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Wolfgang Smith Cosmos e Transcendência Rompendo A Barreira Da Crença
Wolfgang Smith Cosmos e Transcendência Rompendo A Barreira Da Crença
Wolfgang Smith Cosmos e Transcendência Rompendo A Barreira Da Crença
APRESENTAÇÃO
CAPÍTULO I
A ideia do universo físico
CAPÍTULO II
O dilema cartesiano
CAPÍTULO III
Horizontes perdidos
CAPÍTULO IV
Evolução: fato e fantasia
CAPÍTULOV
O ego e a besta
CAPÍTULOVI
A deificação do inconsciente
CAPÍTULO VII
O “progresso” em retrospecto
APRESENTAÇÃO
Harry Oldmeadow
Universidade La Trobe
Bendigo, Austrália
PREFÁCIO - À SEGUNDA EDIÇÃO
Não conhecemos a extensão dos corpos senão por meio dos nossos
sentidos, e estes não alcançam a extensão de todos os corpos; mas, por
percebermos a de todos os corpos sensíveis, atribuímo-la
universalmente a todos os mais. Aprendemos pela experiência que
muitíssimos corpos são duros; e, tendo em vista que a dureza do todo
resulta da dureza das partes, podemos com justeza inferir a dureza das
partículas indivisíveis não somente dos corpos que sentimos, mas de
quaisquer outros. Que todos os corpos são impenetráveis, chegamos a
sabê-lo não pela razão, mas pela sensação.3
Notas
Digo que esta mesa em que escrevo existe porque a vejo e sinto; e se
estivesse fora do meu gabinete havia ainda de dizer que ela existe,
querendo com isto dizer que se estivesse no meu gabinete eu a poderia
perceber, ou que algum outro espírito talvez de fato a percebesse
naquele mesmo instante. [...] Quanto à afirmação de que as coisas não-
pensantes existem em sentido absoluto, sem nenhuma dependência de
serem percebidas, isto para mim é perfeitamente ininteligível. O esse
delas é percepi; não podem elas ter existência fora da mente ou da coisa
pensante que as percebe.6
Temos tentado demonstrar que nossas intuições nada mais são que
representações de fenômenos; que as coisas intuídas por nós não são em
si como se nos afiguram; e que, se for suprimido o sujeito, ou mesmo
somente a constituição subjetiva dos sentidos em geral, então
desaparecerão também todas as propriedades, todas as relações dos
objetos no espaço e tempo, e mesmo o próprio espaço e tempo. Porque,
como fenômenos, eles não existem em si, mas somente em nós.
Permanece-nos completamente desconhecido o que sejam os objetos em
si, apartados de toda esta receptividade das nossas sensações. Dos
objetos só conhecemos o nosso modo de percebê-los [...].11
Notas
Í
CAPÍTULO II - DILEMA CARTESIANO
1. Joannis Kepleri Astronomi Opera Omitia. Frankfurt e Erlangen: 1958, i, 31. Apud: Burtt (nota 2
do cap. 1), p. 57.
2. Lynn White, Medieval Technology and Social Change. Oxford: Oxford University Press, 1962, p.
124.
3. Universo mecânico, ou, literalmente, universo análogo ao mecanismo de um relógio. — NT.
4. Principia philosophiae, in Oenvres (Paris, 1824), IV, 198. Apud: Burtt (nota 2 do cap. 1), p. 112.
5. Principia, IV, 198. Apud: Burtt (nota 2 do cap. 1), p. 112.
6. Principies of Human Knowledge, i, 3.
7. Ibid., i, 6, 7.
8. Critique of Pure Reason. Nova York: Random House, 1958, p. 43.
9. Ibid., p. 43.
10. Ibid., p. 46.
11. Ibid., p. 54
12. Nature and Life. Nova York: Greenwood, 1968, p. 6.
13. Science and the Modem World. Nova York: Macmillan, 1953, pp. 54-5.
14. Em inglês, fallacy of misplaced concreteness — expressão cunhada por Whitehead. — NT
15. Nature and Life, p. 30.
16. Ibid., p. 23.
CAPÍTULO III - HORIZONTES PERDIDOS
Quando olhei bem estoutras coisas abaixo de Ti, vi que elas não
existem por completo, nem por completo deixam de existir. Existem,
pois provêm de Ti; ao mesmo tempo não existem, pois não são aquilo
que És. Só existe realmente aquilo que permanece imutável.13
Deveras, o cosmos por si, na sua totalidade, não tem uma existência
independente de Deus: não é outro ser, ou uma entidade separada, a manter-
se apartada Dele e a confrontá-Lo, digamos assim. Só Deus É: aí reside a
significação da revelação sinaítica.
AINDA OUTRO nomen Dei é implicado pela fórmula de Êxodo 3,14: o
da Unidade ou Unicidade. Porque AQUELE QUE É só pode ser um. Ele deve
mesmo ser “um-sem-segundo”, como reza a expressão vedantina. Pois Ele é
em Si “um”, conforme indicado pelo pronome singular eu, e “sem-segundo”
em virtude de só Ele ser.
Ora bem, a unidade de Deus, não menos do que o Seu ser, está além da
compreensão humana, na medida em que ultrapassa todos os casos de
unidade encontrados no mundo. Dizemos, por exemplo, que uma nação tem
um governante; só que este é apenas um dentre muitos homens. Ou falamos
de uma coisa composta como se fosse um todo; só que este todo admite
numerosas partes. Mas Deus não é um dentre muitos, nem admite partes.
Nenhuma analogia, portanto, pode realizar a verdadeira unidade de Deus.
Ainda assim, porém, todo caso particular de unidade vem exemplificar,
mesmo que inadequadamente, aquela unidade absoluta que é protótipo e
fonte de tudo a que chamemos unidade ou unicidade dentro da ordem da
criação.
E tal unicidade relativa ou partícipe, encontramo-la em todo lugar. Pois
a unicidade é, de fato, o concomitante inalienável do ser, como costumavam
dizer os escolásticos — ens et unum convertuntur. De modo que ser e
unidade são inseparáveis; e isto vale, ademais, não só in divinis, mas ainda
com relação às coisas existentes. Logo, afirmar que uma coisa existe é dizer
que ela é uma coisa só; e, se for admissível falar em graus de existência,
pode-se mesmo dizer que uma coisa existe na proporção em que seja una.
Um artefato, por exemplo, existe em grau mais alto que uma nuvem ou um
amontoado de pedras, coisas um tanto ou quanto mal definidas e não
nitidamente discerníveis como entidades individuais; e, na mesma ordem de
ideias, é evidente que um organismo vivo, pela sua unidade estupenda,
existe em sentido preeminente. Contudo encontramos em toda parte a
multiplicidade junto com a unidade, ou, mais precisamente, a multiplicidade
participando da unidade em alguma medida. Se a multiplicidade não
participasse da unidade, aliás, nós não a poderíamos encontrar de maneira
nenhuma, o que em última análise equivale a dizer que ela não poderia
existir. Numa palavra, as coisas existem e são conhecidas graças à sua
unidade. E no entanto a multiplicidade permanece: não é de modo algum
anulada pela unidade manifesta. Por conseguinte, o organismo vivo, com
toda a sua notável unicidade, ainda assim se compõe de muitos membros e
de incontáveis células, cada uma existindo em virtude da sua própria
unidade manifesta. Mas para além dessas unidades parciais e manifestas há
uma unidade absoluta e imanifesta de que todas elas se derivam e dão
testemunho: tal é a unicidade suprema D’AQUELE QUE É.
Deus é, ademais, a causa última não só de toda unidade, como também
de toda multiplicidade. Pois a multiplicidade não pode em hipótese alguma
existir à parte da unidade: ela é a sombra de uma unidade parcial ou
partícipe, pode-se dizer. Assim, por paradoxal que pareça, “o supremamente
uno é o princípio universal de toda multiplicidade”, como observa São
Boaventura.14 Não quer isto dizer, porém, que a unidade e a multiplicidade
decorram do supremamente uno no mesmo sentido: a primeira se deriva
dele por participação — ou como uma imagem se origina do seu protótipo
—, ao passo que a segunda ocorre, não por participação, mas por falta ou
incapacidade. Portanto, é sempre a unidade, e não a multiplicidade, que
constitui uma Ímago Dei dentro do mundo: um reflexo, por mais distante e
fugaz que seja, da Sua unicidade suprema e transcendente.
Já foi esta ideia expressa, duma ou doutra forma, por todos os
metafísicos sérios. É, com efeito, o mesmo “conceito de unidade” a que se
refere Plotino, a verdade da qual os materialistas “foram parar longe”. E
ninguém discorreu sobre o tema com maior acuidade e eloquência do que
Dionísio, o renomado autor cristão e autoridade em assuntos elevados, cuja
identidade histórica virou objeto de discussão em tempos recentes.15 Será
elucidativo citar uma passagem característica deste mestre antigo, onde ele
fala da unidade como epíteto da divindade suprema e explica o significado
cosmológico deste particular nomen Dei:
Uma vez que o mundo não foi feito por acaso, mas por Deus agindo
segundo a Sua inteligência, [...] é forçoso que exista na mente divina
uma forma à semelhança da qual o mundo foi feito. E nisto consiste a
noção de ideia.23
Notas
Vem ao caso lembrar que numa fase inicial, i.e., antes do segundo
mês de desenvolvimento, o embrião humano (e com efeito o de todos os
vertebrados) exibe uma porção do intestino atrás do ânus. Quem afirma
ser a cauda embrionária humana resquício dum ancestral caudado deve,
se pretende obedecer à lógica, afirmar ser a tripa pós-anal resquício dum
ancestral que seguia vida afora com tão esquisito órgão. Os autores que
se estendem sobre a cauda embrionária humana em geral calam a
respeito da tripa pós-anal.
O que o cientista nos diz aí, por outras palavras, é que, mesmo com a
“indigesta enormidade” da afirmação transformista e o fato de que “jamais
presenciamos, por mais ínfimo que seja, um só autêntico fenômeno
evolutivo”, ele aceita a doutrina em base apriorística (“pois não vejo meio
de pensar diferente”).
A posição semioficial, em contrapartida, omite toda referência a uma
indigesta enormidade, e sustenta apenas que a doutrina teve êxito em
explicar de maneira plenamente satisfatória uma série de fenômenos “caso
contrário inexplicáveis”. Mas, para além da intrínseca dificuldade de
determinar ao certo quando um dado fenômeno é “caso contrário
inexplicável” — assunto em que já tocamos —, essa asserção fraqueja ainda
em outro ponto. E que, muito longe de conseguir explicar com desembaraço
uma multidão de fatos à luz da sua teoria, o evolucionista na realidade é
forçado a estipular incontáveis hipóteses ad hoc para protegê-la contra fatos
adversos a ela, dos quais já conhecemos alguns exemplos: a falta de fósseis
pré-cambrianos e a geral escassez de elos evolutivos; as incongruências da
recapitulação; a ausência de órgãos nascentes; os dados sobre precipitação
sanguínea “infestados de absurdidades” (Dewar); e, para fechar o rol de
constrangimentos, la stabilité expérimentalement constatée des organismes
actuels. Cada um destes itens o evolucionista tem conseguido rebater com
alguma hipótese especial, ou antes, as mais das vezes, com uma boa coleção
de tais teses. Confrontado com a observada estabilidade das formas vivas,
por exemplo, ele pode dizer que o período de tempo ou o número de
gerações é muito pequeno para permitir a manifestação de transformações
evolutivas, ou que a dada espécie chegou a um estágio em que tais
transformações já não podem mais ocorrer. E, conquanto haja parca
evidência em apoio dessas estipulações e nenhum consenso entre os
especialistas sobre quais seriam corretas, ele não obstante acredita que, seja
como for, tem de existir para a sua teoria alguma legítima explicação a
salvaguardá-la. E aí mais uma vez se patenteia a natureza apriorística da
doutrina. De modo que o evolucionista não enxerga na interminável
multiplicação de hipóteses ad boc nenhum motivo para suspeita,
simplesmente porque o seu princípio fundamental não está jamais sujeito a
questionamentos: aceita-se a evolução como fato consumado, e não
perceber isso é revelar “uma total incompreensão da nossa teoria”, como há
muito disse Haeckel.
Pela natureza do caso, a doutrina da evolução é impossível de
estabelecer em base empírica; e, no reverso da medalha, é em certo sentido
“indesmentível”, como já assinalaram alguns contemporâneos filósofos da
ciência. Eis aí a sua força e a sua fraqueza: “Sua força como dogma e sua
fraqueza como verdade científica”, declara Bounoure.
NÃO TERÁ SIDO POR ACASO que o darwinismo se consolidou à
altura em que a Weltanscbauung newtoniana atingira o zênite da sua
influência. Entre as duas doutrinas há uma ligação evidente, na medida em
que sob as premissas newtonianas o darwinismo se torna, duma ou doutra
forma, praticamente inescapável. Num universo correspondente à ideia de
um sistema mecânico fechado, as possibilidades se reduzem enormemente.
Além disso, caso se suponha — como desde o início se supôs — que a
própria Terra veio à existência em algum tempo longínquo,33 não sobra
outra maneira de explicar a gênese da vida e a origem das espécies senão
em termos transformistas. Sob tais auspícios, de fato, não é possível ver
nenhum “meio de pensar diferente”.
No que concerne ao clima geral da crença científica, a situação parece
não ter mudado significativamente desde o inicial triunfo do darwinismo.
Em contraposição, cumpre notar que, com a derrocada do atomismo estrito
e do associado determinismo laplaciano, a noção de um clockwork universe
perdeu o seu aval científico. Hoje se sabe que até mesmo o mecanismo de
um relógio propriamente dito se baseia tão-somente em leis estatísticas.
Assim, o mundo real revelou-se muito menos restringido às nossas
concepções físicas do que se imaginava, um fato que se verifica sobretudo
“no pequeno”. Em um sentido bem real, parece que a natureza é
imensamente mais misteriosa nas suas operações do que o século XIX tinha
sido levado a supor. Os próprios avanços da física vieram descortinar
imprevistas limitações na pretensão de explicar os fenômenos naturais em
termos de qualquer mecanismo físico concebível. Hoje temos mesmo
fortíssimo motivo para suspeitar que as “leis ordinárias da física” não se
aplicam às formas altamente estruturadas de matéria encontradas no núcleo
de uma célula viva.34 Referimo-nos em especial àquelas moléculas
gigantescas, situadas dentro dos cromossomos, que controlam toda a
estrutura e funcionamento do organismo — os genes. Ora, na perspectiva da
física, essas substâncias distinguem-se das formas inanimadas de matéria
principalmente pela sua aperiodicidade. Lembram, assim, uma pintura
requintada onde cada pincelada desempenha um papel especial, em
contraste com a matéria inorgânica, que se poderia comparar a um grande
papel de parede onde um padrão simples se repete em série. Pois bem,
sendo inerentemente estatísticas as leis ordinárias da física — aquelas que
normalmente testamos e usamos —, sua aplicabilidade, no caso dos sólidos,
depende da periodicidade. Por analogia, elas aplicam-se ao papel de parede,
em oposição à pintura. Logo, “tendo em vista tudo o que aprendemos sobre
a estrutura da matéria viva,” escreve Schrödinger, “devemos estar
preparados para identificar-lhe um funcionamento impossível de reduzir às
leis ordinárias da física”.35
Isso não significa que dentro da biosfera não vigore nenhuma lei, ou
nenhuma lei física. Onde quer que haja vida há ordem — e, na verdade, um
grau de ordem imensamente superior ao de qualquer coisa encontrada no
âmbito inorgânico. De fato, o problema fundamental com que todo
organismo vivo tem de lidar é conservar essa ordem tremenda em face da
desordem ambiente; e pode-se acrescentar que todos os mecanismos vitais
parecem ter-se instituído somente para a execução dessa tarefa. Além disso,
a ordem dos organismos distingue-se não apenas em grau — conforme
mensurada em termos de “entropia negativa” —, mas ainda em tipo: é o que
Schrödinger chama “ordem a partir da ordem”, em oposição à “ordem a
partir da desordem”. E, sem dúvida, esta diferença leva às consequências
mais amplas. Quando temos diante dos olhos a misteriosa coisa chamada
vida, mesmo nas suas manifestações mais simples, apresenta-se-nos um
quadro inteiramente novo.
Uma característica especialmente notável dos organismos vivos é o que
se pode denominar a primazia do todo. Ora bem, o todo exibe uma
multiplicidade de partes, e a mente analítica tem propensão para reduzir o
todo às suas partes, ou, dito de outro modo, para concebê-lo como mero
aglomerado ou soma dos seus constituintes. Este ponto de vista, note-se, é
próprio do atomismo, e ainda da física clássica em geral.36 Mas, com o
advento da teoria quântica, o quadro começou a mudar. “A moderna física
nos ensinou”, escreveu Planck em 1929, “que não se pode descobrir a
natureza de sistema algum dividindo-o em suas partes componentes e
estudando cada uma delas por si, visto que tal método amiúde implica a
perda de propriedades importantes do sistema”.37 E, quando passamos das
estruturas inorgânicas às orgânicas, esse princípio assume uma posição de
importância máxima. Assim, ao entrarmos no domínio biológico, chegamos
com efeito à antítese da hipótese mecanicista: aqui já não é o todo que se
deriva das partes, mas sim as partes que derivam sua existência (como
partes) do todo.
O organismo, está visto, é divisível numa miríade de componentes; mas
mesmo assim é claramente um só organismo, a exemplificar uma só forma
básica. Nós sabemos ademais que essa forma básica vai inscrita, em código
genético, dentro do núcleo de cada célula, e que a partir destes centros ela
controla todos os aspectos da vida. Pode-se dizer que a forma ela mesma
constitui o centro em torno do qual tudo gira e de onde se outorga a cada
estrutura orgânica a sua função própria.
Agora, o grande problema é explicar a origem dessa forma ou, se se
preferir, dessa ordem estupenda. A resposta darwinista, em essência, é que a
ordem emana da desordem e que a ordem maior se deriva da menor.
Deitando à margem a desconcertante questão de como poderiam formas
orgânicas brotar de substâncias inorgânicas — a pintura brotar do papel de
parede —, o darwinismo sustenta que a transformação das espécies se
efetua basicamente pelo processo de reprodução. Procura, portanto, atribuir
a origem de novas formas orgânicas ao mecanismo biológico cuja função
natural é justo o inverso: isto é, preservar a forma orgânica da qual o
próprio mecanismo em questão deriva toda a sua força e eficácia. De nossa
parte, acharíamos difícil conceber uma teoria em mais frontal desacordo
com o que a física e a biologia modernas têm a ensinar.
O MISTÉRIO DO ORGANISMO VIVO reside na sua forma. Dela
provém cada parte sua, todos os seus processos, a sua inteira estrutura
tetradimensional. Mas o que é essa forma, esse princípio ordenador do qual
as criaturas derivam a vida? Para responder à pergunta em clave cristã, só
precisamos relembrar os rudimentos da doutrina metafísica: a momentosa
afirmação de que a criação é uma teofania e que “toda criatura é pela
própria natureza uma espécie de efígie da Sabedoria eterna”, como declarou
São Boaventura. Daí decorre ser aquilo a que chamamos forma básica nada
menos que a manifestação de um arquétipo eterno subsistente no Logos ou
Sabedoria de Deus. No fim das contas, o que transluz na forma como o
princípio da ordem ou a fonte da vida é o Logos ele mesmo.
Porém, tendo-se concedido que a forma exemplifica um arquétipo,
permanece a questão de como afinal foram trazidas à existência as diversas
espécies de animais e plantas espalhadas pelo globo. Foram as espécies
criadas por Deus em dois ou três “dias de vinte e quatro horas”, como
acreditam alguns fundamentalistas? Ou a doutrina cristã admite outras
interpretações, mais palatáveis à mente científica? Será possível, em
particular, reconciliar a posição cristã com a hipótese transformista?
Para responder a essas perguntas, importa compreender em primeiro
lugar que não se há de conceber o ato da criação em termos temporais. Não
devemos pensar que Deus criou o universo em algum tempo passado, seja
há seis mil ou há vinte bilhões de anos. A questão é que o tempo se aplica à
criação, e não a Deus. Assim também Deus age, não no tempo, mas “no
princípio” (Gn 1, 1), termo que significa “o instantâneo e imperceptível
momento da criação”, como explica São Basílio.38 Este “início indivisível e
imediato”39 não é senão o nunc stans, o sempre presente “agora” sobre o
qual tivemos tanto para dizer no capítulo m. Como observa Mestre Eckhart,
“Deus faz o mundo e todas as coisas no presente agora”.40
Portanto, não existe na realidade nenhum conflito entre a posição de que
as espécies foram criadas em simultâneo — “todas de uma vez” — e a visão
aparentemente contraditória de que foram trazidas à existência em sucessão,
em certa sequência temporal. No primeiro caso olhamos a matéria “desde o
ponto de vista da eternidade” — sub specie aeternitatis, como diriam os
escolásticos —; no segundo caso, desde o ponto de vista temporal. A
segunda perspectiva, havemos de admitir, é a que se conforma à nossa
disposição normal. Custa-nos compreender como é que “tempos idos mil
anos atrás são agora tão presentes e tão próximos a Deus quanto este exato
instante”.41 Mas, afinal, não é de admirar que tais coisas não nos entrem na
cabeça!
O fato em que o cristianismo insiste é que todas as criaturas sem
exceção foram criadas por Deus: “sem Ele nada se fez” (Jo 1, 3). Mas, ao
dizermos que todas as coisas foram criadas “no princípio”, devemos ter em
mente que este princípio “foi um início sempiterno”:42 “Meu Pai trabalha
até agora”, diz o Cristo (Jo 5, 17).
Isso deixa em aberto a questão de se Deus criou os progenitores
originais de cada espécie por algum modo especial — de forma direta, por
assim dizer — ou se Ele cria sempre mediante uma concatenação de causas
secundárias. Ora, esta questão pertence ao modus operandi do ato criativo
tal como encarado na perspectiva cosmológica, um assunto sobre o qual a
Escritura parece ter bem pouco a dizer. O relato de Gênesis, em particular,
dá só a entender muito grosso modo que a manifestação da vida terrestre se
deu num curso progressivo, através de uma sequência ascendente de formas
vivas culminando no homem.43 Ademais, como se tem apontado com
frequência, não há na Escritura nada que inequivocamente descarte a
hipótese transformista. Não podemos afirmar com certeza absoluta que a
transformação das espécies é impossível ou que jamais aconteceu.
Realmente, se é verdade que Deus pode fazer destas pedras filhos de
Abraão (Mt 3, 9), por que não poderia Ele fazer de peixes lagartos e de
lagartos mamíferos?
Mas a questão é: afinal, Ele fez? Pois bem, para os cânones da tradição
cristã, a resposta é não. Há mesmo um consenso entre escritores patrísticas
e escolásticos no sentido de que os progenitores originais de cada espécie
natural não se formaram através da comum cadeia de causas secundárias —
não nasceram “da semente” —, mas foram trazidos à existência de uma
maneira especial, mais ou menos correspondente ao conceito da criação
direta.44 Assim, de acordo com essa doutrina, as criaturas vivas podem
originar-se por dois meios: mediante um modo de geração primária ou
“vertical”, que não inclui semente como causa intermediária; e mediante um
modo de geração secundária ou “horizontal”, quer dizer, por meio dum
processo natural. Mas, ao mesmo tempo, não devemos esquecer que o
processo natural, tanto quanto a geração primária, deriva toda a sua eficácia
do poder divino.45 Ao fim e ao cabo, então, a distinção entre os dois modos
pertence ao âmbito das aparências: não afeta a causa última, que é em
ambos os casos a mesma.
O que sobretudo nos inquieta com relação à geração primária é que nós
não a vemos acontecer, nem conseguimos imaginar como ela se dá. Isso,
porém, não passa da perplexidade em que sempre nos encontramos perante
as realidades que transcendem as fronteiras do universo. Compreender um
fenômeno de modo natural ou científico exige rastrear suas causas
secundárias, justamente o que não se pode fazer no caso da geração
primária. Pode ser que ele não tenha causa secundária alguma — como
parece ser o caso dos milagres46 —, ou talvez as suas causas sejam
demasiado sutis para cair dentro do nosso alcance.47 Assim como assim, aí
temos diante de nós um portento: o fenômeno observado destroça a ilusão
de um universo fechado e autossuficiente.
Há origens primeiras, portanto — e, realmente, não pode deixar de
havê-las. Toda cadeia de causas secundárias, rastreada até o fim, conduz à
beira de um mistério: mesmo a cosmologia física, ao que parece, chegou
finalmente a este reconhecimento. Da mesma maneira, no concernente às
cadeias de descendência biológica, não pode deixar de haver sempre um
“elo perdido”: a única questão é se há vários deles — um para cada espécie
natural — ou se os ramos da árvore genealógica remontam a um só
ancestral primordial, de forma tal que o mistério da criação pareça
concentrar-se, digamos assim, num único ponto. Como acabamos de ver, o
pensamento cristão tradicional optou pela primeira dessas alternativas ao
postular dois modos básicos de geração. É interessante notar, em acréscimo,
que as teorias evolucionistas modernas outrossim convergem para a
concepção de um processo bifásico (a chamada Zweiphasenhypothese),
onde fases microevolutivas se alternam com “explosões criativas” por meio
das quais são trazidas à existência formas fundamentalmente novas —
residindo a principal divergência entre a doutrina moderna e a tradicional,
obviamente, na interpretação destes acontecimentos explosivos ou
descontínuos. Além disso, é evidente que a interpretação criacionista se
enquadra nos fatos paleontológicos muito melhor do que a hipótese
transformista, uma vez que escapa ao importunante problema dos elos
perdidos. O criacionista, assim, fica eximido da necessidade de pressupor
coisas tais como “a automática supressão das origens” proposta por Teilhard
de Chardin, e tampouco requer quaisquer outras hipóteses ad hoc a fim de
contornar dificuldades. De mais a mais, a doutrina tradicional tem plena
aptidão para explicar a existência das homologias biológicas; pois, nas
palavras de Titus Burckhardt, “pela sua significação mais profunda, o
mútuo reflexo dos tipos é expressão da continuidade metafísica da
existência, ou da unidade do Ser”.48
Cabe acrescentar ainda que este lume tradicional pode provar-se
elucidativo mesmo dum ponto de vista científico. Tomando-se como
exemplo a embriologia dos vertebrados, os fenômenos que os
evolucionistas têm procurado explicar pela hipótese da recapitulação podem
agora ser observados a uma luz diferente. Porque, caso o homem ocupe uma
posição central no reino animal — o que pode ser compreendido em uma
perspectiva metafísica —, então não surpreenderá que essa centralidade se
manifeste até mesmo no plano ontogênico. Isso significaria que,
ontogenicamente, se pode ver o homem como o tronco central de uma
árvore cujos ramos representam estágios na ontogenia das outras formas
vivas. Assim, num sentido profundo e distintamente não-darwiniano, existe
a real possibilidade de que as mais primitivas formas de vida descendam,
afinal, do homem. Será talvez este o grande fato do qual o quadro
evolucionista não é senão uma imagem invertida.
Vale assinalar, aliás, que já se propôs uma teoria científica consonante
com esta posição. Foi propalada por Edgar Dacqué,49 notável paleontólogo
alemão, que se persuadiu de que o homem representa a forma primordial
(Urform) da qual emanam os principais tipos do reino animal. E, como seria
de esperar, a teoria de Dacqué veio a ser severamente criticada nos círculos
profissionais, muito embora nada tenha de irracional nem de anticientífico.
Como observa Carl Jung, o problema está em outra parte:
Do ponto de vista epistemológico, é tão admissível derivar os
animais da espécie humana quanto o homem das espécies animais. Mas
sabemos quão mal se saiu o prof. Dacqué na sua carreira acadêmica à
conta do seu pecado contra o Zeitgeist, que não deixa ninguém fazer
pouco dele. É uma religião, ou — mais ainda — um credo, sem
nenhuma ligação que seja com a razão, mas cuja relevância está no
desagradável fato de tonar-se como a medida absoluta de toda verdade e
pretender ter sempre do seu lado o bom senso.50
Notas
Considerando que não pode haver vida animal sem alguma medida de
seleção, adaptação e controle, está claro que mesmo nos animais mais
inferiores o id necessita ser complementado por outra formação psíquica a
atuar como intermediário entre ele e o ambiente externo. De acordo com
Freud, esse segundo componente da nossa constituição psíquica se deriva
do primeiro. “Sob a influência do mundo exterior real,” conta-nos ele,
Freud, por sua parte, estava pronto para defender-se afirmando que “os
ensinamentos da psicanálise se baseiam num número incalculável de
observações e experiências, e somente quem haja repetido essas
observações em si mesmo ou em outrem tem condições para formar juízo
próprio sobre ela”.19 Bem entendido, repetir observações em si mesmo
significa ser psicanalisado, e o recado de Freud aí, traduzido em linguagem
clara, é que só ao psicanalisado e ao psicanalista cabe julgar a verdade da
sua doutrina. Desnecessário dizer que essa enormíssima alegação não foi
vista com bons olhos pelos críticos da psicanálise e que, onde antes podia
até haver dúvidas quanto à validade científica das asserções freudianas,
agora ficava claro como a doutrina psicanalítica, seja lá o que mais se possa
dizer contra ou a favor dela, não é uma teoria científica.
No entanto, segundo parece, essa avaliação não se difundiu para muito
além de um restrito público de estudiosos. Em círculos mais amplos,
sobretudo o da boêmia artística, a sutil distinção entre ciência e ficção
normalmente passava despercebida. “O resultado”, diz um psicólogo
contemporâneo, “foi uma campanha de relações públicas que milhões de
dólares não poderiam ter igualado. Tão logo a psicanálise virou moda entre
os escritores, já lá estavam os seus leitores mais impressionáveis a roer-se
de impaciência na lotada sala de espera do psicanalista”.20
O próprio Freud sempre fez questão de salientar o caráter científico das
suas ideias. A ciência, de acordo com ele, constitui a única legítima via para
o conhecimento — o que, aliás, a própria ciência admite. “Ela afirma”,
conta-nos Freud, “que não existe nenhuma outra fonte de conhecimento do
universo senão a perquirição intelectual de observações meticulosamente
deslindadas — quer dizer, aquilo a que se chama pesquisa —: não há,
segundo a ciência, nenhum conhecimento provindo de revelação, intuição
ou adivinhação”.21 O que ele não nos conta é por quais passos “a
perquirição intelectual de observações meticulosamente deslindadas”
chegou a essa formidável descoberta; mas, seja como for, aí está um dos
dogmas fundamentais da mundivisão freudiana.
À parte a ciência, de que a psicanálise é o arremate, se não a apoteose,
reconhece Freud três outros domínios da cultura humana: a arte, a filosofia
e a religião, os “três poderes que podem disputar a posição básica da
ciência”, e dentre os quais “só cumpre levar a sério como inimigo a
religião”.22 A arte “é quase sempre inofensiva e benfazeja; não procura ser
nada mais que uma ilusão”. Já a filosofia, a despeito de suas ambiciosas
pretensões, é pelo menos inofensiva, na medida em que “não exerce
influência direta sobre a grande massa da humanidade; somente tem
interesse para uns poucos intelectuais de escol, mal sendo inteligível para a
demais gente”. Resta a religião como “poder imenso” e grave ameaça à
iluminação científica da humanidade.
Isso nos leva a um dos grandes temas freudianos: “A luta do espírito
científico contra a Weltanscbauung religiosa”. Ao que parece, trata-se de
assunto seriíssimo para Freud, e, como já se poderia esperar, ele vê na
psicanálise a responsável por ter conquistado finalmente a palma da vitória
para o lado da ciência. “A última contribuição à crítica da Weltanscbauung
religiosa”, declara ele, “foi feita pela psicanálise ao mostrar como a religião
advém do desamparo infantil e ao atribuir a origem dos conteúdos
religiosos à sobrevivência, na idade madura, de desejos e necessidades da
puerícia”.23 Por outras palavras, o conteúdo de toda crença sagrada, segundo
Freud, remonta ao complexo de Édipo e seu precipitado, o superego. Este
último, diz-nos ele, “corresponde a tudo o que se espera da natureza mais
elevada do homem. Como substituto do anseio pelo pai, contém o germe de
todas as religiões”.24
Pode-se talvez ficar com a impressão, aí, que Freud considera a religião
uma das ilusões “benfazejas”. Em outro lugar, porém, ele deixa bem clara a
sua visão do assunto:
Notas
Seja qual for sua natureza última, “esse algo” chamado espírito é o fator
crucial que nos capacita a transcender as exigências recorrentes da vida
animal e entrar na plenitude da existência humana. “A permanecermos
aquém disso,” adverte Jung, “instaura-se um círculo vicioso, e é bem aí, me
parece, que mora o perigo da psicologia freudiana”.9 O caminho de Freud
não nos conduz para além da tirania dos impulsos instintuais — para além
dessa “desesperação”, como a chama Jung. “Pobre de mim!,” exclama ele,
citando as palavras de São Paulo, “quem me livrará deste corpo que me
prende à morte?” E sua resposta a essa indagação perene é bastante simples:
“Nada nos pode libertar desta amarra a não ser o impulso vital oposto — o
espírito. Não são os filhos da carne que conhecem a liberdade, mas os
‘filhos de Deus’”.10
A CRÍTICA FINAL de Jung a Freud é que ele “não penetrou a camada
mais profunda, comum a todos os homens”.11 Essa camada mais profunda é
aquilo a que Jung chama o inconsciente coletivo — nossa herança psíquica,
ou pelo menos a parte dela “comum a todos os homens”. Vale notar que
Freud também chega a falar de uma herança arcaica no mesmíssimo sentido
e igualmente acredita que este “material filogenético” pode manifestar-se
em sonhos, mitos e outros fenômenos culturais.12 Jung, portanto, ao acusá-
lo de não ter penetrado “a camada mais profunda”, não queria dizer que ele
falhara em reconhecer a existência de um inconsciente coletivo, mas sim
que emitia juízos superficiais e falaciosos a respeito. O engano de Freud aí,
basicamente, foi retratar o inconsciente coletivo nos mesmos moldes da
consciência e seus conteúdos. Isso não tem cabimento, sustenta Jung,
porque, no que diz respeito ao inconsciente coletivo, defrontamo-nos com
algo de todo exótico, algo que nos desconcerta, algo incompreensível.
Essas características da psique primordial relevam-se mais
acentuadamente no caso da insanidade, que, segundo Jung, não é outra
coisa senão a impetuosa inundação do campo consciente pelos conteúdos do
inconsciente coletivo.
Jung repreende seus predecessores por se haverem fixado demais no
estudo da neurose. Tivessem eles prestado mais atenção à fenomenologia da
psicose, acredita ele,
Mas, ao que parece, também não é essa a última palavra. Em outra obra,
por exemplo, ao verberar “a irresistível tendência a explicar tudo em termos
físicos”, ele mais uma vez dá mostras de rejeitar a posição materialista:
Notas
Notas