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A dúvida cartesiana
Como o cético, Descartes parte da dúvida; mas, ao contrário do cético, não permanece nela. A
dúvida cartesiana é muito especial, por diversas razões.
A primeira é que Descartes não duvida por duvidar: ele duvida porque procura um
conhecimento absolutamente seguro; isto é, um conhecimento que resista à dúvida mais obstinada,
um conhecimento do qual não haja razões para duvidar. Por isso se diz que a dúvida cartesiana é
metódica: é um método para encontrar o conhecimento absolutamente seguro que Descartes procura.
Mas, se o que se procura é um conhecimento absolutamente seguro, então é necessário
começar por duvidar de tudo o que simplesmente possa parecer duvidoso; é necessário explorar todas
as possibilidades de erro, mesmo as mais remotas; isto porque resistir à dúvida é uma condição
necessária para o tipo de conhecimento que procuramos. Claro que isto é um exagero: na maior parte
do tempo, não temos razões para duvidar da maior parte das coisas. Por esta razão dizemos que a
dúvida cartesiana é hiperbólica.
Na maior parte do tempo, por exemplo, acreditamos nos nossos sentidos. Mas, pensa
Descartes, os nossos sentidos, por vezes, enganam-nos; ora, se os nossos sentidos nos enganam,
ainda que apenas por vezes, então o melhor é não acreditarmos neles nunca; isto porque, como diz, é
prudente não confiar em quem nos engana, nem que seja uma só vez. Mas também a razão, na qual
acreditamos na maior parte do tempo, nos engana por vezes, mesmo nos cálculos mais simples; por
isso, devemos também desconfiar da razão. Por examinar cuidadosamente todas as possíveis fontes
de erro se diz que a dúvida cartesiana é sistemática.
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O itinerário cartesiano
Aqui está Descartes aparentemente imerso num oceano de dúvidas: os sentidos, diz, enganam-
me, a razão engana-me e, para complicar tudo, pode suceder que um génio maligno não faça senão
enganar-me. Parece que a única certeza que tenho é de que duvido.
Mas, diz Descartes, “notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim
o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade — eu penso, logo existo,
era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos seriam impotentes para a
abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que
procurava” (Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 28). E, mesmo que um
gênio maligno persista em enganar-me, é, ainda assim, necessário que eu exista para ser enganado.
O cogito
“Penso, logo existo” — o cogito, como ficou conhecida esta crença — parece uma crença
básica: uma crença que não se infere de coisa alguma. O cogito é uma intuição racional, uma
evidência. Como seria possível duvidar dele? Se não é possível duvidar dele, então é o tipo de
conhecimento que procuramos: resistente à dúvida.
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Deus
Sei que penso, e existo; mas, por vezes, duvido, e engano-me; logo, não sou perfeito. No
entanto, tenho a ideia de perfeição; caso contrário, como poderia pensar que não sou perfeito? Mas
de onde me chegou a ideia de perfeição?
Ou a ideia de perfeição foi criada por mim, ou a recebi do mundo exterior, ou me chegou de
outro sítio qualquer. Mas a ideia de perfeição não pode ter sido criada por mim; isto porque não sou
perfeito, e o imperfeito não pode criar o perfeito. Pela mesma razão, não a recebi do mundo exterior,
uma vez que no mundo exterior nada parece haver mais perfeito do que eu mesmo. Logo, a ideia de
perfeição só pode ter sido posta em mim por um ser absolutamente perfeito: Deus, para tudo dizer
numa palavra (Ver Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 29).
Mas poderemos estar seguros de que Deus existe? Descartes pensa que sim. Isto porque, diz,
um ser absolutamente perfeito é um ser que tem todas as perfeições; se não tiver todas as perfeições,
então não será absolutamente perfeito. Ora, a existência é uma perfeição; isto porque de uma coisa
que não existe dificilmente se pode dizer que é perfeita. Mais perfeita do que a casa dos meus sonhos
é a casa dos meus sonhos tornada realidade. Logo, se Deus é um ser absolutamente perfeito, então
necessariamente existe. E Deus é um ser absolutamente perfeito. Logo, Deus existe necessariamente.
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