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António Braz Teixeira

A Razão Jurídica I
Apontamentos
de
Filosofia do Direito e Metodologia Jurídica II

Faculdade de Direito
da
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

2010/2011
ÍNDICE

CAPÍTULO I – DIREITO, LINGUAGEM E RAZÃO


1. Direito e linguagem ............................................................................................ 1
2. Papel da razão no Direito .................................................................................. 2
3. As formas da racionalidade jurídica .................................................................. 3
CAPÍTULO II – A LÓGICA JURÍDICA
§1º Conceito e âmbito da Lógica Jurídica:
4. Lógica apofântica e lógica normativa ou deôntica ............................................. 6
5. Lógica normativa e lógica jurídica ..................................................................... 8
6. Âmbito da lógica jurídica .................................................................................... 8
§ 2º O juízo jurídico-normativo:
7. Estrutura lógica da norma jurídica .................................................................... 9
8. Natureza do juízo jurídico-normativo .............................................................. 11
9. Classificações dos juízos normativos ............................................................. 13
§ 3º Os conceitos jurídicos:
10. Noção e especificidade dos conceitos jurídicos .............................................. 15
11. Classificações dos conceitos jurídicos ............................................................ 17
12. Conceitos jurídicos fundamentais ................................................................... 19
CAPÍTULO III – A HERMENÊUTICA JURÍDICA
§ 1º A hermenêutica:
13. A hermenêutica como primeiro momento da racionalidade jurídica prática .... 29
14. Conceito de hermenêutica .............................................................................. 30
15. Origem e percurso histórico da hermenêutica ................................................ 33
16. A teoria hermenêutica:
16.1. Friedrich Shleiermacher ........................................................................... 35
16.2. Wilhelm Dilthey ......................................................................................... 38
16.3. Emilio Betti ................................................................................................ 43
17. A filosofia hermenêutica:
17.1. Martin Heidegger ...................................................................................... 46
17.2. Hans-Georg Gadamer .............................................................................. 51
17.3. Paul Ricœur .............................................................................................. 57
18. A hermenêutica crítica:
18.1. Karl–Otto Apel .......................................................................................... 62
18.2. Jürgen Habermas ...................................................................................... 65
§ 2° A hermenêutica jurídica:
19. Da hermenêutica geral à hermenêutica jurídica .............................................. 69
20. A hermenêutica jurídica do séc. XIX:
20.1. A Escola da Exegese ............................................................................... 70
20.2. A Escola Histórica do Direito (von Savigny) ............................................. 72
20.3. A jurisrisprudência dos conceitos ............................................................. 78
20.4. O positivismo jurídico ............................................................................... 82
21. A reacção anti-conceptualista:
21.1. O Movimento do Direito Livre ................................................................... 84
21.2. A jurisprudência dos interesses ................................................................ 87
22. A hermenêutica jurídica contemporânea:
22.1. A hermenêutica anaIítico-descritiva (Alf Ross) ......................................... 90
22.2. A interpretacão jurídica como análise da linguagem (Norberto Bobbio) .... 94
22.3. A Iógica do razoável (Recaséns Siches) .................................................. 96
22.4. A hermenêutica jurídica estrutural (Miguel Reale) .................................. 100
22.5. A interpretação teleológica (Karl Engisch) .............................................. 103
22.6. A hermenêutica jurídica (Karl Larenz) .................................................... 105
22.7. A interpretação jurídica construtiva (Ronald Dworkin) ............................ 110
22.8. Aulis Aarnio: interpretação, justificação e aceitabilidade social .............. 113
23. Interpretação, aplicação e argumentação ..................................................... 116
CAPÍTULO I

Direito, Linguagem E Razão

1. Direito e linguagem

Como objecto ou realidade cultural, como criação espiritual do homem


destinada a conferir efectividade a determinados valores, o Direito compartilha com
a filosofia e com a literatura o exprimir-se em palavras, o ter na linguagem o seu
elemento constitutivo essencial, distinguindo-se, contudo, de uma e de outra pelo
modo ou função com que, nele, a linguagem é usada, pois, enquanto, na primeira, o
seu uso tem uma função descritiva, para dar a conhecer a realidade ou dizer a
verdade do ser, e, na segunda, a linguagem tem uma função expressiva, visando
comunicar emoções, no Direito, como na moral, no mandamento religioso ou nos
usos sociais, a função da linguagem é de carácter prescritivo, destinada a ordenar a
conduta do homem nas suas relações intersubjectivas, pelo que se objectiva em
normas, que constituem uma ordem normativa1.
Do Direito pode dizer-se, por isso, ser todo ele linguagem, já que nada há nele
que possa conceber-se fora da linguagem. Com efeito, em todos os seus momentos,
desde a sua formulação normativa até à sua concretização individualizadora na
decisão judicial, no acto administrativo ou no contrato, desde a sua interpretação até
à argumentação forense, ou no seu tratamento dogmático pela ciência jurídica, o
Direito consiste sempre e necessariamente num discurso linguístico distinto da
linguagem corrente ou da linguagem social e intersubjectiva e dos seus respectivos
códigos linguísticos, discurso esse que se tece, se articula e desenvolve com base
em termos e proposições que exprimem conceitos e princípios próprios, fundados e
constituídos a partir de uma modalidade especifica de experiência histórica e social,
de natureza prático-axiológica, vivificada e actualizada, dinâmica e criadoramente,
pelas ideias, crenças e vivências de cada época e de cada comunidade humana2.

1
Cfr. Norberto Bobbio, Teoria della norma juridica, Turim, 1958, pp. 82-86 e A. Braz Teixeira, Sentido e valor
do Direito, 3ªed., Lisboa, 2006, pp.149-159.
2
Cfr. H. A. Schwarz-Liebermann von Wahlendor, Politigue, Droit, Raison, Paris, 1982, pp.163-172, Arthur
Kaufmann, Filosofia do Direito, trad. port. António Ulisses Cortês, Lisboa, 2004, pp.161-197 e Fritjof Haft,
«Direito e linguagem», em A. Kaufmann e W. Hassemberger, Introdução à Filosofia do Direito e à teoria do
Direito Contemporânea, trad. port. Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira, Lisboa, 2002, pp. 303-326.
2. Papel da razão no Direito

I. Como notou Norberto Bobbio3, a publicação, quase simultânea, de Sobre o


Direito e a Justica, de Alf Ross (1958), da 2ª edição, consideravelmente ampliada e
revista, da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen (1960) e de O conceito de Direito,
de Herbert Hart (1961), representou um novo folgo ou um momentâneo
renascimento do positivismo jurídico, com a sua implícita redução da ontologia do
Direito aos quadros da lógica formal e a sua visão eminentemente imperativista,
voluntarista e legalista do mundo jurídico, movimento secundado pelo próprio Bobbio
(Teoria da norma jurídica, 1958 e Teoria do ordenamento jurídico, 1960) e
prosseguido, nos anos seguintes, pelo inesperado interesse suscitado pela obra e
pelo pensamento de Bentham.

Este facto indisputado não deve, porém, fazer esquecer que, na mesma época,
se assistiu à redescoberta da tópica, por Theodor Viehweg (Tópica e Jurisprudência,
1953), e da retórica clássica, por parte de Ch. Perelman (Tratado da argumentação,
1958) e de Stephen Toulmin (Os usos da argumentação, 1958).
Ao mesmo tempo, através de Emilio Betti (Teoria geral da interpretação, 1955),
Hans Georg Gadamer (Verdade e método, 1960) e Paul Ricœur (Da interpretação,
1965, O conflito das interpretações, 1969, Teoria da interpretação, 1976 e Do texto à
acção, 1986), foi retomado o intento de Schleiermacher de construir uma
hermenêutica geral ou uma teoria geral da hermenêutica, para que Wilhelm Dilthey
havia já concorrido, um século depois daquele filósofo e teólogo alemão e a que M.
Heidegger deu renovador impulso em Ser e Tempo (1927).
Estes três movimentos, praticamente simultâneos e em grande parte
convergentes, nascidos dentro ou a partir da reflexão sobre o Direito – como foi o
caso da tópica jurídica de Viehweg, da nova retórica de Perelman, da lógica deôntica
ou normativa de G. Kalinowski ou da hermenêutica de E. Betti – ou nele quase
imediatamente projectados (p.e. a Teoria da argumentação jurídica, de Robert Alexy,
1978), contribuíram, decisivamente, para um novo e diferente entendimento da
realidade própria do Direito, da natureza da razão jurídica, da especificidade da
lógica normativa ou deôntica, relativamente à lógica apofântica, e das

3
Il positivismo juridico, Turim, 1978, p.1.
2
particularidades do raciocínio prático-argumentativo usado pelos juristas na vida
quotidiana do Direito.
II. Em conjunto e em diversa medida, tais movimentos inovadores ou
restauradores de verdades esquecidas, vieram chamar a atenção para que a vida do
Direito é, antes de mais, isso mesmo, i.e., vida e esta não decorre (nem se
processa) segundo puros processos ou esquemas lógico-dedutivos mas de acordo
com as exigências da própria vida e do concreto agir humano nas suas relações
intersubjectivas, pautando-se, constantemente, por valorações, de base intuitivo-
emocional, visando alcançar certos fins na ordenação da conduta e da convivência,
que devem reger-se ou ordenar-se por critérios de justiça.
Daqui decorre, então, que há lugar a distinguir, no que respeita ao papel da
razão no Direito, entre, por um lado, as estruturas lógico-formais do Direito – quer da
norma jurídica, enquanto se exprime através de uma proposição normativa e postula
determinado dever-ser, quer dos conceitos jurídicos formais, gerais ou universais,
independentes de conteúdos ou critérios valorativos – e, por outro, a aplicação
efectiva do Direito, a sua individualização no caso concreto, a decisão judicial dos
litígios, a aplicação administrativa da lei ou o seu acatamento espontâneo, actos
todos eles de natureza fundamentalmente problemática, aporética ou casuística.
Assim, se, quanto ao primeiro caso considerado, são válidos e adequados os
processos e categorias da lógica formal, deôntica e não já apofântica, pois se trata
de juízos de dever-ser e não de juízos de ser, de realidade ou de verdade, no que se
refere ao segundo não vale este tipo de lógica nem são adequados os processos da
razão dedutiva, porquanto só uma lógica do razoável ou um pensamento tópico ou
tópico-retórico pode conduzir-nos na tarefa de vivificação do direito, de
concretização singular e individualizada dos seus preceitos.

3. As formas da racionalidade jurídica

I. O que acaba de referir-se revela que, no campo da racionalidade jurídica, há


dois essenciais domínios distintos:
a) O da racionalidade lógica, que é o campo da lógica jurídica, de natureza
formal, como toda a lógica, que cuida apenas de categorias e conceitos
formais, independentes de valores ou conteúdos valorativos;
b) O da racionalidade prática, que, por sua vez, engloba três momentos ou três
instâncias diferentes mas complementares e indissociáveis:
3
- o hermenêutico;
- o tópico-retórico;
- o teleológico-dialéctico.

II. Assim, o momento ou a instância hermenêutica procura determinar o sentido


actual e concreto da prescrição normativa respeitante ao caso decidendo, pelo que
implica que interpretação e aplicação devam ser sempre consideradas como tarefas
complementares e indissociáveis. Com efeito, não há uma interpretação genérica e
abstracta da lei, ou do Direito, independente de situações concretas mas sim uma
interpretação que visa a aplicação e parte sempre e é suscitada por um problema
concreto, por um caso singular carecido de solução ou de decisão.
Deste modo, a hermenêutica jurídica não se reduz nem se identifica com um
pensamento meramente interpretativo ou cognitivo das fontes de Direito
consagradas ou admitidas pelo sistema normativo ou pela ordem jurídica vigente,
tendo em vista encontrar os fundamentos e os critérios das decisões, as quais
seriam correctas na medida em que se traduzissem na inserção dos casos a decidir
nesse mesmo sistema normativo, pois:
a) A hermenêutica jurídica visa uma decisão justa e não uma compreensão
correcta, implica mais um juízo estimativo do que um juízo cognitivo4;
b) A hermenêutica jurídica envolve sempre uma mediação ou um momento
valorativo que, partindo do problema ou do caso, exige uma certa
autonomia constitutiva do Direito;
c) A decisão jurídica não se esgota no momento hermenêutico ou na
concretização hermenêutica, com o seu carácter meramente
especificante, pois tem um objectivo normativo e uma natureza
constitutiva, normativa e judicativa;
d) A aplicação das normas gerais e abstractas implica sempre e
necessariamente um processo de individualização e concreção da norma;
o processo de aplicação das normas contém sempre algo de novo, que
não se encontra contido na norma geral, inclui uma essencial dimensão
criadora ou inovadora: a definição do direito, do devido ou do justo do
caso concreto5.

4
L. Recaséns Siches, Nueva filosofia de la interpretación del Derecho, México, 1956, p. 185.
5
Recaséns Siches, ob. cit., p. 142 e A. Castanheira Neves, Metodologia jurídica, Coimbra, 1993, pp. 76-77.
4
III. O segundo momento corresponde ao domínio da teoria da argumentação ou
da razão argumentativa, aquela que visa persuadir mediante razões ou argumentos.
Finalmente, no terceiro momento, efectua-se a concretização material do
Direito, na dialéctica entre o sistema jurídico e o caso concreto.
A circunstância de a aplicação ou concretização material do Direito implicar
sempre uma relação dialéctica entre o sistema jurídico e o caso concreto, retira
grande parte do sentido ao debate que, há quarenta anos, opôs o pensamento
sistemático de Claus-Wilhelm Canaris (Pensamento sistemático e conceito de
sistema na Ciência do Direito, 1968) ao pensamento tópico de Theodor Viewheg, já
que um e outro mutuamente se reclamam e completam, constituindo uma unidade.

IV. Note-se, por outro lado, que o sistema jurídico, enquanto unidade totalizante
normativa, compreende quatro estratos ou níveis distintos, embora entre si
relacionados num todo que os integra, que são, sucessivamente, constituídos:
a) Pelos princípios normativo-jurídicos, positivos e supra-positivos, nos quais
se funda a validade material e formal do Direito;
b) Pelas normas prescritas, que conferem positividade ao Direito;
c) Pela jurisprudência, que dá efectividade ao Direito;
d) Pela doutrina ou dogmática jurídica.

V. Daqui resulta, então, que uma completa teoria da razão jurídica ou da


racionalidade jurídica engloba, necessariamente:
a) A Lógica Jurídica, enquanto teoria (formal) do juízo lógico-normativo e
enquanto tratado dos conceitos jurídico-formais.
b) A Hermenêutica Jurídica.
c) A Retórica Jurídica ou Teoria da Argumentação Jurídica, projecção, no
domínio do Direito, do que, na lógica aristotélica, se chamou raciocínio
dialéctico ou raciocínio prático e que compreende duas partes essenciais:
a teoria da controvérsia e a teoria da prova6.

6
A. Giuliani, "La logique comme théorie de la controverse", Arch. phil. Droit, vol. XI, 1966 e "La logique de la
controverse dans la procedure judiciaire", em Fernando Gil (org.), Controvérsias científicas e filosóficas,
Lisboa, 1990.
5
CAPÍTULO II

A Lógica Jurídica

§1º Conceito e âmbito da Lógica Jurídica

4. Lógica apofântica e lógica normativa ou deôntica

I. No domínio da lógica formal, que trata das categorias ou formas


fundamentais do pensamento e da sua expressão através da linguagem, deve
distinguir-se a chamada lógica apofântica da lógica normativa ou lógica das normas,
também designada, modernamente, por lógica deôntica.
Com efeito, ao passo que a primeira, de que, desde Aristóteles, se ocupou,
quase exclusivamente, o pensamento lógico até há meio século, se refere ao mundo
do ser e é descritiva e predicativa, a segunda reporta-se ao plano de dever-ser e é
relacional e prescritiva.
Enquanto as proposições próprias da lógica apofântica têm como elemento
relacionante o verbo ser e se pautam pelo valor ou princípio da verdade, as da lógica
normativa têm como elemento relacionante o dever-ser e como valor ou princípio
fundamental a validade.
Deste modo, ao passo que, na lógica apofântica, as proposições são
verdadeiras ou falsas, na normativa, elas são válidas ou inválidas. A proposição, que
é sempre uma forma de síntese de dois ou mais conceitos, na lógica apofântica diz-
nos que um conceito convém ou não a outro conceito, está ou não incluído na
extensão desse outro conceito, enquanto que, na lógica deôntica, estatui uma
relação entre dois ou mais conceitos.

II. A distinção entre as duas espécies fundamentais de proposições que a


lógica formal compreende, as apofânticas e as normativas, com base na distinção
entre verdade e validade como atributos essenciais de umas e de outras, admitida
pela generalidade dos autores, foi contestada por G.H. von Wright e por Georges
Kalinowski.
O primeiro considera que a analogia entre aqueles dois valores ou princípios
carece de base, pois a validade não é, no plano das normas, o equivalente da
verdade. Segundo Von Wright, enquanto a verdade é absoluta, a noção de validade

6
é relativa, porquanto uma norma será valida quando o é em relação a outra norma
superior que permite a sua promulgação ou a sua existência e não se refere, sequer,
a validade desta, mas apenas a sua existência7.
Não se afigura, porém, que esta objecção seja decisiva. Se é certo que, no
domínio lógico, o único critério de validade a que pode atender-se é de natureza
formal e se refere, por isso, exclusivamente, à relação de conformidade de qualquer
norma com a forma e o processo de formação estatuído numa norma
hierarquicamente superior, maxime a Constituição, com expressa exclusão de
qualquer critério axiológico-material de validade, pretensamente absoluta, parece
não dever esquecer-se que, no campo das proposições apofânticas, a noção de
verdade relevante é, igualmente, de natureza formal e se refere, tão só, à coerência
lógica das proposições e ao seu respeito pelos princípios lógicos fundamentais,
maxime o da não contradição.
Assim, se as proposições normativas, no plano da mera lógica deôntica, se
reportam apenas a um critério formal de validade, também as apofânticas não têm,
no estrito domínio lógico, uma garantia ontológica de verdade, consistindo em
enunciados cuja verdade é, também, puramente lógico-formal. Deste modo, tanto a
verdade das proposições apofânticas como a validade das normas ou das
proposições normativas terão igual ou equivalente valor ou significado no plano
lógico, sendo, por isso, legítimo atribuir-lhes sentido e lugar paralelo nos dois ramos
fundamentais da lógica formal.

III. Por seu turno, Kalinowski pretende que a distinção entre dois tipos de
proposições baseada na contraposição entre a verdade das apofânticas e a validade
das normativas não pode ser acolhida porque, em seu entender, não só nada exclui,
a priori, que as normas morais e jurídicas possam ser verdadeiras ou falsas, como,
pelo, contrário, tudo aponta para que, efectivamente, sejam verdadeiras ou falsas.
Assim, p.e., segundo o lógico polaco, a proposição "Carlos deve pagar a sua dívida"
só será verdadeira se, de facto, Carlos dever pagar uma dívida 8.
Esta objecção não se afigura, porém, mais pertinente do que a de von Wright,
porquanto a proposição apresentada no exemplo de Kalinoski, apesar de nela figurar
o verbo dever, é uma proposição apofântica e não normativa. Com efeito, trata-se,

7
Norma y acción. Una investigación lógica, trad. cast. Pedro Garcia Ferrero, Madrid, 1970.
8
Le problème de la verité en morale et en droit, Lyon, 1967 e La logique des normes, Paris, 1972.
7
claramente de uma proposição enunciativa e não prescritiva, equivalente a esta
outra: "Carlos é devedor". Uma verdadeira proposição normativa teria, não a
estrutura apontada no exemplo de Kalinowski, mas antes a seguinte: "Se Carlos
assumiu o compromisso de pagar, deve pagar a sua dívida".
Verifica-se, assim, que, do ponto de vista lógico, o elemento decisivo não é a
verdade ou a falsidade desta proposição mas sempre e só a sua validade formal.

5. Lógica normativa e lógica jurídica

A lógica jurídica não se identifica com a lógica normativa, não só porque esta
abrange outros tipos de normas, alem das jurídicas, como as morais e as religiosas,
como também porque apresenta elementos individualizadores no que respeita à
estrutura das proposições normativas, aos tipos de conceitos que emprega ou a que
recorre e ao grau de definição que deles dá, e, ainda, e principalmente, ao decisivo
papel que os elementos valorativos, tópicos e retóricos desempenham no raciocínio
jurídico9.

6. Âmbito da lógica jurídica

I. A importância primordial que, na lógica jurídica, ocupa o raciocínio jurídico,


levou a que se tenha pretendido que aquela mais não deva ser do que uma teoria
das formas do raciocínio jurídico, em especial dos argumentos a que este mais
frequentemente recorre como seus próprios (por analogia, a contrario, por maioria
de razão, por absurdo) já que aqueles se circunscreve a teoria das regras lógico-
formais que se empregam na aplicação do Direito em que consiste a lógica
jurídica10.
II. O âmbito da lógica jurídica apresenta-se, no entanto, mais vasto, já que nele
se integra, de pleno direito, o estudo da estrutura lógica das normas ou das
proposições normativas, sua natureza e suas espécies, bem como dos conceitos
jurídicos11.
Quanto à teoria de argumentação como elemento fundamental do raciocínio
jurídico, dada a sua especificidade e a sua natureza eminentemente tópico-retórica,

9
Cf. G. Kalinowski, "De la spécificité de la logique juridique", Arch. Phil. Droit, vol. XI, 1966.
10
Ulrich Klug, Lógica jurídica (1951), trad. cast. J. C. Gardella, Bogotá, 1990.
11
E. Garcia Maynez, Lógica del juicio jurídico, México, 1955, Lógica del concepto jurídico, id., 1959 e Lógica del
raciocinio jurídico, id.,1964 e G. Kalinowski, Introduction à la logique juridique, Paris, 1965.
8
caberá, talvez, melhor numa teoria da retórica jurídica do que no âmbito da lógica
normativa formal12.
Assim, no plano da lógica jurídica, vamos concentrar a nossa reflexão nas
questões relativas à estrutura lógica da norma jurídica, à natureza do juízo jurídico-
normativo e às espécies que neste é possível surpreender e à teoria do conceito
jurídico, deixando o tratamento da problemática referente ao raciocínio jurídico como
raciocínio prático, de natureza tópico-retórico, e à argumentação jurídica para
quando nos ocuparmos da retórica jurídica.

§ 2º O juízo jurídico-normativo

7. Estrutura lógica da norma jurídica

I. Do ponto de vista lógico, a norma jurídica reveste a natureza de uma


proposição relacional, através da qual se ligam duas proposições simples ou
categóricas, que passam, assim, a constituir uma única proposição.
Sendo uma proposição composta ou relacional13, a norma jurídica estatui
relação entre sujeitos (de direito) e relação entre tipos de acção ou de conduta,
resultantes da verificação de pressupostos fácticos, i.e., diz que se ocorrer um facto
que, por meio do pressuposto a ele referido, entre no mundo jurídico, um sujeito
deve ter ou omitir tal ou qual conduta relativamente a outro sujeito. Diferentemente
do que ocorre nas proposições próprias da lógica apofântica e predicativa, a cópula
ou elemento relacionante não é aqui o verbo ser mas o verbo dever-ser, o qual pode
assumir três modalidades deônticas diferentes: ter a faculdade de, estar obrigado a
ou estar proibido, ou seja, triparte-se por permitido, obrigatório e proibido.
Se esta é a estrutura geral das proposições jurídico-normativas, casos há, no
entanto, em que elas não revestem uma estrutura imperativa, ou prescritiva,
limitando-se a formular definições, assumindo, então, natureza meramente
enunciativa, ou a determinar a perda ou a aquisição de um direito ou a extinção de
um dever (p.e., prescrição ou usucapião), revestindo, por isso então carácter
dispositivo14.

12
Ch. Perelman, Logique juridique. Nouvelle rhétorique, Paris, 1976.
13
Cfr. Jules Lachelier, Études sur Ie syllogisme, Paris, 1907, pp. 39 e segts.
14
Karl Larenz, Metodologia da ciência do Direito, 3ª ed., trad. port. José Lamego, Lisboa, 1997, pp. 355-358.
9
II. Três observações cumpre fazer a este respeito, para afastar dúvidas ou
interpretações deficientes.
Refere-se a primeira ao facto de, frequentemente, na línguagem quotidiana, se
usar a expressão verbal dever-ser para referir a necessidade ou a possibilidade de
um acontecer regido por leis naturais e não por leis normativas. É o que ocorre
quando, p.e., se diz "amanhã deve chover".
A segunda observação destina-se a chamar a atenção para que,
frequentemente, as proposições normativas recorrem aos modos verbais do
indicativo, quer presente quer futuro, ou do imperativo.
Finalmente, a terceira diz respeito ao facto de nem sempre a proposição
normativa se encontrar formulada ou contida integralmente num único artigo da lei,
podendo as proposições simples que a compõem constar de artigos diferentes15.

III. Além do elemento relacional, constituído pelo verbo dever-ser, referido à


conduta como obrigatória, permitida ou proibida, a proposição normativa é formada
por dois outros elementos essenciais, denominados, respectivamente, pressuposto
ou antecedente e consequência.
Sendo os membros da proposição relacional e composta que é a proposição
normativa duas proposições simples, apresentam, contudo, natureza lógica
diferente.
Com efeito, enquanto o primeiro membro da proposição normativa
(pressuposto ou antecedente) é descritivo, constituindo um juízo enunciativo, que
descreve uma possível situação fáctica, seja um facto natural, seja um facto já
integrado no universo jurídico, o segundo membro daquela proposição
(consequência) é prescritivo, i.e., prescreve que a relação se constitui entre sujeitos
(de direito) com a verificação da descrição contida naquele primeiro membro.

IV. Cumpre notar que, se a relação que, no domínio da lógica jurídica, se


estabelece entre os dois membros da proposição normativa é meramente formal, na
proposição concreta do direito positivo reveste já a natureza de nexo
axiologicamente instituído, pois todo o Direito é sempre tecido de valorações e
constantemente as implica e pressupõe.

15
Lourival Vilanova, Lógica jurídica, São Paulo, 1976, pp. 94-95 e 133-114.
10
Daí que, como repetidas vezes se notou já, contra as pretensões logicistas de
algum positivismo jurídico, a lógica seja, só por si, insuficiente e inadequada para a
construção e a aplicação do Direito, pois estas inscrevem-se num domínio que
ultrapassa o estritamente lógico, o dos conteúdos axiológico-materiais das normas,
que estão para além das puras formas lógicas que, analiticamente, nelas se podem
surpreender ou isolar16.

8. Natureza do juízo jurídico-normativo

I. 0 que acaba de ser dito sobre a estrutura e os elementos do juízo jurídico-


normativo abre seguro caminho ao adequado esclarecimento da sua natureza
lógica.
Sendo juízo hipotético, o juízo composto que estabelece uma relação de
dependência entre duas ou mais proposições através de uma partícula conjuntiva,
parece inegável que o juízo jurídico-normativo ou a proposição normativa reveste a
natureza de juízo hipotético, como, entre outros, o haviam já visto Stammler, Kelsen,
Fritz Schreier, Klug ou Garcia Maynez.
Isto, no entanto, não nos esclarece inteiramente sobre a sua natureza lógica,
uma vez que o juízo hipotético é um género que engloba diversas espécies.
Destas, para o nosso intento, importa apenas considerar três: os juízos
disjuntivos, os juízos conjuntivos e os juízos condicionais.
Assim, são disjuntivos os juízos cujos membros, unidos pela conjunção ou,
mutuamente se excluem; são conjuntivos os que negam a concorrência simultânea
de dois predicados no mesmo sujeito, i. e., que os seus membros possam ser
ambos verdadeiros; são condicionais os que estabelecem uma condição
17
(antecedente) da qual depende um condicionado (consequente).

II. Qualquer destas três naturezas tem sido atribuída ao juízo jurídico-
normativo. Com efeito, enquanto Carlos Cossio18, seguido, neste ponto, por Legaz y
Lacambra19 e Irineu Strenger20, considerava que o juízo normativo apresentava

16
Cf. Lourival Vilanova, ob. cit., pp. 166-169.
17
Cf. Garcia Maynez, Logica del juicio juridico, pp. 117 e segts. e A. Miranda Barbosa, Lógica, Coimbra, 1940,
pp. 223 e segts.
18
La teoria egológica del Derecho, pp. 333 e segts.
19
Filosofia del Derecho, pp. 383 e segts.
20
Lógica Jurídica, São Paulo, 1999, p.212.
11
natureza disjuntiva, Jorge Millás21 entendia que ele revestia a natureza de juízo
conjuntivo e K. Engisch22 considerava-o como juízo condicional.
Contudo, nem a primeira nem a segunda destas qualificações lógicas
atribuídas ao juízo normativo parece de aceitar, pelas razões que passam a indicar-
se.

III. No que respeita à tese sustentada pelo fundador da escola egológica de


que a norma jurídica constituiria um juízo disjuntivo, deve lembrar-se que,
implicando, necessariamente, esta espécie de juízos a exclusão de um dos
membros componentes do juízo, não podendo, por isso, ser ambos ao mesmo
tempo, conduziria, inevitavelmente, à destruição da própria norma jurídica, cuja
natureza lógica pretende explicar.
Na verdade, a disjuntiva aqui seria de duas possibilidades de dever, uma das
quais excluiria a outra, pelo que, se for devido o primeiro, não o será o segundo.
Deste modo, ou a norma primária excluiria a secundária, e não haveria sanção para
o incumprimento do dever, ou a norma secundária excluiria a primária, levando a
que a conduta já não fosse devida. O absurdo a que, em ambos os casos, seríamos
conduzidos parece comprovar não haver aqui qualquer juízo disjuntivo, pois o dever-
ser da norma primária e o dever-ser da norma secundária implicam-se mutuamente,
nenhum deles podendo ser sem o outro.

IV. Também a tese que vê na norma jurídica um juízo conjuntivo, demasiado


preocupada em salvar o que considerava positivo e inovador na visão de Cossio, ou
seja, a compreensão do juízo normativo como complexo proposicional ou como
proposição compôsta, sem incorrer no erro daquela, se não afigura adequada.
Entendia o professor chileno que a norma jurídica é um complexo proposicional
de carácter conjuntivo, pois se traduz na coexistência de dois elementos na
proposição normativa, coordenados conjuntivamente. Assim, o juízo normativo
obedeceria ao seguinte esquema: «Se A é, B deve ser e se B não é, dever-ser S». O
evidente artificialismo desta fórmula, claramente dependente do esquema disjuntivo
proposto pelo jurisfilósofo argentino, revela, involuntariamente, que o decisivo, no

21
El problema de las formas de la proposición juridica, Santiago de Chile, 1954.
22
Introdução ao pensamento jurídico (1956), trad. port. João Baptista Machado, Lisboa,1965.
12
juízo normativo, é o seu carácter condicional – bem denunciado nos dois
condicionais (se) nela usados – e não a sua pretensa natureza conjuntiva.
Daí concluirmos que, do ponto de vista lógico, a norma jurídica constitui um
juízo hipotético condicional e não um juízo disjuntivo ou conjuntivo.

9. Classificações dos juízos normativos

I. Os juízos podem classificar-se com base nas categorias de quantidade,


qualidade, modalidade e relação. Esta última categoria diz respeito à natureza do
próprio juízo normativo, assunto de que acabamos de ocupar-nos no número
precedente.

II. Assim, considerados do ponto de vista da qualidade, os juízos enunciativos


podem ser universais ou particulares.
Pertencem à primeira categoria aqueles em que o predicado se afirma ou nega
relativamente a todos os objectos compreendidos na classe designada pelo
conceito-sujeito; nos casos em que o predicado não é referido à totalidade mas
apenas a uma parte dos objectos designados pelo conceito-sujeito, o juízo diz-se
particular23.
Quando consideradas do ponto de vista da quantidade, as proposições
normativas dividem-se em genéricas e individualizadas. Cabem no primeiro grupo as
que obrigam ou concedem faculdades a todos os sujeitos compreendidos na classe
designada pelo conceito-sujeito; integram-se no segundo as que obrigam ou
concedem faculdades a certos membros individualmente determinados daquela
classe.24

III. Do ponto de vista da qualidade, as proposições normativas podem ser


positivas ou negativas. Dizem-se positivas as que permitem certa conduta, que tanto
pode consistir numa acção como numa omissão; por seu turno, são negativas as
que proíbem certo comportamento (acção ou omissão).
Como adverte Garcia Maynez25, o que determina a qualidade de uma norma
não é a circunstância de prescrever uma acção ou proibir uma acção. Com efeito, as

23
A. Miranda Barbosa, ob. cit., p. 214 e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 99 e segts.
24
Cf. Garcia Maynez, ob. cit., p. 107.
25
Idem, p. 89.
13
que prescrevem a omissão da conduta juridicamente proibida são positivas, pois a
omissão dessa conduta é, simultaneamente, obrigatória e lícita. Assim, o que
condiciona a qualidade, positiva ou negativa, das normas jurídicas é o facto de
permitirem ou proibirem uma acção ou uma omissão e não o de prescreverem
acções ou imporem omissões. Daqui decorre, então, que o objecto das normas
positivas é uma conduta jurídicamente lícita e o das negativas é um proceder
juridicamente ilícito.

IV. No que diz respeito ao modo ou à modalidade, as proporsições enunciativas


podem consistir numa afirmação do ser, de uma possibilidade do ser ou da
necessidade do ser. Deste modo, conforme afirme o ser ou um destes seus modos
de ser, o juízo enunciativo será, respectivamente, assertório, problemático ou
apodíctico.
Já quanto aos juízos normativos, porque sempre estabelecem
condicionalmente um dever ou concedem, também condicionalmente, um direito,
são sempre juízos apodícticos, uma vez que a permissão ou a obrigação é sempre
de índole necessária26.

V. Sintetizando o que antecede, teremos então:

genéricos
Quanto à quantidade
individualizados

positivos
Quanto à qualidade
Juízos normativos negativos

Quanto à modalidade – apodíctivos

Quanto à relação – hipotéticos condicionais

26
Cf. A. Miranda Barbosa, ob. cit., pp. 205 e segts e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 158 e segts.
14
§ 3º. Os conceitos jurídicos

10. Noção e especificidade dos conceitos jurídicos

I. Acabamos de ver que a norma jurídica, enquanto juízo ou proposição lógico-


normativa, envolve sempre uma relação entre conceitos, pelo que importa
considerar agora a teoria do conceito jurídico naquilo que apresenta de específico e
próprio.
Do ponto de vista lógico, o conceito é um resultado da actividade pura do
pensamento, é uma apreensão do objecto pela consciência. Todo o conceito se
reporta a um objecto, é sempre conceito de um objecto, com o qual, no entanto, se
não identifica nem confunde.
Sendo uma apreensão essencial de um objecto pela consciência, o conceito é
um produto esquemático da abstracção, que apreende, sinteticamente, certas notas
singulares no seu conjunto, imutáveis nos seus arranjos, que distinguem um
determinado objecto e o individualizam relativamente a todos os outros.
Referindo-se embora sempre a um objecto, sem, contudo, dele afirmar ou
negar alguma coisa, o conceito não se confunde nem coincide com ele, como é
também distinto da palavra ou do termo que o diz, que não é mais do que a sua
expressão convencional e simbólica, do mesmo modo que se distingue da
representação mental do objecto e da sua definição, a qual constitui sempre um
juízo e não um conceito.
Enquanto representação intelectual e abstracta de um objecto, o conceito
distingue-se ou opõe-se à percepção ou intuição e, enquanto intelectual, é distinto
de toda a representação sensível.
Quando considerado subjectivamente, o conceito é a apreensão simples, é o
pensamento do objecto, ao passo que, considerado objectivamente, é um modo de
ser ideal, representativo de um objecto ou o objecto pensado.

II. É ainda habitual distinguir, no objecto do conceito, o objecto material e o


objecto formal, sendo o primeiro o objecto na sua totalidade e integridade e o
segundo a sua consideração tendo apenas em conta algum, ou alguns dos seus
elementos atributos ou notas27.

27
Cf. A. Miranda Barbosa, ob.cit., pp. 69-82 e Manuel Barbosa da Costa Freitas, O Ser e os Seres. Itinerários
filosóficos, vol. II, Lisboa, 2004, pp. 11-13.
15
III. Em qualquer conceito é possível encontrar dois atributos essenciais, a
determinação do seu conteúdo, cujos elementos se reportam ao seu objecto formal,
e a conexão com outros conceitos.
Para além destas características genéricas, comuns a todos os conceitos, os
conceitos jurídicos têm ainda como atributos específicos, resultantes de o Direito ser
um objecto ou uma realidade cultural de natureza normativa, o terem um
fundamento normativo e o possuírem uma referência axiológica, características que
partilham com as restantes ordens normativas, cumprindo não esquecer, no entanto,
que a diversa estrutura lógica das normas jurídicas condiciona e determina os
conceitos, tanto normativos como dogmáticos com que lida o Direito28.
Como notou Garcia Maynez, diversamente do que acontece nas restantes
ciências culturais, cujos conceitos são individualizadores ou ideográficos29, os
conceitos jurídicos têm carácter genérico, visto referirem-se sempre a todos os
sujeitos de uma classe, mesmo quando fazem referência a um único objecto, pois aí
não atendem à sua irredutível individualidade.
Também o precedente, no Direito anglo-americano, tem o sentido de uma
aplicação de princípios gerais, válidos para todas as situações do mesmo tipo e não
de consideração individualizada e única de um caso ou de uma situação singular.
Assim, os conceitos jurídicos são sempre conceitos de classe, visto estarem
sempre referidos a determinadas classes ou a objectos que delas fazem parte ou
nelas se integram.
Estas características próprias do Direito fazem que o seu método de
conceptualização se distinga do das restantes ciências culturais, a cujo universo
epistemológico pertence, para vir a coincidir com o das ciências naturais, mas com
uma dupla e significativa diferença, que decorre dos atributos específicos dos
conceitos jurídicos, i.e, o seu fundamento normativo e a sua referencia axiológica30.

IV. Cabe ainda ter em conta que as definições dos conceitos jurídicos tanto
podem ser explícitas ou directamente normativas como implícitas ou dogmáticas,

28
Garcia Maynez, Lógica del concepto jurídico, pp.79-87.
29
H. Rickert, Ciencia cultural y ciencia natural, trad. cast. M. Garcia Morente, México, 1943 e E. Cassirer, Las
ciencias de la cultura, id., trad.cast. Wenceslao Roces, 1951.
30
Garcia Maynez, ob.cit., pp. 48-59.
16
quando o conteúdo dos conceitos é determinado de acordo ou a partir de um
conjunto de axiomas que lhe são aplicáveis31.

11. Classificações dos conceitos jurídicos

I. Tal como os juízos normativos, também os conceitos jurídicos podem


classificar-se com base nas categorias de qualidade, quantidade, relação e
extensão.

II. Considerados do ponto de vista da qualidade ou da sua natureza, os


conceitos jurídicos podem ser conceitos lógico-jurídicos ou conceitos jurídicos puros,
e conceitos jurídicos impuros ou empíricos.
Os primeiros são os conceitos jurídicos fundamentais, comuns a toda e
qualquer ordem jurídica e condição de toda a experiencia jurídica e, nessa medida,
conceitos de certo modo a priori, enquanto os segundos apresentam uma dimensão
ou uma origem empírica, são espácio-temporalmente determinados, têm uma
essencial componente histórica. Embora dela próxima, esta classificação não deve
confundir-se com a que distingue os conceitos jurídicos próprios ou específicos do
Direito dos conceitos juridicamente relevantes, i.e., aqueles que o Direito recebe da
linguagem comum ou corrente e a que atribui significados ou valor jurídico.

III. Por sua vez atendendo à quantidade, os conceitos jurídicos podem ser
singulares, plurais ou universais.
Dizem-se singulares os conceitos jurídicos referidos a um unico objecto, nem
genérico nem especifico, ainda que tal objecto seja colectivo (p.e., sindicato dos
metalúrgicos).
Por seu turno, são plurais os conceitos jurídicos que designam ou se referem a
vários objectos quando a sua reunião é meramente de carácter numérico e
independente de considerações qualitativas, o que os torna distintos dos conceitos
genéricos e específicos, já que estes são conceitos referidos a classes, envolvendo,
por isso, sempre uma consideração qualitativa, a de pertença a uma classe
determinada.
Por último, são universais os conceitos jurídicos que abrangem todos os
membros de uma classe, podendo, consequentemente ser genéricos ou específicos.

31
Idem, pp. 86-87.
17
IV. Sob o ponto de vista da relação em que podem encontrarse entre si, os
conceitos jurídicos são:
a) dependentes ou independentes;
b) compatíveis ou incompatíveis;
c) correlativos;
d) supra ordenados ou subordinados.

São exemplo de conceito independente o de "objecto do dever jurídico" e de


conceito dependente o de "pagar a coisa ao vendedor", pois se refere a um dever
que depende ou decorre de um contrato de compra e venda. De igual modo, são
correlativos os conceitos reciprocamente dependentes, como os de "credor" e
"devedor" ou de "sujeito activo" e "sujeito passivo". Por último, são relações de
supra-ordenação e de subordinação as que existem entre conceitos referidos a
classes e a membros das mesmas classes, como a que existe, p.e, entre os
conceitos genéricos e os conceitos específicos ou entre os conceitos de "contrato" e
o de "contrato de compra e venda"32.

V. Tendo em conta a sua extensão, os conceitos jurídicos podem ser


determinados ou indeterminados. Dizem-se indeterminados os conceitos jurídicos
cuja extensão é, em larga medida, incerta, sendo determinados os restantes,
embora, como salientou Engisch, sejam muito raros em Direito conceitos
absolutamente determinados33.

VI. Em síntese, são as seguintes as classificações dos conceitos jurídicos:

lógico-jurídicos
Quanto à qualidade
empíricos ou impuros

32
Cf. Miranda Barbosa, ob. cit., pp. 127-142 e Garcia Maynez, ob. cit., pp. 88.137.
33
Ob. cit., p. 137.
18
singulares

Quanto à quantidade plurais


genéricos
universais
específicos

dependentes ou independentes
compatíveis ou incompatíveis
Quanto à relação correlativos
supraordenados ou subordinados

determinados
Quanto à extensão
Indeterminados

12. Conceitos jurídicos fundamentais

I. Os conceitos não têm todos a mesma relevância e o mesmo significado no


domínio jurídico, pois, ao lado de conceitos próprios de certos ramos de Direito ou
de determinados institutos, há conceitos que se apresentam como fundamentais ou
essenciais em qualquer ordem jurídica, que assenta ou se constitui com base neles.
O saber quais sejam os conceitos jurídicos deste segundo tipo, ou quais os
conceitos jurídicos verdadeiramente fundamentais é problema que está longe de ter
obtido respostas uniformes ou concordantes, por parte dos jurisfilósofos que se
detiveram a reflectir sobre esta questão, desde que John Austin (1790-1859), em
meados do século XIX, chamou a atenção para a existência de determinados
conceitos, noções ou distinções que constituem elementos necessários de qualquer
sistema de direito de uma comunidade civilizada.

II. Pensava o jurista inglês que a ciência jurídica (jurisprudence) tinha por
objecto o direito positivo, nos seus diversos ramos, entendendo por direito positivo o

19
estabelecido ou positum numa comunidade politica independente pela vontade
expressa ou tácita do respectivo suberano ou governo supremo.
Notava Austin que, se é certo que cada sistema jurídico ou cada ordem jurídica
positiva apresenta particularidades e diferenças específicas, não deixa de
compartilhar com as demais um conjunto de princípios, noções ou distinções, que
são comuns a todas elas.
Para o jurisfilósofo britânico, entre tais conceitos ou noções fundamentais,
necessários ou comuns aos diversos ordenamentos jurídicos figurariam os
seguintes:
a) As noções de dever, direito, liberdade, delito, pena, ressarcimento, bem,
como o de Direito, soberania e sociedade política independente;
b) Os direitos que, como a propriedade ou domínio, podem fazer-se valer
contra todos e aqueles que só podem tornar-se efectivos contra
determinadas pessoas, como os decorrentes de contrato;
c) A distinção entre obrigações que nascem de contratos, as que resultam
de actos ilícitos e as que derivam de actos que não revestem a natureza
de contrato nem de acto ilícito (quasi ex contactu);
d) A distinção entre actos ilícitos civis e penais34.

Este elenco de noções ou conceitos jurídicos fundamentais apresentado por


John Austin revela ou denuncia a concepção positivista do Direito do seu autor, ao
mesmo tempo que apresenta um carácter, de certo modo, assistemático, visto não
obedecer a qualquer critério lógico interno, que ordene os conceitos ou as noções
que enumera de acordo com o seu significado no mundo jurídico.
Com efeito, uma ordem valorativa de tais conceitos, que atendesse à sua maior
ou menor relevância no âmbito do Direito, não poderia deixar de colocar à cabeça
desta relação de noções ou conceitos jurídicos fundamentais os de soberania e de
liberdade que constituem verdadeiros pressupostos essenciais de todo o direito
positivo, já que sem liberdade nenhum dever-ser é concebível e sem um poder
soberano que crie o direito positivo não pode falar-se em ordenamento jurídico.
Por outro lado, como foi já notado por diversos autores, alguns dos conceitos
indicados por Austin são meramente históricos, como a divisão tripartida das fontes
das obrigações (ex contractu, ex delictu e ex quasi contractu) ou a contraposição

34
On the uses of the study of jurisprudence, 1861, cap. I.
20
entre propriedade e domínio, cabendo ainda ter em conta que o jurista inglês, cujo
mérito pioneiro é inegável, não distinguiu, como convinha, entre os elementos
formais e os elementos materiais dos conceitos jurídicos35.

III. Para Rudolf Stammler (1856-1938), os conceitos jurídicos fundamentais


constituem condições de ordenação permanente das normas e instituições jurídicas,
possibilitadas pelo conceito de Direito, o qual, para este autor, deveria definir-se
como "vontade vinculativa, autárquica e inviolável." Tais conceitos seriam formas
puras das noções jurídicas cujo conhecimento permitiria conferir valor científico à
ciência do Direito.
De acordo com o pensamento do jurisfilósofo neokantiano, seria dos quatro
elementos contidos no conceito de Direito – vontade, vinculação, autarquia e
inviolabilidade – que decorreriam os conceitos jurídicos fundamentais.
Assim, da vontade ou do querer proviriam os conceitos de sujeito de Direito,
entendido como noção de um ser concebido como fim em si segundo uma
determinada ordem jurídica, e de objecto de Direito, considerado, em concreto,
como meio para determinado fim.
Por sua vez, da vinculação decorreriam os conceitos de fundamento de Direito,
concebido como noção de determinação de várias vontades como meios entre si, e
o de relação jurídica, entendido como o facto de aquelas vontades se acharem
determinadas.
Em terceiro lugar, da autarquia proviriam os conceitos de soberania jurídica,
como noção de uma vontade jurídica que contém em si o fim da sua própria
determinação, e de sujeição jurídica ou articulação harmónica de varias vontades
juridicamente vinculadas como meios ao serviço de uma vontade vinculativa.
Finalmente, da inviolabilidade resultariam os conceitos de júridicidade ou
legalidade, vista como conformação das vontades vinculadas a vontade jurídica que
as vincula e de anti-juridicidade ou ilegalidade, compreendida como contradição
entre aquelas vontades e esta.
Advertia Stammler não serem, contudo, estes os únicos conceitos
fundamentais existentes para ordenar o sistema jurídico, pois, ao lado deles, há
outras formas conceituais, puras que servem, igualmente, para determinar e reduzir
à unidade os problemas jurídicos.

35
Cf. Garcia Maynez, ob. cit., pp. 152-153.
21
Deste modo, além daqueles conceitos jurídicos fundamentais primários,
existem conceitos jurídicos fundamentais derivados, que resultam da combinação
daqueles entre si. Estes últimos conceitos, sintéticos, como os primários, constituem
as primeiras modalidades do nosso pensar jurídicos, e são simples formas
metódicas de ordenação dos mais diversos problemas jurídicos, susceptíveis de se
decompor nos conceitos fundamentais primários, de que são a síntese.
Assim, da combinação do conceito de fundamento do Direito com o de sujeito
de direito decorre o de vínculo jurídico, e da sua combinação com o de objecto do
direito provém o de disposição jurídica.
Por sua vez, da combinação do conceito da relação jurídica com o de sujeito de
direito resulta o de prestação jurídica, enquanto da sua combinação com o de
objecto de direito decorre o conceito de exclusão jurídica.
De igual modo, o conceito de soberania jurídica, quando combinado com os de
sujeito e objecto do direito origina, respectivamente, os de proclamação do direito e
de comunidade jurídica.
Já o conceito de sujeição ao direito, quando combinado com o de sujeito de
direito dá lugar ao de aplicação do direito e com o de objecto do direito origina o de
participação jurídica.
Por seu turno, os conceitos de juridicidade e anti-juridicidade, se combinados
com os de sujeito e de objecto de direito, dão origem, respectivamente, aos de
faculdade e de dever jurídicos e aos de culpa e dano jurídicos.
Quanto à combinação do conceito de soberania jurídica com os de fundamento
do direito e de relação jurídica, dará lugar aos conceitos de originalidade jurídica e
colectividade jurídica, ao mesmo tempo que, combinando o conceito de sujeição ao
direito com aqueles outros dois teremos os conceitos de derivatividade jurídica e de
singularidade jurídica.
No que respeita à combinação dos conceitos de juridicidade e anti-juridicidade
com os de fundamento do direito e de relação jurídica, dela resultam,
respectivamente, os conceitos de validade jurídica e negação do direito e os de
aquisição e perda de direitos.
Finalmente, dos conceitos de juridicidade e anti-juridicidade, combinados com
os de soberania jurídica e de sujeito de direito, provêm, respectivamente, os de
preceito jurídico e de mandato jurídico e os de proibição jurídica e de rebeldia
jurídica.
22
Pensava, ainda, Rudolf Stammler que os conceitos jurídicos fundamentais,
tanto primários como derivados, exprimem-se formas conceptuais puras, que
intervêm como princípios de ordenação unitária de toda a realidade jurídica,
cumprindo não esquecer, no entanto, que o Direito se desenvolve, incessantemente,
ao longo do tempo e se revela como algo constituído por uma multiplicidade de
dados concretos. Ora, segundo o pensador germânico, a articulação, no tempo, de
qualquer ordem jurídica e a comparação de diferentes ordens jurídicas entre si
verifica-se de um modo sempre idêntico, sem o qual tudo seria desordem e
confusão, o que provaria haver conceitos jurídicos fundamentais que servem de
elementos de conexão nas duas direcções indicadas, temporal e lógica.
Assim, de acordo com o pensamento stammleriano, seriam os seguintes pares
de conceitos que desempenhavam o papel de elemento de conexão temporal em
qualquer ordem jurídica:
 começo jurídico – continuação jurídica
 permanência jurídica – alteração jurídica
 juridicamente definitivo – juridicamente transitório
 dilação jurídica – resolução jurídica

Por seu turno, os elementos de conexão lógica dos conceitos jurídicos seriam
os seguintes quatro pares de conceitos jurídicos fundamentais:
 simplicidade jurídica – síntese jurídica
 estabilidade jurídica – condicionalidade jurídica
 procedência jurídica – consequência jurídica
 coincidência jurídica – divergência jurídica36

Para Stammler, os conceitos jurídicos fundamentais compreenderiam, pois,


conceitos primários, conceitos derivados e conceitos de conexão, concepção que
representa um notável avanço teórico relativamente a proposta pioneira de Austin,
tanto pelo maior rigor lógico como pela mais ampla compreensão da natureza e
formas deste tipo de conceitos jurídicos.
IV. Enquanto o pensamento do jurisfilósofo inglês se desenvolveu no âmbito do
positivismo utilitarista e o do pensador alemão representou a mais significativa

36
Tratado de filosofia del Derecho, trad. cast. Wenceslao Roces, Madrid, 1930, pp. 289-297 e Economia y
Derecho segun la concepción materialista de la História, id., 1929, pp. 460-466.
23
expressão filosófico-jurídica da escola neokantiana de Marburgo, foi a partir da
fenomenologia que Adolf Reinach (1883-1917)37 e Fritz Schreier38 consideraram o
problema dos conceitos jurídicos fundamentais, mas com assinaláveis diferenças
entre si, pois o primeiro buscou determinar o a priori material de alguns institutos de
direito civil e o segundo teve em mente surpreender o a priori formal do Direito.
Entendia Reinach que os conceitos e as noções que, em geral, se consideram
especificamente jurídicos possuem um ser próprio e autónomo, de natureza a priori,
independente do direito positivo, que os encontra e utiliza mas não os cria nem
produz no seu desenvolvimento, para o qual são decisivas as concepções de cada
época e, em grau ainda mais significativo, as relações e as necessidades
económicas, em constante mutação.
Considerava ainda o jurisfilósofo alemão ser necessário distinguir entre os
conceitos jurídicos, formais e a priori e os actos sociais com eficácia jurídica
imediata, como a promessa ou a transmissão de direitos ou de bens.
Assim, para ele, os conceitos jurídicos fundamentais do direito civil (a que
limitou a sua análise) seriam o de poder jurídico e o de pessoa, já que só eles
permitem tomar inteligível a origem dos direitos absolutos e das obrigações
absolutas e a sua transmissão de pessoa para pessoa.
Com efeito, segundo o malogrado professor da Universidade de Göttingen, é
impossível que actos sociais como os de conceder, transmitir e análogos funcionem
como fontes últimas do poder, visto que eles, na medida em que possuem um efeito
jurídico imediato, pressupõem sempre um poder jurídico, cuja raiz última se encontra
na pessoa como tal, constituindo um seu poder jurídico fundamental39.
V. Por sua vez, o jurisfilósofo austríaco Fritz Schreier procurou construir uma
teoria jurídica pura com base na fenomenologia, compartilhando com Reinach a
ideia de que o sistema formal de Direito é algo de atemporal e inespacial, embora
não deixe de criticar o seu predecessor por considerar que ele não soube distinguir,
convenientemente, a investigação das realidades dadas ao Direito e a do próprio
Direito. Na verdade, para Schreier, o acto jurídico, noção de que parte a sua
teorização, é aquele em que o Direito se constitui, o acto referido intencionalmente
ao Direito e no qual concebemos o Direito, que nele nos é dado.

37
Los fundamentos aprioristicos del derecho civil (1913), trad. cast. Jose Luis A'lvares, Barcelona, 1934.
38
Conceptos y formas fundamentales del Derecho. Esbozo de una teoria formal del Derecho y del Estado
sobre base fenomenológica (1924), trad. cast. E. Garcia Maynez, Buenos Aires, 1942.
39
Ob. cit., pp. 21-29, 118 e 140-141.
24
De acordo com a teoria fenomenológica do Direito do mestre vienense, o
conceito jurídico fundamental e decisivo é o de facto jurídico, de que são espécies,
tanto o dever jurídico e o direito subjectivo como a prestação e a sanção.
Para Schreier, o facto jurídico deveria compreender-se como o pressuposto ou
o aspecto condicionante do preceito jurídico ou como o facto juridicamente
relevante, o que lhe permitia introduzir aqui algumas distinções, como as que
separam os factos jurídicos independentes ou totais dos dependentes ou parciais,
ou os factos jurídicos compatíveis dos incompatíveis.
Assim, seriam factos jurídicos dependentes aqueles que só podem existir como
parte de uma totalidade e independentes ou totais os que existem por si. Daqui
decorre, então, que determinados factos jurídicos podem fundir-se num todo
superior que os compreenda, enquanto outros não têm essa possibilidade, ou seja,
há factos jurídicos que são compatíveis entre si, enquanto outros se apresentam
como incompatíveis, por se destruírem reciprocamente, o que impede que sejam
dependentes ou venham a constituir parte de um todo, notando, contudo, o
jurisfilósofo austríaco que tanto a dependência como a incompatibilidade poderiam
ser absolutas ou meramente relativas40.

VI. Na sua teoria dos conceitos jurídicos fundamentais, Eduardo Garcia


Maynez (1908-1993) distingue duas categorias, que denomina, respectivamente,
conceitos lógico-jurídicos e conceitos ontológico-jurídicos.
Relativamente ao primeiro grupo, pensava o jurisfilósofo mexicano, como
Stammler, que os conceitos que compreendia seriam os que se encontravam
contidos no próprio conceito de Direito, que, segundo ele, deveria definir-se com a
«regulamentação bilateral, externa e coercível do comportamento humano»41.
Assim sendo, os primeiros conceitos lógico-jurídicos fundamentais não
poderiam deixar de ser os de norma jurídica atributiva e de norma jurídica
prescritiva, uma vez que a regulamentação jurídica se consubstancia na conexão
necessária e recíproca de uma norma que obriga e outra que faculta. Esclarecia,
ainda, Garcia Maynez que a primeira daquelas normas é a que concede, a um ou
mais sujeitos, um direito cujo exercício está garantido pela imposição, a outro ou a
outros, de um dever de observar a conduta que possibilita o exercício e cabal

40
Ob. cit., pp. 145-254.
41
Lógica del concepto jurídico, p.158.
25
satisfação das faculdades do pretensor, enquanto a segunda é a que impõe, a uma
ou mais pessoas, o dever de observar a conduta requerida para o exercício e cabal
satisfação do direito que a correspondente norma atributiva concede a outro, ou
outros, sujeitos.
Por sua vez, no conceito de regulamentação bilateral estão implicados os
conceitos de pressuposto jurídico, entendido como a hipótese de cuja realização
depende o nascimento de consequências jurídicas (faculdades ou deveres) e de
disposição, i.e, da parte da norma que indica que direitos ou deveres estão
condicionados pela verificação do pressuposto.
Por outro lado, porque toda a norma jurídica, tanto atributiva como prescritiva, é
composta por três elementos lógicos, o sujeito, a cópula e o predicado, também
estes revestem a natureza de conceitos lógico-jurídicos fundamentais.
Deste modo, e tendo em conta que, do ponto de vista lógico, as normas são
juízos relacionais de carácter normativo, o conceito sujeito da norma atributiva é o
que indica o titular do direito atribuído pela norma, enquanto o da norma prescritiva é
o referido ao sujeito passível do dever que o preceito impõe.
Relativamente à cópula, notava o jurisfilósofo mexicano que a atributiva seria o
elemento da regulamentação bilateral cuja função é conferir um direito e a prescritiva
é aquela cuja função é impor um dever jurídico. Quanto ao predicado relacional da
norma atributiva, é o elemento da disposição que determina o objecto do direito e a
pessoa ou pessoas passíveis do correlativo dever, ao passo que o da norma
prescritiva é o elemento da disposição que determina o objecto do dever e indica o
titular do direito correlativo.
De acordo com o pensamento de Garcia Maynez, os conceitos ontológico-
jurídicos fundamentais são o correlato objectivo dos lógico-jurídicos. Assim, os
correlatos de norma atributiva e de norma prescritiva são os conceitos de relação
condicionante do direito e de relação condicionante do dever, tal como o correlato do
pressuposto, no plano da conduta, é o facto jurídico e o da disposição, são relações
jurídicas entre duas ou mais pessoas, o vínculo que as normas estabelecem entre o
sujeito do direito e o sujeito do dever e que, consoante se referiam a disposição
atributiva ou a prescritiva, o autor mexicano designa por relação jurídica directa ou
relação jurídica conversa. Por outro lado, o correlato objectivo do conceito-sujeito, no
plano da conduta juridicamente regulada é o sujeito de direito, como titular do direito
ou o passível de dever que a norma concede ou impõe, enquanto os correlatos de
26
cópula prescritiva e atributiva são, respectivamente, conceitos de dever jurídico e de
direito subjectivo e os correlatos do predicado das normas atributiva e prescritiva
são, respectivamente, o objecto do direito e o objecto do dever, os quais são sempre
uma forma de conduta42.

VII. O jurisfilósofo espanhol Luís Recaséns Siches (1903-1977) distinguia, no


conjunto dos conceitos jurídicos, dois grandes grupos:
a) Os conceitos a priori, universais, constantes e necessários, essências
intrinsecamente válidas de carácter formal, que constituem a trama de
toda a realidade jurídica e, nessa medida, são condição de possibilidade
de todo o conhecimento jurídico, apresentando-se, por isso, como
conceitos jurídicos fundamentais;
b) Os conceitos empíricos, contingentes, históricos, de instituições de direito
positivo, i.e., conceitos de realidades jurídicas criadas pelos homens em
determinado tempo e lugar, figuras jurídicas concretas, surgidas numa
determinada circunstância social, com destino a essa mesma
circunstância.

Segundo o pensador espanhol, incluir-se-iam na primeira categoria de


conceitos jurídicos, entre outros, os de norma jurídica, dever jurídico, direito
subjectivo e personalidade jurídica, ao mesmo tempo que seriam exemplo da
segunda os conceitos de hipoteca, enfiteuse, letra de câmbio, pena de prisão,
imposto sobre o rendimento ou subsídio de desemprego43.

VIII. Mais recentemente, Arthur Kaufmann (1923-2001) distinguiu entre o que


denominava conceitos jurídicos impróprios ou conceitos juridicamente relevantes,
aqueles que o legislador usa e vai buscar a linguagem comum ou corrente, e
conceitos jurídicos fundamentais, que, diversamente daqueles, não provêm da
realidade empírica exterior, mas são dados apriorística e necessariamente com o

42
Ob. cit., pp. 157-187.
43
Experiencia juridica, naturaleza de la cosa y lógica "razonable", México, 1971, p. 502. Ver, igualmente,
Tratado general de Filosofa del Derecho, Mexico, 1959, caps. 9-11 e Introducción al estudio del Derecho, id.,
1970, parte V. Benito de Castro Cid, La filosofia jurídica de Luis Recasens Siches, Salamanca, 1974, pp.139-
151, inclui, ainda, entre os conceitos jurídicos fun-damentais, segundo este autor, os de ordem jurídica
vigente e de Estado, o que não se afigura correcto, designadamente à luz da primeira e da terceira obras de
Recasens Siches atrás citadas.
27
Direito, constituindo, por isso conceitos jurídicos próprios ou autênticos ou categorias
jurídicas.
Entendia o jurisfilósofo alemão ser grande, embora não ilimitado, o número dos
conceitos jurídicos fundamentais, do mesmo passo que reconhecia haver diferentes
possibilidades para a sua sistematização, nenhumas das quais poderia pretender-se
definitiva.
Assim, na sistematização que propunha, considerava apenas cinco conceitos
jurídicos fundamentais: o de norma jurídica, proposição ou regra jurídica, o de fontes
do Direito, o de facto jurídico, o de relação jurídica e o de sujeitos jurídicos44, que só
parcialmente vem a coincidir com a avançada por Recasens Siches, à qual há a
censurar a referência a personalidade jurídica em vez de mencionar os sujeitos
jurídicos, noção dotada de maior universalidade do que aquela, directamente
dependente do conceito de pessoa, específico da tradição especulativa ocidental, de
matriz judaico-cristã.

IX. Esta diversidade de concepções sobre quais sejam os conceitos jurídicos


fundamentais decorre, em primeira instancia, de igual diversidade de pontos de
partida filosófico-jurídicos e, depois, da própria noção de conceito jurídico
fundamental, que está longe de se apresentar como unívoca, como parece resultar
com suficiente clareza de tudo o que antecede.
Assim, desde os que reduzem aquela noção a um único conceito, como
Schreier, ou a dois conceitos de certo modo complementares, como Reinach, até
aos que apresentam uma lista mais ou menos extensa ou complexa de conceitos
jurídicos fundamentais, como Stammler ou Garcia Maynez, grandes diferenças se
registam entre os autores que desta matéria se ocuparam e de que a exposição
anterior se pretende mais exemplificativa do que, propriamente, exaustiva.
Do nosso ponto de vista e da noção de que partimos, afigura-se-nos que
revestem a natureza de verdadeiramente fundamentais, por necessariamente
comuns a toda e qualquer ordem jurídica e por não constituírem modalidade ou
espécie de qualquer outro conceito, os seguintes: norma jurídica, sujeito jurídico,
acto jurídico, relação jurídica, dever jurídico, direito subjectivo, responsabilidade,
sanção e propriedade.

44
Filosofia do Direito, trad. cit., pp. 142-158.
28
Diversamente do que fazem alguns dos autores atrás considerados, pensamos
não dever incluir aqui conceitos como os de personalidade jurídica, demasiado
vinculado à tradição jurídica ocidental, ou os de contrato, acto ilícito ou crime, dado
constituírem conceitos derivados do conceito de acto jurídico e, nessa medida não
serem conceitos verdadeiramente primeiros ou fundamentais. De igual modo, não se
nos afigura revestir a natureza de fundamental o conceito de Estado, visto havermos
recusado a noção de estadualidade do Direito defendida pelo positivismo jurídico e
sustentado não ser o Estado o único produtor de normas jurídicas, nem constituir a
lei a única fonte de Direito45.

CAPÍTULO III

A Hermenêutica Jurídica

§ 1º A hermenêutica

13. A hermenêutica como primeiro momento da racionalidade jurídica prática.

Como se notou acima, a racionalidade lógica, que cuida apenas de categorias


e conceitos formais, independentemente de valores ou conteúdos valorativos, não
esgota o domínio da racionalidade jurídica, pois o Direito, enquanto ordem
normativa, tem uma essencial dimensão prática, destina-se a regular, ordenar ou
rectificar a conduta social, de acordo com determinados valores que pretende tornar
efectivos na vida humana intersubjectiva.
Assim, toda a norma jurídica, para além da sua estrutura lógico-formal, tem
sempre um determinado conteúdo, que envolve e implica, necessariamente, conduta
e valor.
Deste modo, ao lado da lógica jurídica, que corresponde ao momento ou
aspecto formal da racionalidade jurídica, depara-se-nos o amplo domínio da
racionalidade jurídica prática, que é o que diz respeito à aplicação ou à
concretização singular da normatividade jurídica, a qual implica, como seu primeiro
momento, uma instância hermenêutica, a compreensão e determinação do sentido
actual e concreto da prescrição normativa respeitante ao caso decidendo, com vista
a permitir uma decisão justa.

45
Sentido e valor do Direito, ed. cit., pp. 77 e 157-158.
29
Por outro lado, a natureza prática da normatividade jurídica e a sua constitutiva
componente axiológica, assim como tornam a interpretação do Direito estreitamente
dependente da sua aplicação, fazem, igualmente, que a tarefa da hermenêutica
jurídica tenha uma necessária dimensão estimativa, envolvendo ou implicando
sempre uma mediação ou um momento valorativo, pois a decisão jurídica tem um
objectivo normativo e uma natureza concretizadora, constitutiva, normativamente
criadora e não meramente cognitiva ou subsuntiva.
A hermenêutica jurídica aparece-nos, assim, como irrecusável primeiro
momento ou primeira instância do processo de racionalidade jurídica prática.
Porque, porém, a tarefa ou a actividade hermenêutica é inerente a toda a
realidade cultural, maxime àquela que se objectiva em palavras e em textos,
necessário se torna, enquadrar a interpretação jurídica no campo mais vasto da
teoria geral da hermenêutica.

14. Conceito de hermenêutica

I. O termo hermenêutica provém do grego hermeneuin, que significa declarar,


anunciar, interpretar, esclarecer, levar à compreensão.
Admite-se, geralmente, que derive de Hermes46, visto na mitologia grega como
mensageiro dos deuses e inventor da palavra. É assim que se lhe referem Homero e
Hesíodo, quando, no hino a Hermes, o primeiro o designa como “enviado por Zeus
para missões delicadas”, como “arauto dos deuses” ou “mensageiro de todos os
imortais”47 ou na Teogonia, o segundo escreve que “de Zeus, Maia, filha de Atlas,
gerou o ilustre Hermes, arauto de todos os imortais”48. Por sua vez, Platão, no
diálogo Crátilo, afirma que o nome de Hermes parece relacionar-se com o discurso,
pois “ ser intérprete, mensageiro (...) são actividades referentes ao poder do
discurso” lembrando que o termo éirein significa “servir-se do discurso”, e Eiréneus,
de que proveio o nome Hermes, designa “aquele que imaginou a palavra”49.
Esta radicação da hermenêutica em Hermes enquanto mensageiro ou arauto
dos deuses poderia explicar que aquela tivesse começado por significar a

46
Ver p. e., Gadamer, La philosophie herméneutique, trad, franc. Jean Goudin, Paris, PUF, 1996, p. 85, Emerich
Coreth, Questões fundamentais de hermenêutica, trad. port. Carlos Lopes de Matos, São Paulo, 1973, p. 1,
Richard E. Palmer, Hermenêutica, trad. port. Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Ed. 70, 1986, p. 23 e
Georges Gusdorf, Les origines de l’herméneutique, Paris, Payot, 1988, pp. 19-21.
47
Hino a Hermes, v. 480 e segts.
48
Teogonia, v. 938-939.
49
Crátilo, v. 408a.
30
compreensão e a exposição de uma sentença dos deuses ou de uma mensagem
divina e a inicial dimensão sagrada conferida à hermenêutica, que, na tradição
cultural ocidental, surge ligada às questões relacionadas com a interpretação do
texto bíblico. Registe-se, a este propósito, que a hermenêutica bíblica tem certo
parentesco ou semelhança com a hermenêutica jurídica, havendo mesmo
beneficiado, em medida não despicienda, da tradição romana da interpretação do
Direito.
Esta aproximação ou afinidade entre estas duas formas de hermenêutica é
facilmente compreensível se se atentar em que, em ambos os casos, se trata de
interpretar textos que falam de uma forma normativa e autoritária, tendo os dois uma
pretensão de validade e de obrigatoriedade e sendo, nesse sentido, apresentados
ao intérprete para por ele serem compreendidos e expostos, em todos os seus
pormenores, com esse duplo carácter de validade e obrigatoriedade50.

II. Antes de prosseguir, cumpre notar que, no uso antigo de termo


hermenêutica, é possível surpreender ou distinguir três sentidos ou três orientações
diferentes.
Assim, ao lado daquele que vimos considerando, que o toma como significando
dizer, exprimir ou afirmar, há ainda outros dois: hermenêutica como explicar ou
explicação, sentido este que atribui particular realce ao aspecto discursivo da
compreensão, à dimensão explicativa do intérprete, mais do que à sua dimensão
expressiva, e hermenêutica como tradução ou traduzir de uma língua para a outra,
de um sistema simbólico para outro51.

III. Do que se acaba de dizer ressalta com clareza que o problema fundamental
da hermenêutica é o problema da compreensão, que é o próprio do mundo da
cultura e das ciências ou dos saberes que lhe dizem respeito.
Com efeito, enquanto as ciências da natureza explicam, procurando determinar
as relações causais que ligam os fenómenos ou a regressão causal de um
fenómeno particular a leis gerais, as ciências da cultura ou do espírito compreendem
as realidades culturais, apreendendo o seu sentido.

50
Cfr. Emerich Coreth, ob. e trad. cits., p. 2.
51
Ver p. e., Emerich Coreth, ob. e trad. cit, p. 1 e Richard Palmer, Hermenêutica, trad. cit., pp. 24-41.
31
Deste modo, compreender é apreender um sentido, sendo este aquilo que se
apresenta à compreensão como conteúdo.
Note-se que, apesar da anterior contraposição entre explicação e compreensão
como o traço essencial que individualiza e distingue as ciências da natureza das
ciências da cultura ou do espírito, toda a explicação não deixa de ser antecedida por
uma compreensão de sentido, pois o investigador das ciências da natureza tem de
começar por “compreender” o fenómeno individual, de o apreender na sua
singularidade, no seu conteúdo e estrutura, ainda que de um modo provisório, antes
de poder “explicá-lo”, o que significa que, prévia à oposição ou contraposição, de
natureza metodológica, entre explicar e compreender, existe uma compreensão
mais original e mais ampla. Deste modo, a compreensão apresenta-se-nos como
uma apreensão mais alta de sentido, que ultrapassa e precede a explicação
causal52.
Mas porque consiste na apreensão de um sentido, a compreensão “não
pertence à mediação do pensamento racional nem à imediatez da visão intelectual”,
admitindo que o domínio da razão é a capacidade do pensamento discursivo,
enquando o intelecto será a capacidade de percepção espiritual imediata, de intuir o
que é imediatamente dado, o ser e as suas leis e os conteúdos da essência53, aquilo
a que, num grau sumo, José Marinho designou por visão unívoca enquanto visão
instantânea do ser e da verdade e da verdade do ser54.

IV. A experiência hermenêutica e a compreensão que a constitui apresentam


uma estrutura circular, aquilo a que, desde Heidegger, se vem chamando o “ círculo
hermenêutico”. Quer-se com isto dizer que a compreensão do sentido ou do
conteúdo singular é condicionada pela compreensão do todo em que se integra,
sendo, por sua vez, a compreensão do todo mediada ou condicionada pelo conteúdo
singular, isto é, que, quando referida a um texto, situação a que muitos autores têm
circunscrito a hermenêutica, indicará que o significado das palavras que o compõem
só se alcança a partir do contexto de sentido do próprio texto, o qual, por seu turno,
apenas poderá ser compreendido a partir do significado das palavras que o
constituem e da combinação dessas mesmas palavras.

52
Cfr. Emerich Coreth, ob. e trad. cit. p. 49.
53
Coreth, idem, pp. 46-48.
54
Teoria do ser e da verdade, Lisboa, 1961.
32
V. Mas se o conteúdo ou o sentido singular é sempre apreendido na totalidade
de um contexto de sentido, o qual é pré-compreendido e co-apreendido, de modo a
tornar-se condição de abertura de sentido do conteúdo singular, isso significa que,
subjacente a toda a compreensão, se encontra aquilo a que a filosofia hermenêutica
contemporânea designa por pré-compreensão, a qual decorre, directamente, do
mundo de experiências e de compreensão do intérprete e define uma via de acesso
à própria compreensão, pré-compreensão essa que, constituindo um pressuposto de
acesso à compreensão, se relaciona, dialecticamente, com ela, num processo em
que cada um dos elementos medeia o outro mas é por ele pressuposto e
determinado, fazendo que o processo de compreensão seja um processo
ascendente, mais próximo, por isso, da espiral do que do círculo.

VI. A actividade hermenêutica e a experiência da compreensão apresentam


uma estrutura não só dialéctica entre a pré-compreensão e a compreensão mas
também dialógica, pois nela o intérprete procura desvelar o sentido de uma criação
espiritual objectivada num texto ou em qualquer outro suporte material ou natural,
diálogo esse sempre marcado pela temporalidade e pela historicidade, já que a
demanda de sentido ou conteúdo significante da obra interpretanda é sempre feita a
partir do concreto presente do intérprete e transcende a intenção do respectivo
autor, já que o próprio das criações espirituais é objectivarem-se, passando a
constituir um conjunto de virtualidades de sentido, que, vão sendo descobertas,
criadoramente, na relação hermenêutica que com ela vão estabelecendo, ao longo
do tempo, os que com elas entram em contacto, numa relação complexa,
simultaneamente vivencial, intuitiva e cognitiva, que lhe vai conferindo nova vida
espiritual ou novo ou renovado conteúdo significativo. Deste modo, como escreveu
Alexandre F. Morujão, “a actividade hermenêutica consiste em transpor um contexto
de sentido de um outro „mundo‟ para o seu próprio „mundo‟”55.

15. Origem e percurso histórico da hermenêutica

I. Embora o termo hermenêutica haja aparecido, pela primeira vez, em 1654,


no título de uma obra de J. C. Danhauer56, com o sentido de método expositivo das
Sagradas Escrituras, a hermenêutica surgiu com as questões suscitadas pela

55
“Percurso e natureza da hermenêutica”, Estudos filosóficos, vol. II, Lisboa INCM, 2004, p. 488.
56
Hermenêutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litteraturum.
33
interpretação correcta do Antigo Testamento, tendo-se desenvolvido depois do
advento do cristianismo, abrangendo agora todo o texto bíblico, na exegese dos
Padres da Igreja, a partir dos séculos II e III da nossa era, com o confronto entre a
escola de Antioquia, que considerava, exclusivamente, o sentido literal dos Livros
Sagrados, e a escola de Alexandria, que procurava neles um “sentido espiritual”,
recorrendo, para isso, à exposição simbólico-alegórica.
Orígenes (185-c.254), primeiro, e Santo Agostinho (354-430), depois,
procuraram considerar estes dois modos de interpretar, distinguindo o Bispo de
Hipona diversos sentidos no texto Bíblico57.
A reforma luterana, rompendo com o ensino tradicional da Igre-ja Católica,
defendia o regresso à pura palavra da Escritura, devendo o seu sentido ser
procurado por cada um como seu intérprete, processo que o racionalismo iluminista
reforçará, ao excluir o carácter de revelação sobrenatural e de mistério de toda a
interpretação do texto sagrado, que deveria ser entendido como mera religião
racional (Locke) ou num sentido exclusivamente moral (Kant).

II. Será, precisamente, por esta época que surgirá a primeira tentativa de
construção de uma teoria geral da hermenêutica, de carácter filosófico, que procura
determinar as regras para a compreensão de qualquer texto e não já apenas das
Sagradas Escrituras.
Coube a Friederich Shleiermacher a tarefa de lançar as bases desta nova
ciência filosófica, nele entendida como ciência da compreensão linguística, com vista
ao uso prático de um texto falado ou escrito.
Na linha metodológica da hermenêutica inscrever-se-ão, depois, Wilhelm
Dilthey, que via nela a teoria da compreensão de formas objectivas históricas, cuja
estrutura e legalidades devem ser apreendidas, a partir de uma vivência e, em
meados do século XX, Emílio Betti, que logrou realizar uma teoria geral da
interpretação, que fora o fracassado intento de Shleiermacher.
Ao lado desta corrente, de carácter essencialmente metodológico, com
Heidegger surgiu, na primeira metade do século XX, uma corrente ontológica ou
filosófica da hermenêutica, como hermenêutica da existência, como interpretação da
primeira compreensão do homem em si e do ser, linha que foi prosseguindo, depois,

57
De doctrina christiana (c. 427).
34
pelo seu discípulo Hans-Georg Gadamer e por Paul Ricœur, que a concebia como
hermenêutica fenomenológica.
Mais recentemente, assistiu-se ao aparecimento de uma nova corrente no
pensamento hermenêutico, no âmbito da denominada Escola de Frankfurt, agora de
sentido crítico e dialéctico, através de Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas58.
Vamos considerar em seguida as posições essenciais destes diversos autores
em matéria hermenêutica, segundo as três grandes orientações que acabamos de
referir: a teoria hermenêutica, de raiz metodológica, a filosofia hermenêutica, de
vocação ontológica e a hermenêutica crítica59.

16. A teoria hermenêutica

16.1. Friedrich Shleiermacher.

I. Como tem sido repetidas vezes sublinhado60, o mérito maior do teólogo,


filólogo e filósofo alemão Friedrich Daniel Ernst Shleiermacher (1768-1834) consistiu
em ter superado a fragmentação da hermenêutica, na qual coexistiam uma
hermenêutica jurídica, uma filologia dos textos clássicos, em especial gregos e
latinos, e uma exegese do Antigo e do Novo Testamento, para, centrando-se na
investigação das condições de possibilidade da compreensão de qualquer texto,
tentar chegar a uma hermenêutica geral, à determinação do que, para além da
diversidade dos vários géneros de interpretação, os unifica e lhes é comum.
Como percucientemente observou Paul Ricœur, para alcançar tal desiderato
era necessário ultrapassar a particularidade dos textos e, também, a particularidade
das regras pelas quais se dispersa a arte de compreender, era preciso ascender da
exegese e da filologia até uma “tecnologia” que não se limitasse a ser uma mera
colecção de operações avulsas.
Embora tributária do criticismo kantiano, em cujo clima espiritual foi pensada, a
hermenêutica de Shleiermacher, pelo influxo romântico que também lhe subjaz,
acabou por vir a preencher uma lacuna do próprio kantismo, limitado pela sua
preocupação de determinar as condições universais da objectividade do

58
Para maiores desenvolvimento, ver G. Gusdorf, ob cit., e Rui Magalhães, Introdução à her-menêutica,
Coimbra, Angelus Novus, 2003.
59
Cfr. Josef Bleicher, Hermenêutica Contemporânea, trad. port. Maria Georgina Segurado, Lis-boa, Ed. 70,
2002.
60
Ver p. e., Paul Ricœur, Du texte à l’action. Essais d’hermenêutique, II, Paris, Seuil/Esprit, 1986, p. 76 e
Alexandre F. Morujão, ob. e loc. cits., p. 490.
35
conhecimento em física e em ética, o que o levava a uma concepção ou a um
entendimento impessoal do espírito, dotado das condições de possibilidade de
juízos universais.
A esta concepção contrapôs Shleiermacher uma outra, radicalmente diversa,
de clara proveniência romântica: a de que o espírito é o “inconsciente criador,
operando nas individualidades geniais”61.
Assim, como notou ainda o mesmo filósofo francês, o programa hermenêutico
do pensador alemão apresenta uma marca romântica, no apelo que faz a uma
relação viva com o processo de criação cultural e, ao mesmo tempo, uma marca
crítica, no seu intento de estabelecer as regras universalmente válidas da
compreensão62.

II. Desde os seus primeiros esboços de hermenêutica63, o filosofo germânico


afirma a necessidade de uma hermenêutica geral, sustentando que ela assenta no
facto da compreensão do discurso, do que decorreria, então, que a arte de
interpretação é a arte de possuir ou dispor de todas as condições necessárias à
compreensão. Por sua vez, a compreensão orientar-se-ia tanto para a línguagem
como para os pensamentos, o que não significaria que houvesse duas espécies de
interpretação, pois qualquer delas deve considerar tanto a linguagem como os
pensamentos.
Por outro lado, caberia ter em conta que discurso algum pode ser interpretado
a partir de si mesmo, mas apenas num contexto mais amplo, assim como a
compreensão do todo é condicionada pela do pormenor, tal como, inversamente, a
compreensão do pormenor é determinada pela compreensão do todo. Isto não
impede, porém, que a totalidade deva ser, provisoriamente, compreendida como
indivíduo de um género, ou seja, que a compreensão formal da totalidade deva
preceder a compreensão material do pormenor.
Cumpriria, igualmente, ter em conta que a hermenêutica parte de dois pontos
de vista inteiramente diferentes, o que significa envolver ela um certo carácter
aporético; o compreender na linguagem e o compreender naquele que fala, o que

61
Obra cit., p. 79.
62
Idem, p. 79.
63
Os vários núcleos de aforismos, esboços, notas e fragmentos de Schleiermacher sobre her-menêutica
datam de 1805, 1809-1810, 1819, 1826, 1829 e 1832-1833. Ver Hermenêutique, trad. franc., Christian
Berne, Paris, Cerf., 1989. Dos textos de 1809-1810, 1826-1827 e 1829 há trad. port. de Celso Reni Braida,
com o título Hermenêutica. Arte e técnica de interpretação. Petrópolis, Vozes, 1999.
36
faz dela uma arte. Na realidade, para Shleiermacher, porque não há regras para
aplicação das regras que a hermenêutica enuncia, a sua aplicação não é algo de
mecânico, dado visar sempre casos particulares.
Àquela dupla compreensão vem a corresponder a interpretação gramatical e a
interpretação técnica: na primeira como que se esquece o autor, enquanto na
segunda se esquece a linguagem.
Deste modo, segundo o filósofo dos Discursos sobre a religião, “o ponto
máximo da interpretação gramatical está nos elementos através dos quais o
objectivo central é designado; o ponto máximo da interpretação técnica encontra-se
em grandes conexões e na sua comparação com as regras gerais de combinação”,
precedendo sempre a interpretação gramatical a técnica, pois, no final de tudo, o
que deve ser pressuposto e o que deve encontrar-se é a linguagem, sendo
unicamente na aplicação que se dá a combinação das duas formas de interpretação.
Cada uma delas deve ser conduzida o mais longe possível, não deixando,
contudo, de mostrar os pontos de ligação natural que cada uma tem com a outra.

III. Desenvolvendo e precisando o seu pensamento, notava Shleiermacher que


a interpretação gramatical era a “arte de encontrar o sentido de um discurso, a partir
da linguagem e com o auxílio da linguagem, conforme o pressuposto conhecimento
do significado, era encontrar para cada caso o verdadeiro uso que o autor tinha em
mente, evitando tanto o falso como o excessivo e o deficiente”.
Para tal, deveria o intérprete respeitar dois cânones fundamentais, o primeiro
dos quais determina que “tudo o que, num texto, carece de ser determinado de
forma mais precisa só o pode ser a partir da área linguística comum ao autor e ao
seu público original”, enquanto o segundo impõe que “numa passagem dada, o
sentido de cada palavra deve ser determinado a partir da sua inserção no respectivo
contexto”.
Já a interpretação técnica visa a compreensão como expressão do
pensamento, aparecendo agora a linguagem apenas como órgão pelo qual o
homem se manifesta, através do discurso, na sua individualidade própria. Daí que a
tarefa da interpretação técnica seja descobrir a unidade de estilo de cada autor, a
qual não se deixa apreender como um conceito mas unicamente como uma intuição,
através de um método duplo que não só o compare com outros como o considere
em si e por si.
37
A descoberta da originalidade da composição deve começar por procurar
encontrar a unidade interna de uma obra, ou o seu tema, para, em seguida, buscar
encontrar a originalidade da sua composição, a qual constitui a verdadeira realidade
objectiva. Deste modo, a interpretação técnica vem a consistir em compreender a
meditação e a composição da obra, nisto se distinguindo da interpretação
psicológica, que diz respeito, fundamentalmente, à génese do pensamento, a partir
do elemento da vida considerada em conjunto, vindo a traduzir-se em compreender
as ideias repentinas (incluindo os pensamentos fundamentais que dão origem a
séries inteiras de pensamentos) e os pensamentos concomitantes.
Na teoria hermenêutica de Shleiermacher vamos encontrar já alguns dos
tópicos fundamentais do seu desenvolvimento futuro, como o considerar a
compreensão o seu problema essencial, a ideia da estrutura circular da actividade
interpretativa, bem como a sua natureza dialógica64.

16.2. Wilhelm Dilthey.

I. Se, em Shleiermacher, o elemento psicológico desempenhava importante


papel no conjunto da sua visão da hermenêutica, na de Wilhelm Dilthey (1833-1911)
passará a ocupar um lugar central e decisivo.
Grande admirador do teólogo e filólogo alemão, a quem dedicou uma
biografia65 e cujo pensamento teve repetidas vezes em conta, Dilthey, que até aos
50 anos, fora, sobretudo, um historiador da cultura e das ideias66, sentiu, então, a
necessidade de, numa época dominada pelo positivismo e pelo modelo
epistemológico explicativo das ciências naturais, achar um fundamento filósofo
próprio para as ciências do espírito, cujo paradigma seria a ciência histórica67.
Pensando, como era próprio do seu tempo, que tal fundamento não poderia
encontrar-se já na metafísica, o filósofo alemão entendia que o mesmo apenas
poderia achar-se na experiência interna, nos factos da consciência, pois só neles
possuímos a realidade tal como é.

64
Sobre este autor, além das obras já citadas nas notas anteriores, ver Christian Berner, La philosophie de
Schleiermacher, Paris, Cerf, 1995, pp. 47-81 e H-G. Gadamer, Verdade e metodo, trad. port. Flávio Paulo
Meurer, 2ª. Ed., Petrópolis, Ed. Vozes, 1998, vol. I, pp. 288-306.
65
Vida de Schleiermacher (1867-1870).
66
Interpretação e análise do homem nos sécs. XV XVI, O sistema natural das ciências do es-pírito no séc. XVII,
Leibniz e a sua época, Frederico, o Grande e o iluminismo alemão, O século XVIII e o mundo histórico,
História do jovem Hegel, Os principios do histoiricismo de Niehbur, As três fases da estética moderna, Sobre
o estudo da história das ciências do homem, da so-ciedade e do Estado.
67
Introdução às ciências do espírito, 1883.
38
Deste modo, o fundamento das ciências do espírito seria de natureza
psicológica, devendo, por isso, quanto a elas, a psicologia preceder a gnosiologia.
Sustentava, no entanto, Dilthey que, se explicamos a natureza, compreendemos a
vida anímica, pelo que a fundamentação psicológica das ciências do espírito não
poderia fazer-se com base numa psicologia explicativa ou construtora, que
pretendesse “subordinar toda a vida psíquica a uma conexão causal mediante um
número limitado de elementos univocamente determinados”, um sim a partir de uma
psicologia descritiva e analítica, que fosse a explicação das componentes e dos
nexos que se apresentam, uniformemente, em toda a vida psíquica humana
desenvolvida, entrelaçados numa única textura, que é simplesmente vivida e não
interpolada ou inferida pelo pensamento, uma psicologia que fosse a descrição e a
análise de uma conexão que, de modo originário, nos é dada pela própria vida.
Porque a vida psíquica não é um composto de partes mas uma unidade
englobante, a base da psicologia descritiva e analítica não poderia deixar de ser a
vivência, entendida como percepção íntima da totalidade da vida anímica que nos é
imediatamente dada. Deste modo, enquanto explicamos os fenómenos naturais por
meio de processos puramente intelectuais, compreendemos o mundo das criações
espirituais graças à interacção de todas as forças anímicas na vivência, partindo da
textura do todo, que se nos oferece de um modo vivo, tornando-nos, assim,
apreensível o singular68, pelo que o método próprio das ciências do espírito viria a
consistir na correlação das vivências e dos conceitos69.

II. Para Dilthey, os elementos fundamentais da nossa imagem e do nosso


conhecimento do mundo, como a unidade vital da pessoa, o mundo exterior, os
indivíduos fora de nós, a sua vida no tempo e as suas relações, só poderiam
compreender-se a partir da natureza humana, de cujo processo vital real o querer, o
sentir e a representação são fases ou aspectos. Assim se ampliaria, para o filósofo,
o horizonte da experiência, que, de início, parecia dar-nos, exclusivamente, notícias
dos nossos estados anímicos internos e que agora, com a nossa unidade vital, nos
dá, igualmente, notícia de um mundo exterior em que estão presentes e coexistem
outras unidades vitais70.

68
Ideias para uma psicologia descritiva e analítica, 1894.
69
A essência da filosofia, 1907.
70
Introducción a las ciencias del espiritu, trad. cast. Julián Marías, Madrid, Alianza Ed., 1980, p. 32.
39
Deste modo, para Dilthey, seria na vida vivida pelo homem e não já no mundo
que o filósofo deveria buscar a coerência interna do seu conhecimento, passando,
por isso, a fundar-se na reflexão sobre a vida de que nasce a experiência vital, pois
os acontecimentos individuais que provoca o feixe de impulsos e sentimentos em
nós, ao encontrarem-se com o mundo circundante, reúnem-se na vida num saber
objectivo e universal.
No entender do filósofo germânico, até então, a filosofia não se fundara na
experiência total, plena, na realidade inteira e completa constituída pelos actos vitais
do homem, cujas dimensões são a inteligência ou a razão, a vontade e o
sentimento, o que imporia a necessidade de relacionar o pensamento lógico com a
vida, a compreensão e a experiência interna.
Para Dilthey, não só a filosofia viria a alcançar o conhecimento do complexo
vital do espírito humano em si mesmo e nas suas relações com a natureza, numa
síntese espiritual com pretensão de validade universal, como se fundamentaria na
autognose, i.e., no conhecimento das condições da consciência a que se encontra
sujeita a elevação do mesmo espírito à sua autonomia, mediante um conhecimento
de valor universal, condições essas dadas no complexo vital em que encontram a
sua unidade todos os factos condicionantes da vida71.

III. Foi, precisamente, o lugar atribuído à compreensão como categoria primeira


das ciências do espírito que levou Dilthey a interessar-se, especulativamente, pelas
questões hermenêuticas, em dois textos A origem da hermenêutica (1897) e
Esboços para uma crítica da razão histórica, o último dos quais inacabado.72
Para o autor, a hermenêutica, entendida como técnica de interpretação das
manifestações vitais fixadas por escrito, constituía a base essencial da
fundamentação das ciências do espírito, na medida em que seria ela que, no plano
teórico, estabeleceria a validade universal da interpretação, em que assentava toda
a certeza histórica.
A teoria hermenêutica esboçada por Dilthey, a partir do vitalismo, historicismo e
psicologismo que caracterizavam a sua filosofia, baseava-se em duas noções

71
Os tipos de visão do mundo e seu desenvolvimento nos sistemas metafísicos (1911), Sobre a teoria das
visões do mundo (s/d) e A consciência histórica e as concepções do mundo (s/d).
72
Dos escritos sobre hermenéutica, ed. bilingue alemão e castelhano, trad. António Gómez Ramos, Madrid,
Ed. Istmo, 2000. Do primeiro texto há trad. de Alberto Reis, Textos de herme-nêutica, Porto, Rés, 1984, pp.
149-174.
40
fundamentais, de diverso âmbito, a de compreensão e a de interpretação ou
exegese.
Assim, a compreensão era por ele entendida como o processo pelo qual as
manifestações exteriores ou os signos captados ou percebidos pelos sentidos nos
revelam uma interioridade ou a própria vida psíquica, notando o pensador que a
interioridade humana apenas na linguagem encontra a sua expressão completa,
exaustiva e objectivamente compreensível, pelo que a arte de compreender se
centra na interpretação dos vestígios da existência humana contidos na escrita.
Sustentava ainda Dilthey que, por mais diversas que sejam as manifestações
escritas da vida psíquica, a sua compreensão não pode deixar de apresentar
características comuns, que decorrem das condições próprias deste modo de
conhecimento.
Por sua vez, a interpretação ou exegese, termos que tinha por sinónimos ou
equivalentes, seria a arte de compreender as manifestações da vida fixadas de
modo duradouro, sob forma escrita73, a qual, porque assente numa afinidade interna
entre o intérprete e a obra, potenciada pela familiaridade com o autor, resultante de
um estudo aturado e constante que daria em boa medida, dependente da habilidade
pessoal do intérprete, sendo a sua perfeição consequência da genialidade daquele.
Dado, porém, que essa genialidade é muito rara, para que a arte ou técnica de
interpretação possa ser exercida ou ensinada por espíritos menos bem dotados,
seria necessário que essa arte ou técnica fosse fixada em regras deduzidas ou
extraídas dos métodos seguidos ou criados pelas intérpretes ou exegetas geniais.
Deste modo, para Dilthey, a hermenêutica viria a consistir na teoria das regras
para compreender as manifestações da vida fixadas por escrito.
Para o filósofo alemão, ao estabelecer a possibilidade de uma interpretação
universalmente válida a partir da análise do compreender, a hermenêutica
encaminhar-se-ia para a resolução do problema do conhecimento científico dos
indivíduos e até das grandes formas da existência humana singular, na sua
generalidade. Assim, segundo o historiador e filósofo germânico, a análise da
experiência interna, proporcionada pela psicologia descritiva, e a da compreensão,
facultada pela hermenêutica, em conjunto, forneceriam a prova de que as ciências

73
Embora admitisse ser possível uma hermenêutica que tenha por objecto esculturas ou qua-dros, notava
Dilthey que a respectiva interpretação teria sempre de apoiar-se em explicações expressas sobre forma
literária.
41
do espírito eram susceptíveis de proporcionar um conhecimento que, dentro de
certos limites, se reveste de validade universal, visto serem condicionadas pela
forma como nos são dados, originariamente, os factos psíquicos.

IV. Não deixava, no entanto, Dilthey de ser consciente das aporias com que se
defrontava a natureza do entendimento que propunha quanto à prática de uma
ciência com validade universal.
A primeira dessas aporias resultaria, para o autor de A essência da filosofia, de
cada um de nós se encontrar como que encerrado na sua consciência individual,
pelo que comunica a sua subjectividade a qualquer interpretação ou constatação
das coisas, o que suscita o problema de saber como será possível que uma
individualidade transforme em conhecimento objectivo, de valor universal, uma
manifestação vital de outra individualidade que haja captado sensivelmente. A esta
dificuldade procurava o filósofo responder notando que não só encontramos as
mesmas funções e a mesmos elementos constitutivos em todos os homens, como é
o mesmo o mundo externo que se reflecte nas suas representações, pelo que em
nenhuma manifestação individual alheia pode aparecer algo que não esteja contido
também na individualidade viva que a capta ou percebe.
Por sua vez, a segunda aporia traduzia-se em saber como é possível extrair o
todo do singular e, depois, o singular do todo, visto a totalidade de uma obra exigir
que se chegue à individualidade do autor, dificuldade a que Dilthey respondia
lembrando que apenas o processo comparativo permite, em definitivo, compreender
cada obra singular e até cada frase mais profundamente do que se compreendia
anteriormente, o que significaria, então, que a compreensão resulta do todo que, por
sua vez, resulta do singular.
Finalmente, a terceira aporia decorreria do facto de cada estado anímico
singular ser por nós compreendido a partir dos estímulos externos que provocou, o
que quer dizer que o meio é imprescindível para a compreensão. Deste modo,
segundo Dilthey, levando as coisas ao extremo, o compreender não seria diferente
do explicar, na medida em que este é possível neste domínio, assim como, por sua
vez, o explicar teria como pressuposto um compreender perfeito.

V. Para o autor da Introdução às ciências do espírito, estas três questões


mostrariam que o problema gnosiológico seria sempre o mesmo, o de saber como é
42
possível um conhecimento universal obtido a partir da experiência, que aqui,
contudo, se apresentava em condições particulares, resultantes da natureza da
experiência nas ciências do espírito, que seriam, segundo Dilthey, a estrutura como
conexão que, na vida psíquica, é o vital, com base no qual o singular se determina.
Deste modo, no átrio da ciência do espírito encontrar-se-ia a análise da
compreensão como problema gnosiológico fundamental. A hermenêutica, na medida
em que partia deste problema gnosiológico, visando a sua solução, vinha a
relacionar-se, intimamente, com os problemas da constituição e legitimidade das
ciências do espírito.
Por sua vez, a solução deste problema gnosiológico fundamental conduziria ao
problema lógico da hermenêutica, que, para Dilthey, se traduziria em saber qual a
forma particular que a indução, a análise, a construção e a comparação revestiriam
no domínio das ciências do espírito, atendendo ao papel que aqui representa a
linguagem e a gramática.
Ao lado do problema gnosiológico e lógico da compreensão e da hermenêutica,
surge-nos, depois, o da sua metodologia, que Dilthey entendia compreender o da
formação histórica do método e da sua especificação em vários domínios
hermenêuticos, notando que os métodos hermenêuticos têm por fim uma conexão
com a crítica literária, filológica e histórica, conduzindo esta totalidade à explicação
dos fenómenos singulares, pois entre a interpretação e a explicação não haveria
qualquer limite mas tão só diferença de grau.
Mas porque seria impossível separar a apreensão e a valoração, a crítica
literária acompanharia, necessariamente, o processo hermenêutico, ao qual seria
imanente, constituindo, por isso, condição preliminar da crítica filológica74.

16.3. Emilio Betti.

I. Não renegando, antes prosseguindo, a herança de W. Dilthey, o notável


historiador do Direito italiano Emilio Betti (1890-1968), considerando, como ele, a
hermenêutica como metodologia geral das ciências do espírito, representa um

74
Origens da Hermenêutica, trad. cit. Cfr. Ortega e Garet, “Guilhermo Dilthey y la idea de la vida” (1933-
9134), Kant, Hegel, Dilthley, Madrid, Revista de Occidente, 1973, Julián Marías, “Introducción a la filosofia
de la vida”, pref. à trad. castelhana de La Teoria de las concepciones del mundo, id., 1974, Joaquim de
Carvalho, pref. à trad. port. de Leibniz e a sua época, Coim-bra, Arménio 1947, P. Ricoeur, ob. cit., pp. 81-87,
Gadamer, ob. cit., vol. I, pp. 335-368, Alexan-dre F. Morujão, ob. e vol. cits., pp. 493-396, e Rui Magalhães,
ob. cit., pp. 35-38.
43
considerável avanço relativamente ao filósofo germânico, que havia, de certo modo,
limitado à sua atenção reflexiva às ciências históricas, e ficara, em larga medida,
preso do psicologismo, pelo papel nuclear que, na sua metodologia hermenêutica,
conferia à noção de vivência.
Betti não só abandona, definitivamente, a via psicologista diltheyana como
assenta toda a sua reflexão na ideia de que, nas ciências do espírito, há um
problema hermenêutico comum que, no entanto, apresenta formas diversas, em
diferentes áreas, ideia que preside à sua Teoria Geral da interpretação (1955)75,
obra que, com pressupostos diversos dos de Schleiermacher, realizou o seu
projecto, apenas esboçado, de uma hermenêutica geral.
Pensava o mestre italiano que a interpretação se destina a resolver o problema
epistemológico da compreensão, como processo que visa e resulta na
compreensão. Assim, para Betti, interpretar seria trazer algo à compreensão, pelo
que, para abrangermos a unidade do processo de interpretação, temos necessidade
de referir o fenómeno elementar da compreensão, tal como se efectiva através da
linguagem. Considerava, ainda, que a interpretação incide sobre formas de
objectivação da mente, i.e., criações espirituais do homem, e que só em face de
formas significativas é possível a interpretação, dando aqui ao termo forma o sentido
lato de “estrutura homogénea em que um número de elementos detectáveis se
relacionam entre si e servem para a preservação das características da mente que a
criou ou que nela está representada”.
Notava, por outro lado, E. Betti que o processo de compreensão era um
processo triplo, que envolvia o intérprete, como mente activa e pensante e a mente
objectivada em formas significativas, entrando a dois primeiros em contacto, apenas
mediata e indirectamente, através da forma significativa, apresentando-se, por isso,
a compreensão como “o reconhecimento e a constituição de um sentido – e, com
ele, da mente que se conhece através das formas das suas objectivações – que se
dirige a uma mente pensante que lhe é afim, na base de uma humanidade
partilhada”. Deste modo, no processo hermenêutico, o intérprete reconstrói um
pensamento alheio e recria-o a partir de si mesmo, tornando-o seu, do mesmo passo
que o objectiva, havendo, pois, aqui um conflito entre o elemento subjectivo (que
não pode ser isolado da espontaneidade da compreensão) e a objectividade,
enquanto alteridade do sentido que se visa alcançar.

75
Teoria generalle della interpretazione, Milão, Guiffré, 1955.
44
II. Segundo este autor, a interpretação – cujo objectivo é a descoberta do
sentido visado por uma manifestação do pensamento de alguém e a compreensão
do pensamento e imaginação nele patente – obedeceria a determinados critérios e
directrizes, que denominava cânones hermenêuticos, relacionados, uns, com o
objecto da interpretação e outros com o respectivo sujeito.
Assim, os cânones hermenêuticos, seriam os quatro segui-tes, referidos, os
dois primeiros, ao objecto e os dois últimos ao sujeito da interpretação:
a) O da autonomia hermenêutica do objecto, que impõe que as formas
significativas sejam consideradas e compreendidas segundo a sua lógica
própria de desenvolvimento e avaliadas de acordo com a intenção a que
deveriam obedecer, do ponto de vista do autor e do seu impulso formativo
no processo de criação;
b) O da coerência de sentido, segundo o qual o sentido do todo tem de
provir dos seus elementos individuais, assim como cada um dos
elementos individuais que o integram ou compõem deve ser entendido em
refe-rência ao todo completo de que faz parte;
c) O da actualidade da compreensão, que estabelece que a tarefa do
intérprete deve consistir em reconstruir o processo criativo e traduzir, de
novo, o pensamento alheio, adaptando-o e integrando-o no seu horizonte
intelectual, dentro da estrutura das respectivas experiências, com base no
mesmo tipo de síntese que possibilitou o reconhecimento e a
reconstrução do pensamento subjacente e expresso na obra
interpretanda;
d) O da correspondência hermenêutica do sentido, que se encontra
estreitamente associado ao anterior, e determina que o intérprete deve
proporcionar à sua própria realidade viva “a mais estreita harmonia com o
estímulo que recebe do objecto”, a fim de que “ambos se façam ouvir de
forma harmoniosa”.
Advertia, ainda, E. Betti que nem toda a interpretação é susceptível de uso
aplicativo ou de aplicação, atributo que, segundo ele, seria exclusivo da
hermenêutica jurídico-normativa e da teológica. Da primeira, porque da essência da
interpretação da lei faz parte a sua concretização, pois visa dar solução a situações
concretas da vida social intersubjectiva, enquanto a interpretação que o teólogo faz
das Escrituras tem, igualmente, uma função directiva, dado a comunidade dos
45
crentes exigir que essa interpretação goze de “utilidade aplicativa para as questões
morais”76.

17. A filosofia hermenêutica

17.1. Martin Heidegger

I. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) abandona a via


metodológica ou epistemológica da hermenêutica, iniciada por Schleiermacher e
prosseguida por Dilthey, dando-lhe agora uma dimensão ontológica, ao situá-la no
domínio que dominava ontologia fundamental.
O ponto de partida desta nova concepção sobre a hermenêutica encontra-se
no curso de ontologia intitulada Hermenêutica da facticidade77, regido pelo mestre
germânico na universidade de Friburgo em 1923, prosseguido, dois anos depois,
agora em Marburgo, no curso Prolegómenos para uma história do conceito de
tempo78 e vindo a achar a sua formulação mais acabada na sua obra capital Ser e
tempo, publicada, pela primeira vez, em 192779.
No primeiro daqueles cursos, Heidegger entendia a hermenêutica não no
sentido de teoria da interpretação, mas no que considerava ser o seu sentido
originário de determinada unidade na realização do comunicar, i.e., do interpretar
que leva ao encontro, à visão e ao conceito de facticidade, compreendida como o
carácter de ser da nossa existência própria. Assim, quanto ao seu objecto, a
hermenêutica indicaria, para o filósofo alemão, que a facticidade tem um ser que
está capacitado para a interpretação e dela carecido, sendo inerente ao seu ser o
estar, de algum modo, já interpretado.
A hermenêutica teria, então, como tarefa tornar o existir próprio de cada
momento acessível no seu carácter de ser ao existir, comunicá-lo, tratando de
aclarar essa alienação de si próprio de que o existir está afectado. Deste modo, na
hermenêutica configurar-se-ia, para o existir do homem, uma possibilidade não só
de chegar a entender-se como de ser esse mesmo entender, sendo, então, esse

76
Teoria generalle della interpretazione e “A hermenêutica como metodologia geral dos Geistwissenschaften
(1962), em Josef Bleicher”, ob. e trad. cits., pp. 77-131.
77
Ontologia (Hermenéutica de la facticidad), trad. cast. Jaime Aupiunza, Madrid, Alianza Edi-torial, 1999.
78
Prolegómenos para una história del concepto de tiempo, trad. cast. Jaime Aupiunza, Alianza Editorial, 2006.
79
Ser e tempo, trad. port. Márcia de Sá Cavalcante, Petrópolis, 1989. Ver, igualmente, El ser y el tiempo, trad.
cast., José Gaos, México, Fundo de Cultura Económica, 1951.
46
entender que se origina na interpretação o estar des-perto do existir para consigo
mesmo.
Daqui resultaria, pois, que a hermenêutica viria a consistir na interpretação que
o ser do existente faz de si próprio, sendo, em cada ocasião, o tema da investigação
hermenêutica, o próprio existir, questionado, precisamente, por ser hermenêutico,
sobre o seu carácter de ser, visando configurar uma atenção bem arreigada a si
mesmo.
Mas porque a existência e o existir não são nunca um objecto mas um ser, a
hermenêutica não visa a posse de conhecimento nem no seu entender há qualquer
generalidade. O que ela procura é um conhecer existencial, i.e., um ser. Daí que fale
sempre a partir do já interpretado e, nessa medida, se apresente como algo
provisório e prévio à filosofia.
Notava já aí, então, o futuro autor de Kant e o problema da metafísica (1929)
que o fenómeno fundamental do existir era a temporalidade, assim como que o
mesmo existir se move no tempo de um modo determinado de falar de si mesmo,
que o filósofo denominava “falatório” e que seria, segundo ele, o modo normal e
público como o existente se toma e se conserva a si mesmo, modo esse em que
residiria uma determinada pré-compreensão que o existente tem de si próprio, o que
tornaria o falatório numa interpretação já feita de si mesmo, que o existir teria à sua
disposição80.
II. As ideias esboçadas nos cursos de 1923 e 1925 vão encontrar o seu mais
acabado e sistemático desenvolvimento na primeira (e única) parte de Ser e tempo,
concluída na Floresta Negra em 1926 e publicado, pela primeira vez, no ano
seguinte, dedicada ao criador da fenomenologia, a partir da qual foi pensada, ainda
que de modo claramente independente e, em larga medida, heterodoxo.
Tornando aí explícito o seu pensamento de que toda a ontologia ocidental se
caracterizaria pelo “esquecimento do ser”, sustentava então o filósofo germânico que
só a partir de uma analítica existencial seria possível constituir uma ontologia
fundamental.
Na verdade, para Heidegger, como mais de uma vez o afirmou na sua obra
capital, a filosofia seria uma ontologia fundamental e universal que parte da
hermenêutica do existir do homem (Dasein) e que, como analítica da existência, ata

80
Ontologia, trad. cit. pp 33-52.
47
o fio condutor de todo o questionamento àquilo de que surge e a que regressa81,
marcando, deste modo, ainda com mais vigor, a natureza e a função ontológica e já
não epistemológica da hermenêutica.
Assim, seria na analítica existencial da existência como modo de ser do
homem que deveria procurar-se a ontologia fundamental, de que todas as outras
deveriam vir a originar-se, sustentando o filósofo que a questão do ser mais não
seria do que a radicalização da tendência para a compreensão pré-ontológica do
mesmo ser, assim como que a questão sobre o sentido do ser teria as suas raízes
no fenómeno do tempo, visto a existência do homem ter o seu sentido na
temporalidade e, no fundamento do seu ser, se determinar e constituir pela
historicidade, lembrando ainda que o ser do homem se caracteriza por ser o ser vivo
cujo modo de ser é, essencialmente, determinado pela linguagem82.
Para o Heidegger de Ser e tempo, a fenomenologia do ser do homem seria
hermenêutica, não só no sentido originário da palavra como “tarefa de interpretar”
como no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda a
investigação ontológica. Como o ser do homem enquanto existir possui primado
ontológico perante quaisquer outros entes, a hermenêutica desse mesmo ser do
homem como interpretação ontológica de si mesmo viria a adquirir o sentido
primário, do ponto de vista filosófico, de uma analítica da existencialidade da
existência83.
Deste modo, seria na existência ou no existir do homem que se poderia
encontrar o horizonte para a compreensão e possível interpretação do ser, cabendo
não esquecer, no entanto, que a existência do homem é histórica, pelo que o
esclarecimento próprio deste ente vem a tornar-se sempre e necessariamente uma
interpretação referida a factos históricos.
Para Heidegger, não só a essência do ser do homem está na sua existência
como aquele se determina, como ente, a partir da possibilidade que ele é, cumprindo
não esquecer, igualmente, que ser no mundo, com os outros, é constituição
fundamental do existir humano84.

81
Ser e tempo, trad. cit., vol. I, p. 69 e vol. II, p. 250, §§7 e 83, respectivamente.
82
Ob. cit., §§ 5 e 6.
83
Idem, § 7.
84
Idem, §§ 9 e 12.
48
III. Neste contexto, a compreensão constituiria um existencial fundamental, nela
subsistindo o modo de ser da existência do homem enquanto possibilidade de ser e
apresentando-se, por isso, o compreender como o ser existencial desse poder ser.
Daí que em si mesma, para Heidegger, a compreensão possua a estrutura
existencial de projecto, vindo aquela a consistir no modo de ser do existente em que
este é as suas possibilidades enquanto possibilidades.
Ora, neste projectar das possibilidades antecipou-se já uma compreensão do
ser, o qual é, então, compreendido no projecto e não concebido ontologicamente85.
O facto de a compreensão projectar o ser nas suas possibilidades tem a
possibilidade de se elaborar em formas, vindo a interpretação a consistir nessa
elaboração. Assim, na interpretação, a compreensão apropria-se do que
compreendeu e torna-se ela própria e não outra coisa, o que significava, então, que
a interpretação se funda, existencialmente, na compreensão e não o contrário (como
pensava toda a tradição hermenêutica anterior), vindo a interpretação a ser o tomar
conhecimento do que se compreendeu, elaborando as possibilidades projectadas na
compreensão.
Advertia aqui o filósofo da Floresta Negra que a interpretação de algo como
algo se funda, essencialmente, numa posição prévia, numa visão prévia e numa
concepção prévia, dado que nunca é a apreensão de um dado preliminar, isento de
pressuposições. Por outro lado, para Heidegger, afastando-se aqui, de novo, da
tradição hermenêutica ocidental, o que é compreendido não é o sentido mas o ente
ou o ser, entendendo por sentido aquilo que sustenta a compreensibilidade de
alguma coisa. Com efeito, só o existente ou o existir pode ser com sentido ou sem
sentido, só o seu próprio ser e o ente que se lhe abre podem ser apropriados na
compreensão ou recusados na incompreensão, pelo que todo o ente não dotado do
modo de ser da existência se encontra, necessariamente, desprovido de todo e
qualquer sentido86.
Reafirmando a ideia schleiermacheriana de pré-compreensão, ao notar que
toda a interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter
compreendido o que se quer interpretar, Heidegger salientava que o chamado
círculo da compreensão, não é um “círculo vicioso” nem uma imperfeição inevitável,
pois a compreensão, no seu sentido existencial, é o poder ser do próprio existente.

85
Idem, § 31.
86
Idem, § 32.
49
Deste modo, o círculo da compreensão ou círculo hermenêutico é algo que pertence
à estrutura do sentido, cujo fenómeno radica na constituição existencial do existente
enquanto compreensão que interpreta. O homem, como ente em que está em jogo o
seu próprio ser com ser-no-mundo, possui uma estrutura de círculo ontológico, não
se devendo, porém caracterizar, ontologicamente, o existente através de tal círculo.
Para Heidegger, toda a compreensão guarda em si a possibilidade de uma
apropriação do que compreende, isto é, de interpretação, pois, como vimos, esta
funda-se sempre na compreensão.
Se o ser do homem é determinado pela linguagem, o fundamento ontológico-
existencial deste não pode deixar de ser o discurso, que o filósofo entendia como
articulação da compreensibilidade, o que explicaria que o discurso, que é originário à
compreensão, se achasse na base de toda a interpretação. Sendo, pois, constitutivo
da compreensão, o discurso é a articulação em significado da compreensibilidade
inserida na disposição de ser-no-mundo do existente, o que queria dizer que, como
ser-no-mundo, o existente ser pronunciou como ser-num-discurso87.

17.2. Hans-Georg Gadamer.

I. Discípulo de Heidegger, Hans-Georg Gadamer (1900-2003), partindo da


ontologia do mestre, procurou, por um lado, recuperar o projecto de Schleiermacher
de uma hermenêutica geral, agora de base ontológica e não já epistemológica e, por
outro lado, retomar o debate sobre as ciências do espírito aberto por Dilthey.
Começando por notar que o fenómeno da compreensão e da correcta
interpretação do compreendido não é um problema específico da metodologia das
ciências do espírito, pois o conceito de hermenêutica transcende em muito as
fronteiras do conceito de metodo da ciência moderna, lembra que, desde a
antiguidade, houve uma hermenêutica jurídica e uma hermenêutica bíblica, que
respeitam mais ao modo de comportamento do juiz ou do sacerdote do que à teoria
das respectivas ciências e que compreender e interpretar textos não é unicamente
uma instância científica, mas algo que pertence à experiência humana do mundo, o
que evidencia que, na sua origem, o problema hermenêutico não é um problema
metodológico.
Para o filósofo alemão, a hermenêutica não visa um método de compreensão
que permita sujeitar os textos, como qualquer outro objecto de experiência, ao

87
Idem, §§ 32-34. Ver Ricœur, ob. cit., pp. 88-95 e Rui Magalhães, ob. cit., pp. 39-45.
50
conhecimento científico, do mesmo modo que não se ocupa, basicamente, de
constituir um conhecimento seguro, de acordo com o ideal metódico da ciência, se
bem que também trate de ciência e de verdade. Saber que tipo de conhecimento é
esse e qual a sua verdade é o objectivo da sua mais significativa e ambiciosa obra
especulativa, Verdade e método (1960), na qual procurou estabelecer os
fundamentos de uma hermenêutica filosófica88.
Admitia Gadamer, como Heidegger, que o ser do homem enquanto existente é
essencialmente histórico, pelo que a compreensão, como carácter ôntico da vida
humana, tem na temporalidade o seu modo de ser próprio, o que significaria que o
objecto da compreensão se apresenta como algo que pertence a outro tempo, que
se encontra a uma certa distância temporal daquele que compreende e lhe é
transmitido pela tradição.
Assim, para o mestre de Heidelberg, a pré-compreensão seria determinada ou
quedaria dependente de três elementos ou condições fundamentais: o preconceito,
a autoridade e a tradição.
II. Se é inegável que quem pretenda compreender um texto não pode, desde
início, entregar-se ao acaso das suas próprias opiniões prévias e ignorar,
obstinadamente, a opinião do texto, mas deve, pelo contrário, estar receptivo, desde
o princípio, à alteridade do mesmo texto, não se pode, no entanto, esquecer ou
ignorar que aquela receptividade inclui uma matizada incorporação das próprias
opiniões prévias e preconceitos, importando, por isso, que aquele que quer
compreender se dê conta dessas suas antecipações, a fim de que o texto possa
apresentar-se na sua alteridade e tenha a possibilidade de confrontar a sua verdade
com as opiniões prévias daquele que o compreende. Para o filósofo, só o
reconhecimento do carácter preconceituoso de toda a compreensão permitiria
conferir a sua verdadeira dimensão ao problema hermenêutico.
Advertia, contudo, Gadamer que os preconceitos, que considerava como
primeira condição da compreensão, por, mais do que os juízos, serem a realidade
histórica dos indivíduos, não significarem aqui falsos juízos, visto estar no seu
conceito o poder ser valorizado positiva ou negativamente. Assim, preconceito
deveria entender-se com o sentido do juízo formulado antes de serem examinados
ou considerados todos os elementos ou aspectos que definem ou constituem uma
situação.

88
Verdade e método, trad. citada, vol. I, pp. 31 a 45.
51
Também a noção de autoridade teria de ser entendida como assente no
reconhecimento e, consequentemente, numa acção da razão que, consciente dos
seus limites, atribui ao outro uma perspectiva mais acertada, tendo, por isso, que ver
com reconhecimento e não com obediência.
Ora, o que está consagrado pela tradição e pelo passado goza de uma
autoridade que se tornou anónima e o nosso ser histórico e finito está determinado
pelo facto de que a autoridade do que foi transmitido, mesmo do que não se aceita
razoavelmente, exerce poder sobre a nossa acção e sobre o nosso comportamento.
Deste modo, a compreensão deveria pensar-se menos como uma acção de uma
subjectividade de que com uma deslocação para um acontecer da tradição em que o
passado e o presente se encontram em contínua mediação.
É, precisamente, aqui que se insere a questão do círculo hermenêutico ou da
estrutura circular da compreensão, entendido não já como círculo metodológico mas,
à maneira heideggeriana, como movimento estrutural ontológico da compreensão: a
compreensão do texto encontra-se continuamente determinada pelo movimento
antecipatório da pré-compreensão, que faz que o círculo do todo e das partes se não
anule na compreensão total mas alcance nela a sua autêntica realização. Deste
modo, o círculo não se reveste de natureza formal, não é subjectivo nem objectivo,
mas descreve a compreensão como interpenetração de dois movimentos, o da
tradição e o de intérprete.
Daqui decorreria, então, que a tarefa da hermenêutica não seria a de
desenvolver um processo de compreensão mas a de iluminar as condições em que
se compreende, cumprindo ter em conta que essas condições não se reduzem a
processos ou métodos e que os preconceitos e opiniões prévias que ocupam a
consciência do intérprete são algo dado, que não se encontra à sua disposição, pelo
que aquele não está nunca em condições de poder distinguir, por si mesmo, os
preconceitos que tornam a compreensão possível daqueles que a impedem e geram
os mal entendidos. Só a distância no tempo permite distinguir entre estes dois tipos
de preconceitos, distinção essa que constitui a verdadeira questão crítica da
hermenêutica89.
Por outro lado, seria ainda necessário não esquecer que o sentido de um texto
supera o seu autor e está sempre determinado pela situação histórica do intérprete
e, consequentemente, pelo todo do processo histórico, o que faz com que a

89
Idem, pp. 407-443.
52
compreensão não seja nunca um comportamento meramente reprodutivo mas seja
sempre também criadora ou produtiva.

III. Estreitamente associado à noção de situação aparece, em Gadamer, o


conceito de horizonte hermenêutico, como âmbito da visão que abarca e encerra
tudo o que pode ser visto de um determinado ponto, como qualquer coisa em que
penetramos progressivamente e se desloca connosco.
A situação hermenêutica ou a situação do intérprete implica sempre dois
horizontes: o do intérprete e o próprio de cada época a que ele se desloca, na sua
tarefa hermenêutica, cabendo, precisamente, à situação hermenêutica obter o
horizonte correcto para as questões que se deparam ao intérprete face à tradição.
Notava o autor de Verdade e método que “o horizonte do presente está num
processo de permanente formação, na medida em que estamos obrigados a pôr à
prova, constantemente, todos os nossos preconceitos. Parte dessa prova é o
encontro com o passado e a compreensão da tradição de que precedemos. O
horizonte do presente não se forma, pois, à margem do passado”. Assim, não existe
um horizonte do presente por si mesmo nem existem horizontes históricos a serem
conquistados, pelo que “compreender é sempre o processo de fusão desses dois
horizontes pretensamente dados por si mesmos”, consistindo a tarefa hermenêutica
em não ignorar ou ocultar esta tensão mas em desenvolvê-la conscientemente, pois
na realização da compreensão se verifica uma verdadeira fusão horizôntica que,
com o projecto de horizonte histórico, realiza, simultaneamente, a sua superação,
nisto vindo a consistir o problema de aplicação contido em toda a compreensão90.

IV. Com efeito, o processo hermenêutico é um processo unitário, que engloba a


compreensão, a interpretação e a aplicação. Assim, a interpretação não é um acto
complementar e posterior à compreensão, pois compreender é sempre interpretar, o
que significa que a interpretação mais não é do que a forma específica da
compreensão, tal como a linguagem e os conceitos constituem um momento
estrutural interno da compreensão. Por outro lado, na compreensão tem sempre
lugar algo como uma aplicação à situação actual do intérprete do texto que se quer
compreender, apresentando-se, deste modo, este último momento do processo
hermenêutico tão essencial como os outros dois.

90
Idem, pp. 457-458.
53
A este propósito, lembrava o filósofo que, na sua origem, o estreito parentesco
que ligava a hermenêutica filosófica à jurídica e à teológica assentava,
precisamente, no reconhecimento da aplicação como momento integrante de toda a
compreensão. Na verdade, na hermenêutica jurídica, é constitutiva a tensão
existente entre o texto da lei e o sentido que alcança a sua aplicação no momento
concreto da interpretação judicial.
A lei não exige ser entendida historicamente, mas sim que a interpretação a
concretize na sua validade jurídica, i.e., deve ser entendida de acordo com as
pretensões que ela própria mantém, deve ser compreendida, em cada momento e
em cada situação concreta, de uma maneira nova e distinta. Deste modo, para
Gadamer, na interpretação jurídica, o sentido do texto e a sua aplicação a um caso
concreto não são dois actos separados mas um processo unitário, pelo que separar,
nela, a função cognitiva da função normativa é cindir, definitivamente, o que,
claramente, é uno91.
Gadamer ia mesmo mais longe, sustentando que a hermenêutica jurídica
revestia um significado paradigmático de toda a interpretação, pois recordaria por si
mesma o autêntico procedimento das ciências do espírito.
O jurista toma o sentido da lei a partir e em virtude de um determinado caso
concreto, tendo, como o historiador, de pensar também em termos históricos,
embora a componente histórica seja para ele apenas um meio, porquanto, para
adaptar, adequadamente, o sentido de uma lei é também necessário conhecer o seu
sentido originário, embora o jurista não fique sujeito à intenção dos que elaboraram
a lei, podendo admitir que as circunstâncias mudaram e que, consequentemente, a
função normativa da lei terá que se ir determinando de novo, dado que a tarefa da
interpretação jurídica consiste na concretização da lei, i.e., na sua aplicação. Daí
que, na relação entre passado e presente, na mediação jurídica que a interpretação
judicial do Direito realiza, o decisivo seja o significado jurídico da lei e não o seu
significado histórico, pois, nos seus trabalhos prático-normativos, o que o jurista
tenta realizar é a pervivência do Direito como um continuum e salvaguardar a
tradição da ideia jurídica92.
Entendia Gadamer que o processo hermenêutico-jurídico não apresentava só
evidentes afinidades com a hermenêutica filosófica e religiosa, pois também com a

91
Idem, pp. 461-464.
92
Idem, pp. 483-486.
54
hermenêutica histórica vinha a coincidir no essencial, dado que também em toda a
compreensão histórica está, igualmente, implicado que a tradição que nos chega
fala sempre no presente e carece de ser compreendido na mediação entre o
passado e o presente, mais ainda, como essa mediação, tal como lhe cabe realizar
uma certa aplicação, pois também ela serve à validade de um sentido, na medida
em que supera, expressa e conscientemente, a distância temporal que separa o
intérprete do texto, superando, assim, a alienação de sentido que o texto
experimentou.
Deste modo, para o filósofo alemão, a hermenêutica jurídica seria o caminho
que possibilitaria reconstituir a velha unidade do problema hermenêutico, a qual
radicaria naquilo que seria verdadeiramente comum a todas as suas formas, ou seja,
que o sentido que se trata de compreender só se concretiza e se completa na
interpretação mas, ao mesmo tempo, esta actividade interpretativa mantêm-se presa
ao texto, pois a aplicação, que aparece em todas as formas de compreensão, não
significa aplicação ulterior, a um caso concreto, de uma dada generalidade,
compreendida primeiro em si mesma, mas sim a primeira verdadeira compreensão
da generalidade que cada texto vem a ser para nós. Neste sentido, a compreensão
é uma forma de efeito e reconhece-se a si mesmo como efectiva93.

V. Pensava o filósofo que, por se haver restringido à ciência, o conceito de


experiência havia desatendido a historicidade interna da experiência e ignorado que
a experiência é experiência da finitude humana e, nessa medida, experiência da
historicidade. Daí que a experiência hermenêutica tivesse que ver com a tradição,
pois é ela que tem que aceder à experiência.
Notava, contudo, Gadamer que a experiência não é um simples acontecer que
possa conhecer-se e dominar-se pela experiência, mas é linguagem, pelo que a
compreensão da tradição entende o texto transmitido como um conteúdo de sentido
livre de toda a dependência dos que opinam e não como manifestação vital de
alguém.
Na estrutura da experiência hermenêutica, encontrava-se, para o filósofo, a
dialéctica da pergunta e resposta, já que no centro daquela está o diálogo com o
texto, razão pela qual o fenómeno hermenêutico encerra em si o carácter original da
conversa.

93
Idem, pp. 403-414 e 464- 488.
55
Daqui resultaria, então, que o processo hermenêutico é um processo linguístico
e que a linguisticidade determina não só o objecto hermenêutico como a realização
hermenêutica, pois a linguagem é o meio universal em que a compreensão se
realiza, sendo a interpretação a forma de realização da compreensão. Toda a
interpretação se desenvolve por meio da linguagem, a qual pretende deixar falar o
objecto, sendo, ao mesmo tempo, a linguagem do próprio intérprete. Deste modo, o
fenómeno hermenêutico apresenta-se como um caso especial da relação entre
pensar e falar, assim como a interpretação vem a constituir um círculo fechado na
dialéctica do perguntar e responder.

VI. Este conjunto de tomadas de posição no domínio hermenêutico,


designadamente a ideia da natureza linguística de toda a compreensão e
interpretação, abria caminho, no pensamento de Gadamer, à sua concepção da
linguagem como fio condutor da inflexão ontológica da hermenêutica e como
horizonte de uma ontologia hermenêutica e cuja tese central era a de que o mundo
só é mundo enquanto acede à linguagem, tal como esta unicamente tem a sua
verdadeira existência no facto de nela se representar o mundo, ou seja, que a
humanidade original da linguagem significa, igualmente, a linguisticidade originária
do estar-no-mundo do homem, pelo que da relação entre linguagem e mundo
depende o horizonte adequado à linguisticidade da experiência da hermenêutica,
bem como a peculiar objectividade do mundo. Para Gadamer, a linguagem aparecia,
pois, como o centro em que se reúnem o eu e o mundo, em que ambos surgem na
sua unidade originária.
Esta inflexão do acesso do sentido à linguagem apontaria, assim, para uma
estrutura universal ontológica, para a constituição de tudo aquilo para que a
compreensão pode voltar-se. Ora, o ser que pode ser compreendido é linguagem, é
ela que percebe a essência finita do homem. Esta conclusão valeria, segundo o
pensador germânico, tanto para a linguagem dos textos da tradição como para a
experiência da arte e da história, pelo que a constituição ôntico-especulativa
subjacente à hermenêutica teria a mesma amplitude que a razão e a linguagem,
pois, em derradeira instância, o ser seria linguagem94.

94
Idem, pp. 559-709. Cfr., igualmente, H–G. Gadamer, L’art de comprendre, vol. I., trad. franc. Marianna Simon,
Paris, Aubier, 1982, vol. II, trad. franc. Isabelle Julien Deygout, Philippe Forget, Pierre Fruchon, Jean Grodin e
Jacques Schouwey, id. 1991, Language et vérité, trad. franc. Jean Claude Gens, Paris, Gallimard, 1995 e La
Phillosophie hermenéutique, trad. franc. Jean Groudin, Paris, PUF, 1996. Ver Alexandre F. Morujão, ob. e vol.
56
17.3. Paul Ricœur.

I. Também o filósofo francês Paul Ricœur (1913-2005) partiu, como Heidegger


e Gadamer, da fenomenologia para realizar o seu projecto de constituição de uma
hermenêutica fenomenológica, em diálogo com as mais destacadas correntes de
pensamento suas contemporâneas, da psicanálise e do existencialismo, ao
estruturalismo, à filosofia da linguagem e ao pensamento ético-jurídico de Rawls e
Dworkin e não ignorando o conflito das interpretações que caracteriza o nosso
tempo, dividido entre uma hermenêutica concebida como a manifestação e a
restauração de um sentido que nos é dirigido como uma mensagem, uma
proclamação ou um anúncio (Kerigma) e uma hermenêutica entendida como
desmitificação ou como redução de ilusões95.
Procurando justificar o seu intento de realizar uma hermenêutica
fenomenológica, sustentava o filósofo haver duas maneiras de fundamentar a
hermenêutica na fenomenologia, que denominava, respectivamente, via curta e via
longa.
A primeira seria a de uma ontologia da compreensão (à maneira de Heidegger
e Gadamer), que se aplica imediatamente no plano de uma ontologica do ser finito,
para aí encontrar o compreender como um modo de ser e não já como um modo de
conhecimento, como tentativa de resposta à pergunta: o que é um ente cujo ser
consiste em compreender?
A segunda, aquela que Ricœur prossegue, embora tenha, como a primeira, a
ambição de levar a reflexão até ao plano de ontologia, fá-lo gradualmente,
percorrendo os caminhos sucessivos da semântica e da reflexão e defrontando-se
com a interrogação seguinte: o que acontece a uma epistemologia da interpretação
quando é tocada, animada ou absorvida por uma ontologia da compreensão?
A justificação para esta sua opção pela via mais longa e complexa de acesso
ao plano ontológico encontrava-a Ricœur, por um lado, na necessidade de achar
uma resposta às interrogações originárias da hermenêutica – as que versam sobre
como dar um organon à exegese enquanto inteligência dos textos, como
fundamentar a ciência histórica face às ciências da natureza ou como dirimir o
conflito das interpretações rivais – e, por outro, na necessidade de procurar na

cits., pp. 499-509, Rui Magalhães, ob. cit., pp. 45-52, P. Ricœur, ob. cit., pp. 96-100 e Josef Bleicher, ob. cit.,
pp. 153-179.
95
De l’interprétation. Essai sur Freud, Paris, Seuil, 1965 e Le conflit des interprétations Essais d’hermeneutique,
id., 1969.
57
linguagem (como Gadamer, de algum modo, havia feito) a indicação de que a
compreensão é um modo de ser, convicto que estava de que a problemática da
existência só poderia ser elaborada com base na elucidação semântica do conceito
de interpretação comum a todas as disciplinas hermenêuticas.
Ao falar em disciplinas hermenêuticas, no plural, o filósofo francês queria vincar
não haver uma hermenêutica geral ou um cânone geral para a exegese, mas teorias
separadas e opostas sobre as regras da interpretação, e daí o “conflito das
interpretações” a que alude o título de um dos seus livros.
Convergindo com Gadamer, pensava o autor de A metáfora viva (1975) que
toda a leitura ou interpretação de um texto se faz sempre no âmbito de uma
comunidade, de uma tradição ou de uma corrente de pensamento vivo, que revelam
pressupostos e exigências, e socorrendo-se dos modos de compreensão disponíveis
ou vigentes numa época (mito, alegoria, metáfora, analogia, etc).

II. Reconhecendo que é primeiro e sempre na linguagem que se exprime toda a


compreensão ôntica ou ontológica, e consciente da verdade da afirmação tradicional
de que um texto possui diversos sentidos, imbricados uns nos outros, Ricœur
pensava que seria na semântica das expressões múltivocas, que designa por
simbólica, que deveria procurar-se o eixo de referência para a análise da linguagem
e para o conjunto do campo hermenêutico.
Na sua abordagem, parte o filósofo de dois conceitos fundamentais, o de
símbolo e o de interpretação. O primeiro era por ele entendido como “toda a
estrutura de significação em que o sentido directo, primário, literal, designa, por
acréscimo, um outro sentido indirecto, secundário, figurado, que apenas através do
primeiro pode ser apreendido”. Correlato deste seria o conceito de interpretação,
que, para Ricœur, se apresentava como “o trabalho do pensamento que consiste em
decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os níveis de significação
implicados na significação literal”, daqui resultando, como o pensador não deixou de
sublinhar, que há interpretação onde há sentido múltiplo, sendo nela que essa
pluralidade de sentidos se manifesta.
Deste seu modo de entender os dois conceitos básicos que operariam no
domínio semântico da hermenêutica decorreria um conjunto de tarefas a realizar
pelo intérprete.

58
Quanto às expressões simbólicas, a análise linguística implica, por um lado,
efectuar uma enumeração, o mais ampla e completa possível, das formas simbólicas
e, por outro lado, fixar a constituição semântica das formas aparentadas ou afins,
como a metáfora, a alegoria ou a semelhança e estudar os processos de
interpretação do sistema hermenêutico em causa. Começando por uma investigação
em extensão das formas simbólicas e por uma análise em compreensão das
estruturas simbólicas, prossegue, depois, por uma comparação dos estilos
hermenêuticos e por uma crítica dos sistemas de interpretação, relacionando a
diversidade dos processos hermenêuticos com a estrutura das correspondentes
teorias, para culminar na sua função mais elevada, a de dirimir o conflito ou a
oposição entre cada uma das interpretações, em suas pretensões totalitárias e
excludentes.

III. Do nível semântico seria necessário, depois, passar ao plano da reflexão,


entendida como o que une a compreensão dos signos à compreensão de si, já que
toda a interpretação procura vencer a distância existente entre a época cultural do
texto interpretando e o intérprete, o que significaria, segundo o autor de Tempo e
narrativa (1983-1985), que toda a hermenêutica vinha a ser, explícita ou
implicitamente, “compreensão de si mesmo através do desvio da compreensão do
outro”, advertindo que ao integrar, deste modo, a hermenêutica na fenomenologia,
articulando as significações multívocas (símbolos) no conhecimento de si, se
introduzia profunda modificação na problemática do cogito.
Por outro lado, notava Ricœur que o pensamento reflexivo aplicado à
hermenêutica envolvia o recurso a uma lógica transcendental ou de duplo sentido, a
que se estabelece no plano das condições de possibilidade, não já das condições da
objectividade de uma natureza, mas das condições de apropriação do nosso desejo
de ser.
É, precisamente, esta lógica de duplo sentido que permitirá que a hermenêutica
ascenda a uma ontologia de compreensão, a qual permanece implicada na
interpretação, de acordo com o heideggeriano círculo hermenêutico, notando o
filósofo francês que a tarefa da hermenêutica, no plano ontológico, é mostrar que a
existência só se oferece à palavra, ao sentido e à reflexão se proceder a uma
exegese contínua de todas as significações que surgem nos monumentos culturais
em que a vida está objectivada. Deste modo, a existência de que uma filosofia
59
hermenêutica poderá falar será sempre uma existência interpretada, sendo na
interpretação que descobre as diversas modalidades da dependência de si, do
espírito e do sagrado96.

IV. Esta hermenêutica do símbolo, que constitui o primeiro estádio da


meditação de Ricœur, a partir da consideração hermenêutica do sagrado97 e da
psicanálise98, vai ser completada, num segundo momento, por uma hermenêutica do
texto99 e, por fim, por uma hermenêutica da acção100.
Se a última foi já parcialmente objecto da nossa atenção, quando
consideramos a sua teoria da justiça101, indissociável da sua reflexão ética e política,
é agora a segunda que particularmente nos interessa, dado, como de início se
notou, todo o Direito ser substantivamente linguagem, consistir sempre num discurso
verbal que se exprime num texto.
Um texto, para Ricœur, é qualquer discurso fixado pela escrita, em que o
sujeito ou o autor do discurso diz alguma coisa sobre alguma coisa, sendo pela
leitura que é conhecido e interpretado.
Este modo de entender o texto como objecto da hermenêutica teria, para o
autor de História e verdade (1955), duas decisivas consequências: por um lado, a
distinção entre a explicação e a compreensão teria de ser entendida em novos
termos, pois a primeira daquelas noções deixaria de apresentar-se como específica
das ciências da natureza, já que o seu nexo primeiro passaria a ser com a
linguagem e, por outro, vinha estabelecer uma estreita complementariedade e
reciprocidade entre as noções de explicação e interpretação, uma vez que esta
última deixaria de ter na visão psicologizante da compreensão de outrem (acolhida
por Schleiermacher e Dilthey) a norma da sua inteligibilidade.
Para Ricœur, a interpretação de um texto conclui-se na interpretação de si
próprio por um sujeito que, deste modo, se compreende melhor, se compreende de
outra maneira ou até começa, verdadeiramente, a compreender-se, o que

96
“Existence et herméneutique”, Le conflit des interpretations.
97
La symbolique du mal, Paris, Aubier, 1960.
98
De l’interpretations. Essai sur Freud, cit.
99
La métaphore vive, Paris, Seuil, e Temps et récit, id. 1983-1985.
100
Du texte à l’action. Ver também Paul Ricœur Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle, Paris, Ed. Esprit,
1995, p. 61. Cfr. Constança Marcondes César, “A ontologia hermenêutica de Paul Ricœur”, A hermenêutica
francesa. Paul Ricœur, Porto Alegre, 2002.
101
Sentido e valor do direito, ed. cit., pp. 306-308.
60
significaria que, mediante este processo, que denominava de apropriação, na
reflexão hermenêutica a constituição de si e a do texto seriam contemporâneas.
Ao usar aqui o termo apropriação, o filósofo francês pretendia vincar dois
pontos essenciais: em primeiro lugar, que uma das finalidades de qualquer
hermenêutica é lutar contra a distância cultural, entendida esta quer como distância
temporal entre o texto e o seu intérprete, quer como distância hermenêutica, no
sentido de que a interpretação visa superar a distância relativa ao sentido, tornando
“próximo”, “contemporâneo”, “semelhante”, “próprio”, o que, à partida, era estranho;
depois, que a interpretação tem um carácter actual, visa actualizar o sentido do texto
para o leitor presente.
Segundo Ricœur, a apropriação, que pela interpretação se realiza, não é a da
intenção do autor, que se encontra supostamente oculta por detrás do texto, nem a
da situação histórica comum ao autor e aos seus leitores originais, nem, tão pouco,
a da auto-compreensão que de si tinham como fenómenos históricos e culturais,
mas sim do sentido do próprio texto, entendido, dinamicamente, como desvelamento
de um mundo, que constitui a referência do mesmo texto. Deste modo, para Ricœur,
seria possível colocar a explicação e a interpretação sob o que designava por um
único arco hermenêutico e de integrar as atitudes opostas de explicação e
compreensão numa concepção global da leitura como actualização do texto, sendo
no íntimo desta que, indefinidamente, explicação e interpretação se opõem e
conciliam102.

V. Reportando-se directa e expressamente à hermenêutica jurídica, sustentava


o filósofo francês que o seu adequado entendimento pressupõe uma concepção
dialéctica da relação entre interpretação e argumentação, por considerar que, no
plano epistemológico, havia uma analogia entre a polaridade interpretar/argumentar,
no plano jurídico e a polaridade compreender/explicar, cuja estrutura seria
igualmente dialéctica.
Coerente com os seus pressupostos, notava Ricœur, acompanhando aqui a
crítica anti-positivista de autores como Dworkin, que o sentido da lei deve procurar-

102
Teoria da Interpretação (1976), trad. port. Artur Mourão, Lisboa, Ed. 70, 1987 e Du texte à l’action, pp. 101-
117 e 137-182. Ver Sérgio de Gouveia Franco, Hermenêutica e psicanálise na obra de Paul Ricœur, São Paulo,
Ed., Loyola, 1995, José Manuel Morgado Heleno, Hermenêutica e ontologia em Paul Ricœur, Lisboa, Instituto
Piaget, 2001, Joaquim de Sousa Teixeira, Ipseidade e alteridade. Uma leitura da obra de Paul Ricœur, Lisboa,
INCM, 2004, Teresa Picouto Novales, Hermenéutica, argumentación y justicia en Paul Ricœur, Madrid,
Dykinson, 2005 e Constança Marcondes César (org.), A hermenêutica francesa. Paul Ricœur cit.
61
se no texto e nas suas conexões intertextuais e não no comando ou na vontade do
legislador, assim como pensava que o discurso jurídico constitui uma espécie
particular do género discurso prático geral, não podendo o silogismo jurídico reduzir-
se à via directa da subsunção dum caso numa regra, visto exigir o prévio
reconhecimento do carácter adequado da aplicação daquela norma àquele caso.
Com efeito, a aplicação de uma regra é aqui uma operação assaz complexa,
em que a interpretação dos factos e a interpretação da norma se condicionam
mutuamente, antes de se poder chegar à qualificação por meio da qual se dirá que
certo comportamento é abrangido pela norma que se admite haja sido violada.
É precisamente, o carácter problemático de toda a subsunção que singulariza o
raciocínio jurídico no campo mais vasto do raciocínio prático, ao mesmo tempo que
faz que a interpretação não só não seja exterior à argumentação, mas constitua o
seu organon, vindo a justificação das premissas de qualquer inferência jurídica a ser
sempre o resultado do entrecruzamento da argumentação e da interpretação, sendo
da dialéctica entre ambas que decorreria a unidade complexa que caracterizaria o
que Ricœur denominava a epistemologia do debate judicial103.

18. A hermenêutica crítica

18.1. Karl–Otto Apel.

I. A terceira linha do pensamento hermenêutico contemporâneo surgiu e


desenvolveu-se no âmbito da denominada Escola de Frankfurt, como hermenêutica
crítica, visando, principalmente, as po-sições assumidas por H-G. Gadamer, a cuja
orientação, alegadamente tradicionalista, contrapunha uma concepção dialéctica e
critica.
Desenvolvendo o seu pensamento em diálogo crítico com a obra de C. S.
Pierce (1839–1914), L. Wittgenstein (1889–1951) e H-G. Gadamer, Karl-Otto Apel
(1922), principalmente no conjunto de ensaios reunidos nos dois volumes de
Transformação da filosofia (1973)104, apresentou os traços gerais do que designou
por hermenêutica transcendental, em que começa por reconhecer relevantes méritos
à fenomenologia hermenêutica de Heidegger e Gadamer, como a formulação da
noção de “círculo hermenêutico”, a superação da oposição anterior entre

103
Le juste, Paris, Editions Esprit, 1995, pp. 163-184.
104
Transformação da Filosofia, trad. port. Paulo Astor Soethe, São Paulo, Ed Loyola, 2000.
62
compreender e explicar ou o reconhecimento de que, ao contrário do que acontece
na explicação dos fenómenos naturais, a compreensão das acções humanas deve
implicar uma reivindicação normativa de justificação105.
Atribuindo primado filosófico e antropológico à linguagem, tal como os autores
de Ser e Tempo e Verdade e método, a cujo pensamento dedicou demorada
atenção reflexiva e crítica, Apel fundamenta nela a ideia matriz da sua filosofia, a de
que não é possível chegar a uma consciência cognitiva quanto a algo como algo ou
quanto a si mesmo como pessoa passível de ser identificado por meio de referência
ao eu sem que se haja tomado parte num processo de acordo mútuo linguístico e
interpessoal.
O considerar a linguagem como instância mediadora do conhecimento retiraria
o problema cognitivo da relação tradicional sujeito-objecto e tornaria sujeito da
interpretação a comunidade interpretativa de uma comunidade interactiva ilimitada.
De igual modo, uma evidência só poderia valer como verdade no âmbito do
consenso interpessoal sobre o sentido linguístico106.
II. Para o pensador alemão, o compreender pressuporia uma pré-estrutura
transcendental – hermenêutica como primeiro estádio no caminho de uma critica
transcendental do sentido, pré-estrutura essa que partiria, não da hipostaviação do
sujeito ou de uma consciência em geral como garantia metafisica da validação
intersubjectiva do conhecimento mas, antes, da pressuposição de que estamos
condenados, a priori, a um acordo intersubjectivo, a um consenso sobre o sentido
linguístico, mesmo que, depois, cada um, isoladamente, se veja forçado a entender-
se no mundo e a chegar, por via desse pré-entendimento, a determinados
conhecimentos válidos sobre as coisas e sobre a sociedade107.
Para Apel, este a priori de uma comunidade real de comunicação ou do acordo
mútuo argumentativo numa comunidade real e ilimitada, que, para ele, seria
praticamente idêntica à espécie humana e à sociedade, fundado no interesse
transcendental em nos apropriarmos das condições de possibilidade e de validade
da compreensão, apresentar-se-ia como o fundamento último da filosofia, ao mesmo
tempo que assumia uma posição essencial no âmbito da pré-estrutura

105
Ob. e trad. cits., vol. I, pp. 29-38.
106
Para o pensador alemão, a reflexão transcendental hermenêutica sobre as condições de possibi-lidade de acordo
mútuo linguístico numa comunidade ilimitada de comunicação conduzia à unidade entre a razão teórica e a razão
prática. Ob e trad. cits., vol II, p 405.
107
Ob e trad. cits., vol. I, pp. 68-79 e vol II, pp. 145, 226-242 e 247. Ver Josef Bleicher, ob. e trad. cits. pp. 205-213.
63
transcendental-hermenêutica da compreensão, porquanto todos os demais
pressupostos de acordo mútuo real deviam, em princípio, subordinar-se ao a priori
da comunidade de comunicação, exclusivamente com base no qual podem ser
reconhecidos ou discutidos.
Este a priori apresentaria estrutura dialéctica, sendo com base nela que seria
possível fundamentar a necessidade de mediação crítico-ideológica do acordo
mútuo entre os homens.
Porque a comunidade de comunicação é o pressuposto transcendental das
ciências sociais, sendo a sociedade o sujeito-objecto de tais ciências, seria pela
reconstituição dialéctica da história social que se poderia dar conta da contradição
fundamental entre a comunidade real e a comunidade ideal de comunicação, por
meio da mediação dialéctica da compreensão hermenêutica das acções e
instituições humanas.
A este propósito, notava Apel que o método da crítica da ideologia – que
considerava compreensível num decisivo aspecto da sua estrutura como
extrapolação da psicanálise, através da analogia entre a alienação do paciente
neurótico e a alienação social do género humano – se apresentava aqui como
condição de possibilidade de um programa filosoficamente relevante no acordo
mútuo humano.
Com efeito, seria possível conceber a mediação metódica da hermenêutica
pela própria crítica da ideologia como postulado da hermenêutica transcendental,
posição cujo fundamento filosófico resultaria, para o pensador alemão, do
desdobramento sistemático dos interesses cognitivos “internos” desde o início
implícitos na pré-estrutura da compreensão.
Assim, a crítica ideológica, concebida, como psicanálise da história social-
humana e psicoterapia das crises actuais do agir humano, viria a constituir o
elemento mediador dialéctico entre compreender e explicar e o único fundamento
lógico e a única justificação moral sensata para as ciências objectivas-explicativas
que se ocupam do ser humano.
Notava Apel que esta mediação do acordo mútuo pela crítica da ideologia
poderia traduzir-se num progresso no sentido da hermenêutica transcendental,
mesmo que se trate de um acordo mútuo hermeneuticamente ampliado e
melhorado, sustentando ser de presumir que é possível esperar da história em geral
um progresso no acordo mútuo entre os homens e no seu auto-entendimento. Por
64
outro lado, advertia que o sentido normativo-hermenêutico do princípio regulador de
uma comunidade ilimitada de interpretação, que se realiza a si mesmo ao longo do
tempo, fazia que o objectivo da interpretação viesse a ser transposto para um futuro
indefinido, com base numa mediação filosófica entre a empiria hermenêutica e a
praxis interactiva108.

18.2. Jürgen Habermas.

I. Tomando, igualmente, como alvo principal da sua crítica a hermenêutica


filosófica de Gadamer, a cuja leitura tradicionalista opõe uma leitura crítica109, Jürgen
Habermas (1929), companheiro de K. O. Apel na Escola de Frankfurt, ao longo de
mais de uma década, não deixou de se confrontar com o pensamento do autor de
Verdade e método, quer criticando directamente a obra capital do mestre de
Heidelberg, quer questionando o que designa por “pretensão de universalidade da
hermenêutica”110.
Se reconhece que, ao afirmar que uma compreensão, por mais controlada que
seja, não logra, só por si, superar os vínculos do intérprete com a tradição, a
hermenêutica tem razão, no entanto, esquece que da pertença estrutural do
compreender às tradições, que prolonga o mesmo compreender através da
apropriação, não decorre que a tradição se não haja transformado pela reflexão
científica, o que revelaria, segundo Habermas, que Gadamer avaliaria mal ou
desatenderia a força da reflexão que se desenvolve no compreender.
Por outro lado, ainda segundo o filósofo de Frankfurt, o autor de Verdade e
método transformaria a intelecção da estrutura pre-conceitual da compreensão
numa reabilitação do preconceito como tal, admitindo, sem mais, a legitimidade dos
preconceitos.
Acresceria ainda que se é correcto conceber a linguagem como uma espécie
de meta-intituição, de que dependem todas as instituições sociais, pois a acção
social se constitui unicamente na comunicação de linguagem corrente, não se pode
esquecer que a linguagem é também meio de dominação e de poder social, que

108
“Hermenêutica filosófica: leituras tradicionais e leituras críticas” (1981), Dialéctica e hermenêutica. Para a crítica
da hermenêutica de Gadamer, trad. port. Álvaro L. M. Valles, Porto Alegre, L &PM, 1987, pp. 86-97.
109
La Logique des sciences sociales et autres essais (1967), trad. franc. Rainer Rochlitz, Paris, PUF, 1987, pp. 184-215,
“Sobre verdade e método, de Gadamer” (1971), “A pretensão da universali-dade da hermenêutica” (1971) e
“Hans-Georg Gadamer: urbanização da província heideggeriana”, Dialéctica e hermenêutica, ed. e trad. cits., pp.
13-85.
110
Dialéctica e hermenêutica, pp. 13-72.
65
serve para legitimar as relações de violência organizada, pelo que se apresenta,
igualmente, como ideológica. Caberia não ignorar também que a transformação dos
modos de produção e as modificações institucionais resultantes do progresso
científico-técnico provocam uma reestruturação da imagem linguística do mundo.
Deste modo, para o autor de Conhecimento e interesse (1968), a infra-estrutura
linguística da sociedade seria momento de um contexto que, ainda que mediado
sempre simbolicamente, se constitui por coacções da realidade, quer da natureza
exterior, que se introduzem nos processos de disposição técnica, quer de natureza
interior, que se exprimem nas repressões das relações sociais de força. Daí que,
segundo o pensador alemão, o contexto objectivo a partir do qual podem ser
compreendidas as acções sociais se constitua, sobretudo, pela linguagem, pelo
trabalho e pela dominação.
Quanto ao que designa por pretensão de universalidade da hermenêutica,
observa Habermas deparar ela com alguns limites de decisivo relevo, de que
destaca, por um lado, o facto de o compreender hermenêutico, que se move no
domínio da comunicação da linguagem ordinária, perder a sua competência nas
esferas em que as proposições excedem o campo daquela linguagem, como
acontece quanto aos sistemas linguísticos organizados monologicamente
construídos pela ciência moderna e, por outro, as situações em que não só a
comunicação como a linguagem se encontram perturbadas, como ocorre com a
psicanálise, no domínio individual, e com a crítica das ideologias, no domínio
colectivo.

II. Esta recusa habermasiana da universalidade da hermenêutica sustentada


por Gadamer não significa, porém, que o pensador de Frankfurt recuse a
hermenêutica ou não reconheça as suas realizações positivas, entre as quais se
inscreveriam, segundo ele, as seguintes:
a) A capacidade para descrever a estrutura da reconstituição da
comunicação perturbada;
b) O estar necessariamente referida à praxis;
c) O destruir a auto-compreensão objectivista tradicional das ciências do
espírito;
d) O mostrar às ciências sociais que o seu domínio objectivo está pré-
estruturado pela tradição e que têm o seu lugar histórico determinado;
66
e) O revelar às ciências naturais a sua auto-compreensão cientificista;
f) O papel que lhe pode caber hoje na tradução para a linguagem do mundo
da vida social de informações cientificas ricas de consequências111.

III. É a partir deste reconhecimento dos méritos do pensamento hermenêutico,


não obstante as críticas que fazia a alguns aspectos essenciais da concepção
gadameriana, que Habermas formula o que designa por hermenêutica crítica,
nalguns aspectos próxima ou convergente com a hermenêutica transcendental que,
pela mesma época, o seu companheiro Apel delineava em alguns dos textos depois
reunidos em Transformação da filosofia.
Entendia o futuro autor da Teoria da acção comunicativa (1981) que a
hermenêutica filosófica não constituía uma técnica ou uma arte que discipline e
cultive, metodicamente, a capacidade natural de compreender e que se relaciona,
simetricamente, com a arte de conhecer e persuadir em situações em que são
trazidas para a decisão questões práticas, mas apresentava natureza crítica, pois
era uma reflexão que pode partir da nossa experiência da línguagem comunicativa.
Assim, para o filósofo germânico, a reflexão sobre o modo correcto de compreender
e tornar inteligível e de convencer e persuadir deveria estar ao serviço de uma
meditação sobre as estruturas da comunicação na linguagem corrente.
Apesar desta distinção fundamental entre a arte ou a técnica e a reflexão, no
domínio hermenêutico, cumpriria não esquecer, contudo, o que a hermenêutica
filosófica delas aproveita. Com efeito, na visão de Habermas, à arte de compreender
e tornar inteligível deve a hermenêutica filosófica a experiência de que os meios da
línguagem natural bastam para esclarecer o sentido de quaisquer textos simbólicos,
por mais estranhos e inacessíveis que se apresentem, enquanto à arte de convencer
e persuadir deve a experiência de que, através da comunicação da linguagem
corrente, são trocadas comunicações e são formadas e modificadas atitudes
orientadoras da acção.

IV. Para Habermas, como para Apel, a experiência hermenêutica caracterizar-


se-ia pela intersubjectividade do acordo na línguagem corrente, intersubjectividade
que é ilimitada, por poder ser livremente ampliada, e susceptível de ser rompida, por

111
Idem, pp. 34-36.
67
nunca poder ser integralmente produzida, tendo tal experiência a capacidade de
elevar à consciência a posição do sujeito que fala relativamente à linguagem.
De acordo com o pensamento habermasiano, a hermenêutica filosófica
desenvolve as noções da estrutura das linguagens naturais que podem ser
adquiridas a partir do uso reflectido da capacidade comunicativa, as quais, segundo
o pensador, seriam a reflexividade, a objectividade, a criatividade e a integração de
linguagem e praxis vital.
Este saber reflexivo concentra-se na consciência hermenêutica, a qual vem,
assim, a ser o resultado de uma auto-reflexão, em que o sujeito que fala percebe as
suas próprias liberdades e dependências relativamente à linguagem. Adverte, no
entanto, o filósofo que tal consciência será incompleta enquanto não assumir em si a
reflexão sobre os limites da compreensão hermenêutica, como sejam os que se
referem às manifestações vitais especificamente incompreensíveis, por
neuroticamente distorcidas.
Deste modo, uma hermenêutica criticamente esclarecida sobre si mesma teria
de assumir em si o saber meta-hermenêutico sobre as condições de possibilidade
da comunicação sistematicamente distorcida ou perturbada.
Por outro lado, deveria reconhecer que o contexto da tradição, enquanto lugar
da verdade possível e do estar-de-acordo fáctico, é também o lugar da inverdade
fáctica e da violência duradoura.
Cumpriria, igualmente, ter em conta que a reflexão hermenêutica vincula a
compreensão ao princípio do discurso racional, segundo o qual a verdade só poderia
ser garantida pelo consenso obtido sub condições idealizadas de comunicação
ilimitada e livre de dominação e que pudesse afirmar-se de modo duradouro. Daí
que a interpretação devesse supor uma racionalidade imanente em todas as
manifestações e declarações, por mais opacas que se apresentem inicialmente,
desde que se possam atribuir a um sujeito cuja imputabilidade e responsabilidade
não suscitem dúvidas, pois só quando o intérprete descobre as razões que fazem
aparecer como racionais as declarações de qualquer autor pode compreender o que
ele poderia ter querido dizer. Isto não deve fazer esquecer, no entanto, que a
compreensão significa, primariamente, entender-se na própria coisa, i.e., a pré-
compreensão, e só secundariamente compreender a opinião do outro enquanto
opinião.

68
V. Recorda, porém, o pensador que, como inicialmente advertira, o contexto
em que a actividade social pode ser compreendida é constituído não só pela
linguagem mas também pelo trabalho e pelo poder, bem como que a linguagem se
reveste de carácter ideológico. Deste modo, e como Apel também sustentara, a
crítica das ideologias é necessária para tornar patente o contexto da vida social em
todos os seus momentos.
Por outro lado, dado que a comunicação sistematicamente perturbada ou
distorcida é um aspecto da sociedade em que os homens vivem na alienação, que
tem a sua origem na dominação de homens sobre homens, a crítica das ideologias
encontraria na comunicação livre de dominação a sua ideia regulativa, o que
significaria, então, que uma vez alcançada ou conseguida uma comunicação
plenamente livre, a hermenêutica viria a coincidir com a crítica das ideologias112.

§ 2° A hermenêutica jurídica

19. Da hermenêutica geral à hermenêutica jurídica

1. Como seria natural, este amplo e diversificado movimento intelectual e o


debate especulativo sobre as condições gerais da compreensão do sentido dos
textos e outras manifestações espirituais significativas e sobre as regras a seguir na
sua interpretação não deixou, de forma directa ou indirecta, de se repercutir no
mundo do Direito ou de nele encontrar correspondências ou equivalências, que, no
entanto, não foram mecânicas transposições para a realidade normativa jurídica do
que fora pensado no domínio da hermenêutica geral, ela própria, algumas vezes,
influenciada pelo pensamento jurídico, situação de que são claros exemplos
Schleiermacher ou Betti.
Embora se haja apresentado, acima de tudo, como reflexão ou teorização a
partir da específica realidade normativo-imperativa do Direito e da sua natureza
intrinsecamente prática, porque dirigida a orientar, disciplinar ou rectificar a conduta
social do homem e a convivência intersubjectiva, revestindo, por isso, uma dimensão
dominantemente metodológica ou instrumental quanto àquilo que aqui acima de tudo
importa a realização da justiça nas relações humanas na hermenêutica jurídica dos

112
Idem, pp. 27-91. Ver Enildo Stein, “Dialética e hermenêutica: uma controvérsia sobre o método em
filosofia”, apêndice a Dialética e hermenêutica cit., Josef Bleicher, ob. e trad. cits., pp. 215-231 e Rui
Magalhães, ob. cit., pp. 53-56. Sobre a escola de Frankfurt ver Phil Slater, Origem e significado da Escola de
Frankfurt, trad. port. Alberto Oliva, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1978 e Paul-Laurent Assoun, L’École de
Frankfurt, Paris, PUF, 1987.
69
últimos dois séculos não deixaram de se reflectir alguns rumos da filosofia
hermenêutica ou da hermenêutica crítica, assim como algumas figuras cimeiras da
hermenêutica fenomenológica, como Gadamer ou Ricœur, não deixaram,
igualmente, de reflectir sobre a hermenêutica jurídica.

II. Antes de iniciar a consideração das mais representativas teorias


hermenêutico-jurídicas das duas últimas centúrias, desde a Escola da Exegese e da
Escola Histórica às mais significativas orientações contemporâneas, será
conveniente chamar a atenção para o papel, em regra decisivo, que em cada uma
delas desempenha o conceito de Direito, expresso ou implícito, de que parte, bem
como a teoria das fontes de Direito que acolhe, elementos que condicionam, de
modo muito relevante, a forma de entender a actividade interpretativa do Direito
como mediadora necessária na sua concreta aplicação às situações da vida que
visa regular ou disciplinar.

20. A hermenêutica jurídica no século XIX

20.1. A Escola da Exegese

1. Como é sabido, das duas correntes reflexivas que propugnavam a


codificação do Direito positivo, o positivismo utilitarista inglês de Jeremy Bentham
(1748-1832) e John Austin (1790-1859) e o jusracionalismo iluminista, de que
Thibaut se fez eco, foi esta última a que logrou triunfar, primeiro na compilação
prussiana de 1794, no código napoleónico de 1804 e no código austríaco de 1811 e,
depois, no amplo movimento de codificação, que atravessou toda a Europa no séc.
XIX, não deixando de se projectar, igualmente, na América Latina.
Sobretudo em França, com a entrada em vigor do Código Civil promulgado por
Napoleão, ocorreu uma profunda alteração no pensamento jurídico e na prática
hermenêutica dos juristas, que deu origem ao que se convencionou designar por
Escola da Exegese, cujos pressupostos vinham a convergir, de modo significativo, e
ao mesmo tempo, paradoxal, com os do legalismo positivista, se atentarmos na
matriz jusnaturalista do movimento codificador.
Quatro ideias centrais presidiam à Escola da Exegese: a da identificação do
Direito com a lei e desta com o código, com o directo é necessário monopólio
estadual da criação do Direito e com a redução das fontes de Direito à lei, a qual,
além disso, constituía o único critério jurídico, apenas nela podendo procurar-se os
70
critérios normativo-jurídicos, dado que, pela sua essencial racionalidade, as regras
gerais e abstractas da lei bastariam para satisfazer as diversas necessidades e
exigências da vida social, ideia bem expressa na afirmação de François Gény, um
dos seus mais destacados expoentes, de que seria necessário que todo o Direito
derivasse da lei escrita e positiva113; a da suficiência da lei, i.,e., do Código civil, para
solucionar todos os casos, com a paralela exclusão de lacunas no direito codificado,
pois o sistema jurídico constituía um todo completo e fechado que continha sempre
solução para todos os casos possíveis, ideia que encontrava apoio na art°.4°. do
Código, ao determinar este que o juiz que se recusasse a julgar, “com o pretexto da
obscuridade ou insuficiência da lei”, poderia ser punido por denegação de justiça.

II. Destes postulados ou destas ideias-base da Escola decorria uma doutrina


hermenêutica de natureza subjectivo – histórica, que atribuía ao intérprete o dever
de se cingir ao elemento gramatical da lei ou à letra da lei, devendo as dúvidas que
ela suscitasse ser esclarecidas ou dissipadas pelo recurso à vontade do legislador
histórico, a reconstituir ou a apurar, acima de tudo, por recurso aos trabalhos
preparatórios da lei, vontade que, dados os pressupostos da Escola, era entendida
como vontade racional, pelo que a sua determinação e o seu desenvolvimento
deveriam fazer-se por intermédio de argumentos lógico-analíticos e jurídico-
dedutivos.
Daqui resultava, então, que além da interpretação gramatical, se admitisse
também a interpretação lógica, pois seria ela que permitiria apurar a vontade
racional do legislador e, do mesmo passo, tornar explícitos os princípios gerais da lei
ou do Código.
Tal como resultava, ainda, uma teoria hermenêutica que apontava no sentido
de uma interpretação, fundamentalmente, de carácter lógico-formal ou lógico-
dogmático, visto vir a traduzir-se em tornar explícitas as proposições normativas
contidas no texto legal, as quais viriam a ser ordenadas ou articuladas de modo a
constituir um sistema.
Por outro lado, o postulado da intrínseca racionalidade da lei e do carácter
completo e fechado do sistema jurídico conduzia a Escola da Exegese a entender
que a solução para os casos omissos ou para as chamadas lacunas só poderia
encontrar-se numa auto-integração, a partir da analogia ou do recurso aos princípios

113
Méthode d'interprétation et sources en droit privé positif, vol. I, Paris, p. 40.
71
gerais dedutivamente determinados, devendo concluir-se que os casos que por
nenhuma destas vias pudessem ser decididos pertenceriam ao “espaço livre do
Direito”, ficando excluídos do sistema jurídico-legal.
Dos pressupostos da Escola decorreria, igualmente, a posição que sustentava
quanto à aplicação judicial do Direito, de natureza também ela lógico-dedutiva, e a
qual via na actividade do juiz o ser ele a mera expressão da lei ou da vontade do
legislador (“la bouche de la loi”), vindo a sua função a consistir num trabalho quase
mecânico, que se consubstanciava no que se denominou silogismo judiciário, em
que a premissa maior corresponderia à lei, a premissa menor aos factos jurídico-
conceitualmente qualificados e a conclusão à sentença114.

20.2. A Escola Histórica do Direito

I. O jurista alemão Friedrich Karl von Savigny (1779-1861) ocupa, no domínio


da teoria hermenêutica do Direito, um lugar de certo modo equivalente ao de
Schleiermacher no da teoria hermenêutica geral, devendo-se-lhe a formulação de
algumas teses, nomeadamente quanto aos elementos da interpretação das leis, que,
com matizes embora diversos, permanecem, ainda hoje, como referência quase
obrigatória.
Profundamente marcado, tal como o teólogo e filósofo dos Discursos sobre a
religião, pelo ambiente romântico, Savigny foi o criador e o mais destacado
representante da Escola Histórica do Direito, que se traduziu numa reacção e numa
ruptura relativamente à anterior tradição jusracionalista que dominara o pensamento
jurídico até ao final do séc. XVIII e contra a qual se haviam manifestado filósofos e
pensadores tão diversos como Vico (1668-1744), Montesquieu (1689-1755), Burke
(1729-1797) e Herder (1744-1803), em obras tão marcantes e influentes como os
Princípios de uma ciência nova em torno da natureza comum das nações (1725), O
espírito das leis (1748), Reflexões sobre a revolução em França (1790) e Ideias para
uma filosofia da humanidade (1784), unidos todos, no entanto, por uma decisiva
consideração da concreta e essencial historicidade do mundo humano e da
realidade jurídica e da sua múltipla diversidade espácio-temporal, sem prejuízo da

114
Cfr. León Husson, Nouvelles études sur la pensée juridique, Paris, Dalloz, 1974, pp. 173-196 ; Chaïm Pelerman,
Logique juridique. Nouvelle rhéthorique, 2ª ed.,. 1979, pp. 23-47 ; e A. Castanheira Neves, Digesta, vol. I, Coimbra,
Coimbra Editora, 1995, pp. 181-191 e bibliografia aí citada.
72
existência ou do reconhecimento de alguns traços comuns ou análogos no percurso
histórico dos vários povos e culturas.

II. No curso que regeu na universidade de Marburgo no ano lectivo de 1802-


1803, o jovem Savigny, influenciado pelo abstracto jusracionalismo já declinante de
Setecentos, identificava ainda o direito positivo com a lei ou o direito legislado,
reconhecendo, no entanto, a substantiva dimensão histórica do Direito, que faz que
a história do Direito se conjugue, estreitamente, com a do Estado e com a dos
povos. Desta concepção sobre a natureza do Direito derivava uma teoria da
interpretação que lhe atribuía como tarefa principal a reconstrução do pensamento
expresso na lei, na medida em que, a partir dela, tal pensamento fosse cognoscível.
Para isso deveria o intérprete “colocar-se na posição do legislador e deixar que se
formem, por esse artifício, os respectivos ditames”. A fim de alcançar tal objectivo,
deveria considerar na interpretação três elementos, que denominava lógico,
gramatical e histórico.
Sustentava então o futuro fundador da Escola Histórica que, com vista a
alcançar o pensamento da lei, deveria o intérprete ter em conta as circunstâncias
históricas do seu aparecimento, devendo ainda procurar conhecer as
particularidades e o significado de cada texto legal para o conjunto, visto a legislação
unicamente se exprimir no plano de um todo, o qual só em sistema poderia ser
apreendido, o que significaria que a interpretação do Direito não poderia deixar de
ter em conta o elemento histórico e o elemento sistemático relativamente a cada
norma, os quais serviriam, igualmente, à elaboração da ciência jurídica. Assim, à
elaboração histórica caberia considerar o sistema no seu conjunto e pensá-lo como
história da Jurisprudência no seu conjunto, enquanto à elaboração sistemática
competiria considerar o múltiplo na sua articulação, ter em conta o desenvolvimento
de conceitos e a exposição de regras jurídicas, de acordo com o seu nexo interno.
O estrito legalismo que o moço Savigny então perfilhava levava-o a recusar
qualquer interpretação extensiva ou restritiva, assim como uma interpretação
teleológica, sustentando que não cabia ao juiz aperfeiçoar a lei – tarefa que estaria
reservada ao legislador – mas apenas aplicá-la, atendendo tão só ao que, nas
palavras da lei, segundo o seu sentido gramatical, lógico e sistemático, houvesse
achado expressão como conteúdo da respectiva determinação.

73
Não obstante rejeitar qualquer interpretação extensiva ou ampliadora da letra
da lei, Savigny admitia a analogia, por entender que ela nada acrescenta à mesma
lei, visto consistir em, quando haja um caso não especialmente regulado, descobrir
na lei uma regra especial que preveja e regule um caso semelhante e reduzir essa
mesma regra a uma “regra superior” com base na qual decidiria o caso não
regulado, sendo, deste modo, “a legislação que a si próprio se complementa”.

III. Um decénio mais tarde, no opúsculo – manifesto Sobre a vocação do nosso


tempo para a legislação e para a ciência jurídica (1814), o pensamento de Savigny
registará uma radical alteração no seu modo de entender o Direito, que, para ele, vai
deixar de ser o produto ou expressão de um legislador racional, para, à maneira do
nacionalismo romântico, passar a ser visto como produto espontâneo de “espírito do
povo” (Volksgeist), novo ponto de vista que o levará a considerar de maneira muito
crítica os códigos napoleónico (1804), prussiano (1794) e austríaco (1811) e a
oporse com vigor à proposta de codificação do direito alemão apresentada por
Thibaut (l772-1840), na obra Da necessidade de um direito civil comum para a
Alemanha (1814), codificação que só virá a realizar-se um século mais tarde.
Os defensores da codificação entendiam que os novos códigos, por mais
perfeitos do que o múltiplo e disperso direito então vigente, garantiriam uma
mecânica exactidão na administração da justiça, de modo que o magistrado,
dispensado de todo o juízo próprio, deveria limitar-se a uma aplicação literal da lei,
ao mesmo tempo que pensavam deverem os novos códigos estar inteiramente livres
de toda a influência histórica e adaptar-se a todos os povos e a todos os tempos.
Deste modo, o Direito não seria mais do que o resultado da lei, de actos emanados
do poder supremo do Estado, sendo, por isso, possível que o direito de hoje
diferisse totalmente do de ontem, ficando reservado ao direito consuetudinário,
impreciso e fragmentário, o papel de mero auxiliar na interpretação das lacunas do
Direito.
A esta concepção contrapunha a nascente Escola Histórica a ideia de que, em
cada Povo, o Direito, como a língua, os costumes e a constituição política,
apresentam características peculiares, pois são manifestações espontâneas do
“espírito do povo” que, não tendo existência independente, são forças e
manifestações desse mesmo povo, individualmente ligadas entre si, pela “universal

74
crença do povo, pelo sentimento de necessidade íntima, que excluem toda a ideia
de uma sua origem meramente acidental e arbitrária”.
Assim, para Savigny, o Direito encontra-se em estreita dependência do
costume e do carácter do povo e, como a linguagem, conserva-se com o progresso
do tempo, progride com o povo e com a sua vida social, de cujo espírito é
manifestação, aperfeiçoa-se com ele e perece quando o povo perde o seu carácter.
Daqui resultaria, então, que o Direito se cria primeiro, pelos costumes e crenças
populares e, depois, pela jurisprudência, i.e., sempre ”por virtude de uma força
interior e tacitamente activa e nunca pelo arbítrio de nenhum legislador”.
Deste modo, a primeira e essencial fonte do Direito seria o costume, como
manifestação directa e espontânea do espírito do povo, cabendo à jurisprudência o
duplo papel de interpretar os costumes para determinar os sentidos normativos que
hão-de reger a vida colectiva e de formalizar em conceitos os dados assim
recolhidos, cabendo à lei a função secundária de fixar os costumes115.
IV. Esta concepção seria desenvolvida um quarto de século mais tarde, no
Sistema do direito romano actual (1840), que veio a constituir a mais acabada
expressão da Escola Histórica do Direito e da doutrina hermenêutico-jurídiea do seu
fundador.
Podemos considerar como aspecto fundamental da Escola Histórica o seu
conceito espiritual-cultural e histórico e não já politico do Direito, com a paralela
recusa de uma sua concepção volitivo-racionalista, o que levava, por um lado, a
atribuir ao costume e não já à lei o lugar de primeira e mais importante fonte do
Direito, na medida em que era nele que o “espírito do povo” espontaneamente se
manifestava e, por outro, a criticar e repudiar a codificação, para a qual considerava
não estar ainda preparada a ciência jurídica alemã, dado o seu reconhecido atraso.
Mas se, como Savigny pensava, o Direito continua a viver na consciência
comum do povo, a sua elaboração rigorosa e a sua aplicação concreta seria função
própria dos juristas, pelo que, embora, fosse algo intrinsecamente histórico, a ciência
jurídica para além de ser história do Direito, era, igualmente, uma ciência dogmática,
cuja cientificidade resultava do seu carácter sistemático, bem expresso no título da
sua obra capital, o que, como já tem sido notado, de certo modo, equivalia a

115
De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la ciência del Derecho, trad. Cast. Adolfo G. Posada, Buenos
Aires, Ed. Arengreen, 1945.
75
recuperar aquele racionalismo normativo que definia o jusnaturalismo racionalista a
que a Escola Histórica decididamente se opunha.
Na verdade, para o fundador da Escola, o sistema seria uma unidade racional
de natureza formal-estrutural, cujo elemento base seriam os institutos jurídicos
(como o matrimónio, a patria potestas, a propriedade ou a compra e venda),
existentes por si, independentes de qualquer elemento teleológico, vindo, deste
modo, no seu pensamento jurídico, o elemento histórico e o elemento sistemático a
constituir uma dualidade não integrada, em que este acabou por prevalecer sobre
aquele, vindo a Escola a sacrificar a dimensão histórica à dimensão dogmática,
passando a atender mais às fontes históricas da ciência jurídica do que às fontes
vivas do Direito e à sua primeira origem consuetudinária116.

V. Era, precisamente, daqui que provinha o modo como Savigny compreendia


a hermenêutica jurídica, como teoria da interpretação jurídica das leis, elemento
metodológico essencial da actividade dos juristas e de que era aspecto decisivo a
sua teoria dos quatro elementos da interpretação: gramatical, histórico, lógico e
sistemático, que esboçada já no juvenil curso de 1802, era agora completada com a
adição do elemento sistemático, o qual era entendido como referindo-se “ao nexo
interno que liga numa grande unidade todos os institutos e regras jurídicas”.
A este respeito notava o grande jurista alemão, que o instituto jurídico, sendo
um todo de relações humanas típicas carregado de sentido, que se transforma no
tempo, não pode nunca ser exposto inteiramente pelas regras que lhe dizem
respeito mas de que aqueles não são produto, sendo, pelo contrário, na intuição do
instituto jurídico que as regras têm o seu verdadeiro fundamento.
Assim, na interpretação dessas regras, seria sempre necessário partir da
intuição do instituto jurídico, o que fazia que o pensamento jurídico tivesse sempre
de conciliar intuição e conceito: a primeira representa-lhe o todo, enquanto o
segundo e a regra por seu intermédio constituída só logra abranger um aspecto
parcial, carecendo, por isso, o conceito de ser constantemente alargado e rectificado
através da intuição.
No entanto, como notou Larenz, “Savigny não consegue mostrar-nos como se
efectua o trânsito da „intuição‟ do instituto para a „forma abstracta da regra‟ jurídica e

116
Cfr. A. Castanheira Neves, ob. e vol. cits, pp. 203-214.
76
desta, fundamentalmente, para a intuição originária”, radicando aqui a limitada
eficácia da sua metodologia jurídica117.
Entendia o autor do Sistema que o objecto da interpretação jurídica era “a
reconstituição do espírito ínsito na lei”, pelo que caberia ao intérprete colocar-se em
espírito na posição do legislador, repetindo em si, artificialmente, a actividade dele,
de modo que tome vivamente presente em si a actividade espiritual que deu origem
à expressão de pensamento contida na lei, devendo, de igual modo, ter
suficientemente presente a intuição do todo histórico-dógmático, pois só ela pode
permitir a apreensão imediata das relações desse todo no texto interpretando.
Quanto a este ponto, deve notar-se, como lembra Larenz, não poder integrar-
se a posição de Savigny na chamada teoria subjectivista da interpretação jurídica,
pois, quando ele exige que o intérprete repita, no seu espírito, a actividade do
legislador pela qual a lei surgiu, está a referir-se, acima de tudo a uma actividade
espiritual própria que, procurando “conhecer a lei na sua verdade”, leva para além
daquilo que o legislador histórico concretamente terá pensado, visando antes um
pensamento jurídico objectivo que no instituto jurídico se realiza 118.
Aspecto igualmente relevante da teoria hermenêutico-jurídica da maturidade do
jurista alemão é o admitir ele agora que, no caso em que se apresente
indeterminada a expressão que se usa na lei, se socorra o intérprete do que
designava por “nexo interno da legislação”, bem como do fim especial da lei, na
medida em que o mesmo possa ser comprovado e, não o podendo ser, faça apelo a
uma “razão geral”, i.e, a um pensamento jurídico geral.
Diversamente também do que sustentara na juventude, o Savigny da
maturidade era levado a aceitar tanto a interpretação extensiva como a restritiva,
entendendo agora que se devia procurar conhecer, historicamente, quais os
pensamentos que o legislador ligou à expressão carecida de correcção por via
hermenêutica, assim como entender ao já aludido nexo interno e à especial razão de
ser da lei, mas sempre de modo a impedir que esta venha a ser aplicada em
contradição com o seu respectivo fim. Continuava, contudo, a excluir ou a rejeitar
qualquer rectificação da lei que, baseada tão só numa mera “razão jurídica geral”,
viesse a revestir “o carácter de um aperfeiçoamento do Direito distinto da
interpretação”.

117
Metodologia da ciência do Direito, 3ª ed., trad. port. José Lamego, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 14.
118
Ob. e trad. cits, p. 16, nota.
77
Também quanto à analogia se regista significativa divergência relativamente às
posições iniciais do autor, porquanto entende ele agora dever aquela fundar-se na
intuição global do instituto jurídico correspondente.
Assim, no caso de se tratar de uma relação jurídica nova, para a qual não
exista, como arquétipo, nenhum instituto jurídico, torna-se necessário criar um
instituto jurídico arquétipo, tomando por base o parentesco ou a afinidade com
institutos já conhecidos.
Diversamente, quando, num instituto jurídico já conhecido, surge uma nova
questão jurídica, a solução há-de procurar-se atendendo ao segundo parentesco
íntimo das proposições jurídicas pertencentes a esse instituto, na medida em que se
adequa a uma justa compreensão dos fins especiais dessas mesmas proposições.
Considerava, ainda, Savigny que a analogia se baseia sempre na pressuposta
coerência interna do Direito, a qual, mais do que uma mera consequência lógica, é,
acima de tudo, uma consequência orgânica, que resulta da intuição global da
natureza prática das relações jurídicas e dos respectivos arquétipos119.

20.3. A jurisrisprudência dos conceitos

1. A dualidade em que se debatia o pensamento da maturidade de Savigny


entre o elemento histórico e o elemento sistemático vai ser resolvido pelo seu
discípulo Georg Friederich Puchta (1798-1846), dando decisiva prevalência ao
elemento sistemático e conceitual, encaminhando a Escola Histórica no sentido do
que veio a designar-se por jurisprudência dos conceitos.
Retomando o processo lógico-dedutivo de construção de conceitos, próprio do
racionalismo wolfiano, a nova orientação doutrinária passa a ver o Direito como um
sistema de conceitos e não já de institutos, como Savigny pensara, ao mesmo
tempo que atribuirá à doutrina a natureza de verdadeira fonte de Direito, ao lado do
costume e da legislação.
Fruto, em larga medida, da nova atitude epistemológica decorrente do
criticismo kantiano, a jurisprudência dos conceitos vinha, de certo modo,

119
Cfr. Larenz, ob. e trad. cits., pp 9-19; Wilhelm, La metodologia jurídica en el siglo XIX, trad. cast. Rolf Bethmann,
Madrid, Edit. Derecho Provado, 1980, pp. 7-62; A. Castanheira Neves, ob e vol cits., pp. 203-214; Franz Wieacker,
História do Direito Privado Moderno, trad. port. A. M. Botelho Hespa-nha, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1980, pp. 397-475; António M. Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica europeia, Lisboa, Europa-
América, 1997, pp. 181-185; e Martín Laclau, La historicidad del Derecho, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1994,
pp. 107-118 e “Interpretación del derecho e intuición en el pensamiento de Savigny”, Anuario de Derechos
Humanos, Nueva Época, Vol. 11, 2010, pp. 225-252.
78
corresponder ao apelo de Savigny no sentido do aperfeiçoamento e aprofundamento
da ciência jurídica alemã, cujo reconhecido atraso, no contexto europeu, era uma
das principais razões da sua oposição à proposta, para ele prematura, de
codificação do direito civil alemão, de que Thibault era o principal arauto.

II. Para Puchta, “as particulares proposições jurídicas que constituem o Direito
de um povo estão unidas entre si numa conexão orgânica que se explica, sobretudo,
por procederem do espírito do povo, pois a unidade desta fonte comunica-se a tudo
o que dela deriva”, sendo, por isso, “a função da ciência jurídica reconhecer as
proposições jurídicas na sua conexão sistemática, como reciprocamente
condicionadas e derivando umas das outras, para ascender, na genealogia de cada
uma delas, até aos princípios e descer, depois, dos princípios até às suas mais
extremas ramificações”. Nisto consistiria a ciência do Direito, que seria ela própria
Direito, ao lado do costume e da lei, sendo o “Direito que daquela nasce o Direito da
ciência, ou melhor, porque é revelado pela obra dos juristas, o Direito dos
juristas”120.
Assim, para o sucessor de Savigny na cátedra de Berlim, se a lei deveria ser
entendida, não como produção originária do Direito mas como forma de expressão
do Direito já criado pela consciência popular ou pelo “espírito do povo”, o “Direito
findado na autoridade externa da convicção popular imediata e do poder legislativo”,
é retrotraído aos seus princípios pela actividade científica dos juristas e
compreendido como um sistema, actividade essa que revela e torna conhecidas
proposições jurídicas ocultas no espírito do direito nacional e não reveladas na
convicção imediata dos membros da comunidade nem nos actos ou manifestações
do legislador. Deste modo, para Puchta, o jurista converte-se em representante e
intérprete qualificado do “espírito do povo”, a quem é conferida a possibilidade de
modificar as normas existentes ou reconhecidas como tais, e, até, de criar normas
novas, por dedução dos princípios imanentes ao sistema jurídico.
Duas eram as ideias fundamentais em que se apoiava a construção do jurista
alemão: a de genealogia dos conceitos e de jurisprudência produtiva.
A primeira fundamentava a sua ideia de que a ciência jurídica consiste em
seguir, em sentido ascendente e descendente, a origem de cada um dos conceitos,
através do processo lógico (e não já histórico) que preside à sua formação, i.e, de

120
O direito consuetudinário, 1928-1837 e Curso das Instituições, 1844.
79
uma “pirâmide de conceitos” em que o conceito supremo, de que todos os outros se
deduzem, codetermina todos os outros através do seu conteúdo, que Puchta fazia
coincidir com o conceito kantiano de liberdade, nisto se distinguindo, claramente, da
futura visão kelseniana, por admitir um conteúdo suprapositivo para o conceito
supremo em que assenta ou de que decorre todo o sistema jurídico.
Assim, como escreveu Wieacker, “a legitimidade da norma jurídica baseia-se,
agora, exclusivamente, na sua correcção sistemática, na sua verdade lógica e na
sua racionalidade: a própria criação do Direito torna-se num ‟desenvolvimento a
partir de conceitos‟. É, deste modo, introduzido o processo (...) de deduzir a norma e
a decisão jurídica a partir do conceito, em vez de, pelo contrário, produzir o sistema
e os conceitos através da indução a partir das normas jurídicas, das decisões
jurisprudenciais e das valorações sociais”121.
A ideia de jurisprudência produtiva deriva, de algum modo, desta maneira de
conceber a ciência jurídica, a qual, pela sua racionalidade lógico-dedutiva, que
conferia coerência sistemática ao Direito, poderia produzir direito válido, pois, “o que
decorre por necessidade íntima das máximas jurídicas existentes, deve valer, por via
da racionalidade do Direito como Direito, como vontade da nação 122”, o que atribuía
à doutrina a qualidade de verdadeira fonte criadora de Direito, em pé de igualdade
com o costume e a lei e intérprete autorizada, como esta, do “espírito do povo” que
naquele directa e espontaneamente se manifestava.

III. Três eram os postulados essenciais em que vinha a assentar a nova


orientação doutrinária assim inaugurado por Puchta, de que Bernard Windscheid
(1817-1892) viria a ser, depois, o mais destacado representante: a teoria da
subsunção, a da plenitude lógica do ordenamento jurídico e a doutrina objectivista
da interpretação.
O primeiro destes postulados decorre, directamente, da ideia do sistema
jurídico como “pirâmide de conceitos”, cuja base é constituída pelos conceitos
menos gerais, cujos estratos superiores são ocupados pelos conceitos cada vez
menos gerais e cujo vértice é o conceito supremo, o mais geral de todos. Neste
esquema ou neste processo lógico, os conceitos menos gerais subsumem-se aos
mais gerais, em completa harmonia lógica.

121
Ob. e trad. cits., p. 457.
122
Lições de Direito romano actual, 1854.
80
Por outro lado, segundo a mesma teoria da subsunção, a realização da justiça
no caso concreto, a aplicação judicial do Direito, processar-se-á pela subsunção dos
“factos” ao “direito”, segundo um processo lógico de tipo silogístico, em que a
premissa maior seria constituída por um princípio jurídico e a premissa menor pela
situação de facto a decidir, convertida em conceito jurídico, através de uma
actividade de qualificação, decorrendo a decisão de um processo puramente lógico,
como conclusão desse mesmo silogismo.
Da natureza lógico-conceitual do sistema jurídico provinha, igualmente, o
postulado ou o dogma da plenitude lógica do ordenamento jurídico e a consequente
inexistência de lacunas nele. Com efeito, embora o conjunto das normas legais não
preveja nem regule, necessariamente, todas as situações carecidas de tratamento
jurídico, a estrutura lógica do sistema jurídico e a possibilidade de, a partir dos
conceitos contidos na lei, criar novos conceitos ou alargar o âmbito dos já existentes,
permite achar sempre solução para qualquer caso imaginável. Deste modo, o juiz
não só não poderá recusar-se a decidir invocando a inexistência de direito aplicável
como deverá limitar-se, nestes casos, a estender ou alargar, por dedução e
combinação de conceitos, o sistema normativo, para encontrar a solução para o
caso decidendo.
Por outro lado, da ideia fundamental da jurisprudência dos conceitos que
qualquer ordenamento jurídico era um sistema coerente de conceitos, construído a
partir do direito legislado, decorria uma doutrina hermenêutica segundo a qual o
sentido relevante de cada norma era o seu sentido sistemático, i.e, o que resultasse
da sua referência ao sistema normativo de que fazia parte, o mesmo é dizer dos
sentidos objectivos do respectivo contexto. A jurisprudência dos conceitos vinha,
assim, a recorrer à ideia de um legislador “razoável”, de um legislador que vai,
permanentemente, integrando cada uma das normas do ordenamento jurídico no
seu contexto sistemático, por forma a que o mesmo ordenamento conserve sempre
a sua integridade e coerência como sistema de conceitos jurídicos.
Será, principalmente, com Binding, Wach e Kohler que, na década de 80 do
séc. XIX, a teoria objectivista da interpretação encontrará a sua mais acabada
formulação. Sustentaram, quase, simultaneamente, aqueles três autores que o que
deve ser relevante e decisivo, no plano jurídico, não é aquilo que pensara ou quisera
o autor da lei, a chamada vontade do legislador, como entendia a Escola da exegese
e algum positivismo jurídico, mas o significado objectivo da lei, a ela imanente. Deste
81
modo, o que a hermenêutica jurídica deve procurar é tomar patente o sentido
racional da lei, pois o direito positivo constitui uma ordem ou um sistema racional,
sendo por isso, a lei a “vontade racional” da comunidade jurídica e não a expressão
da vontade empírica do legislador histórico. Daí que, para Binding, os meios da
interpretação, fossem, além do sentido literal da norma a interpretar, “o momento da
coerência com outras proposições jurídicas” e o “momento do fim racional da lei”123.

20.4. O positivismo jurídico

1. Os caminhos da Escola da exegese e da jurisprudência dos conceitos


vieram a confluir ou a coincidir, em larga medida, com o que eram as grandes teses
do positivismo jurídico, de matriz inglesa, de Hobbes, Bentham e Austin, entre os
quais avultavam, como noutra oportunidade se notou, uma concepção monista e
voluntarista do Direito, que o identificava como o direito positivo e o levava a ver a
vontade criadora do Direito na vontade do Estado (estadualidade do Direito); a
concepção da norma jurídica como comando e a definição do Direito em função da
coacção (coactividade do Direito); a redução das fontes do Direito à lei, ficando a
validade e a relevância das restantes dependentes do seu reconhecimento ou
aceitação pela lei e nos estritos termos nela definidos (legalismo); uma concepção
meramente formal da validade jurídica (formalismo) e a consequente total separação
entre o Direito e a Moral; a concepção do ordenamento jurídico como algo dotado de
coerência e plenitude, pelo que a única forma de integração de lacunas seria a auto-
integração: uma visão exclusivamente cognitiva, subjectivista e lógico-declarativa da
interpretação jurídica e da actividade judicial, que obedeceria sempre ao modelo do
chamado “silogismo judiciário”124.

II. Deste modelo teórico afastava-se, em alguns pontos essenciais, a Teoria


pura do Direito, de Hans Kelsen, que se apresentava como uma teoria do direito
positivo ou do positivismo jurídico, nomeadamente no que dizia respeito à
hermenêutica jurídica e ao carácter não só cognitivo mas também volitivo que
atribuía à interpretação e aplicação do Direito.

123
Cfr. Larenz, ob., trad. e ed. Cits, pp. 21-44; F. Wieacker, ob. e trad. cits., pp. 491-524; Walter Wilhelm, ob. e
trad. cits., pp. 62-79; António M. Hespanha, ob. cit., 99 185-192; e A. Santos Justo, Nótulas de História do
Pensamento Jurídico, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 59-62.
124
Cfr. A. Braz Teixeira, Sentido e valor do Direito, Introdução à filosofia jurídica, 4ª ed., Lisboa, INCM, 2010, pp. 55-
56.
82
Para o mestre vienense, a interpretação seria “uma operação mental que
acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão
superior para um escalão inferior”.
Se é verdade que a relação entre um escalão superior e um escalão inferior da
ordem jurídica, de acordo com a estrutura piramidal que Kelsen via nessa mesma
ordem jurídica, é uma relação de determinação, já que o primeiro regula o processo
de produção da norma pelo segundo e, muitas vezes, também o respectivo
conteúdo, cabe não esquecer que tal determinação nunca é completa, visto que a
norma de escalão superior ter sempre de deixar uma margem de livre apreciação,
vindo, por isso, a constituir um quadro ou moldura a preencher pelo acto de
produção normativa ou de execução que a aplica.
Esta relativa indeterminação tanto pode ser intencional, quando é querida pelo
órgão que estabeleceu a norma a aplicar, como não intencional quando, não tendo
sido querida por aquele mesmo órgão, resulta quer de o sentido verbal da norma
não ser unívoco, admitindo diversas significações possíveis, quer da possibilidade
de se admitir que existe uma divergência, total ou parcial, entre a expressão verbal
da norma e a intenção da autoridade de que a mesma provém, quer da contradição,
total ou parcial, entre duas ou mais normas aplicáveis.
Daqui resultaria, então, que, nestes diversos casos de indeterminação não
intencional, ao intérprete se depararia uma multiplicidade de possibilidades
normativas, o que significaria que se a actividade hermenêutica tivesse uma função
exclusivamente cognitiva, isto é, apurar o preciso sentido da norma aplicada, não
conduziria, muitas vezes, a uma única solução, pelo que a “correcção” da sua
interpretação e aplicação mais não poderia significar do que enquadrar-se ela na
moldura normativa, correctas sendo, igualmente, outras interpretações diferentes
dela mas que, como ela, se enquadrassem também na moldura legal em causa.
Acontecia, porém, segundo Kelsen pensava, que o acto de interpretação nunca
era um mero acto intelectual de clarificação e compreensão, que pudesse condizer
sempre, só por si, a um resultado unívoco, mas envolvia também um acto de
vontade, o de escolha entre as diferentes possibilidades de sentido contidas na
norma, pelo que não é possível definir nenhum critério que permita dizer qual
daquelas possibilidades possa ou deva ser preferida.
Deste modo, a actividade judicial ou administrativa, tal como a actividade
legislativa ou regulamentar, é uma actividade relativamente livre de criação do
83
Direito e não de mera e mecânica aplicação, como entendia a doutrina tradicional do
positivismo jurídico, o que significaria, então, de acordo com o pensamento
hermenêutico do fundador da Escola de Viena, que “na aplicação do Direito por um
órgão jurídico, a interpretação cognitiva do Direito a aplicar se combina com um acto
de vontade em que o órgão aplicador do Direito efectua uma escolha entre as
possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognitiva” e “com
este acto é produzida uma norma de escalão inferior ou é executado um acto de
coerção estatuído na norma aplicanda”.
Assim, a interpretação feita por um órgão aplicador do Direito é sempre
criadora, ainda que, como acontece com a actividade jurisdicional, apenas crie uma
norma individual no litígio que decide ou julga. O mesmo acontece, por maioria de
razão, no caso de preenchimento de uma lacuna do Direito, em que a função do
intérprete é também uma função criadora e não lógico-dedutiva.

III. Diferentemente se passam as coisas quanto à interpretação do Direito


levada a cabo pela ciência jurídica, que é de natureza exclusivamente cognitiva, a
qual, de acordo com o pensamento kelsiano, teria “de evitar, com o máximo cuidado,
a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos,
uma única interpretação, que seria a interpretação „correcta‟, ficção de que se servia
a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica, o qual só
seria realizável aproximadamente”125.

21. A reacção anti-conceptualista:

21.1. O Movimento do Direito Livre

O frio e neutro formalismo logicista da jurisprudência dos conceitos e do


positivismo jurídico, longamente dominantes durante as últimas décadas do séc. XIX
e boa parte da 1ª metade do séc. XX, suscitou, no inicio deste, duas fortes reacções
doutrinárias, a dos membros do Movimento do Direito Livre e a dos representantes
da chamada jurisprudência dos interesses, que estiveram, no entanto, longe de
convergir, não deixando, pelo contrário, a segunda de criticar a primeira com alguma
veemência.

125
Teoria pura do Direito (1960), trad. port. João Baptista Machado, Coimbra, Livraria Arménio Amado, 1976, pp.
463-473.
84
O chamado Movimento do Direito Livre, através da sua principal figura, o jurista
alemão Hermann Kantorowicz (1877-1940)126, repercutindo, de certo modo, um novo
ambiente cultural do final de Oitocentos e do início séc. XX, com o emergir das
filosofias vitalistas, do apelo ao homem concreto e a um novo e mais amplo conceito
de razão, atento a outras formas gnósicas, como a intuição, o sentimento e a
imaginação, vinha opor-se, criticamente, ao panlogicismo positivista, ao
conceitualismo abstracto e axiologicamente neutro da jurisprudência conceitual, com
as consequentes teorias de subsunção e do “silogismo judiciário”, e aos três dogmas
fundamentais em que assentavam: o da identificação do Direito com a lei, o da
plenitude lógica do ordenamento jurídico e o do Direito como sistemas logicamente
determinável e lógico-dedutivamente aplicável.
Assim, às concepções do Direito acolhidas por aquelas duas doutrinas jurídicas
contrapunha o Movimento do Direito Livre a ideia de que, para além da lei ou do
direito legal, eram também Direito o direito consuetudinário ou comunitariamente
espontâneo, o que decorre das decisões judiciais e o elaborado pela ciência jurídica,
do que resultaria serem quatro e não apenas uma (a lei) as fontes do Direito.
Por outro lado, ao dogmas da plenitude do ordenamento jurídico, perfilhado por
ambas aquelas concepções doutrinárias, contrapunham os defensores do Direito
Livre o carácter radicalmente lacunoso da lei, mesmo nos domínios por ela expressa
e formalmente regulados, o que, precisamente, daria razão a um “Direito livre”127.
Finalmente, à concepção exclusivamente logicista e conceitual do Direito,
opunham a sequazes da nova orientação que o Direito e o pensamento jurídico
pertenciam ao domínio axiológico-normativo e prático-emocional, tendo que ver,
directamente, com a vida e com as exigências da realidade social, por ser aí que
surgiam os problemas jurídicos, sendo no interesse da vida e das exigências sociais
que tais problemas careciam de ser solucionados, implicando sempre a concreta
aplicação do Direito uma valoração prática e não apenas abstractas deduções
lógicas.
Deste modo de entender o Direito e a realidade jurídica decorriam algumas
ideias fundamentais, como a de que o momento essencial da manifestação do
Direito e da vida jurídica era, não a abstracta formulação da lei mas a sua efectiva
realização histórico-social, o que se traduzia em conferir à decisão judicial o papel

126
A luta pela ciência pura do Direito, 1906.
127
Kantorowicz chegou a afirmar que na lei “há tantas lacunas como palavras”.
85
de elemento fundamental na formação do Direito e aquele que, por isso, devia ser
tido em conta pelo pensamento jurídico.
A esta primeira ideia, e a ela estreitamente associada, aparecia o entendimento
de que o elemento decisivo na criação do Direito não era a razão mas a vontade,
movida por uma intuição axiológica de raiz emocional, pela intuição concreta do
justo, como vista a alcançar o “resultado praticamente mais razoável, de maior
justiça e mais equitativo”. Deste modo, “tanto a lei como a racionalidade normativa
que era possível construir a partir das suas normas funcionariam apenas como
expedientes complementares, como elementos de justificação ou de controlo
normativo-jurídico a posteriori”128.
Daqui resultava, então, que era a vontade de obter uma decisão justa e
razoável que determinava a escolha dos textos legais em que essa mesma decisão
se pretendesse fundamentar, devendo, no entanto, o juiz decidir como decidiria,
naquele caso, um juiz que pudesse ser considerado como constituindo o “tipo
empírico” de juiz da comunidade jurídica em causa, de modo a garantir uma possível
objectividade das decisões.
A essencial exigência axiológico-normativa que andava associada à ideia de
Direito perfilhada pelas sequazes do Movimento do Direito Livre conduzia-os a
defender a legitimidade de, em certas circunstâncias, decidir contra legem, quando o
cumprimento da lei levasse a uma lesão especialmente grave do sentimento do
Direito, caso em que o cumprimento estrito da lei constituiria maior perigo para a
autoridade do Direito e da própria lei que a sua inobservância.
Assim, segundo Kantorowicz, embora o juiz se encontrasse obrigado, em razão
das suas próprias funções, a decidir de acordo com o texto unívoco da lei, poderia
dela afastar-se se não proporcionasse uma solução indubitável e concluísse que o
legislador existente no tempo em que lhe cumpria decidir muito provavelmente não
teria acolhido a solução contida na lei. Neste caso, deveria o juiz decidir no sentido
que, presumivelmente, o legislador actual adoptaria e, caso não fosse possível
determinar qual seria esse sentido, deveria decidir de acordo com o Direito livre, tal
como poderia, igualmente, fazê-lo nos casos muito complexos, bem como naqueles
que só quantitativamente se apresentassem como duvidosos. Sustentavam, ainda,
alguns sequazes do Movimento do Direito Livre ser admissível que, com o acordo
das partes, em matéria processual civil, o juiz pudesse afastar-se das normas legais.

128
A. Castanheira Neves, ob. e vol. cits., p. 199.
86
Deste modo, para os representantes deste movimento, que teve vigência e
algum eco nos três primeiros decénios do século findo, o que deveria levar o jurista
a, num caso, interpretar extensiva ou analogicamente e noutro cingir-se aos termos
literais da lei ou optar por uma interpretação restritiva não seria a lei nem a lógica
mas o Direito livre e a vontade, arvorados, assim, em supremo e decisivo critério
hermenêutico129.

21.2. A jurisprudência dos interesses

I. Pela mesma época em que surgiu o movimento do Direito livre, desenvolveu-


se, igualmente, uma outra linha doutrinária denominada jurisprudência dos
interesses que, opondo-se, tal como ele, à jurisprudência dos conceitos, não
deixava, também de criticar os testes de Kantorwicz e dos outros defensores do
Direito livre.
Tendo tido uma vigência paralela a este último movimento, no período
compreendido entre 1900 e 1940, e compartilhando com ele a mesma preocupação
com o concreto da vida do Direito e com a sua dimensão axiológica-finalista,
ajurisprudência dos interesses sustentava, contra o formalismo logiscista da
jurisprudência dos conceitos e as suas concepções da interpretação, que o Direito
deve ser entendido como “tutela de interesses”.
Por outro lado, converge com o positivismo legalista em admitir que a lei é a
única fonte do Direito e que o juiz deve obediência à lei e na adopção de uma
posição subjectiva em matéria de interpretação, mas uma interpretação histórico-
teleológica, que toma a “vontade do legislador” não num sentido psicológico ou
empírico mas como um conceito normativo.
Considerando como interesses os desejos e aspirações, materiais e ideais
existentes na sociedade, a jurisprudência dos interesses caracterizar-se-ia, segundo
o seu principal teórico, Philip Heck, “pela preocupação de não perder de vista a
satisfação daqueles interesses”130, pelo que a forma de hermenêutica jurídica que
melhor satisfaria os interesses práticos seria a investigação histórica dos interesses.
Assim, a interpretação jurídica deveria procurar determinar a vontade histórica
real do legislador, entendida esta, porém, num sentido não inteira ou exclusivamente

129
Cfr. A, Castanheira Neves, ob. e vol. cits., pp. 193-201; Larenz, ob., ed. e trad. cits., pp. 77-83; e A. Santos Justo,
ob. cit., pp. 68-71.
130
Interpretação das leis e jurisprudência dos interesses (1914), trad. port. José Osório, Coimbra, Livraria Arménio
Amado, 1947, p. 13.
87
subjectivo, devendo procurar, preferentemente, os pensamentos exteriores ou
revelados através do acto legislativo e levar a sua acção retrospectiva até aos
interesses determinantes da lei, os seus interesses causais. Esclareciam os teóricos
desta orientação doutrinária tratar-se aqui de uma interpretação histórico-teleológica,
na qual a vontade do legislador não era um conceito psicológico mas sim normativo,
um conceito de interesse. De igual modo, o legislador é aqui uma designação que
engloba todos os interesses sociais, do que resultaria, então, que sendo uma
doutrina hermenêutica que defende os interesses causais e a intenção do legislador,
contra os erros de expressão e a apreciação subjectiva do juiz, no entanto, não
exclui a criação judicial do Direito nem o seu campo de elaboração judicial, supondo,
pelo contrário, o seu contínuo desenvolvimento jurisprudencial.
Com efeito, segundo Heck, a lógica que preside à actividade judicial não é a do
pensamento discursivo mas a do pensamento emocional, sendo seu ideal não a
verdade mas o valor dos resultados do pensamento para os interesses e para a
vida. Deste modo, o verdadeiro método de interpretação da lei seria constituído pela
investigação histórica da lei e dos interesses, acompanhada de um complemento
emocional131.
Para esta doutrina, a compreensão de qualquer norma jurídica impõe que ela
seja considerada como resultante de uma composição de interesses, pelo que a sua
interpretação se deve orientar no sentido de determinar não só o seu conteúdo como
os respectivos motivos e as suas causas. Por outro lado, porque esse conteúdo
resulta de um acto de vontade, a determinação dos motivos transforma-se em
determinação do fim e o apuramento das circunstâncias assume a natureza de
investigação dos interesses. De igual modo, esta investigação teleológica deve
referir-se não ao passado mas ao presente, visto serem os interesses actuais que é
necessário garantir e acautelar, transformando-se, assim, a vontade normativa de
vontade histórica em vontade presente132.

II. Porque o primeiro momento da actividade hermenêutico-jurídica, de acordo


com a jurisprudência dos interesses, era determinar a vontade normativa histórica do
legislador, seria de atribuir, nesta tarefa, relevante papel aos trabalhos preparatórios
da lei, para apurar qual o fim por ela prosseguido, tendo em conta que aqueles que

131
Ob. e trad. cits., pp. 13 e 65.
132
Idem, pp. 56 e 60.
88
elaboram a lei mais não são do que representantes dos interesses da sociedade.
Assim, seria legítimo recorrer a todos os documentos que, como as explicações ou
justificações apresentadas na literatura jurídica e na imprensa, as exposições de
motivos, os relatórios e preâmbulos e os relatos ou os actos da sua discussão no
parlamento ou nas comissões permitissem determinar, com o maior rigor e precisão,
quais os interesses tidos em consideração na lei interpretanda.

III. No que respeita aos elementos da interpretação, para a jurisprudência dos


interesses, o elemento gramatical desempenharia aqui um papel relevante, se bem
que não devesse esquecer-se que as regras gramaticais têm nela um valor indiciário
mas não normativo, pelo que poderiam sempre ser completadas ou até contrariadas
por outros elementos, de modo a não impedir que a determinação judicial dos
interesses se fizesse sempre segundo o princípio da livre investigação.
Quando a analogia, só seria admitida como analogia teleológica, pois era
insuficiente e poderia induzir em erro sustentar que ela tem lugar quando haja
hipóteses semelhantes, porquanto nem toda a semelhança é aqui relevante, só o
sendo quando consista na igualdade da posição dos interesses, dando origem à
mesma valoração por parte da sociedade133.
Por outro lado, no que respeita à actividade do juiz, entendia Heck que a
determinação da norma jurídica a aplicar compreendia dois momentos, logicamente
distintos: o conhecimento histórico dos preceitos legais existentes e dos interesses
legislativos e a elaboração desse conhecimento com vista à formação dos preceitos
necessários para a decisão.
De igual modo, pensava que, no seu trabalho, o juiz se acha sujeito não só aos
preceitos da lei mas também aos juízos de valor legislativo que possam ser
determinados, pelo que unicamente quando tais juízos não fossem suficientes
poderia efectuar quaisquer valorações pessoais. Isto não significava, contudo, que a
sua actividade se encontrava limitada à subsunção, devendo reconhecer-se-lhe, em
muitos casos, maior liberdade e ser-lhe atribuído até o poder de formular
valoradoramente novos comandos, para preencher ou integrar lacunas.
Sustentava, no entanto, a jurisprudência dos interesses que, nesta tarefa, o juiz
estava vinculado aos juízos de valor contidos na lei relativamente aos interesses.
Efectivamente, teria de entender-se que a lei não tem valor apenas quando

133
Idem, pp. 201-202.
89
directamente aplicável por simples subsunção, pois orienta também a actividade
judicial nos casos em que o juiz tem de ir para além dela, criando novos comandos.
Assim, ao integrar eventuais lacunas, tem de agir segundo a mesma ordem de
ideias que orientou o legislador, devendo, pois, efectuar a correspondente
investigação histórica dos interesses. Assim, ao integrar lacunas, o juiz, tendo
simultaneamente em conta não só o conteúdo histórico da lei como os seus
conhecimentos da vida e o senso jurídico, e utilizando, muitas vezes, também as
suas próprias ideias de valor, forma um preceito que anteriormente não existia como
realidade empírica, efectuando um acto de criação de Direito, ainda que
historicamente condicionado134.

22. A hermenêutica jurídica contemporânea:

22.1. A hermenêutica anaIítico-descritiva

1. A mais significativa teoria hermenêutica-jurídica surgida no âmbito do


realismo jurídico escandinavo foi a proposta e desenvolvimento por Alf Ross (1899-
1979), a qual se apresenta, expressamente, como uma teoria analítico-descritiva,
que procura descrever como se passam, efectivamente, as coisas na prática da
interpretação e da aplicação judicial do Direito, visando descobrir os princípios e as
regras seguidas na passagem da regra geral para a decisão particular e não dar
directivas sobre como deve ser interpretado o Direito, pois uma atitude normativa
face à interpretação se lhe afigurava desprovida de valor para compreender o direito
positivo e para prever decisões futuras.
Tal como seu mestre Kelsen, o jurisfilósofo dinamarquês pensava que a tarefa
do juiz é resolver um problema prático, o que envolve um processo cognitivo e uma
decisão, i.e., um acto de vontade.

II. Aqui radicava o ponto de partida da crítica que movia ao que designava por
concepção positivista mecanicista (de que Kelsen se excluía), a qual entendia, por
um lado, aquilo que movia a acção do juiz era, ou devia ser, a obediência à lei,
concebida como expressão da vontade do legislador e, por outro, que as suas

134
Idem, pp. 166-168, 238 e 257. Cfr. Castanheira Neves, ob. e vol. cits., pp. 215-246; e Larenz, ob, ed., e vol. cits., pp
63-77.
90
concepções operativas consistiam num conhecimento do verdadeiro significado da
lei e dos factos provados.
Ora, como notava Alf Ross, o significado da lei nem sempre é claro, pelo que
tem, frequentemente, de ser descoberto ou determinado por via interpretativa, que
para o positivismo jurídico é compreendida, fundamentalmente, como uma
actividade teorético-empírica, a de compreender o significado da lei e de comparar a
descrição dos factos que ela faz com os factos que tem de decidir. Acontece, porém,
que a interpretação, muitas vezes, não conduz a nenhum resultado certo, o que não
dispensa o juiz de ter de decidir, o que implica um acto de natureza construtiva, que
exige que possa proceder a valorações e determinar a sua atitude perante a
possibilidade de interpretações diferentes, e não apenas um acto puramente
cognitivo cujo motivo seja, unicamente, o desejo de cumprir a lei.
Acresceria ainda, segundo o mestre dinamarquês, que, de um ponto de vista
psicológico, a descrição positivista da actividade do juiz era de todo insustentável, já
que ele não é um autómato, que transforme, mecanicamente, regras e factos em
decisões, mas um ser humano, que tem particularmente em conta a sua tarefa social
e toma decisões que considera “correctas”, de acordo com o espírito da tradição
jurídica e cultural, pelo que o seu respeito pela lei não é absoluto. Com efeito, para o
juiz, a lei não constitui uma fórmula mágica mas sim uma expressão ou
manifestação dos ideais, atitudes, padrões ou valorações que denominamos
“tradição cultural” de um povo, pelo que a sua interpretação construtiva pode levar a
uma decisão que corrija os resultados a que conduziria uma interpretação que
visasse, exclusivamente, apurar o que a lei significa. Daí que a sua decisão seja o
resultado do efeito combinado da interpretação cognoscitiva da lei e da actividade
valorativa da consciência jurídica material, cujos postulados político-jurídico-morais
lhe indicam qual a decisão “correcta”, “justa” ou “socialmente desejável”, chegando,
nalguns casos, a interpretar e aplicar a lei à luz de ideias que podem,
inclusivamente, estar em oposição directa com as intenções do legislador.

III. Era por entender assim a natureza da actividade do juiz que Alf Ross
pensava que a interpretação e a aplicação do Direito deveriam partir da análise da
prática dos tribunais, devendo a teoria da interpretação jurídica procurar mostrar os
factores gerais que operam em toda a administração da justiça e esboçar uma
tipologia geral, a fim de caracterizar as variedades de estilos e métodos
91
hermenêuticos existentes, variedade essa que impossibilitaria que houvesse
qualquer método universal de interpretação.
Para o último grande expoente do realismo escandinavo, a hermenêutica
jurídica tinha um fundamento semântico e devia atender a factores linguísticos e
pragmáticos.
A interpretação do direito legislado começa, sempre, por um texto, por uma
fórmula linguística, dado aquele ser expresso pela linguagem, a qual constitui um
sistema de símbolos elaborado pelo homem.
Sendo o significado de uma palavra função da conexão em que ela surge, a
interpretação será a actividade que visa expor o significado de uma expressão, para
o qual são auxiliares fundamentais o respectivo contexto e a sua situação.
Nessa tarefa, o intérprete ou o juiz defronta-se com três espécies de
problemas, sintáticos, lógicos e semânticos. Os primeiros são os que se referem à
ordem das palavras na estrutura da frase e à conexão entre elas, enquanto os
segundos dizem respeito às relações de uma expressão com outras expressões
dentro de um contexto, revestindo especial importância aqui a inconsistência, a
redundância e as pressuposições135, e os terceiros se reportam ao significado das
palavras ou das frases, nenhuma destas três espécies de problemas podendo ser
resolvidos por um processo mecânico nem existindo regras gerais para lhes dar
solução, pelo que a decisão concreta terá sempre de apoiar-se em dados ou
elementos alheios ao texto legal.

IV. Os factores pragmáticos que, para além dos linguísticos, desempenham


também relevante papel na hermenêutica jurídica, são considerações baseadas na
avaliação da racionalidade prática do resultado, apreciado em relação com outras
valorações fundamentais presupostas, notando Alf Ross que a interpretação do
Direito visando a sua aplicação judicial não tem um ponto de partida linguístico
independente, encontrando-se, desde o princípio determinada por considerações
pragmáticas, na forma de “sentido comumjo lado destas considerações de “sentido

135
Haverá inconsistência entre normas, quer dentro da mesma lei quer entre uma lei anterior e outra posterior
quando, às mesmas condições de facto, se imputam efeitos jurídicos incompatíveis, poden-do essa
incompatibilidade ser absoluta ou total, verificam-se entre uma regra geral e outra parti-cular ou resultar de
sobreposição de regras.
Por sua vez, haverá redundância sempre que uma norma estabeleça um efeito jurídico que, na mesma
circunstância de facto, se encontra já estabelecida por outra norma.
Por último, as pressuposições falsas ou incorrectas contidas na lei podem dizer respeito tanto ao direito
vigente como a situações jurídicas específicas.
92
comum” há factores pragmáticos “superiores”, que aparecem ou se manifestam
como deliberações sobre a consequência que advirão de uma certa interpretação,
consideradas e mutuamente ponderadas à luz dos valores fundamentais, podendo
incidir tanto nos efeitos sociais previsíveis como na finura técnica da interpretação e
sua concordância com o sistema jurídico e as ideias culturais em que ele assenta.
Esclarecia o jurisfilósofo que este tipo de interpretação, que atende aos
factores pragmáticos, é mais amplo do que a interpretação teleológica ou da que
procura determinar o propósito da lei, o qual, muitas vezes, não pode ser apurado
sem ambiguidade, assim como nem sempre é possível atribuir qualquer finalidade
ou intenção a urna lei ou, ainda quando esta se encontra estabelecida de forma
inequívoca, constitui o único grau de determinada acção ou realidade. Na verdade,
enquanto o fim (telos) apenas indica uma única consideração dentro de uma
multiplicidade de valorações, a interpretação pragmática é a integração dessa
multiplicidade de valorações.

V. De acordo com o pensamento hermenêutico-jurídico de Alf Ross,


comparada o “sentido linguístico”, a interpretação pragmática pode ser
especificadora, restritiva ou extensiva.
A primeira tem lugar quando as considerações pragmáticas são decisivas para
a opção entre diversas interpretações, todas possíveis e razoáveis dentro do
“significado linguístico natural” do texto.
A interpretação restritiva é a que se realiza quando as considerações
pragmáticas excluem a aplicação de uma regra que, segundo o “sentido linguístico
natural”, seria aplicável, admitindo duas categorias, que o jurisfilósofo denominava
interpretação restritiva quando ao propósito e interpretação restritiva de excepção.
A primeira usar-se-ia quando a aplicação da regra se apresenta supérflua para
conseguir o propósito da lei, enquanto a segunda está motivada por considerações
contrárias, apesar de o caso em si mesmo se encontrar compreendido no propósito
da provisão. Se as considerações pragmáticas contrárias encontrarem expressão
noutras regras jurídicas sobrepostas, esta interpretação confunde-se com a que
ocorre no caso de sobreposição de regras.
A interpretação extensiva, que Alf Ross indentifica com a Analogia, é a que se
realiza quando as considerações pragmáticas conduzem à aplicação de uma regra a

93
situações que, à luz do “sentido linguístico natural”, se encontra claramente, fora do
seu campo de referência.

VI. Sustentava Alf Ross que a função dos métodos de interpretação é a de


estabelecer limites à liberdade do juiz na administração da justiça, notando, contudo,
que as máximas de interpretação não constituem regras efectivas, mas instrumentos
de uma técnica que, dentro de certos limites, habilita o julgador a alcançar a
conclusão que reputa desejável nas circunstâncias concretas do caso e,
simultaneamente, salvaguarda a ficção de que mais não está a fazer do que a
obedecer à lei e aos princípios objectivos de interpretação.

VII. Notava ainda o jurisfilósofo dinamarquês haver uma estreita relação entre a
doutrina das fontes de Direito e a teoria do método, afirmação que ilustrava com o
positivismo jurídico e com o Movimento do Direito Livre.
Assim, segundo ele, a doutrina positivista das fontes de Direito, que faz derivar
a validade de todo o Direito de uma vontade soberana, tem o seu paralelo numa
doutrina do método que sustenta que a interpretação se traduz em estabelecer,
exclusivamente por processos lógicos e sem fazer referência a propósitos e
valorações alheios ao texto legal, a verdadeira vontade do legislador imanente em
suas sanções, ocultando ou ignorando a actividade político-jurídica do juiz.
Já o Movimento do Direito Livre se lhe afigurava encontrar-se mais próxima da
verdade do que a doutrina do positivismo jurídico, pois se encontra nele uma
correcta compreensão do facto de que a administração da justiça se não reduz a
uma mera derivação ou conclusão lógica a partir de normas positivas, é movida ou
motivada por exigências sociais e por considerações de índole sociológico-jurídica.
Com efeito, como advertia Alf Ross, a “razão jurídica” imanente ou a própria
regra de direito não pode ser separada do propósito prático que se encontra fora
dela, assim como as “consequências formais” não podem ser separadas de uma
adequação valorativa das regras, relativamente aos valores nelas pressupostos136.

22.2. A interpretacão jurídica como análise da linguagem

I. Esta outra corrente hermenêutica-jurídica é expressivamente representada


pelo pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004), para quem o objecto da

136
Sobre el Derecho y la Justicia (1958), trad. cast. Genaro R. Carrió, Buenos Aires, 1963, pp. 106-150.
94
jurisprudência é um conjunto de proposições normativas, cuja verdade é ideal (visto
referirem-se ao futuro) e não empírica.
Não sendo uma ciência formal, a jurisprudência, para o mesturinense, consiste
na análise das proposições normativas em que o legislador se exprime, visando
transformar o discurso legislativo num discurso rigoroso, tal como acontece com as
restantes ciências empíricas ou formais.
A hermenêutica jurídica ou o que, tradicionalmente, se chama a interpretação
da lei, vem assim, a traduzir-se na análise da línguagem jurídica ou legal através de
um conjunto de operações que Bobbio divide em três fases, que designa por
purificação, integração e ordenação.
Assim, a primeira consiste no trabalho de depuramento da linguagem jurídica,
de modo a torná-la mais rigorosa. Como, porém, tal linguagem não é,
necessariamente, completa, a segunda fase destina-se a tomá-la a mais completa
possível. Dado que, por outro lado, a linguagem da legislação não se encontra,
necessariamente, ordenada, a terceira fase visa ordená-la sistematicamente,
reduzindo-a a sistema.
II. Notava o pensador italiano que a ciência jurídica, como toda a ciência, é
sistematização rigorosa de conceitos, singularizando-se, contudo, por tal
sistematização ter em vista fins práticos e não a apreensão de verdades, aditando
que a linguagem científica se caracteriza por nela toda as palavras estarem
definidas e por o uso das palavras definidas não contrariar as regras que serviriam
para a sua definição, ou seja, que a linguagem científica consta de um conjunto de
operações mentais conformes com essas mesmas regras.
Este ponto de partida do pensamento hermenêutico de Bobbio levava-o a
sustentar que aquilo a que os juristas chamam vontade, espírito, pensamento ou
intenção do legislador só é consistente quando se exprime em palavras ou em
signos, quando se inicia a sua vida no campo da comunicação intersubjectiva, pois
uma palavra não significada, um pensamento não expresso, um acto psíquico não
comunicado não se inserem em nenhum sistema cognitivo.
Porque, no mundo do Direito, nada há para além das proporsições normativas,
interpretá-las mais não é de que analisar a respectiva linguagem.
Assim, para o jurisfilósofo itálico, a chamada interpretação histórica vem a
consistir na análise das proposições normativas vigentes em épocas passadas, tal
como a interpretação sistemática o que faz é estudar a conexão das proposições
95
normativas relativas a uma instituição como outras referentes a instituições dela
afins, compreendidas uma e outras numa mesma categoria geral, e a interpretação
lógica é uma interpretação gramatical em que, através de meios linguísticos, se
fixam as regras de uso das palavras adoptadas.

III. Segundo o pensamento bobbiano, a linguagem de um determinado


ordenamento jurídico constitui um todo fechado, pois só são proposições jurídicas as
postas ou formuladas pelo legislador de acordo com determinadas formalidades
concretas e aquelas outras que nelas se encontram implícitas e que, por isso, delas
podem deduzir-se em conformidade com as regras de transformação admitidas pelo
próprio legislador.
Deste modo, o trabalho de integração do jurista ou do intérprete, destinado a
tomar a linguagem jurídica o mais completa possível, de acordo com aquela regra de
que o ordenamento jurídico constitui um todo fechado, dirige-se em dois sentidos:
por um lado, reconduz uma determinada proposição ao sistema normativo com base
nas regras de transformação que o sistema admite, por outro, exclui do sistema as
proposições que ele não admite.
Dado que o sistema normativo não é perfeito nem completo, pode apresentar
lacunas, mas, porque pode ser completado, essas lacunas podem ser preenchidas,
através da extensão analógica das proposições normativas, entendendo Bobbio que
a analogia, porque é sustentada por uma regra do discurso jurídico, não é um acto
criador mas sim uma operação lógica em sentido estrito, que não excede o âmbito
da ciência jurídica como análise da linguagem, é uma das operações com que se
efectua a análise linguística do Direito137.

22.3. A Iógica do razoável

I. Discípulo de Ortega y Gasset, Recaséns Siches concebia o Direito como vida


humana objectivada, como uma realidade que se situa na zona ôntica da vida
humana, individualizando-se aí pelo seu carácter normativo, por constituir um dever-
ser, que apresenta uma tripla dimensão, dado ser uma obra humana social, com
forma normativa, que visa a realização de valores. Deste modo, a normatividade e a
sociabilidade seriam as duas categorias fundamentais do Direito, o qual teria por

137
“Scienza del Diritto e analisi del linguaggio”, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, vol. VI, nº 2, 1950, pp.
342-367.
96
funções essenciais na vida social garantir a certeza e a segurança, ser um factor de
mudança progressiva da sociedade, decidir os conflitos de interesses e organizar,
legitimar e limitar o poder político, sendo a ordem jurídica a expressão da vontade
normativa do Estado.
No que respeita aos valores jurídicos, pensava o jurisfilósofo espanhol que,
como todos os valores, são realidades objectivas, cuja objectividade é imanente à
vida humana. Não sendo, pois, criação do homem, os valores realizam-se na vida
humana, o que significaria que, sendo esta histórica, a realização daqueles
igualmente o seria.
O carácter histórico da realização dos valores não impediria, contudo, que,
para além dos valores jurídicos particulares, houvesse valores jurídicos universais,
que deveriam inspirar sempre o Direito, e entre os quais, para Recaséns Siches, se
inscreveriam a dignidade moral do homem, o reconhecimento de que cada homem
tem um fim próprio a cumprir, o respeito da liberdade como esfera da autonomia
individual e a igualdade ou paridade fundamental perante o Direito138.

II. Foi com base nestes pressupostos onto-axiológicos que o jurisfilósofo


espanhol desenvolveu o que apresentou como uma “nova filosofia da interpretação
do Direito”, fundada no que designava por “lógica humana” ou do “razoável”139,
termo que, duas décadas depois, seria acolhido por Chaïm Perelman na sua última
e já póstuma obra140.
Para Recaséns Siches, a ciência jurídica da segunda metade do séc. XIX, de
clara e dominante inspiração positivista, fora vítimas de quatro grandes e graves
equívocos:
a) O de admitir ou pressupor que as normas jurídicas são meros enunciados
lógicos que contêm em si a possibilidade de solucionar todos os
problemas surgidos no mundo jurídico;
b) O de considerar que, na vida do direito positivo, o decisivo era a lógica;

138
Vida humana, sociedad y Derecho, México, 1939; e Tratado General de Filosofia del Derecho, México, Ed. Porrúa,
1959, Caps. II e XX.
139
Nueva filosofia de la interpretación del Derecho, México, Ed. Porrúa, 1956; e Experiencia jurídica, naturaleza de la
cosa y lógica “razonable”, Ed. Fondo de Cultura Económica – Universidad Nacional Autónoma de México, 1971.
140
La raisonnable et le déraisonnable en Droit, Paris, 1984.
97
c) O de supor que o Direito era constituído, exclusivamente, pelas normas
gerais, sendo as sentenças judiciais e as decisões administrativas simples
aplicação daquelas;
d) O de acolher uma concepção mecânica da actividade jurisdicional,
expressa na teoria da sentença como silogismo.

III. A esta visão do Direito e da vida jurídica contrapunha o mestre espanhol


duas ideias ou duas teses fundamentais:
a) A de que os conteúdos das normas de direito positivo não podem nem
devem ser tratados de acordo com a lógica pura, tradicional, matemática,
isto é, a lógica do racional, pois o domínio da vida humana, a que o
Direito pertence, rege-se por uma outra lógica, que designava por lógica
do razoável;
b) O logos ou a lógica do razoável não constitui um outro método de
interpretação jurídica, ao lado dos até aí acolhidos ou seguidos, mas é o
único válido, por ser o único que é conforme à realidade humana que é o
Direito.

Com efeito, enquanto a lógica tradicional é meramente enunciativa do ser e do


não ser e desprovida de pontos de vista valorativos ou estimativos sobre a correcção
dos fins, a congruência entre meios e fins, e a eficácia dos meios relativamente a
determinados fins, a lógica do razoável, porque é uma lógica do humano, é uma
lógica de uma razão impregnada de pontos de vista estimativos, de critérios de
avaliação, de pautas axiológicas, que acolhe ou inclui em si os ensinamentos da
experiência própria e da experiência acumulada ao longo da História, pois o mundo
jurídico, como o de toda a vida humana e das instituições criadas pelo homem, é o
da acção e não o do conhecimento.
A lógica razoável, dado ser uma lógica material e não já formal, refere-se ao
conteúdo jurídico, à matéria jurídica, a uma realidade empírica, surgida numa
circunstância histórica concreta e tendo em vista certos fins particulares e não
àqueles conceitos, categorias ou essências a priori, necessários e universais que se
encontram em todas as normas e situações jurídicas.
Assim, seriam características fundamentais da lógica do razoável:

98
a) O achar-se ela sempre limitada ou circunscrita pela realidade concreta do
mundo em que opera, que, no caso vertente, é o do direito positivo e das
normas jurídicas;
b) O estar impregnada de valorações concretas, referidas a determinadas
situações, com as possibilidades e as limitações próprias de cada uma delas;
c) O ser regida por razões de congruência ou de adequação entre a realidade
social e os valores, entre estes e os fins, entre os mesmos fins e a realidade
social concreta e entre os fins e os meios quanto à conveniência destes
relativamente àqueles, quanto à correlação ética dos meios e à sua eficácia;
d) O ser orientado pelas lições da experiência vital e histórica, individual e social.

IV. Duas consequências particularmente relevantes deduzia Recaséns Siches


desta sua concepção sobre a hermenêutica jurídica e a lógica que a ela deve
presidir: a de que a actividade jurisdicional é sempre e necessariamente criadora e a
revalorização da doutrina aristotélica sobre a equidade.
Quanto ao primeiro tópico, notava o antigo professor das universidades de
Madrid e do México, que qualquer análise da actividade dos juízes concluiria que a
função judicial inclui valorações e que as sentenças são juízos axiológicos.
Lembrava, contudo, Recaséns Siches que tais valorações não são projecção
do pessoal critério axiológico do juiz mas o resultado da aplicação, por ele, das
pautas axiológicas consagradas na ordem jurídica positiva, que trata de interpretar,
relacionando-as com as concretas situações de facto que se lhe deparam, não
deixando, igualmente, de notar que o problema de decidir qual a norma positiva
aplicável ao caso sub judice não é um problema de conhecimento de realidade mas
um problema de valoração.
Por outro lado, cumpriria não esquecer que a qualificação jurídica dos factos
envolve também operações valorativas e juízos estimativos, assim como a
apreciação da prova é, igualmente, uma operação valorativa.
Tendo em conta as contribuições do realismo jurídico norte-americano,
sustentava ainda o mestre hispânico que, em regra, a mente do juiz começa por
acolher ou antecipar a decisão que tem por pertinente e justa (dentro da ordem
jurídica positiva vigente) e só depois procura a norma que possa servir de base para
tal solução, assim como atribui ao facto a qualificação adequada para chegar àquela
conclusão.
99
Assim, segundo Recaséns Siches, o juiz decidiria, em regra, mais por meio de
uma espécie de intuição de que através de uma inferência ou um silogismo, decidiria
mais com base na convicção de que no raciocínio, o qual vem a articular unicamente
depois, para formular os fundamentos da decisão, a que o conduziu o seu sentido
intuitivo do justo e do injusto.
Deste modo, para o jurisfilósofo espanhol, a sentença, em vez de constituir um
silogismo que se decompõe em três juízos (as duas premissas e a conclusão), é
uma estrutura dotada de total unidade, composta por um conjunto integrado de
valorações.

V. Estas ideias eram reforçadas, no pensamento recasiano, pela


reconsideração da doutrina aristotélica sobre a equidade, entendida como correcção
da lei positiva, quando a respectiva formulação se revela defeituosa, devido à sua
universalidade.
Para o pensador espanhol, a consideração da equidade serviria para:
a) Iluminar, em termos gerais, a função do juiz e evidenciar que essa função
implica sempre uma actividade estimativa e, como tal, a realização,
implícita ou explícita, de uma série de valorações;
b) Descobrir a índole da situação em que se encontra o juiz, quando a
norma positiva em aparência aplicável ao caso concreto levaria a uma
solução injusta e para indicar o que deverá o juiz fazer nesse caso;
c) Orientar o juiz quando tenha de preencher lacunas141.

22.4. A hermenêutica jurídica estrutural

I. A partir dos pressupostos contidos na teoria tridimensional do Direito e no


historicismo culturalista e axiológico em que a mesma se funda, propôs Miguel Reale
(1910-2006), na década de 70 do século passado, o que denominou hermenêutica
jurídica estrutural, estreitamente associada à teoria dos modelos jurídicos cujas

141
Cfr. obs. cits. nas notas anterirores; Benito de Castro Cid, La Filosofia jurídica de Luís Recaséns Siches, Salamanca,.
1974; e A. Braz Teixeira, Conceito e formas de Democracia em Portugal e outros estudos de história das ideias,
Lisboa, Sílabo, 2008, pp. 159-184.
100
bases formulara alguns anos antes, ideias a que daria forma sistemática e mais
acabada em meados dos anos 90142.
Entendia o mestre paulista que, no domínio da experiência jurídica143, as
estruturas sociais se nos apresentam como estruturas normativas ou sistemas de
modela, em que cada modelo é dotado de uma estrutura própria, de natureza
tridimensional.
Assim, todo o modelo jurídico seria uma “estrutura normativa que ordena factos
segundo valores, numa qualificação tipológica de comportamentos futuros, a que se
ligam determinadas consequências, em função de valores imanentes ao próprio
processo social”.
Advertia Miguel Reale ser necessário distinguir entre os modelos jurídicos, que
surgem na experiência jurídica, como estruturação volitiva do sentido normativo dos
factos sociais, e modelos dogmáticos que constituem estruturas teoréticas, referidas
àqueles, e cujo valor procuram captar e actualizar na sua plenitude, tendo ambos,
como elemento comum, a sua natureza operacional, resultante de serem, uns e
outros, instrumentos da vida e da convivência humana.
Não sendo, pois meros esquemas ideais nem lógicos, pela sua íntima relação
com o real de que promanam e em função do qual adquirem sentido, os modelos
jurídicos, no pensamento realeano, acham-se estreitamente associados à teoria das
fontes de Direito, que o filósofo entendia como “toda a forma ou processo de
revelação de estruturas normativas válidas e obrigatórias, como expressão de um
poder exercido no âmbito da competência que lhe é própria”, vindo a abranger, por
isso, a lei a jurisdição, o costume e o acto negocial.
Constituindo uma estrutura social, criada de acordo com uma ordem prévia de
competência, cada fonte de Direito permitiria a formulação ou especificação de
outras estruturas, que seriam os modelos legais, os modelos jurisdicionais, os
modelos consuetudinários e os modelos negociais144.

II. Desta teoria dos modelos e das fontes do Direito e da estreita conexão entre
ambos resultava que o acto normativo e o acto interpretativo são elementos que se

142
“Para uma teoria dos modelos jurídicos” (1968) e “Para uma hermenêutica jurídica estrutural” (1974), ambos em
Estudos de filosofia e ciência do Direito, São Paulo, Saraiva, 1978; e Fontes e modelos do Direito. Para um novo
paradigma hermenêutico, Saraiva, 1994.
143
Cfr. Miguel Reale, O Direito como experiência, São Paulo, Saraiva, 1968; e A, Braz Teixeira, Conceito e Formas de
Democracia em Portugal e outros estudos de história das ideias, pp. 121-129.
144
“Para uma teoria dos modelos jurídicos” cit.; e Fontes e modelos do Direito, cit, caps. I-VII.
101
co-implicam e se integram, pelo que apenas por exigências analíticas podem ser
separados por via abstractiva, ao mesmo tempo que a experiência normativa deveria
ser entendida, não já como uma mera estrutura lógico-formal mas sim em termos
retrospectivos de fontes e prospectivos de modelos.
Deste modo, no pensamento de Miguel Reale, toda a norma jurídica devia ser
compreendida como um modelo operacional de um tipo de organização ou de uma
classe de comportamentos possíveis, o qual devia ser interpretado no conjunto do
ordenamento jurídico, implicando essa interpretação, necessariamente, a apreciação
dos factos e dos valores que, originariamente, constituíram esse mesmo valor, bem
como dos factores e valores supervenientes.
Por esta via, considerava o pensador brasileiro dever procurar o jurista atender
às mudanças da vida social, utilizando a substantiva elasticidade própria de todo o
modelo jurídico, para a sua adequada actualização, sem, contudo, pôr em risco os
valores essenciais de segurança e certeza do Direito, não recusando, deste modo,
nunca eficácia às estruturas normativas objectivadas no processo concreto da
história, cuja unidade dinâmica é garantida pela pessoa humana como valor fonte de
todos os valores.

III. Era com base nestes pressupostos teóricos que o autor de Fundamentos do
Direito formulava a sua doutrina hermenêutica estrutural do Direito, que se fundaria
nas ideias da unidade do processo hermenêutico, da natureza axiológica, integrada,
histórico-concreta e racional do acto interpretativo, bem como nas de
problematicismo, natureza económica, destinação ética e globalidade de sentido do
processo hermenêutico, ideias, que explicitava nas seguintes directrizes
interpretativas:
a) A interpretação das normas jurídicas tem sempre carácter unitário,
devendo as suas várias formas ser vistas como momento necessário de
uma unidade de compreensão;
b) A interpretação jurídica pressupõe a valoração objectivada nas
proposições normativas;
c) A interpretação jurídica dá-se em função da estrutura global do
ordenamento jurídico;

102
d) A interpretação jurídica não pode nunca extrapolar da estrutura objectiva
resultante da significação unitária e congruente dos modelos jurídicos
positivos;
e) A interpretação jurídica é condicionada pelas mudanças históricas do
sistema jurídico, devendo atender não só à intencionalidade originária do
legislador como também às exigências fácticas e axiológicas posteriores,
numa compreensão global, simultaneamente retrospectiva e prospectiva;
f) A interpretação jurídica tem como pressuposto a recepção dos modelos
jurídicos como válidos de acordo com exigências racionais, mesmo que
na sua génese possam encontrar-se factores alógicos;

g) A interpretação dos modelos jurídicos deve desenvolver-se segundo


exigências da razão histórica, enquanto razão problemática e não
obedecer a puros critérios de lógica formal nem reduzir-se a uma mera
análise linguística;
h) A existência do modelo jurídico deve preservar-se sempre que for
possível conciliá-lo com as normas superiores do ordenamento jurídico;
i) Entre as várias interpretações possíveis, deve optar-se pela que melhor
corresponda aos valores éticos da pessoa e da convivência social;
j) A interpretação jurídica deve ser compreendida como elemento
constitutivo da visão global do mundo e da vida, em cujas coordenadas se
situa o quadro normativo interpretando145.

22.5. A interpretação teleológica

I. O jurista alemão Karl Engisch (1899-1990) entendia que a tarefa da


hermenêutica jurídica era a de fornecer ao jurista o conteúdo e a extensão dos
conceitos jurídicos, através da apreensão do sentido dos preceitos jurídicos,
tornando-se, assim, na compreensão do fim visado pela lei e sendo, nessa medida,
interpretação teleológica.
Para tal, devia o intérprete recorrer aos métodos ou pontos de vista
interpretativos que, desde Savigny, constituem património comum da hermenêutica
jurídico-gramatical, lógico, histórico e sistemático se bem que o falecido professor da

145
“Para uma hermenêutica jurídica estrutural”, cit.; e Fontes e modelos, cit, cap. X.
103
universidade de Munique lhes atribuísse um sentido não inteiramente coincidente
com os que lhes dera o fundador da Escola Histórica do Direito.
Assim, quanto à interpretação gramatical, pensava não existir uma pura
interpretação verbal ou terminológica distinta de uma interpretação de sentido, pois o
que importa, na hermenêutica jurídica, é o “sentido técnico-jurídico”, o qual tem
contornos mais rigorosos e precisos do que o conceito da linguagem corrente, se
bem que a linguagem jurídica nem sempre seja tão rigorosa quanto se pensa e o
devera ser.
Por outro lado, a conexão ou a coerência lógico-sistemática, para Engisch, não
devia ser entendida como referida unicamente ao significado dos conceitos jurídicos
em cada contexto de ideias concreto nem como reportada apenas à colocação ou
situação extrínseca de uma regra jurídica no contexto geral da lei, pois pensava
referir-se aquela, antes e acima de tudo, à plenitude do pensamento jurídico contido
na regra jurídica individual, com a sua multiplicidade de referências demais partes
que constituem o sistema jurídico na sua globalidade.
Mas sendo tal referencialidade a do sentido de cada regra jurídica ao sistema
jurídico na sua globalidade, vem a ser, em larga medida, teleológica, dado que as
regras jurídicas têm, em decisiva parte, por função preencher determinados fins em
combinação com outras normas, completando-as finalisticamente. Daqui que seja
muito difícil separar ou distinguir a interpretação sistemática da interpretação
teleológica, porquanto, enquanto sistemática, ela é já em boa medida, também
interpretação teleológica, se bem que não exclusivamente, pois cumpre não
esquecer que há interpretação sistemática que não é teleológica, tal como o inverso
pode igualmente verificar-se; é o que acontece sempre que os fins que a norma
prossegue se situam fora do ordenamento jurídico. Daí que a interpretação
teleológica, como tal, se apresente como um método pluridimensional, por os fins
prosseguidos pelas normas tanto poderem situar-se dentro como fora dessas
mesmas normas.
Também a interpretação teleológica e a interpretação histórica se entrelaçam
frequentemente, em especial quando esta vem a revelar o fim que o legislador teve
em mente. Por outro lado, a correcta compreensão do sentido das normas não pode
deixar de procurar descobrir ou tomar patentes “os planos de fundo histórico-
culturais e o significado da tradição”.

104
Notava ainda Engisch que, contrariamente ao que Savigny pretendera, quando
afirmava que os elementos gramatical, lógico, histórico e sistemático constituíam,
não quatro espécies de interpretação mas quatro actividades que deveriam intervir
em conjunto para que se pudesse chegar a uma interpretação bem sucedida, estes
diferentes processos hermenêuticos, por vezes, podem levar a resultados
contraditórios, com a possibilidade, p.e., de o sentido verbal se encaminhar numa
certa direcção e a coerência sistemática ou a génese histórica do preceito se
orientar noutra dela diversa ou a ela contraposta, não sendo possível conciliá-las
nem harmonizá-las e não havendo, nem podendo haver, com carácter de
generalidade, uma “hierarquização segura” dos vários critérios interpretativos,
quedando, necessariamente, a decisão dependente da avaliação e da ponderação
dos casos e das situações em sua múltipla diversidade.

II. Perante a querela subjectivismo-objectivismo, Engisch, reconhecendo


embora que a segunda orientação era largamente dominante, e que seria importante
o intérprete ser fiel à situação presente, interpretando as normas de acordo com a
época em que é chamado a aplicar o Direito, não deixava de notar que se lhe
afigurava que, na tese objectivista, por vezes, se menospreza em demasia o
“significado voluntarista, político-decisório que a legislação também tem, na
democracia e se confere excessiva autonomia a outros poderes de Estado que, em
certo sentido, devem subordinar-se à vontade do legislador e às suas directivas,
fontes da coesão do todo estatual”, interrogando-se ainda sobre “se não se terá,
porventura, constituído um Direito consuetudinário que confere ao juiz legitimidade
para, desprendendo-se da vontade do legislador histórico, preencher o texto da lei
com um sentido ajustado ao momento actual, um sentido razoável, ajustado aos fins
do Direito”146.

22.6. A hermenêutica jurídicas de Karl Larenz

I. Partindo das categorias fundamentais do pensamento gadjmeriano, Karl


Larenz entendia a hermenêutica jurídica como tendo uma estrutura
constitutivamente dialéctica e uma dimensão substantivamente axiológica.

146
Introdução ao pensamento jurídico (1956), trad. port. João Baptista Machado. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1965, pp. 103-151. Cfr. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actual (1953), trad.
cast. Juan José Gil, Ed. Comares, 2004.
105
Para o falecido professor das universidades de Kiel e de Munique, a actividade
própria da jurisprudência consistia, fundamentalmente, na compreensão de
expressões linguísticas e do seu correspondente sentido normativo, uma vez que é
de expressões linguísticas que se trata nas leis, nas decisões judiciais, nos actos
administrativos e, em regra, nos contratos. Ora, a compreensão destas expressões
tanto ocorre, ou pode ocorrer, de modo irreflexivo, pelo acesso imediato ao sentido
daquela, consistindo este último numa actividade de mediação, pela qual o intérprete
“compreende o sentido de um texto, que se lhe tinha deparado como problemático”.
Em tal actividade mediadora, o intérprete, perante os diferentes significados
possíveis de um termo ou de uma sequência de palavras, procura determinar qual
se afigura o significado “correcto”, tendo em conta o contexto textual, a situação que
originou o texto e outras circunstâncias “hermenêuticas relevantes” para apurar o
significado que se busca, pois a interpretação de qualquer texto (jurídico, literário,
histórico ou outro) reporta-se ao sentido de cada uma das palavras que o compõem,
bem como ao da sequência de palavras e frases que exprimem um nexo de ideias
contínuo, visando a compreensão do seu sentido, a qual segue um processo que a
moderna filosofia hermenêutica designa por “círculo hermenêutico” e segundo o qual
o processo de compreender tem o seu curso em passos alternados, cujo objectivo é
o esclarecimento recíproco de um através do outro.
Por outro lado, como também sustenta a corrente hermenêutica que teve em
Heidegger e Gadamer os seus máximos representantes, no início do processo do
compreender encontra-se uma “pré-compreensão” referida àquilo de que o texto
interpretando trata e à linguagem em que nele se fala, pré-compreensão que é o
resultado de um demorado processo de aprendizagem e envolve ou inclui os
conhecimentos adquiridos pelo intérprete ao longo da vida e vem a constituir a base
sobre que ele se forma uma “conjectura de sentido”.

II. Advertia, neste ponto, Larenz que, no caso da hermenêutica jurídica, a pré-
compreensão se refere não só à “coisa” Direito, à linguagem em que dela se fala e à
cadeia de tradição em que se integram os textos jurídicos, as decisões judiciais e os
argumentos jurídicos mais correntes, como, igualmente, “aos contextos sociais”, às
situações de interesses e às estruturas das relações da vida a que se reportam as
normas do Direito.

106
Seria, precisamente, a “pré-compreensão” que permitiria ao juiz formular uma
determinada conjectura de sentido perante a compreensão da norma e o
entendimento da solução a encontrar, bem como a construção, para si próprio, de
uma “convicção de certeza” que condicionaria o modo como interpreta a lei em que
se fundamentará a sua decisão.

III. Recordava o jurisfilósofo germânico, na esteira de Gadamer, que aplicação


é “um elemento tão integrante do processo hermenêutico como o compreender ou o
interpretar”, princípio este particularmente verdadeiro quando referido ao mundo do
Direito, pois, as normas jurídicas, em regra, são interpretadas para serem
“aplicadas” através de um processo de “concretização”.
O processo em que tal concretização se realiza é, segundo Larenz, um
processo de estrutura dialéctica, que decorre entre a norma como bitola com que
tem se ser mensurado o “caso”, a qual só alcança definitiva determinação de
conteúdo no processo de “aplicação”e o caso a decidir, cumprindo não esquecer que
toda a concretização de um critério normativo vem a estabelecer uma medida para a
decisão judicial de outros casos semelhantes, segundo os pontos de vista
valorativos, o que explica o relevante alcance do “precedente”, mesmo na tradição
jurídica europeia continental, em que, na grande generalidade das situações,
embora a tal se não encontrem legalmente obrigados, os tribunais seguem a
interpretação fixada pelos tribunais superiores, sem prejuízo de, perante situações
novas, em vez de acolherem a interpretação anterior da norma, lhe conferirem novas
interpretações, que concretizam, de outro modo, o respectivo conteúdo.
IV. Recordava Larenz que, porque o Direito é constituído por normas, a sua
aplicação várias vezes se esgota num processo lógico de “subsunção”, requerendo,
em regra, o “compreender” uma norma jurídica, o descobrir ou tornar presente a
valoração nela imposta e o seu alcance, requerendo a sua aplicação o valorar o
caso decidendo em conformidade com a valoração acolhida na norma. Daí que a
jurisprudência, no domínio teorético da dogmática como no plano prático da
aplicação ou concretização normativa, se apresente como um pensamento
“orientado para valores”, em que os juízos de valor carecem de uma fundamentação
racional147.

147
Metodologia do Direito, 3ª ed., trad. port. da 6ª ed. alemã de José Lamego, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997, pp. 261-347.
107
Por outro lado, o sentido cuja compreensão a hermenêutica jurídica visa
alcançar é o sentido normativo do que é juridicamente determinante, o qual terá de
ser estabelecido “atendendo às intervenções de regulação e às ideias normativas
concretas do legislador histórico”, visto ser o resultado de um processo de
pensamento em que hão-de ser englobados tantos os elementos “subjectivos” como
os “objectivos”, de acordo com determinados critérios de interpretação que devem
servir de guia ao intérprete148.
Assim, partindo do sentido literal das palavras da lei, o intérprete deverá
considerar tanto o seu contexto significativo (como a intenção reguladora e os fins e
ideais normativos do legislador histórico) e determinados critérios teleológico-
objectivos.

V. Lembrava o filósofo germânico que, contrariamente ao que acontece noutros


domínios do saber, a linguagem jurídica não é uma linguagem simbolizada mas um
caso especial da linguagem geral, pois o legislador serve-se da linguagem corrente,
porque se dirige ao cidadão e pretende ser por ele entendida, sem prejuízo de,
muitas vezes, utilizar uma linguagem técnico-jurídica especial. Deste modo, a
primeira tarefa do intérprete é esclarecer o uso linguístico preciso que a lei
interpretanda faz, cabendo notar que importa averiguar o sentido literal dos termos
no tempo do aparecimento da lei e não na data em que a mesma é interpretada,
para não falsear a intenção do legislador, elemento que, como vimos, Larenz
considerava decisivo em sede hermenêutico-jurídica.
VI. Para determinar qual dos múltiplos significados que podem corresponder a
um termo, de acordo com o uso da linguagem, deve ser considerado, cumpre
atender, em regra, com o maior rigor possível, ao contexto em que ele é usado, pois,
como decorre do “círculo hermenêutico”, o contexto significativo da lei determina a
compreensão de cada uma das frases e palavras, tal como esta é codeterminada
pelo contexto. Daí, também que o sentido de cada norma ou proposição jurídica se
logre inferir-se quando a mesma é considerada como parte da regulação em que se
integra.
O contexto significativo da lei, segundo Larenz, desempenhava, ainda um
papel muito relevante na sua interpretação, permitindo que se admitisse haver uma
concordância objectiva e material entre as diversas disposições legais, que, muitas

148
Idem, pp. 445-450.
108
vezes, se revela na própria sistemática externa da lei. Notava, ainda, este autor que,
no entanto, a conexão de linguística da lei, bem como a sistemática conceitual que
lhe subjaz, só se tornam compreensíveis quando se têm também em conta os fins
prosseguidos pela regulação a que respeitam ou de que fazem parte.

VII. Para a determinação desses fins, há que atender ao chamado elemento


“histórico” da interpretação que, nos Estados modernos, não pode reportar-se à
“vontade do legislador”, dado não ser ele uma pessoa singular ou individual mas, em
regra, um órgão colegial (Governo), uma assembleia (composta por uma ou duas
câmaras) ou, até, a totalidade dos cidadãos eleitores.
Assim, por “vontade do legislador” apenas pode, hoje, entender-se “os fins,
estatuições de valores e opções fundamentais determinadas na intenção reguladora
ou que deles decorrem” sobre que, efectivamente, tomaram posição os participantes
no acto legislativo, devendo a interpretação, segundo Larenz, tê-los em conta, em
primeira linha, pois só deste modo se garantiria o papel decisivo dos órgãos
legislativos no processo global de criação e concretização do Direito.
Este entendimento conduziu este autor a sustentar que, quando não forem
evidentes a intenção reguladora e os fins do legislador assim entendidos, a partir da
própria lei, do seu preâmbulo, das disposições introdutórias e das decisões
valorativas que daí resultem, deverão ter-se em conta os vários projectos, as actas
das comissões de assessores ou de redacção, as exposições de motivos e as actas
das comissões parlamentares, bem como o entendimento linguístico da época, a
doutrina e a jurisprudência de então, e os dados reais de que o legislador quis dar
conta.
Não se esquecia de notar o jurosfilósofo que o intérprete, partindo dos fins
estabelecidos pelo legislador histórico, que procuraria determinar através dos meios
acabados de referir, deveria ter também em consideração as consequências da lei
interpretanda, pelo que, ao tentar orientar para tais fins as disposições legais
partículares, acabaria por entender a lei na sua racionalidade própria, indo para além
da vontade do legislador enquanto facto histórico e das concretas ideias normativas
dos autores materiais da mesma lei.

VIII. Quando os diversos critérios até aqui referidos se revelarem ineficientes,


deverá o intérprete, de acordo com a teoria hermenêutico-juridica desenvolvida por
109
Karl Larenz, recorrer aos critérios teleológicos-objectivos, que seriam, por um lado,
as estruturas materiais do âmbito da norma e, por outro, os princípios jurídicos
inerentes ao ordenamento jurídico, designadamente a ideia de Justiça e o princípio
de igualdade de tratamento do que é igual.
Entendia este autor que o postulado de justiça de que aquilo que se deve
valorar identicamente deve ser tratado de igual modo exige que, até onde tal seja
possível, se evitem contradições de valoração, no âmbito do ordenamento jurídico,
para o que poderiam oferecer muito útil contribuição os principio ético-jurídicos,
como o da tutela da confiança e o de responder pela insuficiência do círculo negocial
próprio149.

22.7. A interpretação jurídica construtiva

1. Na década de 80 do século passado, o jurisfilósofo norte-americano Ronald


Dworkin (1931) formulou a doutrina da interpretação jurídica construtiva150, em
directa oposição ao positivismo, em especial na versão que lhe deram Austin e Hart,
não deixando, igualmente, de criticar o pragmatismo social.
Para este autor não é possível uma teoria geral e uniforme de interpretação,
embora haja certos atributos que são comuns às diversas espécies de interpretação,
pois todas elas visam apurar a verdade.
Para Dworkin, haveria três espécies diferentes de interpretação, que designa
por colaborante, explicativa e conceptual.
A primeira, em que se incluiria a interpretação jurídica, bem como a literária e
artística e a conversacional, assenta no pressuposto de que o objecto da
interpretação possui um autor ou um criador, que deu início a um projecto que o
intérprete irá procurar prosseguir.
Por sua vez, na interpretação explicativa, em que se engloba a História e a
Sociologia, o intérprete visa explicar o objecto interpretando a uma determinada
audiência, embora não haja participado na sua criação.
Por último, no que designa por interpretação conceptual, em que se integra,
segundo Dworkin, boa parte da Filosofia Moral e Política, a missão do intérprete é

149
Idem, p. 450-489.
150
Uma questão de princípio (1985), trad. port. Luís Carlos Borges, São Paulo, Martins Fontes, 2000; e o Império do
Direito, trad. port. Jefferson Luiz Camargo, id., 1999.
110
encontrar o significado de um conceito que não foi criado ou recriado por um autor
individual, mas pela comunidade a que respeita151.
Segundo Dworkin, o carácter hermenêutico teria, no Direito, natureza
substantiva, pois o Direito é, para ele, um “conceito interpretativo”152, pertencendo a
interpretação jurídica, como se notou, ao primeiro tipo de interpretação que
distingue, dado constituir uma prática social que visa interpretar uma realidade
criada por alguém, mas que se objectiva e separa do seu criador, cabendo ao
intérprete dar-lhe vida e prosseguir, por via hermenêutica, o processo então iniciado,
sendo, neste sentido, a interpretação jurídica uma interpretação criadora e
construtiva.
Para o pensador norte-americano, não haveria verdadeira distinção entre
interpretação e criação, sendo qualquer texto, maxime um texto jurídico, o produto
de juízos interpretativos153.
Deste modo, a interpretação criadora é sempre, também, construtiva,
preocupada com propósitos e não com as causas, sendo, porém, os propósitos que
se encontram aqui em jogo, não o de algum autor mas o do próprio intérprete. Daí
que a interpretação construtiva se lhe apresente como uma questão de impor um
propósito a um objecto ou prática, a fim de tomá-lo o melhor exemplo possível da
forma ou do género a que pertença, o que faz desta espécie de interpretação um
caso de interacção entre propósito e objecto, a qual visa tornar este o melhor
possível.
Esta também a razão pela qual Dworkin entende que são inaplicáveis ao
Direito e às demais práticas sociais as técnicas do que denomina interpretação
conversacional (que integra, como a jurídica, no âmbito da interpretação
colaborante), na qual o intérprete procura descobrir os motivos ou as intenções de
outra pessoa, pois aqui a prática a ser interpretada determina as condições da
interpretação154.

II. De acordo com o pensamento hermenêutico do professor nova-iorquino, a


interpretação jurídica percorreria três estádios ou três fases diferentes, notando, no

151
Cfr. Sandra Martinho Rodrigues, A interpretação jurídica no pensamento de Ronal Dworkin (Uma abordagem),
Coimbra, Almedina, 2005, pp. 27-29.
152
Uma questão, cit., pp. 219 e 239.
153
Idem, p. 253.
154
O Império, cit., pp. 62-67, 75 e 79.
111
entanto, serem necessários, numa comunidade, diversos graus de consenso em
cada um deles.
O primeiro desses estádios é pré-interpretativo, devendo nele ser identificados
as regras e os padrões que se considera fornecerem o conteúdo da prática social
em causa, i.e., o Direito.
Num segundo momento, deve haver um estádio de interpretação, no qual o
intérprete se concentra numa justificação geral para os principais elementos da
prática social identificada no estádio anterior.
Por último, deve haver uma fase pós-interpretativa ou reformuladora, em que o
intérprete ajuste a sua ideia àquilo que o Direito exige para melhor servir à
justificação que acolher na fase propriamente interpretativa.
No entender de Dworkin, para que esta prática interpretativa e as decisões
concretas tomadas com base nela sejam justificadas é necessário que se cumpram
duas exigências fundamentais, que denomina consistência e coerência. Assim,
exigir-se-ia que o sentido normativo das decisões fosse compatível com o
desenvolvimento consistente da prática ou constituísse um momento integrável
numa consistência prática, ao mesmo tempo que se requereria que aque-la
justificação invocasse como seus fundamentos decisórios uma intencional coerência
com o todo do sentido normativo da prática jurídica e com os valores ético-jurídicos
acolhidos ou expressos nos “direitos” e nos “princípios”155.
III. Esta teoria hermenêutica anda associada a uma determinada concepção
sobre o próprio Direito como fenómeno social e como a mais bem estruturada das
instituições sociais, cuja complexidade, função e consequências resultam, para o
jurisfilósofo norte-americano, de prática jurídica ser de natureza argumentativa e não
explicativa e de o direito ser um empreendimento político, que tem por finalidade
geral “coordenar o esforço social e individual, resolver conflitos sociais e individuais,
assegurar a justiça entre os cidadãos ou entre eles e o governo ou alguma
combinação desse termos”156.
Da natureza do Direito como “conceito interpretativo” resulta, para Dworkin,
dever ser ele concebido como integridade, que compreende a doutrina e a
jurisdição. De igual modo, as proposições jurídicas não serão meras descrições da

155
Idem, pp. 81-82. Cfr. A. Castanheira Neves, “Dworkin e a interpretação jurídica – ou a interpreta-ção jurídica, a
hermenêutica e a narratividade”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogé-rio Soares, Coimbra, 2001,
pp. 263-345.
156
Uma questão, cit. p. 239.
112
história do Direito, nem simplesmente valorativas, em algum sentido divorciadas da
história jurídica, mas sim proposições interpretativas dessa mesma história, que
combina elementos descritivos e valorativos, não se confundindo, contudo, com a
descrição nem com a valoração157.
Por sua vez, o raciocínio jurídico deve ser compreendido como um “exercício
de interpretação construtiva”, tal como a melhor justificação das práticas jurídicas é
constituída pelo próprio Direito, o qual, para Dworkin, é a “narrativa” que faz de tais
práticas as melhores possíveis158.
Também os juízes, ao decidir o que é o Direito, o que fazem é interpretar o
modo usual como os outros juízes decidiram o que seja o mesmo Direito, pelo que
as teorias gerais do Direito mais não serão do que interpretações gerais da prática
judicial159.

22.8. h) Aulis Aarnio: interpretação, justificação e aceitabilidade social

1. Pela mesma época em que Ronald Dworkin delineava a sua teoria


construtiva da interpretação do Direito, o jurisfilósofo finlandês Aulis Aarnio
procurava associar ou combinar elementos da nova retórica de Chaïm Perelman, da
filosofia linguística de Wittgenstein e da teoria da razão comunicativa de Habermas,
numa nova doutrina hermenêutico-jurídica que tivesse uma dimensão
simultaneamente ontológica, epistemológica e metodológica, por entender que o
problema da interpretação do Direito, longe de ser uma questão técnica, apresenta
natureza filosófica e na sua consideração a teoria dos valores e, sobretudo, a teoria
da Justiça, ocupam um lugar central.
O ponto de partida do pensamento ontológico-hermenêutico do pensador
finlandês é a ideia de que, porque as normas jurídicas não constituem proposições
sobre a realidade, quem interpreta o Direito não busca nele o conhecimento de
nenhuma verdade teórica, mas uma referência para as decisões tomadas no
processo de exercício de certa forma de autoridade.
Acontece, porém, que, repetidas vezes, este fundamento do exercício de uma
determinada forma de poder se apresenta ambíguo, lacunoso ou impreciso, o que
torna o jogo da interpretação semelhante a um “círculo”, em que o Direito condiciona

157
Idem, p. 219.
158
O império, cit., pp. VII, 15, 17, 109, 217 e 448.489.
159
Cfr. A. Castanheira Neves, ob. e loc. cits.; e Sandra Martinho Rodrigues, ob cit., pp. 11-73.
113
o intérprete mas nem todas as interpretações se conformam com o Direito, por sua
vez, clarificar o conteúdo do Direito obriga a optar entre diferentes interpretações
possíveis, opção que, no entanto, deve limitar-se ao direito válido, etc.
Assim delineado, tal “círculo” suscita um complexo de interrogações acerca da
noção de validade, do conceito de norma jurídica e de lei e da própria interpretação,
às quais não é possível responder satisfatoriamente por via normativa, definindo um
conjunto de regras ou cânones técnicos ou de preceitos lógico-formais. Esta via
metodológica não resolve, verdadeiramente, o problema da interpretação jurídica, o
qual envolve também uma exigência prática de justificação das opiniões daqueles
que são chamados a julgar ou a aplicar o Direito.
Deste modo, a teoria hermenêutica delineada por Aarnio apresenta-se, acima
de tudo, como uma teoria da justificação no Direito.

II. O ponto de partida do pensamento do autor nórdico é o reconhecimento de


que, quer o objecto da interpretação, quer os argumentos usados para justificá-la se
exprimem em linguagem corrente, o que faz da interpretação um facto linguístico,
aquilo que Wittgenstein designou por “um jogo de linguagem”, que, no caso do
Direito, assenta na ideia fundamental de que o desejo da segurança jurídica
socialmente dominante exige que os casos e as situações sejam decididos de um
modo justo e racional, o que envolve, necessariamente, uma determinada ideia de
racionalidade e de aceitabilidade social do conteúdo da interpretação, estreitamente
ligada a uma ideia de Justiça.
Quanto à primeira, acolhe aqui, no essencial, Aarnio a concepção de
Habermas sobre a racionalidade comunicativa, diversa e contraposta à racionalidade
técnico-instrumental.
Segundo o pensador alemão, a racionalidade comunicativa é o meio através do
qual os membros de uma determinada sociedade podem alcançar uma
compreensão mútua, mediante a argumentação e a persuasão, sendo possível que,
numa situação ideal, logrem chegar a uma compreensão mútua perfeita, se
respeitarem integralmente as regras próprias do discurso racional. A argumentação
que é a base da concepção habermasiana pode incidir ou respeitar a proposições ou
enunciados empírieos, a normas ou valores, visando, respectivamente, apresentar
razões sobre a verdade dos primeiros, a legitimidade das segundas ou a realidade
dos últimos.
114
III. A ordem jurídica, para Aarnio, inscreve-se no domínio da racionalidade
instrumental, pois as normas que a compõem são, em regra, meios para alcançar
determinados fins, previamente definidos e cuja validade é, cada vez mais,
meramente formal, do que resulta, então, que a lei tende a apresentar-se como base
suficiente para legitimar qualquer decisão.
Acontece, porém, que, como, na esteira de Habermas, Aarnio sublinha, nas
sociedades modernas, a validade formal, típica da atitude jurídico-positivista, não
constitui a única base de legitimidade das normas jurídicas, as quais se baseiam
também nos valores racionalmente aceites na sociedade, o que significaria que o
seu fundamento de legitimidade transcende a norma para se radicar no “mundo da
vida”.
Deste modo, segundo o professor da Universidade de Helsínquia, pela sua
natureza de sistema de poder, o Direito encontra-se a cavaleiro entre dois mundos:
por um lado, é um instrumento formal que serve para organizar a vida social de um
determinado modo; por outro, a sua legitimidade, bem como a das suas
interpretações e decisões jurídicas, depende da comunicação linguística e da
compreensão mútua que dela resulta, pelo que a sua interpretação e aplicação não
pode limitar-se, cegamente, à letra da lei, devendo considerar, igualmente, o sistema
de valores acolhido pela maioria dos membros da sociedade, sob pena de pôr em
causa a confiança no sistema judicial.
Assim, para Aarnio, a fonte de legitimidade da interpretação e de aplicação do
Direito encontrar-se-ia na sociedade ou no “mundo da vida”, pois só uma
interpretação que corresponda às expectativas da maioria da sociedade é aceitável
por essa mesma sociedade e só ela garante a segurança jurídica, a qual constituirá
o critério que define quando e como pode conseguir-se a aceitabilidade racional
daquela. Com efeito, a segurança jurídica está fortemente associada ao sistema de
valores da sociedade, o que explica por que a aceitabilidade das interpretações
jurídicas se encontra dependente não só da sua racionalidade como também da sua
razoabilidade160.

160
Le rationnel comme raisonnable. La justification en droit, (1987), trad. Fran. Geneviève Warland, Paris, L.G.D.J.m
éme os.
1992 ; e «On justification on legal interpretation», Revue de Synthèse, 3 série, n 118-119, Abr-Set 1985, pp.
269-283.
115
23. Interpretação, aplicação e argumentação

I. Se, como de início se afirmou e a exposição das diversas doutrinas


hermenêutico-juridicas parece haver confirmado com suficiente clareza, as
concepções sobre a interpretação do Direito se encontram estreitamente associadas
tanto ao modo de entender a realidade jurídica como à teoria das fontes do Direito
que, directa ou indirectamente, contêm ou envolvem, a posição a tomar agora sobre
este tema não poderá deixar de, preliminarmente, recordar a visão ontológico-
juridica anteriormente exposta e de desenvolver o que aí então se adiantou sobre a
dimensão intrinsecamente hermenêutica de todas as criações culturais humanas161.
A nossa reflexão conduziu-nos a sustentar que o Direito, enquanto criação
humana destinada a ordenar a vida social do homem, de acordo com determinados
valores, de que o primeiro e mais relevante é a Justiça, valores a que procura dar
efectividade nas relações humanas intersubjectivas, se integra, de pleno, no mundo
da Cultura, ao lado de outras criações espirituais, como a Arte, a Filosofia, a Ciência,
a Religião ou a Técnica. Por essa razão, participa, directamente das características
comuns às demais realidades culturais, entre as quais avultam como mais
significativas e individualizadoras, a objectividade, a temporalidade e historicidade.
Queria isto dizer que, tal como a obra de arte ou a proposição filosófica, a norma
jurídica, uma vez formulada, adquire uma vida própria e autónoma, toma-se
independente daquele que a formulou ou emitiu, pois é portadora de um sentido
próprio, aberto, dinâmicamente, ao conhecimento, à interpretação e à aplicação
vivificadoras daqueles que com ela se defrontam, sendo, nessa relação, simultânea
e unitariamente cognitiva, estimativa e criadora, que plenamente se cumpre a sua
função prático-normativa e adquire a sua plenitude funcional de ser e de sentido.
Daqui decorreria, então, que o sentido de que as normas jurídicas são
portadoras, os valores que nelas se exprimem ou contêm, porque só existem,
plenamente, enquanto o homem os vive, sente e pensa, admitem uma diversidade
maior ou menor de interpretações, uma variedade de modos de compreender o
sentido axiológico que nelas reside, dado serem diferentes as situações ou os casos
em que são chamadas à vida e diversas as pessoas que têm de interpretá-las e
aplicá-las.

161
Sentido e valor do Direito, ed. cit., pp. 149-159.
116
Deste modo, como então igualmente se notou, a interpretação ou a
compreensão do sentido das realidades culturais ou normativas apresenta-se como
impostergável elemento constitutivo dos objectos culturais, em que o Direito se
inclui, as quais têm, por isso, uma essencial dimensão hermenêutica.
Por outro lado, como realidade cultural humana, além da objectividade, o
Direito tem entre os seus atributos fundamentais a temporalidade e a historicidade, o
que significa não só que a visão dos valores, princípios, ideias ou ideais a que
procura dar efectividade na ordenação da vida de relação intersubjectiva dos
homens é sempre necessária e insuperavelmente imperfeita e incompleta, dado ser
expressão de uma situação histórico-cultural concreta e de uma perspectiva
parcelar, como, ainda, que cada norma ou complexo normativo, enquanto expressão
objectivada do Direito, vai revelando sentidos diversos ao longo do período da sua
vigência, em função tanto das diversas circunstâncias e situações que são
chamados a regular ou decidir, como também das diferentes concepções axiológico-
culturais dominantes nos vários momentos em que são interpretados e aplicados.

II. Deste modo de compreender a realidade jurídica duas consequências


parece resultarem, com lógica necessidade, como, aliás, foi oportunamente
assinalado: por um lado, que, sendo no momento da sua aplicação que o Direito,
efectivamente, cumpre, em concreto, a sua essencial função de ordenar a conduta
social humana, não é possível continuar a ver na abstracção e na sua generalidade
da lei o seu momento ou aspecto decisivo e característico, visto esta constituir tão só
uma virtualidade normativa, que apenas no momento da sua aplicação se actualiza,
concretiza e adquire vida; por outro lado, a inadmissibilidade hermenêutica de toda e
qualquer solução doutrinária que vincule o objecto da interpretação jurídica à
determinação do querer normativo do autor do comando legislativo, ainda que
concebido aquele/num sentido não já psicológico, directamente ligado à intenção do
legislador histórico, mas a uma pretensa ou hipotética vontade racional do mesmo
legislador.
Com efeito, qualquer destas concepções choca-se, frontalmente, com um
entendimento de ordem normativa jurídica como realidade de natureza cultural, do
qual decorre, inequivocamente, o que Emilio Betti designou por autonomia
hermenêutica do objecto, que, no domínio jurídico, significará que o sentido do texto

117
é independente do seu autor e está sempre determinado ou condicionado pela
situação histórico-cultural do intérprete e pelas características do caso decidendo.
Por outro lado ainda, como tem sido insistente e fundadamente afirmado pelas
diversas doutrinas hermenêuticas, a interpretação jurídica, como toda a
interpretação de um texto, apresenta sempre um carácter actualizador e objectivante
do respectivo sentido normativo, consequência hermenêutica da temporalidade e da
historicidade do homem e das suas criações culturais.
Outra importante consequência lógica da concepção do Direito como realidade
cultural e normativa é a intrínseca dimensão axiológica de toda a hermenêutica
jurídica, por um duplo e complementar conjunto de razões.
Por um lado, o sentido que toda a interpretação jurídica busca inclui,
necessariamente, uma inquirição sobre os valores jurídicos em causa, sobre o modo
como as situações da vida a que a norma ou complexo normativo se referem são
por elas valoradas ou axiologicamente hierarquizadas, enquanto, por outro, quando
a norma se revela susceptível de mais de uma interpretação ou de ser
compreendida em mais de um sentido, não pode o intérprete quedar-se numa
situação de paralisante indecisão ou satisfazer-se com um pensamento alternativo,
devendo, antes, optar por aquele dos sentidos que se lhe afigure como o mais
adequado para realizar o pensamento axiológico-normativo em causa.
Cabe ter, igualmententa, que se, como, Gadamer não se cansou de insistir,
todo o processo hermenêutico é um todo unitário, que engloba interpretação,
compreensão e aplicação, no caso do Direito, atenta a sua natureza de ordem
prático-normativa, que se refere a ordenação da conduta social, o momento da
aplicação é a razão determinante de todo o processo hermenêutico, que é suscitado,
não por uma mera preocupação teorética ou cognitiva, mas por uma questão prática
que é necessário decidir, dando razões dessa decisão.

III. Este aspecto particular da hermenêutica jurídica aponta para outras


características individualizadoras da interpretação do Direito.
Diz respeito a primeira ao carácter dialéctico que ela sempre reveste, pois
decorre, tensionalmente, entre dois pólos, que reciprocamente se influenciam e
determinam, o da generalidade abstracta da norma ou do complexo normativo
objecto directo da interpretação e o da concreta singularidade do caso a decidir ou
da situação a regular.
118
Refere-se a segunda, que desta primeira directamente decorre, ao carácter
necessária e substantivamente criador de toda a interpretação jurídica, pois o
momento da aplicação que o processo hermenêutico aqui envolve, longe de revestir
um carácter meramente cognitivo e obedecer ao esquema rigidamente lógico e
quase mecânico e impessoal da subsunção, não só envolve elementos intuitivos e
volitivos, a opção entre sentidos valorativos diversos, como vem a consubstanciar-se
na criação normativa da solução do caso, é sempre e necessariamente uma
interpretação produtiva, concretizadora e não reprodutiva.
A terceira consequência do relevo que o momento da aplicação apresenta na
hermenêutica jurídica é a estreita relação que ne-la se dá entre interpretação e
argumentação, já que tal aplicação carece de ser justificada ou fundamentada com
argumentos ou razões que logrem persuadir da bondade, da justiça ou da
adequação da solução hermenêutico-prática encontrada, adoptada, ou defendida, o
que revela a complementaridade que, no domínio jurídico, existe entre a
hermenêutica e a tópico-retórica como momentos de racionalidade prática do Direito.

IV. Como nos demais processos hermenêuticos, também no jurídico não


podem ignorar-se as noções de pré-compreensão e de círculo hermenéutico,
património comum do pensamento hermenêutico contemporâneo, bem como a
noção gadameriana de duplo horizonte hermenêutico.
Com efeito, também o jurista, como qualquer intérprete qualificado, ao abordar,
hermeneuticamente, um preceito ou texto legal, com vista a compreender o seu
sentido axiológico-normativo, fá-lo a partir da pré-compreensão que decorre da sua
experiência jurídica e humana, do seu conhecimento da ordem jurídica e do ramo de
Direito em causa. É desse conhecimento e dessa pré-compreensão que não pode
deixar de partir o eu acesso hermenêutico ao texto, o qual não deixará de envolver,
ainda que, porventura, de modo nem sempre consciente ou deliberado, aquele
processo circular que já Schleiermacher havia surpreendido e que, desde
Heidegger, se denomina círculo hermenêutico. Com efeito, também na actividade
interpretativa levada a cabo pelos juristas a compreensão do sentido do preceito
singular é condicionada ou determinada pela do todo normativo em que se integra,
ao mesmo tempo que a compreensão desse todo normativo é, por sua vez,
condicionada ou mediada pelo conteúdo do preceito singular.

119
Note-se que esta realidade é particularmente significativa na interpretação
jurídica, por uma dupla razão. Por um lado, muitas vezes o exacto significado de um
termo, de uma expressão ou de um conceito normativo só logra alcançar-se a partir
da consideração ou da análise do contexto global do próprio texto interpretando, cujo
sentido, por sua vez, só pode ser plena e adequadamente compreendido tendo em
conta o significado com que nele são usados os termos e as expressões que o
compõem. Por outro, cabe não esquecer que, embora o dogma positivista da
coerência do ordenamento jurídico, no seu seco e abstracto logicismo, contrarie,
abertamente, a realidade viva do Direito e, nessa medida, não possa ser aceite, no
entanto, a interpretação jurídica, como toda a interpretação, deve visar uma
coerência de sentido da ordem jurídica, que advém do quadro de valores que a ela
presidem e da respectiva hierarquia axiológica, a mesma que permite fundar a
opção por um dos vários sentidos axiológico-normativos que a actividade
hermenêutica venha a revelar ao intérprete, numa mesma norma ou complexo
normativo.

V. Também a noção de duplo horizonte hermenêutico, desenvolvida pelo


filósofo de Verdade e método, deve ser tida devidamente em conta no domínio
hermenêutico-jurídico, se bem que a cada vez maior mutabilidade das leis e o cada
vez menor período da respectiva vigência lhe tenham vindo a retirar parte da sua
relevância, ao mesmo tempo que a forma apressada e pouco ponderada com que
são, hoje, feitas as alterações legislativas, pomposamente apelidadas de “reformas”,
associadas a uma crescente degradação da qualidade técnico-jurídica e a uma
muito deficiente redacção, com desrespeito por regras gramaticais elementares, dos
textos jurídicos e de muitas decisões judicias, vêm tornando cada vez mais difícil a
tarefa do intérprete, constituindo preocupante factor de insegurança jurídica.
Não obstante, a ideia gadameriana, no plano teórico-conceitual, mantém a sua
validade e relevância, na medida em que chama a atenção para os dois momentos
temporais e para as duas situações culturais presentes em todo o processo
hermenêutico, definindo a particular situação em que, nele, o intérprete se encontra,
a qual é tanto mais nítida e significativa, quanto maior for o lapso de tempo que
medeie entre o intérprete e o texto legal a ser por ele interpretado.

120
VI. Dois problemas, estreitamente associados, relacionados com o que, desde
Savigny. têm sido considerados os elementos da interpretação jurídica importa ainda
ter em conta.
Assim, quanto ao que habitualmente se designa por interpretação geramatical
importa notar, na senda de Engisch, que, embora o Direito seja, substantivamente,
linguagem, e se socorra, muitas vezes, da linguagem corrente, constitui um
complexo conceptual próprio, pelo que, nele, a chamada interpretação gramatical é
sempre interpretação do sentido normativo e técnico-jurídico que as palavras e as
expressões nele têm.
Por outro lado, a chamada interpretação sistemática mais não será do que a
expressão, no mundo do Direito, do círculo hermenêutico, e que aqui, para além de
um significado lógico, apresenta um sentido axiológico e é inseparável da ideia de
coerência de sentido que deve presidir a toda a compreensão hermenêutica.
Relativamente à chamada interpretação histórica, dada a autonomia
hermenêutica do texto, decorrente da objectividade inerente a toda a criação cultural
e do carácter actualizador e concretizador de todo o processo hermenêutico,
designadamente no seu momento de aplicação, não terá aqui outro papel a
desempenhar que não seja o que está pressuposto na noção de duplo horizonte
hermenêutico.
Por outro lado, será necessário não esquecer que, como lembrou o mesmo
Engisch, os quatro processos hermenêuticos tradicionalmente aceites (gramatical,
lógico, histórico e sistemático) nem sempre confluem num mesmo resultado ou
numa mesma conclusão interpretativa, podendo, pelo contrário, conduzir a
resultados divergentes, antagónicos ou contraditórios, cabendo, então, ao intérprete
superar tal situação, não através do recurso a qualquer hierarquia ou ordenação
valorativa genérica e abstracta destes vários processos, mas adoptando, em cada
caso, a solução que se lhe afigure melhor corresponder ao pensamento legislativo
objectivado na norma ou no complexo normativo em causa e melhor se adequar à
situação concreta decidenda. Para isso, deverá socorrer-se do quadro de valores
que enformam aquele instituto ou aquele ramo de Direito, ou a ordem jurídica no seu
conjunto, tal como são compreendidos e vivenciados no momento sócio-cultural em
que haja de concretizar, por via da aplicação, o comando normativo em causa,

121
fundamentando, com os argumentos que tenha por pertinentes, a solução que assim
venha a adoptar162.

162
Cfr. A. Castanheira Neves, O actual problema metodológico da interpretação jurídica, Vol. I, Coimbra, Coimbra
Ed., 2003; e José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, Lisboa, Ed. Fragmen-tos, 1990.
122

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