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Φιλοσοφία Filosofia 2º Ano Médio


1ª Aula
Escola Antônio Raposo Tavares
Prof. Flávio 2018

Texto trabalho 1º Aula - O fundacionalismo de Descartes


Artur Polónio
http://criticanarede.com/epi_descartes2.html

O argumento cético da regressão infinita


Teremos maneira de saber se sabemos alguma coisa? O cético defende que não.
O problema pode parecer estranho; e, se o problema pode parecer estranho, a resposta cética
pode parecê-lo ainda mais. Muitas vezes temos boas razões para duvidar de que saibamos certas
coisas; há, todavia, outras coisas de que nos parece difícil duvidar seriamente. Mas o cético pensa ter
um bom argumento. O seu argumento pode ser formulado do seguinte modo:
Se há conhecimento, então as nossas crenças estão justificadas; mas as nossas crenças não
estão justificadas; logo, não há conhecimento.
Ora, este argumento é válido. Se for sólido, teremos de aceitar a sua conclusão; se não
queremos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que não é sólido.
Mas por que razão deveremos preocupar-nos com a conclusão cética? Porque não poderemos
aceitá-la, ainda que com uma reserva sorridente — e passar tranquilamente adiante?
Essa é uma possibilidade. O que há de insatisfatório com ela é que, se a aceitamos, dificilmente
haverá um adiante a que passar. Muitos filósofos pensam que a conclusão cética é inaceitável; e que
temos, por conseguinte, boas razões para nos ocuparmos dela. Se isso é verdade, então temos de
regressar ao argumento cético e procurar determinar o que há de errado com ele.
Será o argumento cético um argumento sólido? Válido, é; se é válido, então será sólido na
circunstância em que todas as suas premissas são verdadeiras. Serão?
A primeira premissa parece indisputável; isto porque não parece possível haver conhecimento
sem justificação. Mas a segunda premissa não parece tão evidentemente verdadeira; e isto porque
não é óbvio que as nossas crenças — ou, ao menos, algumas delas — não estejam justificadas. Se o
cético pretende que o seu argumento é sólido, então deverá defender a sua segunda premissa.
O argumento cético da regressão infinita procura fazê-lo. Este argumento pode ser formulado
do seguinte modo:
Todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças; se todas as nossas crenças são
justificadas com outras crenças, então há uma regressão infinita; se há uma regressão infinita, então
as nossas crenças não estão justificadas; se as nossas crenças não estão justificadas, então não há
conhecimento; logo, não há conhecimento.
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Ora, este argumento é válido; logo, e mais uma vez, se não queremos aceitar a sua conclusão,
teremos de mostrar que pelo menos uma das suas premissas é falsa. Mas será? E, se o for, qual?

Descartes e o argumento cético da regressão infinita


Descartes procura responder ao argumento cético da regressão infinita mostrando que a sua
primeira premissa é falsa; isto é, mostrando que não é verdade que todas as nossas crenças são
justificadas com outras crenças.
Mas esse não é o seu principal problema. A Descartes não parece satisfatório mostrar que o
cético pode estar errado: ele pretende mostrar que o cético está, efetivamente, errado. O seu principal
problema pode ser formulado do seguinte modo: “Como poderemos garantir que o nosso
conhecimento é absolutamente seguro?”

A dúvida cartesiana
Como o cético, Descartes parte da dúvida; mas, ao contrário do cético, não permanece nela. A
dúvida cartesiana é muito especial, por diversas razões.
A primeira é que Descartes não duvida por duvidar: ele duvida porque procura um
conhecimento absolutamente seguro; isto é, um conhecimento que resista à dúvida mais obstinada,
um conhecimento do qual não haja razões para duvidar. Por isso se diz que a dúvida cartesiana é
metódica: é um método para encontrar o conhecimento absolutamente seguro que Descartes procura.
Mas, se o que se procura é um conhecimento absolutamente seguro, então é necessário
começar por duvidar de tudo o que simplesmente possa parecer duvidoso; é necessário explorar todas
as possibilidades de erro, mesmo as mais remotas; isto porque resistir à dúvida é uma condição
necessária para o tipo de conhecimento que procuramos. Claro que isto é um exagero: na maior parte
do tempo, não temos razões para duvidar da maior parte das coisas. Por esta razão dizemos que a
dúvida cartesiana é hiperbólica.
Na maior parte do tempo, por exemplo, acreditamos nos nossos sentidos. Mas, pensa
Descartes, os nossos sentidos, por vezes, enganam-nos; ora, se os nossos sentidos nos enganam,
ainda que apenas por vezes, então o melhor é não acreditarmos neles nunca; isto porque, como diz, é
prudente não confiar em quem nos engana, nem que seja uma só vez. Mas também a razão, na qual
acreditamos na maior parte do tempo, nos engana por vezes, mesmo nos cálculos mais simples; por
isso, devemos também desconfiar da razão. Por examinar cuidadosamente todas as possíveis fontes
de erro se diz que a dúvida cartesiana é sistemática.
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O gênio maligno
O gênio maligno, que surge nas Meditações, é uma possibilidade muito remota; mas é uma
possibilidade; logo, não podemos deixar de considerá-la. Mas quem é este gênio maligno?
Este gênio maligno é uma espécie de deus; é génio, porque os seus poderes são, supostamente,
superiores aos poderes humanos; mas, por ser maligno, não pode ser o verdadeiro Deus, uma vez que
Este é bom (ocupar-nos-emos da justificação desta crença mais adiante). Este gênio maligno tem
uma obsessão: enganar-me. É ele que me induz a acreditar que tenho duas mãos, que tenho um
corpo, que há uma realidade exterior a mim, ou que 2 + 3 são 5. Mas tudo isto pode ser falso. Todos
os meus pensamentos podem ser mero produto da ação maligna deste génio.
Isto não é tão implausível quanto pode parecer: de fato, é como supor que se vive
permanentemente numa realidade virtual. Pode, inclusivamente, suceder que eu esteja enganado
quanto ao meu corpo; talvez o meu corpo não seja aquilo que os meus olhos me dizem que ele é;
talvez eu não tenha sequer um corpo — nem, se isso é verdade, olhos que me digam como ele é.
Talvez eu não seja senão um cérebro numa cuba, que um cientista perverso se entretém a estimular,
de maneira que eu pense os pensamentos e tenha as sensações que ele quer que eu pense e tenha.

O itinerário cartesiano
Aqui está Descartes aparentemente imerso num oceano de dúvidas: os sentidos, diz, enganam-
me, a razão engana-me e, para complicar tudo, pode suceder que um génio maligno não faça senão
enganar-me. Parece que a única certeza que tenho é de que duvido.
Mas, diz Descartes, “notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim
o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade — eu penso, logo existo,
era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos seriam impotentes para a
abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que
procurava” (Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 28). E, mesmo que um
gênio maligno persista em enganar-me, é, ainda assim, necessário que eu exista para ser enganado.

O cogito
“Penso, logo existo” — o cogito, como ficou conhecida esta crença — parece uma crença
básica: uma crença que não se infere de coisa alguma. O cogito é uma intuição racional, uma
evidência. Como seria possível duvidar dele? Se não é possível duvidar dele, então é o tipo de
conhecimento que procuramos: resistente à dúvida.
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A primeira premissa do argumento cético da regressão infinita parece, pois, definitivamente
falsa. Afinal, nem todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças; isto porque
encontramos uma que, aparentemente, não tem necessidade de qualquer outra que a justifique.
E a melhor parte é que é possível encontrar mais conhecimentos deste tipo: basta ver o que há
no “penso, logo existo” que o torna indubitavelmente verdadeiro. E o que há, pensa Descartes, é isto:
é que “vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir” (Descartes, Discurso do Método,
Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 28). Se isto é verdade, então o que quer que eu possa conhecer muito
claramente — e, já agora, também muito distintamente — será verdadeiro.
Mas parece faltar um fundamento mais sólido a este conhecimento. Com efeito, do fato de eu
ver clara e distintamente que, dado um triângulo, é necessário que a soma dos seus ângulos internos
seja igual a dois ângulos retos, ainda não se segue que haja no mundo qualquer triângulo. Como
posso saber que não estou a alucinar ao pensar que existem triângulos? Na ausência de um
fundamento mais sólido para o conhecimento, nenhuma razão temos para acreditar que, por mais
claras e distintas que as nossas ideias sejam, elas tenham a perfeição de serem verdadeiras (Ver
Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 33).

Deus
Sei que penso, e existo; mas, por vezes, duvido, e engano-me; logo, não sou perfeito. No
entanto, tenho a ideia de perfeição; caso contrário, como poderia pensar que não sou perfeito? Mas
de onde me chegou a ideia de perfeição?
Ou a ideia de perfeição foi criada por mim, ou a recebi do mundo exterior, ou me chegou de
outro sítio qualquer. Mas a ideia de perfeição não pode ter sido criada por mim; isto porque não sou
perfeito, e o imperfeito não pode criar o perfeito. Pela mesma razão, não a recebi do mundo exterior,
uma vez que no mundo exterior nada parece haver mais perfeito do que eu mesmo. Logo, a ideia de
perfeição só pode ter sido posta em mim por um ser absolutamente perfeito: Deus, para tudo dizer
numa palavra (Ver Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 29).
Mas poderemos estar seguros de que Deus existe? Descartes pensa que sim. Isto porque, diz,
um ser absolutamente perfeito é um ser que tem todas as perfeições; se não tiver todas as perfeições,
então não será absolutamente perfeito. Ora, a existência é uma perfeição; isto porque de uma coisa
que não existe dificilmente se pode dizer que é perfeita. Mais perfeita do que a casa dos meus sonhos
é a casa dos meus sonhos tornada realidade. Logo, se Deus é um ser absolutamente perfeito, então
necessariamente existe. E Deus é um ser absolutamente perfeito. Logo, Deus existe necessariamente.
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O mundo
Se Deus existe e é perfeito, então não pode querer que eu esteja enganado acerca da existência
do mundo ou das leis da natureza que Ele mesmo criou; isto porque, se o fizesse, não seria bom, e a
bondade é uma perfeição; logo, o mundo existe, e eu posso conhecê-lo. “Na verdade, diz Descartes,
aquilo mesmo que há pouco adotei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as coisas que
concebemos muito clara e distintamente, não é certo senão porque Deus é ou existe, ser perfeito de
que nos vem tudo o que em nós existe. Donde se segue que as nossas ideias ou noções, coisas reais
que provêm de Deus, não podem deixar de ser verdadeiras na medida em que são claras e distintas”
(Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 32).
Assim, Deus parece ser o fundamento de que Descartes carecia para alicerçar
convenientemente o conhecimento sem erro que procurava. Descartes parece ter finalmente
encontrado o seu rochedo, no meio de um mar de dúvidas. Mas terá ele resolvido o problema?
O fundacionalismo cartesiano tem sido objeto de muitas críticas.

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