
em Gramsci, ao afirmarem que, mesmo com toda a penetração
cultural e econômica, nunca houve uma “transferência de
lealdade popular direta” de outros povos aos EUA. (PANITCH;
GINDIN, 2004, p. 32). Tampouco os EUA tiveram que
incorporar demandas das classes subordinadas em outros
Estados dentro da construção de seu império. O consentimento
ativo para a dominação do império informal sempre foi mediado
pela legitimidade que os outros Estados mantinham para si em
nome de qualquer projeto particular do Estado americano
(PANITCH; GINDIN, 2004). De todos os modos, o recorrente
uso de intervenções militares ao redor do mundo demonstra que
esta legitimidade foi muitas vezes difícil de ser alcançada, e a
formação de um consenso dentro das instituições hegemônicas
não é suficiente.
A centralidade da força militar em combinação a força
econômica dos EUA é caracterizada por Wood como “surplus
imperialism” (WOOD, 2003, p. 143). Por que um aparato militar
tão grande quando não há um inimigo claro a ser combatido?
Este é o paradoxo do novo imperialismo. O poder militar não
está desenhado para conquistar novos territórios nem derrotar
um inimigo, não busca dominação territorial ou física,
contraditoriamente produziu uma capacidade militar
desproporcional com alcance global. Isso se dá, segundo a
autora, precisamente por não haver inimigos nem objetivos
claros e finitos: a dominação sem fronteiras de uma economia
global, e um múltiplo sistema de Estados para administra-la,
requer ação militar sem propósito, tempo e fim (WOOD, 2003,
p. 144). Substitui-se doutrinas tradicionais de guerra por um
141
novo princípio de “guerra sem fim”, onde ações militares são
justificadas sem expectativa de seu objetivo será alcançado
(WOOD, 2003, p. 149). Diferentemente do antigo, que se
baseava na expansão do capital para áreas pré-capitalistas, o
novo imperialismo se baseia na própria universalidade do
capitalismo. Wood ressalta que a força militar apoia seu alcance
global. Enquanto os imperativos de mercado têm um alcance
que vão além do poder de um único Estado, estes mesmos
imperativos têm que ser reforçados pelo poder extra-econômico
(WOOD, 2003, p. 152-4). Por ironia, num sistema globalizado
onde supostamente o Estado-nação estaria desaparecendo, a
ordem global se mantém por um sistema de múltiplos Estados,
onde importam quais são as forças locais que governam e
como75.
CONCLUSÃO
142
Em alguns casos, a ênfase nos meios de dominação econômico
e militar leva a caracterização da ordem mundial como
imperialista. Em outros, a ênfase nas instituições, soft power e
concessões a poderes menores leva a caracterização da ordem
como hegemônica, que também pode ser vista a partir da
perspectiva gramsciana de universalização de regras, normas e
valores particulares.
Lembramos que “uma teoria é sempre para alguém e
para algum propósito” (COX 2000). Todas as teorias têm uma
perspectiva, que deriva de uma posição em tempo e espaço
político e social. Parece pertinente a divisão de Cox entre
“solução de problemas” e teoria crítica: a primeira diz respeito a
problemas particulares dentro de uma ordem mundial tida como
dada, sendo que a solução destes problemas objetiva o melhor
funcionamento e a manutenção da própria ordem, e não a
transformação desta; a segunda, ao contrário, se dirige ao
complexo social e político como um todo, buscando as origens
históricas e relações sociais e de dominação que prevaleceram
em uma determinada ordem mundial, para entender suas
dinâmicas e buscar sua transformação (COX, 2000). Autores que
escrevem a partir do centro de poder, os EUA, com a intenção
de explicar sua ascensão e entender seu declínio, mantêm
intactas as premissas do sistema capitalista. Já autores marxistas
e da teoria crítica buscam explicar a ordem de dominação e
poder (ora caracterizada como hegemônica, ora como imperial)
com a perspectiva de transformação histórica do sistema em sua
totalidade. É necessário compreender ambas as perspectivas
para dar conta de uma realidade social complexa e contraditória.
143
Capítulo 6
A CONTRIBUIÇÃO NEOGRAMSCIANA
PARA OS ESTUDOS INTERNACIONAIS76
Leonardo Ramos77
INTRODUÇÃO
144
(COUTINHO, 2007, p. 79). Os Cadernos podem, assim, ser
vistos como a maturação de um pensamento que vinha desde
1921, com destaque para a carta enviada ao Comitê Central do
Partido Comunista (COUTINHO, 1981, p. 170-175) e o ensaio
não terminado sobre a questão meridional (GRAMSCI, 1987) –
ambos de outubro de 192678.
O entendimento dos Cadernos e de sua estrutura é algo
fundamental na medida em que uma análise neogramsciana
acerca dos processos de construção e contestação da hegemonia
no âmbito global demanda, necessariamente, a apresentação do
pensamento gramsciano e a articulação entre os conceitos por
ele desenvolvidos. Neste processo, é de extrema relevância ler
Gramsci buscando identificar seus limites e potencialidades para
o entendimento do internacional. Assim, o presente capítulo
busca apresentar as contribuições dadas por uma perspectiva
neogramsciana para o entendimento das reações internacionais.
Para tal fim, se divide em duas grandes partes: na primeira parte
145
será apresentado o pensamento de Gramsci em seu contexto
para, em um segundo momento, ser desenvolvida uma releitura
de Gramsci para além de seu contexto; ou seja, um engajamento
crítico com Gramsci que, se por um lado acaba por realmente
“ir além” em alguns momentos, por outro se mantém nas sendas
gramscianas em termos metodológicos e na “forma de pensar”
(MORTON, 2007, p. 18). Assim, tal releitura ocorrerá a partir
do engajamento com alguns autores neogramscianos, como
Robert W. Cox, Stephen Gill, William I. Robinson, Adam
Morton e John Agnew. Neste processo, será feita uma discussão
sobre a incorporação da obra de Gramsci nos estudos
internacionais, com destaque para os impactos da globalização
para a Pax Americana e, consequentemente, para o processo de
internacionalização/transnacionalização do Estado.
A PROBLEMÁTICA DA HEGEMONIA
146
A obra de Gramsci destaca o estudo dos fenômenos
superestruturais, da política, da cultura, e do sistema de valores
no contexto de uma ordem capitalista, contribuindo assim
significativamente para a crítica ontológica de outras esferas do
ser social que não especificamente a esfera econômica. Contudo,
tal desenvolvimento se encontra em uma problemática que
relaciona dialeticamente a superestrutura a uma base econômica.
Isso fica claro quando as atenções são voltadas para as bases
materiais da hegemonia: a hegemonia deve ser econômica
também já que as condições objetivas fornecem uma base para
o estabelecimento daquela, que só poderá ser mantida por uma
classe ou grupo que ocupe um lugar de destaque no sistema de
produção. Assim, a condição para a reprodução do
consentimento é que o sistema hegemônico produza resultados
que, em certa medida, satisfaçam os interesses materiais de curto
prazo de vários grupos sociais. Em suma, a hegemonia
ideológica só pode ser mantida se estiver calcada em uma base
material (GRAMSCI, 2002b, p. 48, Q13§18).
Não há, em Gramsci, uma supervalorização da
subjetividade em detrimento da objetividade – o que o mantém
coerente ao método ontológico-social marxiano. Se, por um
lado, Gramsci não vê a economia como a mera produção de
objetos materiais, se recusando a vê-la como algo isolado da
totalidade social, por outro ele não nega a “determinação em
última instância” da totalidade social pela economia: “A
estrutura e as superestruturas formam um ‘bloco histórico’, isto
é, o conjunto complexo e contraditório das superestruturas é o
reflexo do conjunto das relações sociais de produção”
(GRAMSCI, 2004, p. 250, Q8§182). A ação do sujeito não
ocorre no vazio, mas no interior de determinações econômico-
objetivas que limitam, sem anular, a ação do sujeito.
147
O fator econômico não produz, assim, um fechamento
final no sentido estrito de garantir um resultado; a determinação
do econômico sobre o político e o ideológico só pode ocorrer
em termos do estabelecimento anterior de limites que definam o
terreno das operações. Em suma, Gramsci vê a determinação da
política pela economia não como uma imposição mecânica de
resultados unívocos e fatais, mas como algo que condiciona “(...)
o âmbito das alternativas que se colocam à ação do sujeito”
(COUTINHO, 2007, p. 97. Grifo do autor).
Neste contexto de interação economia-política-ideologia
é fundamental destacar que há, em Gramsci, uma diferenciação
entre a regulamentação pela força e a regulamentação através do
consenso, que corresponde “(...) à natureza dúplice do centauro
maquiavélico, ferina e humana, da força e do consenso, da
autoridade e da hegemonia (...)” (GRAMSCI, 2002b, p. 33,
Q13§14). Ora, tal diferenciação aponta para um contraste entre
dois tipos ideais de supremacia: a dominação, que é o exercício
de poder sem uma permissão crítica do governado, e a
hegemonia ética, que seria uma liderança moral e intelectual
sobre o governado (GRAMSCI, 2002a, p. 62-63, Q19§24).
Coerção e consenso não são termos mutuamente
excludentes: a força é um elemento constitutivo do consenso
pois qualquer ruptura deste traz à tona os mecanismos de
coerção – intrínsecos a todas as esferas da vida social e que
permanecem latentes enquanto o consenso se mostrar suficiente
para manter a reprodução das relações sociais. “A coerção é,
portanto, ubíqua; não se limita a qualquer instituição específica”
(PRZEWORSKI, 1989, p. 198-199).
Isso se relaciona diretamente ao conceito de Estado
ampliado, ou seja, ao caráter metodológico e não orgânico da
distinção entre sociedade civil e sociedade política. Gramsci não
apresenta um conceito culturalista de hegemonia, desconectado
148
das relações de força. Na verdade, o fato dos organismos ligados
à formação do consenso se encontrarem dialeticamente
articulados à dimensão da força e da coerção possibilita afirmar
que “em Gramsci, existem força e consenso, não reductio ad unum
(...)”, apresentando assim uma “morfologia do poder na
sociedade contemporânea” (LIGUORI, 2007, p. 35 e 21. Grifo
do autor).
Neste processo as questões ideológicas são
fundamentais, desempenhando o papel de “instrumentos
consensuais da liderança intelectual e moral com relação às
condições materiais” (MORTON, 2007, p. 91); ou seja, é
fundamental levar em consideração o processo de organização
da estrutura ideológica ou, em outras palavras, “a organização
material voltada para manter, defender e desenvolver a ‘frente’
teórica ou ideológica” (GRAMSCI, 2001b, p. 78, Q3§49). Nota-
se, assim, que, se por um lado a luta pela hegemonia é a luta de
ideologias, por outro, não se trata apenas de uma luta de ideias,
dado que estas possuem uma estrutura material à qual se
encontram íntima e dialeticamente articuladas. É a ideologia que
“empresta o cimento mais íntimo à sociedade civil e, portanto,
ao Estado” (GRAMSCI, 2004, p. 375, Q10§41). É dada, assim,
à dimensão ideológica um papel fundamental no processo de
construção e manutenção da hegemonia, podendo ela ser vista,
em última instância, como “lugar de construção de
subjetividade” (LIGUORI, 2007, p. 91). Ou seja, a ideologia
seria a representação da realidade de um grupo social, uma
concepção de mundo fundamental na definição dos sujeitos
coletivos. Esta concepção se encontra em um momento anterior
às escolhas individuais, condicionando “os comportamentos
mais ligados à vontade” (LIGUORI, 2007, p. 95) ao mesmo
tempo em que mantém uma relação dialética com estes.
149
Em tal processo de construção e manutenção da
hegemonia a “direção intelectual e moral” deve ser exercida no
campo das ideias e da cultura, manifestando capacidade de
conquistar o consenso e de formar uma base social, pois não há
direção política sem consenso. A hegemonia cria, assim, a
subordinação de outros grupos sociais, que se refere à submissão
às ideias, e não apenas à força. Neste processo a classe
dominante repassa a sua ideologia e realiza o controle do
consenso através de uma rede articulada de instituições culturais,
os “aparelhos privados de hegemonia” – escola, igreja, jornais e
demais meios de comunicação –, cuja finalidade principal é
inculcar nas classes dominadas a subordinação passiva, através
de um complexo emaranhado de ideologias formadas
historicamente. Quando isso ocorre, a subordinação social das
classes também se torna política e cultural; ou seja, se o âmbito
econômico é um aspecto fundamental de toda a problemática
gramsciana, é o reino da política que é o “momento do mais alto
desenvolvimento histórico de uma classe” (SASSOON, 1980,
p.116).
Assim, hegemonia seria determinar as características de
um determinado processo histórico. É tornar-se o protagonista
de reivindicações que são de outros estratos sociais, unificando-
os através de parâmetros ideológicos e mantendo-os unidos. A
hegemonia não é apenas política, mas é também um fato cultural,
moral, enfim, de concepção de mundo. Em suma, é a capacidade
que uma classe ou grupo tem de unificar e de manter unido,
através da ideologia – e da realidade material –, um bloco social
que não é homogêneo, mas marcado por contradições de classe.
Cria-se então uma vontade coletiva que tem como finalidade a
consecução de um projeto econômico-político-social que
envolve a constituição/reprodução de uma determinada ordem
social (MELLO, 1996).
150
OS INTELECTUAIS E A CONSTRUÇÃO DO BLOCO HISTÓRICO
151
governados intelectualmente independentes
dos governantes, para destruir uma
hegemonia e criar outra, como momento
necessário da subversão da práxis (Gramsci,
2004, p. 387, Q10§41).
152
ontologia social não-reducionista e sem garantias finais, que
toma como ponto de partida a organização social da produção e
os processos de objetificação através dos quais os seres humanos
passam a existir socialmente (RUPERT, 1994; BIELER;
MORTON, 2008). Isso ocorre porque a “produção cria a base
material para todas as formas de existência social” e, além disso,
“as formas nas quais os esforços humanos são combinados em
processos produtivos afetam todos os demais aspectos da vida
social, incluindo a política” (COX, 1987, p. 1).
Consequentemente, diferentemente do pós-
estruturalismo, que vê o significado do mundo não-discursivo
apenas a partir de categorias constituídas discursivamente, para
Gramsci o mundo ideacional só adquire força “independente”
em sua relação dialética com as relações sociais de produção. Só
assim tais ideias adquirem organicidade e influenciam a
percepção dos seres humanos sobre o mundo que os cerca.
Como afirma Stuart Hall, “tudo está na esfera discursiva, mas
nada é apenas discurso ou apenas discursivo” (HALL apud
BIELER; MORTON, 2008, p. 12). Isso não significa que formas
de identidade que não se encontram diretamente relacionadas às
questões de classe sejam negligenciadas; na verdade, tais formas
de identidade são embasadas nas realidades sociais que estão
relacionadas ao processo produtivo (COX, 1987; BIELER;
MORTON, 2008; RUPERT, 2003; BAKKER; GILL, 2003).
Para entender tal processo é fundamental voltar ao
conceito de bloco histórico, pois este diz respeito àquelas
situações nas quais há um alto grau de congruência política entre
três tipos de relações de forças. A primeira seria o nível estrutural
ou material, vinculado ao nível das forças sociais de produção. A
153
segunda é política, relacionada ao desenvolvimento das classes e
de seu nível de consciência política. Por fim, a terceira é militar,
relacionada tanto ao uso doméstico do poder militar quanto às
forças militares geopolíticas que configuram o desenvolvimento
de uma sociedade particular.
No movimento em direção à hegemonia e à criação de
um bloco histórico haveria, dentro do segundo tipo de relação
de força – categoria das forças políticas –, três níveis ou três
momentos no desenvolvimento da consciência: o primeiro, o
“econômico-corporativo”, reflete os interesses específicos de
um grupo particular, ou uma solidariedade de grupo. O segundo,
a “consciência de classe”, se estende a toda uma classe social mas
permanece no nível dos interesses puramente econômicos; por
fim, o terceiro, “hegemônico”, que coloca em harmonia os
interesses das classes dominantes com os interesses das classes
subordinadas transcendendo tais interesses em direção a uma
ideologia que se expressa em termos universais. O movimento
em direção à hegemonia é, assim, uma passagem da estrutura
para o âmbito das superestruturas complexas, dos interesses
específicos de um grupo ou classe para a construção de
instituições e elaboração de ideologias. Caso reflitam uma
hegemonia, essas instituições e ideologias não aparentarão
promover os interesses de uma classe específica, mas serão
universais em sua forma. Ou seja, satisfarão alguns dos interesses
dos grupos subordinados sem minar a liderança e os interesses
da classe hegemônica (GRAMSCI, 2002b, p. 36-46, Q13§17).
Não obstante, nem sempre prevalece, como resultado do
processo de embate das forças sociais, situações hegemônicas.
Passemos, assim, para uma leitura acerca de situações deste tipo.
154
A QUESTÃO DA REVOLUÇÃO-RESTAURAÇÃO OU DA
REVOLUÇÃO PASSIVA
155
internacional”. Neste sentido, são “casos específicos de transição
estatal que são internamente relacionados através das condições
histórico-mundiais gerais de desenvolvimento desigual e
combinado” (MORTON, 2007, p. 71. Grifos no original).
Central neste processo é a capacidade de adaptação
interna das relações de produção capitalistas aos
desenvolvimentos das forças produtivas, ou seja, “uma certa
plasticidade” que lhe dá condições de “’se reestruturar’ em
períodos de crise” (BUCI-GLUKSMANN, 1978, p. 121). Os
dois aspectos principais que acompanham o fenômeno da
revolução passiva são o cesarismo e o transformismo. O
primeiro diz respeito à intervenção de um “homem forte”
buscando pôr fim ao embate entre forças sociais opostas e iguais
(GRAMSCI, 2002b, p. 76, Q13§27). Já o transformismo se refere
a um método para implementar um programa limitado de
reformas através da cooptação de líderes potenciais dos grupos
sociais subalternos (GRAMSCI, 2002a, p. 286-287, Q8§36).
Assim, o transformismo pode funcionar como uma estratégia de
assimilação e domesticação de ideias potencialmente perigosas
mediante o ajuste destas às políticas da coalizão dominante. Mas
qual seria a relação entre revolução passiva e hegemonia? Ora, a
revolução passiva seria a contrapartida da hegemonia, “o
exercício de uma hegemonia restrita” em um momento histórico
no qual as forças dominantes perderam “a capacidade de
assimilar a seu projeto as classes subalternas” (BIANCHI, 2006,
p. 48).
Tal conceito não se limita às transições passivas, mas
também “envolve os modos de reestruturações passivas do próprio
capitalismo” (BUCI-GLUCKSMANN, 1978, p. 135. Grifo no
original). Neste sentido, um exemplo seria o relacionamento
existente entre a forma mais dinâmica de poder produtivo e a
economia política no início do século XX – americanismo e
156
fordismo – e as formas mais atrasadas de economia política na
Europa. A dialética entre hegemonia e revolução passiva é um
tema central do Caderno 22, “americanismo e fordismo”: ambos
representavam uma aceleração de uma nova forma social
baseada sobre uma profunda relação orgânica entre forma de
Estado, sociedade civil e modo de produção e, como tal,
representava uma nova forma de economia planejada na qual a
hegemonia era baseada nas forças de produção. Em contraste, a
estrutura de classe europeia envolvia muitos elementos parasitas.
A burguesia não era hegemônica nestas sociedades da Europa e,
desta forma, as transformações tomaram a forma de revolução
passiva – o que ajudaria a entender os desdobramentos das
correlações de força ao longo do século XX.
157
ROBERT W. COX, AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E AS
TRÊS ESFERAS DE ATIVIDADE DA HEGEMONIA
158
A partir deste quadro de análise Cox analisa as estruturas
históricas que têm existido temporalmente no sistema capitalista
de produção, trazendo assim uma leitura acerca dos principais
elementos que constituem o mundo social e, neste sentido, as
relações entre os agentes e as estruturas sociais nas quais estes se
encontram inseridos. Neste processo seu ponto de partida é a
ordem mundial, e é a partir desse ponto que a noção gramsciana
de hegemonia começa a desempenhar um papel, mesmo que
discreto, em seu arcabouço teórico (COX, 1987).
Retomando Gramsci percebe-se que mudanças na
ordem mundial – como mudanças no equilíbrio geopolítico e
estratégico-militar – remontam a mudanças fundamentais nas
relações sociais. Além disso, toda relação de hegemonia
ultrapassa os limites de uma nação específica, envolvendo
relações mais complexas e tendo como base de atuação não o
Estado em específico, mas o âmbito mundial (GRAMSCI,
2002b, Q13§2 e Gramsci, 2004, Q10§44). O Estado permanece
sendo fundamental nas relações internacionais e uma relação
social “através da qual o capitalismo e a hegemonia são
expressos” (MORTON, 2007, p. 120). Contudo, o Estado é
entendido em seu sentido “ampliado”, o que inclui sua própria
base social e rompe com a “estatolatria” (GRAMSCI, 2002b, p.
279-280, Q8§130), ou seja, com visões mais estreitas e
superficiais do Estado que reduzem este à burocracia
responsável pela política externa ou às capacidades militares
estatais.
Neste processo, a construção de um bloco histórico
passa por um “momento nacional” no qual uma classe
hegemônica se manifestaria como um fenômeno internacional
na medida em que desenvolve uma forma particular de relações
sociais de produção. Ou seja, uma vez que a hegemonia tenha
sido consolidada domesticamente, ela pode se expandir para
159
além de uma ordem social particular, em uma escala mundial
(COX, 1987, p. 149-150). O Estado condensa, assim, uma
relação hegemônica entre classes dominantes e frações classes,
tornando os diversos interesses e aspirações destas coerentes e
compatíveis (MORTON, 2007; VAN DER PIJL, 1994 e 1998),
sendo que em tal relação as classes e frações de classes muitas
vezes se encontram articuladas a forças sociais externas ao
Estado – transnacionais e globais –, o que tornam ainda mais
complexos os embates pela construção de um projeto
hegemônico. A hegemonia pode, desta forma, ser operada em
dois níveis: pela construção de um bloco histórico e pelo
estabelecimento da coesão social dentro de uma forma de
Estado bem como mediante a expansão internacional de um
modo de produção e pela projeção dessa hegemonia através da
ordem mundial. Todavia, para Cox o “momento nacional” é
condição sine qua non neste processo: “uma hegemonia mundial
é assim no seu início uma expansão de uma hegemonia interna
(nacional) estabelecida por uma classe social dominante” (COX,
1994, p. 61).
O “momento nacional” é assim o ponto de partida com
relação à espacialidade do desenvolvimento e expansão do
capitalismo (MORTON, 2007; AGNEW, 2005). Contudo, ele é
também o “ponto de chegada”, pois a luta pela hegemonia
implica tornar interesses particulares, vinculados a uma forma
particular de Estado, em algo capaz de ser aplicado não apenas
no local onde surgiu, mas em vários Estados – ou seja,
potencialmente universalizável (GRAMSCI, 2002b, p. 315,
Q14§68).
Em suma, a falha em reconhecer a espacialidade do
pensamento de Gramsci (JESSOP, 2005) pode levar ao equívoco
de sobrevalorizar aqueles que seriam os supostos “limites
nacionais” de Gramsci. Isso ocorre, por exemplo, em Randall
160
Germain e Michael Kenny quando estes afirmam que “(...) a
natureza histórica de seus conceitos [de Gramsci] significa que
eles receberam seus significados e poder explanatório
primeiramente de sua base nas formações sociais nacionais, e
foram usados exclusivamente por Gramsci nestes termos”
(GERMAIN; KENNY, 1998, p. 20). Joseph Femia, por sua vez,
embora reconheça que a hegemonia poderia ter um espectro de
atuação que fosse para além das fronteiras nacionais, não é capaz
de lidar com o fato dos Estados serem pontos nodais e não
dominantes; neste sentido, afirma que, para o autor sardo, “o
mundo é naturalmente dividido em unidades ‘nacionais’
separadas (...) e estas são os principais atores do âmbito
internacional” (FEMIA, 2005, p. 345). Da mesma forma Robbie
Shilliam se equivoca ao afirmar que Gramsci não concede status
constitutivo ao âmbito internacional (SHILLIAM, 2004). Na
verdade, no que concerne à questão da hegemonia, “a restrição
de sua aplicabilidade unicamente ao ‘momento nacional’, se não
tematizada com o devido cuidado, pode conduzir a uma
dissimulação equivocada (...) do potencial teórico do conceito,
de seu alcance sociológico” (MELLO, 1996, p. 26). Neste
sentido, para entender a relação entre o Estado, em seu sentido
ampliado, e os processos de globalização, faz-se fundamental
voltar as atenções para o conceito de internacionalização do
Estado e seus respectivos desdobramentos.
161
sua relevância para a economia e para as finanças mundiais
(GRAMSCI, 2001a, p. 298-299, Q5§8; Idem, 2002b, p. 129-136,
Q2§16) quanto de suas ações de “sobrepor uma rede de
organizações e movimentos guiados por eles” (GRAMSCI,
2001a, p.292, Q3§5) – com destaque neste ponto para as
associações voluntárias e organizações privadas e públicas que
operavam “promovendo o liberalismo americano e apoiando a
projeção universal da produção de massa” (MORTON, 2007, p.
100), como Rotary Club, Associação Cristã de Moços e
Movimentos Pancristãos, por exemplo (GRAMSCI, 2002c, 346-
349, Q1§61; GRAMSCI, 2002b, p. 151, Q2§46; GRAMSCI,
2001a, p. 185, Q2§135; GRAMSCI, 2001a, p. 295-298, Q5§2;
GRAMSCI, 2001a, p. 195-196, Q5§17; GRAMSCI, 2001a, p.
299-301, Q5§61). Ora, isso é relevante pois ajuda a perceber o
equívoco presente em críticas que apontam uma aplicação
exclusiva das categorias gramscianas ao âmbito nacional ou
afirmam a negação, por parte de Gramsci, do âmbito
internacional como fator causal81 da transformação social. Na
verdade, os conceitos de hegemonia (desde sua concepção pré-
cárcere) e revolução passiva possuem um potencial heurístico
que vai para além do contexto “nacional”, apontando para o fato
de que “a perspectiva é internacional e não pode deixar de ser”
(GRAMSCI, 2002b, p. 314, Q14§68). Há, assim, no Caderno 14
uma fecunda linha de raciocínio para lidar com a relação entre o
global e o nacional:
81
Sobre a questão da causalidade e de seu entendimento nas Relações
Internacionais, ver Kurki, 2008.
162
se quer dominá-la e dirigi-la. Por certo, o
desenvolvimento é no sentido do
internacionalismo, mas o ponto de partida é
‘nacional’, e é deste ponto de partida que se
deve partir. Mas a perspectiva é
internacional e não pode deixar de ser. É
preciso, portanto, estudar exatamente a
combinação de forças nacionais que a classe
internacional deverá dirigir e desenvolver
segundo a perspectiva e as diretrizes
internacionais (GRAMSCI, 2002b, p. 314,
Q14§68).
163
dos processos de globalização. A internacionalização do Estado
seria “um processo global pelo qual as políticas e as práticas
nacionais têm sido ajustadas às exigências da economia mundial
(...)” (COX, 1987, p. 253). Os Estados têm se tornado parte de
uma estrutura política complexa emergente em escala
internacional, o que leva a duas questões: (1) o Estado não
desaparece neste processo, mas com a emergência do “global”
um novo âmbito de interações sociais surge sem que isso
implique a subsunção ou a hierarquização dos demais âmbitos
(COX, 1987, p. 253); (2) tal processo não é homogêneo. Na
verdade, destacar o “momento nacional” ajuda a ver as
“articulações interescalares” (MORTON, 2007, p. 138)
existentes entre os âmbitos nacional e internacional; ou seja, é
fundamental perceber as dinâmicas espaciais da dialética da
globalização.
Nota-se então um processo de transformação das
estruturas políticas estatais, que ocorre a partir de novos
alinhamentos das relações de poder entre os grupos domésticos
e destes com grupos de outros Estados em um processo mais
amplo de construção de um bloco histórico para além dos limites
do Estado nacional. Há, assim, a formação de um consenso
interestatal relacionado às necessidades da economia mundial. A
partir daí as estruturas internas dos Estados partícipes deste
processo são ajustadas a fim de traduzir tal consenso em políticas
públicas nacionais.
Desde o surgimento do Sistema de Bretton Woods o
Estado começa a ocupar uma posição de mediação entre as
estruturas da economia internacional e da economia mundial.
Ou seja, durante a Pax Americana há a prevalência de uma ordem
mundial hegemônica na qual se destaca, nos Estados industriais
avançados, uma forma de Estado na qual este prestava contas
tanto às instituições da economia mundial – FMI e Banco
164
Mundial, por exemplo – quanto à opinião pública doméstica. Tal
questão se expressava na ideia de “liberalismo incrustado”
(RUGGIE, 1982) ou na possibilidade de se combinar livre
comércio no âmbito internacional com intervenção estatal no
âmbito doméstico a fim de garantir a estabilidade. Neste
processo de mudança do centro de gravidade da economia
nacional para a economia mundial, o Estado permanecia como
responsável pela estabilidade em ambos os âmbitos. Tal
processo pressupunha uma estrutura de poder na qual agências
e componentes do governo estadunidense tinham uma posição
de destaque. Contudo, esta estrutura de poder não operava “de
cima para baixo” nem exclusivamente a partir dos Estados
nacionais. Como todo processo de construção de uma
hegemonia, pressupunha uma identificação por parte dos
subordinados; assim, os processos de internacionalização do
Estado devem ser entendidos de maneira dialética, como uma
tendência que gera contradições e movimentos de oposição.
A ordem mundial hegemônica estabelecida pela Pax
Americana “foi fundada por um país no qual a hegemonia social
tem sido estabelecida e no qual tal hegemonia foi
suficientemente expansiva para se projetar em uma escala
mundial” (COX, 1987, p. 266). Neste mesmo processo, o modo
fordista de produção assim como determinada forma de Estado
se tornaram os modelos mundiais, sendo tanto exportados
quanto emulados alhures. Há, assim, por detrás da Pax Americana
uma visão de hegemonia, herdeira do sucesso do New Deal e
associada ao internacionalismo econômico através do qual
grupos sociais estadunidenses buscavam estimular a demanda
através do consumo de massa. Isso é fundamental, pois expressa
a relevância da dimensão espacial na construção de uma
hegemonia: “o lugar que vem exercer a hegemonia importa,
assim, para o conteúdo e para a forma que a hegemonia assume”
165
(AGNEW, 2005, p. 9). No caso da Pax Americana, “uma dialética
espacial entre os Estados Unidos e o resto do mundo mais
propriamente do que uma dialética histórica
conjuntural/universal com aspectos geográficos meramente
acidentais” é fundamental para a compreensão da economia
política global contemporânea (AGNEW, 2005, p. 9).
Tal hegemonia possuía certas particularidades. Sua
geografia do poder derivava do poder em rede há muito
“cultivado na sociedade de mercado americana” (AGNEW,
2005, p.61), o que levou a uma crescente internacionalização da
produção e das finanças gerando consequências significativas,
como a própria erosão dos princípios norteadores da ordem
mundial no período da Pax Americana. Neste processo, “o
modelo econômico-cultural dos Estados Unidos e sua posição
global hegemônica” (AGNEW, 2005, p. 61) foram
fundamentais, sendo possível perceber uma crescente integração
dos processos de produção em uma escala global através de
determinados processos de articulação das corporações
transnacionais em diferentes localizações territoriais. É possível,
assim, afirmar que, de uma perspectiva neogramsciana, “esta
organização da produção e das finanças em um nível
transnacional distingue fundamentalmente a globalização do
período da Pax Americana” (MORTON, 2007, p.124).
166
sentido, para Leo Panitch (1997, p. 89-96) tal tese enfatizaria
desproporcionalmente o aspecto top down das relações de poder,
vendo a globalização como um processo unidirecional, do global
para o nacional. Desta forma, Cox negligenciaria o fato de que a
globalização é obra dos Estados. Já L. H. M. Ling (1996) e
Andrew Baker (1999) afirmam que o conceito de
internacionalização do Estado seria limitado pois negligencia as
interações recíprocas existentes entre o global e o local assim
como as relações sociais que se reforçam mutuamente na
economia política global, além de desconsiderar o papel dos
conflitos de classe dentro das formações sociais nacionais. Pinar
Bedirhanoglu (2008), por sua vez, argumenta que Cox parte de
uma leitura equivocada do conceito marxiano de modo de
produção, o que o leva a uma concepção fetichizada do Estado
e, consequentemente, a uma reprodução das práticas ideológicas
(neo)liberais. Em suma, para tais autores o papel do Estado ainda
seria determinado pelas lutas entre as forças sociais localizadas
dentro de cada formação social particular mesmo embora as
forças sociais possam estar inseridas em estruturas
transnacionais – o que apontaria para os limites do conceito
desenvolvido por Cox.
O próprio Cox reconhece a pertinência, em alguma
medida, da crítica à ideia de “correia de transmissão”: tal
metáfora teria levado a uma leitura equivocada de que haveria
uma força totalmente externa impactando os Estados,
obscurecendo “o papel do equilíbrio das forças sociais dentro do
Estado e do potencial de resistência à globalização das forças
sociais hostis” (COX, 2002, p. 33)82. A ideia de nébuleuse ajudaria
a captar tal questão, devendo ser vista como algo incompleto e
permeado de contradições – e não uma força progressivamente
167
centralizadora. Neste sentido, o capitalismo global seria um
processo que ocorre em múltiplos níveis,
168
acima elencadas. Neste sentido, Stephen Gill contribuiu para o
entendimento desse processo como parte do caráter cambiante
da hegemonia mundial centrada nos Estados Unidos, em
especial em sua análise sobre a Comissão Trilateral (GILL,
1990). Como Cox, Gill vê a reestruturação global da produção
em linhas pós-fordistas ocorrendo em um contexto de mudança
estrutural nos anos 1970. É neste período que haveria uma
transição de um bloco histórico internacional para um bloco
histórico liberal transnacional.
Há, assim, a partir do pós-II Guerra Mundial um rápido
processo de internacionalização da produção e,
concomitantemente, nota-se uma integração dos mercados de
capital e de câmbio em escala global. Neste contexto, tanto os
governos nacionais quanto os trabalhadores são cada vez mais
constrangidos pelos recursos de poder e pela crescente
mobilidade do capital transnacional (GILL; LAW, 1989). Neste
processo há a mobilização da emergente fração transnacional da
classe capitalista que passa a desenvolver uma consciência e uma
solidariedade que se expressam, por exemplo, em organizações
internacionais, instituições financeiras internacionais e conselhos
privados de relações internacionais. Assim, tal fração da classe
capitalista passa, cada vez mais, a ocupar o centro de um
emergente bloco histórico liberal transnacional, que conta com
uma liderança mais ampla que a hegemonia transatlântica do
período anterior e com uma menor incorporação dos setores
trabalhistas83. Gill contribui, assim, para a tese coxiana da
internacionalização do Estado e, através do conceito de
169
transnacionalização do Estado, busca, a partir de uma mudança
semântica, destacar a relevância dos atores transnacionais:
170
global de uma civilização de mercado baseada em uma ideologia
do progresso capitalista.
Neste mesmo caminho William I. Robinson desenvolve
uma teoria do capitalismo global (2004). Para ele, a globalização
representaria “uma mudança epocal” (ROBINSON, 2004, p. 4)
marcada pela emergência de uma classe capitalista transnacional
e de um Estado transnacional. Ora, dado que a acumulação do
poder acompanha a acumulação do capital, a partir das novas
configurações globais dos processos de acumulação capitalista
perceber-se-ia a emergência de um Estado transnacional a partir
de dentro do sistema interestatal. Uma vez que as circunstâncias
materiais que serviram de base para o surgimento dos Estados
nacionais estão sendo superadas pela globalização, torna-se
necessária uma releitura do Estado como uma relação social
específica inserida em estruturas sociais mais amplas que pode
tomar formas institucionais historicamente determinadas
(ROBINSON, 2001). Neste sentido, o Estado-nação não mais
poderia ser visto como contêiner dos processos de acumulação
do capital, da formação das classes ou do desenvolvimento, dado
que tais processos se encontram cada vez mais em um contexto
de globalização (ROBINSON, 2010). Tal Estado transnacional
é definido como
171
defendem e avançam a hegemonia
emergente de uma burguesia global e de seu
projeto de construir um novo bloco
histórico capitalista global (ROBINSON,
2001, p. 166).
172
Estados Unidos exerciam o domínio mundial e o fato de que os
Estados Unidos concentram em si a esmagadora maioria de
recursos bélicos e financeiros, o que lhes dá certa
preponderância para agir em nome das “elites globalizantes”. Ou
seja, há a necessidade de que exista uma “autoridade política”
capaz de garantir o ambiente necessário para que ocorra a
reprodução ampliada do capital em escala global (ROBINSON,
2004). As intervenções estadunidenses são vistas não como uma
reprodução da velha lógica imperialista, mas como um
engajamento na troca das elites governantes – trocam-se elites
local e regionalmente orientadas por elites mais favoráveis ao
projeto transnacional, como nas intervenções na América Latina
e no caso da invasão do Iraque (ROBINSON, 1996 e 2004).
Apesar dos méritos, parte das críticas anteriormente
levantadas ao argumento coxiano original se aplicam a
Robinson, pois este reproduz a ideia de “correia de transmissão”.
Ora, isso é problemático, pois alija do processo de constituição
da globalização as próprias lutas de classe. Ou seja, há uma
diferença fundamental entre perceber o processo de
internacionalização/transnacionalização do Estado a partir de
uma ênfase no processo de internalização dos interesses de
classe no Estado, destacando aspectos de desnacionalização do
Estado articulados aos processos de expansão transnacional das
relações sociais, e a partir da metáfora da “correia de
transmissão”.
Falta em Robinson uma percepção sobre a dialética da
territorialidade e da globalização. Sua tese de que a globalização,
por ser uma mudança epocal, leva ao surgimento de um Estado
transnacional ignora que o processo de estruturação das relações
sociais do capitalismo deve ser entendido em associação com o
“papel (cambiante) do Estado na reprodução social e espacial do
capital” (LACHER, 2006, p. 12). Há uma contradição inerente,
173
no processo de desenvolvimento das relações sociais capitalistas,
entre os espaços de acumulação e os espaços de governança.
Além disso, segundo Robinson, “as condições materiais
que deram origem ao Estado-nação [estariam] sendo superadas
contemporaneamente pela globalização”; assim, “esta forma
espacial particular de desenvolvimento desigual do capitalismo
[estaria] sendo superada pela globalização do capital e dos
mercados” (ROBINSON, 2004, p. 98-99). De acordo com
Morton, tal afirmação expressaria a principal fraqueza de sua tese
do Estado transnacional: a saber, a ideia de “homoeficiência do
capitalismo” – suposição de que a difusão e o impacto do
capitalismo ao redor do mundo se dariam de uma forma
uniforme, a despeito das “contradições do desenvolvimento
desigual expresso através das relações variadas do capital nos
distintos processos de formação estatal” (MORTON, 2007, p.
147). Contudo, conforme expresso pelo conceito de revolução
passiva, as contradições do desenvolvimento desigual são
expressão das lutas de classe que ocorrem através das diversas
escalas espaciais, do âmbito local ao global passando pelo estatal.
Isso fica claro quando as atenções são voltadas, por
exemplo, para as crises econômicas que se acumulam
principalmente a partir dos anos 1990 e para a resposta dada
pelos países desenvolvidos a estas. Neste contexto, duas
respostas merecem destaque, ambas diretamente associadas à
crise asiática (1997): primeiro, na resposta imediata dada pelos
países desenvolvidos ficou clara a ausência de consenso entre
tais países acerca do modelo a ser adotado pelos países do
sudeste asiático para sair da situação de crise. Neste caso, houve
uma clara oposição entre o modelo defendido pelos Estados
Unidos e o modelo defendido pelo Japão, o que demonstra a
impossibilidade de se pensar uma “homoeficiência do
capitalismo” bem como o papel fundamental dos Estados
174
enquanto atores nos processos de reconfiguração dos processos
de acumulação em escala mundial e, neste caso, regional.
Segundo, Além de apontar para um desgaste do modelo
neoliberal até então hegemônico, tal crise é fundamental uma vez
que, a partir dela, tem origem, no âmbito do G-7, aquilo que
posteriormente ficaria conhecido como G-20. Tal política pode
ser vista em um contexto de tentativa de restauração da
legitimidade que vinha sendo perdida desde o eclodir das crises,
ou seja, como um elemento dentro de um processo mais amplo
de tentativa de revolução passiva em escala global, expressando
assim as contradições do desenvolvimento desigual e como os
Estados são incorporados em tais processos também de uma
forma desigual (RAMOS, 2011).
Em suma, dizer que “os processos e as formações
globais atuais podem, e logram, desestabilizar a hierarquia de
escalas centradas no Estado nação” (SASSEN, 2007, p. 24) não
significa dizer que novas escalas do nível global sobrepujem
velhas escalas do nível nacional. Na verdade, o conceito de
transnacionalização do Estado é fundamental para que se evite
tanto a “cilada territorial” (AGNEW, 2005) quanto o
globalismo: ambas perspectivas padecem de uma ontologia rasa
já que negam o global ou o estatal como uma escala espacial
ainda significativa no processo de acumulação do capital. Isso
ajuda a iluminar o entendimento acerca dos processos de
neoliberalização, que se por um lado se apresentam a partir de
uma dimensão sistêmica (GILL, 2003), por outro tem se
expressado historicamente a partir da reconstituição
descontínua, desigual e contraditória das relações entre o global
e nacional. Em outras palavras, os processos de neoliberalização
têm, ao mesmo tempo, levado à expansão do neoliberalismo
pelo mundo e intensificado “o desenvolvimento desigual das
formas regulatórias através dos lugares, territórios e escalas”,
175
levando a uma “produção sistêmica de diferenciação
geoinstitucional” (BRENNER, et. al., 2010, p. 3).
Deve-se assim perceber como o processo de
acumulação do capital ocorre através de relações sociais multi-
escalares, nas quais o Estado não é o ponto dominante, mas um
ponto nodal. O espaço geográfico é “um conjunto indissociável
de sistemas de objetos e sistemas de ações”, que variam
conforme as épocas. Se é assim, então “os objetos que
constituem o espaço geográfico atual são intencionalmente
concebidos para o exercício de certas finalidades,
intencionalmente fabricados e intencionalmente localizados. A
ordem espacial resultante é, assim, intencional ” (SANTOS,
2004, p. 332. Grifo meu). Neste sentido, é possível ver como a
globalização, iniciada por influência dos Estados Unidos, gera
uma transformação da ontologia espacial da política mundial,
abrindo novas possibilidades escalares de articulação política e
de acumulação do capital sem, contudo, negar a relevância das
demais escalas (AGNEW, 2005).
CONCLUSÃO
176
Assim, com a emergência da globalização não há o fim
ou a retirada do Estado, mas uma reestruturação das diferentes
formas de Estado mediante a internalização, nos Estados, de
“novas configurações de forças sociais expressas por uma luta
de classes entre frações distintas (nacional e transnacional) do
capital e do trabalho” (MORTON, 2007, p. 133). Através de uma
perspectiva neogramsciana – mediante o conceito de
transnacionalização do Estado – é possível perceber como “o
global pode (...) se constituir dentro do nacional (...)” e como “o
Estado tem na verdade ganhado poder porque tem que executar
o trabalho de implementar as políticas necessárias para a
economia corporativa global” (SASSEN, 2008, p. 63). Ou seja,
tal conceito é fundamental no entendimento da economia
política global contemporânea pois contribui significativamente
para a compreensão dos processos de desnacionalização
(SASSEN, 2007).
Ao mesmo tempo em que apresenta uma profícua
articulação entre o nacional e o internacional, dando importantes
pistas para a reflexão sobre o global, Gramsci traz uma crítica ao
estadocentrismo, não vendo o Estado como algo absoluto em
um sentido fetichizado (GRAMSCI, 2002b, p. 279-280, Q8§130
e p. 332-333, Q15§13; 2002c, p. 349-351, Q1§150). Pelo
contrário, este é visto como uma forma de relações sociais nas
quais distinções metodológicas – e não orgânicas – podem ser
feitas entre as dimensões relacionadas aos fenômenos do
consenso e da coerção. Tal questão é pertinente porque abre
espaço para se pensar as mudanças contemporâneas do Estado,
ou seja, seu processo de desnacionalização, articuladas à
emergência do global, e os impactos de tais questões na
configuração da ordem e das dinâmicas de poder no âmbito
mundial – como pode ser percebido a partir da análise da crise
177
asiática (1997) e de seus desdobramentos como a criação do G-
20, por exemplo.
Em suma, é possível partir dos escritos de Gramsci para
lidar com problemas semelhantes aos que lhe chamaram a
atenção – como é o caso das contradições do capitalismo e os
mecanismos de construção da hegemonia associados a este
processo – mas tendo a clareza de, quando necessário, fazer o
movimento para além de Gramsci a fim de compreender os
elementos constitutivos da economia política global
contemporânea – como é o caso do conceito de
transnacionalização do Estado que, embora tenha uma clara
inspiração gramsciana, vai além de uma aplicação literal deste
autor na medida em que busca lidar com os processos de
reprodução ampliada do capital e seus desdobramentos no
âmbito político em um contexto de intensificação da
globalização. De todo modo, muito mais do que simplesmente
aplicar os conceitos gramscianos de uma maneira mecânica e
ahistórica, faz-se fundamental pensar o mundo de uma maneira
gramsciana – ou seja, “a tarefa imediata é mover da abstração
para demonstrar como conceitos podem ter valor explanatório
(...) através da confrontação da teoria com a prática”
(MORTON, 2007, p. 38).
178
Capítulo 7
POULANTZAS, ESTADO E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS84
Caio Bugiato85
INTRODUÇÃO
179
POULANTAS: ESTADO, CLASSES SOCIAIS E BLOCO NO
PODER
O Estado
180
a função do Estado consiste na manutenção da ordem política
no conflito entre as classes. Essas funções não podem ser
apreendidas se não estiverem inseridas no papel político global
do Estado: a manutenção da unidade de uma formação social no
interior da qual se dá a dominação de uma classe sobre a outra.
Dessa forma, as funções do Estado na economia e no plano
ideológico não são técnicas e/ou neutras, mas sim constituem
funções políticas na medida em que visam à manutenção da
unidade da formação social.
Toda formação social é constituída pela luta de classes,
luta esta que fundamentalmente opõe burguesia e proletariado.
Para Poulantzas, “classes sociais são conjunto de agentes sociais
determinados principalmente, mas não exclusivamente, por seu
lugar no processo de produção, isto é, na esfera econômica”
(POULANTZAS, 1978, p. 13-14). As classes sociais significam
de imediato conflito, dado que cada uma delas persegue seus
interesses específicos, contrários (mas nem sempre) aos
interesses de outras classes. Uma classe social se define pelo seu
conjunto nas práticas sociais, ou seja, pelo seu lugar no processo
de produção, pelas ações políticas que toma e pela sua posição
ideológica. Isso quer dizer que um conjunto de agentes sociais
se estabelece como classe social na medida em que sua unidade
atravessa as esferas econômica, política e ideológica.
Tais conceitos são necessários para podermos entender
o Estado em geral. O Estado é fator de coesão de uma formação
social atravessada pela luta de classes. O Estado é o fator da
ordem e regulador do equilíbrio global do sistema, cuja
finalidade é a manutenção da unidade de uma formação social,
seu funcionamento e sua reprodução. Nele estão inseridas as
contradições da formação social, que é o antagonismo entre as
classes sociais. O Estado, em última instância, impede que se
aniquilem as classes sociais, o que significa dizer que impede a
181
destruição de uma formação social (POULANTZAS, 1977).
Assim sendo, a definição de Estado burguês (ou capitalista) está
alicerçada em um tipo de Estado que organiza um modo
particular de dominação de classe e em um Estado que
corresponde às relações de produção capitalistas (SAES, 1985).
Abordemos rapidamente a relação entre Estado burguês e as
relações de produção capitalistas.
As relações de produção capitalistas possuem dois
aspectos: 1) a relação entre o produtor direto (trabalhador, não
proprietários dos meios de produção) e o proprietários dos
meios de produção (não-trabalhador), que extorque do primeiro
o sobretrabalho; e 2) a separação entre o produtor direto e os
meios de produção, isto é, o não-controle pelo produtor direto
de suas condições de trabalho, aspecto este exclusivo das
relações de produção capitalistas. 1) A extorsão do produtor
direto pelo proprietário dos meios de produção se dá na compra
e venda da força de trabalho; o proprietário dos meios de
produção compra o uso da força de trabalho por meio do
pagamento de salário ao produtor direto. Nessa relação o
trabalho assume a forma de uma mercadoria e a compra da força
de trabalho e o pagamento de salário se fazem sob a forma de
troca de equivalentes. Contudo, o salário pago ao produtor
direto é menor que o valor de troca produzido pela força de
trabalho, o que significa dizer que a produção da mais-valia é
essencialmente resultado de uma troca desigual. Uma troca
desigual entre o uso da força de trabalho e os meios materiais de
sobrevivência necessários à reprodução da força de trabalho
(salário) – que se realiza na medida em que a força de trabalho
circula no mercado, como se fosse uma mercadoria. Assim, a
compra e venda da força de trabalho como troca de equivalentes
é uma ilusão, ilusão renovada constantemente pelo encontro no
mercado que permite o uso contínuo pelo proprietário dos
182
meios de produção da força de trabalho do produtor direto, em
troca de meios materiais de sobrevivência necessários à
reprodução. 2) As condições materiais de separação entre
produtor direto e os meios de produção são as da indústria
moderna, cujo processo de trabalho se encontra altamente
socializado. Tal socialização transforma produtor direto em
trabalhador simultaneamente dependente e independente.
Dependente porque o processo de produção decomposto em
diversas tarefas encadeadas transforma o trabalho de cada
produtor direto dependente do trabalho dos demais.
Independente porque os trabalhos são executados sem que os
produtores se organizem de forma prévia para a cooperação,
desempenhando trabalhos privados.
O Estado burguês, núcleo da estrutura jurídico-política
do modo de produção capitalista, conceitualmente é um sistema
articulado de quatro elementos: o direito burguês (ou capitalista),
o burocratismo, o efeito isolamento e o efeito unidade de
representação. O direito burguês, valores jurídicos que regulam
e enquadram as práticas econômicas e relações sociais por ele
condicionadas, consiste em atribuir a todos os agentes da
produção, independente do lugar que ocupam no processo de
produção, a condição de sujeitos individuais “livres” e “iguais”,
capazes de praticar atos de vontade legitimamente. O
burocratismo (valores burocráticos) determina que a) todos os
agente de produção, independente do lugar que ocupam no
processo produtivo, tenham formalmente acesso às práticas que
regulam e enquadram as práticas econômicas e relações sociais
por ele condicionadas (acesso universal a burocracia de Estado)
e que b) os agentes de tais práticas sejam hierarquizados, de
modo que esse escalonamento não apareça como subordinação,
mas formalmente como gradação de competências individuais
183
exigidas pelas diferentes tarefas dessa atividade social (SAES,
1998).
Os valores burocráticos capitalistas constituem a
expressão e o desdobramento, num plano mais restrito, dos
valores jurídicos capitalistas; um é condição de existência do
outro, formando uma unidade. Se por um lado os agentes de
produção são definidos pelo direito como indivíduos “livres” e
“iguais”, todos eles têm o direito de pleitear o desempenho das
práticas do burocratismo. Por outro, a hierarquização dos
agentes encarregados de exercer as práticas do burocratismo
(não proibição do acesso a essas tarefas a membros da classe
explorada) se formaliza mediante o critério de competência
individual para o desempenho das tarefas. Esses elementos
permitem conceitualmente a unidade da estrutura político-
jurídica capitalistas (SAES, 1998).
Segundo Poulantzas (1977) essa estrutura político-
jurídica produz efeitos político-ideológicos nos agentes da
produção: efeito isolamento e o efeito representação da unidade.
Os valores jurídicos capitalistas se conjugam com a estrutura
econômica (a qual atomiza o coletivo dos produtores diretos)
produzindo o efeito isolamento ou individualização. Este
consiste na reprodução regular das relações de produção
capitalista por a) suscitar a prática econômica de buscar por
vontade própria (e não por coerção extra econômica) a venda
individualizada da força de trabalho ao um proprietário
individual dos meios de produção e por b) impedir a emergência
de uma prática política mediante a qual os trabalhadores se
posicionassem de forma coletiva diante do proprietário dos
meios de produção. Os valores burocráticos, ao converterem os
agentes encarregados de regular enquadrar as práticas
econômicas e relações sociais por eles condicionados numa
burocracia “universalista” e “competente”, permitem que tal
184
grupo unifique ideologicamente todos os agentes, já
individualizados pelo efeito isolamento, por meio da
constituição de uma comunidade simbólica: o povo-nação,
composto por todos os agentes da produção inseridos num
determinado território. Este processo, articulado ao efeito
isolamento, é qualificado como o efeito de representação da
unidade. O qual contribui para a reprodução das relações de
produção capitalistas na medida em que frustra a constituição de
grupos sociais antagônicos (classes sociais), ao reuni-los no
povo-nação, representados num Estado de suposto acesso
universal, o Estado-nação.
185
dos níveis dos quais ela constitui o efeito (POULANTZAS,
1977, p. 61).
Como dissemos anteriormente, uma classe social se
define pelo seu conjunto nas práticas sociais, ou seja, pelo seu
lugar no processo de produção, pelas ações políticas que toma e
pela sua posição ideológica; isso quer dizer que um conjunto de
agentes sociais se estabelece como classe social na medida em
que sua unidade atravessa as esferas econômica, política e
ideológica. Portanto, é certo que as classes se definem pelo lugar
ocupado na divisão social do trabalho e que o processo de
produção significa divisão em classes e consequentemente
dominação e luta de classes. Destarte, a posição política e
ideológica dos grupos sociais nessa luta é indispensável para a
caracterização e identificação concreta das classes sociais.
Desse modo, classe e fração de classe social são
conceituados como grupos cuja situação é definida pela inserção
específica no processo social de produção, inserção essa que gera
interesses e condicionantes que constrangem a ação dos agentes
sociais, e que, dependendo das condições históricas concretas,
pode propiciar a reunião desses agentes em coletivos que atuam
como forças sociais distintas ou autônomas num determinado
processo político nacional. Isso significa que uma classe social
não é um dado exclusivamente econômico, não se reduz ao lugar
dos agentes no processo de trabalho, mas sim é, também, uma
construção social, fundada nas relações concretas estabelecidas
entre os agentes sociais. De forma objetiva, ela se define a partir
da posição dos agentes na estrutura econômica, porém só se
constitui enquanto classe nos conflitos e no processo de
mobilização política, que passa pela capacidade de agregar
interesses e construir solidariedades. Em outras palavras, se a
estrutura produtiva oferece os contornos objetivos possíveis
para sua delimitação, circunscrevendo um campo de lutas e um
186
conjunto provável de interesses comuns, sua concretização
depende das práticas efetivas, da mediação de partidos,
sindicatos e movimentos sociais, da luta político-ideológica que
divide ou unifica, dissolve ou funde, isola ou promove a aliança
das classes e frações de classe em luta. Se se considera apenas o
nível econômico, objetivo, a classe social só existe enquanto
virtualidade (o polêmico conceito de “classe em si”). O processo
de constituição das classes numa realidade efetiva não é um
percurso linear e progressivo; é marcado por avanços e
retrocessos, pela articulação entre condições objetivas e
subjetivas. Tal movimento se inscreve num contexto histórico
determinado, mas em constante mutação. (BOITO et. al., 2008).
A burguesia é uma classe dotada de complexa
heterogeneidade. Suas clivagens econômicas se dão pelo o ciclo
de reprodução do capital (capital comercial, industrial, bancário,
etc.), pela concentração e centralização do capital (grande e
médio e monopolista e não monopolista), pelas relações com o
imperialismo (burguesia nacional, interna e compradora), dentre
outros aspectos, bem como as dimensões políticas e ideológicas
que podem gerar a formação de determinada fração de classe.
Essas clivagens se podem combinar de maneiras variadas e
dinâmicas e como base da aglutinação ou divisão política das
frações. Se tais clivagens propiciam ou não a formação de
frações burguesas depende das circunstâncias e da reação desses
setores da burguesia principalmente frente à política econômica
do Estado.
Neste fracionamento dinâmico da classe dominante,
devemos levar em consideração dois aspectos importantes. O
primeiro já foi apresentado e se refere à existência de vários
sistemas de fracionamento: função do capital, concentração e
centralização do capital e origem geográfica do capital. O
segundo se refere às aglutinações em cada sistema de frações,
187
que se sucedem no tempo e podem apresentar-se cruzadas numa
determinada conjuntura. Esse segundo aspecto, principalmente,
evidencia a visão não estática dos fracionamentos, uma vez que
a existência destes passa por sua constituição, apresentação ou
não como força social, cruzamento e desaparição ao longo do
tempo e do espaço.
O fracionamento dinâmico da classe dominante é
resultado principalmente do impacto da política econômica do
Estado, tornando uma fração politicamente preponderante
sobre as demais no interior da classe numa determinada
conjuntura (SAES, 2001). A intervenção estatal concretiza os
conflitos latentes entre as frações na esfera econômica. Dessa
forma, as frações se aglutinam ou se dividem para defender ou
rejeitar certas medidas. Portanto, sobretudo a política econômica
do Estado, em suas várias dimensões – monetária, cambial,
fiscal, industrial – e sua continuidade ou não, é o fator de
aglutinação ou separação de um sistema de fracionamento ou
sistemas combinados.
Toda formação social capitalista mantém uma clivagem
entre capitais de origem estrangeira e nacional. Sem entrar na
temática do fim do Estado-nação e na desaparição das
economias nacionais, consideramos que, mesmo com a chamada
globalização, as formações sociais e seus respectivos Estados
nacionais configuram um sistema internacional de unidades
soberanas – que podem impor obstáculos a mobilidade do
capital –, cuja cadeia de inter-relações opõe interesses das
burguesias nacionais e estrangeiras. Contudo, Segundo
Poulantzas (1978), a oposição burguesia nacional versus burguesia
estrangeira é insuficiente para caracterizar tal inter-relação. O
autor analisa a burguesia do espaço nacional, na sua relação com
o capital estrangeiro, em três frações: compradora, interna e
nacional.
188
A burguesia compradora é a fração cujos interesses estão
diretamente subordinados aos do capital estrangeiro e que serve
de intermediária direta para a implantação e reprodução do
capital estrangeiro no interior duma formação social. As
ingerências do capital externo “só podem, em geral, exercer um
papel decisivo nos diversos países dependentes [...] articulando-
se, nestes países, às relações de força internas”
(POULANTZAS, 1976, p 20). Esta fração não tem base de
acumulação própria e geralmente tem sua atividade ligada ao
latifúndio e à especulação, concentrada em setores financeiros,
bancários e comerciais, mas igualmente podendo atuar nos
ramos industriais, naqueles inteiramente subordinados e
dependentes ao capital estrangeiro. Do ponto de vista político-
ideológico, é suporte e agente do capital imperialista.
A burguesia nacional é a fração autóctone da burguesia
que, com base de acumulação própria no interior da formação.
Inclina-se a certas contradições com o capital imperialista com
autonomia política e ideológica, apresentando-se como uma
unidade própria. Esta fração é suscetível, em determinadas
conjunturas, à luta anti-imperialista e de libertação nacional e a
adotar posições que incluem alianças com as massas populares.
É mais provável que o setor do capital produtivo, preocupado
com a distribuição de renda interna, comporte-se como
burguesia nacional.
Por sua vez a fração intermediária,
189
burguesia compradora. Em seguida porque,
concentrada principalmente no setor
industrial, se interessa pelo desenvolvimento
industrial que esteja menos polarizado para
o seccionamento do país causado pelo
capital estrangeiro e se interessa pela
intervenção estatal que lhe assegura alguns
domínios dentro do país e que a tornaria
também mais competitiva diante de capital
estrangeiro. Deseja a ampliação e o
desenvolvimento do mercado interno
através de uma pequena elevação do poder
de compra e de consumo das massas, o que
lhe ofereceria mais saídas; procura, enfim,
ajuda do Estado, que lhe permitiria
desenvolver a exportação (POULANTZAS,
1976, p. 36-37).
190
Cabe aqui, então, uma indagação: se o Estado tende a isolar as
pessoas como indivíduos e reunificá-los como povo-nação,
como consegue a burguesia (que também sofrem os efeitos de
isolamento e de unidade) apoderar-se do Estado para realizar
seus interesses e se tornar a classe dominante? Segundo
Poulantzas (1977), a função do Estado como mantenedor da
unidade de uma formação social capitalista é o objetivo de fundo
da burguesia: manutenção das relações sociais existentes e, para
concretizá-lo, a conservação do Estado é imprescindível. Essa
prática da burguesia de conservação das relações sociais é o que
dá unidade à classe e aliada à sua operação ideológica, que
“consiste no fato de tentar impor, ao conjunto da sociedade, um
‘modo de vida’ através do qual o Estado será vivido como
representante do ‘interesse geral’ da sociedade, como detentor
das chaves do universal, em face de ‘indivíduos privados’”
(POULANTZAS, 1977, p. 209), e a constitui como força social.
O Estado burguês “representa não diretamente os interesses
econômicos das classes dominantes, mas os seus interesses
políticos: ele é o centro de poder político das classes dominantes
na medida em que é o fator de organização da sua luta política”
(POULANTZAS, 1977, p. 185). Garantir a dominação de classe
faz parte da função do Estado, pois o Estado como instituição
não possui poder próprio. Vale salientar que poder, para
Poulantzas é a capacidade de uma classe social ou fração realizar
seus interesses específicos.
A complexa relação entre a classe dominante e suas
frações e o Estado burguês são elucidadas por meio do conceito
de bloco no poder. O bloco no poder é a unidade contraditória
das frações da classe burguesa em torno de objetivos gerais –
referentes à manutenção das relações de produção capitalistas –
, unidade essa que não elimina os objetivos particulares de cada
fração. O bloco no poder não é um acordo político explícito,
191
mas uma comunidade de interesses dos proprietários dos meios
sociais de produção. Sua unidade é garantida pelo interesse
comum às frações de governar direta ou indiretamente o Estado,
fazendo com que este atenda seus interesses gerais (a
manutenção da propriedade privada dos meios de produção e a
reprodução da força de trabalho como mercadoria) e específicos
de cada fração. O Estado é, portanto, fator de unidade política
do bloco no poder (POULANTZAS, 1977).
Na articulação do bloco no poder há a tendência à
formação de um núcleo hegemônico, composto por uma fração,
a fração hegemônica. A hegemonia é conquistada por meio da
capacidade de uma fração fazer prevalecer os seus interesses
particulares no interior do bloco no poder, ou seja, é a
capacidade da fração de obter a prioridade dos benefícios,
principalmente, da política econômica do Estado (isto é, outras
políticas estatais, com a social e a externa também são
relevantes). A política econômica do Estado provoca a
constituição das frações e ao mesmo tempo indica a posição
delas no interior do bloco. Não ocorre no bloco no poder uma
repartição do poder do Estado; a relação entre o Estado burguês
e as frações se dá no sentido da sua unidade política sob a égide
de uma fração hegemônica. Como apresentado anteriormente, é
a classe ou fração que detém o poder, o Estado não possui poder
próprio.
O bloco no poder é igualmente um instrumento
analítico para localizar e decifrar a significação real das
representações de classe ou frações na cena política, para que
então possamos identificar as relações desta com a luta de
classes. A tradição marxista distingue uma realidade aparente e
superficial de uma realidade essencial e profunda, cuja relação é
o ocultamento da primeira pela segunda. Desse modo, enquanto
o bloco no poder se refere ao campo da luta de classes, da prática
192
política das classes e frações, isto é, da ação concreta das forças
sociais (realidade essencial), a cena política é o lugar da
representação de tais forças (realidade aparente) (BOITO JR.,
2007a). De acordo com Boito Jr.,
193
eles mesmos se atribuem, correndo o risco de permanecer na
superfície enganosa do fenômeno.
194
O problema aqui reside no antagonismo objetivo entre os
interesses econômicos da burguesia e do proletariado, como
parece proceder Poulantzas. Saes (1998) argumenta que nas
formações sociais capitalistas os interesses econômicos das
classes não se reduzem a esse antagonismo simplório, uma vez
que o aparelho estatal burguês age recorrentemente no sentido
de reconstruir os interesses econômicos das classes, com o
objetivo de conciliá-los. É possível que, na prática política, haja
uma distribuição desigual de ganhos que, embora com
desproporcionalidades, satisfaz as partes, dado a materialização
dos seus interesses vai além do antagonismo imediato do
processo de produção.
Ainda a respeito da autonomia relativa, Poulantzas
(1977), como vimos, alega que o Estado burguês favorece
mediante sua ação político-administrativa os interesses
econômicos de uma fração da classe dominante em detrimento
das demais, a fração hegemônica. Logo, se o aparelho estatal
burguês age recorrentemente no sentido de reconstruir os
interesses econômicos das classes, com o objetivo de conciliá-
los, o Estado tem a “capacidade de reorganizar os interesses
econômicos das classes dominadas para poder conciliá-los com
os interesses econômicos da fração hegemônica” (SAES, 1998).
A existência de uma autonomia relativa do Estado
capitalista, implica na existência de uma autonomia relativa da
burocracia em relação às classes e frações de classes, sejam as do
bloco no poder, sejam as de fora do bloco, seja a fração
hegemônica. Primeiramente, é a burocracia estatal que cumpre
as funções do efeito isolamento, efeito representação da unidade
e organização da hegemonia de uma fração de classe no bloco
no poder. A burocracia, para Poulantzas (1978), é um conjunto
social (categoria) cujo traço distintivo repousa na sua relação
específica com outras estruturas além das econômicas; ela resulta
195
do efeito do Estado sobre os agentes que neste atuam. Como
categoria social, não sendo uma classe ou fração de classe, não
tem poder próprio. O funcionamento da burocracia
corresponde, em última análise, aos interesses gerais do bloco no
poder. É isso que confere à burocracia, como categoria social,
unidade e coerência na defesa de interesses “próprios”, os quais
significam a defesa de sua própria existência enquanto tal,
corroborando a manutenção e o funcionamento das relações
sociais capitalistas.
Complementar a essa ideia de Poulantzas, é possível
afirmar que a burocracia reúne “níveis de poder” distintos. Os
aparelhos que concentram a capacidade de decidir são os centros
de poder do Estado. Na realidade, tais centros são instituições
(ministérios, bancos centrais, etc.) onde decisões fundamentais
são efetivamente tomadas, praticamente sem nenhuma
subordinação hierárquica a outra instância do aparelho estatal.
Consequentemente, as principais demandas da classe dominante
ou frações da classe dominante são direcionadas a essas
instituições do Estado (PINTO, 2012 e CODATO, 1997).
Podemos, portanto, definir no mínimo dois tipos de
autonomia relativa do Estado capitalista (em que a burocracia
cumpre papel fundamental): 1) autonomia típica, em que o
Estado serve à fração hegemônica e ao bloco no poder como um
todo, mas não a representa diretamente, ou seja, a burguesia não
ocupa os postos-chave no Estado de decisão sobre o processo
político, porém tal processo atende prioritariamente os
interesses da fração hegemônica; e 2) a autonomia do equilíbrio
ou crise de hegemonia, em que a luta entre as classes e as frações
impede a formação duma fração hegemônica e a burocracia
estatal emerge como força social autônoma, mas não deixa de
servir ao bloco no poder como um todo. A autonomia do Estado
capitalista, seja típica, seja de equilíbrio, é sempre relativa, pois
196
em última instância atende ao interesse geral do bloco no poder.
Deixa de sê-la em casos de grave crise de poder ou de revolução.
197
produção. Isso quer dizer que países diversos possuem em seu
território diferentes “graus” de desenvolvimento do modo de
produção capitalista, resultando numa delimitação da corrente
entre metrópoles imperialistas – centros autóctones de
acumulação de capital/“capitalismo avançado” – e formações
sociais dominadas e dependentes (FSDD) – processo de
acumulação dependente do exterior/“capitalismo atrasado”.
O imperialismo, de acordo com o autor
(POULANTZAS, 1978), pode ser distinguido em fases.
Primeira, a transição do capitalismo competitivo para
capitalismo monopolista, que vai do fim do século XIX até o
período entre guerras, em que nas metrópoles se formam os
monopólios e ocorre um equilíbrio entre a forma de exportação
de mercadorias e a forma de exportação de capital. Segundo, a
fase de consolidação do estágio imperialista (após a crise de
1929), em que nas metrópoles o capitalismo monopolista
domina o capitalismo competitivo. Nestas duas fases, as FSDD
passaram das simples condições de tipo colonial e de tipo
capitalista-comercial (exportação de produtos agrícolas) para
condições em que ocorre a dominância do MPC, em “graus”
desiguais e obviamente retrasados em relação às metrópoles. A
dominância do MPC não extinguiu os outros modos e formas
de produção, mas progressivamente eliminou a antiga dicotomia
metrópole/cidade/indústria X formações
dominadas/campo/agricultura, dando origem ao chamado
subdesenvolvimento ou industrialização periférica.
Não se trata mais de formações sociais de relações
relativamente externas. O processo de dominação e dependência
imperialista aparece agora em diante como a reprodução, no
próprio seio das formações sociais dominadas e sob formas
específicas para cada uma delas, da relação de dominação que a
liga às metrópoles imperialistas (POULANTZAS, 1978, p. 46).
198
Durante estas duas fases, no que diz respeito à relação
das metrópoles imperialistas entre si, as contradições
interimperialistas provocam a predominância alternada de uma
metrópole sobre a outra (Grã-Bretanha, Estados Unidos,
Alemanha), predominância esta que é fundamentada na
dominação e na exploração que cada metrópole impõe ao seu
“império” de FSDD e no ritmo de desenvolvimento capitalista
no interior da própria metrópole. Terceira, após o fim da
Segunda Guerra Mundial, é o que Poulantzas chama de fase
atual, que conserva as características da fase de consolidação,
enfatizando o domínio do MPC nas FSDD não simplesmente
do exterior, mas sim pela dominância no interior destas, onde o
modo de produção das metrópoles se reproduz de forma
específica. Reprodução que provoca nessas formações o
alojamento de capitais em formas de indústria leve e de
tecnologia inferior, a exploração da força de trabalho através
principalmente de baixos salários – mantendo sua baixa
qualificação –, reservando o trabalho qualificado para os países
centrais, a existência de setores isolados com altas concentrações
de capital e produtividade do trabalho e elevado grau de
expatriação dos lucros (POULANTZAS, 1976). Processo este
que o autor denomina de reprodução interiorizada e induzida,
que afeta as relações econômicas, políticas (inclusive os
aparelhos de Estado) e ideológicas.
Esse desenvolvimento desigual não constitui para
Poulantzas um resquício de impureza no MPC devido a sua
combinação com outros modos de produção: ele é a forma
constitutiva da reprodução do capitalismo em escala mundial no
estágio imperialista, nas suas relações com outras formações
sociais que contêm outros modos de produção. Essa
internacionalização do MPC, ou sua fase atual para o autor,
tendendo a abarcar todos os rincões do mundo não é uma
199
integração das formações sociais, mas a reprodução interiorizada
e induzida do MPC das metrópoles nas FSDD.
A fase atual (Poulantzas) da divisão internacional do
trabalho – metrópoles imperialistas X FSDD – introduz outra, e
nova, linha de demarcação. Uma demarcação no campo
interimperialista: de um lado a metrópole hegemônica, os
Estados Unidos, e de outro as metrópoles imperialistas da
Europa. A relação entre ambos é marcada pelo predomínio do
capital monopolista estadunidense e sua reprodução
interiorizada e induzida no interior das outras metrópoles,
reproduzindo igualmente condições políticas e ideológicas do
imperialismo estadunidense. Essa relação de dependência,
contudo, não se identifica com aquela entre metrópoles e FSDD,
pois as metrópoles continuam a constituir centros autóctones de
acumulação de capital.
Poulantzas (1978) identifica elementos dessa nova
demarcação sob a hegemonia dos capitais estadunidenses,
modificada pela tendência decrescente da taxa de lucro. 1) O
crescimento do volume global de investimentos dos EUA no
pós-guerra, criando um hiato entre este país e as outras
metrópoles. 2) O destino privilegiado dos capitais
estadunidenses não são mais as formações periféricas, mas as
metrópoles europeias. 3) Estes investimentos são
majoritariamente diretos (em capital fixo e/ou que tendem à
tomada de controle de empresas) em detrimento do
investimento em carteira (compra de operações financeiras/em
bolsa de valores de curto prazo) e, em comparação com as
formações periféricas, o reinvestimento dos lucros na região é
significativamente maior. 4) A maior parte dos investimentos
estadunidenses na Europa é na indústria de transformação
(capital produtivo) em detrimento da indústria extrativa
(matérias-primas) e dos setores de serviço e comércio, enquanto
200
que os investimentos diretos europeus nos EUA são em sua
maioria no setor de serviços. 5) Os investimentos estadunidenses
na Europa provem de ramos de alta concentração e centralização
de capital (monopólio) e se dirigem para ramos de forte
concentração – o capital produtivo estadunidense impõe a
concentração do capital produtivo europeu; os ramos investidos
são aqueles que apresentam tecnologia mais avançada e rápida
expansão, isto é, apresentam alta produtividade e exploração
intensiva do trabalho pela alta composição orgânica de capital.
6) A exportação de capitais estadunidenses para a Europa
compreende também a concentração do capital-dinheiro,
grandes bancos e holdings financeiras, o que não significa que a
acumulação de capital e a taxa de lucro destes seja determinada
pela valorização D – D’, mas sim que acompanham os
investimentos no ciclo do capital produtivo. Todos esses
elementos convergem para um objetivo: alta taxa de exploração
com a finalidade de contrabalancear a tendência decrescente da
taxa de lucro. É aí que reside o motivo da reprodução induzida
e interiorizada do capital monopolista em formações sociais
exteriores.
Em suma, atual fase do imperialismo para Poulantzas é
composta pelo processo de internacionalização do capital
descrito acima (em que os EUA não são os únicos exportadores
de capital) e pela socialização internacional dos processos de
trabalho, que em geral significa, nas palavras do autor, “a
constituição sob propriedade única, de efetivas unidades de
produção complexas a processos de trabalho estreitamente
articulados e integrados [...] cujos diversos estabelecimentos se
distribuem em vários países”. A síntese empírica desses
elementos são as empresas multinacionais industriais, que, além
de dominar a produção, dominam as trocas internacionais, uma
vez que o comércio entre unidades (localizadas especialmente
201
nas metrópoles) respondem por uma alta porcentagem do
comércio mundial.
Antes de entrar nas relações políticas do imperialismo é
necessário reafirmar, então, que a divisão internacional do
trabalho da cadeia imperialista possui duas dinâmicas
(imbricadas): de um lado as relações imperialistas metrópoles-
FSDD e de outro as relações metrópole-metrópoles. Cada uma
apresenta uma forma distinta de exploração: enquanto a
exploração das massas populares nas FSDD pela classe
dominante da metrópole se dá prioritariamente de forma indireta
– por intermédio da classe dominante local – e secundariamente
de forma direta – capital estrangeiro diretamente investido no
seu interior –, na relação metrópole-metrópoles a forma direta é
a principal e a indireta secundária (POULANTZAS, 1978).
Portanto, podemos dizer que para Poulantzas existe um sistema
internacional de Estados burgueses divididos em metrópoles e
FSDD, em que o imperialismo é a relação (o capital é antes de
tudo uma relação social, como demonstra Marx n’ O Capital)
que se dá muitas vezes (mas nem sempre) entre eles, mediante a
reprodução interiorizada e induzida do MPC. O imperialismo
“nada tem de amigável”, para usar as palavras do autor, ele é uma
relação de força em que o Estado cumpre papel decisivo.
Rejeitando as teses sobre o processo de supressão que
os Estados nacionais estariam sofrendo, Poulantzas (1978)
afirma que são os Estados, centrais e periféricos, que se
encarregam dos interesses do capital (por meio de subsídios
públicos, dispensas fiscais, política industrial favorável a
determinados interesses, etc.) seja na relação metrópole-
metrópoles, seja na relação metrópoles-FSDD. O Estado
nacional intervém na luta entre as classes e frações de classe,
organizando a hegemonia e a hierarquia no bloco no poder.
Destarte, o bloco no poder não pode ser apreendido num plano
202
puramente nacional, mas sim em um sistema internacional
complexo de Estados burgueses em que cada Estado se
encarrega dos interesses dos capitais “nacionais” e estrangeiros
numa formação social, organizando a correlação de forças
intraburguesa e constituindo uma determinada configuração no
bloco no poder. Nesta configuração a fração hegemônica tem
seus interesses prioritariamente atendidos pelas políticas estatais
em detrimento de outras frações. O Estado é
concomitantemente arena e ator, e não um instrumento
manipulável à vontade da classe dominante: é uma arena de luta
entre as frações da burguesia, na qual uma (ou um conjunto)
delas assume a condição de hegemônica; dessa forma, em suas
relações exteriores, o Estado é um ator na política internacional
e na reprodução universal do capital que representa
prioritariamente os interesses da fração hegemônica do seu
bloco no poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
203
internacionalmente o interesse geral, mas sim os interesses do
bloco no poder. Por isso a mudança no bloco no poder pode
gerar mudanças na condução da política externa, assim como as
disputas entre as frações da classe dominante podem ocasionar
disputas na formulação da política externa.
Além disso, a teoria do Estado de Poulantzas deixa claro
que o estudo da formulação e execução de qualquer política
externa não prescinde do estudo do interno, especialmente das
classes, frações de classe e partidos presentes na cena política
interna: “[...] Não existe, em realidade, na fase atual do
imperialismo, de um lado os fatores externos agindo puramente
do “exterior”, e de outro os fatores “internos” “isolados” no seu
espaço próprio [...]” (POULANTZAS, 1976, p. 19).
204
Capítulo 8
LUTA HEGEMÔNICA E POPULISMO:
SOLUÇÕES AGONÍSTICAS PARA O
DESAFÍO IDENTITÁRIO86
Mayra Goulart87
INTRODUÇÃO
205
O segundo desdobramento, por sua vez, almeja
enquadrar esta ressignificação neogramsciana do conceito de
Luta Hegemônica, como uma síntese de formulações teóricas
antipodais que visam lidar com a questão da vontade geral e, por
conseguinte, do surgimento das identidades políticas, superando
a lacuna gerada pela implosão dos alicerces metafísicos que
sustentavam a crença no proletariado enquanto sujeito universal.
O terceiro desdobramento, por fim, diz respeito a essa
nova forma de conceber o processo de formação identitária no
qual os sujeitos são apresentados sem qualquer alusão a
conteúdos, identidades ou essências transcendentes, sendo
compreendidos, portanto, como produto de um contexto
histórico e linguístico particular, efêmero e instável por
definição. Nessa dinâmica de produção de identidades
imanentes, o populismo surge como operador particularmente
eficiente para o questionamento do status quo, o que permitiria
encará-lo como uma ferramenta de contra-hegemonia – entendida
como esforço de ruptura com as estruturas políticas
comprometidas com um sistema econômico global, que se
define pela opressão das classes populares. Diante disto, meu
objetivo será atentar para os riscos de tal associação, uma vez
que as conexões possíveis (porém não necessárias) entre
populismo e cesarismo podem drenar o potencial emancipatório
dos movimentos engajados na luta hegemônica.
206
em caminhar pelos labirínticos caminhos da história política
deste subcontinente, resulta da sensibilidade do conceito às
mudanças de humores na região, mas, também, da reincidência
de alguns de seus temas como o personalismo, o multiclassismo
e a debilidade das instituições liberais. Em particular, tal
reincidência está associada a de uma estrutura na qual a
sociedade civil tem pouco espaço para o exercício da autonomia,
haja vista a excessiva concentração de recursos econômicos e,
por conseguinte, poder político, nas mãos de lideranças locais,
carentes de projetos nacionais ulteriores à manutenção de seu
poderio.
Diante disto, elites políticas que almejem a execução de
uma agenda programática em âmbito nacional dependem da
capacidade de arregimentação destes dois elementos, cujos
interesses na maioria das vezes são antagônicos. Ao longo da
história, todavia, a combinação entre ambos muitas vezes se deu
em termos inversamente proporcionais, isto é, quanto mais
apoio das elites, menor a necessidade de disputar o apoio do
povo, e vice-versa. Desta maneira, quando enveredam pela
segunda opção, buscando sustentação política na popularidade
entre os cidadãos comuns, em detrimento das elites tradicionais,
os atores políticos são tipificados como populistas.
Não obstante, se observarmos uma das origens
axiológicas do conceito neste subcontinente, percebe-se que o
termo foi utilizado como uma espécie de negativo sobre o qual
marxistas e liberais88 revelavam suas impressões sobre os
governos nacionalistas. Estimulados pelas oportunidades criadas
207
em tempos de guerra, este tipo de nacional-desenvolvimentismo
se dissemina na América Latina, assumindo várias facetas, a
exemplo do argentino Juan Domingo Perón (1946-1955 e 1973-
1974); do chileno Carlos Ibáñez del Campo (1927-1931 e 1952-
1958); do brasileiro Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) do
mexicano Lázaro Cárdenas (1934-1940); do peruano, Fernando
Bealúnde Terry (1963-1968 e 1980-1985); e do equatoriano José
María Velasco Ibarra (1934-1935, 1944-1947, 1952-1956, 1960-
1961 e 1968-1972)89.
Neste negativo, o retrato deste período passa a ser
revelado pelas suas ausências. No caso dos marxistas, é
ressaltado o caráter multiclassista desses movimentos,
denunciado como falta de consciência de classe. No caso dos
liberais, a denúncia gira em torno da ausência de uma sociedade
civil autônoma e empreendedora.
Até o início do século XXI, o populismo disseminou-se no
vocabulário político latino-americano como uma categoria
negativa utilizada para denunciar governos que manipulavam os
trabalhadores e cooptavam os atores econômicos, bloqueando a
compreensão de seus interesses e a realização de seus verdadeiros
propósitos. Em última instância, marxistas e liberais uniam-se
em um entendimento do Estado e de seus operadores como
obstáculos à livre ação daqueles que seriam os responsáveis pelo
progresso.
As interpretações que de algum modo atribuem ou
observam no Estado o papel de operador da transição entre esta
disposição tradicional e as sociedades industriais modernas, não
se apresentam como um meio termo, ou como uma terceira via
entre as duas correntes acima apresentadas, mas, sim, como uma
208
perspectiva essencialmente distinta. É o caso da leitura
reformista, apresentada por autores como Gino Germani,
Octavio Ianni e Torcuato Di Tella (1973) que observam nas
aliança de classes, articuladas pelos discursos populistas, uma
estratégia intermediária entre o fascismo e a revolução burguesa.
Com isso, estes líderes teriam sido capazes de ultrapassar
os limites determinados pela mentalidade latifundiária e
agroexportadora das oligarquias tradicionais, logrando, em
maior ou menor escala, o fortalecimento do mercado interno e
a promoção de uma política comercial e cambial protecionista,
voltada ao estímulo da industrialização através da substituição de
importações (SACHS, 1989; DORBUSSCH e EDWARDS,
1991)
Sem embargo, ainda que se aproximem em termos
econômicos e que se distanciem das leituras marxistas e liberais,
esta sociologia da modernização assume diferentes
posicionamentos face aos desdobramentos políticos dos regimes
nacionalistas em questão, que são identificados ora como
decididamente autoritários, como na interpretação de Germani,
ora como considerava Di Tella, enquanto a democracia possível
naquelas circunstâncias (MITRE, 2016, p. 10-17).
Avançando no tempo, observa-se que, nas décadas de
1980 e 1990, a controvérsia acerca dos desdobramentos políticos
do populismo perde espaço para um conjunto de considerações
que dissertam sobre seus efeitos econômicos, caracterizados
como herança maldita legada pelos governos nacional-
desenvolvimentistas (DORNBUSH e EDWARDS, 1991;
KAUFMAN e STALLINGS, 1991; FAUCHER,
DUCATENZEILER e REA, 1993). Expressão da hegemonia
do ideário neoliberal, entendido como Consenso de
Washington, essas abordagens criticam exatamente aquilo que
foi considerado como principal legado do populismo: as
209
estratégias modernizadoras nacional desenvolvimentistas. Sob
tal perspectiva, estas opções teriam resultado apenas em uma
industrialização precária, no endividamento do Estado e na
criação de uma burguesia parasitária.
O populismo econômico passa a ser, então, uma
expressão utilizada para tipificar políticas monetárias e fiscais de
natureza expansiva, sustentadas pela disponibilidade conjuntural
de reservas internacionais e pela supervalorização cambial. O
resultado destas políticas, no curto prazo, estaria associado a
uma hiperbólica elevação da inflação e, no longo, à crise da
dívida (SMITH, 1990 e 1991). Ademais, na tentativa de amenizar
o processo inflacionário, por vezes esses governos recorreram
ao subsídio das importações, acentuando a dinâmica de
endividamento e fuga de capitais (WEYLAND, 2001).
A crise da dívida – que se deflagra em diferentes países
latino-americanos durante as décadas de 1980 e 1990 – é, pois, o
resultado de um ciclo vicioso entre as desvalorizações da moeda,
a redução do poder de consumo do trabalhador, da arrecadação
por parte do governo e dos investimentos, por um lado, e, por
outro, da redução da produção econômica e da elevação do
desemprego (PEREIRA, 1991 b).
Diante da iminência de um colapso de seus sistemas
econômicos, formou-se um consenso entre parte das elites
nacionais, credores e atores internacionais em torno da
implementação de medidas de estabilização baseadas na
contenção do gasto fiscal e no congelamento dos salários. Neste
contexto, surge no horizonte político latino-americano, um
conjunto de líderes comprometidos, de modo mais, ou menos
explícito, com essa agenda desenvolvida através de programas de
reajuste executados com a assistência do Fundo Monetário
Internacional. Os principais exemplos do período são Carlos
210
Menem, na Argentina (1989-1999), Fernando Collor de Mello,
no Brasil (1990-92) e Alberto Fujimori, no Peru (1990-2000).
No entanto, observando sua trajetória política é possível
perceber que, embora críticos do nacional-desenvolvimentismo,
estes personagens reúnem uma série de atributos políticos que
os aproximam do populismo clássico, como o personalismo, a
crítica às instâncias de representação tradicional e a concentração
de poderes no Executivo. Em comum com o populismo no
passado, esses novos líderes apresentam uma retórica voltada ao
cidadão comum, em oposição às elites. Esta categoria, todavia é
ressignificada para abarcar outros atores, em particular aqueles
que representavam a base de sustentação do populismo nacional
desenvolvimentista, isto é, os trabalhadores formais e a
burguesia nacional, organizados, respectivamente em sindicatos
e entidades patronais (SCHNEIDER, 1991; STEIN, 1980).
Em sua fase neoliberal os discursos populistas se dirigem
a uma base social ampliada pelas reformas ortodoxas:
desempregados, trabalhadores informais, excluídos, oprimidos e
pobres de maneira geral. Em seus atos de fala, todavia, estes
sujeitos são apresentados em uma relação de antagonismo que
ignora o impacto do neoliberalismo, enfatizando os privilégios
concedidos pelo nacional desenvolvimentismo às elites a ele
associadas. Ainda assim, em virtude de sua abrangência, estas
categorias encontram aderência em um panorama marcado por
profundas alterações no mercado de trabalho, além de serem
capazes de agregar uma multidão de indivíduos que passaram a
uma situação de pobreza e desemprego, cujas esperanças são
depositadas na recuperação econômica a ser alcançada através
dos ajustes (WEYLAND, 1996).
É da frustração dessas expectativas que surge a mais
recente viragem no conceito de populismo, propiciada pela
insatisfação com os resultados alcançados através da agenda
211
neoliberal e com os líderes com ela comprometidos (VILAS,
2004). Este sentimento, se traduz, no despontar do século XXI,
em uma conjuntura de grave crise econômica e política, que
culmina com a vitória eleitoral de atores que representavam uma
mudança de rumos90. É nesse contexto que surge o objeto deste
trabalho: o conceito laclauniano de populismo.
212
dinâmicas de barganha instauradas no plano da sociedade civil e
em suas instâncias de representação (LANZARO, 2007).
Inserindo-se na lógica descrita na seção anterior, quanto
maior o afastamento em relação aos interesses das elites, maior
a dependência do apoio popular e, por conseguinte, mais
fortemente esses líderes são identificados com o conceito de
populismo. No entanto, ainda que tenha mantido seus principais
elementos – como a base popular, o personalismo e a
concentração de poderes do Executivo – é neste contexto que a
categoria sofre a sua transformação mais radical, operada pela
reformulação realizada por Ernesto Laclau, em RP.
Conforme desejamos argumentar através dessa breve
historiografia acerca das viragens do conceito na América Latina,
pela primeira vez, o termo perde sua feição pejorativa,
assumindo uma perspectiva que se apresenta como descritiva,
embora assuma uma função criptonormativa. Essa segunda
característica está associada aos propósitos políticos do autor, no
contexto da luta hegemônica, travada na região por uma nova
elite política, que chega ao poder no século XXI. Com esse
objetivo, a categoria foi redefinida com o propósito de tipificar
estes novos atores, destacando seus principais elementos
comuns: a recuperação de um ideal nacional-desenvolvimentista,
discursivamente construído pela rejeição da agenda neoliberal, e,
sobretudo, pela polarização da sociedade entre oprimidos e
opressores.
No entanto, ainda que seja possível detectar no
populismo do passado a configuração de fronteiras de
antagonismo, em sua nova fase elas se distinguem por uma
dimensão identitária, que se revela na intenção de reconhecer91
213
atores que se mantiveram em uma posição de invisibilidade e
subalternidade ao longo da história. Nessa nova acepção, o líder
populista não guia ou lidera o povo, ele o representa por que faz
parte dele, uma vez que compartilha sua identidade (ARDITI,
2005, p. 98-100).
Conforme o argumento aqui elaborado, o conceito
gramsciano de hegemonia, recuperado em HES, pode ser
indicativo do propósito de Laclau de reformular o conceito de
populismo, despojando-o de suas feições negativas, de forma a
permitir que ele atue como um instrumento na luta política
travada pelas lideranças nele tipificadas. Sendo assim, é possível
imaginar uma conexão entre as duas obras, buscando na primeira
(HES) a chave para a compreensão da segunda (RP), de modo a
lançar luz sobre os motivos que levam o autor a reformular o
conceito de populismo, drenando-o de sua negatividade.
Em A Razão Populista (2005), Ernesto Laclau assume a
difícil tarefa de explicar como alguns agentes sociais podem
‘totalizar’ o conjunto de experiências que os cercam, sendo
capazes de representá-las perante os sujeitos que delas partilham.
Sob este prisma, a unidade do grupo não admite ser reduzida à
simples agregação das demandas sociais, que pode, é claro, ser
cristalizada em práticas sociais sedimentadas. A agregação no
plano político pressupõe, ao contrário, uma assimetria essencial
entre a comunidade como um todo (o populus) e suas partes
constitutivas, governados ou oprimidos (“plebe”), dependendo da
caracterização. A unidade, portanto, depende de um processo de
catacrese, no qual uma das partes se identifica com o todo
(Laclau, 2005). Por ser incapaz de ser apreendida per si, dada a
sua natureza abstrata e amorfa, essa dinâmica é essencial para
214
que o todo (populus) se torne, primeiramente, compreensível e,
depois, um sujeito político capaz de agir.
Deste modo, Laclau deixa claro que a agregação das
demandas em uma cadeia de equivalência pressupõe uma
assimetria essencial entre a comunidade como um todo e suas
partes constitutivas, sendo que esta unidade depende de um
processo de catacrese, no qual uma das partes se identifica com
o todo (LACLAU, 2005, p.24). A lógica desta operação é o que
o autor denomina de razão populista92.
O populismo é definido como modo de identificação
que tem no conceito de soberania popular o seu corolário
inevitável. Sob este prisma “razão populista” seria, então, o
mecanismo de constituição de uma identidade popular, por meio
da afirmação de um grupo que se vê como elo frágil em uma
relação de antagonismo com a ordem estabelecida. Em termos
pragmáticos, isto torna a categoria particularmente útil para dar
conta de movimentos que invocam o nome do povo em uma
oposição ao status quo. Daí sua afinidade com a contra-hegemonia,
que, como será argumentado na última seção deste artigo, é
mitigada por uma deriva cesarista, inerente à teoria da
representação que estrutura esta categoria e reduz seu potencial
emancipatório.
Esta argumentação, consequentemente, não será
construída a partir de elementos exógenos à teorização do autor,
encontrando respaldo em uma de suas mais importantes obras,
Hegemonia e Estratégia Socialista (HES), publicada em 1985, em
parceria com Chantal Mouffe. No livro, observa-se a
configuração de um horizonte pós fundacionalista caracterizado
92
Nas palavras do autor: “é nesta contaminação da unidade do populus pela
parcialidade da ‘plebe’ que repousa a peculiaridade do povo enquanto
sujeito político e ator histórico. A lógica de sua construção é o que eu
chamei de ‘razão populista” (LACLAU, 2005, p. 224).
215
pela implosão dos alicerces metafísicos que fundamentavam a
ideia de um sujeito universal. Neste contexto, a luta contra-
hegemônica, delineada pelos autores como um projeto de
democracia radical, depende de uma articulação artificial e
contingente entre os diferentes sujeitos coletivos, cada qual
portador de uma demanda não atendida pela ordem atual
(SILVA, 2013, p. 106).
Vinte anos depois, Laclau apresenta o líder populista
como catalisador preferencial desta dinâmica. Nas palavras dos
autores em uma passagem na qual abordam o problema da
articulação de sujeitos políticos contra-hegemônicos em um contexto
marcado pela pluralidade de demandas e identidades sociais:
216
consciência de classe ou o afastamento dos cânones da
democracia liberal, o autor dedica-se às suas qualidades, que
dizem respeito ao caráter inclusivo destes governos, à
implementação de uma agenda econômica distributiva e a uma
maior abertura à participação popular.
Neste esforço, Laclau, dirige-se àqueles que observam
nestas lideranças uma ameaça de recrudescimento autoritário,
atentando para o aporte de legitimidade conferido pelo amplo
apoio da maioria da população. Com isso, seria possível obter
avanços democráticos (em particular em sua dinâmica material),
em um contexto de debilidade das instituições liberais. Este é o
principal legado do populismo na região.
Ainda que seja possível detectar no populismo do
passado a configuração de fronteiras de antagonismo, em sua
nova fase, elas se distinguem por uma dimensão identitária, que
se revela na intenção de reconhecer atores que se mantiveram em
uma posição de invisibilidade e subalternidade ao longo da
história. Nessa nova acepção, o líder populista não guia ou lidera
o povo, ele o representa por que faz parte dele, visto que
compartilha sua identidade (ARDITI, 2005, p. 98-100). É sobre
esta forma pós-fundacional de compreender a formação de
identidade e sujeitos políticos que discorrerei na próxima seção.
217
a ideologia emergem, respectivamente, como espaço e
ferramenta das lutas por poder. No entanto, embora tenha sido
primeiramente formulada por Vladimir Lênin, é com Antonio
Gramsci que a noção de hegemonia assume um papel central no
interior do marxismo. As formulações dos dois autores seguem
uma relação de continuidade, porém estão endereçadas a
contextos históricos distintos.
Lênin se dirige, pois, a uma conjuntura política singular,
marcada por convulsões sociais (a Revolução de Fevereiro, de
1917, que por sua vez, sucedeu a Revolução Russa de 1905)
caracterizadas por dificuldades de organização por parte das
forças políticas envolvidas, e pelo engajamento de um grande
número de cidadãos militarizados (sobretudo após o
envolvimento da Rússia na Primeira Guerra Mundial). Diante
desse panorama, o autor compõe uma ode ao partido como
estrutura de organização da ação coletiva, voltada à conquista do
aparato estatal através das armas.
Gramsci, todavia, se endereça a um país onde as
instituições do Estado e os partidos políticos encontravam-se
melhor organizados, enquanto a população comum se mantinha
relativamente pouco mobilizada, quando comparada ao caso
russo. Nesse contexto, são os intelectuais que ganham destaque
como instrumentos de irradiação ideológica em uma disputa por
corações e mentes, cujo locus prioritário é a sociedade civil.
Saltando uma série de debates e reformulações do
conceito de hegemonia, este texto se aterá à apropriação
realizada por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau. Dirigindo-se ao
panorama histórico e intelectual distinto marcado, no campo
político, pelo fracasso do socialismo realmente existente e, no
âmbito teórico, pela crítica ao pressupostos racionais e
normativos que o estruturavam, os autores operam uma
significativa engenharia conceitual. Em HES observa-se a
218
tentativa de alicerçar a dialética em um horizonte pós-
fundacional, por meio da incorporação de um arcabouço
filosófico alheio à tradição marxista, no qual se destaca a
remissão à obra de Jürgen Habermas e Carl Schmitt. Nessa
abordagem, estruturada a partir de um aprofundamento da ideia
de antagonismo, originalmente presente na noção de luta
hegemônica, os sujeitos são apresentados sem qualquer alusão a
conteúdos, identidades ou essências transcendentes, sendo
compreendidos como produtos de um contexto histórico e
linguístico particular, efêmero e instável por definição.
Deste modo, ao assumir a categoria de pós-fundacionalismo,
para definir seu horizonte epistemológico, Laclau e Mouffe
pressupõem a possibilidade de retomar o ideal moderno de auto-
afirmação (self-assertion) separando-o da noção de auto-fundação
(self-foundation). Isto porque, a ideia de auto-fundação pressupõe
a capacidade da razão humana de encontrar fundamentos
últimos para a existência, sendo, consequentemente,
incompatível com a rejeição de suas bases metafísicas,
essencialistas e universalizantes. Nesse esforço, os autores
apresentam uma teoria acerca da formação dos sujeitos políticos
despojada de qualquer essencialismo, na qual toda identidade se
configura sob uma perspectiva relacional, isto é, através de uma
relação de antagonismo. A identidade de um sujeito deixa de ser
concebida como algo intrínseco ou apriorístico, tornando-se um
resultado contingente da relação que ele estabelece com outros
termos num sistema de diferenças historicamente construído e
instável, uma vez que composto por estruturas discursivas (e
sujeitos) antagônicas que impedem seu completo fechamento
em uma só totalidade (ALVES, 2010, p. 89).
A hegemonia é, então, entendida como um atributo
inerente à formação e transformação das comunidades políticas,
surgindo como solução precária e provisória para uma crise na
219
qual uma parte, que até então supunha preencher o vazio da
totalidade deixa, de ser capaz de fazê-lo, sendo substituída por
outra. Ou, em outros termos,
220
equivalência e diferenciação podem engendrar a formação de
sujeitos políticos, constituídos de modo instável, precário e
efêmero, através de uma relação hegemônica. De acordo com esta
abordagem, a ideia de equivalência, corresponde a uma
simplificação do espaço político em dois campos antagônicos,
cujas diferenças internas são subsumidas perante à centralidade
do que é idêntico (LACLAU e MOUFFE, 1985, p. 92). Já a ideia
de diferença, ao contrário, tenderia a complexificar esse mesmo
espaço, abrindo caminho para a diversificação de sentidos e para
o pluralismo das identidades.
Sendo assim, conforme a hipótese que estrutura este
trabalho, ao ressaltar o componente de antagonismo
originalmente presente na formulação original do conceito de
luta hegemônica, abandonando a pretensão metafísica de
alicerçá-lo em um fundamento incontestável de legitimidade,
esta proposição supera os limites do marxismo tradicional.
Segundo Mouffe e Laclau, somente esta superação permitiria
vislumbrar um modelo verdadeiramente radical de democracia,
cujo objetivo é transformar as relações de poder no interior das
sociedades.
Em nome deste ideal, os autores reivindicam uma
renúncia ao otimismo antropológico, entendido como
sustentáculo da proposta apresentada por Jürgen Habermas,
que, apesar de rejeitar os componentes metafísicos do discurso
filosófico da modernidade, lastreia-se em um conceito de razão
comunicativa, definido como universal pragmático capaz de
fundamentar em bases universais a legitimidade do ideal
democrático (HABERMAS, 2002). Conforme o argumento
defendido por Mouffe em Democratic Paradox (2000), essa razão,
além de indisponível, não é um alicerce desejável para um
projeto radical de democracia. Ao contrário, por afastar a
negatividade inerente a um entendimento agonístico da
221
sociabilidade humana ela bloqueia o reconhecimento da
violência e da exclusão como componentes inevitáveis do
processo de formação da vontade geral. Com isso, a proposta
habermasiana torna a teoria democrática contemporânea inábil
para lidar com a natureza ‘do político’ em sua dimensão de
hostilidade e antagonismo (MOUFFE, 2000, p. 143).
Aquiescer à inelutabilidade do conflito, segundo a
autora, não pressupõe uma aceitação ao status quo ou aos
ditames do poder, mas, ao contrário, viabiliza uma noção de
democracia que estimula a sua contestação, uma vez que
"nenhum consenso pode ser estabelecido como resultado de um
puro exercício da razão."(MOUFFE, 1994, p. 11). Sob este
prisma, denuncia-se qualquer abordagem racionalista (mesmo as
de caráter comunicativo) como obstáculo à legitimação do
politeísmo de valores como elemento constitutivo e como valor
de uma ordem democrática93.
A oposição ao modelo habermasiano ressalta os
impedimentos empíricos à implementação dessa ordem sem
uma transformação radical nas relações de poder na sociedade –
sendo este é mais um elemento que reforça a hipótese aqui
apresentada acerca da afinidade entre esse enquadramento
conceitual e os movimentos políticos contra-hegemônicos.
Entretanto, mesmo em uma sociedade mais justa, é preciso
reconhecer a inelutabilidade das fronteiras de exclusão.
Conforme ressaltado por Chantal Mouffe, em Democratic Paradox,
“o consenso, em uma sociedade liberal-democrática é, e sempre
222
será, a expressão de uma hegemonia e a cristalização de relações
de poder” (MOUFFE, 2000, p. 49).
O agonismo, por conseguinte, se apresenta como modelo
de democracia que se estrutura em função do reconhecimento
destes limites, já que a inclusão passa a ser um horizonte de
expectativas cuja intangibilidade não implica desistência e falta
de compromisso para com os marginalizados. Desta perspectiva
normativa, é desdobrado um projeto de democracia radical cuja
pré-condição é o reconhecimento de múltiplas identidades. Mas,
também, da legitimidade das divergências e das contestações às
fronteiras que separam incluídos e excluídos, que estas passam a
ser entendidas como produto de relações de poder contingentes,
mutáveis e criticáveis.
Uma segunda consequência desta abordagem pós-
fundacionalista acerca da questão identitária, que também diz
respeito aos modos de articulação entre atores distintos, ressalta
o papel constitutivo do político nesta equação. Isto porque,
nessa chave de leitura, a dimensão na qual situam-se as mudanças
radicais (radical institutions) é a dimensão política (o político94),
enquanto condição de entendimento e transformação do social.
Sob este prisma – que demarca o afastamento conquanto aos
fundamentos da tradição marxista – os movimentos políticos são
considerados autofundantes, na medida em que nenhuma
dinâmica social ou econômica tem prioridade no processo de
significação de fenômenos. As interações sociais não trazem em
si quer suas condições de inteligibilidade, quer as soluções para
seus próprios problemas, cabendo, pois, ao político estruturá-las
a partir de fronteiras de antagonismo.
94
Aqui remeto à distinção incorporada na obra de Mouffe entre a política,
enquanto dimensão institucional, e o político, enquanto dimensão identitária
(MOUFFE, 2000, 22)
223
Retomando a indagação de Hannah Pitkin (1972) –
seminal no tocante à recuperação de uma preocupação com a
ideia de representação, isto é, com o caráter fundante da
dimensão política sobre o social – a vida política é definida pelo
problema da criação contínua de unidade sobre um plano social
amorfo, pleno de diversidades, interesses conflitantes e múltiplas
demandas. Aos discursos e movimentos políticos decorre, então,
o papel de constituir formas particulares de unidade entre
interesses distintos, ligando-os a um projeto ou modo de vida
comum por meio do estabelecimento de fronteiras que definem
forças opositoras a esse projeto. É essa comunalidade que
transformará uma multidão de indivíduos dispersos em suas
particularidades identitárias em um sujeito político unificado e
capaz de agir em prol da superação de suas demandas não
atendidas, unidas em uma cadeia de equivalência (MOUFFE,
1995). É essa a aposta dos autores para o surgimento de um
sujeito contra-hegemônico capaz de articular os diferentes grupos
que se observam oprimidos e demandam o reconhecimento95 de
suas identidades.
Reconhecer que este projeto surge sempre de uma
relação de alteridade, não significa afirmar que os seus termos
sejam sempre os mesmos. De fato, há no “conceito do político”,
engendrado por Carl Schmitt e incorporado na obra de Laclau e
Mouffe, uma dimensão transhistórica que o fixa como instância de
transcendência necessária e constitutiva do social. Porém, é
fundamental ressaltar que esse elemento transhistórico é vazio de
conteúdo. Neste ponto aparece um dos aspectos mais profícuos
da argumentação de Laclau e, sobretudo, de Mouffe que visa
224
amortizar os riscos da herança schmittiana, ao conciliá-la com o
falibilismo discursivo de Wittgenstein, enfático quanto ao caráter
incompleto e questionável de qualquer identidade. Com isso,
resulta uma compreensão do político voltada para a contestação e
transformação das sociedades e das identidades nelas
cristalizadas.
Nesta acepção nenhuma relação de opressão ganha
precedência sobre as demais. Por conseguinte, o conceito de
hegemonia que dela decorre rompe com a interpretação marxista
tradicional, presente não apenas em Gramsci, mas na maioria de
seus herdeiros, que observam na luta de classes uma dissociação
prioritária e constitutiva. A partir dessa engenharia conceitual,
que sobrepõe diferentes tradições de pensamento, é introduzida
uma pretensão normativa e contra-hegemônica originalmente alheia
ao entendimento schmittiano (e realista) do político. Não
obstante, a despeito do compromisso normativo de Mouffe e
Laclau, à herança schmittiana inerem riscos que permeiam essa
forma de compreender a formação dos sujeitos e identidades
políticas. Este é o tema da próxima seção.
225
weberiano96, incorpora um elemento de instabilidade, posto que
não se situa no plano da racionalidade (instrumental ou
deontológica), mas na esfera da vontade (subjetiva e imanente).
Essa característica lhe permite atualizar os elos entre a
dimensão fático-institucional e o plano ético/valorativo,
renovando suas pretensões de legitimidade. Por isso, enquanto
movimento carismático, a razão populista cumpriria o papel de
reverter - ainda que por pouco tempo - a tendência rotinizante
que afeta todo ordenamento jurídico-político, reaproximando-o
de suas bases ético-morais. Deste modo, conforme argumentei
ao longo das seções anteriores, em virtude de seus atributos
teóricos, mas também do direcionamento prático dado pelo
autor, o populismo desponta como operador contra-
hegemônico. Isto é, como um instrumento útil na luta pela
transformação nas estruturas de poder que perpetuam a
opressão das classes populares.
Entretanto, a despeito do reconhecimento de tais
atributos, o propósito desta seção é salientar seus
inconvenientes, haja vista outras características do conceito que
lhe conferem o que chamo de deriva cesarista97. Estes
elementos, por sua vez, advêm do arcabouço teórico que
estrutura esta forma de conceber o político. Mais precisamente,
esta deriva é aportada pela incorporação de uma teoria elitista da
226
representação, delineada por Thomas Hobbes e atualizada em
Max Weber (MOMMSEN, 1989). Por fim, esta teoria encontra
sua compreensão mais radical na obra de Carl Schmitt – cujas
considerações são objeto de particular atenção ao longo deste
trabalho, não apenas em virtude de sua influência sobre Laclau e
Mouffe, mas, sobretudo por causa dos riscos inerentes à sua
formulação.
A conceitualização schmittiana ressalta a dimensão da
homogeneidade, apresentando-a como um desdobramento
normativo de um corolário realista, isto é, do pressuposto
weberiano de que, na modernidade, a representação, enquanto
momento de identificação entre governantes e governados, é um
componente inextrincável aos sistemas políticos, que não mais
podem recorrer a fundamentos transcendentes de legitimidade
(SCHMITT, 2006).
Schmitt resolve esse problema por meio do conceito de
aclamação, que indicaria uma dinâmica democrática por meio da
qual o povo manifesta sua aprovação ao líder. Seus atos, quando
aclamados, poderiam ser vistos como expressão da soberania
popular (SCHMITT, 1990). Weber, no entanto, ressalta que este
ideal não é suficiente para estruturar ordenamentos de tipo
racional-legal necessários à organização da política e da economia
em sociedades modernas (WEBER, 1991). Diante disto, o autor
ressalta a importância do respeito à liberdade individual e ao
pluralismo de valores, apontados como únicos critérios de
legitimidade compatíveis com um mundo secular.
Laclau, porém, critica essa associação necessária entre
individualismo e pluralismo, embora acredite que a simples
manifestação da soberania popular também não seja um critério
suficiente, por desconsiderar a articulação histórica entre as
tradições democrática e liberal, sedimentada ao longo dos
séculos XVII, XVIII, XIX e XX (LACLAU e MOUFFE, 1985).
227
De acordo com esta hipótese – que encontra pontos de contato
com a teoria apresentada por Rosanvallon em Le peuple
introuvable: histoire de la représentation démocratique en France (1998) –
do processo de modernização decorre uma transformação
fundamental da estrutura das sociedades, que além de
demograficamente superiores teriam se tornado mais complexas
e plurais. Neste novo contexto, tornou-se impossível pensar no
povo como agente unitário capaz de se expressar soberanamente
de modo inequívoco, já que composto de inúmeros grupos com
interesses, identidades e vontades contraditórias.
A homogeneidade, no entanto, é um elemento
intrínseco à ideia de representação apresentada por Laclau,
embora ela seja mitigada pela consideração de sua precariedade
e do hiato entre representantes e representados, que atribui a
todo ato de identificação um caráter incompleto. Para o autor, o
processo de complexificação não ocorre apenas dentro da
sociedade, mas, também, nos próprios indivíduos, que por serem
compostos de inúmeras dimensões valorativas deixam de ser
capazes de se identificar por completo com qualquer coisa ou
pessoa. Toda forma de identificação torna-se parcial e
temporária, por isso, é necessário atrelar a legitimidade dos
representantes a algo mais do que sua capacidade de
identificação para com os representados (LACLAU, 1994, 36).
É preciso reconhecer, portanto, o esforço de Laclau em
afirmar que, sob uma perspectiva normativa, a aclamação da
maioria não é suficiente para conceder legitimidade a um
ordenamento político, sendo este um ponto central para a
argumentação aqui empreendida, na medida em que evita uma
associação precipitada entre populismo e cesarismo. Conforme
o argumento esboçado neste comentário, o populismo não é a
melhor ferramenta para a luta hegemônica, mas não porque dê
origem a regimes necessariamente autoritários. Sua
228
incompatibilidade advém do caráter elitista da concepção de
política e de representação que o estrutura, a qual, por estar
demasiado centrada na função do líder, torna-se pouco
emancipatória sob a perspectiva do demos.
Ademais, o próprio pós-fundamentalismo, enquanto
epistemologia impermeável a princípios transcendentes, traz
consigo alguns inconvenientes. Pois, se o ato de representação
constitui simultaneamente representantes e representados, não
havendo uma essência coletiva ou vontade geral que o
transcenda, torna-se mais difícil subordiná-lo a qualquer ideia de
responsabilidade alheia aos seus ditames, visto que não fica claro
a quais vontades ou interesses os representantes devem ser
responsivos e que tipo de controle o povo deve exercer sobre
eles (RODRIGUES e SILVA, p.177).
Em outros termos, diferentemente das noções de razão
e emancipação, que servem como horizonte normativo da
tradição marxista em geral e, em particular, da ideia de luta
hegemônica apresentada por Antonio Gramsci, a razão populista
não opera a partir de critérios valorativos, cuja legitimidade
remeta a um fundamento ulterior ao ato de representação
estabelecido entre representantes e representados. Na ausência
de tais critérios, agrava-se o risco de que, por pressupor uma
identidade substantiva com o povo, o líder dele se desvincule,
agindo em seu nome como bem entender, inclusive contrariando
eventuais compromissos contra-hegemônicos que tenham forjado
sua identificação com as camadas populares.
Por outro lado, em contraste com os princípios que
orientam o entendimento liberal acerca dos mecanismos
representativos, que sublinham a pluralidade de opiniões e a
proteção das minorias, o entendimento laclauniano tende a
realçar dinâmicas majoritárias. Diante disto, destacam-se dois
problemas centrais: (1) o que fazer com as parcelas da população
229
que não partilham da mesma identidade dos grupos majoritários
?; (2) quais os limites dessa identificação majoritária, tendo em
vista o caráter multifacetado dos indivíduos e grupos sociais ?
Na tensão entre a regra da maioria – enquanto princípio
que alimenta as pretensões de legitimidade democrática – e o
pluralismo – como elemento inerente a qualquer processo
decisório em sociedades modernas – reside o principal obstáculo
à sobrevida do ideal democrático em um contexto tão diferente
daquele que o originou. Pois, conforme salientado, por Chantal
Mouffe, em Deliberative Democracy or Agonistic Pluralism (2000), se
levarmos em conta as expectativas e os valores partilhados pelos
seus cidadãos, a democracia não pode ser obtida à custa do
liberalismo, nem vice-versa.
Diante deste dilema, o agonismo, enquanto modelo de
democracia radical, serve de contraponto imprescindível a
dinâmicas que valorizam a dimensão majoritária, inerente ao
populismo. De acordo com este entendimento, a despeito de
qualquer antinomia conceitual, liberalismo e democracia não
podem ser considerados como substitutos funcionais, ou como
elementos em um processo de barganha. As demandas por
igualdade e liberdade, disseminadas pela tradição iluminista e
incorporadas pela maioria das sociedades contemporâneas só
podem ser devidamente atingidas por regimes que ensejem uma
articulação entre estes dois componentes. Se há alguma liberdade
dos modernos esta se refere a lutas teóricas e políticas que
articulam as demandas por soberania popular e direitos
individuais.
Não obstante, reconhecendo uma tendência ao
encapsulamento dos indivíduos em suas vidas privadas, o
agonismo incorpora a bandeira dos modelos deliberativo e
participacionista de democracia, considerando que a instituição
de espaços políticos e sociais de deliberação e participação
230
podem ajudar a estimular o interesse pela respublica. Por este
motivo, a partir da ênfase na deliberação e na participação como
práticas sociais a serem associadas a instituições e valores liberais
- como o Parlamento, a divisão entre Estado e Igreja, Estado e
Sociedade Civil, à garantia das liberdades individuais e etc-, o
agonismo torna-se uma alternativa para compensar os malefícios
da liderança e o risco do populismo, uma vez que retira dos
líderes a possibilidade de apresentarem-se como representantes
da totalidade (RODRIGUES e SILVA, 2015, p. 177).
Deste modo, respondendo ao questionamento
levantado ao longo do texto, ao incorporar propostas
institucionais que visam evitar a degeneração de fenômenos
populistas em regimes bonapartistas, democracias plebiscitárias
ou ditaduras cesaristas, o modelo agonista se apresenta como um
paradigma mais adequado aos movimentos contra-hegemônicos que
contemplem um ideal emancipatório, no qual a soberania do
povo não seja obtida às custas de suas liberdades individuais ou
da opressão de minorias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
231
uma síntese entre duas constelações teóricas antipodais que
ultrapassam os limites do marxismo tradicional: o
procedimentalismo habermasiano e o substancialismo
schmittiano. O terceiro, ressaltou os limites desta síntese que, a
despeito de suas afinidades com a contra-hegemonia, incorpora
alguns riscos inerentes a uma teoria da representação centrada
na figura do líder.
O objetivo deste trabalho, por sua vez, foi demonstrar
que a recuperação operada por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe
no conceito gramsciano de hegemonia permite a superação do
paradigma do sujeito universal, no qual o proletariado se
configurava como essência monolítica incapaz de abarcar a
pluralidade de identidades que constituem as sociedades
contemporâneas. Sendo assim, de acordo com os pressupostos
pós-fundacionalistas, incorporados ao legado marxista pelo
esforço conceitual dos autores, emerge uma concepção agonística
de sujeito político. Fragmentado em inúmeras identidades
coletivas destoantes e divergentes, este sujeito é entendido como
um significante vazio, cuja identidade só pode ser preenchida
por significados efêmeros, incompletos e precários.
No entanto, o reconhecimento de tal precariedade por
parte de Mouffe e Laclau não implica na rejeição do horizonte
emancipatório presente na tradição marxista. Ao contrário, ela
dá origem a um projeto de democracia radical, no qual o
entendimento do político como universo estruturado pelo
antagonismo é contrabalançado pela ênfase em processos
deliberativos de entendimento e na crítica das identidades
hegemonicamente estabelecidas. Sob uma perspectiva agonística a
representação – enquanto vínculo entre governantes e
governados – e a soberania popular – enquanto expressão da
vontade do povo, devem ser entendidas como ficções que, junto
232
com a ideia de liberdade individual, compõem o horizonte
valorativo das sociedades ocidentais.
Nesta medida, ao ressaltar o caráter artificial e precário
das identidades e dos consensos combinando-os à defesa de um
projeto radical de democracia, este modelo oferece as bases para
uma crítica imanente aos regimes institucionais realmente
existentes. Por este motivo, o agonismo além de compensar os
riscos intrínsecos aos fenômenos populistas, apresenta uma
afinidade estrutural com movimentos contra-hegemônicos que, além
da contestação do status quo, vislumbram um ideal emancipatório
incompatível com a filosofia do sujeito que outrora o alimentava.
233
Capítulo 9
REVOLUÇÕES E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS: CONTRIBUIÇÕES E
CARÊNCIAS DO MARXISMO98
Paulo G. Fagundes Visentini99
INTRODUÇÃO
234
“anárquico”, enquanto a segunda prioriza as relações de cooperação
transnacionais. Com base na economia política e no materialismo
histórico, o marxismo inaugurou um terceiro paradigma, que se
fundamenta na noção de economia e de dominação no plano internacional.
Todavia, por incrível que pareça, o mainstream marxista,
que possui como elemento intrínseco o conceito doméstico de
Revolução, ainda não logrou integrar plenamente sua concepção
economia e sistêmica da dimensão internacional com a noção de
ruptura (e renovação) que as Revoluções provocam no sistema
mundial. O que será apresentado aqui consiste numa breve e
introdutória discussão teórica de um projeto de pesquisa sobre
o impacto internacional das Revoluções ocorridas no Terceiro
Mundo (Sul Geopolítico) nos anos 1970 e 1980.
100
HUNTZINGER, Jacques. Introduction aux relations
internationales. Paris: Éditions du Seuil, 1987.
235
europeu, Rousseau, Espinosa e os adeptos do nacionalismo
europeu do século XIX representam o paradigma clássico das
relações internacionais (segundo a visão francesa), também
chamado de realismo (na perspectiva anglo-saxônica). Esta
corrente considera o sistema internacional como sendo total ou
parcialmente anárquico, tendo o Estado como ator fundamental.
Assim, o realismo enfatiza as relações de conflito e poder entre atores
estatais. A estes, podemos acrescentar pensadores realistas do
século XX como Edward Carr (Vinte anos de crise), Raymond
Aron (Paz e Guerra entre as nações) e Hans Morgenthau (A política
entre as nações). Esta corrente abriga, além do realismo clássico, o
neorrealismo, as teorias da estabilidade hegemônica e a teoria dos jogos.
O padre dominicano de Salamanca Francisco de Vitória,
juntamente com o estoicismo, Cícero, o cristianismo medieval,
o jusnaturalismo do século XVI, Kant e o cosmopolitismo do
século XVIII representam um paradigma idealista, o qual enfatiza
a existência de uma comunidade internacional da societas inter
gentes, ou comunidade universal do gênero humano. Esta
corrente, no mundo anglo-saxônico, também é chamada de
liberalismo, contendo ainda o liberal institucionalismo (neoliberalismo),
funcionalismo, teorias da integração e o construtivismo. Keohane,
Klinderberg e Joseph Nye são acadêmicos contemporâneos
ligados à escola do liberalismo/idealismo, a qual tem como base
as relações de cooperação e ética, dentro de uma estrutura
essencialmente “transnacional”. Importante ressaltar que,
filosoficamente, o liberalismo é contraditório com a visão de
matriz cristã, o que ressalta o caráter artificial da visão “bipolar”
das teorias de Relações Internacionais.
Marx e Engels, da mesma forma que os jacobinos,
Fichte, Hegel, Hobson, Hilferding Lênin e Bukarin, enfocam as
noções de imperialismo econômico, as clivagens norte/sul e
centro/periferia, bem como as teorias da dependência e do
236
sistema mundial. Em termos contemporâneos e estritamente
acadêmicos, podemos acrescentar os nomes de Fred Halliday,
Giovanni Arrighi, Immanuel Wallerstein, Justin Rosenberg e
Samir Amin como internacionalistas de inspiração marxista.
Embora o marxismo não tenha estruturado uma teoria formal
das relações internacionais, o materialismo histórico permite
fundamentar a noção de economia e de dominação no plano internacional,
dentro de uma perspectiva que enfatiza os macroprocessos de
evolução, transformação e ruptura.
Já as correntes anteriormente mencionadas priorizam o
funcionamento do sistema e valorizam a dimensão prescritiva e
normativa. Ou seja, a vertente marxista comporta a explicação
sistêmica e a conflitiva das versões anteriores, embora ainda não
tenha desenvolvido com profundidade as ferramentas
metodológicas necessárias correspondentes, especialmente
quanto à dimensão política. Todavia, se consegue explicar a
Guerra e enquadrá-la na noção de sistema mundial, o mesmo
não ocorre em relação às Revoluções, que ele tão bem explica
em sua dimensão doméstica.
O século XX, segundo Hannah Arend, foi moldado por
guerras e revoluções, mas a pesquisa e o ensino das relações
internacionais têm tratado os dois temas de forma diferenciada.
Há muitos cursos, centros especializados e revistas sobre a
questão da guerra, mas a revolução como tema internacional tem
sido negligenciada. Como ressaltou Fred Halliday (1999), não há
revistas acadêmicas especializadas na questão. Por outro lado, as
“Revoluções Tardias” (anos 1970-1980) ocorreram durante a
crise e a transformação da economia e do sistema mundiais e
tiveram efeitos importantes, mas foram vítimas do “Fim da
História” (FUKUYAMA), como se o fim da Guerra Fria
houvesse anulado seus impactos. É curioso como até mesmo
alguns acadêmicos pouco sabem dos processos que marcaram
237
essas duas décadas, e apenas encaram a China e o Vietnã como
Estados pós-revolucionários “Reformados” e o Irã, Cuba e
Coreia do Norte como “Estados Renegados”.
A dimensão histórica é amplamente secundária na
análise das relações internacionais contemporâneas, e necessita
ser resgatada. A justificativa de uma análise sobre a temática é,
assim, tanto uma questão histórica como teórica. As relações
internacionais, como área dominada pela ciência política, tem
sido um campo de estudos marcado por teorizações pouco
fundamentadas em sólido conhecimento empírico e apresenta
um caráter instrumental. Sem a autonomia internacional lograda
por suas revoluções, China e Vietnã não teriam o
desenvolvimento que agora possuem. Sem a construção do
Estado, de elites dirigentes e das transformações sociais
promovidas por processos revolucionários, a situação de
Angola, Moçambique, Etiópia e Irã, por exemplo, não teriam
permitido o atual protagonismo internacional dos mesmos.
Halliday (1983) observa que durante esse período, em
pouco mais de uma década, ocorreram quatorze revoluções no
Terceiro Mundo. Elas tiveram expressivo impacto regional,
gerando tendências e contra-tendências, bem como violentos
conflitos internacionalizados e guerras civis. Devido ao
equilíbrio de poder então existente e às transformações por que
passava a economia mundial, elas acabaram afetando o sistema
internacional. Na segunda metade da década de 1970 encerrou-
se a “Coexistência Pacífica” e teve início uma Segunda (ou Nova)
Guerra Fria nos anos 1980. Tudo isso contribuiu para uma
mudança profunda das relações internacionais, que teve como
pivô a implosão do campo soviético, e para o desequilíbrio de
poder que se seguiu e ainda desestabiliza o sistema mundial
(FONTAINE, 1995).
238
REVOLUÇÕES, UMA DIMENSÃO NEGLIGENCIADA NOS
ESTUDOS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
239
numa ampla revolução (e numa contrarrevolução)
internacionalizada (CHAN & WILLIAMS, 1994).
240
As teorias explicativas da revolução e do socialismo
ainda estão fortemente centradas nos casos europeus, sendo
limitados o conhecimento e a reflexão sobre as experiências do
Terceiro Mundo, em geral mais recentes e menos documentadas.
Comumente, insiste-se em que os países periféricos “não
estariam preparados” para a Revolução e para o socialismo,
segundo uma interpretação restritiva. Ocorre que, durante a fase
do imperialismo europeu, as contradições sociais mais agudas se
deslocaram do centro para a periferia, onde o processo de
proletarização se tornou mais acentuado, com o êxodo rural e a
implantação da agricultura voltada ao mercado. É importante
ressaltar que a dimensão internacional, já significativa nas
revoluções clássicas, se torna ainda mais decisiva no quadro da
crescente internacionalização aprofundada pelo capitalismo na
periferia (DAVIS, 1985).
Diferentemente do capitalismo, a dimensão política do
socialismo é a instância predominante e, assim, a economia é
organizada segundo o princípio do planejamento econômico
central (em lugar do mercado), com a propriedade coletiva dos
grandes meios de produção e a estatização dos bancos e do
comércio exterior. A sociedade tende a ser incorporada num
organismo único, com políticas que buscavam a eliminação
gradual das desigualdades e da universalização de políticas sociais
como educação, saúde, habitação, transporte público, emprego
e lazer. Este processo, num quadro de tensão extrema, foi
materializado, historicamente, através de mecanismos
autoritários e repressivos, mas socialmente inclusivos e
politicamente paternalistas.
241
REVOLUÇÕES E POLÍTICA INTERNACIONAL
242
No caso africano, igualmente, as revoluções ocorreram
durante a fase inicial de formação do Estado-nação, na esteira
do colapso do aparato burocrático e repressivo colonial, com a
exceção da Etiópia, onde ocorreu a conquista do aparelho
estatal, que foi transformado e reforçado. Dessa maneira, as
revoluções africanas alteraram o precário equilíbrio que ia se
estabelecendo entre os jovens e frágeis Estados do continente,
gerando amplo efeito desestabilizador. Já a Revolução Iraniana
teve características distintas, pois a corrente vitoriosa não se
apoiou numa visão marxista, representando um movimento
nacionalista, anti-imperialista e uma reação cultural ao Ocidente.
Mas seu impacto internacional foi semelhante.
243
um quarto de século de guerrilhas e guerras, a nação mais
populosa do planeta tornou-se um regime socialista. A
Revolução Coreana e a primeira etapa da Indochinesa fazem
parte dessa fase. As revoluções marxistas e regimes engendrados
na primeira metade do século XX ocorreram “na periferia do
centro”, ou seja, as potências capitalistas industriais que
dominavam o centro do sistema entraram em conflito aberto
(corrida imperialista, Primeira e Segunda Guerra Mundiais),
enquanto lutavam por redefinir o sistema mundial e, dentro dele,
a posição hegemônica. Assim, foi possível a vitória de duas
revoluções e regimes estruturantes de nova realidade mundial, a
soviética e a chinesa, que se encontravam na periferia do espaço
geopolítico afetado pela gigantesca confrontação e
transformação.
Finalmente, na quarta e última, o movimento de
descolonização e o nacionalismo do Terceiro Mundo
protagonizaram o triunfo de diversas revoluções de orientação
socialista, como a cubana, a vietnamita, a afegã, a sul-iemenita e
as africanas dos anos 1970. Elas ocorreram na segunda metade
do século XX “no centro da periferia”, isto é, na região
meridional do planeta ainda não industrializada, onde ocorria a
expansão do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo
(WESTAD, 2007; DAVIS, 1985).
Dentre as referidas, apesar dos limitados recursos, duas
acabaram se tornando paradigmáticas e tendo efeitos sistêmicos
por todo o mundo, a cubana e a vietnamita. Evidentemente, elas
estiveram ligadas e dependeram das duas grandes revoluções
fundacionais, mas desenvolveram uma dinâmica própria. O caso
da Revolução Iraniana pode ser enquadrado nessa categoria,
embora seu desdobramento tenha sido diferente como projeto
pós-revolucionário. De qualquer forma, a “islamização” do
processo revolucionário não anula sua base republicana,
244
modernizadora, anti-imperialista (mas não anticapitalista) e
internacionalista. Também nessa fase se encontram os casos da
Argélia e de outras revoluções dos anos 1950-1960.
101
HALLIDAY, Fred. Revolution and world politics: The rise and fall
of the sixth great power. London: Macmillan Press, 1999.
245
Realistas e neorrealistas como Kenneth Waltz, ao não
relacionarem as dimensões interna e externa, ignoram que a
maioria das alianças visa impedir as revoluções dentro de
Estados membro. Certamente as Revoluções não podem escapar
ao sistema previamente existente, mas elas forçam sua mudança
e representam momentos de transição para um mundo novo,
embora as Relações Internacionais as percebam como “colapso”
(ou ruptura negativa, antissistêmica).
Cabe destacar que toda a revolução tenta
internacionalizar-se, da mesma forma que a contrarrevolução
(busca de homogeneidade), geralmente sem sucesso. Assim, os
limites da “exportação da Revolução” (ou da contrarrevolução),
geram tréguas, redução da retórica ideológica e uma postura mais
“diplomática”. Todavia, isso não significa que as revoluções
tenham sido “socializadas”, pois, segundo Halliday (1999, p.
187), “enquanto suas ordens internas pós-revolucionárias
permanecerem intactas, elas continuam a representar um desafio
ao sistema de outros Estados”.
Para a sociologia histórica, o “internacional” criou o
Estado, e não o contrário, e no tocante aos processos
revolucionários aqui estudados em sua dimensão internacional,
cabe ressaltar que guerras geram revoluções e vice-versa
Nos casos analisados, por exemplo, percebe-se que as
revoluções dos anos 1970 levaram a guerras convencionais na
periferia (com envolvimento de grandes potências), para as quais
a comunidade internacional não estava preparada. Além disso,
no plano regional o maior impacto não é tanto a ação deliberada,
mas o exemplo, que serve de catalizador contra a ordem
estabelecida.
Mesmo o marxismo, que supostamente poderia explicar
as revoluções que inspira, possui limitações explicativas. Uma
delas é ter poucos elementos para analisar as diferenças entre as
246
várias revoluções e a persistência da questão nacional. Uma
exceção se encontra em BRUCAN (1974). Outro é que a ênfase
nos elementos “infraestruturais” os conduz a uma análise que
privilegia as relações capitalistas sistêmicas em escala global.
Paradoxalmente, pouca atenção é dada às possibilidades da
eclosão de revoluções. Wallerstein, por exemplo, aposta nos
movimentos sociais antissistêmicos e Arrighi navega pelos ciclos
econômicos sem se encontrar com as revoluções nem lidar
adequadamente com Estados pós-revolucionários como a
China. Parece haver uma espécie de “divórcio” entre seu
trabalho acadêmico-científico e suas propostas políticas. Pois
pensam o sistema internacional como um sistema
socioeconômico global (capitalista) sobreposto a estruturas
políticas secundárias.
O marxismo, em sua reflexão totalizante, estabeleceu
uma conexão dialeticamente contraditória das esferas globais e
nacionais, ou seja, de processos transnacionais e internacionais.
No caso da dimensão global/transnacional predominam as
noções da economia política internacional e do sistema mundo,
as quais enfatizam as estruturas do desenvolvimento capitalista,
sem explorar na mesma intensidade o papel dos Estados
nacionais e dos processos de ruptura revolucionária.
Avançando através da concepção do caráter Desigual e
Combinado do Desenvolvimento capitalista, observa-se que o impacto
do mesmo gera diferenças dentro do sistema, não apenas como
centro e periferia de uma mesma ordem. Por que o processo
estrutural de desenvolvimento e expansão do capitalismo se
manteve associado à existência (e resistência) de Estados
Nacionais? Constata-se que à medida em que o sistema global
evoluiu, se expandiu, paralelamente, a um complexo sistema de
entidades politicamente soberanas (ou autônomas). Assim, a
natureza do sistema internacional é heterogênea e o atual ciclo
247
de “globalização” apenas reduziu as dimensões de espaço e
tempo e “aceleraram o movimento desigual e diferenciado”
(FERNANDES, 2018).
A reflexão marxista sobre a Questão Nacional
(VISENTINI, 2018) e os Processos Revolucionários, em relação
ao sistema de relações internacionais, avançou mais lentamente.
A análise marxista do sistema mundial aparece como “ciência”
global, quase determinista, enquanto as Revoluções,
curiosamente para uma teoria baseada no próprio conceito de
Revolução, ainda permanecem como domínio da “política”
nacional ou da arte de fazer política. O que é necessário fazer
para que esse impasse seja superado e o impacto das Revoluções
nas relações internacionais sejam integrados plenamente dentro
da perspectiva marxista?
Metodologicamente, Halliday sugere quatro
instrumentos necessários como elementos de reflexão teórica e
pesquisa empírica: a) causa: até que ponto o “internacional”
produz a revolução; b) política externa: como os Estados
Revolucionários conduzem as relações com outras nações; c)
respostas: qual é a reação dos outros Estados; d) formação:
como num período mais longo os fatores internacionais e do
sistema mundial constrangem o desenvolvimento interno pós-
revolucionário dos Estados e condicionam sua evolução política,
social e econômica.
Ainda que Halliday, em seus trabalhos finais, não se
assumisse mais como marxista, essa agenda de pesquisa se filia,
claramente, à uma concepção madura do materialismo histórico.
Ele crítica a vertente determinista do marxismo e chama a
atenção para a relevância das Revoluções dentro da
transformação da ordem internacional. Assim, nem mesmo a
globalização neoliberal poderá impedir a eclosão de rupturas e
renovações revolucionárias, ainda que o caráter das mesmas se
248
altere com o passar do tempo. Haja vista a reação produzida por
qualquer desvio, ainda que mínimo, do modelo político-
econômico dominante.
249
Capítulo 10
A TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DO MARXISMO
LATINO-AMERICANO ÀS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Maíra Machado Bichir102
INTRODUÇÃO
250
Bambirra e de Theotônio dos Santos, principais expoentes da
TMD, tenham encontrado ampla difusão nos países latino-
americanos entre as décadas de 1970 e 1980, dentre os quais
podemos destacar o Chile pré-golpe e o México; no Brasil, seus
escritos apenas encontrariam acolhida no início do século
XXI104. Os últimos dez anos foram marcados pela produção de
diversos artigos, monografias, dissertações de mestrado e teses
de doutorado sobre a Teoria Marxista da Dependência ou
adotando seu referencial teórico, criação de grupos de pesquisa
e realização de Congressos, Seminários e Conferências sobre a
temática105.
A Teoria Marxista da Dependência, que emerge na
década de 1960 em meio à agudização das contradições
econômicas e sociais na região latino-americana e à polarização
política entre revolução e contrarrevolução, representou um
marco decisivo na análise das relações internacionais. Reunindo
251
em seu corpo teórico elementos do marxismo “clássico” e de
uma tradição de pensamento forjada na América Latina,
preocupada em compreender e transformar a nossa realidade a
partir de um olhar próprio, seus/suas autores explicitam as
profundas hierarquias de poder que caracterizam o sistema
internacional, evidenciando a modalidade particular de
acumulação e reprodução do capital nos países dependentes, os
mecanismos de transferência de valor dos países dependentes
para os países imperialistas e seus impactos no exercício do
poder político pelos Estados dependentes. É na subversão do
olhar, da narrativa, da análise, cujo ponto de partida se desloca
para os países dependentes latino-americanos, que reside a
potencialidade da Teoria Marxista da Dependência, tanto para as
Relações Internacionais, quanto para o próprio marxismo.
Considerando a relevância que a produção teórica desses
autores adquiriu no pensamento crítico latino-americano e suas
contribuições para o desenvolvimento do marxismo a partir de
suas reflexões em torno do capitalismo dependente, de suas
críticas tanto às teorias da modernização e ao
desenvolvimentismo cepalino, quanto às interpretações e
estratégias políticas de setores da esquerda latino-americana,
remontaremos, inicialmente, ao momento histórico no qual tal
corrente de pensamento se configura, indicando, também, as
fontes e raízes intelectuais e políticas que a conformam.
Seguidamente, caracterizaremos alguns elementos do núcleo
teórico constitutivo da TMD, ressaltando aqueles aportes que
nos parecem centrais às Relações Internacionais.
252
A EMERGÊNCIA DA TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA
253
das classes agrário-mercantis, associadas ao setor de exportação
dos países latino-americanos, buscando se hegemonizar como
classe dominante naqueles países.
Mesmo frente aos conflitos e às contradições daquele
processo, a nova posição ocupada pelos países latino-americanos
na divisão internacional do trabalho foi vista por muitos
daqueles estudiosos como uma possibilidade real de superação
da condição de “subdesenvolvimento” e de conquista de um
desenvolvimento nacional autônomo. A Comissão Econômica
para a América Latina (CEPAL) no final da década de 1940, cuja
emergência redimensionara os estudos sobre o desenvolvimento
na região, consubstanciava os interesses das burguesias
industriais ascendentes e da burocracia estatal em seus estudos e
relatórios, defendendo um projeto de desenvolvimento nacional
assentado no avanço da industrialização, cuja consecução
deveria ser impulsionada e controlada pelo Estado.
Finda a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos,
que viveram uma intensa expansão econômica e militar,
impunham-se como nova força hegemônica no sistema mundial,
em meio a um processo de concentração e centralização de
capital perpetrado pelas empresas multinacionais. Tais
movimentos deram lugar a investimentos nos setores industriais
dos países dependentes latino-americanos, fato que introduziu
alterações substanciais nas dinâmicas econômica, social e política
daqueles países. A penetração do capital estrangeiro nas
economias da região, ao mesmo tempo que possibilitou a
continuidade de seus processos de substituição de importações,
significou a subordinação de suas decisões políticas e
econômicas aos desígnios de países e empresas estrangeiras, bem
como o fracasso dos “projetos nacionais” das burguesias
industriais latino-americanas. Circunscrita a essa conjuntura está
a crise do capitalismo dependente latino-americano, a qual se
254
revelou politicamente no antagonismo entre revolução e
contrarrevolução.
É precisamente nesse contexto de mudanças na
realidade econômica e social e de polarização política que tem
lugar, no campo do pensamento latino-americano, debates e
críticas ao desenvolvimentismo, ideologia produzida no âmbito
da CEPAL e compartilhada pelas burguesias industriais latino-
americanas, a qual passa a sofrer duros ataques, sendo
questionada política e intelectualmente. A possibilidade de um
desenvolvimento nacional autônomo vê-se frustrada mediante a
integração monopolista mundial, na qual a América Latina está
inserida, e a industrialização, vista antes como solução para os
entraves do desenvolvimento da região, passa a representar uma
nova fase da dependência dos países latino-americanos.
A conjunção desses elementos enseja uma profunda
crise do capitalismo dependente na década de 1960, a qual opõe
de um lado as classes dominantes, ávidas pela manutenção de
seu poder, e, de outro, as classes dominadas, que ansiavam por
melhores condições de vida. Essa oposição se radicaliza em dois
grandes movimentos: as insurreições e levantes populares em
diversas regiões da América Latina e a conformação de golpes e
ditaduras militares nos países latino-americanos, fato que é
registrado por Marini:
255
Quanto à radicalização política das classes populares
latino-americanas, a Revolução Cubana, em 1959, representou
um marco divisor nas lutas sociais e políticas da região. A luta
anti-imperialista e o posterior caráter anticapitalista assumido
pelo processo revolucionário cubano significaram para as
esquerdas e para a classe trabalhadora latino-americana a
possibilidade de ruptura com a ordem estabelecida, com o
sistema capitalista. Sob o impacto do movimento político
cubano, os países latino-americanos se viram envolvidos por um
forte ascenso do movimento de massas. Theotônio dos Santos
destaca as variadas dimensões assumidas pela luta política latino-
americana:
256
“subdesenvolvimento” nos países latino-americanos? Quais as
perspectivas futuras para suas economias e sociedades? Os
levantes sociais que se multiplicavam desde finais da década de
1950 conduziriam à estruturação de uma nova ordem latino-
americana? Essas e diversas outras temáticas envolviam as
mentes daquele(a)s que se debruçavam sobre a análise da
realidade que o(a)s circunscrevia, motivando discussões
intelectuais e teóricas acaloradas, e, mais ainda, fortes embates
políticos.
257
A partir de 1968, concomitantemente à
generalização dos golpes militares e ao
avanço da repressão no continente, a
intelectualidade de esquerda começa a
convergir para o Chile, que conservava
intacto seu regime democrático e que acaba
por converter-se no locus privilegiado de
elaboração da nova teoria (MARINI, 1992,
p. 88).
108 Embora André Gunder Frank, intelectual alemão que dedicou grande
parte de sua pesquisa ao estudo da América Latina, tenha influenciado os
escritos de Bambirra, Marini e Dos Santos, sobretudo a partir de sua
formulação a respeito do “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, não
o consideramos como representante da Teoria Marxista da Dependência,
tendo em vista que o próprio autor não inscreve suas análises no campo
teórico-metodológico marxista (GUNDER FRANK, 1996). Cabe
salientar, entretanto, que a orientação política subjacente às suas análises
converge, em grande medida, com o entendimento que a TMD possui dos
processos políticos latino-americanos, já que estão marcadas pelo
enfrentamento ao imperialismo, fenômeno ao qual a dependência estava
intrinsecamente conectada, e pelo compromisso com a ruptura da ordem
capitalista (GUNDER FRANK, 1973a; 1973b).
109 Um estudo sobre a trajetória de Bambirra, de Dos Santos e de Marini
258
Weffort, Tomás Amadeo Vasconi, os quais integravam o ILPES
(BAMBIRRA, 1978, p. 23).
É possível distinguir, a partir dos estudos e obras
produzidos por estes autores, dois grupos de estudiosos que, ao
longo de sua trajetória, distanciaram-se e opuseram-se em
discussões acaloradas acerca do caráter e das formas de
superação da dependência latino-americana. De um lado, o(a)s
brasileiro(a)s Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e Ruy
Mauro Marini, membros do CESO, reunidos em torno de um
grupo de pesquisa110, publicaram os resultados de suas
investigações a respeito da dependência em obras como
Socialismo o fascismo: el dilema latinoamericano, de 1968, El capitalismo
dependiente latinoamericano, de 1972, Dialéctica de la dependencia111, de
259
1972, e, de outro, o brasileiro Fernando Henrique Cardoso e o
chileno Enzo Faletto, integrantes do ILPES, sintetizaram sua
interpretação a respeito do desenvolvimento econômico latino-
americano na obra Dependencia y Desarrollo en América Latina,
escrita entre 1966 e 1967, como produto de suas pesquisas
realizadas no âmbito da CEPAL.
Embora estes grupos tenham rivalizado em seus estudos
acerca da realidade econômica, política e social latino-americana,
tanto no que diz respeito à opção metodológica, quanto no que
tange às implicações políticas de suas teses, ambos assumiram
uma posição crítica em relação ao pensamento cepalino, na
medida em que ressaltavam que a industrialização nos países
latino-americanos não havia se consolidado como matriz de um
desenvolvimento econômico nacional autônomo, e, mais ainda,
ela teria aprofundado os laços de dependência da região em
relação ao centro desenvolvido (CARDOSO; FALETTO, 2004
[1970]; MARINI, 2007 [1972]). O contato com suas obras
evidencia, entretanto, que não é possível classificá-lo(a)s como
pertencentes a uma mesma escola de pensamento.
Enquanto no campo teórico-metodológico as análises se
vinculam ora ao ecletismo, ora ao marxismo, na dimensão
política, identificam-se duas posturas distintas frente à
260
dependência: a primeira está associada à interdependência, e a
segunda, a uma postura anti-imperialista e anticapitalista, tendo
o socialismo como horizonte político. Fernando Henrique
Cardoso e Enzo Faletto compartilham um ecletismo teórico-
metodológico e caracterizam a integração entre as economias
latino-americanas e o mercado internacional, na década de 1960,
como interdependente. Atribui-se tal ecletismo a esses autores
tendo em vista o prefácio à edição inglesa de Dependency and
development in Latin America, escrito por Cardoso e Faletto em
1976, em que ambos realizam uma extensa explanação acerca do
método por eles empregado na referida obra. Nele, os autores
fazem referência a três tradições distintas do pensamento social:
weberiana, marxista e estruturalista (cepalina). Ao mesmo tempo
em que ressaltam sua tentativa de restabelecer a tradição
intelectual baseada na ciência social compreensiva, afirmam se
valer da abordagem dialética para a análise da sociedade, de suas
estruturas e de seus processos de mudança. Explicitam, ademais,
por meio da opção pelo método histórico-estrutural, sua
aproximação com o estruturalismo cepalino (CARDOSO;
FALETTO, 1979 [1976]).
Da perspectiva política, Cardoso e Faletto sugerem a
possibilidade de se consolidar uma relação de interdependência
entre os países latino-americanos “[...] capitalisticamente mais
avançados [...]” e o mercado internacional, na qual haveria lugar
para um “[...] desenvolvimento-capitalista associado [...]” das
economias latino-americanas (CARDOSO; FALETTO, 2004
[1970], p. 196). A categoria interdependência, introduzida como
possibilidade de “[...] dinamizar as nações industrializadas e
dependentes da América Latina” (CARDOSO; FALETTO,
2004 [1970], p.186), somada à assertiva dos autores sobre a
solidarização dos investimentos industriais estrangeiros com a
expansão econômica do mercado interno nos países latino-
261
americanos, demonstram uma diluição, ou mesmo, uma
ocultação do fenômeno do imperialismo na dinâmica dos países
latino-americanos, o que os distancia do(a)s autores da TMD.
Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia
Bambirra, por sua vez, filiam-se ao marxismo, ao adotarem o
materialismo histórico como referencial teórico-metodológico
em suas interpretações acerca da realidade concreta latino-
americana, e evidenciam, em suas obras, posturas anti-
imperialistas e anticapitalistas, visto que consideram que a
superação da dependência latino-americana apenas poderia se
dar por meio de uma revolução socialista. Frente ao contexto de
novo ordenamento internacional e de reestruturação da divisão
internacional do trabalho, em que ganha dimensão o fenômeno
de internacionalização do capital, tais autores analisam os
impactos dessas transformações na realidade concreta latino-
americana e chamam atenção para a mudança na orientação dos
fluxos de investimentos estrangeiros nas economias latino-
americanas, que, a partir da década de 1950, passam a se
concentrar na esfera da produção industrial, através de
investimentos estrangeiros diretos. Essas transformações
imputam, segundo aqueles autores, um novo caráter à
dependência latino-americana, aprofundando as contradições do
capitalismo dependente, produzindo efeitos tanto nas
transferências de valor dos Estados dependentes para os Estados
imperialistas, quanto na superexploração da força de trabalho na
América Latina, e condicionando de maneira ainda mais aguda
as decisões políticas tomadas nesses países.
No que se refere às fontes que orientam os escritos da
TMD, identificamos que a herança marxista se fez presente tanto
em suas obras, quanto em suas posturas diante da realidade,
caracterizando suas práxis políticas - desde a teoria do valor de
Karl Marx, passando pelas teorias do imperialismo de Vladimir
262
Ilitch Lênin, Rosa Luxemburgo e Nicolai Bukharin e pelos
escritos conjuntos de Karl Marx e Friedrich Engels. Tal
influência se explicita nas análises por eles produzidas, as quais
reivindicam o materialismo histórico como método para a
apreensão da realidade concreta e particularmente na tese de
Marini acerca da superexploração da força de trabalho, tese essa
que é desenvolvida essencialmente a partir da teoria do valor de
Marx (2013 [1867]), bem como na apropriação crítica que tais
autores fizeram dos estudos sobre o imperialismo realizados por
Lênin (1982 [1917]), Luxemburgo (1985 [1912]) e Bukharin
(1986 [1915]). Como afirma Theotônio dos Santos:
263
A Teoria Marxista da Dependência, ao mesmo tempo
em que pode ser analisada como um desdobramento da teoria
do imperialismo, por partir das mesmas problemáticas que
orientavam aquelas análises, configura uma perspectiva original,
seja pelo aprofundamento e desenvolvimento de algumas
questões, seja pela inauguração de um novo enfoque – a fase
imperialista do capitalismo vista sob a ótica dos países
dependentes, a partir da categoria teórica da dependência.
Embora a noção de dependência já estivesse presente nos
escritos de Lênin112, para descrever as relações de poder entre os
Estados na etapa imperialista, é no âmbito da TMD que tal
fenômeno ganhará uma definição mais precisa, adquirindo
centralidade nos estudos de Bambirra, Dos Santos, Marini e nas
gerações seguintes da TMD. Preocupados com a formulação de
um pensamento latino-americano a partir da ótica do capitalismo
dependente, tais estudioso(a)s buscaram, tendo como
fundamento o materialismo histórico, desenvolver reflexões
acerca da realidade particular latino-americana, nas quais se
inscreviam perspectivas de superação da sua dependência
vinculadas à revolução socialista. De acordo com Marini, o maior
mérito da “Teoria da Dependência”113 “[…] fue el de replantear
desde el marxismo la interpretación de la realidad latino-
americana, abriendo camino para que éste asumiera
progresivamente un carácter de centralidad en el escenario
intelectual y político de la región” (MARINI, 1999 [1994], p. 13).
264
Nesse sentido, o(a)s autores da TMD também devem ser
compreendido(a)s como importantes representantes do
marxismo latino-americano, na medida em que assim como
autores como José Carlos Mariátegui, Franz Fanon, Cyril Lionel
Robert James, Heleieth Saffioti, Caio Prado Jr., foram capazes
de dar vida a um marxismo enraizado nas questões e
problemáticas de nossas sociedades latino-americanas114, de
maneira original e criativa, valorizando, assim, um dos elementos
que o marxismo tem de mais rico, seu método e, contribuindo,
dessa forma, para o desenvolvimento do próprio marxismo.
É a partir dessa herança marxista e de suas militâncias
políticas, experienciadas no Brasil, na Organização
Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP), e no
Chile, no Movimiento Izquierda Revolucionaria (MIR) e no Partido
Socialista chileno115, que Bambirra, Marini e Dos Santos
travaram um debate crítico tanto com o pensamento
desenvolvimentista, cujo bastião era identificado na CEPAL,
quanto com as estratégias e táticas defendidas por setores das
esquerdas latino-americanas, particularmente os Partidos
Comunistas. Embora partissem de referenciais teóricos muito
265
distintos, tanto a CEPAL, quanto os Partidos Comunistas116
chegavam a um mesmo resultado, a ideia de que seria possível
um desenvolvimento nacional autônomo naqueles países. Se no
caso da primeira, o argumento se sustentava, sobretudo, nas
potencialidades que o processo de industrialização representaria
para os países latino-americanos – a superação do
“subdesenvolvimento”; no caso dos segundos, tratava-se de uma
reedição do “modelo” de revolução burguesa europeia, por meio
do qual se resgatava a vocação revolucionária da burguesia117. Ao
266
revelarem as implicações da intensa penetração do capital
estrangeiro na produção industrial dos países da região e o
caráter associado das burguesias industriais latino-americanas ao
imperialismo, que se manifestava nos profundos vínculos
existentes entre as classes dominantes dos Estados dependentes
e as classes dominantes dos Estados imperialistas, a TMD
lançava luz sobre a impossibilidade de se configurar na região
um desenvolvimento capitalista autônomo. Frente a essa
avaliação, não se justificava a aliança política entre aquelas
burguesias e as classes trabalhadoras latino-americanas em
direção a uma revolução democrático-burguesa, que esteve no
bojo das estratégias propugnadas por diversos Partidos
Comunistas latino-americanos durante a década de 1950. Para a
TMD, portanto, a dependência constituiria um elemento
intrínseco ao sistema capitalista, e, mais que isso, necessário ao
seu desenvolvimento e à sua reprodução. Dessa forma, sua
superação só poderia estar associada à superação da própria
lógica de acumulação do modo de produção capitalista, através
do protagonismo das classes trabalhadoras na construção de
uma revolução socialista na América Latina.
Reproduzimos aqui, antes de avançarmos em direção ao
último item de nosso artigo, uma passagem de Marini que
expressa o comprometimento político e militante das análises
produzidas pela Teoria Marxista da Dependência com a luta
popular, elemento que está no âmago de seus escritos:
267
[...] la teoría de la dependencia fue, sobre
todo, un movimiento de ideas que trató de
dar respuesta a las inquietudes y esperanzas
que movilizaban a amplios sectores
populares de América Latina: obreros,
campesinos, estudiantes, profesionales, para
ofrecerles una alternativa a un desarrollo
capitalista cuyo carácter subordinado y
excluyente lo hacía cada vez menos capaz de
garantizar la atención hacia las necesidades
esenciales de la población (MARINI, 1999
[1994], p. 13).
268
dependentes latino-americanas. Marini, em Dialéctica de la
dependencia, dedica-se precisamente a tal desafio: esmiuçar as
bases sobre as quais se assentam a dependência, partindo, para
isso, da construção teórica de Marx em O capital, particularmente
de sua teoria do valor. O percurso seguido pelo autor em sua
argumentação consiste em identificar, inicialmente, a forma e a
natureza da integração daquelas economias ao mercado mundial,
ressaltando seu papel no processo de industrialização nos países
europeus, para, em seguida, explicitar os impactos que essa
integração exerceu naquelas economias. Sem desconsiderar o
relevante papel desempenhado pela América Latina na formação
da economia capitalista mundial nos séculos XVI, XVII e XVIII,
como produtora de metais preciosos e gêneros “exóticos”,
Marini (2007 [1972]) afirma que é somente no século XIX,
depois de 1840, que sua articulação com a economia mundial se
realiza plenamente, já enquanto países formalmente
independentes politicamente, com o estabelecimento da divisão
internacional do trabalho. Para o autor, é apenas a partir desse
momento que se poderia falar em dependência.
Ao analisar a integração da América Latina à divisão
internacional do trabalho como produtora de bens primários, o
autor evidencia como a oferta de alimentos e de matérias-primas
proporcionada pelos países latino-americanos aos países
europeus, ao mesmo tempo em que contribuiu para que se
alterasse o eixo da acumulação capitalista nesses países, requereu,
no âmbito da produção interna latino-americana, o recurso a
uma maior exploração do(a) trabalhador(a), produzindo
consequências no ciclo do capital nas formações sociais
dependentes, o qual assume, em razão disso, um caráter
específico (MARINI, 2007 [1972]). Marini detalha os meandros
desse processo, sublinhando como a oferta de alimentos latino-
americanos permitiu a especialização do(a)s trabalhadores
269
europeus na produção industrial, e seus impactos no valor da
força de trabalho, na taxa de mais-valia e na taxa de lucro; e como
o afluxo de matérias-primas possibilitou um aumento da
industrialização e de sua escala, ampliando a produtividade de
todos os ramos da indústria europeia, e a relação entre tal
processo e o deslocamento do eixo de acumulação da economia
industrial da produção de mais-valia absoluta para mais-valia
relativa, passando a acumulação a depender mais do aumento da
capacidade produtiva do trabalho do que da exploração do
trabalhador (MARINI, 2007 [1972], p. 105).
Ainda no que tange à participação da América Latina no
comércio internacional, Marini chama atenção para o caráter
desigual sobre o qual se assentam as relações estabelecidas entre
os países latino-americanos e os países industriais. O autor revela
a transferência de valor, e de mais-valia que está por trás do
intercâmbio firmado entre tais países, a qual se dá por meio de
dois mecanismos, o primeiro, relacionado a uma maior
produtividade do trabalho –
270
desfavorecidas deban ceder gratuitamente parte del valor que
producen [...]” (MARINI, 2007 [1972], p. 112). Nesse sentido, a
deterioração dos preços dos produtos primários latino-
americanos, a qual não encontra correspondência em uma
desvalorização real desses bens118, é compensada pelo recurso a
um aumento do valor realizado, via transferência de valor, o que
se dá por meio de um incremento da exploração do trabalho na
América Latina (MARINI, 2007 [1972]).
Dessa forma, os países latino-americanos,
desfavorecidos pelo intercâmbio desigual, em vez de buscarem
corrigir o desequilíbrio entre os preços e os valores de seus
produtos, gerado a partir do comércio internacional, procuram
compensar suas perdas através do aumento da exploração do
trabalhador, no âmbito de sua produção interna, o que se dá por
mecanismos como o incremento da intensidade do trabalho, o
prolongamento da jornada de trabalho e a expropriação de parte
do trabalho necessário ao trabalhador para repor sua força de
trabalho. Enquanto os dois primeiros, ao obrigá-los a um
dispêndio excessivo da força de trabalho, provocando seu
esgotamento prematuro, negam ao trabalhador as condições
necessárias para que ele reponha o desgaste de sua força de
trabalho, o último retira a possibilidade de o trabalhador
consumir o estritamente indispensável para conservar sua força
de trabalho em estado normal (MARINI, 2007 [1972], p. 116).
Tais mecanismos, empregados com o intuito de aumentar, por
meio de um incremento da mais-valia, o valor apropriado (e,
inclusive, o valor produzido, ao se utilizar do aumento da
271
intensidade do trabalho), bem como a taxa de lucro das classes
dominantes latino-americanas, compensando a transferência de
valor resultante do intercâmbio desigual, implicam em uma
remuneração dos trabalhadores abaixo de seu valor (MARINI,
2007 [1972], p. 113-120). Nisso consistiria, segundo Marini, a
superexploração do trabalho.
A contradição que se conforma com a participação da
América Latina no processo de acumulação de capital nos países
industriais, cuja base de sustentação na economia dependente
latino-americana é a superexploração do trabalho, constitui o
marco fundamental da dependência latino-americana,
determinando, nessa medida, a especificidade do ciclo de
valorização do capital nas economias dependentes da região. O
caráter específico assumido por tal ciclo na América Latina é
evidenciado por Marini:
272
realización de la capacidad interna de
consumo (MARINI, 2007 [1972], p. 121).
273
economía, a la cual se somete aquella” (DOS SANTOS, 1973
[1970], p. 42), Marini ressalta que a dependência deve ser
compreendida como “[…] una relación de subordinación entre
naciones formalmente independientes, en cuyo marco las
relaciones de producción de las naciones subordinadas son
modificadas o recreadas para asegurar la reproducción ampliada
de la dependencia” (MARINI, 2007 [1972], p. 102).
Embora os Estados nacionais sejam tomados como
unidade de análise no estudo das relações de dependência, esses
mesmos Estados não são entendidos como blocos monolíticos
ou como entes abstratos. Compreendidos como o centro do
poder político, o Estado, na perspectiva do(a)s teórico(a)s
marxistas da dependência, é a representação da dominação de
classe subjacente a tais formações sociais. Em suas obras, tais
autores analisam as relações de poder e dominação entre as
classes e frações de classe nos Estados latino-americanos,
evidenciando as alianças, compromissos e contradições que se
estabelecem entre elas, e sublinhando a posição hegemônica
ocupada pelas burguesias imperialistas estrangeiras no bloco no
poder120 dos Estados dependentes, através da
274
integração/associação entre os interesses dessas classes e das
classes dominantes locais.
Ainda com respeito à relação entre as dimensões
nacional e classista na TMD, recuperamos a argumentação de
Vânia Bambirra, que, seguindo as pistas de Lênin – em seu
Imperialismo, fase superior do capitalismo (1982 [1917]) e em seus
escritos sobre o problema nacional e colonial – situa a questão
nacional no plano da luta de classes. Segundo a autora, a forma
como a luta de classes se manifesta explicita os nexos existentes
entre as duas dimensões:
275
imperialismo e as classes dominantes dos países dependentes,
em função do controle do eixo de acumulação dessas economias
por parte dos capitais imperialistas, cujo impacto se faz sentir de
maneira profunda no poder político desses países.
276
das relações de classe que se configuram nos níveis nacionais e
internacionais.
O(a)s teórico(a)s marxistas da dependência, além de
enfatizarem o caráter de classe do Estado, chamam atenção para a
hierarquia de poder entre os Estados capitalistas – Estados
imperialistas e dependentes – que engendra o sistema internacional.
Recuperamos, nesse momento, as formulações desenvolvidas por
Jaime Osorio. Em seus livros, El Estado en el centro de la mundialización
(2004); Explotación redoblada y actualidad de la revolución (2009); Estado,
biopoder, exclusión (2012); Estado, reproducción del capital y lucha de clases
(2014[a]), Teoría Marxista de la dependencia (2016), o autor introduz
aportes fundamentais à compreensão da temática do Estado
capitalista dependente, que representam, em nossa perspectiva, o
desenvolvimento mais avançado realizado nesse campo no bojo da
TMD.
Em diálogo com o debate marxista sobre o Estado,
sobretudo nas figuras de Lênin, Gramsci e Poulantzas, Osorio
avança na caracterização do Estado na sociedade contemporânea e
dedica grande parte de seu esforço à integração entre a teoria
marxista do Estado e a Teoria Marxista da Dependência. Neste
sentido, além de assinalar os principais traços do Estado no
capitalismo, destaca a hierarquia de poder que marca o sistema
interestatal e as diferenças existentes entre os Estados imperialistas
e os Estados dependentes, tema muito pouco desenvolvido no
campo dos estudos políticos e nos estudos latino-americanos.
Osorio aponta dois elementos centrais que caracterizam os
Estados no capitalismo dependente latino-americano. O primeiro
deles é a soberania restringida desses Estados. Em um sistema
mundial caracterizado pelo exercício desigual da soberania dos
Estados, os Estados do capitalismo dependente podem ser
definidos como subsoberanos. Isso não significa, segundo o autor,
que falte algo a este Estado, mas sim que suas ações se encontram
subordinadas às operações e decisões dos centros imperialistas. As
277
classes sociais dominantes locais têm suas condições de reprodução
condicionadas pelo capital imperialista e por seus projetos, o que
reproduz a dependência e a subordinação. O outro elemento é a
particularidade da exploração nas sociedades dependentes, a qual se
sustenta na superexploração da força de trabalho, ou seja, na
estrutural e permanente violação do valor da força de trabalho e na
conversão de parte do fundo de consumo e de vida dos
trabalhadores em fundo de acumulação de capital. De acordo com
Osorio, esse processo implica o desenvolvimento de um
capitalismo que agudiza os elementos de barbárie e reduz o campo
das classes dominantes para estabelecer modalidades de domínio
sustentadas em formas estáveis de consenso, o que explica a
instabilidade democrática na região latino-americana, ameaçada
sempre por processos que a fragilizam e por tendências autoritárias
na história da região (OSORIO, 2014b).
O autor indica, entretanto, que a limitação da soberania
latino-americana não impediu o exercício do poder político das
classes dominantes de tais países a fim de impulsionar seus projetos,
justamente porque estas classes possuem fortes laços com os
interesses das classes dominantes dos países imperialistas. Ao
mesmo tempo, sublinha que a heterogeneidade estatal no sistema
mundial é “[...] consustancial a la lógica de expropiación de valor de
unas regiones y Estados sobre otros, de las estructuras jerarquizadas
de dominio que tal proceso reclama y del ejercicio diferenciado
de soberanías estatales que esto conlleva” (OSORIO, 2004, p.
150, grifos originais).
Considerando a produção do(a)s autores da TMD,
identificamos importantes aportes dessa corrente teórica às
Relações Internacionais, bem como um amplo campo de pesquisa
a ser explorado pelo(a)s estudioso(a)s dessa área de conhecimento.
À luz desse pensamento, compreende-se que a dependência
constitui um objeto fundamental e estruturante do sistema
internacional, articulando e condicionando a relação entre os
278
Estados e entre as classes sociais, explicitando o entrecruzamento
entre essas duas dimensões, nacional e classista e destacando os
nexos que se constroem a partir do exercício do poder político. Ao
adotarem a dependência como foco e a América Latina como ponto
de partida, operam um deslocamento da análise, e, portanto, do
arcabouço explicativo, uma vez que a ótica passa a ser aquela dos
Estados dependentes, mudança essa que produz implicações tanto
de ordem epistemológica, quanto política. Esse movimento
reconstitui a conformação do capitalismo dependente, como
modalidade específica de acumulação, reprodução do capital e de
exploração do(a) trabalhador(a), explicita o papel cumprido pela
América Latina na divisão internacional do trabalho, desde o
momento de sua integração ao mercado internacional à fase
imperialista do capitalismo, contestando, desse modo, explicações
que naturalizavam a díade “desenvolvimento/subdesen-
volvimento” ou que destacavam o caráter interdependente do
sistema internacional. Tal perspectiva revela as assimetrias,
desigualdades e contradições que marcam as relações
internacionais. Nesses elementos residem algumas das principais
contribuições da Teoria Marxista da Dependência às Relações
Internacionais, as quais indicam caminhos abertos a uma
interlocução a ser construída.
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