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Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (IV, 24) (731) / História Eclesiástica do


Povo Anglo-Saxão (IV, 24)

Article · August 2020

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Mauri Furlan
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HISTORIA ECCLESIASTICA GENTIS ANGLORUM (IV,24)
HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DO POVO ANGLO-SAXÃO (IV,24)

BEDA VENERABILIS (BEDA, O VENERÁVEL)


MAURI FURLAN (TRADUTOR)

O MAIOR HISTORIADOR ANGLO-SAXÃO DA IDADE MÉDIA, o monge Beda, tam-


bém dito Beda Venerabilis (ca. 672-735), viveu no nordeste da Inglaterra,
reino da Nortúmbria, cuja língua era o inglês antigo ou anglo-saxão. Walter
Berschin considera Beda o primeiro “erudito medieval”, no sentido de que, sem con-
tato direto com o mundo mediterrâneo –nunca saiu de sua região–, imerge no latim
como uma língua completamente estrangeira, aprendendo-a somente por meio dos li-
vros, o mesmo acontecendo com relação à língua grega.1
Embora fosse muito considerado em seu tempo como autor de obras de cunho
histórico, teológico, educacional, científico e poético, Beda é atualmente conhecido
sobretudo por sua Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (História Eclesiástica do
Povo Anglo-Saxão), escrita em latim em cinco livros, concluída em 731. A obra
abrange temporalmente eventos desde a primeira invasão romana de Júlio César, em
55 a.C., até os conflitos com a Igreja britânica em torno à datação da Páscoa no tempo
de Beda. Seu objetivo era mostrar a crescente união entre britânicos e saxões na Igreja
na Inglaterra. A inclusão de vários milagres entre os relatos históricos justifica-se no
marco da mentalidade de então, quando os milagres eram concebidos como fatos e
fortaleciam a fé. E entre eles está o de Cædmon, o primeiro poeta anglo-saxão cujo
nome foi conservado.
O mais antigo poema oral documentado em anglo-saxão é chamado de Hino
de Cædmon, um poema religioso, do qual restam alguns versos. A história de Cæd-
mon é contada unicamente por Beda, no livro IV, cap. 24, da Historia. O milagre do
iletrado que nunca aprendera nada sobre poesia e cuidava dos animais no mosteiro de
Streonæshalch, acontecido no período em que Santa Hilda foi a abadessa do local
(657-680), é o da graça divina que lhe inspira a compor e cantar em anglo-saxão
temas religiosos a partir daquilo que os intérpretes da Bíblia lhe ensinavam. Fato ou
lenda, a história de Cædmon atendeu a seus fins, dentre eles a legitimação do uso da
língua popular na poesia cristã, promovida por Beda. Cuthbert, amigo do historiador,
escreveu na Epistola de obitu Bedae (Carta sobre a morte de Beda) que o monge era
versado na poesia vernácula (erat doctus in nostris carminibus).

1
Cf. BERSCHIN, Walter. Griechisch-lateinisches Mittelalter, von Hieronymus zu Nikolaus von Kues.
München: Francke, 1980.

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HISTORIA ECCLESIASTICA GENTIS ANGLORUM (IV, 24)
HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DO POVO ANGLO-SAXÃO (IV, 24)

Entre várias características da poesia em anglo-saxão, vale destacar que ela
não trabalha, em princípio, com rima –há divergências entre os estudiosos2–, nem
com um número fixo de sílabas por verso, mas com ritmo e homofonia (aliteração e
assonância), com sílabas longas e breves (duração). A sílaba tônica e a homofonia
recaem sobretudo na raiz (mais do que nos prefixos e flexões) dos vocábulos. Essa
poesia possui um estilo muito concentrado de escrita, com poucas conjunções e
preposições.3 Ao traduzir alguns versos do primeiro poema de Cædmon do anglo-
saxão ao latim, Beda assevera a imposibilidade da tradução literal dos mesmos:
Este é o sentido, porém não a mesma ordem das palavras, que ele cantava
dormindo; pois os poemas, ainda que perfeitamente compostos, não
podem ser traduzidos ad uerbum de uma língua a outra sem detrimento de
sua beleza e dignidade. (Historia, IV, 24)
A intraduzibilidade formal do poema de Cædmon, a que Beda parece se refe-
rir, provavelmente é relativa à questão da homofonia e do ritmo. Muito, porém, já se
discutiu sobre o valor das palavras sensus (sentido) e ordo (ordem) nesta afirmação de
Beda, com a qual ou ele teria vertido apenas algo próximo do original, ou aludido
simplesmente à dificuldade de reproduzir poesia em pura prosa (ad uerbum trans-
ferri).4 A ordem das palavras diferencia a poesia da prosa. Contudo, detemo-nos aqui
na claríssima asserção de Beda de que uma tradução literal deve necessariamente
renunciar à sua beleza poética e à sua dignidade. Apesar de não nos ter chegado
nenhuma das traduções realizadas por Beda, é de se crer que o monge douto em poe-
sia vernacular decerto preferia uma tradução literária, ad sensum –que o obrigava a
produzir outra beleza poética e dignidade5–, a uma literal, ad uerbum, o que também
se infere de sua revisão de uma tradução feita por alguém torpe:
Corrigi o quanto pude segundo o sentido (ad sensum) o livro da Vida e
Paixão de Santo Anastásio, que havia sido mal traduzido do grego e ainda
pior emendado por algum inepto.6
Conta-se que Beda morreu logo ao acabar a tradução do Evangelho de São
João. Traduzia do grego ou do latim ao anglo-saxão, que se tornaria o idioma inglês.
Uma bela cena, segundo Borges, para quem, ao morrer traduzindo, Beda morria
“cumprindo a menos vaidosa e a mais abnegada das tarefas literárias”.7
Mauri Furlan
maurizius@gmail.com
Prof. dr., Universidade Federal de Santa Catarina

Fonte: Migne, Jacques-Paul (ed.).


Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (IV, 24, 212D-213C)
Patrologia Latina Tomus XCV – Venerabilis Beda

2
Cf. RANKIN, J. W. “Rhythm and Rime before the Norman Conquest”, in PMLA, 1921, Vol. 36, No. 3,
pp. 401-428. http://www.jstor.com/stable/457200
3
Cf. HOUGH, C. & CORBETT, J. Beginning Old English. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2007.
4
Cf. WARD & WALLER (eds.). The Cambridge History of the English Literature. Vol I: From the
beginnings to the cycles of romance. Cambridge: University Press, 1907.
5
Cf. ZUPITZA, J. “Über den Hymnus Cädmons”, in Zeitschrift für deutsches Altertum und deutsche
Literatur, 22. Bd., 1878, pp. 210-223. https://www.jstor.org/stable/20648686
6
“Librum vitae et passionis sancti Anastasii, male de Graeco translatum, et pejus a quodam imperito
emendatum, prout potui, ad sensum correxi”. (Historia, V, 24)
7
BORGES, Jorge Luis. Literaturas Germánicas Medievales. Madrid: Alianza, 1980, p. 34.

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BEDA, MAURI FURLAN


Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (IV, 24) (731)
História Eclesiástica do Povo Anglo-Saxão (IV, 24)

Caedmon

Quod in monasterio ejus fuerit frater Nesse mosteiro houve um frade a quem,
cui donum canendi sit divinitus conces- por graça divina, foi concedido o dom
sum de cantar

In hujus monasterio abbatissae fuit frater No mosteiro dessa abadessa8 houve um


quidam divina gratia specialiter insignis, frade especialmente notável pela graça
quia carmina religioni et pietati apta divina, porque costumava compor poe-
facere solebat; ita ut quicquid ex divinis mas adequados à religião e à piedade.
literis per interpretes disceret, hoc ipse Assim, o que quer que aprendesse das di-
post pusillum verbis poeticis maxima vinas Escrituras por intermédio de intér-
suavitate et compunctione compositis, in pretes, pouco depois, em palavras poéti-
sua, id est, Anglorum lingua proferret. cas compostas com a maior suavidade e
Cujus carminibus multorum saepe animi contrição, ele enunciava em sua língua,
ad contemptum saeculi, et appetitum sunt isto é, na língua dos anglo-saxões. Com
vitae caelestis accensi. Et quidem et alii seus poemas, muitas vezes as almas de
post illum in gente Anglorum religiosa muitos se inflamaram para o desprezo do
poemata facere tentabant; sed nullus eum mundo e para o desejo da vida celestial.
aequiparare potuit. Namque ipse non ab E com efeito, depois dele também outros,
hominibus, neque per hominem institutus entre o povo dos anglo-saxões, tentaram
canendi artem didicit; sed divinitus adju- compor poemas religiosos, mas ninguém
tus gratis canendi donum accepit. Unde pode igualar-se a ele. Pois ele aprendeu a
nihil unquam frivoli et supervacui poe- arte de cantar não instruído pelos homens
matis facere potuit; sed ea tantummodo ou por algum meio humano, mas recebeu
quae ad religionem pertinent, religiosam gratuitamente o dom de cantar favoreci-
ejus linguam decebant. Siquidem in habi- do pela inspiração divina. De onde ele
tu saeculari usque ad tempora provectio- nunca ter podido compor nenhum tipo de
ris aetatis constitutus nil carminum ali- poema frívolo e inútil, mas somente
quando didicerat. Unde nonnunquam in aqueles que concernem à religião convi-
convivio, cum esset laetitiae causa ut nham à sua língua religiosa. Embora te-
omnes per ordinem cantare deberent, ille nha vivido no mundo secular até atingir
ubi adpropinquare sibi citharam cernebat, idade avançada, nunca aprendeu nenhum
surgebat a media coena et egressus ad tipo de poema. De onde às vezes numa
suam domum repedabat. festa, quando acontecia que, por conta da
alegria, todos deveriam cantar em sua
vez, ele percebia que a lira se aproxima-
va de si, levantava-se no meio da refei-
ção, saía, e voltava para sua casa.

8
Hild of Streonæshalch (Santa Hilda de Whitby) (614 – 680), fundadora do mosteiro de Streonæs-
halch, posteriormente renomeado para Whitby, na atual North Yorkshire. Hilda teve um papel impor-
tante na conversão da Inglaterra para o cristianismo.

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HISTORIA ECCLESIASTICA GENTIS ANGLORUM (IV, 24)
HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DO POVO ANGLO-SAXÃO (IV, 24)

Quod dum tempore quodam faceret, et Em certa ocasião quando fez isso e, de-
relicta domo convivii egressus esset ad pois de ter deixado a festa, saiu da casa
stabula jumentorum quorum ei custodia em direção aos estábulos dos jumentos,
nocte illa erat delegata, ibique hora com- cuja guarda lhe havia sido incumbida na-
petenti membra dedisset sopori, adstitit ei quela noite, e ali, tendo entregado seus
quidam per somnium, eumque salutans, membros ao sono na hora adequada, apa-
ac suo appellans nomine: «Caedmon, in- receu-lhe alguém em sonho, e saudando-
quit, canta mihi aliquid.» At ille respon- o e chamando seu nome, diz: “Cædmon,
dens, «Nescio, inquit, cantare; nam et canta-me algo.” Respondendo, ele diz:
ideo de convivio egressus huc secessi, “Não sei cantar; por isso, depois de sair
quia cantare non poteram.» Rursum ille da festa, retirei-me para cá, porque não
qui cum eo loquebatur, «Attamen, ait, podia cantar.” Novamente aquele que fa-
mihi cantare habes.» «Quid, inquit, de- lava com ele diz: “Contudo, tens que
beo cantare?» At ille, «Canta, inquit, cantar para mim.” Ele diz: “O que devo
principium creaturarum.» Quo accepto cantar?” E aquele diz: “Canta o princípio
responso, statim ipse coepit cantare in da criação.” Depois desta resposta, co-
laudem Dei conditoris versus, quos nun- meçou imediatamente a cantar em louvor
quam audierat, quorum iste est sensus: de Deus Criador versos que nunca ouvi-
ra, cujo sentido é este:
Nunc laudare debemus auctorem regni caelestis, Devemos agora louvar o autor do reino celeste,
potentiam creatoris, et consilium illius o poder do criador e sua sabedoria,
facta Patris gloriae. Quomodo ille os feitos do glorioso Pai, e como ele,
cum sit aeternus Deus, omnium miraculorum sendo eterno Deus, de todas as maravilhas
auctor exstitit, qui primo filiis hominum foi o autor, que aos filhos dos homens criou
caelum pro culmine tecti, dehinc primeiro o céu por ápice do teto, depois,
terram custos humani generis onipotente protetor do gênero humano,
omnipotens creavit. a terra lhes formou.

Hic est sensus, non autem ordo ipse Este é o sentido, porém não a mesma or-
verborum quae dormiens ille canebat; dem das palavras, que ele cantava dor-
neque enim possunt carmina, quamvis mindo; pois os poemas, ainda que perfei-
optime composita, ex alia in aliam lin- tamente compostos, não podem ser tradu-
guam ad verbum sine detrimento sui zidos ad uerbum de uma língua a outra
decoris ac dignitatis transferri. Exsurgens sem detrimento de sua beleza e dignida-
autem a somno, cuncta quae dormiens de. Despertando, porém, do sono, reteve
cantaverat, memoriter retinuit, et eis mox na memória tudo o que cantara dormin-
plura in eundem modum verba Deo digni do, e acrescentou-lhe logo outras pala-
carminis adjunxit. vras mais no mesmo modo do poema
digno de Deus.

[...] [...]

***

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