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Este livro apresenta a estética como campo do saber que

Estética e História da Arte


reflete a respeito do belo, e mostra também como essa reflexão
se deslocou posteriormente para a arte. No decorrer dos
séculos, a estética ampliou o diálogo com outras áreas,
principalmente a história da arte, marcando a interação
mais vigorosa empreendida nesta obra.
Problematiza-se a definição de estética, seus aspectos
históricos e a capacidade de emitir juízos sobre alguma
coisa. Inúmeros pesquisadores e pensadores, durante
séculos, procuraram entender por que algo é belo.
Também se discute sobre cultura e seu vínculo com a
arte, assim como sobre as manifestações culturais e a
arte popular.
São muitos os temas deste livro, todos tratados sob o
ponto de vista da estética e da história da arte, e que
podem contribuir para a compreensão da força expressiva
da humanidade. Os diversos temas se associam ou se
aproximam porque os objetos pesquisados são construídos
há milênios. Essa capacidade de criar ou construir é o
que fascina a todos.

João Coviello

Fundação Biblioteca Nacional Código Logístico


ISBN 978-85-387-6612-4

9 788538 766124 59304


Estética e história
da arte

João Coviello

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Andrei Sikorskii/muratart/Shutterstock

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C914e

Coviello, João
Estética e história da arte / João Coviello. - 1. ed. - Curitiba [PR] :
IESDE, 2020
122 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6612-4

1. Artes - História. I. Título.


CDD: 700.9
20-62819
CDU: 7(09)

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
João Coviello Doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Filosofia
e especialista em História da Arte pela PUCPR.
Graduado em Psicologia pela FMU-SP. Atua como
professor conteudista na área de Humanidades
e como professor universitário nas disciplinas de
História da Arte e Estética.
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SUMÁRIO
1 Fundamentos de estética  9
1.1 Definição e objeto da estética  9
1.2 O belo  13
1.3 O sublime  17
1.4 Outras categorias estéticas  24

2 Evolução histórica da estética  31


2.1 A estética clássica  31
2.2 A estética medieval  36
2.3 A estética moderna  40
2.4 A estética contemporânea  47

3 A arte nas diferentes culturas  54


3.1 O que é cultura  54
3.2 O vínculo entre arte e cultura  58
3.3 Arte como construção, conhecimento e expressão  63

4 O conceito de manifestação cultural  71


4.1 O que é manifestação cultural  71
4.2 A manifestação cultural sob o olhar dos artistas  77
4.3 O que é cultura popular  86

5 Aspectos da cultura popular brasileira  95


5.1 Manifestações e origens da cultura brasileira  95
5.2 A cultura popular brasileira  102
5.3 A arte brasileira  107

Gabarito   119
APRESENTAÇÃO
Este livro apresenta a estética como campo do saber que reflete a respeito
da noção do belo e mostra como essa reflexão se deslocou também para a
arte. No decorrer dos séculos, a estética ampliou o diálogo com outras áreas,
principalmente com a história da arte, marcando a interação mais vigorosa
empreendida nesta obra.
O primeiro capítulo traz a definição de estética, elucidando o belo com
base em nossas experiências contemporâneas. Existem questões recorrentes
há muito tempo, entre elas: por que gostamos do que gostamos? A capacidade
que temos de julgar é o elemento ético no cerne dessa questão.
No segundo capítulo, estão relacionados os aspectos históricos da estética
clássica, moderna e contemporânea. Nossa capacidade de julgar mobilizou
e mobiliza um número grande de pesquisadores e pensadores e, portanto,
foi necessário selecionar alguns deles a fim de mantermos a objetividade da
obra.
O terceiro capítulo pretende trazer uma contribuição ao estudo da estética
compreendendo o vínculo entre arte e cultura. Definimos o que é cultura e
depois analisamos a arte como construção, conhecimento e expressão.
Outra contribuição à pesquisa estética está no capítulo quatro, que traz
um estudo sobre as manifestações culturais e a cultura popular, além da visão
de alguns artistas sobre esses temas.
No último capítulo retomamos as manifestações expressivas, dessa vez
no contexto dos diversos grupos que originaram a cultura do Brasil. Aqui o
estudo recai sobre os aspectos artístico, histórico e social da cultura popular
brasileira, encerrando com a noção de arte brasileira.
São muitos os temas deste livro, todos tratados sob o ponto de vista da
estética e da história da arte, e que podem contribuir para a compreensão
da força expressiva da humanidade. Os diversos temas se associam ou se
aproximam porque os objetos que pesquisamos são construídos há milênios.
Essa capacidade de criar ou construir é o que nos fascina.
Bons estudos!
1
Fundamentos de estética
Antes de adentrarmos ao estudo da estética, é importante
responder às seguintes questões: o que é estética e qual é o seu
objeto? A palavra estética surgiu no âmbito filosófico, no campo de
reflexão sobre o belo e depois sobre o fenômeno artístico, mas
acabou sendo utilizada também em outras áreas do conhecimento.
Junto à estética, também vemos o uso do termo belo, núcleo
da discussão em torno desta disciplina, a qual chamamos de esté-
tica. Aqui surgem também os primeiros temas de debates: o que
é o belo e quem determina que um objeto, uma pessoa ou uma
obra de arte é belo.
Mais dúvidas surgirão. O belo está no próprio objeto ou nos
olhos de quem o vê? Ou seja, o gosto (tratado também como juí-
zo) é objetivo ou subjetivo? Gosto se discute? Essa é a razão desta
disciplina: mostrar duas posições. Há aqueles que dizem que gosto
não se discute e há aqueles que dizem o contrário.
Por fim, também abordaremos outras categorias estéticas,
como o sublime, o feio, o repugnante e o grotesco.

1.1 Definição e objeto da estética


Vídeo Você percebeu que a palavra estética é um substantivo? No dia
a dia essa palavra é utilizada em vários contextos, como na atividade
profissional voltada à conservação da beleza física, por exemplo. Aconte-
ce, porém, que quando nos referimos às qualidades formais de alguma
obra de arte ou de um objeto, utilizamos o adjetivo estético. Podemos,
por exemplo, nos referir ao aspecto estético de uma mesa e elogiar o
trabalho de um marceneiro. Atualmente, usamos também a expressão
procedimento estético quando fazemos referência à correção dos dentes,
por exemplo. Desejamos que eles fiquem harmoniosos e, portanto, be-
los. O adjetivo estético, no decorrer dos séculos, tornou-se sinônimo de
belo, e a disciplina que estuda o belo acabou por se chamar estética.

Fundamentos de estética 9
Saiba mais Isso leva a muitas questões, dentre elas: uma obra se torna obra de
A definição mais simples de arte arte apenas por ser bela? Se você respondeu que sim, lembraremos
contemporânea é a arte feita
que os modernistas do século XX trataram de questionar essa afirma-
neste momento, que abrange a
arte feita nos últimos 50 anos, ção. A arte contemporânea, aquela que se faz agora, tratou de ser
já que esse período é muito ainda mais radical nesse assunto.
pequeno quando pensamos em
termos históricos. Ela representa O termo estética surgiu em 1735 no livro de um jovem doutorando
uma mudança radical no uso de de Filosofia chamado Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762). No
materiais e suportes utilizados
pelos artistas. O uso da expressão penúltimo parágrafo de sua tese, ele criou a palavra que seria utilizada
arte contemporânea também é para sempre. Nele, Baumgarten afirma que as coisas inteligíveis são
útil para diferenciá-la de arte mo- conhecidas por meio de uma faculdade de conhecimento superior,
derna, ou seja, aquela realizada
pelos artistas vanguardistas do a lógica; enquanto as coisas sensíveis são objetos da ciência estética
final do século XIX . (BAUMGARTEN, 1993).

A estética, portanto, nasceu sob o signo da desconfiança do próprio


criador do termo. Ela não dará conta das coisas inteligíveis, aquelas
que só podem ser apreendidas pelo intelecto e que são objetos da lógi-
ca. Assim, não é pelo intelecto que o belo é captado, mas pela sensibili-
dade humana. Para Baumgarten, a capacidade de apreciar o belo se dá
apenas pelos órgãos dos sentidos. Você concorda?

Baumgarten cunhou a palavra estética a partir da palavra grega


aisthesis, que pode significar sensibilidade, sensação ou percepção
por meio dos sentidos. No primeiro parágrafo do livro estética, de
1750, ele afirmou que a estética é a ciência do conhecimento sensitivo
(BAUMGARTEN, 1993). Foi assim que essa nova “ciência” surgiu. O
Figura 1 filósofo formalizou em uma palavra o conjunto de indagações que
Alexander Baumgarten
cunhou o termo estética,
estava vivo há séculos na obra de grandes pensadores. Platão, por
utilizado até hoje. exemplo, há quase 2.500 anos, escreveu sobre a noção de belo. Hoje,
porém, podemos pensar em uma definição estendida da noção de
estética, pois ela não está mais vinculada apenas ao belo.

O termo estética parece não ter nascido por acaso no século XVIII,
período em que há mudanças significativas na relação entre o público e
a obra de arte. Nos referimos a um público que tinha condições finan-
ceiras para desfrutar do prazer estético de um objeto artístico. Des-
se período em diante, um grupo emergente se tornou importante: a
burguesia, que detinha o poder econômico, mas não o poder político.
Com a derrocada dos regimes absolutistas na Europa, principalmente
PP
PP
PP
P/
W
após a Revolução Francesa e as primeiras décadas da Revolução Indus-
iki
trial, ocorreu uma inversão de poder.
m
ed
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Co
mm
ons

10 Estética e história da arte


Portanto, uma nova classe social emergia, com dinheiro, conheci-
Grécia
mento e disposição para desfrutar de obras de arte. A relação entre os
artistas e seus contratantes mudou. O mecenas, como era conhecido o
protetor dos artistas, já não era mais o clero ou os príncipes. Foi o fim
do “artista da corte”, que vivia e trabalhava no palácio.
1635
Além disso, a criação do Salão Parisiense permitiu que um público Criação da Escola de Belas
Artes de Paris.
maior tivesse contato com obras até então limitadas àqueles que as
encomendavam. Não é por acaso que a crítica de arte nasceu também
nesse momento. A criação do primeiro museu, o Louvre, em Paris, é 1677
O Salão Parisiense passou a ser
consequência desse movimento de visibilidade da arte. É possível cha- aberto ao público anualmente.

mar esse período de Era da Estética. Daí em diante, a obra e o artista


passaram a ser centrais.
Wikimedia Commons

1735
Baumgarten cunha o termo
estética em sua tese.

1750
Lançamento do Tratado
chamado Estética.

1763
Publicação de História da Arte
Antiga, de Johann Joachim
Winckelmann.

LANGOIS, N. O Salão de 1699 [Academie Royale de Peinture et Sculpture, Louvre]. 1700. Gravura. Biblioteca Nacional da França.
O Salão Parisiense foi criado em 1667, pela Academia Real de Pintura e Escultura. O nome salão 1768
se tornou popular quando passou a ser realizado, a partir de 1699, em um dos salões do prédio Criação da Real Academia de
onde seria criado o futuro Museu do Louvre. Londres.

O diagrama a seguir (Figura 2) demonstra como se ampliou o inte-


resse pela obra de arte. Ela passou a ser discutida em ambientes pú-
blicos, como nos jornais, por exemplo, com o início da crítica de arte. 1793
Inauguração do Museu do
Outras áreas de conhecimento também passaram a se interessar pela Louvre.

obra de arte, como a sociologia, que passou a investigar os condicio-


namentos sociais e a influência das visões de mundo sobre a arte. A
psicanálise é outro exemplo, preocupada em compreender a arte, tan-
to a criação artística quanto os efeitos sobre o espectador, do ponto de
vista subjetivo. Todo esse processo começou com filósofos e artistas
interessados no fenômeno estético.

Contemporaneidade

Fundamentos de estética 11
Figura 2
O interesse pela obra de arte
História da arte + Crítica de arte

Teorias da arte
Filosofia da arte
Demais
áreas do
conhecimento Estética

ock
ock/Shutterst
es/Shutterst
HappyPictur

Psicanálise Sociologia

Fonte: Elaborada pelo autor.

É necessário ouvir o que os artistas têm a dizer sobre suas pró-


prias práticas. Uma das tarefas do pesquisador é ouvir. Entretanto, o
principal sentido do pesquisador da arte não é ver? Chegamos a uma
questão que a estética clássica sempre ensinou: a possibilidade do
conhecimento por meio dos sentidos. Assim mesmo, no plural. Se a
estética precisou vencer a barreira do preconceito que afirmava ser o
conhecimento intelectual mais importante que o sensitivo (ou seja, o
estético), não podemos repetir a mesma intolerância com uma forma
de conhecimento tão necessária quanto qualquer outra.

Agora, é possível perceber por que afirmamos que a estética nasceu


em um momento no qual a obra de arte passou a ser visível a um número
maior de pessoas. A estética é, portanto, uma das primeiras manifestações
do esforço de sistematizar o conjunto de ideias em torno da relação entre
obra e espectador. No entanto, vale lembrar que ela não nasceu como uma
preocupação específica com a arte, mas como forma de análise das sensa-
ções e sentimentos de quando se contempla a natureza ou uma obra de
arte. Sua preocupação inicial é compreender aquilo que é fruto de nossa
sensibilidade e, com o tempo, a obra de arte passou a ter destaque.

12 Estética e história da arte


1.2 O belo
Vídeo A definição mais simples de belo associa um objeto a proporções
simétricas, como na definição grega anterior a Platão. Eles valorizavam
principalmente a harmonia das proporções. Platão, por sua vez, achava
que o belo estava sempre associado ao bom e, por isso, afirmou que o
belo possui uma conotação moral.

Também podemos considerar o belo como algo que provoca uma


sensação agradável, como os filósofos do século XVIII trataram o
tema. Já para os primeiros teóricos da estética, como Baumgarten, o
belo é apreendido por meio da sensibilidade, e não pelo intelecto.
Isso ocorre pelas qualidades do objeto, como proporção, harmonia e
simetria. Nesse caso, somos capazes de denominar algo de belo quan-
do nos desperta uma satisfação especificamente estética.

Para Arthur Schopenhauer (2005), a fonte da Glossário


fruição estética reside na tranquilidade espiritual, fruição: Ato de obter prazer a
livre do querer e da individualidade ligada a este. partir de algo. No caso da fruição
Friedrich Nietzsche (2011) responde que a beleza estética, o prazer é obtido por
meio da relação com a obra de
está onde o querer existe, onde uma imagem arte, principalmente se a consi-
não permaneça apenas imagem. Ou seja, para deramos bela em si mesma.
Schopenhauer, só é possível contemplar a beleza
silenciando a vontade; já para Nietzsche, é o contrário, a fruição estético
ocorre quando se é livre para gostar ou afastar o objeto de amor. Para
Schopenhauer, o querer aprisiona; para Nietzsche, liberta.

Tratar do belo se tornou uma questão difícil porque há um outro ele-


mento em jogo: o gosto. É difícil não acrescentar outra palavra ao termo
gosto. Assim, ele vem sempre acompanhado, tornando-se, por exemplo,
gosto individual. Antes de responder se o gosto é, de fato, uma questão

? ?
individual, pense em mais algumas questões apresentadas a seguir.

Se o gosto é só o resultado de uma Um objeto (como uma obra de arte) é


reação individual, por que discutir o autônomo, fruto somente do empenho
valor do belo? Como investigar um de quem o criou ou é resultado de
objeto sem utilizar instrumentos condições históricas? Ou ele é o
racionais? A pergunta mais direta é: por resultado de dois fatores: uma vontade
que a arte é apenas para sentir, não criativa e do ambiente histórico no qual
para pensar? o artista vivia?

Fundamentos de estética 13
Você já deve ter ouvido uma frase sugerindo que o gosto é subjeti-
Grécia
vo, como “cada um tem seu próprio gosto”. Também já deve ter ouvido
uma outra frase, que sugere objetividade: “ele tem mau/bom gosto”.
1635
Criação da Escola de Belas Essa polarização sempre existiu. Estética, belo e gosto parecem insepa-
Artes de Paris.
ráveis. A apreciação (o ato de atribuir valor) de uma obra de arte pode
derivar de uma opinião subjetiva, mas também de uma exigência de
1640 – 1688
Revolução Inglesa objetividade, como no caso da crítica de arte.

Quando afirmamos que algo não é belo, estamos estabelecendo


1677
O Salão Parisiense passou a ser comparações entre dois objetos. Podemos pensar, então, que estamos
aberto ao público anualmente.
usando critérios para fazer essas comparações e concluir que o gosto
1698 – 1777 é objetivo. Nesse começo de discussão, podemos afirmar que o gosto
Desenvolvimento do motor
a vapor. nasce de nossas apreciações, de nossos julgamentos e de nossos senti-
dos, como disse Baumgarten. O exame de prós e contras de cada uma
dessas posições está apenas no início.
1735
Baumgarten cunha o termo
estética em sua tese.
Estamos acompanhando um movimento cronológico que come-
çou no século XVI e culminou com a fundação do primeiro museu, o
Louvre, após a Revolução Francesa. Todas essas revoluções ajudaram
1750
a dar visibilidade às obras de arte e à preocupação teórica sobre o belo
Lançamento do Tratado
chamado Estética. e o gosto. Além disso, vemos que esses eventos históricos estão direta-
mente associados ao nascimento de uma nova classe social, bem como
1763
Publicação de História da Arte ao nascimento da estética como disciplina autônoma. Percebemos, en-
Antiga, de Johann Joachim
Winckelmann. tão, que a noção de belo é, também, uma construção histórica.

1768 As transformações históricas, que repercutem até hoje, ajudaram


Criação da Real Academia de na definição do juízo estético – como Immanuel Kant se referia ao ato
Londres.
de julgar que nos possibilita gostar de algo por si mesmo, livres de
1776 – 1783 quaisquer interesses e desejos – daquele momento. Mas isso não res-
Revolução Americana ponde a nossa questão principal: por que gostamos do que gostamos?
Ou, por que consideramos um objeto belo?
1789 – 1799
Revolução Francesa Estamos ainda em uma fase especulativa. Neste momento, reflita
sobre o fenômeno estético, a ideia de que algo belo tem valor estético –
qualidade conferida a um objeto, podendo considerá-lo belo ou não – ,
pode ser considerado uma consequência dos juízos estéticos. Ou seja,
1907
Picasso o momento em que o estético passou a ser sinônimo de algo belo, e a
decisão ainda estava no sujeito que vive a experiência estética.

Voltamos à questão inicial: a experiência é sensorial ou inte-


lectual? Quando afirmamos que uma flor é bela, consideramos a
Contemporaneidade harmonia de sua forma e de suas cores, sua perfeição plástica e

14 Estética e história da arte


elegância. Além disto, destacamos o prazer estético que ela propor-
ciona, uma espécie de deleite misturado com emoções que a flor
também é capaz de causar. Provavelmente é assim no cotidiano,
quando resolvemos pintar a casa ou comprar um sofá novo. A cor e
a forma deverão estar em equilíbrio com as cores das paredes e os
outros móveis da sala.

Figura 3
Um mundo proporcional e harmonioso

Photographee.eu/Shutterstock
Nesse exemplo, a escolha das formas e cores é exclusivamente
nossa ou a beleza das proporções e o equilíbrio das cores estão nos
próprios objetos? Perceba que, na Figura 3, as cores dos móveis combi-
nam com a parede e o tapete. Além disso, a perspectiva colabora com
a percepção que temos do espaço, tornando-o ainda mais harmonioso,
e os objetos parecem belos.

A teoria da arte do século XX nos ajuda a resolver esse enigma: quando


alguns artistas e teóricos afirmam que o espectador “completa” a obra
de arte, eles nos ajudam a responder que a solução do enigma estético
está no meio, ou seja, entre o próprio objeto e a nossa subjetividade.
Parece uma resposta fácil e isenta de contradições, mas não é. Vejamos
o que diz um artista: o heterônimo de Fernando Pessoa (2005, p. 51),

Fundamentos de estética 15
Alberto Caeiro, no canto XXVI do poema “O Guardador de Rebanhos”,
que apresenta as seguintes ideias:

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,


Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Por que sequer atribuo eu
Beleza às cousas.

Uma flor acaso tem beleza?


Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então por que digo eu das cousas: são belas?

SSS
SSSSSSSS SSSSSSSS/Shut
Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,

SS
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,

terst
Perante as cousas que simplesmente existem.

ock
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!

Pessoa dedicou todo o canto XXVI de seu longo poema ao tema da


beleza. Isso significa que o assunto o tocou. Além disso, Alberto Caeiro é
seu heterônimo mais preocupado com os sentidos e, portanto, menos
com os conceitos, o escolhido para falar do belo. Ele responde a nossa
pergunta: o belo (ou a beleza, como Caeiro escreve) está em mim e não
nas coisas. Está nos meus sentidos, ou melhor, no modo como os deixo
abertos. Uma flor não tem beleza, apenas existe (cor e forma). Assim, a
beleza é aquilo que não existe, é apenas um julgamento que agrada os
sentidos. O juízo que passa pelos sentidos do observador não pertence
à flor, mas a ele próprio.

A posição radical do poeta tem um motivo: Pessoa explica que


Caeiro é fundador do Sensacionismo, movimento que prega a relação
direta entre sensações e objetos. Para o heterônimo de Pessoa, tudo
é sensação: nossa vida, Deus ou a arte. O valor que damos à sensação
é o valor estético. É pelos sentidos que chegamos à verdade das coi-

16 Estética e história da arte


sas. Caeiro radicaliza o esteticismo do século XVIII e retoma o filósofo
David Hume, para quem a estética era um sentimento. Assim, “gostar”
ou “não gostar” de algo não é uma atividade intelectual.

1.3 O sublime
1
Vídeo Se o belo gera tantas questões, outra categoria estética (derivada
dele) também gera: trata-se do sublime. Afirma-se que o termo belo já era
utilizado e tomou corpo no século XVIII. No mesmo período, o termo
sublime também passou a ser usado com mais frequência pelos filósofos.

Segundo Kant (2002, p. 93), o belo “pressupõe e 1


mantém o ânimo em serena contemplação”. Já o su- Usamos a expressão categoria
blime possui uma particularidade: ele causa prazer estética, com alguma liberdade,
para ilustrar que cada um dos
imediato, mesmo causando resistência de nossos
conceitos apresentados (belo,
sentidos, por ser absolutamente grande. Podemos sublime, feio etc.) pode ser
dizer que esse objeto da natureza determina nosso abrangido em um mesmo
conjunto.
estado de espírito por causa de sua inacessibilidade.

Kant ainda faz a distinção entre sublime matemá-


Curiosidade
tico e sublime dinâmico. O filósofo exemplifica o su-
Desde o final do século I ou III,
blime matemático com a experiência de se entrar não se sabe ao certo, o termo
pela primeira vez na Basílica de São Pedro, em Roma. sublime já aparece. Foi publicado
Uma perplexidade capaz de levar o observador a en- um texto atribuído a Pseudo
Longino, chamado Tratado sobre o
tregar-se a tanta grandiosidade. Os exemplos para o sublime, que falava da poesia e da
sublime dinâmico são as nuvens carregadas, a luz retórica. No nome do autor está a
palavra pseudo, porque também
provocada pelos relâmpagos, furacões, o mar revolto,
não se tem certeza de quem é.
enormes quedas d’água etc. Esses espetáculos são
sublimes porque elevam nossa faculdade de resistên-
cia e nos encorajam a contemplá-los, são atraentes, ainda que terríveis.

A arte, diz Eco (2015), não representa apenas a natureza em um


momento sublime, mas busca representar a nossa experiência do sen-
timento do sublime. Podemos dizer que, sem a disposição de ânimo do
espectador, essa representação artística do sublime não é vivenciada.

Edmund Burke (1729-1797) publicou, em 1757, o livro Investigação filo-


sófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e da Beleza. Sua preocupa-
ção era a paixão causada pelo grandioso e, portanto, sublime. Para Burke,
o poder do sublime ocorre antes de nossos raciocínios e o sentimos como
uma força irresistível. O filósofo utiliza também a palavra assombro para

Fundamentos de estética 17
designar o momento de grande espanto, admiração ou mesmo terror
(BURKE, 2016). Um exemplo pode ser uma enorme onda, vazada pelos
raios do sol. Ela poderá representar um grande perigo, mas também pro-
porcionar uma experiência sublime, de imensa beleza,
a qual teremos dificuldade de expressar em palavras.

A obra ao lado é uma das mais reproduzidas


quando se pretende dar um exemplo do sublime. É
um quadro do pintor romântico Caspar David Friedrich
(1774-1840), no qual estão presentes características
que Burke achava relevantes ao descrever o sentimento
do sublime. Apesar de o personagem estar de costas, é
possível imaginar o assombro que sentiu.

O ensaio de Burke trata da recepção dessas


experiências e como elas influenciam nosso com-
portamento. Além disso, Burke dialoga com outros
filósofos, dentre eles o próprio Baumgarten, cul-
minado por dar forma a um jeito de pensar con-
temporâneo: aquele que admite o valor de uma
obra se ela for, antes de tudo, bela. Se for sublime,
FRIEDRICH, C. D. Caminhante sobre o mar de névoa. 1817. Pintura a óleo,
94,8 x 74,8 cm. Hamburger Kunsthalle, Hamburgo.
melhor ainda, pois aí teremos o máximo da beleza.

1.3.1 O sublime que se torna sentimento e a arte


contemporânea
Atenção Ora, é da arte contemporânea que se está falando o tempo todo. É
Aproveitaremos este momento pensando nela que todas as perguntas são lançadas, mesmo quando
para começar a introduzir dirigidas à arte do passado. É para ela que o olhar se move e que se faz
uma discussão sobre a arte
a pergunta de todas as perguntas, a pergunta mãe: isto é arte?
contemporânea. Ela é o nosso
horizonte. Perceba que estamos Imagine um crítico que tivesse por volta de trinta anos em 1907, ano
falando do passado, mas não
podemos esquecer que todas do aparecimento de Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso. Esse crítico,
as perguntas que fazemos ao durante sua juventude, estudou desenho e pintura. Dedicou horas de
passado possuem bases no estudo à perspectiva. Visitou muitas vezes o Museu do Louvre e, como
presente. O que se quer, talvez, é
buscar sentido na arte realizada quase todos os estudantes, dedicou-se a copiar os grandes mestres e a
nos últimos 50 anos. entender os cálculos matemáticos que fizeram. Seu esforço foi enor-
me. Alguns de seus colegas colocavam o lápis na ponta do nariz, me-
diam intuitivamente o espaço do quadro e desenhavam perfeitamente
o que estava à frente. Ele, ao contrário, usava régua e esquadro, calcu-
lava detalhadamente o ponto de fuga e todas as linhas que para ela

18 Estética e história da arte


confluíam. A dedicação era extrema e seus princípios eram claros e de-
finidos, mesmo quando destruía um pouco a figura ou quando exage-
rava no uso da cor. Por isso, quando abandonou a pintura e começou a
escrever para jornais e revistas, nunca foi duro com a arte moderna
que estava vendo nascer. Mas quando o jovem Pablo Picasso apresen-
tou suas senhoritas, ele se perguntou: isto é arte? O pintor espanhol
tinha quase sua idade e estudou pintura quase no mesmo período no
qual o crítico também estudara. Eram, portanto, contemporâneos; mas
onde estava a perspectiva, a profundidade, a luz?

Quando pensamos o contemporâneo, perguntamos primeiro: Dica


contemporâneo de quem ou do quê? Somos contemporâneos das Para conhecer a obra Les
Demoiselles d’Avignon, você
obras realizadas hoje, nada além disso. O crítico contemporâneo, que
pode acessar este QR Code com a
desistira da pintura, quase desistiu também da crítica de arte. Picasso câmera do seu celular. Vale a pena
comprometeu sua segurança e quase o fez perder o controle, mas o final dar uma olhada!
foi feliz. Em vez de transformar sua incapacidade de entender o que fez o
gênio espanhol e agredi-lo por desconstruir séculos de tradição pictórica,
o crítico parou e refletiu. Demorou muito para concluir que Demoiselles
era uma obra de arte. Sempre que topava com uma obra radical, pensava
em Picasso e no que sentiu naquele ano de 1907. E o que sentiu passou
a ter um caráter mais determinante em seus julgamentos. Passou a
prestar mais atenção no efeito que uma obra causava, principalmente
sensações de afeto ou rejeição. É difícil dizer se ele se tornou um crítico Figura 4
Les Demoiselles D’Avignon,
melhor, mas sua atitude mental o ajudou a ser mais sensível sobre aquilo de Picasso, exposta no
que o afetava, o que melhorou sua percepção, qualidade necessária a Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque em 2018.
quem se dedica à crítica. Para o jovem crítico do
começo do século XX, os quadros de Picasso não

Bumble Dee/Shutterstock
eram belos nem sublimes. Ainda assim, tentou
compreender suas sensações diante deles. Se não
eram para serem contemplados, o que eram?

Dizer que algo é belo ou sublime é fazer um


julgamento. É assim desde quando a palavra
estética foi criada no século XVIII. O psica-
nalista Carl Jung (1875-1961) considerava
o sentimento uma das funções psicológi-
cas básicas. Nele, estariam conjugados
subjetividade e julgamento, que
seriam fundamentais para o valor
que atribuímos a alguma coisa.

Fundamentos de estética 19
O sentimento atribui um valor no sentido de aceitação ou rejeição, pra-
zer ou desprazer, capaz de alterar até nossa disposição de ânimo, ou
seja, nosso humor (JUNG, 2009b).

Jung não tinha em mente apenas a experiência estética, mas é difícil


não pensar nela quando o vemos destacar o que sentimos não como
fenômeno secundário, dependente de representações ou sensações,
mas como função psicológica básica e autônoma. A ênfase em uma es-
tética da recepção, calcada ainda na reação do espectador, é necessária
para a compreensão da nossa relação com a arte, seja ela contempo-
rânea ou não. Não é difícil concluir que nossa capacidade de criar ima-
gens (artista) e vivenciar as imagens (nós, os espectadores) nascem no
psiquismo humano, o ventre de todas as artes e ciências (JUNG, 2009a).

É legítimo, então, fazer a associação entre o sublime e o sentimento.


Retomemos a disposição de ânimo, da qual fala Jung, e pensemos em
nossa reação diante de uma imagem: fixemos nossa análise no pro-
cesso de aceitação e rejeição, visto que ele é fundamental para a com-
preensão de nossa relação com a arte. Por que rejeitamos determinada
obra e outra pessoa não? Jung explica que o sentimento é uma espécie
de julgamento; diferente, porém, do julgamento intelectual, pois não
busca relações conceituais, e sim aceitação ou rejeição subjetivas.

Para Jung, a chave da questão é a valorização, por meio do


sentimento, de um conteúdo que percebemos na consciência, mas que
independe do estímulo exterior (JUNG, 2009b). Vemos, contudo, que as
coisas funcionam como se um espelho estivesse em frente a outro. Não
há oposição entre o racional e o irracional nesse caso. O julgamento, tão
importante para o juízo estético, torna-se natural no processo de gosto.
Apesar de subjetivo, esse julgamento passa pela função racional. É um
paradoxo, sim. Por enquanto, com a ajuda de Jung, estamos olhando o
sentimento a partir de fora, e estabelecemos que há um sentimento
estético que define nossa concepção de gosto, belo e sublime. Estamos
falando do valor que estabelecemos para alguma coisa, valor que
estabelecemos para um objeto artístico, seja ele qual for.

Não é difícil perceber que voltamos ao ponto de partida. Há limites


nos conceitos. Essa é uma lição de humildade da estética. Como com-
preender o sentimento do sublime se ele é um sentimento incomensu-
rável, que não tem medida, que não se expressa por números e que, de
tão imenso, somos incapazes de compreender sua grandeza?

20 Estética e história da arte


É curioso como absorvemos determinados conceitos da filosofia e Quem?
os deixamos mais interessantes. Sublime é um desses conceitos que, Clement Greenberg (1909-1994)
foi um importante crítico de arte
com o tempo, transformou-se em algo mais fácil de se entender. Ele é
americano, responsável pela
o superlativamente belo, o máximo da perfeição, o grandioso, o que há divulgação do movimento cha-
de mais elevado. Já ouvimos ou lemos essas definições ditas de outra mado expressionismo abstrato.
Greenberg foi considerado um
maneira, mas a essência é a mesma, talvez por causa dos séculos nos
formalista, no sentido de estar
quais o termo sublime circula. mais atento aos aspectos formais
do quadro do que à exatidão
Retornamos à questão do gosto. Tanto as relações humanas quanto visual ou ao tema. Por exemplo,
as relações com os objetos estão sujeitas a algum tipo de sentimen- ele exaltava os meios que a
to, principalmente pela atração ou pela rejeição. Parece que avaliamos pintura utiliza (a superfície, o
suporte, as tintas) e dizia que
tudo, o tempo todo. Sempre sentimos algo por alguém ou por um devemos ver um quadro como
objeto, seja atração ou desprezo. Gostar ou desgostar está inserido em pintura. Hoje, essa afirmação
pode parecer óbvia, mas o
um movimento do sentir que estabelece esse tipo de avaliação. Há um
formalismo de Greenberg foi
sistema de valores mediando tudo isso. muitas vezes criticado.
Quando o sentimento busca coerência em seus julgamentos, procu-
rando maior gradação, o aspecto racional é mais forte, mas a ambivalên-
cia, principalmente nos julgamentos estéticos, está sempre presente. A
pergunta é: por que algumas pessoas vivem um sentimento vinculativo
Filme
em relação a uma obra de arte e a outras têm uma reação agressiva,
quase violenta? Essas nuances comportamentais demonstram o cará-
ter da experiência com a arte contemporânea. A tolerância estética (ou
a falta dela) parece rondar as disputas em torno da obra de arte. A
defesa que fazemos de nossas reações, geralmente consideradas mais
legítimas, demonstra a complexidade em nossos sentimentos.

Percebemos então que categorias clássicas da estética, como o


sublime, ainda explicam nossas reações. Aquele que prefere a arte
abstrata ilustra involuntariamente a noção de conhecimento estéti-
O filme Pollock fala sobre o
co. É um descobrimento sem se submeter ao princípio da razão, como artista americano Jackson
Pollock (1912-1956),
queria o filósofo Schopenhauer, que incluiu a estética em suas preocu-
expoente mais conhecido
pações filosóficas. do expressionismo
abstrato. O crítico Clement
Também, Kant, em “Analítica do Sublime”, presente em sua obra Greenberg também é
retratado no filme, que
Crítica da Faculdade do Juízo, destaca que o sentimento do sublime é
é uma oportunidade de
marcado por imagens que deixam de depender de nós. O sublime, conhecer a vida artística
americana dos anos 1940
segundo Kant, causa prazer imediatamente, pois não se submete ao
e 1950.
interesse dos sentidos (KANT, 2002). Esse tipo de apreciação não é
Direção: Ed Harris. EUA: Sony
premeditado; acontece de modo direto, livre dos conceitos, diria ainda Pictures Classics, 2001.
Schopenhauer (2005).

Fundamentos de estética 21
O crítico americano Clement Greenberg (2002) dizia que o juízo es-
tético é intuitivo e, portanto, involuntário. Não se escolhe gostar ou dei-
xar de gostar, disse. Tudo depende de nosso foco de atenção. Dessa
forma, o juízo estético é acolhido, e não oferecido. Como para Kant e
Schopenhauer, para Greenberg também não valorizamos esteticamen-
te uma obra pelo raciocínio.

Greenberg disse em outro texto, chamado Queixas de um crítico de


Glossário arte, que os juízos estéticos ocorrem na experiência imediata com a
arte, e não depois por meio da reflexão. Eles são intuitivos. Greenberg
intuição: pode ser definida de
duas formas: como conhecimen- (2002, p. 37-38), ao discutir a intuição por meio da definição clássica
to ou percepção, independente de “apreensão direta e imediata pelo conhecimento de um objeto por
de um raciocínio que não
percebemos no momento; ou
si mesmo”, conclui com um exemplo: quando olhamos para o céu e
como conhecimento obtido de nos perdemos na cor azul, isso é intuição estética; mas deixa de ser
modo direto e imediato. quando olhamos para o céu para nos informarmos se irá chover. Intui-
ção, nesse caso, é a experiência que vivemos com a cor. Essa explicação
didática de Greenberg ilustra o desejo de alguém que prefere obras
abstratas e coloridas, pois quer viver a experiência da cor.

Nesse sentido, a fruição é uma experiência silenciosa, única e in-


transferível. Ela é o ato de obter prazer a partir de algo. No caso da frui-
ção estética, o prazer é obtido por meio da relação com a obra de arte,
principalmente se a consideramos bela em si mesma.

1.3.2 A arte conceitual e o sublime


Na arte conceitual, há o predomínio da ideia (ou conceito) sobre a
obra ou sobre sua própria execução. Um exemplo é a Fonte, de Marcel
Duchamp, que deslocou para o museu um objeto já pronto (ready-made)
com o objetivo de questionar o próprio conceito de arte. Nesse gesto,
s
mon

há várias ideias: refletir sobre quem é o autor, por que a fonte não
com

é uma obra de arte, por que a presença em um museu trans-


dia
e
kim

forma um objeto em objeto de arte etc.


Wi

Se é um exagero dizer que a arte conceitual


nasceu com Duchamp, podemos afirmar que, com
ele, tornou-se mais visível, assim como ficou mais
visível a tentativa de soterrar as noções de belo,

DUCHAMP, M. Fonte. 1917. Urinol de porcelana branca: 38.1 cm x


48.9 cm x 62.55 cm. Tate Modern, Londres, Reino Unido.

22 Estética e história da arte


sublime, autor, obra etc. Para ele, a contemplação não tinha nada
a ver com suspensão da vida (no sentido de se perder na obra, de
união entre sujeito e objeto), intuição estética ou sentimento intui-
tivo; nada de arte bela ou sublime como o máximo da perfeição ou
transcendência.

Assim, uma obra de arte não precisa ser bela, precisa ser provo-
cativa. Duchamp nunca disse essa frase, mas suas reflexões sobre a
noção da estética sugerem uma busca por outros sentidos da arte,
não somente com as categorias estéticas clássicas, como o belo.

Não há dúvida de que é difícil fruir uma obra de Duchamp, mas


nem por isso ela é menos significativa. Ela poderá ser (por que não?)
provocativa. Milhares de páginas se escreveram e se escreverão so-
bre ele, na maioria das vezes para provar que o artista francês es-
tava errado. Podemos, porém, tomar um caminho mais seguro, que
considera as duas teses igualmente válidas. Há obras que permitem
momentos mágicos, como a vivência da intuição estética, que per-
mitirá a contemplação do objeto como ele é. Há obras que podem
provocar outro tipo de vivência, afastada da ideia de arte como arte
bela. Nesse grupo, entrariam as obras de Duchamp. Ainda assim,
mesmo que afastadas da noção de belo, rejeitá-las diminuiria nossa
Saiba mais
oportunidade de viver o vínculo com a arte como experiência e da
união entre arte e vida, desejo supremo do artista francês. Quando falamos em
performance, remetemos
Ainda é possível viver a experiência do sublime com a arte. Isso imediatamente ao uso do corpo
como integrante da obra de
não reduz a experiência com a arte conceitual. É apenas uma outra
arte. Os praticantes usam vários
forma de perceber o objeto artístico, mesmo que seja imaterial, como meios: literatura, poesia, música,
as rápidas performances realizadas por alguns minutos em alguma dança e pintura. Não é algo
novo; os artistas dos movimen-
sala de exposição. Podemos viver uma experiência especial, mesmo
tos modernistas do começo do
que dure pouco tempo e dela nada mais exista além de algumas fotos século XX já se expressavam por
ou trecho de filme. meio da performance. Ela é uma
espécie de arte ao vivo, uma
Se não é uma experiência sublime, como caracterizada desde o extensão do quadro. Na pintura e
nascimento da estética, ela poderá ser uma experiência particular na escultura, o espaço é ocupado
pelos objetos representados. Nas
intensa e, assim, ser também uma experiência individual, silenciosa, artes ao vivo, o tempo possui
intransferível e única. Só minha. Que mais podemos querer em um uma relevância menos óbvia,
tornando-se o aspecto mais sutil
mundo inteiramente compartilhado no qual vivemos? Essa experiên-
e relevante desta discussão.
cia é minha e de mais ninguém. E isso não é pouco.

Fundamentos de estética 23
1.4 Outras categorias estéticas
Vídeo Além do belo, a estética tratou de outras categorias, como o feio. É
inevitável a pergunta: se a estética é a “ciência do belo”, como tratar do
feio no interior dessa “ciência”? O feio é o contrário do belo? Se a res-
posta for positiva, a definição é simples: feio é todo objeto sem propor-
ção e harmonia. Inspirados em outra definição, a de Kant (2002),
podemos afirmar que belo é o que nos dá prazer logo após a faísca do
juízo entrar em ação. Nesse caso, o feio não oferece o mesmo prazer
estético que obtemos com o belo.

Além disso, mudanças históricas alteraram nossa percepção sobre


essas duas categorias. O exemplo que será analisado a seguir mostra
Glossário
como a arte consegue criar algo belo a partir do que é considerado
cânone: normas ou princípios
feio. Nem sempre, porém, as coisas acontecem de forma tão simples.
que o artista deve seguir.
Manifestações artísticas, que implicam em mudanças do cânone em
vigor, provocam reações negativas.
2
Propomos então partir de um exemplo, o expressionismo, movimen-
O naturalismo é uma
expressão que designa a obra to artístico do início do século XX, cujas principais características são as
2
calcada na natureza, mas sem pinceladas largas, as cores fortes e o desejo de ultrapassar o naturalismo .
ser cópia dela. Ele é diferente do
Esse movimento foi definido por Giulio Argan (1992, p. 240, grifo do origi-
realismo, que tenta representar
objetivamente a natureza. nal) como “a primeira poética do feio”. É como se o expressionismo estives-
se propondo uma nova estética, não mais como uma filosofia do belo.

O caso do pintor norueguês Edvard Munch


(1863-1944) é um bom início de discussão, pois
ele antecipa características a ponto de parecer um
pintor expressionista antes mesmo do movimen-
to ser nomeado dessa forma – o que só aconteceu
em 1911. Uma de suas obras mais famosas O Grito
(1893), reproduzida ao lado, é um bom exemplo. A
expressividade dramática dessa obra de Munch é
surpreendente e traduz a intensidade dos futuros
artistas expressionistas; por isto, se tornou uma das
maiores referências desse grupo.

MUNCH, E. O Grito. 1893. Óleo sobre cartão, têmpera e pastel sobre cartão. 91 x 73,5 cm. Galeria
Nacional, Oslo.

24 Estética e história da arte


Por que O Grito causou estranhamento? Por que foi considera-
do feio? Foi um julgamento objetivo ou subjetivo? A primeira ver-
são foi pintada por Munch em 1893, em um período de influência
das Academias de Belas-Artes, cujo cânone ainda era a arte clássica,
portanto, harmônica e equilibrada. Por isso, O Grito foi considerado
feio, má pintura, doente.
Quarenta e quatro anos depois, em 1937, o expressionismo
continuava a ter a mesma reputação. Esse é o ano de uma exposição,
organizada na Alemanha nazista, chamada de Arte degenerada. A maioria
dos artistas era expressionista, mas obras de Picasso também estavam
presentes. Um ambiente foi criado para reforçar o objetivo do título
da exposição: junto às obras estavam presentes desenhos de doentes
mentais, para mostrar que eram idênticos aos trabalhos dos artistas
profissionais. Os preços eram exageradamente altos para provar que
esses artistas ganhavam muito dinheiro. As obras não vendidas, por
serem propositadamente caras, foram queimadas.
Um outro exemplo do debate entre o belo e o feio é o caso da pintora Saiba mais

brasileira Anita Malfatti (1889-1964), que estudou na Alemanha e nos Vanguarda artística se refere
principalmente a um grupo
Estados Unidos na segunda década do século XX e entrou em contato com
de artistas que exerce o papel
o expressionismo. Quando retornou ao Brasil, apresentou os trabalhos pioneiro no desenvolvimento de
realizados durante seu período no exterior. É possível imaginar o novas técnicas e ideias. O termo
entusiasmo com que ela viu as obras de vanguardas nesse período. Anita em português é decorrente da
palavra francesa avant-garde,
estava na Europa no mesmo momento em que aconteciam as primeiras utilizada no meio militar como
exposições que mostravam a arte moderna a um público mais amplo. à frente da guarda. Ela foi
absorvida pelo mundo artístico
É possível fazer outro exercício: imaginar o impacto que o antina- para retratar a aspiração que
turalismo (por não se inspirar diretamente na natureza e não retratá- os artistas modernos tinham
-la com fidelidade) das vanguardas históricas causou em Anita, bem de estar à frente e mostrar que
criavam uma arte nova, que
como o impacto que suas próprias obras antinaturalistas provocaram eram radicais e contrários à
no espectador que, em 1917, visitou sua exposição e que nunca tinha imagem realista e ao gosto pelo
entrado em contato com alguma obra de arte moderna. A própria famí- decorativo. Utiliza-se também o
termo vanguardas históricas para
lia, que se esforçou para enviá-la ao exterior, sentiu-se desconfortada fazer referência ao conjunto de
quando a artista mostrou os trabalhos que trouxera. Provavelmente, movimentos que transformaram
não foi diferente com os amigos. Neste momento, podemos continuar a arte na primeira metade do
século XX, como o cubismo e o
a imaginar a reação da família e dos amigos: as obras eram feias. Ape- expressionismo.
sar dos comentários, Anita resolveu expor seus trabalhos no final de
1917. O título que escolheu foi: Exposição de Arte Moderna Anita Malfatti.
Essa exposição se tornou famosa e é considerada a primeira exposição
de arte moderna realizada no país.

Fundamentos de estética 25
Saiba mais A exposição seguiu tranquila nos primeiros dias, até a publicação do
Ainda há dúvidas sobre se a pri- artigo de Monteiro Lobato (1882-1948) intitulado “A propósito da expo-
meira exposição de arte moderna sição Malfatti”, no jornal O Estado de São Paulo. Quando o publicou em
realizada no Brasil foi a do artista
lituano Lasar Segall (1889-1957), livro, Lobato alterou o título para “Paranoia ou Mistificação?”. O crítico
em 1913, ou a de Anita Malfatti Lobato valorizava a arte naturalista e os artistas que viam “normalmen-
(1889-1964), em 1917. Segall te” as coisas. Não era o caso do expressionismo de Anita. Lobato com-
havia se associado ao movimento
expressionista alemão antes de parou o grupo dos artistas antinaturalistas aos pacientes psiquiátricos;
vir ao Brasil para visitar sua irmã por isso, modificou o título do artigo.
mais velha, que residia em São
Paulo. Tempos depois, retornou Para Lobato, as artes eram regidas por princípios imutáveis, por
à Alemanha e voltou ao Brasil leis. É muito provável que tivesse em mente as medidas de proporção
definitivamente em 1923. Em e equilíbrio. Anita, contudo, só pensava no que viu na Europa e nos
1913, realizou uma exposição
com obras feitas na Europa, quase Estados Unidos. Para Lobato, a “atitude estética” de Anita era forçada e
todas de sua fase impressionista extravagante. Chamou os quadros da artista de “quadrinhos” e utilizou
e pós-impressionista. Os pesqui- o termo caricatura em seu texto.
sadores se dividem: alguns dizem
que havia um ou dois trabalhos Eis uma questão interessante: a vanguarda modernista para Lobato
expressionistas; outros afirmam era caricatura da cor e da forma, em que não há prazer nem beleza.
que não, em razão de Segall ter
feito uma seleção cautelosa. Essa,
Para ele, a arte deveria promover o prazer estético e só o belo era capaz
talvez, seja a causa da exposição disso. A arte deveria ser bela se quisesse ser arte; caso contrário, era
de Segall não ter chamado a mistificação, paranoia, fruto de mentes doentes. O termo caricatura, no
atenção, o que não aconteceu
entanto, foi um achado importante de Lobato, utilizado anos mais tarde
com Anita Malfatti em 1917.
pelo historiador da arte Ernst Gombrich para explicar o expressionismo.
O historiador cita uma carta de Van Gogh em que afirma ser seu tra-
balho comparável ao de um caricaturista. Gombrich dá razão ao artista,
Livro
pois acredita que a caricatura sempre foi “expressionista”. Ele explica: ao
No capítulo “A minissérie
distorcer a aparência do modelo retratado, o artista expressionista quer
‘Um Só Coração’ e os anos
heroicos do Modernismo”, expressar seus sentimentos em relação ao outro (GOMBRICH, 2013).
do livro A novela brasileira
e a filosofia, há uma versão A questão levantada por Lobato também é avaliada por Argan
ampliada do debate sobre (1992): a deformação expressionista não é a caricatura da realidade,
Anita Malfatti e Monteiro
Lobato. Naquela ocasião,
mas uma beleza que procura estar mais próxima do real, tornando-se,
no início do modernismo por isso, feia. Podemos, então, chamar o expressionismo de uma esté-
brasileiro, estava em
tica do embaralhamento, pois mistura as noções de belo e feio. Argan
jogo um dos temas
fundamentais desse livro: procura explicar o expressionismo da seguinte forma: o artista expres-
o belo na arte, um tema
sionista revela uma beleza quase demoníaca da cor, acompanhada de
ainda atual.
figuras feias, segundo os cânones correntes. A força dessas imagens
COVIELLO, J. In: SILVEIRA, R. A. T.
de (org.). Porto Alegre: Editora FI, torna-se tão intensa que passamos a achar que nada existe além de-
2016. Disponível em: http://www. las. Gombrich (2013) concorda com Argan (1992): o que incomodava na
editorafi.org/134ronie. Acesso em:
6 fev. 2020. arte expressionista não era a distorção em si, mas o fato de que a obra
se afastava da beleza.

26 Estética e história da arte


O critério de verossimilhança, aquilo que nos parece verdadeiro e Quem?
plausível, perde-se. Eis o radicalismo de Anita que tanto irritou Lobato:
os cabelos da mulher se tornam verdes, o homem se torna amarelo.
Para o crítico, isso distorce a realidade, tornando-se caricatura. Desse
dia em diante, tudo seria diferente para Anita, e o julgamento de Lobato
provoca reações até hoje.
O feio não foi a única categoria estética que se juntou ao belo no
decorrer da história. No interior da tradição filosófica, Kant, Schopenhauer Ernst Gombrich (1909-2001) foi
o professor e historiador de arte
e Nietzsche usaram também o substantivo alemão ekel, que pode ser
austríaco que escreveu a conhe-
traduzido como asco. Alguns tradutores preferem nojo. Schopenhauer cida História da Arte, publicada
utilizou o adjetivo ekelhafte, traduzido também como repugnante ou pela primeira vez em 1950. Essa
obra é influente até hoje. Em
como nojento (SCHOPENHAUER, 2005).
1936, Gombrich emigrou para
Tanto Kant quanto Schopenhauer utilizaram essas palavras do con- Londres, onde foi pesquisador,
professor e diretor do Instituto
texto da estética no interior de seus sistemas filosóficos. Para Kant
Warburg, importante centro de
(2002), temas como as fúrias, doenças e devastações de guerra podem pesquisa em história da arte.
até ser descritos com beleza na pintura, mas não aquilo que desperta Publicou vários livros e tornou-se
uma referência nos estudos
nojo. Nesse caso, não há satisfação estética, pois o objeto se impõe
renascentistas e na psicologia da
sobre nossa fruição e se torna impossível ser considerado belo. percepção.
Schopenhauer (2005) vai mais adiante: além do belo, do sublime e
do feio, há o excitante, que faz com que o espectador deixe sua posi-
ção de pura contemplação necessária para apreensão do belo e excita
sua vontade, abandonando sua posição de sujeito do conhecer para se
tornar sujeito do querer. Por causa disso, Schopenhauer recomenda
que se evite o excitante na arte. Para o filósofo, há também outra forma
de excitante; o negativo, que é ainda mais repreensível que o positivo: o
repugnante, que destrói a pura consideração estética. Schopenhauer Dica
pensa nos objetos de horror. Você pode conhecer todas as
Nietzsche (2011) dirige sua principal crítica a Schopenhauer: nada pinturas de Anita Malfatti por
meio deste QR Code. Recomen-
neste mundo, ainda mais a arte, deixará de ser excitante, nojento ou damos a visita às pinturas O
mesmo nauseante, para silenciar a vontade. O artista que nega o re- Homem Amarelo e A Mulher de
pugnante também nega a vida. Ele insiste que suas preocupações são Cabelos Verdes, representantes
do estilo de Malfatti, que tanto
meramente humanas, são preocupações da vida concreta. É provoca-
chocou na sua época.
dor: para Nietzsche, há muita sabedoria em haver sujeira no mundo.
Isso parece ser uma boa chave de leitura da arte contemporânea (ou
de uma parte dela). Os artistas contemporâneos parecem ser bons in-
térpretes de Nietzsche, principalmente aqueles que buscam estreitar a
relação entre arte e vida.

Fundamentos de estética 27
Há outras categorias estéticas, como o grotesco, que surgiu antes
mesmo da ciência criada por Baumgarten. Assim como outras catego-
rias diferentes do belo e do sublime, o grotesco nem sempre foi aceito
pelos estudiosos. O termo surgiu a partir da descoberta de pinturas
ornamentais romanas no século XV, chamadas grotesca, como deriva-
ção da palavra italiana grotta (gruta). Chamou a atenção a combinação
de formas humanas misturadas com formas animais e vegetais, que
causavam estranhamento. Essas formas fantásticas foram muitas ve-
zes consideradas monstruosas.
É possível, no entanto, perceber traços grotescos em uma variedade
grande de artistas, de várias épocas. Com o tempo, o grotesco passou
a ser analisado principalmente em contraposição a uma arte que bus-
cava apenas o belo. Um exemplo do grotesco é o trabalho a seguir, de
Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569).

BRUEGEL, P. A queda dos anjos rebeldes. 1562. Óleo sobre painel. 117 x 162 cm. Museus Reais de Belas Artes da Bélgica, Bruxelas.

O grotesco é um bom exemplo das noções em torno do belo. A par-


tir desse belo tão discutido neste primeiro capítulo, outras categorias
se agregaram, mas pararemos por aqui por enquanto.

28 Estética e história da arte


CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão do gosto ainda é central nas discussões estéticas. E não só
nelas, pois parece que grande parte das nossas decisões é resultado de
nossos próprios juízos (estéticos). Por isso, muitas vezes, lembramos da
associação entre ética e estética. Se a ética é uma reflexão sobre nossas
ações, a estética é uma reflexão sobre nossos julgamentos.
Podemos talvez arriscar e dizer que a experiência estética é funda-
mental para a condição humana, porque ela determina nossos julgamen-
tos, sejam morais ou artísticos. Será que conseguiríamos viver sem os
objetos estéticos que nos rodeiam, sem as obras artísticas? A ênfase cada
vez maior nos objetos estéticos legitima a preocupação dos filósofos. Não
somos diferentes quando contemplamos uma determinada obra arqui-
tetônica. Pense no trabalho dos designers ou dos publicitários. Eis, então,
outra afirmativa: parece existir em tudo um fundamento estético que atrai
ou repele. É preciso, portanto, estar atento.
Neste livro, as discussões sobre a estética transitaram por questões
relativas à arte; ou seja, partiram do campo das especulações filosóficas
para chegar a um universo de conhecimento que inclui a história, a teoria
e a crítica de arte.
No começo, o centro da questão era como sentimos ou percebemos
o objeto belo. A própria palavra estética deriva do termo grego sensação.
Hoje, é possível incluir várias reflexões sobre a arte num campo genérico
chamado estética (sim, é possível, mas para efeito didático, sempre tenta-
remos mostrar que há vários discursos diferentes sobre a arte). Mostra-
mos que a obra de arte permite discursos de críticos e historiadores da
arte, de psicanalistas, de sociólogos e dos próprios artistas.
O belo, de fato, não é a única variável para medir a reação que temos
com uma obra de arte, mas é um bom início de discussão. É o que fizemos
neste primeiro capítulo. Contudo, como sempre é saudável apresentar
um contraponto, pode-se dizer que o gosto é uma mera descarga elé-
trica em nosso cérebro, como pode afirmar algum neurocientista. Ou a
sensação do belo continua sendo a única variável? Não se pode esquecer
também da afirmação dos artistas modernistas: arte não é só beleza. Se
você concluiu que isso é uma discussão infinita, pode ser que sua conclu-
são esteja correta, pois é mesmo uma questão complexa, já que uma obra
de arte possui várias camadas. Observar e analisar cada uma delas, ainda
que estejam invisíveis, é um dos trabalhos que mais satisfaz ou dá prazer
aos sentidos do pesquisador da estética.

Fundamentos de estética 29
ATIVIDADES
1. Como e quando surgiu a palavra estética?

2. Como podemos associar as mudanças na relação entre a obra de arte


e o público ao nascimento da estética?

3. Para você, o gosto é objetivo ou subjetivo? Por quê?

REFERÊNCIAS
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RAMOS, A. D. (org.). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre: Zouk, 2010.
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GOMBRICH, E. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013.
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JUNG, C. G. Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética. In: JUNG, C. G. O
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KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo:
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PESSOA, F. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. São Paulo:
Unesp, 2005.

30 Estética e história da arte


2
Evolução histórica da estética
A preocupação com o belo ou com a arte é anterior a 1735,
quando Baumgarten cunhou o termo estética. Neste capítulo, te-
remos a oportunidade de estudar as preocupações estéticas an-
teriores e posteriores ao século XVIII. Começaremos com Platão,
passaremos pela Idade Média, pela estética moderna, e terminare-
mos com uma análise da estética contemporânea.
Apesar de serem recortes dentro de um universo mais amplo,
os autores e os temas apresentados representam muito bem os
períodos a serem estudados. Será possível perceber como os mo-
delos se alteraram ou foram substituídos.
Neste capítulo, também será possível acompanhar as transfor-
mações que expandiram o campo estético, o qual está cada vez
mais interdisciplinar e, por isso, mais interessante.

2.1 A estética clássica


Vídeo Platão (c. 428 – c. 347 a.C.) é como um guia em várias áreas de pes-
quisa, tendo se preocupado com quase tudo: ética, verdade, justiça,
amor e, claro, o belo e o papel da arte e dos artistas. É possível que o
filósofo grego tenha desenvolvido teses que derivavam de uma longa
tradição anterior ao período em que viveu, principalmente a relação
entre o belo e o bom. Ou seja, a ideia de que a beleza brota das virtudes.

Filósofos anteriores a Platão discutiam as noções de harmonia e


proporção, mas é o escultor Policleto (c. 460 – c. 420 a.C.), que viveu
também antes de Platão, que será fundamental para as relações entre
arte e belo que aqui se buscam.

Policleto ficou famoso por causa de um tratado teórico sobre a es-


cultura, chamado Cânone, utilizado até hoje. Apesar de ter desapareci-
do, foi tão estudado em sua época que os relatos posteriores acabaram

Evolução histórica da estética 31


substituindo o texto original. Policleto construirá o
1 corpo, tendo a cabeça como medida para a altura.
Assim, sua escultura Doríforo, considerada o melhor
modelo de seu cânone, tem a altura de sete cabeças.
2
O núcleo das teses de Policleto é a noção de pro-
porção baseada em princípios matemáticos. Por isso,
3 ele foi apelidado de “o pai da teoria da arte do oci-
dente”. Essas noções de proporção e simetria in-
fluenciaram e continuam a influenciar o mundo das
4
Wikimedia Commons artes, como podemos observar na imagem que re-
presenta a ilustração de um personagem de história
em quadrinhos (Figura 1), cujas proporções são
5
exatas.

É possível observar o conjunto de regras de Policleto


6
na reprodução de Doríforo, obra copiada durante
muitos séculos. Contudo, essas ideias matemáticas

7
de proporção e harmonia que atravessaram o tempo
sofreram duro golpe com a revolução artística de
½ Picasso. A comparação com a obra Les Demoiselles
d’Avignon, de 1907, permite analisar o processo lento
de substituição do cânone elaborado por Policleto.
POLICLETO, Doríforo, cópia romana c. 440 a.C.

Curiosidade Figura 1
Sete cabeças e as HQs
Os jardins de esculturas eram os ambientes mais apreciados nas casas
dos homens influentes de Roma. Por isso, é possível contemplar, atual-

IESDE
mente, várias cópias de obras de Policleto em museus do mundo.

Obras anteriores ao quadro de Picasso, ainda


que revolucionárias, não desconsideravam com-
pletamente as noções de proporção, simetria
e harmonia. Já Picasso, não contente com isso,
também destruiu a noção de perspectiva, ou
seja, a revolução empreendida por ele só preser-
vou a figura, que viria a ser destruída um pouco
mais tarde, com os artistas abstratos, mas o ca-
minho já estava traçado. A nova Linha do Tempo
incluirá, merecidamente, Policleto e Picasso.

32 Estética e história da arte


Platão, portanto, fazia parte de uma tradição que pensava a noção
Grécia
de belo com base matemática, mas fez uma leitura pessoal da fatura
artística, criticando os artifícios dos artistas durante o processo de re- 440 a. C.
presentação. A questão estava na noção de mimese (imitação, cópia) Policleto

– empreendida neste livro como representação da realidade, central


para a compreensão da noção histórica de gosto, belo e arte. 1635
Criação da Escola de Belas
Artes de Paris.
Saiba mais
1640 – 1688
No dia a dia, a palavra fatura significa o simples ato de fazer algo. No campo da arte, fatura é um termo utilizado Revolução Inglesa
para identificar o modo pessoal de cada artista criar sua obra. É também um fazer, mas um fazer especial.
1677
O Salão Parisiense foi aberto
anualmente ao público.
Plínio, o Velho (2004), relata a seguinte história: o pintor Zêuxis,
numa disputa com Parrásio, pintou uvas com aparência tão natural 1698 – 1777
Desenvolvimento do motor
que as aves se enganavam e vinham bicá-las. É um bom exemplo so- a vapor

bre os efeitos da ilusão na pintura. Essa é uma das críticas de Platão à


arte. No Livro X de A República, sua acusação é grave: a pintura surge
1735
como imitação da aparência, é mera imitação (mimese) da natureza
Baumgarten cunha o termo
(PLATÃO, 1996). Lá está o famoso exemplo da cama: o pintor é imi- estética em sua tese.

tador das coisas que existem na natureza e imitador das obras dos
artesãos. Pior, o pintor é imitador da aparência (a cama criada pelo 1750
Lançamento do Tratado
marceneiro) e não da realidade. O pintor, para Platão, atrapalha o chamado Estética.

caminho que fazemos para sair da aparência e chegar à essência. O


artista, portanto, é um imitador que não entende nada do que real- 1763
Publicação de História da Arte
mente existe, mas apenas das aparências. Antiga, de Johann Joachim
Winckelmann.

Segundo o Mundo da Ideias de Platão, há uma única ideia para di- 1768
Criação da Real Academia de
ferentes coisas. Todas as camas existentes partem de uma única ideia Londres.

de cama: o marceneiro fabrica essa cama a partir da ideia de cama; o 1776 – 1783
Revolução Americana
artista pinta essa cama imitando aquilo que o marceneiro criou. Esse
artista, desse modo, está distante das ideias que constituem a ver-
1789 – 1799
dadeira realidade, fazendo uma imitação da imitação. O Mundo das Revolução Francesa

Ideias é aquele que não pode ser apreendido pelos sentidos. O mun- 1793
do material é uma cópia do Mundo das Ideias e, portanto, uma imi- Inauguração do Museu do
Louvre.
tação. Essas noções permitiram que Platão conferisse ao sentido de
belo um papel transcendente, ou seja, algo além da realidade sensível,
a realidade que percebemos por meio dos sentidos. 1907
Picasso

Contemporaneidade

Evolução histórica da estética 33


Segundo Platão, o filósofo é o único capaz de revelar o Mundo das
Ideias, logo, o artista não é. Nesse sentido, coloca um interdito ao artis-
ta e reduz a atividade artística a um papel inferior, pois ela não conse-
guiria chegar à essência das coisas.

Wikimedia Commons
SANZIO, R. Escola de Atenas. c. 1511. 1 Afresco, 500 cm x 700 cm. Palácio Apostólico, Vaticano.
Todos os personagens foram inspirados em filósofos ou artistas. Estão representados Plotino, Michelangelo, o próprio artista, entre outros. No
centro estão Platão e Aristóteles. O primeiro aponta para cima, o Mundo das Ideias, e o segundo indica o que está ao redor, o mundo natural.

A visão que Platão tem da arte é diferente de sua visão do belo.


Para o filósofo grego há um parentesco entre o belo, o bom e o ver-
dadeiro. A perfeição está na unidade formada pela união desses três
princípios. Algo não pode ser considerado belo se não for bom e ver-
dadeiro. Assim, não basta que algo seja belo, é preciso que seja mo-
ralmente belo. Isso é determinante de tudo, é o caminho verdadeiro.
Além disso, o belo precisa ser belo em si mesmo, independentemente
de qualquer outra necessidade. O belo platônico existe por si mesmo
e reside no objeto que é proporcional, simétrico e harmonioso intrin-
secamente. Muitos séculos foram precisos para essa tese ser questio-
nada e é possível perceber que ela coloca o homem numa posição de
centralidade em relação ao mundo.

34 Estética e história da arte


Aristóteles (384-322 a.C.) foi aluno da Academia de Platão, a escola
que o mestre fundou em Atenas. Contudo, discordava de que a reali-
dade estava além daquilo que percebemos e, por isso, se afastou do
Mundo das Ideias, da repartição entre modelo e cópia e do belo como
algo supremo ou divino. Por incrível que pareça, Aristóteles pensou
em questões artísticas concretas e formais que parecem ainda atuais.
Ao idealista Platão, contrapõe-se o realista Aristóteles.

Chama-se Poética o livro de Aristóteles que traduz suas preocupa-


ções estéticas. Para ele, o belo está na ordem e na proporção adequada.
Por isso, um objeto, ou qualquer ser vivo, não poderá ser muito grande
ou muito pequeno.

De Poética restaram apenas alguns fragmentos. O tema é a “arte


poética”, do grego poietikè tékhne. Nessa tradução há um aspecto a
ser analisado: a palavra tékhne, traduzida como arte e não técnica. A
derivação para arte é por causa da tradução latina da palavra gre-
ga como ars. Tékhne é definida no Vocabulário grego da filosofia, de
Ivan Gobry (2007, p. 142) como “atividade humana que, em vez de se
dobrar às leis da Natureza, permite que o homem aja segundo sua
própria natureza”.

Mesmo assim, essa transformação da natureza em obra de arte


não deixa de ser uma imitação. Para Aristóteles, a arte também é imi-
tação. Ele utiliza a palavra poiesis, que significa fabricação, criação. A
seu ver, arte não se trata de criação aleatória ou divina, mas de um
fazer que parte da natureza para criar a obra de arte. O artista imita a
natureza, mas o resultado é algo novo. Se Platão condena a mimese,
Aristóteles a trata como procedimento artístico e, por isso, a estudou.
Procurou entender como ela acontece e quais são suas formas de ma-
nifestação. Por esse motivo, dedicou-se à construção de uma teoria
para investigar os processos criativos de seu tempo, principalmente
a tragédia, que considerava o ápice da arte poética. Não por acaso
poiesis estava no centro de suas preocupações.

Na Poética, portanto, Aristóteles analisou diversas manifestações


artístico-poéticas, como a epopeia, a comédia e a tragédia. Ao tratar
da tragédia, ele desenvolveu sua teoria da catarse (kátharsis), cuja
tradução literal é purificação. Aristóteles (2015) diz que na tragédia a
mimese possui um caráter elevado, contrariando a posição de Platão.

Evolução histórica da estética 35


A catarse acontece na tragédia por causa da imitação de certas
emoções, como a compaixão e o pavor, que são dramatizadas no palco.
A partir da experiência contemplativa do teatro trágico, o espectador
consegue purgar suas paixões. Os gregos usavam o termo catarse tam-
bém em outras situações, como na religião ou na medicina. A palavra
purgação, no sentido de purificação, também tinha um sentido moral.
Aristóteles trouxe para a filosofia a discussão sobre o papel da arte em
aliviar conflitos e paixões.

2.2 A estética medieval


Vídeo Considera-se a queda de Roma, em 476 d. C., como o início da Idade
Média. Para surpresa do mundo conhecido, o Império Romano do Oci-
dente foi derrotado, mas conseguiu se manter de pé no Oriente, insta-
lando sua capital na pequena cidade grega Bizâncio – atual Istambul, na
Turquia –, que veio a ser conhecida como Constantinopla durante o Im-
pério Bizantino. Por isso, a arte que lá floresceu é chamada de bizantina.

A única instituição que não caiu e permaneceu independente foi a


Igreja Cristã, que floresceu depois de o cristianismo se tornar a religião
oficial do Império Romano, em 380 d.C. Em 313 d.C., por influência de
Constantino, foi concedida a tolerância religiosa ao cristianismo, que
depois de três séculos de perseguição, deixava de ser uma religião
proibida. A luta pessoal dos papas contra os invasores fortaleceu ainda
mais a unidade cristã. Todos esses aspectos explicam a predominância
da Igreja sobre as artes e a política durante os séculos seguintes.

Um dos principais estudiosos do período medieval, o francês


Jacques Le Goff (1924-2014), publicou um livro chamado A história
deve ser dividida em pedaços?, no qual explica que o recorte do tempo
em períodos é necessário à história. Porém, as divisões que fazemos
não são baseadas apenas nos fatos cronológicos, mas também na
ideia de mudança em relação ao período precedente. Um exemplo é
a visão que os autores do Renascimento legaram sobre a Idade Média,
retratando-a como período de obscuridade cultural. Então, aquele
período estaria entre a grandiosa cultura greco-romana — cujo marco
final é a queda de Roma — e o nascimento do mundo moderno, no
século XV. O nome renascimento vem dessa ideia de retomada do
esplendor da antiguidade. A Idade Média, desse modo, estaria colocada
entre as duas datas, marcada por ignorância e superstições.

36 Estética e história da arte


Essa tese foi revista por autores como Le Goff e Umberto Eco (1932-
2016), professor, romancista e ensaísta que, em 1959, escreveu o livro
chamado Arte e Beleza na Estética Medieval, no qual fez uma síntese das
teorias estéticas da Idade Média, em um momento ainda de descon-
fiança em relação àquele ciclo histórico. A palavra estética aparece no
título do livro como confirmação das preocupações com o belo e com a
arte que existiam no período. Eco justifica o uso do termo por entender
que está vinculado a todo discurso que se ocupa da beleza, da arte,
da produção e apreciação de obras de arte, e “às relações entre arte e
outras atividades e entre arte e moral, à função do artista, às noções de
prazer estético, de ornamental, de estilo, aos juízos de gosto e também
à crítica destes juízos, e às teorias e práticas de interpretação dos tex-
tos” (ECO, 1989, p. 9).

O autor nos dá uma definição de estética que poderá ser utilizada Filme
em qualquer época, desde que não se tenha o objetivo único de veri-
ficar se ela se confirma em um período distante. O cuidado que todo
pesquisador deve ter é de não ser anacrônico, ou seja, atribuir ideias
que são de uma época a outro tempo. Em palavras mais simples, po-
de-se definir anacronismo como o ato de se analisar um determinado
fenômeno do passado, com os “olhos” de hoje. Os adeptos dessa tese,
dizem que evitar o anacronismo é impossível. Mesmo assim, Eco nos
deu, de modo claro, alguns dos objetos de nossa disciplina.

A estética da Idade Média se inspirou primeiro na filosofia platônica


e seus seguidores, como Plotino. Essa perspectiva de mundo se ade- O nome da rosa, filme
de 1986, é baseado no
quou bem aos pontos de vista cristãos, principalmente a noção de
romance homônimo de
transcendência. O belo transcendente, divino, adaptou-se à Idade Média Umberto Eco. A trama se
passa na Idade Média,
— período em que se desconfiava do belo sensível (vinculado à maté-
em que há uma grande
ria) — e tinha o texto bíblico como essencial. Santo Agostinho, um dos Biblioteca e um misterio-
so livro, que parece ser a
filósofos e teólogos mais importantes para a consolidação do cristianis-
segunda parte perdida da
mo, foi influenciado por Platão e Plotino, tornando-se partidário da be- Poética, de Aristóteles.
leza inteligível e não da beleza sensível, ainda que ambas tenham sido Direção: Jean-Jacques Annaud.
criadas por Deus (segundo a crença cristã). No Livro X das Confissões, Itália; Alemanha Ocidental; França:
Warner Bros. Pictures, 1986.
Agostinho explica que as coisas realizadas por artistas ultrapassam o
uso necessário e acrescentam tentações aos olhos. Diz que é preciso
compreender que a beleza trazida pelas almas às mãos dos artistas
vem da beleza que está acima delas, ou seja, vem de Deus (AGOSTI-
NHO, 2017). Agostinho se preocupa com os fabricadores de belezas ex-
teriores, pois derivam delas os critérios de julgamento; também se

Evolução histórica da estética 37


Saiba mais preocupa com o prazer operado pelos sentidos,
principalmente o olhar. O prazer busca o que é belo,
Na antiguidade tardia, Plotino (205-270 d.C.) desenvolveu
ele afirma. Por isso, a separação que faz entre o belo
teses sobre a arte e o belo, cuja influência chegaria até o
Renascimento. Sua leitura dos textos clássicos, principalmente sensível e o inteligível é consequência da superiori-
de Platão, fez com que ganhasse o título posterior de neoplatô- dade da alma sobre o corpo, assim como Plotino
nico. Sua obra Enéadas (de ennéa, nove em grego) é formada
por nove partes, uma delas intitulada “Sobre o belo”. Ali escre- também estabeleceu.
veu: “Quase todo mundo afirma que a beleza visível resulta da As ideias de Agostinho foram preponderantes
simetria das partes, umas em relação às outras e em relação
ao conjunto, e, além disso, de certa beleza de suas cores. Neste por quase mil anos, quando surgiu o pensamento de
caso, a beleza dos seres e de todas as coisas seria devida à sua São Tomás de Aquino. A predominância, agora, não
simetria e à sua proporção” (PLOTINO, 2007, p. 20). O filósofo
será mais só de Platão, mas também das ideias de
parte dessa afirmação para desenvolver a tese de que o belo é
a ideia visível. Ele também pergunta como podemos atribuir Aristóteles, fruto da redescoberta feita pelos árabes.
a causa das belas condutas à simetria. Seu raciocínio segue a Os filósofos árabes que viviam na Espanha trataram
filosofia platônica para questionar o princípio que relaciona
o belo às coisas materiais. Tudo que não seja dominado por
de traduzir os livros de Aristóteles para o árabe e
uma ideia e pelo pensamento (logos) é feio. Há belezas que depois para o latim. Foi assim que as obras do filósofo
são diferentes das belezas sensíveis, que Plotino considera grego chegaram até Tomás de Aquino. No livro Suma
meramente materiais, ainda que encantadoras. As belezas não
sensíveis são as mais elevadas e não podem ser percebidas Teológica (2013), encontram-se referências ao belo:
pelos sentidos, pois são vistas apenas pela alma. Uma frase 1) Belo é a mesma coisa que o bom; 2) Belo é o que
de Plotino influenciará os filósofos medievais: “Tais belezas só apraz (do verbo aprazer, que causa prazer); 3) Não há
podem ser vistas por aqueles que veem com os olhos da Alma”
(2007, p. 25). Só assim é possível contemplar a verdadeira be- diferença entre virtude e o belo espiritual. Portanto,
leza. Mais adiante, afirma: “Eis o que experimentamos quando são os mesmos fundamentos morais da associação
entramos em contato com a beleza: o maravilhamento, um
entre belo e bom presentes em Platão. No entanto,
súbito deleite, o desejo, o amor e uma
alegre excitação” (2007, p. 25-26). há uma afirmação em outro livro, Contra gentios
Apesar de a linguagem de Plotino (2013), que apresenta influência de Aristóteles.
exprimir o sentimento de futuros
teóricos da estética, também
Tomás de Aquino (2013, p. 62) afirma que o bem é
exprime uma crítica a Policleto, a causa do mal acidentalmente, e completa que a
já que sua principal tese é que o mesma coisa ocorre na arte: “A arte imita de fato a
belo está além dos sentidos.
natureza em seus movimentos, e os defeitos podem
ser encontrados tanto em uma parte quanto em
Figura 2
Plotino outra”. O autor parece enfatizar a noção aristotélica
de imitação.
Wi
kim
edia
Commons Se, em termos filosóficos, a estética medieval é tributada aos gregos,
ela é diferente em termos formais, pois, além das preocupações
meramente morais, passaram a existir preocupações religiosas,
principalmente. Pode-se afirmar que a arte medieval abandonou o
cânone de Policleto e o substituiu por outro, que desmaterializa a obra,
pois nenhuma imagem poderia rivalizar com Deus. E qual seria esse
novo cânone?

38 Estética e história da arte


•• A obra de arte tem uma finalidade: aproximar o homem de Deus
ou evangelizar com imagens aqueles que não sabem ler. Essa
questão é importante no caso da Iconoclastia.
•• As figuras não poderão ter corporeidade; elas devem ser desma-
terializadas (não no sentido contemporâneo, mas no sentido de
perder o aspecto material e espiritualizar-se).
•• A obra deverá ser bidimensional, sem profundidade. Para isso,
não se utilizará a modelagem, pois não haverá representação da
espacialidade. Eram aceitas apenas a altura e a largura.
•• As figuras pintadas não poderão sugerir movimento, pois não ha-
verá representação da temporalidade.
•• O uso das cores é regido por regras simbólicas, como o céu pinta-
do de ouro.

De olho na arte
Há um momento da história cujo destino da arte foi definido por causa

Wikimedia Commons
de um monge, que depois se tornou papa, e viveu em um dos momen-
tos mais conturbados da Europa. Seu nome é Gregório I, que foi papa de
590 a 604 d.C., justamente no período após a queda de Roma.
São Gregório achava que devia difundir as palavras dos Evangelhos aos
povos que dominavam parte do que era o Império Romano e continua-
vam a atacar Roma. Ele próprio precisou defender a cidade. Como eram
povos que não dominavam a escrita, São Gregório achou que deveria levar
o conteúdo das Escrituras por meio de imagens. Foi quando proferiu a
famosa frase: “a imagem é o livro daqueles que não sabem ler”.
Essas palavras foram usadas em defesa contra aqueles que se opunham
ao uso de imagens. O iconoclasta (aquele que destrói imagens) tinha
medo da adoração de imagens religiosas e se amparava em trechos das
Escrituras que condenavam as imagens. Apesar de ser uma questão
inacabada, o uso delas possibilitou que o clero se transformasse no
maior patrocinador da arte por muitos séculos, o que geraria um patri-
mônio artístico sem precedentes. Esse é mais um exemplo das questões
que envolveram a arte durante a Idade Média.

O ícone, criação bizantina do século V, é a representação da


mensagem cristã. Um dos ícones mais famosos é uma representação
da Virgem, atribuída a São Lucas. Tal representação viria a ser
conhecida como Nossa Senhora de Vladimir.
Teótoco de Vladimir (autor desconhecido). 1100. Têmpera e painel,
color., 104 x 69 cm. Galeria Tretiakov, Moscou, Rússia.

O cânone da proporção caiu em desuso apenas em seu aspecto prá-


tico, na fatura das obras de arte. A noção de belo, contudo, permaneceu
como algo transcendental. A proporção continuou sendo válida na natu-
reza, cuja beleza era considerada superior à da arte. A obra de arte ainda
não atingiria a dignidade da era moderna.

Evolução histórica da estética 39


Não se pode esquecer, também, que há duas grandes influências
sobre o cristianismo: a cultura hebraica e a grega. Umberto Eco (1989,
p. 28) lembra a influência do conceito platônico: “a beleza do mundo
como reflexo e imagem da beleza ideal”. O mundo ainda era superior
à imagem criada pelo artista. Eco (1989) conclui que a estética da pro-
porção era sempre uma estética quantitativa, e não um gosto qualitativo
capaz de provocar prazer perante a cor e a luz, como nós, visitantes
contemporâneos, experimentamos nas grandes catedrais medievais,
principalmente as góticas.
Por tudo isso, há novos acréscimos na Linha do Tempo. As reprodu-
ções de pinturas medievais foram escolhidas para permitirem a compa-
ração com a arte clássica e para a compreensão da arte renascentista.

2.3 A estética moderna


Vídeo Até este momento, um dos objetivos foi mostrar que a noção de es-
tética depende de certas matrizes de pensamentos. Matriz, nesse caso,
é utilizada no sentido de origem, lugar ou mesmo como o primeiro, o
mais notável. Já passamos pela matriz grega, que ainda hoje repercute
na nossa forma de lidar com a obra de arte, como as noções de pro-
porção de Policleto e a associação de Platão entre o bom, o belo e o ver-
dadeiro. Passamos também pela matriz medieval e sua relação íntima
entre arte e concepção de mundo baseada nos valores religiosos.
Para entender essas matrizes de pensamento é preciso analisar de
onde vêm. Desse modo, há dois traços na Linha do Tempo que está
sendo preenchida enquanto se avança nesta análise. É como se os fa-
tos (a história) e as ideias (as teorias estéticas) sobre o objeto artísti-
co andassem juntos. Quando o assunto é a obra de arte, as ideias em
torno dela e a história se juntam. A noção é importante porque nesta
seção será examinada a passagem do homem medieval ao homem
moderno. É um momento decisivo, tanto para a arte quanto para as
transformações que ocorreram no mundo.
Para os historiadores, a Era Moderna é inaugurada com a queda
de Constantinopla e com a chegada de Cristóvão Colombo à América.
Para os filósofos, o período moderno se inicia com René Descartes. Foi
também nesse período, entre os séculos XIV e XVI, que aconteceu a
primeira revolução moderna na arte, o Renascimento. É um período de
mudanças em todos os sentidos, não só nas artes.

40 Estética e história da arte


Nem todos concordam com essa explicação. Para Le Goff (2015), a
Grécia
Idade Média é mais longa do que imaginamos, uma vez que não have-
476 d. C.
ria mudanças fundamentais entre o século XVI e XVIII que justifiquem a Queda de Roma
separação entre a Idade Média e um novo período, o Renascimento. O
historiador francês estima que o final dessa longa Idade Média está na
1490
metade do século XVIII. O Homem Vitruviano, de
Leonardo da Vinci, simboliza o
ideal renascentista.
Coincidentemente, este é um dos períodos analisados neste livro, o
1492
período da estética, quando a palavra é cunhada e uma série de eventos Colombo chega a América
(salões, museus, novos patrocinadores) transformaram a relação entre
1492
obra de arte e o espectador. Publicação do livro Das
revoluções das esferas
celestes, de Copérnico.
Saiba mais
1509
Jacques Le Goff (2015) explica que a palavra renascimento surgiu no século XIX, como um período da
A Escola de Atenas, de Rafael
história. Quem cunhou a palavra, em 1838, foi o historiador francês Jules Michelet (1798-1874). A partir Sanzio.
desta data o Renascimento passa a ser grafado com “R” maiúsculo. O historiador da arte Jacob Burckhardt
1512
publicou, em 1860, o livro A civilização da Renascença na Itália, que consolidou a forma como tratamos
Michelangelo conclui a pintura
este período hoje. A segunda parte do livro é sobre o desenvolvimento do indivíduo e a terceira sobre o do Teto da Capela Sistina.
“renascimento” de um passado glorioso. É importante destacar que a palavra Renascimento é recente, assim
como sua periodização.

1596
A palavra renascimento está ligada à ideia de retomada de valores Nascimento de René Decartes.

(principalmente estéticos) do período greco-romano, que, no início


deste capítulo, chamamos de clássico. Para tanto, os intelectuais re- 1633
nascentistas traduziram livros e estudaram detalhadamente as obras Galileu é detido pela Inquisição.

clássicas. Ainda que Le Goff questione, ocorreram, de fato, mudanças


científicas, filosóficas e a retomada da noção de belo que tinha como 1661
fonte os teóricos gregos, como Policleto. Real Sociedade

A convicção de que a Idade Média representava a “Idade das Trevas”


germinou nesse momento. Em termos formais, retomou-se o cânone
1687
de Policleto e a proporção harmoniosa do corpo humano. Isso resultou Publicação do livro Princípios
Matemáticos da Filosofia Natural,
na retomada da ideia de imitação, como já existia em Aristóteles, ou de Isaac Newton.

seja, a imitação da natureza. Para os renascentistas, a imitação era a


1689
tentativa de recriar, da melhor forma possível, aquilo que era visível, Publicação do Ensaio acerca
do Entendimento Humano, de
mesmo que fosse necessário provocar a sensação de ilusão. O artis- John Locke.

ta era um leitor da natureza, um investigador. Daí derivou, também, a


noção de autoria, que era uma grande novidade em relação aos artis-
1907
tas da Idade Média, que não assinavam suas obras, pois elas eram a Picasso
expressão de Deus. Apesar da relação comercial entre o contratante
e o artista, o desejo autoral era forte. Surge, então, a noção de gênio,
principalmente com Michelangelo (1475-1564). Contemporaneidade

Evolução histórica da estética 41


Leitura O artista deixava de ser um artesão, no sentido medieval de traba-
lhador de oficina, e passava a ser um artista. Isso não foi tão simples
assim, pois a ideia era de que o trabalho artístico fazia parte das artes
mecânicas (ou seja, manuais) e não liberais (como a poesia, a arte mais
valorizada). As artes mecânicas não tinham o mesmo prestígio social
das artes liberais, que eram associadas às atividades intelectuais. O fato
fez com que Leonardo da Vinci (2005) defendesse a pintura como “um
saber maravilhoso”, capaz de conservar a beleza que poderá desapa-
O livro A Religiosidade Bra-
sileira e a filosofia, de João
recer a qualquer momento. A questão levou Leonardo (2006) a afirmar
Coviello, traz em detalhes, ainda mais diretamente: a pintura é mental, como a música ou a geo-
no capítulo “Da Vinci, Volpi
e a Imagem Religiosa”, o
metria. Leonardo da Vinci fez uma defesa inédita da pintura.
debate ocorrido na Idade
Média, em torno do uso
Para atingir a perfeição, os artistas renascentistas utilizaram os
de imagens pelo cristianis- avanços da geometria e da matemática a fim de mostrar que a obra do
mo. Comenta-se também
a Santa Ceia, de Leonardo
pintor é superior à própria natureza. Mais uma vez a noção de imitação
da Vinci, e o trabalho de aristotélica era defendida pelos renascentistas. A ilusão da realidade
Alfredo Volpi, importante
artista do modernismo
era obtida com a terceira dimensão (tridimensionalidade), conseguida
brasileiro. com técnicas sofisticadas, como o uso da perspectiva.
SILVEIRA; R. A. T.; LOPES, M. C. Porto
Alegre: Editora FI, 2016. Disponível em:

Wikimedia Commons
http://www.editorafi.org/religiosidade-
brasileira. Acesso em: 12 fev. 2020.

Glossário
perspectiva: técnica que
utiliza a geometria para obter
a ilusão de um espaço idêntico
à realidade dentro do espaço
plano da tela.

DA VINCI, L. A última ceia. 1495-97. Estuque.


460 cm × 880 cm. Refeitório de Santa Maria
delle Grazie, Milão. Wikimedia Commons

Linha do Horizonte

Figura 3 Ponto de fuga

A última Ceia, de Leonardo da


Vinci e o uso da perspectiva.

42 Estética e história da arte


No desenho, a perspectiva é simples: o ponto de fuga está centra-
lizado, assim como a linha do horizonte, e todas as linhas convergem
para eles. Na Última Ceia, de Leonardo da Vinci (1452-1519), todas as li-
nhas convergem para a figura de Cristo, que está também centralizado.
Wikimedia Commons

L P
O

Figura 4
Aula de Dança, de Degas e o uso de perspectiva.

DEGAS, E. Aula de Dança. 1875. 1 óleo sobre tela, 85 x 75 cm.


Museu d’Dorsay, Paris, França.

Na obra de Degas, artista impressionista, a perspectiva é mais com-


plexa: o ponto de fuga não está centralizado e a linha do horizonte está
na altura dos olhos do espectador. É um exemplo do uso do espaço
renascentista por um artista considerado moderno.

O Renascimento introduziu ainda algumas noções estéticas impor-


tantes, como ilusão, autoria e gênio, e retomou a noção de imitação.
Esses novos termos passaram a ser utilizados com frequência. A pers-
pectiva se tornou um cânone empregado até hoje, a despeito do abalo
provocado por Picasso em 1907. Apesar de intocada no decorrer dos
séculos, ela começou a ser questionada pelo movimento romântico ini-
ciado no final do século XVIII. Em seu diário, Eugène Delacroix (1798-
1863), o mais importante pintor romântico francês, escreveu: “Arte não
é álgebra” (2005, p. 98).

O romantismo não questionou apenas a perspectiva, mas a própria


objetividade do belo, discutindo com mais força o papel da subjetivi-
dade. Passou pelo movimento impressionista e chegou até aos movi-

Evolução histórica da estética 43


mentos de vanguarda do início século XX. Antes desses movimentos
pioneiros encabeçados por Picasso, o espaço renascentista, composto
pela figura e pelo uso da profundidade para provocar a ilusão da ter-
ceira dimensão, parecia inquestionável.
De olho na arte
O Romantismo foi um fenômeno histórico que iniciou

Wikimedia Commons
no século XVIII e seguiu influenciando o mundo.
Preocupado com os aspectos profundos do homem,
acabou por revolucionar a arte. É no interior do
romantismo que ressurge o gênio intuitivo, investido
de uma força capaz de criar arrebatamento. Era como
o próprio Michelangelo se via no Renascimento, mas
agora o sujeito romântico era dotado de complexidade
psicológica jamais descrita. Estamos falando da arte,
mas é preciso lembrar que o espírito romântico pairou
sobre todas as atividades humanas da época. O belo,
portanto, também foi questionado. O “belo romântico”
não censura situações angustiantes ou “feias”, pois seu
mundo é subjetivo, ainda que sua fatura esteja filiada
à tradição renascentista, que estava em voga há mais
de três séculos. Contudo, havia algo de diferente, que
acabou por antecipar o impressionismo: a ênfase na DELACROIX, E. Liberdade guiando o povo. 1830. Óleo sobre tela. 260 cm x 325 cm. Museu do
Louvre, França.
imaginação do artista, que questionava a imitação
pura e simples.

Tratamos das transições formais que ocorreram desde a Idade


Média. Chegamos até o impressionismo. Antes de entrar no século XX,
será importante verificar, também, as mudanças que aconteceram na
visão de mundo nesse período. As transformações estéticas estão liga-
das às mudanças que ocorrem na forma como percebemos o mundo.

Vimos que a Filosofia considera o pensamento de Descartes o iní-


cio da Idade Moderna, com uma crença inabalável na razão. Tinha uma
teoria adequada à nova era que estava vendo o nascimento da ciência
(associação entre arte e ciência que ocorreu no Renascimento). No en-
tanto, Descartes foi um pouco além. Pela primeira vez alguns pensadores
se voltaram para o sujeito, para o conhecimento que podemos ter. Antes
de conhecer as coisas, devemos saber como podemos conhecê-las. A
partir de mim, portanto, começa a verdade. E se começa a partir de mim,
começa a partir dos meus sentidos, ainda que eles possam se enganar.

Por isso, antes do conhecimento da natureza das coisas, preciso conhe-


cer a mim mesmo. Há aqui uma reconstrução radical do conhecimento.
Ou seja, a descoberta do pensamento: um ser que pensa e tem dúvidas.

44 Estética e história da arte


Assim, as coisas são da forma como eu vejo. Há a valorização da subjetivi-
dade. Descartes (2011, p. 70) usa a famosa frase: “Penso, logo existo”. Há
um eu nessa frase, o eu que pensa e existe. Podemos formulá-la de outra
forma: “eu sou, eu existo”.

Descartes está refletindo, também, sobre as coisas que se originam


do conhecimento sensível. Como ocorreu com Baumgarten, ele des-
confiava que as sensações nos enganam, ainda que não estivesse pen-
sando na experiência estética. Se estivesse, confirmaria a tese de que
o conhecimento inteligível (aquele que é apreendido pelo intelecto) é
superior ao sensível (apreendido pelos sentidos).

Outro filósofo importante é John Locke (1632-1704), que inaugura


as ideias liberais na política, descartando a tese em favor do direito divi-
no dos reis e proclamando que todos os homens são iguais. Essa mes-
ma afirmação aparecerá na Declaração da Independência dos Estados
Unidos (1776) e na Constituição Americana (1789). As repercussões po-
líticas posteriores levaram a grandes transformações da Europa. Nesse
mundo de mudanças, a estética e a arte também foram afetadas, e não
por acaso a estética nasceu nessa época.

Ao contrário de Descartes, o filósofo inglês Hume não acreditava que


a razão era a base do conhecimento. Ao contrário de Baumgarten, Hume
valorizava as sensações. Os juízos – que nos causam interesse como estu-
diosos da estética – resultam das experiências que temos e dos sentimen-
Glossário
tos que essas experiências despertam. Alguém, enfim, dava importância
ao sensível. Não um artista, mas um filósofo. Não apenas nossos juízos empirismo: referente à escola
filosófica que defende a tese de
são determinados pela sensibilidade, mas também nossa forma de agir e que o conhecimento se origina
pensar. Como empirista, Hume acreditava no papel central da experiência da experiência.
na constituição do conhecimento.

Em 1758, Hume publicou no livro Ensaios morais, políticos e literários,


um ensaio chamado “Do padrão do gosto”, no qual, logo na primeira
frase, afirma que a variedade de gostos e opiniões não pode deixar de
ser notada. Daí seu interesse. E também opinou: a beleza existe para
quem contempla e, por isso, cada um de nós percebe uma beleza di-
ferente (HUME, 2013). Não há uma regra, então, para se conseguir um
acordo com as diversas opiniões. O que impede um padrão de gosto é
a experiencia individual com o objeto artístico. Logo, Hume afirma que
“o sentimento está sempre certo” (2013, p. 95).

Evolução histórica da estética 45


Nesse caso, aquele que gosta tem a si mesmo como referencial. Dessa
forma, todos os sentimentos despertados pelo objeto estão certos, uma
vez que nenhum desses sentimentos está em conformidade com o objeto.
É o paradoxo do gosto, para Hume. Quem pratica a contemplação do belo
contribui para aprimorar seu talento e diferenciá-lo dos outros. A prática,
diz ele (HUME, 2013, p. 102), facilitará a apreciação de qualquer obra, que é
comparável com sua execução. Há uma relação de igualdade entre artista
e espectador. A prática da contemplação da beleza é valorizada por Hume.

Kant é um autor muito citado quando se discute estética. Foi leitor de


Hume e tentou, a seu modo, conciliar o papel da experiência e o papel da
razão na forma como conhecemos algo. Uma de suas principais contribui-
ções é a afirmação de que não conhecemos os objetos em si mesmos, mas
somente enquanto fenômenos, como aparecem em nossos sentidos. Por-
tanto, todas as coisas, enquanto fenômenos, não existem em si mesmas,
mas em nós. Ou seja, conhecemos apenas o nosso modo de percebê-los
(KANT, 1980). Isso modifica dois milênios de tradição antropocêntrica, que
afirma a centralidade do homem em relação a todas as coisas.

Um dos aspectos mais importantes da estética kantiana é a ausência


de regras para o reconhecimento do belo. De modo simples, segundo
Kant, pode-se definir o belo como sem interesse, sem conceito, sem fim,
mas necessário. Ou seja, nosso sentimento em relação ao belo é desin-
teressado, sem avaliações ou julgamentos e sem finalidade.

Quando Kant fala em julgamentos, quer dizer que o juízo estético é di-
ferente do juízo lógico (ou racional), e que a fonte de referência desse tipo
de juízo é o próprio sujeito. A estética kantiana possibilita uma experiência
subjetiva, livre de qualquer conceito, cuja imaginação torna possível uma
satisfação tão livre que não interessa se os objetos são ou não coerentes.

Kant não escreveu diretamente sobre a arte, mas sempre derivamos


sua Terceira Crítica para ela. A Crítica da faculdade do Juízo não estuda
obras, nem artistas, mas sempre é citada nos debates sobre arte, mes-
mo a contemporânea.

Quando Kant afirma que o sentimento em relação ao belo é desin-


teressado, afasta a apreciação estética de qualquer finalidade prática
ou moral. Com isso ele alimentou uma discussão tipicamente moder-
na: a questão da autonomia da arte. Livre, portanto, até mesmo das
instituições. A arte contemporânea levará o desejo de autonomia a um
momento de maior intensidade.

46 Estética e história da arte


2.4 A estética contemporânea
Vídeo O estudante Arthur Danto estava em Paris no princípio de 1960,
quando viu a reprodução em branco e preto de uma obra de arte pop
publicada em uma revista. Era a pintura O beijo, de Roy Lichtenstein
(1923-1997). Danto ficou espantado, sem ter certeza sobre o que pen-
sar e desconfiado de que o trabalho de Lichtenstein não era arte. Tudo
lembrava uma pintura realizada da forma como se faz há séculos, com
o mesmo suporte de sempre: tinta a óleo sobre tela. No entanto, a ima-
gem era bidimensional e as cores foram aplicadas de modo uniforme,
sem meios-tons. Não havia modelagem ou contraste. A imagem pare-
cia ser um recorte de alguma história em quadrinhos. Lichtenstein pin-
tou vários trabalhos com o mesmo tema: beijos inspirados em HQs. A
imagem a seguir é uma das primeiras da época descrita por Danto.

Durante a temporada em Paris,

Wikiart
Danto aproveitou para refletir e
concluir que aquilo era arte. Na
volta para os Estados Unidos,
resolveu ver mais trabalhos da
arte pop. Em 1964, viu a segunda
exposição de Andy Warhol,
relatando ter sido uma experiência
transformadora (DANTO, 2012).
Essa “experiência transformadora”
fez, segundo as próprias palavras
de Danto, com que ele se tornasse
um filósofo da arte. Admitiu
LICHTENSTEIN, R. O Beijo V. 1964. 14,6 X 15,2 cm. Coleção privada.
que unir filosofia e arte não era
um de seus interesses, mas, então, como era essa exposição que o
transformou? A exposição continha objetos comuns de supermercados,
incluindo caixas de um sabão muito conhecido nos Estados Unidos,
chamado Brillo. O nome Brillo Box refere-se àquela caixa que é guardada
nos depósitos dos armazéns e supermercados. Foram essas caixas que
o levaram a refletir sobre como definir a arte.

Lembre-se de que Duchamp se apropriava de um objeto já pronto,


o que chamou de ready-made, e o levava para o espaço de exposição. A
Brillo Box foi criada com madeira compensada e aplicação de serigrafia.

Evolução histórica da estética 47


Saiba mais Danto se questionava por que a Brillo Box era digna de ser conside-
Arte pop é a contração de arte rada arte. Por que ela era considerada arte e as caixas comuns de
popular. Os artistas do gênero
sabão Brillo não tinham esse status? Ao criar suas caixas exatamente
queriam, antes de tudo, retomar
a relação entre arte e vida, que iguais àquelas vendidas em supermercados, Warhol mostrou que não
julgavam ter sido abandonada havia distinção entre arte e realidade. A mimese foi utilizada sem cul-
pelos movimentos modernistas
pa. No entanto, esta análise não é a de Danto. Seu interesse era mos-
anteriores. Por isso, usaram
imagens típicas da cultura trar que um trabalho se transfigura (palavra que ele utiliza) em arte
americana, como histórias em quando o mundo da arte, definido por ele como o mundo das obras de
quadrinhos e propagandas
de TV. As imagens eram arte, aceita recebê-lo. Assim, sob o impacto da Brillo Box ele se tornou
retrabalhadas, mas, mesmo um filósofo da arte, e as obras de arte se transformam em exercícios de
assim, não pareciam diferentes filosofia da arte. É possível concluir que a arte conceitual se converteu
em relação ao que o espectador
estava acostumado. Além disso, em um exercício filosófico, e que as fronteiras entre a arte e a filosofia
usavam materiais de todos os caminham para desaparecer (DANTO, 2005).
tipos, incluindo os industriais.
Afetado pela Brillo Box, Danto escreveu e publicou,
no mesmo ano da exposição de Warhol (1964), um ar-
tigo comentado até hoje, chamado O mundo da arte.
Wikiart

O problema que apresentou era o mesmo: “como dis-


tinguir obras de arte de outras coisas” (2015, p. 27).
Era uma questão estética, sem dúvida, e existia desde
os primeiros ready-mades de Duchamp. Nesse artigo,
Danto já utilizou sua noção de transfiguração de obje-
tos banais em arte. O complicado, para o estreante fi-
lósofo da arte, é que a transfiguração não se encaixava
em categorias estéticas já existentes, como a imitação
da realidade ou a ilusão.

A diferença entre a caixa de sabão Brillo real e a


obra de Warhol é uma certa teoria da arte, segundo
Danto (2015), que recebe a Brillo Box no mundo da
arte. Ao ser recebida, ela adquire uma identidade ar-
tística, ainda que seja um objeto real. É preciso, assim,
que pessoas vejam a Brillo Box como arte, como parte
do mundo da arte, e, claro, apliquem a teoria da arte.
Uma teoria simples que entende que a Brillo Box é arte
porque está na galeria e fora dela é apenas uma cai-
xa de madeira compensada pintada. Será que todas
as teorias que estudamos até agora não são iguais a
essa? Danto (2015) explica que o papel das teorias ar-
tísticas é tornar o mundo da arte e a arte possíveis.
WARHOL, A. Brillo Box. 1964. Galeria Nacional do Canadá, Ottawa, Canadá.

48 Estética e história da arte


Influenciado pelo artigo de Danto, o professor e estudioso da esté-
tica George Dickie desenvolveu sua teoria institucional da arte, na qual
defende que as obras de arte são artefatos. Ele entende por artefa-
to a mesma definição que está nos dicionários: um objeto feito pelo
homem (DICKIE, 2008). Um artefato não precisa ser físico. Um poema
não é um objeto físico, mas é um artefato. Há um diálogo nas teses de
Dickie com os ready-mades de Duchamp. Ou seja, a preocupação é a
mesma de Danto: o que pode ser considerado arte? Será quando um
artefato se candidata à apreciação?

A tese de Dickie (2008) afirma que uma pintura pode se tornar obra
Quem?
de arte se um representante do mundo da arte conferir o estatuto de ar-
Professor emérito de filosofia na
tefato e torná-la candidata à apreciação. Essa apreciação é a apreciação
Universidade de Illinois, Chicago,
estética, sobre a qual já discutimos e que pode ser definida como juízo George Dickie (1926) escreveu
estético (o estalo que experimentamos com uma obra de arte), valor vários livros sobre estética e arte
e é um dos mais conceituados
estético (a excelência que observamos em determinada obra de arte)
teóricos contemporâneos da
ou, como consequência, a fruição estética (o prazer que desfrutamos estética.
durante a contemplação de uma obra).

Ainda que o artista faça parte do mundo da arte, ele mesmo não
pode conferir a condição de arte à sua obra. Apesar dessa constatação,
Dickie (2008) lembra que os requisitos para uma obra ser obra de arte
não podem bloquear a criatividade. Não há restrições, já que uma obra
pode nascer de qualquer coisa.

No entanto, na última versão de sua teoria, Dickie (2008) alterou sua


tese principal: a condição de artefato não pode ser conferida. Quando
um objeto qualquer é utilizado como meio artístico, ele se transforma
em um objeto mais complexo. É justamente esse objeto complexo que
se torna um artefato do mundo da arte. Dickie usa a Fonte, de Duchamp,
para ilustrar sua tese: o urinol é um objeto simples, mas é usado como
meio artístico para chegar à Fonte, que é um objeto complexo.

É possível perceber que, para Dickie, as teorias estéticas tradicionais


estabelecem que o artista, como criador de artefatos, é o único a ter
papel que institui e firma a propriedade expressiva e simbólica da arte.
Dickie mostra que há outros agentes. Como há instituições dedicadas
à arte, há papéis desempenhados por outras pessoas com o objetivo
de mediar a relação entre artista e público, como o crítico, professor de
arte, diretor, curador etc. (DICKIE, 2008). Essa teoria foi resumida por
ele mesmo da seguinte forma:

Evolução histórica da estética 49


1. Uma obra de arte é um artefato com o objetivo de ser apresentado a um público do
mundo da arte.
2. Um artista é uma pessoa que participa conscientemente na produção de uma obra
de arte.
3. Um público é um conjunto de pessoas cujos membros têm suficiente preparação
para compreender um objeto que lhes é apresentado.
1 4. O mundo da arte é a totalidade de todos os sistemas do mundo da arte.
O termo enquadramento pode 1
5. Um sistema do mundo da arte é um enquadramento para a apresentação de uma
ser entendido, nesse caso, como
contexto, ou seja, o conjunto de obra de arte por um artista a um público do mundo da arte.
circunstâncias ou fatores que (Adaptado de DICKIE, 2008, p. 145)
acompanham uma exposição.

Dickie abandona as questões tradicionais da estética, como definir


se nossa apreciação é objetiva ou subjetiva, a centralidade do papel do
artista e a ausência de outros agentes, como críticos e curadores. Se-
gundo ele, arte é um conceito cultural e deve haver critérios objetivos
para atribuir valor a ela. Sabe-se que esses valores não são só estéticos.
No entanto, Dickie defende a liberdade criativa e a coloca como regra
Livro
fundamental, preocupando-se com a prática.

Antes de encerrar este capítulo, vamos retomar a posição forma-


lista de Clement Greenberg, que foi influente durante um período do
século XX, mas perdeu alguma força por causa do impacto das imagens
da arte pop, ainda que continuem válidas e debatidas.

O artigo de Greenberg se chama Pintura modernista e foi publicado


em 1960, um pouco antes da revolução pop. Nele, Greenberg explica a
novidade histórica trazida pelo movimento moderno do século XX. Conta
que a arte naturalista (obras que tentam reproduzir a natureza, mas não
O livro O Belo Autônomo:
a copiar) havia escondido os meios que o artista usava para criar, como
Textos clássicos de estética
representa uma fonte de as tintas, as pinceladas, as marcas humanas deixadas na obra. O mo-
consulta permanente,
dernismo, ao contrário, “usou a arte para chamar atenção para a arte”
pois trata-se de uma
seleção de textos de (GREENBERG, 1997, p. 102). Greenberg valorizava as próprias limitações
estética que vai de Platão
da pintura, porque é delas que se serve, como a superfície plana, o su-
até a estética contempo-
rânea. Poucos autores porte e as propriedades das tintas. Até os grandes mestres viam esses
importantes ficaram de
aspectos como negativos. O modernismo, ao contrário, via-os como po-
fora da seleção.
sitivos. Há a influência da noção de autonomia da arte presente em Kant,
DUARTE, R. (org.). 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013. nos elogios de Greenberg ao modo como a arte moderna se preocupa
com seus meios de pintar: uma preocupação da arte consigo mesma.

50 Estética e história da arte


Elogiando os pintores impressionistas, Greenberg afirma que eles
Grécia
não queriam deixar dúvidas de que as cores saíram dos tubos de tinta.
1635
O modernismo, assim, tornou a pintura mais consciente de si mesma. Criação da Escola de Belas
Artes de Paris.
Com o impressionismo, a questão não era mais uma disputa entre
cor e desenho, mas uma experiência óptica. Por causa disso, segundo
1660
Greenberg (1997), os impressionistas abandonaram algumas práticas Falecimento de Diego
Velázquez, pintor espanhol.
antigas, como o sombreado e a modelagem. Pintura, afinal, não
era escultura. A partir dessas perspectivas é possível compreender 1661
Real Sociedade
melhor Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso.

Nesse sentido, Greenberg encerra seu artigo defendendo que a 1687


Publicação do livro Princípios
arte, entre outras definições, é continuidade, não ruptura. Matemáticos da Filosofia Natural,
de Isaac Newton.
Os dadaístas pensavam diferente. A arte, para eles, era ruptura, sim, 1689
e pregavam a superação da estética. Nesse caso, a estética estava vincu- Publicação do Ensaio acerca
do Entendimento Humano, de
John Locke.
lada a tudo que criticavam, como a noção de belo e de contemplação.
1717
Importante saber que o dadaísmo foi um movimento artístico cria- Auge do estilo rococó, principal
estilo anterior a Revolução
do na Suíça, em 1916, ainda durante a Primeira Guerra Mundial. É difícil Francesa, marcado pela leveza
e cores suaves.
separar os dois: o dadaísmo e a Guerra. A desilusão e
1739
a dor fizeram com que esses artistas questionassem Novos clientes: Os pintores
ganham novos clientes: a
os princípios da estética. Afinal, contemplar o quê? burguesia, que passa a ter mais
influência na França.

Duchamp se ligou ao grupo dadaísta. Sua


Wikimed

1750
Roda de Bicicleta é de 1913, anterior à Fonte, Lançamento do Tratado
chamado Estética.
ia Commons

de 1917, e é um exemplo do que queriam os


dadaístas. 1763
Publicação de História da Arte
Em 1922 o movimento se encerra, mas Antiga, de Johann Joachim
Winckelmann.
sua influência foi decisiva nos anos seguintes. 1768
Foi uma rebelião contra a estética, mas também Novos temas: As paisagens,
a natureza-morta e as cenas
uma rebelião contra aquilo que a estética represen- cotidianas ganham destaque.

1776
tava desde o século XVIII. A guerra marcava o auge
Declaração de independência
de um movimento que começara com a instituição de dos Estados Unidos. Morte de
David Hume.
um conceito, a estética, e um grupo que tomou pos- 1784
se desse conceito. Para os dadaístas, aqueles que Neoclassicismo: Retorno do
ideal greco-romano com o
tinham dinheiro e podiam contemplar coisas belas neoclassicismo.

1793
fizeram a guerra e acabaram com todas as possíveis
Inauguração do Museu do
ilusões estéticas. A própria palavra dadaísmo não Louvre.
DUCHAMP, M.
Roda de Bicicleta, significa nada. Daí em diante, a estética tomaria ou- 1907
Picasso
1913 (versão 1964).
tro rumo.
1,3 m x 64 cm x 42
cm. Museu de Israel.
Contemporaneidade

Evolução histórica da estética 51


CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível pensar a vida esteticamente? Para o dadaísmo, não mais. O
século XX, que começara com o otimismo de Les Demoiselles d’Avignon, e
que anunciava ser possível ir além da novidade impressionista, teve um
duro golpe com a Primeira Guerra Mundial. Daí a revolta dadaísta contra
qualquer coisa que lembrasse a estética. Como nada, porém, é definitivo,
artistas, teóricos e historiadores da arte continuaram, no século XX e nas
duas primeiras décadas do século XXI, a refletir sobre o belo, sobre a
arte e, principalmente, sobre nossa experiência com o objeto artístico.
A linha proposta neste capítulo, com Policleto-Picasso-Duchamp, explica
a cronologia dessa experiência que tentamos revelar desde o período
anterior a Platão.

Este recorte teórico e histórico não reuniu todos os artistas e pensado-


res que refletiram sobre os objetos da estética. Agora, sim, pode-se falar
em objetos da estética, no plural. Perceba que, com o decorrer do tempo,
a palavra estética ganhou novas preocupações, como a Teoria Institucional
da Arte, por exemplo. E novas preocupações irão se juntar a essas que
foram estudadas até aqui.

ATIVIDADES
1. O núcleo das teses de Policleto é a noção de proporção baseada em
princípios matemáticos. De acordo com o texto, como essa proporção
é aplicada pelo artista?

2. Explique a noção de espaço renascentista e sua influência por tantos


séculos.

3. Em termos formais, quais são as principais características da arte


medieval? Cite ao menos três exemplos.

REFERÊNCIAS
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2017.
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DA VINCI, L. Trattato della Pittura. Roma: Liber Liber, 2006. https://www.liberliber.it/
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Acesso em: 11 fev. 2020.

52 Estética e história da arte


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DUARTE, R. (org.). O Belo Autônomo: Textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Autêntica,
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Evolução histórica da estética 53


3
A arte nas diferentes culturas
Em 1993, o diretor de cinema franco-suíço Jean-Luc Godard fez
um curta-metragem de menos de três minutos chamado Je vous
salue, Sarajevo, em que refletiu sobre a guerra da Bósnia, ocorrida
nos anos 1990. O próprio diretor faz a narração e diz uma frase
que ficou famosa: cultura é regra, arte é exceção. Será que podemos
separá-las, como fez Godard?
Neste capítulo serão analisadas as relações entre arte e cultu-
ra. Antes, porém, a definição de cultura ajudará a compreender a
provocação de Godard.

3.1 O que é cultura


Vídeo Cultura é uma daquelas palavras às quais todos podem atribuir al-
guma definição, como com as palavras liberdade e natureza. Nos dicio-
nários há vários significados para cultura, como: processo de cultivar
a terra; cultivo de células na biologia; criação de algum tipo de animal;
referência à pessoa com grande conhecimento; e representação de ati-
vidades ou instituições ligadas à criação e difusão de obras de arte.

Filme Aqui nos interessa a definição antropológica, que se refere ao “con-


No curta-metragem junto de padrões de comportamentos, crenças, conhecimentos, cos-
Je vous salue Sarajevo,
tumes etc. que distinguem um grupo social” (HOUAISS; VILLAR, 2009,
de Jean-Luc Godard, o
diretor reflete a respeito p. 583). E também outra definição antropológica, presente no dicioná-
da arte e da cultura
rio, que se refere à “etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais,
por meio de imagens
fragmentadas de uma morais, espirituais (de um lugar ou período específico)”. A expressão
fotografia de Ron Haviv,
cultura clássica é um exemplo deste último conceito.
feita durante a Guerra da
Bósnia. Outra definição quanto à cultura é o uso da palavra civilização como
Direção: GODARD, J. L. França: sinônimo. O Dicionário Houaiss refere-se à civilização como “conjunto
Périphéria, 1993. Disponível em:
https://www.youtube.com/ de aspectos peculiares à vida intelectual, artística, moral e material de
watch?v=LU7-o7OKuDg. Acesso uma época, de uma região, de um país ou de uma sociedade” (HOUAISS;
em: 10 mar. 2020.
VILLAR, 2009, p. 476). Por isso, nos referimos, por exemplo, à civilização

54 Estética e história da arte


egípcia, pois se usássemos cultura egípcia seríamos igualmente com-
preendidos. Contudo, nem sempre foi assim; em alguns momentos,
essas palavras foram usadas com significados diferentes.

É natural a associação de expressões humanas, como a arte, com a


Figura 1
cultura. Obviamente, a cultura de um grupo não é representada apenas Edward Tylor
por pinturas ou esculturas. O termo expressões humanas indica uma ex-
tensão que vai além do campo artístico. Roque de Barros Laraia (2001,
p. 25) explica que o termo germânico Kultur já era usado no final do
século XVIII para “simbolizar todos os aspectos espirituais de uma co-
munidade”. A palavra francesa civilization era utilizada para se referir às
realizações materiais de um povo. Laraia (2001) explica que, em 1871,

Wikimedia Commons
Edward Tylor (1832-1917) sintetizou estas informações no vocábulo
culture, que se tornou corrente e utilizado até hoje. Para Tylor, o termo
cultura poderia incluir conhecimentos, arte, moral, leis, costumes e há-
bitos que adquirimos como membros de um grupo. Na visão de Laraia
(2001, p. 25), Tylor conseguiu abranger “em uma só palavra todas as
possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o ca-
Saiba mais
ráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de aquisição inata,
Pode-se definir a antropologia
transmitida por mecanismos biológicos”. Percebe-se que Tylor incluiu a como a área de conhecimento
arte no conjunto de realizações humanas que formam a cultura. que estuda o ser humano e suas
realizações. Tal definição é resulta-
No decorrer do século XX, essa primeira definição de cultura pensa- do da própria origem da palavra,
da por Tylor foi ampliada para dezenas de outras definições. Para nós, que é composta por duas raízes
gregas: anthropos, que significa
no entanto, é importante compreender que no interior da definição de
homem, ser humano, e logos que
cultura como realização humana, encontra-se a arte. Se vemos o mun- significa estudo ou compreensão.
do através da cultura que herdamos – que chamamos de herança cul- Esta é uma definição ampla, já
que outras áreas das ciências
tural –, vemos o mundo também através da arte. Por isso, trataremos humanas também estudam o ser
expressões humanas e realizações humanas como similares. Contudo, humano. A definição de antro-
por causa da especificidade da arte, utilizaremos a primeira. pologia se torna mais específica
quando se delimita seu objeto
É possível perceber que há outro campo para a estética, resultado de estudo para os costumes e
condicionamentos que compõem
da constatação de que a arte é também um fato cultural. Essa é a maior
a cultura de diferentes grupos.
contribuição da antropologia para a estética e abre um campo vasto Nesse caso, a antropologia está
para a pesquisa sobre a linguagem artística. Se a linguagem é o princi- relacionada com a dimensão
cultural. No entanto, é importante
pal fato cultural (no sentido de nos diferenciar dos animais e estabe-
lembrar que cultura não é defi-
lecer formas de vida social), a linguagem artística a acompanha. Se a nida apenas como conjunto de
cultura é também um conjunto de conhecimentos de um determinado crenças e costumes, mas também
pela arte e pela moral, entre
grupo, a linguagem – mais precisamente, a linguagem artística – com- outros aspectos.
põe um sistema de símbolos também adquirido e transmitido coleti-
vamente. Portanto, cultura, linguagem e arte constituem a essência

A arte nas diferentes culturas 55


do que pode ser chamado de vida social. Consequentemente, lingua-
gem e arte são manifestações da cultura.

Há nesse raciocínio a ideia de universalização da linguagem (e da


linguagem artística), e não particularização. A língua é algo particular,
vinculada a uma nação, a linguagem é universal. Por isto, um artista
de uma região específica do planeta pode apresentar suas obras na
Bienal de Veneza, por exemplo, e vê-las desfrutadas por milhares de
pessoas, independentemente de onde nasceram. A linguagem da arte
é também universal.

Tal afirmação parece um pouco romântica, por isso é preciso


analisá-la. A frase do historiador da arte Ernst Gombrich (2013, p. 37)
pode ajudar a compreendê-la: “ninguém sabe como a arte começou,
assim como não se sabe a origem da linguagem”. Vejamos, então, uma
das mais antigas imagens criadas pelo homem.

Wikimedia Commons
Figura 2
Pintura de bisão do Período
Paleolítico I

Bisão (cerca de 35.000 a.C.). Caverna de Altamira, norte da Espanha.


Pintura do Período Paleolítico, que começou há 2,5 milhões de anos e durou até cerca de 10.000 a.C.

É possível perceber que a arte é um dos conhecimentos que com-


põem a cultura, ainda que algumas vozes discordem, como a do diretor
Godard. Se a arte está em todo lugar e em todas as épocas, parece legí-
timo associá-la à cultura. O homem paleolítico, que pintou as paredes e

56 Estética e história da arte


o teto da caverna de Altamira, precisou de utensílios para criar suas ima-
gens. Esse homem que faz, que cria, que se preocupa em dar forma a
uma pedra para que ela tenha uma função, exibe sensibilidade na esco-
lha dos materiais (a pedra certa) e uma grande habilidade para desbas-
tar a pedra. Se pensou em Michelangelo desbastando o mármore, ou no
designer contemporâneo tentando unir forma e função, você não errou.

O jeito de desbastar a pedra na medida certa foi transmitido de


mestre para aprendiz. Isso ocorreu nos grupos paleolíticos, nas oficinas
de ofícios da Idade Média e nas Escolas de Belas Artes que surgiram a
partir do século XVIII. A arte é o melhor exemplo para se entender a
noção antropológica de cultura.

Do mesmo modo, pode-se analisar os aspectos formais das ima-


gens de Altamira. Há um senso de proporção apurado, há sombreado,
o que sugere volume. Os homens que pintaram aquela caverna de-
senvolveram técnicas para criar e fixar padrões cromáticos. Também
precisaram desenvolver um senso de observação apurado ou não con-
seguiriam criar imagens naturalistas como as de Altamira e de outras
cavernas. Pode-se afirmar que são trabalhos artísticos.

Há uma sensibilidade estética nos artistas que pintaram essas ima-


Saiba mais
gens? Não se sabe qual era a finalidade delas. Especula-se que foram
É possível encontrar também a
criadas para fins religiosos. Pode-se, contudo, analisá-las esteticamen- expressão estudos visuais, pois
te. A aguda observação dos animais, por parte dos artistas, sugere a foi utilizada no início da insti-
intenção de copiar a realidade. Eles criaram representações que, pro- tucionalização desta nova área
de estudos nas universidades,
vavelmente, faziam parte do universo simbólico daquela sociedade. chamada cultura visual. Também
Não é pouco, se pensarmos que elas foram pintadas há 35.000 anos. está relacionada aos estudos
culturais, área interdisciplinar que
A cultura, portanto, engloba também formas simbólicas, como as se ocupa do estudo da cultura.
imagens artísticas, criadas há muitos anos, como as imagens da caver- No início dos anos 1990, era
possível encontrar programas de
na de Altamira. A relação do homem com as imagens é antiga e, por universidades americanas com o
causa delas, surgiram nas universidades americanas, a partir dos anos título Estudos Culturais e Visuais.
1980, cursos e seminários sobre um campo de estudos que passou Com o tempo, a expressão cultura
visual passou a ser mais utilizada.
a ser chamado de cultura visual. Os grupos de pesquisadores tinham O que as torna relevantes é o
como objetivo principal estudar a relação entre cultura e imagem. A estudo da cultura e sua relação
com as imagens. O termo imagem
noção de imagem, nesse caso, inclui aquelas que sempre foram estu-
substituiu pintura ou escultura
dadas pela estética e história da arte e, também, um grupo de imagens para valorizar a diversidade
que não tinha o mesmo prestígio acadêmico, como as publicitárias, his- de representações visuais que
encontramos no mundo.
tórias em quadrinhos, games, programas de TV.

A arte nas diferentes culturas 57


Ewa Studio/Shutterstock
Esse novo campo de pesquisas é interdisciplinar
e inclui também antropólogos, sociólogos, pesqui-
sadores da área de história e cinema, entre outros.
Nele, a imagem tem um papel central. A diferença
em relação à estética e à história da arte é a amplia-
ção da noção de imagem. Agora, todas as imagens
são objetos de pesquisa e não apenas aquelas acei-
tas como artísticas. Assim, uma imagem não pre-
cisa mais ter apenas valor estético, mas também
um papel no âmbito da cultura, como definida no
começo desse capítulo.

A Mona Lisa talvez seja a imagem mais fotogra-


fada da história da arte. É uma imagem que não
cessa de gerar mais imagens, as quais também são
objetos de pesquisa da cultura visual, pois, por vi-
sual, entende-se também a imagem digital. As possi-
Figura 3
Grupo de visitantes bilidades abertas pela nova disciplina são enormes. É
fotografando a Mona Lisa mais um desdobramento do movimento que começou no século XVIII
no Museu do Louvre em
fevereiro de 2015 com a abertura de várias áreas de estudos dedicados à arte e à imagem.

3.2 O vínculo entre arte e cultura


Vídeo O período neolítico marca uma revolução que modificou a vida de
todos, nos transformando em homens hábeis em criar artefatos sofis-
ticados para a nova vida que surgia. Com o fim do Paleolítico, aproxi-
madamente entre 10.000 e 5.000 a.C., segue-se o Neolítico, quando o
homem abandonou a vida nômade de caçador e coletor de alimentos
para se estabelecer em locais apropriados para plantar e colher. Por
causa disso, precisou compreender a natureza e transformar esse mo-
Curiosidade
mento em um dos mais revolucionários da história. Ele precisou mar-
A invenção da cerâmica prova-
car o tempo e as estações e construir utensílios; dominar o processo de
velmente aconteceu por acaso,
quando se descobriu que era produção da cerâmica – o primeiro processo de indústria que se tem
possível endurecer o barro com o notícia – para armazenar água ou sementes.
fogo. Isto permitiu a substituição
de vasilhas feitas de pedra ou Os objetos do período neolítico que conseguiram sobreviver são
madeira. Conseguiu-se, assim, tratados hoje como objetos de arte e contemplados em museus, mas
certa independência da pedra,
um material mais difícil de lidar. sabe-se que tinham funções utilitárias. Por que transformamos um re-
cipiente pré-histórico em objeto de arte?

58 Estética e história da arte


Figura 4 Figura 5
Vaso neolítico, aproximadamente 5.000 a.C. Fragmento de vaso, aproximadamente 4.000 –
3.000 a.C.

Fragmento de vaso. Aproximadamente 4.000 – 3.000 a.C. Metropolitan


Vaso neolítico, argila, aproximadamente 5.000 a.C. Museu da Cidade de Praga. Museum of Art, Nova York.

A relação com esses objetos é de outra natureza. O sentimento es-


tético que experienciamos ao contemplar um vaso de 6.000 anos não
se resume às nossas sensações. A classificação abaixo poderá ajudar
na compreensão da transformação pela qual a estética está passando.

1 Estética
artística
Derivada da nossa
experiência com os
2 Estética
natural
Estabelecida por filósofos
do século XVIII, como
3 Estética
cultural
Baseada na noção de
cultura da antropologia,
objetos de arte. Kant; refere-se à nossa extraída do conjunto de
experiência e fruição com o expressões humanas, da
belo natural. qual a arte faz parte.

Um dos museus mais visitados do mundo, o Metropolitan Museum


of Art, de Nova York, possui um departamento de arte antiga, no qual
conta com objetos do período Neolítico. A frase que abre seu site Site
oficial é a seguinte: “experimente 5.000 anos de Arte no Met”. Essa Visite o site oficial do
frase de divulgação demonstra concordância com a proposição de Metropolitan Museum of Art
que artefatos culturais estão no grupo de expressões humanas que (Nova York). Disponível em:
https://www.metmuseum.org/.
chamamos de arte. Quando um antropólogo estuda as técnicas e os Acesso em: 30 mar. 2020.
artefatos de um determinado grupo, ele chama de cultura. Logo, o
resultado dessas técnicas é um artefato cultural, que condensa, entre
outras coisas, o passado de nosso grupo e o de outros grupos.

A arte nas diferentes culturas 59


Agora é possível responder à seguinte pergunta: qual a razão de
Grécia
nosso interesse por esses objetos antigos? Mesmo que não sejamos

1635
antropólogos, estamos inclinados a vê-los como obras de arte e que-
Criação da Escola de Belas remos colecioná-los. Este desejo é fruto de um vínculo com o objeto
Artes de Paris.
que tem como origem um prazer estético ou não, pois poderá ser

1640 – 1688
apenas um investimento econômico em algo que em algum momento
Revolução Inglesa se valorizará. No entanto, a devoção a objetos antigos que passaram
a fazer parte da história da arte não é recente. Ela ganhou destaque
1677
O Salão Parisiense passou a ser no período que chamamos de estético, a partir do século XVIII, com as
aberto ao público anualmente.
primeiras escavações arqueológicas, a criação da estética, da crítica
1698 – 1777
de arte e dos museus. Neste momento, nasceu também a ideia de
Desenvolvimento do motor
a vapor. patrimônio cultural, a noção de bens materiais ou simbólicos de um
determinado grupo.

1735 Isto não impediu, contudo, que as coleções privadas continuassem


Baumgarten cunha o termo
estética em sua tese. a existir. Os grandes leilões demonstram que o desejo de possuir um
objeto artístico num local preparado para este fim, com ou sem expo-
sição pública, sempre existirá. A sensação de que nenhuma coleção é
1750
Lançamento do Tratado completa faz com que o colecionador se aventure a dinamizar cada vez
chamado Estética.
mais seu acervo. Isto também ocorre com os museus públicos.
1763 Esta é uma possível explicação sobre nossa atração por objetos do
Publicação de História da Arte
Antiga, de Johann Joachim período Neolítico. Não é por acaso que a arqueologia, como ciência,
Winckelmann.
nasceu também com a estética e com os museus. Ela lida com proces-
1768 sos de escavação e com objetos cuja compreensão precisa de aborda-
Criação da Real Academia de
Londres. gens interdisciplinares, por isso, o estudioso da estética e história da
arte, muitas vezes, é chamado. Não se trata apenas de objetos mate-
1776 – 1783
riais, mas objetos artísticos e, portanto, estéticos.
Revolução Americana

Um exemplo de colecionador é Sigmund Freud (1856-1939). Esse


1789 – 1799 fato surpreendia até seus pacientes, que não se sentiam em um consul-
Revolução Francesa
tório, “mas no gabinete de um arqueólogo”, conta Janine Burke (2010,
p. 11). Freud chegou a ter mais de dois mil itens em sua coleção de
vasos, estátuas, pedras etc.
1907
Picasso Freud demonstrava ter consciência do amor que sentia por cada
objeto de sua coleção. Apesar do amor pelos objetos artísticos ou cul-
turais ser uma explicação lógica, toda coleção oferece várias leituras.
Burke (2010) apresenta algumas para a coleção de Freud. Uma de-
Contemporaneidade las chama atenção: seu colecionismo seria um exercício de estética.

60 Estética e história da arte


Freud nunca escondeu suas preferências artísticas: preferia obras do Saiba mais

passado. Fugia dos artistas do modernismo que queriam contatá-lo, Em 1764, Johann Joachim
Winckelmann publicou História
seduzidos pelas ideias psicanalíticas. Escreveu livros sobre Leonardo
da arte da antiguidade – uma
da Vinci e Michelangelo, e sempre associou a psicanálise à arqueologia das obras mais importantes
por causa da palavra escavação, que relacionava, metaforicamente, ao da história da arte –, em que
defende que a arte grega é a
seu próprio trabalho de psicanalista. origem de tudo. Ao contemplar
tantas obras da antiguidade, em
Artigo
Roma, percebeu a inspiração nas
fontes gregas. Também valorizou
https://revistacult.uol.com.br/home/freud-e-a-arte/ a estética como o alicerce para
uma nova forma de sabedoria.
O artigo Freud e a arte, publicado na Revista Cult, analisa relatos do pai da Contribuiu, assim, para a união
psicanálise sobre o modo particular que ele utilizava para observar obras de de três saberes que emergiram
arte, em especial do campo da literatura e das artes plásticas. No texto, é apre-
no século XVIII: a estética, a
sentado como, ao contribuir inconscientemente para a formulação do que mais
história da arte e a arqueologia.
tarde viria a ser chamado de estética da recepção, o próprio Freud confirma a
relação estreita entre a psicanálise e a crítica contemporânea das artes.
A estética de Winckelmann se
baseava na imitação dos gregos,
Acesso em: 6 mar. 2020. mas não em sua cópia. Dizia
que bastava seguir o cânone de
O acervo de Freud foi transferido para Londres, quando precisou Policleto, “uma regra perfeita
da arte” (1975, p. 40). Suas
se exilar após a perseguição dos nazistas em 1938. A casa na qual vi-
reflexões estéticas nasceram
veu o último ano de vida foi transformada no Museu Freud de Londres de seu contato pessoal com as
(Figura 6). Assim como o Museu Freud de Londres, grandes museus obras, muitas vezes quando
eram descobertas. Por isso, ele é
começaram com empenho individual de colecionadores, por exemplo, associado à arqueologia.
o Museu de Arte Contemporânea (MAC), da Universidade de São Paulo,
fundado em 1963, após as doações dos acervos particulares de Ciccillo
Matarazzo (1892-1977) e Yolanda Penteado (1903-1983).
Wikimedia Commons

Figura 6
Estúdio de Sigmund Freud
com uma parte de sua
coleção

Site
Visite o site do Freud
Museum London e conheça
os objetos que compõem
o acervo pessoal de
Sigmund Freud. É também
uma oportunidade de
observar um exemplo de
amor à arte e à história da
arte, capaz de transformar
uma casa em museu.

Disponível em: https://www.freud.


org.uk/. Acesso em: 30 mar. 2020.

A arte nas diferentes culturas 61


Assim que chega ao museu, a Fonte, de Duchamp, é transfigurada
em objeto artístico pelo mundo da arte. O fragmento de um jarro neo-
lítico de argila torna-se objeto artístico e cultural quando o antropólogo
(ou o arqueólogo) o encontra e o leva também para o museu. Parece
simples, mas há outros aspectos que envolvem este processo de trans-
ferência: 1) a possibilidade de análise e conservação dos objetos; 2) a
criação de um vínculo entre o mundo de dentro e o de fora do museu,
significando que, sem o visitante, esses objetos não fariam sentido.
A crítica afirma que esses objetos não foram criados para provocar
apreciação estética. A defesa de uma antropologia da arte explica
que é possível analisar esteticamente artefatos produzidos por ou-
tros grupos, mesmo aqueles de 5.000 anos atrás. O antropólogo da
arte tratará do contexto no qual o artefato foi criado e como foi a
recepção pelo seu grupo social. Não fará nenhum julgamento. Com
a ampliação do estudo do fenômeno artístico, parece natural que
algumas noções sejam modificadas ou ampliadas. É o caso do juízo
estético, que deixa de existir em certos casos, como o dos itens cul-
turais transferidos aos museus.

Livro Será útil analisar os comentários críticos de Teixeira Coelho (2008,


p. 17), para quem “nem tudo é cultura”. Ele também aponta para um
fato: a cultura deixa de ser substantivo e passa a ser adjetivo. Ela
não é mais uma coisa, mas um conjunto de formas diferentes. Por
isso, falamos que algo é cultural. Além de uma igreja antiga ou um
vaso neolítico, há o patrimônio imaterial, como a dança, a linguagem
ou o comportamento das pessoas. Coelho (2008) repete a crítica
de Jean-Luc Godard: a cultura é apenas repetição da regra, ela não
consegue favorecer o desenvolvimento da exceção. A arte é a única,
entre os modos da cultura, que consegue não repetir a regra, sen-
do capaz de anular a impessoalidade e respeitar a individualidade e
O livro A cultura e seu a subjetividade. Ela é a única exceção cultural, tanto para o artista
contrário, do professor,
quanto para o espectador.
crítico e curador Teixeira
Coelho, traz uma visão crí-
Há outra diferença: o cultural é utilitário, mas a arte, não (COELHO,
tica da relação entre arte
e cultura, principalmente 2008). Essa questão é importante quando pensamos nos objetos antigos
a visão antropológica de sobre o qual tratamos, que podem ser vistos como documentos, da mes-
que cultura é tudo.
ma forma como a Mona Lisa, por exemplo. Todavia, como arte, a obra de
COELHO, T. São Paulo: Iluminuras/
Observatório Itaú Cultural, 2000. Leonardo não tem utilidade específica. Nesse sentido, os vasos antigos po-
Disponível em: https://www. dem ser vistos como documentos de uma época e, também, como objetos
itaucultural.org.br/a-cultura-e-seu-
inúteis, porém, artísticos. No museu, eles não comunicam nada, como a
-contrario. Acesso: 30 mar. 2020.
Mona Lisa. Caso contrário, eles seriam obras de cultura e não de arte.

62 Estética e história da arte


Por fim, para Coelho (2008), cultura é hábito,

Wikimedia Commons
arte é liberdade. Hábito, nesse caso, significa fazer
assim porque assim se faz, o modo usual de se fa-
zer algo, ou seja, a regra. A arte não faz concessões,
por isto é a mais pessoal de todas as criações cul-
turais. Cultura e arte, para Coelho (2008), não são a
mesma coisa, apesar da arte fazer parte da cultura.

Curiosidade
Você pode ter pensado: “novamente a Mona Lisa!”, mas ela não é uma imagem
qualquer. É um exemplo a que recorremos com frequência, pois tudo parece estar
concentrado nesta pequena tela. Até mesmo em um texto especializado, como
o de Teixeira Coelho, o autor a utiliza como exemplo. Isto sempre aconteceu. O
pintor e arquiteto Giorgio Vasari publicou, em 1550, o livro que é considerado
fundador da história da arte: Vidas dos artistas. Trinta e um anos após a morte
de Da Vinci, Vasari (2011, p. 448) escreveu: “quem quiser ver até que ponto a
arte consegue imitar a natureza, poderá compreendê-lo facilmente observando
aquele semblante, pois nele estão produzidas todas as minúcias que é (sic)
possível pintar com sutileza”. Depois de descrever cada detalhe da figura pintada,
Vasari comenta algo que reflete a preocupação de todos que a contemplam há
séculos: nesse retrato “há um sorriso tão agradável, que mais parece coisa divina
que humana, tão admirável por não ser diferente do natural”. Mona Lisa nos serve
e nos interroga há quinhentos anos.
DA VINCI, Leonardo. Mona Lisa, (1452-1519). Óleo sobre tela. 77 x 53 cm. Museu
do Louvre, Paris.

3.3 Arte como construção,


Vídeo conhecimento e expressão
Luigi Pareyson (1918-1991) nasceu no norte da Itália e durante 21
anos foi professor de estética na Universidade de Turim. Chamou sua
teoria de estética da formatividade. Sua preocupação é a experiência
estética, mas também com a experiência do artista, ou, mais precisa-
mente, com o “ato de fazer arte” (PAREYSON, 1993, p. 11). Arte é forma-
tividade, ou seja, um modo de fazer que, enquanto se faz, inventa-se o
modo de fazer. Produção é, ao mesmo tempo, invenção.

Será interessante analisar uma teoria que se propõe, também, a


investigar a experiência estética do ponto de vista daquele que cria a
obra. Há algo, no entanto, mais sutil no pensamento de Pareyson: a
partir da análise de como o artista criou sua obra, chega-se à obra pro-
priamente dita. Ou seja, ao analisar o modo como o artista lidou com

A arte nas diferentes culturas 63


1 1
a matéria , a técnica que utilizou, o tema que escolheu, onde estudou
Aquilo que é físico na criação de etc., chega-se ao núcleo da obra, que se revela na forma. Entretanto, é
uma obra de arte: 1) tipos de
a partir da matéria que a forma será verdadeiramente forma. A matéria
tinta ou outra substância que
possa conferir cor; 2) o suporte, física é parte constitutiva da arte.
representado por papéis, telas
O caráter formativo está associado a tudo que fazemos, por isso,
ou qualquer outro material que
sirva como base física; 3) outros pode-se dizer que há um caráter estético em todas as nossas experiên-
materiais que o artista resolva cias. Pareyson (1993) diz que existe arte em tudo que fazemos, ou me-
aplicar sobre o suporte.
lhor, precisa-se de arte para se fazer qualquer coisa. Ele chama isso de
“fazer com arte”. Em tudo há exigências de arte: da mais simples criação
até às maiores invenções. Assim, qualquer obra bem-feita é sempre bela.

Ver o “artístico” (ou o estético) em todas as ações humanas não signi-


fica diminuir a autonomia e especificidade da arte. Pareyson (1993, p. 25)
quer dizer que toda ação humana exige “força produtiva e capacidade
inventiva”, isto é, produção e invenção. No entanto, diferente de outras
ações, a arte procura a forma por si mesma, sem a intencionalidade das
coisas práticas.

Alfredo Bosi, professor e crítico literário, percebeu três momentos


decisivos do processo artístico na obra de Pareyson, que podem ou não
ocorrer simultaneamente: o fazer, o conhecer e o exprimir. Ele os cha-
mou, também, de três vias da reflexão estética (BOSI, 2005). Os títulos dos
três capítulos de seu livro Reflexões sobre a arte são inspirados nestas três
vias: 1) arte é construção; 2) arte é conhecimento; 3) arte é expressão.

Bosi (2005) começa o primeiro capítulo lembrando a definição de


Pareyson: a arte é um fazer. Um fazer que transforma a matéria forne-
cida pela natureza e pela cultura (o papel da cultura e sua relação com
a estética retornam com frequência). Ele lembra também que qualquer
atividade humana pode ser chamada de artística.

É um bom momento para a discussão sobre a técnica, no sentido


qualitativo, ou seja, no sentido de perícia, destreza, habilidade. Para Pa-
reyson (1993), inventamos e produzimos o tempo todo: no campo mo-
ral, nos pensamentos e nas criações artísticas, que exigem uma técnica,
seja para pintar ou escrever um poema. Lembramos que techné é como
os gregos chamavam o jeito irretocável de fazer as coisas. O próprio
artista é o conteúdo da arte, diz Pareyson (1993, p. 30), pois aquele que
faz arte é uma pessoa única, já que “para formar sua obra, se vale de
toda a sua experiência, do seu modo próprio de pensar, viver, sentir, do
modo de interpretar a realidade e posicionar-se diante da vida”.

64 Estética e história da arte


O que é ser hábil ou perito? Antes de tudo, há preparo, treino, repeti-
ção e paciência para que o ápice seja a habilidade ou a perícia. O artista
assume seu ofício e como resultado descobre um repertório de soluções
que usa muitas vezes sem perceber. Pareyson (1993) chama de hábito
operativo. Uma pequena linha – certeira, segura e bela – é o resultado,
muitas vezes, de metros de telas e tintas usadas no processo de criação.

Esta é a dimensão construtiva da arte. Agora vamos analisar a “arte


como conhecimento”, como definiu Alfredo Bosi (2005). Será que é
possível separar conhecimento e construção? O exemplo de Cézanne
poderá ser didático.
Quem?
O filósofo Maurice Merleau-Ponty (2004, p. 123),
em seu ensaio “A dúvida de Cézanne”, conta que o ar- Paul Cézanne (1839-1906) nasceu na ex-comuna francesa
tista precisava de “cem sessões de trabalho para uma Aix-em-Provence, filho de um exportador de chapéus. Em
1861, mudou-se para Paris, com o objetivo de se dedicar
natureza-morta, cento e cinquenta de pose para um somente à pintura. Participou da primeira exposição de
retrato”. Pode-se chamar esse esforço de Cézanne de impressionistas, em 1871, mas aos poucos, se separou do
grupo. Em 1906, o pintor e crítico Roger Fry cunhou a palavra
construtivo, no sentido que Pareyson usa formativi-
pós-impressionismo para se referir a um grupo de artistas que
dade. A palavra construção carrega em si uma carga buscaram superar o impressionismo. Nesse grupo estariam
simbólica de grande potência: fabricar, criar, inventar Cézanne, Van Gogh e Gauguin. Em um ensaio de 1917, Fry
escreveu que Cézanne inaugurou a maior revolução artística
e outras muitas palavras podem descrevê-la. É difícil
desde que “o impressionismo greco-romano convertera-se,
separá-la da criação artística. Merleau-Ponty (2004, p. de maneira inevitável, em um formalismo bizantino” (2002,
123) descreve assim o esforço de Cézanne: “a pintura p. 49). Fry se refere ao modernismo artístico que começa com
Cézanne, manifesta-se de forma exuberante com Picasso e
foi seu mundo e sua maneira de existir. Ele trabalha avança durante o século XX.
sozinho, sem alunos, sem admiração por parte da

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família, sem estímulo por parte da crítica”. Chegou a
duvidar de sua vocação.

O filósofo explica como Cézanne seguiu a fatura im-


pressionista ao desenhar com as cores, diretamente na
tela. Desenho e cor não se distinguem mais. O Renas-
cimento valorizava o desenho, assim como as escolas
acadêmicas que vieram a seguir. O aluno passava os
primeiros anos da academia desenhando sem parar.
Os impressionistas aboliram o hábito de se fazer es-
boços, o desenho era feito com a cor aplicada direta-
mente na tela. Este procedimento alterou um cânone,
pois o desenho passou a ser resultado da cor. Antes
CÉZANNE, Paul. Autorretrato com fundo rosa, 1875. Óleo sobre tela,
se desenhava na tela, geralmente com carvão e depois 66 cm x 55 cm. Coleção privada.
cada um dos espaços era preenchido com a cor.

A arte nas diferentes culturas 65


De olho na arte

O impressionismo, que aconteceu entre 1860 e

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1880, é considerado o primeiro movimento moder-
no. Perceba que tratamos a arte renascentista como
a primeira revolução moderna nas artes visuais. A
razão é o espaço renascentista, ainda utilizado como
modelo, e é onde a perspectiva e as proporções são
empregadas como regras. Não foi diferente com
o impressionismo, que se mostrou revolucionário
não só ao começar a alterar (não em destruir) a
perspectiva, mas também em outros aspectos,
como a negação da mimese, provocando mudança
brusca na relação com o espectador, acostumado a
ver o quadro como uma janela para o mundo, uma
cópia da realidade.
O nome impressionismo define a tentativa do artista
em captar a impressão visual daquilo que vê. Esta MONET, Claude. Impressão, sol nascente (1872), 48 x 63 cm, Museu Marmottan, Paris.
liberdade em pintar o objeto “da forma que se está
vendo” não foi recebida de forma positiva. O advento da tinta industrial, vendida em tubos, permitiu ao artista impressionista pintar ao
ar livre. Antes, a preparação das tintas, a partir de pigmentos, era realizada nos ateliês, o que dificultava o uso externo. A liberdade para
aproveitar a luz natural foi um dos ganhos. As possibilidades cromáticas eram tão grandes que esses artistas se permitiram pintar uma
mesma paisagem várias vezes, em diferentes momentos e horários. Não foi só uma nova maneira de pintar, mas de ver. O subjetivismo
romântico atingiria o ápice.

Merleau-Ponty (2004, p. 130) explica que deve ser


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assim, “se quisermos que o mundo seja mostrado


em sua espessura, pois ele é uma massa sem lacu-
nas, um organismo de cores”. Se o artista quer ex-
primir o mundo, o artista precisa lidar com o todo
e juntar cores, linhas, contornos. Sem querer, ante-
cipamos o terceiro momento do processo artístico.
Como Bosi (2005) afirmou, estes três momentos po-
dem ocorrer simultaneamente. É o caso de Cézanne,
que meditava uma hora em frente à tela, antes de
iniciar o trabalho. A imagem, então, passava a ser
construída pelo artista.

Cézanne representa muito bem a simultaneidade


do fazer, conhecer e exprimir. Ele inaugurou uma
nova era e influenciou outra revolução, a de Picasso.
Pintou várias vezes a Montanha Santa Victória, como
se quisesse provar que a contemplação estética do
CÉZANNE, Paul. Retrato de Gustave Geffroy. (1839-1906). Óleo sobre tela. 110 cm x
89 cm. Museu d’Orsay, Paris. belo natural não precisará se transformar somente

66 Estética e história da arte


em imitação ao ser transportada para a tela. A paisagem quase geomé-
trica, a rapidez e irregularidade das pinceladas (para cima, para baixo e
para os lados) resumem as preocupações estéticas de Cézanne.

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Claude Monet (1840-1926), contemporâneo de Cézanne, também CÉZANNE, Paul. Montanha Santa Victoria vista
de Les Lauves (1902-1906). Óleo sobre tela.
pintou uma mesma paisagem várias vezes. Não era um mero exercí- 63,5 cm x 83 cm. Kunsthaus, Zurique, Suiça.
cio visual. Entre 1892 e 1893, Monet pintou dezoito vezes a fachada
da Catedral de Rouen, em diversos horários. Quando a luz se altera-
va, o artista começava a pintar outra tela. É a construção de um ins-
tante, aquele em que o olhar do artista percebe a transição da luz no
decorrer de seu trabalho. Pode-se perguntar: há imitação da realidade
no trabalho de Monet? É uma pergunta provocativa, apenas para mos-
trar o apagamento dos contornos da Catedral de Rouen e, o que é mais
inovador, a diluição de sua forma. Não se pode afirmar que é uma obra
abstrata, mas Monet, com o objetivo de retratar a luminosidade, pare-
ce dissolver a imagem. Não é, portanto, mera imitação.

A arte nas diferentes culturas 67


Wikimedia Commons

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MONET, Claude. A Catedral de Rouen – Efeito matinal (Harmonia Branca), 1893. MONET, Claude. A Catedral de Rouen – Fachada (Pôr do sol). (1892-1894). Óleo
Óleo sobre tela. 106 cm x 73 cm. Museu d’Orsay, Paris. sobre tela. 100 cm x 65 cm. Museu Marmottan Monet.
Curiosidade Monet não se preocupava com o cânone da representação exata da
Em 1893, Monet se instalou em Catedral de Rouen, nem Cézanne se preocupa em representar a Montanha
um quarto alugado, em frente
Santa Victória como ela é. O caráter subjetivo é acentuado pela liberdade
à Catedral de Rouen, de onde
podia ver sua fachada. Isto o construtiva dos dois artistas. É o jeito que encontraram para exprimir, no
ajudou a pintar mais de uma tela sentido de revelar, a montanha e a catedral. É preciso conhecê-las. Cons-
durante o dia, conforme a luz
trução, conhecimento e expressão se misturam mais uma vez.
mudava. Não foi a primeira série
de Monet, que parecia fascinado A teoria que apresenta a arte como expressão das emoções do artista
pela possibilidade de pintar essas
mudanças de luz, e, também, nasceu no período do romantismo (lembramos que ele é um pouco ante-
pela possibilidade de pintar de rior ao impressionismo), a partir das críticas à noção de imitação. Cézanne
uma vez, com pinceladas rápidas. e Monet são exemplos do abandono da ideia de se copiar a natureza com
Segundo Rewald (1991), as
séries de Monet fizeram sucesso exatidão. Há, neste caso, uma valorização da arte e do artista como al-
público, mas receberam críticas guém especial que consegue tornar visível o que nem sempre consegui-
de especialistas e dos próprios
mos ver. Pareyson (1997), contudo, acredita que a arte não seja somente
companheiros. Um dos críticos
das séries, o pintor Armand expressão, pois há o caráter formativo da arte, que caracteriza o próprio
Guillaumin (1841-1927), criticou fazer artístico. Pareyson lembra que a arte é também invenção. “Ela é
a “absoluta falta de construção”
um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer”
de Monet. É preciso tempo para
se compreender um artista. (1997, p. 26). Mais que exprimir, a arte cria, inventa, descobre. Assim, para

68 Estética e história da arte


Pareyson, ela não é só expressão, conhecimento ou construção (fazer),
mas a simultaneidade desses três momentos do processo artístico. A arte
é expressiva porque é forma.

Pode-se concluir que os problemas estéticos se resolvem com as


próprias ações dos artistas. A liberdade formal, conforme a terminolo-
gia de Pareyson, tem como exemplos Cézanne e Monet. A imitação é
questionada; arte não é cópia. Nem da natureza, nem da cultura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No texto lido pelo diretor Jean-Luc Godard em seu pequeno filme, há
uma lista daquilo que considera cultura: cigarro, computador, camisetas,
TV, turismo, guerra. Na lista de artistas estão escritores, músicos, pintores
e diretores de cinema. Lá estão Dostoiévski, Mozart, Cézanne, entre ou-
tros. Pode-se interpretar o texto da seguinte forma: arte é a terapia contra
todos os problemas do mundo. Godard separa arte e vida.
Contudo, ultrapassar esta separação ajudará na superação de outra
divisão: a divisão entre cultura e arte. A obra de arte será o agente destas
superações. A ampliação dos limites da estética também será útil nesta
tarefa. Compreender as três vias de reflexão estética (o fazer, o conhecer
e o exprimir), mesmo com discordâncias, ampliará o repertório de análi-
ses da obra de arte, das imagens e daquele que inventa e cria, o artista. O
empenho contra as separações (cultura e arte, arte e vida, obra e artista)
parece ser o núcleo do debate estético contemporâneo.

ATIVIDADES
1. Defina cultura do ponto de vista antropológico.

2. Sobre o vínculo entre cultura e arte, Teixeira Coelho afirma que o


cultural é utilitário, a arte, não. O que isto significa?

3. Defina o que é formatividade para Luigi Pareyson.

REFERÊNCIAS
BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 2005.
BURKE, J. Deuses de Freud: a coleção de arte do pai da psicanálise. Trad. de Mauro Pinheiro.
Rio de Janeiro: Record, 2010.
COELHO, T. A cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São Paulo: Iluminuras/
Itaú Cultural, 2008.

A arte nas diferentes culturas 69


GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Trad. de Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: LTC,
2013.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009.
LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
MERLEAU-PONTY, M. A dúvida de Cézanne. In: MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o espírito. Trad.
de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
PAREYSON, L. Estética: teoria da formatividade. Trad. de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis:
Vozes, 1993.
PAREYSON, L. Os problemas da estética. Trad. de Maria Helena Nery Garcez. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
REWALD, J. História do Impressionismo. Trad. de Jefferson Luís Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.
RUTHES, V. R. M. Introdução à antropologia teológica. Curitiba: InterSaberes, 2018.
VASARI, G. Vida dos artistas. Edição de Lorenzo Torrentino, Florença, 1550. Organização
Luciano Bellosi e Aldo Rossi. Trad. de Ivone Castilho Bennedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2011.

70 Estética e história da arte


4
O conceito de
manifestação cultural
A palavra manifestação sugere alguns significados simbólicos. É
difícil não a associar à cultura ou à arte. Manifestação lembra reve-
lação ou expressão, palavras que vinculamos à descoberta de algo.
Outra aproximação é com a palavra desvelar, que significa tirar o
véu, mas também pôr à vista. É o que a arte faz de forma específica
(porque é especial, individual); e a cultura, de forma geral (porque
é universal, totalizante). Contudo, ambas se manifestam e se ex-
põem de maneira corajosa.

4.1 O que é manifestação cultural


Vídeo Chamamos de cultura o conjunto de comportamentos, crenças, co-
nhecimentos, práticas, ideias – entre outros aspectos – de um grupo
social. As manifestações culturais revelam ou exprimem esse conjunto
de características da cultura. António Damásio (2018) se refere às se-
guintes manifestações da cultura: as artes, a investigação filosófica, as
crenças religiosas, as faculdades morais, a justiça, a governança política
e as instituições econômicas (mercados e bancos).

O autor também inclui as ideias, as atitudes, os costumes, as práti-


cas e as instituições no conjunto de manifestações da cultura, ou seja,
isso permite distinguir um grupo social. Portanto, quando se fala de
manifestações culturais, está se falando de manifestações da cultura. No
nosso caso, pode-se afirmar que a arte é uma manifestação da cultura.
Além disso, optamos pelo adjetivo cultural, por ser mais utilizado e por
deixar claro que uma manifestação cultural se refere a uma determina-
da característica da cultura.

Perceba que há uma tendência em pensar em uma “teoria antro-


pológica da arte” por causa da associação entre cultura e arte. Isso é

O conceito de manifestação cultural 71


novo. As teorias da arte, introduzidas pelos gregos, atingiram o ápice
no século XVIII e continuaram a dar frutos durante o século XX, e pare-
ciam suficientes para tratar da experiência estética e da obra de arte.
Por isso, será útil verificar como ocorreu a transição de uma estética do
espectador (na qual o ponto central é a recepção da obra de arte pelo
fruidor) para uma estética da obra de arte, cujo objeto de estudo não
é mais o sentimento de quem contempla, mas a própria obra. Tam-
bém veremos a passagem do termo obra para o termo imagem como
referência ao objeto de estudo dos pesquisadores atuais. O seguinte
diagrama mostra essa transição:

Espectador Obra Imagem

Saiba mais Immanuel Kant é o representante da teoria esté-


Teoria pode ser definida como modelo explicativo. Nesse tica que põe em foco o receptor. Para ele, é um movi-
sentido, uma teoria da arte é um conjunto de ideias que mento interno, de dentro para fora. Georg Friedrich
pretende explicar determinadas obras de arte. Por exemplo, a
teoria da arte como expressão. O problema com essa teoria está Hegel é um leitor de Kant que conseguiu ter ideais
em como explicar que toda obra de arte é expressão de alguma originais com base na análise que fez do pensamen-
coisa? Portanto, Anne Cauquelin (2005, p. 10) prefere teorias
to do mestre. Se Kant dá destaque ao sujeito, Hegel
da arte, no plural, pois “permite pensar na existência de uma
atividade contínua à qual diversos autores se dedicaram”. Essa destaca a obra de arte. Eis uma grande mudança.
noção de atividade contínua para a teoria da arte é forte, pois
Hegel se tornou professor da Universidade de
expõe o quanto a arte é capaz de despertar diversas reflexões.
Berlim em 1818, onde ministrou vários cursos, pu-
Wikimedia Commons

blicados após sua morte. Um deles, o de estética, foi


Aristóteles publicado por seu discípulo Heinrich Gustav Hotho,
elaborou a em 1835, que utilizou os cadernos do próprio Hegel
primeira teoria
da arte com uma e anotações de seus alunos.
reflexão sobre
a natureza e as No início de Lições sobre a Estética (1997), Hegel
regras da arte. afirma que seu curso é dedicado à estética, cujo
Infelizmente,
o Cânone objeto é o belo, mas seu âmbito é a arte, e tão
de Policleto, somente o belo na arte. O filósofo reconhece que
anterior, se
perdeu. a melhor expressão para suas preocupações é a
SANZIO, R. Escola de Atenas. c. 1511. filosofia da arte. Por isso, Hegel é considerado o “pai”
Afresco, 500 cm x 700 cm. Palácio
Apostólico, Vaticano (detalhe de dessa área de estudo. Em seguida, Hegel repete,
Aristóteles).

72 Estética e história da arte


com mais ênfase, que exclui o belo natural, pois o belo artístico está
acima da natureza. É uma de suas noções filosóficas sobre a arte.

Hegel, portanto, desloca os problemas da estética (como o belo) para


a obra de arte. Nesse momento, a estética passa a ser tratada como fi-
losofia da arte, já que se transforma em uma área de reflexão sobre a
arte. A partir de então, os teóricos deixaram de refletir unicamente sobre
a essência do belo e passaram a refletir também sobre a arte. Segundo
Adolfo Sánchez Vázquez (1999, p. 41), ocorre uma tendência a transfor-
mar a estética em “uma filosofia ou teoria que coloca a arte como centro
de sua reflexão”. A definição da estética como filosofia da arte também é
problemática, pois restringe o campo estético ao artístico.

Essa ênfase na obra de arte estabeleceu um modo de tratar as ima-


gens. Para Gombrich (1988, p. 57), Hegel é “o pai da história da arte”;
para Timmermans (2005, p. 139), Hegel “é o verdadeiro inventor da
estética moderna”. De fato, o estudo da arte não é mais o estudo do
belo em si, como em Platão, nem sobre o estudo dos nossos juízos a
respeito da beleza dos objetos, como em Kant. Hegel transforma uma
estética cheia de regras sobre como “ver” a arte em uma estética “aco-
lhedora”, que aceita todas as formas e dinâmicas interpretativas. De
acordo com Gombrich (1988), Hegel empreende a primeira tentativa de
examinar e sistematizar todas as formas de arte.

A influência de Hegel em teorias e historiadores posteriores é imen-


sa, principalmente na tentativa de se “reconstruir” (expressão de Gom-
brich) o espírito de época nas artes. O esforço hegeliano de construção
de uma “sequência histórica das artes” influenciou o próprio Gombrich.

Giulio Carlo Argan (1994, p. 17, grifo do original) escreveu que a arte
“não é um fato estético que tem também um interesse histórico: é um
fato que possui valor histórico porque tem um valor artístico, é uma
obra de arte”. Assim, a obra de arte de um grande artista é uma reali-
dade histórica como as grandes revoluções econômicas e políticas. Ela
pode, portanto, ser explicada historicamente. Há influência de Hegel
nos comentários de Argan, para o qual os parâmetros do juízo de valor
do passado – como o belo, a imitação perfeita da natureza, a confor-
midade aos cânones etc. – foram substituídos pelo parâmetro de juízo
de nossa cultura, a História. Assim, diz Argan (1994, p. 19, grifo do ori-
ginal), uma “obra é vista como obra de arte quando tem importância
na história da arte e contribui para a formação e desenvolvimento de

O conceito de manifestação cultural 73


uma cultura artística”. O reconhecimento da qualidade artística de uma
obra de arte precisa estar acompanhado de sua historicidade, ou seja,
as condições para fazer parte da história da arte.

A história da arte, para Argan, é especial, pois opera em um campo


próprio, o da arte, mas que acaba desembocando na “história geral da
cultura”. Uma parcela, portanto, dessa história geral da cultura é cons-
Saiba mais
truída pela arte.
A iconologia vem do grego
eikon: imagem, retrato; e logia: Veja que a palavra cultura já aparece em Argan. Não é uma exceção,
estudo. Para um dos maiores
veremos outros casos, como o empreendimento de Abraham Moritz
historiadores da arte do círculo
de Warburg, Erwin Panofsky Warburg, conhecido como Aby Warburg (1866-1929).
(1892-1968), o que separa
a iconografia da iconologia Gernain Bazin (1901-1990), em sua História da História da Arte (1989),
é a interpretação. A “leitura” explica o nascimento de uma “ciência” que acreditava no poder da ima-
iconográfica da obra é uma aná- gem, a iconologia. Na segunda metade do século XIX, em Hamburgo,
lise, ou seja, o estudo de cada
parte da obra (qual é o suporte, por decisão pessoal e fora das universidades, irá se formar um centro
qual é o período de realização, de pesquisas dedicado às artes visuais “pelas quais se procurará atingir
o que está representado etc.).
o conteúdo através da forma, considerando-se a obra de arte como
Já a “leitura” iconológica é
uma interpretação, a procura uma imagem cuja riqueza expressiva deverá ser revelada por uma aná-
do significado preciso da obra lise apropriada” (BAZIN, 1989, p. 177, grifo nosso).
estudada. Para interpretar, a ico-
nologia estuda a obra em seus Bazin está falando de Aby Warburg, que criou uma grande biblio-
contextos históricos e culturais. teca sobre história da cultura e da arte, mais tarde transformada em
O iconólogo trabalha como um
detetive. O método proposto Instituto Warburg, onde são ministrados cursos e conferências. Ernst
por Panofsky (1991) está no Gombrich, que foi seu diretor por muitos anos, e Erwin Panofsky, assim
artigo chamado “Iconografia e como tantos outros historiadores, formaram-se na instituição.
Iconologia: uma introdução ao
estudo da arte da Renascença”, O historiador da arte Robert Klein (1998) emitiu um dos comentá-
publicado no livro Significado
rios mais repetidos sobre Warburg: ele criou uma disciplina que “existe,
das Artes Visuais. Sobre esse
método, ele assim explicou: a mas não tem nome”, baseada em informações científicas e religiosas,
descoberta de valores simbóli- expressões simbólicas e artísticas, na astrologia e nos mitos.
cos do quadro, que podem ser
desconhecidos até pelo Essa “disciplina sem nome” tem o objetivo de estudar as obras de arte
artista, é o objeto baseando-se em um ângulo diferente, contrário ao formalismo, mais preo-
da iconologia em
ns

cupado com a forma e afastado do conteúdo. Warburg propôs um reper-


o
mo

oposição à
Wikimedia Co

iconografia, tório capaz de explicar imagens que acreditava serem também símbolos.
preocupada mais
com a iden- Warburg rompeu com a ideia de evolução histórica que era hege-
tificação e mônica desde o século XVIII. Desse modo, buscou identificar nas ima-
classificação
gens analisadas um modelo de história da cultura. Assim, a imagem
das imagens.
Figura 1 passava a ser um documento revelador de significados simbólicos que
Aby Warburg (por volta
de 1900)
exigiam o exame de forças sociais, morais e religiosas que nem sempre
se manifestam claramente.

74 Estética e história da arte


Warburg dizia que sua biblioteca era de “Estudos Culturais”. Isso de-
monstra uma de suas convicções, que era a inter-relação da imagem
com a religião, o culto e a cultura em geral.

Perceba que Warburg representa uma via diferente daquelas até


agora analisadas. Ele também antecipa a associação entre a imagem e
a cultura, que depois seria o núcleo da disciplina chamada Cultura Vi-
sual. Ao estudar a Renascença florentina, deparou-se com a operação de
“memória social”, o reviver de imagens da Antiguidade na arte posterior.
Para Warburg, há imagens preexistentes transmitidas pela memória.
Nas análises que faz de Botticelli, por exemplo, Warburg mostra como
esse artista incorporou recursos e elementos tomados da Antiguidade.

De olho na arte

Em sua tese de doutorado chamada O nascimento de Vênus e A primavera de Sandro Botticelli (1893), Warburg comparou as duas pinturas do
pintor renascentista, que tratam da mitologia grega, à literatura poética da Antiguidade, principalmente a poesia de Homero. Ele afirma que é
provável que Botticelli conhecesse a descrição de “O nascimento de Vênus”, narrada por Homero e nela tenha se baseado. Os hinos homéricos –
Warburg informa – foram publicados em 1488, tendo por base um manuscrito florentino. Por isso, ele acredita que os círculos humanistas de
Florença já conheciam essa versão.
Wikimedia Commons

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BOTTICELLI, S. O nascimento de Vênus. c. 1485. Têmpera sobre tela, BOTTICELLI, S. A primavera. c. 1480. Têmpera sobre madeira,
172,5 x 278,5 cm. Galleria degli Uffizi, Florença. 315 x 205 cm. Galleria degli Uffizi, Florença.

Em 1895, Warburg foi aos Estados Unidos estudar os rituais


dos hopis, nação indígena dos Estados Unidos. Lá, percebeu o vínculo
entre obra de arte e cultos mágicos. Ampliou, assim, suas preocupa-
ções com a cultura e a antropologia. Transformou sua biblioteca em
uma “biblioteca de imagens” que se relacionam umas com as outras. A
chamou de Atlas Mnemosyne.

Todo tipo de documentação faria parte desse Atlas, pois são úteis
para a compreensão do significado da arte em um determinado perío-
do ou de um determinado grupo, como os índios hopis.

O conceito de manifestação cultural 75


Figura 2 Nem sempre o objetivo de Warburg em estudar
Aby Warburg com índio hopi, em 1896. a imagem do ponto de vista da cultura foi bem re-
cebido. Carlo Ginzburg (1989) conta que o filósofo
Wikimedia Commons

italiano Benedetto Croce (1866-1952), autor do livro


Estética como ciência da expressão e linguística geral, de
1902, ao ler um livro de um pesquisador do Instituto
Warbug, afirmou “que a descoberta das alusões mi-
tológicas de uma pintura do Renascimento é irrele-
vante para os fins da fruição estética” (GINZBURG,
1989, p. 57). O problema que Ginzburg destaca é o
seguinte: uma pintura pode ser relevante para o his-
toriador, justamente por apresentar determinadas
relações culturais, e importante para o estudioso das
imagens, por ser rica em sua simbologia, mas pode
ser de pouca importância do ponto de vista estético.
Aí reside o mérito da relação mútua entre as diversas teorias da arte.
Resta ao pesquisador entender as diferentes abordagens e enriquecer sua
pesquisa com as diversas fontes. Apresentaremos mais pesquisadores a
fim de mostrar a diversidade de teorias sobre a relação entre arte e cultura.

Veja que o estudo desse vínculo é antigo. Jacob Burckhardt


(1818-1897) foi professor de história da arte na Universidade de Basileia
e na Universidade de Zurique. Foi publicada, em 1860, sua obra princi-
pal A Cultura do Renascimento na Itália, na qual apresentou a tese de que
o Renascimento marcou o período de descoberta do homem e do mun-
do. Sua preocupação em estudar conjuntamente arte e cultura coincide
com a preocupação de Warburg, que não foi seu aluno, mas enviou sua
tese doutoral para o professor. Para Burckhardt, a história da arte pode
se conectar a outras áreas e ampliar o conhecimento sobre o próprio
homem, sem perder, no entanto, a autonomia da disciplina.

Outro pesquisador, o historiador da arte Michael Baxandall (1933-2008),


que foi professor no Instituto Warburg, estudou a obra de arte com base
no ponto de vista da história social. Em seu livro O Olhar Renascente: pintura
e experiência social na Itália da Renascença, de 1972, defende a tese “de
que fatos sociais favoreciam o desenvolvimento de faculdades e hábitos
visuais característicos, que se transformavam por sua vez em elementos
claramente identificáveis no estilo do pintor” (1991, p. 9). Para tanto,
embasado em documentos contábeis, como contratos, cartas e registros,
Baxandall examinou a estrutura do mercado de pintura do século XV.

76 Estética e história da arte


A primeira frase de seu livro é significativa: “Uma pintura do século XV
é o testemunho de uma relação social” (BAXANDALL, 1991, p. 11). Por quê?
Porque havia um pintor, que criava o quadro, e outra pessoa, que o en-
comendava e podia dar o destino que quisesse à obra. Não havia como
fugir dessa dinâmica: alguém encomendava e exigia que fosse realizada
conforme suas especificações. Baxandall afirma que “o dinheiro tem uma
importância considerável na história da arte” (1991, p. 14). Havia também
artistas que trabalhavam para os príncipes e recebiam salários.

Baxandall procurou meticulosamente por documentos que não


eram utilizados com frequência pelos historiadores da arte, e concluiu
que o século XV, o século do Renascimento, foi uma época da pintu-
ra sob encomenda. A pesquisa realizada pelo historiador teve base na
contribuição do cliente, para mostrar que há uma relação econômica
que às vezes esquecemos que existe. Relação típica do século XV, mas
que ajuda a compreender o período renascentista de outra forma.

Essas abordagens demonstram o quão diversas são as teorias da


arte e como elas se completam.

4.2 A manifestação cultural sob


Vídeo o olhar dos artistas
Os pesquisadores sempre valorizaram os documentos produzidos
pelos artistas. Não apenas suas obras, mas cartas, diários, bilhetes,
fotografias, filmes – entre outros –, que foram e são utilizados, pois
ajudam a dar sentido à obra que estudamos e jogar
1
luz sobre detalhes que nem sempre são percebidos.
É o conjunto de documentos
Baxandall não conseguiria realizar sua pesquisa mantidos, com cuidado, por
1
sobre o Renascimento sem a existência de arquivos alguma instituição, para que
produzidos por artistas e clientes. possa ser consultado por pesqui-
sadores. Não estamos falando
Um arquivo tem vários propósitos: organizar, do artista contemporâneo que
utiliza a estratégia do arquivo
classificar, conservar etc. Sempre fez parte da his-
para criar suas obras, que junta
tória da arte. A Biblioteca e o Atlas da Memória fragmentos, que recolhe e os
(Mnemosyne) de Warburg são bons exemplos da conecta, ou desconecta, com
sensibilidade especial. Esse é
experiência do pesquisador com os arquivos. O
o artista-arquivista. A ideia de
Atlas de Warburg é constituído de 63 painéis com arquivo, utilizada neste livro,
cerca de mil imagens referentes à história da arte. objetiva auxiliar o trabalho do
pesquisador.
Warburg não pensava na história da arte como se-

O conceito de manifestação cultural 77


Filme quencial, mas como uma atividade de inter-relação, por isso, a con-
servação dessas imagens era necessária.

Trataremos, então, do que os artistas disseram. Será um bom exem-


plo de uso dos arquivos.

Começaremos com Michelangelo Buonarroti (1475-1564), um dos artis-


tas mais lembrados por quem aprecia a arte. Leonardo da Vinci e Vincent
van Gogh talvez rivalizem com ele, que está entre os artistas anteriores ao
século XVIII com maior número de documentos arquivados. Grande parte
de sua correspondência está preservada e permite compreender as obras
No filme Agonia e
que criou, como a pintura do teto da Capela Sistina, no Vaticano.
êxtase, o Papa contrata
Michelangelo para pintar Na carta de maio/junho de 1509, dirigida ao pai, Ludovico,
o teto da Capela Sistina,
no Vaticano, mas surgem Michelangelo (2009, p. 34) reclama das dificuldades financeiras em
conflitos entre os dois razão da falta de pagamento do Papa Júlio II, que havia encomendado
sobre a realização do
projeto. O núcleo do filme a obra: “Dedico-me a trabalhar tanto como posso. Há já treze meses
é a relação difícil entre o não recebo dinheiro do Papa”.
artista e o contratante.

Direção: Carol Reed. Estados Unidos; A relação entre Júlio II e Michelangelo reflete como os artistas li-
Itália: 20th Century Fox, 1965. davam com os contratantes. Em carta de outubro de 1512, também
ao pai, o artista informa que terminou o trabalho na Capela Sistina: “o
Papa ficou muito satisfeito, mas as outras coisas não saíram como eu
Wikimédia Commons

Detalhe da
Sibila Délfica

78 Estética e história da arte


esperava; a isso culpo os correntes tempos, que são muito contrários à
nossa arte” (2009, p. 39). A enigmática expressão de Michelangelo, “as
outras coisas”, pode ser interpretada de várias formas: os franceses,
que invadiram a Itália, e poderiam chegar a Roma; boatos afirmavam
que o artista falara contra os Médici, a família que comandava Florença;
as discussões que iniciara com o Papa Júlio II sobre a tumba que enco-
mendara anos antes; e o mal-estar causado com o roubo dos blocos de
pedra adquiridos em Carrara, que estavam na Praça São Pedro porque
o projeto da tumba de Júlio II não avançava. Um de seus biógrafos,
Martin Gayford (2015, p. 274), afirma que talvez “ele quisesse dizer que
ainda não lhe tinha sido pago o saldo de seus honorários de três mil du-
cados, razão pela qual teria de esperar até pouco antes do Natal”. Em
31 de outubro de 1512, a Capela Sistina foi aberta. Em fevereiro do ano
seguinte, Júlio II morreu. Uma série de idas e vindas e novos contratos
adiaram a conclusão da tumba para 1545.

Esse caso demonstra como a arte reflete momentos histórico-sociais.


Baxandall (1991) pretendia mostrar que a arte serve como material para a
história social. É importante lembrar que a arte é uma manifestação da
cultura. Assim, a relação de Michelangelo com o papa representa o que
era a vida social, religiosa e artística do período, que podemos resumir em

Detalhe do
Profeta Jeremias

MICHELANGELO. Teto da Capela Sistina. 1508-1512.


Afresco, 4.023 × 1.340 m. Palácio Apostólico, Vaticano.

O conceito de manifestação cultural 79


uma palavra: era a cultura da época. O uso de recursos documentais não
invalida a história da arte como história das obras de arte. Segundo a ex-
plicação de Argan (1994, p. 17), Michelangelo “viveu profunda e dramatica-
mente a crise religiosa do seu tempo e, sem levarmos em conta aquela
situação histórica, não podemos compreender os afrescos que pintou na
Capela Sistina”. Para Argan (1994), Michelangelo esta-
De olho na arte
va ciente da responsabilidade de seu trabalho no lu-
Gombrich (2013) explica que Michelangelo era
gar mais sagrado daquele momento. Mesmo assim,
considerado gênio pelos jovens estudantes de arte
e todos tentavam imitá-lo da melhor forma possível. assumiu uma posição. O artista sentiu que a crise
Como o mestre gostava de desenhar seus modelos
religiosa que Júlio II enfrentava, também era uma cri-
nas posições mais difíceis, os jovens achavam que
deveriam seguir o estilo. Os críticos não aprovaram se com a arte e a enfrentou como problema da arte,
essa maneira de se desenhar como Michelangelo
explica o teórico.
e passaram a se referir a esse período como
maneirismo. Classifica-se esse período entre 1520
Os temas da Capela Sistina, tão bem expostos
e 1600, entre o final do Renascimento e o início do
Barroco. Apesar dos comentários críticos, notam-se por Michelangelo, eram os mesmos da crise religio-
algumas características no maneirismo, possíveis de
sa da época: a gênese e o destino da humanidade, a
se levar em conta: a imaginação capaz de modificar
a figura, como faz El Greco (1541-1614), que não salvação ou a queda final, disse o historiador italiano
imita nem corrige a realidade. Portanto, nem todos
(ARGAN, 1994). Cinco anos depois, Martinho Lutero
os artistas posteriores a Michelangelo podem ser
considerados imitadores da maneira do mestre iniciou a Reforma Protestante, que, para autores
florentino pintar. Curiosidade: o capítulo do livro de
como Peter Marshall (2017), criou a Europa moder-
Gombrich que trata do maneirismo tem o seguinte
título: Uma crise da arte: Europa, final do século XVI. na. A relação da Igreja com os artistas seria modifi-
cada. Da Contrarreforma, movimento de reação da
Wikimedia Commons

Igreja contra as ideias de Lutero, surgirá o Barroco,


um novo período da cultura europeia. Um novo câ-
none artístico surgirá. Desse momento em diante, os
artistas foram obrigados a serem mais disciplinados.

Esse tipo de análise foi possível por causa dos


documentos usados como fontes pelos historiadores
da arte. Para Gayford (2015), é possível observar que
Michelangelo antecipa as preocupações maneiristas
e barrocas.

Esse relato visa ilustrar o uso de fontes como cartas,


entrevistas, diários, fotografias e textos dos próprios
artistas na interpretação das obras de arte. É como se
o artista explicasse seu trabalho. As informações que
dispomos sobre a pintura do teto da Capela Sistina,
além da própria obra em si, são frutos dessas fontes.
THEOTOKÓPOULOS, D. – El Greco. O Espólio – O desnudamento de
Cristo.1577. Óleo sobre tela, 280 x 170 cm. Sacristia da Catedral de Ajudam a compreendê-la, principalmente, como
Toledo, Espanha.
manifestação cultural de um determinado período.

80 Estética e história da arte


Muitas vezes, a própria obra é capaz de ajudar a explicar o terreno
no qual foi criada, mas não é seu objetivo, pois ela é, antes de tudo,
uma obra artística e, portanto, estética. Isso é uma questão antiga: a
obra de arte é um documento da cultura de sua época? Para responder
a essa pergunta, daremos voz a mais artistas que deixaram escrito, de
alguma forma, o que pensavam sobre a arte, a criação ou o mundo em
que viveram. Perceberemos que, algumas vezes, a opinião é apenas
intuitiva, mas certeira em “iluminar” determinados assuntos.

O mais antigo tratado de arquitetura, chamado Os Dez Livros de


Arquitetura, foi escrito pelo arquiteto e engenheiro militar Vitrúvio.
É o único tratado arquitetônico da antiguidade que chegou até nós.
Foi escrito, provavelmente, entre os anos 30 e 26 a.C., e fornece
informações sobre a arquitetura grega. Esse tratado foi recuperado
pelos renascentistas, que o utilizaram como apoio para suas teses
artísticas. No Capítulo I do Livro III, Vitrúvio (2004, p. 19) escreveu:
“Pois não se pode templo algum, sem simetria e proporção, ter uma
disposição harmoniosa se não apresentar a exata proporção dos
membros de uma pessoa modelada”. Esse cânone, que já existia antes
mesmo de Vitrúvio, definiu a beleza dos corpos e se manteve até o final
do século XIX. Era o cânone das Academias de Belas Artes.

A ligação entre a bela arquitetura e as proporções do homem tam-


bém se manteve durante séculos. Essa noção fazia parte da cultura
grega, resgatada pelos renascentistas e incorporada pelas gerações
de artistas posteriores. A noção de harmonia influenciou Vitrúvio e to-
dos os aspectos da cultura grega, não apenas a arte. Werner Jaeger
(1986, p. 142) afirma que é incalculável a influência da ideia de harmo-
nia na vida grega. Essa influência é visível na arquitetura, na poesia,
na retórica, na religião e na ética. Ou seja, existe uma norma sobre o
proporcional que não pode ser transgredida. Jaeger chama de “força
normativa da harmonia”, uma força que fez parte da cultura grega e
modela até o comportamento do homem grego, que deve ter a medida
certa. Vitrúvio não escreveu seu tratado por acaso.

O pesquisador, portanto, tem um universo documental produzido


por artistas, como as pequenas incisões nos vasos neolíticos que possi-
bilitaram transformar esses objetos utilitários em objetos de contem-
plação. O gesto inventivo de decorar um objeto de argila antes de ser
queimado ou o hábito de um artista do século XX de descrever suas
inquietações em um diário, oferecem importantes informações aos es-

O conceito de manifestação cultural 81


tudiosos da arte. Continuaremos a dar voz a esses artistas que, por al-
gum talento especial, conseguiam refletir não só sobre seus ofícios,
mas também sobre a cultura da qual faziam parte. É possível verificar
que a relação de Michelangelo com a cultura renascentista foi marcada
por conflitos típicos desse período. Verificamos que as teses de Vitrúvio
são semelhantes às da cultura grega.

Retornamos, agora, ao período renascentista para apresentar


o primeiro texto sobre a pintura de toda literatura dedicada à arte.
Esse texto foi escrito pelo artista, arquiteto e teórico da arte Leon
Battista Alberti (1404-1472), que nasceu em Gênova, na Itália. Ele
escreveu Da Pintura, em 1435, no período de ascensão das descobertas
Figura 3 renascentistas, e queria que seu livro, dedicado ao arquiteto Filippo
Filippo Brunelleschi. Domo
da Catedral de Florença
Brunelleschi, fosse lido também pelos artistas. Segundo Gombrich
(c. 1420-1436). (2013), o arquiteto Brunelleschi era o líder do grupo de jovens artistas
florentinos que estavam revolucionando a arte, e foi fundamental
para a descoberta de um procedimento que também usamos com
frequência ainda hoje: a perspectiva.

Gombrich (2013, p. 170) explica: “Foi Brunelleschi que muniu os


mm artistas dos instrumentos matemáticos para solucionar tal problema
mmm
mmm
mm – e o entusiasmo despertado em seu círculo de amigos pintores deve
mm
mm

ter sido imenso”. Alberti foi um daqueles que ficou fascinado pelas
mm
mm
mm

descobertas de Brunelleschi. Seu livro foi escrito quando se en-


contrava em Florença. É difícil separar as ideias contidas no livro
e a renovação artística pela qual a cidade passava, pois era das
mais prósperas da Europa. Burckhardt (1991, p. 211) esclare-
ce que não havia as mesmas barreiras que existiam em ou-
tras partes. Cidades como Florença atingiram um alto nível
de desenvolvimento e conheciam a cultura greco-romana.
Podiam, então, voltar-se para o “descobrimento do mun-
do exterior, aventurando-se em sua representação
pela palavra e pela forma”.

Brunelleschi foi contratado para concluir a Catedral de Florença,


de estilo gótico. Muitos tinham tentado, mas só ele conseguiu
encontrar a solução para colocar esse grande domo entre os
pilares da Catedral.

82 Estética e história da arte


Alberti tinha consciência das mudanças culturais pelas quais Figura 4
passava a sociedade europeia, além da mudança da posição do Leon Battista Alberti. Fa-
chada da Igreja Santa Maria
artista. O ambiente cultural florentino ajudou Alberti na per- Novella (1448-1470).
cepção sobre a importância do artista. O pintor que salta
do livro de Alberti não é um pintor qualquer, mas um
sssss
pintor ideal: ele é culto, quase um cientista, pois apli- ssss
ssss
ssss
sssss
ca as leis matemáticas como ninguém. No fim da pri- sss

meira parte (2009, p. 93), destinada a explicar questões


matemáticas, Alberti se desculpa por falar tanto em
triângulos, pirâmides e intersecção. É como cos-
tumava explicar a seus amigos as questões
geométricas que julgava necessárias e funda-
mentais aos pintores.

É possível vincular, desse modo, a cultura


da época e as preocupações de Alberti. Dare-
mos, agora, um salto no tempo, para analisar
outro tipo de documento útil ao pesquisador: Alberti foi contratado para projetar a reforma da fachada da Igreja
o diário do artista. Nesse caso, utilizaremos o Santa Maria Novella, Florença. Ele utilizou mármore policromado.

de Paul Klee (1879-1940), filho de pai alemão, que


nasceu na Suíça. Sua vida coincide com graves eventos, como duas guerras
mundiais, e com o surgimento do modernismo artístico do início do século
XX, do qual foi um dos participantes.

Ler um diário é entrar no mundo do artista e obriga o leitor a estar


desarmado de qualquer julgamento, pois são anotações pessoais sem
pretensão de publicação. É o caso de diário de Klee. Nele (1990), anotou
que desde muito cedo desenvolveu um senso estético. É útil ao pesqui-
sador a compreensão do processo de formação de um artista. É o caso
desse diário, que é revelador ao mostrar as escolhas de Klee. Alguns anos
depois, empreendeu viagem de estudos à Tunísia, país do norte da Áfri-
ca, quando seu diário se transformou em diário de viagem. Klee viajou
com dois amigos, os artistas August Macke (1887-1914) e Louis Moilliet
(1880-1962). Klee pesquisava um modo próprio de desenhar e pintar, um
modo próprio de utilização da cor. Para Günther Regel (2001, p. 30), Klee
só atingiu a “ruptura” durante essa viagem: “Foi assim que ocorreu, quase
sem sua interferência, aquilo pelo que ele tinha esperado e para o que
tinha se preparado fundamentalmente em longos anos de tentativa”. An-
tes de descer do navio, Klee escreve em seu diário (1990, p. 321): “A clari-
dade colorida em terra, muito promissora. Macke sentiu a mesma coisa.

O conceito de manifestação cultural 83


Ambos sabemos que vamos trabalhar muito bem por aqui”. Klee estava
otimista. A pesquisadora Susanna Partsch (1993, p. 25) perguntou se foi
a paisagem tunisiana, sua luz e suas cores, que fizeram Klee encontrar
o caminho que procurava para sua pintura, ou foi o contato com Macke.
Alguns dias depois, Klee escreveu que estava fazendo testes. “Um dia há
de dar certo”, ele afirmou.

O diário possui algumas vantagens, como observar o esforço do


artista em chegar ao objetivo imaginado. É um esforço grande. Nove
dias depois da chegada à Tunísia, Klee (1990, p. 332) escreveu que, por
enquanto, tinha deixado o trabalho de lado para deixar-se levar por
tudo aquilo que estava ao seu redor. Aos poucos foi ganhando con-
fiança para voltar a pintar: “A cor me possui. Não preciso ir atrás dela.
Ela me possui para sempre, eu sei. Esse é o significado dessa hora feliz:
a cor e eu somos um. Sou pintor”. Doze dias após a chegada ao porto
de Túnis, a capital da Tunísia, os três amigos voltaram para casa. Klee
(1990, p. 333) anota em seu diário, no dia 19 de abril de 1914, que está
voltando com muitas aquarelas, mas a “maior parte dentro de mim,
bem lá no fundo”. Parecia que ia transbordar, ele disse.

Apesar de ter compreendido o tamanho de sua tarefa artística, a vida


continuou em um movimento intenso. Em junho, começou a Primeira
Grande Guerra. Em setembro, Macke morreu em combate. Em 1916,
Klee foi convocado para a guerra. Também em 1916, o amigo e pintor
Franz Marc (1880-1916) morreu na batalha de Verdun, a mais longa da
Primeira Guerra. Apesar de tudo, Klee não deixou de refletir sobre a arte
em seu diário de guerra. Em uma das últimas entradas (1990, p. 452), ele
Figura 5 escreveu uma de suas frases mais famosas: “Na arte, mais importante do
Paul Klee como soldado que ver é tornar visível”. O filho de Paul Klee, Félix, que editou o diário do
em 1916
pai, escreveu (1990, p. 457): “Lembro-me como se fosse ontem aquele
Wikimedia Commons

dia de dezembro de 1918, quando meu pai entrou em casa, um aparta-


mento pequeno, modesto e escuro, no bairro de Schwabing, vestindo
seu uniforme cinza”.

Para o estudioso da Cultura Visual, essa imagem é carregada de sen-


tidos. Ela é tão importante quanto uma de suas últimas obras realiza-
das na Tunísia, antes de voltar para casa, As portas de Kairouan, pintada
no mesmo dia em que disse ter certeza de que era um pintor. Pou-
co tempo depois do retorno, Klee pintou outra aquarela, No estilo de
Kairouan. Dessa vez, não há mais a preocupação de pintar de acordo
com a natureza, é uma obra abstrata.

84 Estética e história da arte


Wikimedia Commons

Wikimedia Commons
KLEE, P. No estilo de Kairouan.1914. Aquarela, 12,3 x 19,5 cm. Fundação Paul Klee, Berna.

KLEE, P. As portas de Kairouan. 1914. Aquarela, 20,7 x 31,5 cm. Fundação Paul Klee, Berna.

É possível perceber que não havia uma preocupação antropológica


nos três artistas que viajaram à Tunísia. Havia uma preocupação plás-
tica, artística, estética. Tinham, como artistas, a percepção atenta para
uma cultura diferente da europeia, que, naquele momento, se prepa-
rava para a guerra.

O mesmo ocorreu com Picasso alguns anos antes. Seu contato com
máscaras e esculturas africanas tinha um objetivo artístico, que era
diferente daquele para o qual os objetos foram inicialmente criados.
Apesar da grandeza da arte africana, as máscaras que Picasso conhe-
ceu foram produzidas a fim de serem usadas em rituais e cerimônias
especiais. Contudo, elas acabaram influenciando alguns artistas do mo-
dernismo do início do século XX. Em 1906, um ano antes de pintar Les
Demoiselles d’Avignon, Picasso foi apresentado por Henri Matisse a uma
escultura africana, o que o inspirou a produzir uma série de desenhos
com rostos femininos desestruturados (PLAZY, 2016). Este contato com
a arte africana foi essencial para a criação de Les Demoiselles. O artis-
ta fez pesquisas sobre a arte primitiva da África e da Oceania durante
alguns meses, passou horas no Museu Etnográfico do Trocadéro, hoje
chamado de Museu do Homem de Paris, e usou dezesseis cadernos de
esboços. Por fim, Picasso apresentou uma obra surpreendente, mera-
mente plástica, no sentido de forma, estrutura e organização.

O conceito de manifestação cultural 85


Wikimedia Commons
Figura 6
Máscaras africanas em loja
de Nairóbi, Quênia.

É possível pensar que Picasso não teve nenhuma preocupação com


a cultura de seu tempo? As personagens de seu famoso quadro pa-
recem clamar por autonomia, como se dissessem “isto é só pintura”.
Tudo mudou, porém, quando leu a notícia sobre o bombardeio nazista
à cidade espanhola de Guernica, em 1937. O impacto foi tanto, que
logo após ler a notícia, começou a trabalhar no enorme painel. O mo-
dernista puro que só se preocupava com os procedimentos de sua pró-
pria pintura, pintou Guernica.

4.3 O que é cultura popular


Vídeo Já nos habituamos ao uso da palavra cultura como a totalidade das
manifestações de um grupo, de um povo ou de uma determinada so-
ciedade. Muitas vezes, as classificações são arbitrárias, no sentido de
serem casuais, sem regras ou sem lógica. No entanto, as classificações
são necessárias didaticamente, quando, por exemplo, nos referimos às
culturas grega e renascentista.

É o que se fará agora com a expressão cultura popular. Contudo,


corre-se o risco de uma classificação arbitrária, e não didática, que
ocorre quando classificamos a cultura como erudita e popular, colocan-
do uma em posição de superioridade à outra. Para resolver a questão,

86 Estética e história da arte


deve-se definir o que é popular. A definição mais simples afirma que 2
2
popular é relativo ao povo , ou tudo aquilo que faz parte do saber do Conjunto de pessoas que vivem
em uma comunidade da mesma
povo. É esse o objeto de estudo dos folcloristas (de folk, povo), preo-
região, falam a mesma língua,
cupados com as lendas, os provérbios, os costumes de um grupo. Por têm interesses, histórias e
isso, cultura, folclore e popular se confundem. A postura necessária, tradições em comum. Ou seja,
compartilham a mesma cultura.
portanto, é não considerar a cultura popular como algo diferente.
Essa definição se entrelaça ao
O historiador Peter Burke (2010) informa que foi no fim do século conceito de nação. A definição
anterior, porém, vincula-se à
XVIII e início do século XIX que o “povo” se tornou um tema de estudos noção de cultura, como tratada
para os pesquisadores. Foi um momento em que a cultura popular tra- neste livro, sem a conotação
dicional começou a desaparecer por causa da industrialização – migra- jurídico-política que o conceito
de nação pode sugerir.
ção do campo para as cidades – e, consequentemente, do crescimento
urbano. Mais tarde, o mesmo fenômeno ocorreu no Brasil, já no século
XX. Burke (2010, p. 26) ilustra assim o interesse dos primeiros pesqui-
Livro
sadores: “Os artesãos e camponeses decerto ficaram surpresos ao ver
suas casas invadidas por homens e mulheres com roupas e pronúncias
de classe média, que insistiam para que cantassem canções tradicio-
nais ou contassem velhas estórias”. Esse interesse pelo povo pode ter
várias razões, entre elas, as razões políticas e estéticas. São as estéticas
que valorizaremos na análise empreendida neste livro.

Para os artistas modernistas, a arte popular poderia ser útil na críti-


ca contrária à arte “oficial”. Nesse gesto de aproximação com a arte po-
pular havia também uma crítica à estética do século XVIII, uma reação
A coleção A pintura: Textos
às noções de belo e imitação da natureza, presentes por tantos séculos
essenciais traz, em catorze
na arte europeia. Por isso, Picasso e outros artistas ficaram fascinados pequenos volumes, uma
seleção de textos de
com a arte popular. O interesse pela arte popular africana é um dos
artistas e teóricos sobre a
exemplos. No Brasil, os modernistas tiveram o mesmo interesse, quan- pintura. Em cada volume,
há uma apresentação
do a cultura popular serviu como sustentação para a possível criação
geral e uma contextua-
de uma arte brasileira, com a “cor local”, segundo Tarsila do Amaral. lização de cada escrito.
A novidade é a inclusão
Analisar o caso da arte naïf poderá ajudar a compreender os signifi- de textos de artistas de
cados de cultura popular. A palavra francesa naïf significa ingênuo, puro. todas as épocas. É uma
oportunidade de ler o
Passou a ser utilizada no século XIX para classificar artistas autodidatas e que eles escreveram
sem formação em artes visuais. Essa expressão acabou sendo associada sobre o belo, as imagens
religiosas, a figura
à arte popular e à arte primitiva. Há uma forma subjetiva do artista naïf humana, o desenho, os
pintar, que usa intuitivamente a perspectiva e as cores. Uma das principais gêneros pictóricos etc.

características desse gênero é a representação de todos os detalhes da- LICHTENSTEIN, J. (org.). São Paulo:
Editora 34, 2004. (14 volumes).
quilo que se está pintando. Ainda que uma figura humana esteja distante,
ela será representada com todos os pormenores.

O conceito de manifestação cultural 87


Tudo começou com o mais famoso dos pintores naïf: o francês Henri
Rousseau (1844-1919). O interesse pela arte primitiva, empreendida
pelos jovens pintores de Paris no começo do século XX, levou à
descoberta desse pintor ocasional que não havia estudado em
nenhuma escola de arte e escolhia temas simples e fantasiosos. Ele era
chamado de Le Douanier, que significa funcionário da alfândega. Para
os jovens artistas, Rousseau serviu para que questionassem a educação
formal, ou seja, as Academias de Arte, que tanto criticavam. Gombrich
(2013, p. 455) conclui que, sem saber desenho ou os métodos de
pintura, como o impressionismo, há nas telas de Rousseau “algo tão
vigoroso, simples e poético que não há como não reconhecer nele um
mestre”. Havia uma vantagem natural de Rousseau sobre os jovens: ele
conhecia a vida simples que pintava.

Gombrich (2013) analisou esta obra de Rousseau


Wiki Art

e apontou as seguintes características: o uso de co-


res simples e puras e linhas nítidas. Além disso, o
artista pintou cada folha das árvores e da grama. A
arte naïf nasceu, portanto, com a arte moderna, no
final do século XIX e começo do XX. São duas orien-
tações artísticas, mas sem oposição entre elas. Ao
contrário, há influência, diálogo e atenção entre am-
bos os grupos de artistas. Para compreender melhor
esse momento, é preciso retomar a história da arte.

Cézanne foi importante para Picasso; Van Gogh,


para o expressionismo. Contudo, há outro artista,
que, de acordo com Gombrich (2013, p. 435),
compõe o grupo dos “três rebeldes solitários”:
Paul Gauguin (1873-1903). Assim como o amigo
Van Gogh, começou a pintar por volta dos vinte
e cinco anos. Era corretor da bolsa de valores e
ROUSSEAU, H. Retrato de Joseph Brummer. 1909. 116 cm x 88,5 com. Coleção pintava nas horas vagas. Pode-se dizer que era
particular.
um autodidata diferente, pois incorporou lições
do impressionismo. Van Gogh, que em 1888 o convidou para dividir
o ateliê em Arles, também recebeu a mesma influência. Após uma
briga, Gauguin deixou a casa do amigo e voltou para Paris. De lá,
partiu para o Taiti, ilha francesa localizada no Oceano Pacífico. Antes
do encontro com Van Gogh, havia viajado ao Caribe. Gauguin buscava

88 Estética e história da arte


experiências diferentes, por isso, deixou Paris, a

Wikimedia Commons
família e o emprego seguro. Entre os artistas do
final do século XIX, havia uma atração pelas culturas
que julgavam “primitivas”, como a africana e a das
ilhas do oceano pacífico.

O quadro Cristo Amarelo é anterior à viagem


de Gauguin ao Taiti, e após o período que passou
com Van Gogh em Arles. Alguns aspectos o ligam
a Rousseau: não há divisão entre realidade e
imaginação, o desenho é simplificado e o amarelo da
figura central se confunde com a paisagem ao fundo.

A obra Arearea foi pintada durante o primeiro


período em que viveu no Taiti e nela já aparecem
referências à cultura local. É possível afirmar que
criou uma arte nova, desprezando regras de muitos
séculos, como a ilusão de profundidade e a imitação
GAUGUIN, P. Cristo Amarelo. 1889. Óleo sobre tela. 92 x 73 cm. Albright-Knox Art
da realidade. A estética de Gauguin é nova e moldou Gallery, Buffalo.
práticas de artistas do século XX.

Wikimedia Commons
Ao explicar a ida de Gauguin ao Taiti, Gombrich
(2013, p. 424) aborda também o interesse pela cultu-
ra que encontrou: o artista buscava uma vida simples,
pois estava convencido que a vida na Europa havia se
tornado superficial e que havia perdido o maior de
todos os dons: “a força e a intensidade das emoções,
além de uma maneira direta de expressá-las”. No
Taiti, tinha esperança de reencontrar esses dons.

O sentimento de Gauguin não era inédito, mas


sua viagem ao Taiti acabou por se tornar mítica para GAUGUIN, P. Arearea (Brincadeiras). 1892. Óleo sobre tela, 75 x 94 cm. Museu
d’Orsay, Paris.
as gerações seguintes. Outros artistas, como Eugène
Delacroix, viajaram para conhecer novas culturas, Saiba mais
paisagens, pessoas, ou, simplesmente, buscar uma A palavra primitivismo não é uma palavra simples,
luz diferente. Delacroix estava cansado dos temas mesmo sendo usada há muito tempo pela histó-
ria da arte. Ela pode sugerir involução. No caso
eruditos da Academia de Belas Artes quando viajou específico da arte, sugere um objeto rudimentar
para o norte da África em 1832. Estava fascinado ou sem aperfeiçoamento. Não é o caso, porém,
do diálogo que o modernismo manteve com
com as amostras de cores do mundo árabe que viu esses artistas, como Rousseau.
em Paris.

O conceito de manifestação cultural 89


Wikimedia Commons
DELACROIX, E. Cavalaria árabe fazendo uma investida. 1832. Óleo sobre tela, 60 x 73 cm. Museu Fabre, Montpellier.

Para Gombrich (2013, p. 387), Delacroix rejeitou os ensinamentos


da academia. Sobre o quadro Cavalaria árabe fazendo uma investida,
escreveu: “Não há traços nítidos, nem modelagem dos nus em tons cui-
dadosamente graduados de luz e sombra; não há pose nem contenção
na composição, nem mesmo uma temática patriótica ou edificante”.
Parece que o artista participa da cena, de um momento estimulante e
movimentado. Delacroix e Gauguin tinham os mesmos motivos quan-
do decidiram viajar: desenvolver um tipo de arte menos contida e com
mais luz. Klee também citou a luz. Essa luz pode ser entendida também
de forma metafórica, como uma tentativa de “iluminar” a si mesmo.
Para Argan (1992, p. 131), Gauguin está situado mais no plano da ima-
ginação. Assim, ele se afasta dos impressionistas, mais preocupados
com a percepção, como demonstram as pesquisas de Monet sobre a
luz refletida nas pedras da Catedral de Rouen.

A necessidade de se afastar da vida moderna sugere que não


há mais espaço para a imaginação, que, entretanto, pode ainda
ser encontrada na cultura popular. Esse fato explica um pouco o
sucesso de Rousseau entre os jovens modernistas. Foi esse artista
popular, diz Argan (1992), que transformou as técnicas tradicionais
de representação, como a perspectiva e as relações entre as cores,

90 Estética e história da arte


que renegou o exotismo de Gauguin e o culto à bela pintura dos
impressionistas. A palavra exotismo deriva do que é estrangeiro ou do
que está distanciado do centro. Pode ter sido esse o olhar de Gauguin
sobre a população do Taiti, um olhar sobre um povo estrangeiro, mas
pode ter sido um legítimo sentimento de alteridade, palavra utilizada
para caracterizar a compreensão daquilo que é distinto de nós. É o
reconhecimento de que há pessoas ou grupos diferentes.

Nunca saberemos as razões que impulsionaram Gauguin a realizar


viagens tão longas e a deixar o conforto de Paris, mas é possível
perceber uma insatisfação com a arte de seu tempo e, talvez, com
sua própria vida. Para Gombrich (2013), do descontentamento de
Cézanne, Van Gogh e Gauguin, surgiram movimentos como o cubismo,
o expressionismo e o primitivismo, ainda que a palavra primitivismo
pareça desconfortável para nós.

Wikimedia Commons

ROUSSEAU, H. A Guerra. 1894. Óleo sobre tela, 113 x 193 cm. Museu d’Orsay, Paris.

Segundo Argan (1992, p. 136), Picasso sempre reconheceu Rousseau


como um dos grandes mestres com quem aprendeu seu ofício. É dele
que se lembra ao pintar Guernica, em 1937: “a profecia sobre o fim
da civilização, que le Douanier entrevia em sua ‘ingenuidade’, havia se
traduzido em pavorosa realidade”.

O conceito de manifestação cultural 91


Vídeo Rousseau é um artista popular que está na origem da arte naïf. Ele
No vídeo Porque Picasso chamou atenção de artistas que tiveram formações artísticas e utiliza-
pintou “Guernica”, publi-
cado pelo canal da Radio ram a cultura popular em suas poéticas, como Gauguin e Picasso. Mos-
France Internationale trou aos artistas modernistas que é possível superar a distinção entre
Brasil, você poderá
se situar no contexto cultura culta e cultura popular.
histórico e conhecer mais
detalhes sobre a obra de
Com base no uso das imagens, cada vez mais sem restrições, como
Picasso que se tornou um na pop art, no grafite, na arte de rua, na videoarte e na arte computa-
símbolo global.
cional, aconteceram mudanças na percepção estética. Assim, pode-se
Disponível em: https://www.you-
tube.com/watch?v=RaqV4zGP7Po.
dizer que o valor estético é uma construção social, com uma dinâmica
Acesso em: 13 mar. 2020. de transformação cada vez mais veloz. A delimitação desta discussão,
do ponto de vista estético, libera os pontos de vista para múltiplas fa-
cetas e não restringe os argumentos apenas em questões de produção
e distribuição da obra de arte, seja ela de qual tipo for. O diálogo entre
as várias áreas de pesquisa é cada vez mais comum. O uso dos conhe-
cimentos antropológicos pelo pesquisador permite que o trabalho não
se resuma apenas à classificação e datação da obra de arte. Um bom
começo é perceber que toda arte é popular, no sentido de possibilitar
uma experiência estética particular, sim, mas com uma forma univer-
sal de se relacionar com um número cada vez maior de espectadores.
Assim, para a estética, a experiência com uma imagem religiosa de
um autor anônimo pode também ser intensa. A experiência, então, é
a natureza de toda atividade estética. Essa é a principal lição para se
compreender e superar a divisão entre arte “culta” e “popular”, entre
arte “erudita” e “naïf”. Os artistas modernistas do começo do século
XX perceberam que aprenderiam muito se superassem essa divisão. E
fizeram uma revolução.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi um longo caminho até o artista associar, sem nenhuma crítica, a
aprendizagem artesanal (popular) à racionalidade dos cânones artísticos vi-
gentes (as regras das escolas de arte). É possível que, enfim, essa separação
tenha sido ultrapassada. Basta pensar em Rousseau, artista que influenciou
Picasso, mas não era considerado um verdadeiro artista. O próprio termo
naïf, que significa inocente, tende a manter a separação entre arte culta e
arte popular. Uma possível solução é esquecer a atividade classificatória
que a história da arte utilizou com objetivos didáticos, e estimular a expe-
riência estética, livre de ideias exageradamente planejadas. Ou seja, evitar
a visita a uma exposição “sabendo” o que será visto. É melhor, portanto,

92 Estética e história da arte


esperar, esquecer os “ismos” temporariamente, e viver a experiência esté-
tica da maneira mais singular possível. As lições de Warburg, que utilizava
diversos documentos e imagens para estudar uma obra, é um exemplo das
várias possibilidades que existem. A foto de Paul Klee, na qual está vestido
com o uniforme cinza de soldado, transformou-se em um importante docu-
mento, que revela que o estudioso tem agora outras fontes de pesquisa. A
frase “eu sou artista”, escrita por Klee em seu diário, também é reveladora.
Mostra o percurso que precisou trilhar até se sentir reconfortado. Os arqui-
vos revelam e ajudam a dar sentido. Não é pouco.

ATIVIDADES
1. Defina o significado de manifestação cultural.

2. Os pesquisadores valorizam os documentos produzidos pelos artistas.


Por que arquivar esses documentos?

3. Defina o que é cultura popular.

REFERÊNCIAS
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Unicamp, 2009.
ARGAN, G. C. Arte Moderna. Trad. de Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
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Fagiolo (orgs.). Guia de História da arte. Trad. de M. F. Gonçalves de Azevedo. Lisboa:
Editorial Estampa, 1994.
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Trad. de Maria C. P. R. Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
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São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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cultura. Trad. de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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Guerra. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Trad. de Federico Carotti. São
Paulo: Companhia das Artes, 1989.
GOMBRICH, E. A História da Arte. Trad. de Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: LTC, 2013.
GOMBRICH, E. Hegel e a História da Arte. Trad. de Teresa da Costa. Revista Gávea, Rio de
Janeiro, n. 5, p. 57-72, abr. 1988.

O conceito de manifestação cultural 93


HEGEL, G. W. F. Lições sobre a Estética. Trad. de Marco Aurélio Werle. Cadernos de Tradução,
n. 1. São Paulo: Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1997.
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. de Artur M. Parreira. São Paulo:
Martins Fontes, 1986.
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Cely Arena. São Paulo: Edusp, 1998.
KLEE, P. Diários. Trad. de João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
MARSHALL, P. Reforma Protestante: Uma breve introdução. Trad. de Denise Bottmann.
Porto Alegre: LP&M, 2017.
MICHELANGELO, B. Cartas escolhidas. Prefácio, seleção, tradução e notas. Trad. de Maria
Berbara. São Paulo: Unifesp/Unicamp, 2009.
PANOFSKY, E. Significado nas artes visuais. Trad. de Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, 1991.
PARTSCH, S. Paul Klee: 1879-1940. Trad. de Casa das Línguas. Colônia: Taschen, 1993.
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REGEL, G. O fenômeno Paul Klee. In: KLEE, P. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Prefácio
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VÁZQUEZ, A. S. Convite à estética. Trad. de Gilson Baptista Soares. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999.
VITRÚVIO. Os dez livros da arquitetura (Livro III, parte I). In: Lichtenstein, J. (org.). A Pintura
– Vol. 6: A figura humana. Trad. de Magnólia Costa (coord.). São Paulo: Editora 34, 2004.
WARBURG, A. Histórias de fantasmas para gente grande: Escritos, esboços e conferências.
Trad. de Lenin B. Bárbara. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

94 Estética e história da arte


5
Aspectos da cultura
popular brasileira
A cultura brasileira foi fonte de reflexão no início do século XX,
quando alguns intérpretes começaram a estudá-la com mais fre-
quência. Desse modo, coincidiu com marcos como o Movimento
Modernista e a criação das primeiras universidades, como a
Universidade de São Paulo, em 1934. A preocupação com a iden-
tidade brasileira levou artistas e intelectuais a delimitarem ainda
mais a noção de cultura brasileira. Assim, surgiu outra preocupa-
ção: compreender a cultura popular brasileira como uma das ba-
ses de nossa identidade.
Neste capítulo, trataremos essa cultura popular do ponto de vis-
ta estético, mas não serão negligenciados aspectos fundamentais,
como o trabalho, as histórias orais, as crenças e todo universo de
vivências que marcam nossa cultura. Os próprios artistas tratarão
de vincular esses aspectos aos seus trabalhos. É por isso que as
obras de arte são fontes privilegiadas para a compreensão das no-
ções de cultura brasileira e cultura popular brasileira. O vínculo entre
arte e cultura brasileira é o que trataremos a seguir.

5.1 Manifestações e origens da cultura brasileira


Vídeo O escritor e antropólogo Darcy Ribeiro afirmou que a “sociedade e
a cultura brasileira são conformadas como variantes da versão lusitana
da tradição europeia ocidental, diferenciadas por coloridos herdados
dos índios americanos e dos negros africanos” (2015, p. 17); sem contar
os grandes grupos de imigrantes europeus, árabes e japoneses, que
chegaram depois.

Assim, para Ribeiro (2015, p. 17), surgiu um povo novo, diferenciado


culturalmente de suas matrizes formadoras, “fortemente mestiçada,
dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição

Aspectos da cultura popular brasileira 95


Filme de traços culturais delas oriundos”. O uso da expressão cultura sincréti-
ca permite compreender melhor o ponto de vista de Ribeiro. A palavra
sincretismo é utilizada em várias situações. Na religião, lembra que pode
ocorrer a reunião de doutrinas diferentes; na filosofia, pode significar a
síntese de visões de mundo diferentes; na antropologia, a combinação
de elementos de várias culturas.

Assim, surgiram modos de ser, como os dos sertanejos do Nordeste,


dos caipiras do Sudeste e Centro-Oeste do país, dos caboclos da
Amazônia, dos crioulos do litoral, dos gaúchos do Sul, além de ítalo-
O documentário O povo
brasileiro: a formação e o -brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Apesar da expressiva
sentido do Brasil procura urbanização ocorrida nos últimos anos, uniformizando os brasileiros
desvendar a formação do
Brasil. Há depoimentos no plano cultural, algumas diferenças são mantidas. Essa diversidade
e trechos de filmes que pode ser explicada pelas teses de Darcy Ribeiro, mas é possível consi-
enriquecem o livro homô-
nimo de Ribeiro. derar extensão do país (quinto maior território do planeta) e o tama-

Direção: Isa Grinspum Ferraz. Brasil:


nho de sua população (sexta maior).
2000.
A unidade da língua, contudo, é um dos grandes méritos dos fun-
dadores da nação, ainda que diferenças no uso de algumas palavras
ocorram, mesmo quando a distância é pequena. Por exemplo, uma mes-
Saiba mais
ma fruta pode se chamar mexerica em São Paulo e mimosa em Curitiba
Darcy Ribeiro faz parte de um
e, no entanto, não há dificuldade de entendimento entre a população.
grupo de intelectuais do século
XX que tentou “entender” o Brasil. O brasileiro, para Ribeiro (2015), nasce de três matrizes étnicas:
Nesse grupo, também está Gilber-
a indígena, a portuguesa e a africana. Todavia, o fortalecimento de
to Freyre, autor de Casa-grande &
senzala, de 1933. A publicação da uma cultura tipicamente brasileira não ocorreu por acaso, foi um
obra foi uma tentativa de pensar o processo lento. A língua portuguesa, por exemplo, estabeleceu-se
Brasil do ponto de vista cultural, e,
principalmente, do ponto de vista século após século; a arte também, passando a seguir os cânones
da miscigenação. Esta era vista europeus, primeiramente com o barroco, no final do século XVII e
por Freyre como uma “vantagem” início do XVIII, início do Ciclo do Ouro em Minas Gerais, e depois com
sobre outras nações, mas foi
realizada com conflito e dor, a chegada da Missão Francesa, em 1816. Também, com a criação
segundo Ribeiro, que também a da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, as regras do
via como um processo positivo. De
classicismo se fortaleceram.
acordo com Freyre (2019, p. 33): “A
miscigenação que largamente se Pode-se perceber que há uma questão que se revela nos detalhes
praticou aqui corrigiu a distância
social que de outro modo se teria
desta cronologia e que, mesmo estando quase escondida, tornou-se re-
conservado enorme entre a casa- levante com os modernistas do início do século XX: a definição de arte
-grande e a mata tropical; entre brasileira. Talvez a gênese da arte brasileira seja idêntica à gênese do
a casa-grande e a senzala”. Freyre
fazia referência ao português povo brasileiro, da forma como explicou Darcy Ribeiro: fruto de várias
(casa-grande), ao indígena (mata matrizes. É possível, portanto, que a arte brasileira também seja sincré-
tropical) e ao negro (senzala). tica. Para confirmar ou negar essa afirmação, iniciaremos a cronologia.

96 Estética e história da arte


Na arte pré-histórica do Brasil, os objetos cria- De olho na arte
dos pelos povos desse período não tinham pre- O termo classicismo é utilizado pela história da arte em diversas situa-
tensão artísticas. No entanto, assim os tratamos. ções. Normalmente, é empregado para retratar uma obra com ideais
de perfeição e harmonia, como a arte grega. A arte renascentista
Esses objetos tinham uma finalidade prática. Lem- retoma esse modelo. Lembre-se que Joachim Johann Winckelmann
bre-se da arte como tékhne, como atividade huma- achava que o modelo grego é o que melhor define os ideais de
na que transforma a natureza a fim de extrair uma proporção. No século XVIII, esse termo também passou a ser o oposto
do romantismo, que valorizava a subjetividade do artista, e, portanto,
obra. É ela que permite a criação de um objeto. as suas paixões. Os termos clássico e romântico, contudo, passaram a
Mesmo sendo um instrumento utilitário, há senti- ser utilizados como ofensa de um grupo contra outro.

Wikimedia Commons
do estético, há preocupação com a forma e uma
sensibilidade necessária até mesmo para a esco-
lha do material. Por isso, a tradução de tékhne mais
utilizada é arte e não técnica.

Dessa forma, não é exagero dizer que essa dimen-


são estética nos acompanha desde a pré-história.
Para o pesquisador, no entanto, esse objeto possui
múltiplas possibilidades interpretativas: é a materia-
lização do conceito de cultura, pois “é um documen-
to sobre grupos humanos pré-históricos, sobre a sua
organização social e os seus costumes, mitos, rituais,
lutas, alimentação e vida espiritual” (PESSIS; MARTIN,
2014, p. 24). Pode-se perceber que os desenhos dos
parques brasileiros realizados por povos caçadores-
-coletores correspondem aos desenhos da era paleo- TINTORETTO, Jacopo. Casa de Maria e Marta (1580s). Óleo sobre tela,
197 cm x 129 cm. Alte Pinakothek, Minuque, Alemanha.
lítica encontrados em cavernas da Europa.

Figura 1
marcosvelloso/Shutterstock

Pintura rupestre encontrada


no Parque Nacional da
Capivara, Piauí, Brasil

Saiba mais
O termo registro rupestre é
usado quando se pretende tirar
a dimensão estética do objeto. O
pesquisador da estética utiliza“ar-
te”, pois percebe a manifestação
estética em todos os objetos. O
termo pré-história pode sugerir
que há povos sem história. Contu-
do, até os povos ágrafos possuem
história, as imagens que criaram
são provas disso.

Aspectos da cultura popular brasileira 97


O mesmo raciocínio foi utilizado por Darcy Ribeiro (1983), que define
arte indígena como criações realizadas de acordo com os cânones prescri-
tos pelo grupo, com objetivos utilitários, sim, mas buscando a perfeição.
Essas criações, segundo o pesquisador, possuem rigor formal e beleza
que se destacam de outros objetos por serem dotados de valor estético.

Ribeiro (1983, p. 49, grifos nossos) utiliza categorias da tradição es-


tética para explicar o valor que percebeu nas criações indígenas: “Neste
caso, a expressão estética indica certo grau de satisfação dessa indefinível
vontade de beleza que comove e alenta aos homens como uma neces-
sidade e um gozo profundamente arraigados”. Os grifos na citação são
nossos, destacando como Ribeiro utiliza noções da estética clássica. Ele
complementa sua análise com um comentário sobre a utilidade da arte
e da beleza em nossas vidas: “Não se trata de nenhuma necessidade
imperativa como a fome ou a sede, bem o sabemos; mas de uma sorte
de carência espiritual, sensível, onde faltam oportunidades para atendê-
-la; e de presença observável, gozosa e querida, onde floresce” (RIBEIRO,
1983, p. 49).

Ao aplicar essa concepção de arte, Ribeiro permite que sejam en-


contradas expressões artísticas nos objetos da vida diária dos indíge-
nas. Portanto, há fruição estética entre aqueles que criam e desfrutam
de tais objetos, porque são “criações voltadas para a perfeição formal,
cuja fatura, desempenho ou simples apreciação lhes dá gozo, orgulho e
alegria” (RIBEIRO, 1983, p. 49). Há uma preocupação estética em todas
as coisas realizadas pelos indígenas, que eram muitos e faziam uma
arte diversa, pois se dividiam em muitos povos, dentre eles os tupis.
Para refletir
É possível aplicar as teorias estéticas europeias à arte indígena?
Você deve ter percebido que Darcy Ribeiro utilizou teorias estéticas do ambiente europeu para explicar a arte
indígena. O antropólogo Alfred Gell procurou entender se isso é possível. Em seu livro Arte e agência: uma teoria
antropológica (2018), ele afirma que a arte dos territórios colonizados pode ser estudada por qualquer uma das
teorias da arte, ou por todas elas, desde que a abordagem seja útil. Quem está preparado para compreender a
arte de Picasso pode escrever sobre as máscaras africanas como arte; precisa abordá-las como arte por causa da
importância da relação entre a arte da África e a arte ocidental do século XX para a história da arte — diz Gell. O
autor conclui que “se as teorias (estéticas) ocidentais da arte podem ser aplicadas à ‘nossa’ arte, podem e devem
ser também aplicadas à arte de todos os povos” (GELL, 2018, p. 23).

Os indígenas da família tupi ocuparam grande parte do território


brasileiro, vindos de uma região onde hoje é Rondônia, na Amazônia,
por volta do ano 500 de nossa era. Para se ter ideia da influência, a
língua tupi-guarani era a língua geral falada por todos, até pelos ban-
deirantes paulistas.

98 Estética e história da arte


Mapa1
Migração do homem – O povoamento da América

Oceano Glacial Ártico

Sibéria Alasca
Ásia
Europa
América
do Norte
Oceano Oceano
Deserto Pacífico Atlântico
do Saara Filipinas
África Terra de Sunda
Nova Guiné

Oceano Polinésia América


Oceania do Sul
Índico

Prováveis rotas do ser humano para a América

Sem o trabalho de campo de pesquisadores como


Darcy Ribeiro, não teríamos os dados sobre a cul-
tura indígena que temos hoje. A pintura corporal
é um exemplo, pois tem valor fundamental na for-
ma como os indígenas veem o mundo e a si mesmos.
Os sentidos, segundo Martins e Kok (2014), são múltiplos:
ritos de passagem, proteção do clã ou do indivíduo, cerimô-
JJJJJJJ
JJJJJ
nias de reclusão, de casamento, de luto ou de cura de doenças, JJJJ
J JJJ
J JJJ
função guerreira ou religiosa. J J

JJ
J
O vermelho é extraído da planta chamada urucum, já o

JJ
J
azul-escuro ou o preto são obtidos do jenipapo. O agluti-
nante é o suco do babaçu ou de outra planta. Eles utilizam,
também, o carvão ou algum tipo de calcário. Não há uma
total simetria, mas é possível perceber padrões geométri-
cos. Essas pinturas refletem um modo de ser dos indígenas.

A arte plumária, cujos artefatos são criados com penas de


aves, possui os mesmos objetivos ritualísticos ou religiosos da
arte corporal. Ela pode ser criada em grandes proporções, como
mantos usados pelos líderes, ou pequenos artefatos, como
brincos, colares, braceletes etc.

Figura 2
Indígena da tribo Pataxó durante o 2º Encontro
de Povos da Floresta, em 2007
Aspectos da cultura popular brasileira 99
A arte de trançar fibras de alguma planta da região
onde a tribo está instalada atingiu alto grau de so-
k
toc
fisticação. Sua elaboração não é tão simples, ain-
ters hut

da mais com o emprego de padrões geométricos


de Bastos/S

que exigem habilidade e precisão.

Cada grupo étnico, porém, possui uma tradi-


Robson

ção. Se os Timbiras não possuem objetos de ar-


gila, explicam Martins e Kok (2014), os Kadiwéu
desenvolveram técnicas e padrões decorativos
elaborados para a confecção de objetos em cerâ-
mica. O mesmo ocorre com trabalhos em madeira,
tradição de algumas aldeias do Alto Xingu.

O saber indígena está presente na cultura popular


brasileira, pois foi incorporado por outros grupos, tanto
nas cidades quanto no interior. Martins e Kok (2014) citam
a arte da cestaria, o uso da rede para dormir, o uso da fa-
rinha de mandioca, os enfeites corporais, o banho etc. Tais
práticas e costumes presentes na cultura indígena foram
incorporados durante os séculos de colonização portuguesa.

Além das matrizes europeia e indígena, segundo Darcy


Ribeiro, ainda há a matriz africana na formação do povo brasileiro.
Figura 3 Para o antropólogo, os africanos escravizados trazidos para o Brasil
Cestarias indígenas
conseguiram “influenciar de múltiplas maneiras as áreas culturais
onde mais se concentraram, que foram o nordeste açucareiro e as
zonas de mineração do centro do país” (RIBEIRO, 2015, p. 87-88).
Essa informação é importante para compreender a arte que se de-
senvolveu posteriormente.

Antes, é preciso saber o que é arte afro-brasileira. Para Munanga


(2019), a questão é como descrevê-la em relação à arte brasileira em
geral, não apenas como um capítulo, mas como descoberta da africani-
dade nela presente. Para ele, não se pode concluir que há continuidade
da arte africana no Brasil, mas se pode pensar em continuidade “par-
cialmente recriada”, em função das novas condições de vida da popula-
ção escravizada no novo mundo.

100 Estética e história da arte


Artigo Livro

http://www.macvirtual.usp.br/mac/arquivo/noticia/Kabengele/Kabengele.asp

O artigo A Dimensão Estética na Arte Negro-Africana Tradicional, do Professor


Munanga, traz um diálogo entre a estética tradicional e a arte africana e
afro-brasileira.

Acesso em: 27 mar 2020.

Munanga (2019) explica, contudo, que ocorreu uma mudança nas


primeiras décadas do século passado, quando a arte afro-brasileira se
tornou mais visível. Os artistas afro-brasileiros, antes discretos em res-
peito aos espaços de culto, começaram a trabalhar dentro do conceito
No livro Índios: Os Primei-
de arte popular, encorajados pelo movimento modernista. Era uma arte ros Brasileiros, o professor
não étnica, mas vinculada a suas raízes. João Pacheco de Oliveira,
também curador da ex-
Munanga classifica três grupos de artistas: posição de mesmo nome,
ocorrida no Arquivo
1. aqueles que usam o tema de forma episódica, como Tarsila do Nacional (RJ) em 2019,
busca compreender a
Amaral;
pluralidade identitária
2. aqueles que utilizam conscientemente a temática afro-brasileira, brasileira por meio de
análise da trajetória histó-
como Di Cavalcanti; e rica dos povos indígenas
3. aqueles que usam espontaneamente as soluções plásticas do Nordeste, do norte de
Minas Gerais e do Espírito
africanas, como o escritor e escultor Mestre Didi (Deoscóredes Santo. Um material didáti-
Maximiliano dos Santos, 1917-2013), que associava a cultura co e ricamente ilustrado.

afro-brasileira, principalmente a religião, às soluções plásticas OLIVEIRA, J. P. de. Rio de Janeiro:


Museu Nacional / Universidade
africanas.
Federal do Rio de Janeiro. 2018.
Disponível em: http://jpoantro-
Mestre Didi, que esteve presente na 23ª Bienal Internacional de pologia.com.br/pt/wp-content/
São Paulo (1996), transformava o objeto de arte ritualístico, de visi- uploads/2018/06/BOOK_Primei-
ros_Brasileiros_Completo_MIO-
bilidade restrita ao culto religioso, em esculturas com a mesma força LO_Final_BAIXA.pdf. Acesso: 27
simbólica e artística do original. É possível perceber em suas escul- mar. 2020.
turas uma sensibilidade capaz de fazer coexistir a linguagem da arte
popular (religiosa) e a pessoal. Para Roberto Conduru (2012, p. 40), as
obras de Mestre Didi se transformaram em exemplo de como tran-
sitar entre os circuitos religioso e artístico “mantendo todos os atri-
butos exigidos para o uso no culto, mas também revelando sentidos
outros, maior amplitude e pertencimento cultural”.

Aspectos da cultura popular brasileira 101


Vídeo As influências entre culturas, como ocorre no Brasil, provocam a
Apesar das transforma- mesma fusão na arte, resultando no emprego, pelo artista, de lingua-
ções aculturativas no
Brasil, segundo Mariano gens estéticas de diversas culturas. A arte é um exemplo desse diálogo,
Carneiro da Cunha que ocorre desde o passado colonial. O artista se inspira, recria e rein-
(1983), o ícone africano
tem resistido e pode se terpreta as tradições. Por isso, Munanga (2019) pensa na arte afro-bra-
comunicar com a força sileira como um sistema fluido e aberto, no qual se podem encontrar
do idioma original, como
mostram os trabalhos de artistas que trabalham com as origens africanas da arte, como obras
Mestre Didi. É possível religiosas ou ritualísticas, e artistas que receberam influências das ar-
comprovar esse comen-
tário assistindo ao filme tes africanas (temas, formas, símbolos etc.) e integraram-nas a outras
Mestre Didi: Arte Ritual, influências da arte ocidental e indígena, resultando no mosaico que são
que faz parte da série O
mundo da arte. arte e cultura brasileiras.
Disponível em: https://www.youtu- A influência da ancestralidade africana é visível na cultura do Brasil,
be.com/watch?v=AxE6kY5c1vs&-
t=123s. Acesso: 27 mar. 2020.
seja na linguística, na culinária, na religiosidade ou na arte. Ela se espalhou
por todo o território e misturou-se com as culturas indígena e europeia.

5.2 A cultura popular brasileira


Vídeo Para Darcy Ribeiro (1993, p. 127), cultura “é a herança social de uma
comunidade humana”, representada por normas, regulações, valores
e crenças explicadas pela criatividade artística e pela experiência dos
membros dessa comunidade. Uma cultura, portanto, é transmitida na
forma de tradição, que pode ser definida como tudo aquilo que se trans-
mite de geração em geração, como histórias, ritos, costumes, técnicas e
valores. É por meio dessa tradição que nos humanizamos e incorpora-
mo-nos a um determinado grupo: aprendemos a língua, a técnica que o
grupo domina e, por fim, a viver conforme os usos e costumes.

Como resultado da tradição que herdamos, podemos dizer que a cul-


tura popular brasileira possui elementos europeus, indígenas e africanos,
tal qual o povo brasileiro. Assim, já podemos falar que há uma cultura
brasileira com visão de mundo e atividade artística singulares. Cada artista
cria conteúdos particulares dentro da sociedade da qual faz parte, como é
o caso de Mestre Didi. Como isso é possível? Ribeiro (1993) afirma que um
gesto de criatividade autêntico só terá validade se for uma contribuição às
criações da civilização a que pertencemos, ou seja, se for significativa para
nós e para outros povos. Ele cita dois exemplos que considera atos madu-
ros da criatividade dos brasileiros e como contribuições a todos os povos:
Ouro Preto, no século XVIII, e Brasília, no século XX. Ambos são expressões
de ideais estéticos da civilização a que pertencem.

102 Estética e história da arte


Figura 4 Figura 5
Ouro Preto, Minas Gerais Brasília, Distrito Federal
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061 Filmes/Shutterstock
O crítico de arte Mário Pedrosa, ao ver o tamanho do empreendimento que seria a construção de Brasília, escreveu que ela é “um
apelo à imaginação criadora de nossos artistas, nossos arquitetos, nossos urbanistas” (PEDROSA, 2015a, p. 90). Antes, o crítico havia
lembrado que Ouro Preto, a capital da civilização do ouro, havia se constituído em menos de um século nas serras de Minas Gerais.

O grande objetivo de Portugal em relação à sua colônia era encon-


trar ouro. Enquanto os bandeirantes, embrenhados pelos sertões, não
o encontraram, aconteceram os Ciclos do Pau-Brasil e do Açúcar. Quan-
do o metal valioso foi encontrado nas Minas Gerais, gerou uma corrida
do ouro, a qual atraiu grande número de imigrantes. Como resultado,
Vila Rica (a atual Ouro Preto) se tornou a maior cidade do continente
americano em 1776. Paralelamente, aconteceu um progresso artístico.
Com forte sentimento religioso, a população construiu muitas igrejas
e capelas, que foram preservadas mesmo após o declínio do ouro na
região. A ida dos artistas modernistas a Minas Gerais, nos anos 1920,
também contribuiu para valorizar e preservar Ouro Preto. Em 1980, a
cidade entrou na lista de patrimônio mundial da humanidade.

Dois artistas se tornaram importantes no período. São eles: Antônio


Francisco Lisboa (1738-1814), o “Aleijadinho”, e Manuel da Costa Ataíde
(1762-1830), o “Mestre Ataíde”. O Barroco não ocorreu apenas em Minas
Gerais, mas também na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro e
no Mato Grosso. Contudo, esses dois artistas são bons exemplos para
compreender a fusão entre arte popular e cultura.

Antônio Francisco Lisboa, que, segundo Pedrosa (2015a), passou à


história sob o apelido carinhoso e triste de “O Aleijadinho”, é um dos
artistas brasileiros mais conhecidos. Temos contato com suas obras
desde o tempo de escola. A relação que acabamos tendo com ele e
com Mestre Ataíde vai além da preocupação com a história da arte.
Nem sempre temos certeza sobre a autoria de algumas obras ou dados

Aspectos da cultura popular brasileira 103


biográficos acerca dos dois artistas, mas as informações sobrevivem há
décadas, muitas vezes, transmitidas pela tradição oral e estudadas por
tantos especialistas que nos perguntamos sobre as razões da sobrevi-
vência em nossa memória coletiva.
Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira explica que há raízes profundas
na psicologia do povo brasileiro, em um sentido de identidade nacio-
nal com esses artistas de origem afro-brasileira, que se transformaram
em “representantes autênticos da originalidade de uma cultura com
apenas quatro séculos de existência e moldados por parâmetros euro-
peus, essencialmente portugueses em suas origens” (OLIVEIRA, 1988,
p. 55). Filho de Isabel, escravizada, e do português Manuel Francisco
Lisboa, a formação artística de Antônio Francisco aconteceu por meio
do pai, que era arquiteto e mestre de obras. Conviveu também com
outros artistas em Vila Rica (Ouro Preto). Pode-se dizer que não era um
autodidata, no sentido que se dá à palavra: alguém que se instrui sem
a ajuda de um mestre.
Desde menino ele acompanhou os artistas da cidade e, em 1766,
com apenas 28 anos fez o primeiro projeto da Igreja da Ordem Terceira
de São Francisco, em Ouro Preto. Foi, portanto, reconhecido ainda jo-
vem como importante artista. Esculpiu também o retábulo, a estrutura
ornamental que está no altar dessa Igreja.
Figura 6
Igreja de São Francisco

OSTILL is Franck Camhi/Shutterstock


de Assis (projeto de 1766)
Ouro Preto, MG. Aleijadinho

Todo o conjunto da
fachada, incluindo
o medalhão, foi
executado em pedra-
-sabão, material que
o artista introduziu
na arquitetura e
usava com precisão.
A pedra-sabão é
uma rocha de baixa
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dureza encontrada
na região de Ouro
Preto.

Os primeiros projetos de Aleijadinho são de 1766. Ele terminou de


entalhar o retábulo em 1794. Portanto, passaram-se muitos anos até
a igreja de São Francisco ficar pronta.
104 Estética e história da arte
É possível perceber que Antônio Francisco atuou como arquiteto
e escultor, ora trabalhando com pedra, ora com madeira. Pensava
em praticamente tudo, esculpindo até os pequenos detalhes decora-
tivos. Nas palavras de Martins e Kok (2015, p. 61), Antônio Francisco
conseguiu “integrar, no seu fazer e no seu pensar, as diversas solu-
ções de cada meio”. A Igreja de São Francisco é um bom exemplo
das soluções estéticas do artista: as duas torres arredondadas estão
recuadas, e as janelas estão para os lados. Ao observar o desenho da
porta e a decoração em pedra-sabão que a envolve, percebe-se que
o artista criou um conjunto inseparável entre a porta, a guirlanda de
flores e o medalhão arredondado, no qual esculpiu uma cena da vida
de São Francisco. Outra solução criativa foi projetar a Igreja como um
octógono e não um retângulo. Martins e Kok (2015, p. 62) afirmam
que foi nesse espaço “que se produziu um dos encontros mais be-
los da arte brasileira”. Eles se referem ao teto da Igreja, pintado por
Mestre Ataíde.
Manuel da Costa Ataíde, o Mestre Ataíde, nas-

T photography/Shutterstock
ceu em Mariana, importante cidade produtora de
ouro do século XVIII, próxima de Ouro Preto. Sua
obra mais conhecida é a pintura do teto da Igreja
de São Francisco.

Mestre Ataíde pintou Nossa Senhora e os an-


jos sobre as tábuas de madeira do teto e usou a
perspectiva para provocar a ilusão de que o teto está
aberto e olhamos para o céu. As quatro colunas re-
forçam essa sensação.

No livro Lição de Coisas, do poeta Carlos Drummond


de Andrade, publicado em 1962, há um poema cha-
mado Ataíde. Nele, há referências ao pai do artista,
que era militar. Mestre Ataíde tentou seguir a mes-
ma carreira, mas acabou tendo orientações artísticas.
Isso ocorreu da forma como se fazia na época: entrou
como aprendiz na oficina de um pintor mais velho. O
poeta também faz referências a Antônio Francisco.
Vejamos na página seguinte alguns trechos do poema
ATAÍDE, Manuel da Costa. Pintura do teto da Igreja de São Francisco (1804-1807).
de Drummond (2006, p. 478-479): Óleo sobre madeira. Ouro Preto, MG.

Aspectos da cultura popular brasileira 105


[…]
O rumo fora traçado.
Pintaríeis outras tábuas de outros tetos
ou mais precisamente
romperíeis o forro para a conversação radiante com Deus.
[…]
mano a mano com o mestre mais velho Antônio Francisco Lisboa ColorMake
r/Shutterstock

e porque viveis os dois em comum o ato da imaginação


[…]
e manifestais a arte de dois na unidade de criação,
bato continência
em vossa admiração.

Drummond diz que Mestre Ataíde derramou sobre nós “no azul-es-
paço/ do teatro barroco do céu/ o louvor cristalino coral orquestral dos
serafins/ à Senhora Nossa e dos Anjos” (2006, p. 478). Por tudo isso,
Mestre Ataíde é considerado um dos grandes pintores do período colo-
nial e o principal representante do barroco-rococó.

O rococó é visto como um estilo desviante, porém, continuador do


barroco, uma tendência artística autônoma. As características funda-
Curiosidade
mentais do rococó são um certo rebuscamento – porém, com mais de-
Conta-se que Mestre Ataíde de-
senhava no chão, em um papel licadeza – e um clima mais intimista que o barroco. A palavra rococó
do tamanho do tema que iria é derivada da palavra francesa rocaille, tipo de decoração de jardins,
pintar. Do andaime, ele conse- na qual se usava conchas, pedras etc. Bazin (1993) explica que a pala-
guia visualizar a perspectiva, do
mesmo modo que o espectador vra rococó era usada por marceneiros franceses do século XVIII para
visualizaria do chão. As linhas qualificar formas sinuosas e ornamentais dos móveis do rei Luís XV.
do desenho no papel eram
É possível observar o estilo rococó na arquitetura, com motivos deco-
furadas e serviam para marcar
o forro com pó de sapato, uma rativos ondulados e desenhos ornamentais irregulares. Mestre Ataíde
espécie de fuligem produzida utiliza ornamentos com muitas curvas, que provocam efeitos ilusórios,
pela queima de resinas vegetais.
O artista colava esse papel no
“eliminando” o limite do teto. De acordo com Martins e Kok (2015) e
teto e soprava ou esfregava o Enock Sacramento (2000), para pintar Nossa Senhora, Mestre Ataíde
pó nos buracos. Depois que o teve como modelo sua companheira de origem afro-brasileira Maria
papel era retirado, restavam
linhas pontilhadas no forro, que do Carmo. Ele também usou seus filhos e pessoas próximas para criar
o auxiliariam na pintura. Esse os anjos que a rodeiam, o que explicaria as feições afro-brasileiras das
procedimento, chamado espolvo, personagens do teto da Igreja São Francisco e reforça os comentários
é antigo e ainda continua sendo
utilizado (TOLEDO, 1983). de Gombrich (2013) sobre a inclinação dos pintores do estilo rococó de
se voltarem para pessoas comuns de seu tempo.

106 Estética e história da arte


O conjunto artístico criado por Antônio Francisco e Mestre Ataíde,
junto ao grande número de colaboradores e ajudantes, retrata a asso-
ciação de um dos grupos mais importantes de artistas do século XVIII.
É uma feliz associação entre arquitetura, pintura e escultura. Não se
pode esquecer o retábulo da Igreja, totalmente realizado por Antônio
Francisco, e que provoca uma experiência estética cheia de surpresas,
tal qual o céu de Mestre Ataíde.

Roberto Conduru (2007) questiona: o que é efetivamente africano


nesses artistas [como Antônio Francisco e Mestre Ataíde], considera-
dos criadores dos pontos mais altos da arte no Brasil e iniciadores da
arte brasileira? O autor explica que as religiões afro-brasileiras têm des-
taque na constituição da arte afro-brasileira, pois formam o elo com as
culturas africanas. Para ele (2007), a dimensão estética é constitutiva
dessas religiões. É por causa disso que a plasticidade, presente na esté-
tica das religiões afro-brasileiras, conecta-se às artes visuais e a outros
aspectos da cultura e da arte brasileiras, como a música e a culinária,
ainda que uma parte da cultura daquelas religiões seja acessível ape-
nas para os praticantes.

5.3 A arte brasileira


Vídeo A primeira arte que tivemos no Brasil, diz Pedrosa (2015a) foi a
barroca, ou seja, a arte mais avançada que se fazia na Europa naquele
momento. Percebe-se que o autor preferiu escrever “primeira arte” e
não “primeiro gênero artístico brasileiro”. Ele se refere especificamente
à arte moldada nos valores artísticos portugueses, pois sabia que já
tínhamos a arte indígena, com toda sua força criativa e cromática, e a
arte afro-brasileira com uma rica cultura associada.

Para Mariano Carneiro da Cunha (1983, p. 1018), é “mais do que


provável” que Antônio Francisco Lisboa tenha mantido contato com a
arte popular de seu tempo, na qual estão presentes alguns cânones
africanos, como a desproporção intencional da cabeça. Nesse senti-
do, ele concorda com a análise de Mário de Andrade: na concepção
plástica de Antônio Francisco, haveria um sentido deformador que se-
ria constituinte de sua obra. Para Andrade (1984), Antônio Francisco
manifesta a tendência de deformar as figuras, aumentando a cabeça,
demonstrando intenção expressionista para tornar as imagens mais

Aspectos da cultura popular brasileira 107


Saiba mais assombradas. Andrade (1984, p. 40) utiliza vários adjetivos: “E vivendo
Mário de Andrade e Mário no Barroco e o expressando, ele vai além das lições barrocas que pre-
Pedrosa foram importantes
senciava, o seu tipo de igreja é dum sentimento renascente”; ou seja,
intérpretes da arte brasileira.
Como teóricos e críticos – além Antônio Francisco não é apenas barroco, mas também renascentista.
de poeta e escritor, no caso de “E na escultura ele é toda uma história da arte”, escreve. É também
Andrade – tiveram a oportuni-
bizantino, gótico, renascentista, expressionista e realista. O exagero de
dade de exercer a crítica de arte
regularmente, o que contribuiu Mário de Andrade tinha por objetivo mostrá-lo como o primeiro gê-
para o diálogo que tiveram nio artístico brasileiro. “É a solução brasileira da colônia”, ele diz (1984,
com artistas e espectadores.
Ambos tentaram, com suas p. 41), aquele que abrasileirou o que era português.
ideias, difundir a importância
De olho na arte
do movimento modernista
(Andrade) e da arte abstrata Para Mário de Andrade, Antônio Francisco se torna

Ricardo André Frantz/ikimedia Commons


(Pedrosa). Isso não significa expressionista após os primeiros sintomas de sua
que procuraram propagar os doença. Ocorre, segundo ele, uma mudança na
princípios estéticos nos quais forma de o artista representar suas personagens;
acreditavam, mas, ao refletirem elas adquirem um caráter expressivo. Qual era,
quase diariamente sobre a arte afinal, essa doença? Segundo Germain Bazin (1971,
brasileira, iluminaram aspectos p. 102), Antônio Francisco ficou doente aos 39
formais e sociais determinantes anos. Não se tem certeza sobre o que o acometeu,
para a produção artística de uma somente as consequências: perdeu os dedos dos
grande parte do século XX. pés, e os dedos das mãos se atrofiaram. Andava de
joelhos e sentia muita dor. Seus instrumentos de
trabalho precisaram ser adaptados por seus ajudan-
tes e é provável que fossem amarrados em suas
mãos. Daí em diante, Antônio Francisco ganhou o
apelido de “Aleijadinho”.

LISBOA, Antônio Francisco “Aleijadinho”. O Cristo do


Carregamento da Cruz (detalhe). Via Crucis do Santuário de
Congonhas, MG.

Os arroubos de Mário de Andrade tinham um motivo: além de pen-


sar em uma estética nacional, ele também estava envolvido com as
teorias do expressionismo, como aponta Tadeu Chiarelli (2007), que
passou a estudar desde a exposição de Anita Malfatti, em 1917. É im-
portante lembrar que os artistas do expressionismo “deformavam” a
figura pintada para chegar a uma expressividade que consideravam
próxima do real. Mário de Andrade utilizou a noção de deformação ex-
pressiva para analisar a obra de Antônio Francisco. Uma das conclusões
possíveis sobre as análises de Andrade é que o caminho da arte moder-
na brasileira é o expressionismo, pois nele há a possibilidade de lidar
com o real.

108 Estética e história da arte


Mário de Andrade ficou impressionado com um conjunto de escul-
turas que está no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, na cidade de
Congonhas, a sessenta quilômetros de Ouro Preto. Na entrada do San-
tuário, estão os doze profetas esculpidos em pedra-sabão. Chamou a
atenção de Andrade um conjunto de sessenta e quatro imagens que
estão no interior do Santuário, esculpidas em madeira por Antônio
Francisco e pintadas por Mestre Ataíde. A tradição portuguesa de deco-
rar o espaço interno das igrejas com esculturas foi incorporada pela
arte colonial brasileira. O exemplo mais significativo dessa tradição são
os Passos da Paixão, do Santuário de Congonhas, esculpidos por Antônio
Francisco e seu grupo de artistas colaboradores. Não foi por acaso que
Mário de Andrade destacou as imagens de Cristo, que Antônio Francisco
representou em cada momento percorrido até a Crucificação. O artista
conseguiu retratar o sofrimento e a dor com talento, sensibilidade e
compaixão. Não é o Cristo reflexivo dos renascentistas, é o Cristo sofri-
do do barroco.

Bazin (1971, p. 271) explica que o cristianismo “propunha aos artis-


tas um conceito de Deus, onde as duas naturezas, a humana e a divina,
se unissem essencialmente”. Antônio Francisco, doente, conseguiu rea-
lizar a proeza de criar uma obra sublime, evocando as duas naturezas
pedidas por aqueles que o contrataram. Ele e Mestre Ataíde criaram
uma arte em que pintura e escultura se completam. Há mais de duzen-
tos anos, portanto, dedicamo-nos a criar a arte brasileira. O que isso,
de fato, significa?
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LISBOA, Antônio Francisco “Aleijadinho”.


Cristo Ultrajado (1796-1799). Madeira
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policromada. Via Crucis do Santuário de


Congonhas, MG.

Aspectos da cultura popular brasileira 109


Aqui está uma das questões centrais para o modernismo de Mário de
Andrade: a arte que imitava movimentos estéticos da Europa. Na confe-
rência batizada como O movimento modernista, ocorrida em 30 de abril
de 1942, na Casa do Estudante do Brasil (RJ), o escritor reclama das cópias
da arte europeia sem qualquer fundamento na cultura popular. Mário
de Andrade lembra, porém, que era possível encontrar as bases humana
e popular das pesquisas estéticas no Romantismo (1974, p. 250). Essas
bases poderiam também ser encontradas nos movimentos modernistas,
como no cubismo e no expressionismo. Andrade lembra a importância
da arte africana para o cubismo de Picasso e explica que os diversos mo-
vimentos (no sentido de existirem muitos: expressionismo, cubismo, da-
daísmo etc.) representam o melhor do modernismo, pois permitem uma
postura antiacadêmica nas pesquisas estéticas sobre seus artistas.

Esta crítica ao academicismo é outra das questões centrais do mo-


dernismo. Com a transferência da família real portuguesa para o Brasil
em 1808, uma série de transformações ocorreu na colônia. O Rio de
Janeiro foi transformado em capital do Império português e passou por
transformações, incluindo a criação de uma Academia de Belas Artes.
Figura 7 Em 1816, chegou ao Brasil a Missão Francesa,
Pórtico central da Academia Imperial de Belas Artes
com o objetivo de criar um sistema artístico, ten-
Darcília R Jordão/Wikimédia Commons

do como base o ensino da arte como era praticado


pela Academia de Belas Artes de Paris. Os moder-
nistas criticavam este sistema, pois partia do mode-
lo de arte estrangeira. Em 1826, o principal objetivo
da Missão foi cumprido: a fundação da Academia
Imperial de Belas Artes. O ensino da arte passou a
ser formal. Lembre-se que as academias foram cria-
das na Europa tendo como regra a compreensão
do belo ideal. Todo sistema acadêmico passou a
ser criticado pelos modernistas: o belo ideal, os te-
mas considerados nobres (como temas históricos),
o ensino radical do desenho (os alunos passavam
os primeiros anos apenas aprendendo desenho), o
privilégio da pintura a óleo e o uso do mármore e
do bronze etc. E a madeira dos barrocos brasilei-
ros?, perguntavam os modernistas.
O prédio da Academia foi projetado pelo arquiteto da Missão, Grandjean de
Montigny, e foi demolido em 1937. Apenas seu pórtico central foi preservado
e transferido para o Jardim Botânico, onde se encontra atualmente.

110 Estética e história da arte


Wikimédia Commons
DEBRET, Jean-Baptiste. Desembarque da imperatriz Leopoldina (1817). Óleo sobre tela, 44,5 x 69,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Debret, artista viajante, retratou o país ao registrar sua fauna, sua flora e, principalmente, seus costumes e sua população.
Registrou, também, em desenhos e aquarelas, a população indígena e o cotidiano do Rio de Janeiro. O artista é pouco
lembrado como pintor da corte e professor de Pintura Histórica da Academia de Belas Artes.

É importante destacar que as críticas ao academicismo estão basea-


das na historiografia escrita por modernistas, que precisaram, como é
o caso de Mário de Andrade, polarizar a questão para a afirmar uma
nova estética. Uma boa definição de academicismo é a seguinte: “um
conjunto de normas para a formação e a produção artísticas, que pre-
tendiam ser eternas e universais” (PEREIRA, 2008, p. 17). Portanto, o
academicismo não era um estilo artístico, mas uma postura que ele-
vava os valores tradicionais da arte, principalmente os valores conti-
dos nas obras dos grandes mestres italianos. Durante muitos anos, o
conflito entre acadêmicos e modernos foi alimentado pelos dois lados.

Não há como negar a expansão dos ideais estéticos da Academia


no século XIX. Na pintura, escultura e arquitetura, valorizavam-se a si-
metria e a harmonia da composição. É um período em que a Academia
incorpora as ideias românticas e as grandes pinturas históricas. Os ro-
mânticos introduziram o indianismo, que considerava o indígena como
herói da identidade brasileira. A natureza é um dos aspectos mais valo-
rizados pelos românticos brasileiros e europeus. Todos estavam envol-
vidos na criação de um imaginário brasileiro; a jovem nação precisava
de símbolos e os temas nacionais eram os ideais. Há dois exemplos

Aspectos da cultura popular brasileira 111


fortes desse momento: Víctor Meireles (1832-1903) e Pedro Américo
(1842-1905). Perceba a monumentalidade das obras.

Wikimédia Commons
MEIRELES, Victor. Moema (1866). Óleo sobre tela, 129 x 190 cm. Museu de Arte de São Paulo – MASP.

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AMÉRICO, Pedro. Independência ou Morte (1888). Óleo sobre tela. 415 x 760 cm. Museu Paulista, São Paulo.

A passagem do século XIX para o XX é marcada pelo rápido cresci-


mento de São Paulo e de outras cidades brasileiras. O café se tornava a
base econômica do país. É nesse contexto que ocorreram as demandas
por novas pesquisas estéticas, conforme descreveu Mário de Andrade.
Retornamos, portanto, ao seu artigo sobre o movimento modernista.

112 Estética e história da arte


Andrade define pesquisa estética e a considera diferente da arte. A
pesquisa lida com as formas, a técnica e as representações do belo; já a
arte é mais complexa, “tem uma funcionalidade social, é uma profissão
e uma força interessada na vida” (ANDRADE, 1974, p. 251-252). É preci-
so pensar no momento histórico em que a conferência de Andrade foi
escrita (em 1942) para compreender sua preocupação com a função
da arte. Ocorria a Segunda Grande Guerra na Europa, que também en-
volveu países de outros continentes, como o Brasil. Após o torpedea-
mento de navios brasileiros e manifestações do povo nas ruas, o país
declarou guerra à Alemanha e Itália.

Também, começaram, ainda de forma sutil, os pedidos por demo-


cracia no Brasil. Por isso, um pouco antes (1974), o poeta dissera que o
artista brasileiro se via diante de uma “verdade social”, uma liberdade
(ainda que só estética), uma independência e um direito à pesquisa
que os modernistas da Semana de 1922 não tiveram. Ainda que haja
exagero e propaganda sobre o movimento que encabeçou, as ideias
contidas em sua conferência mostram um Mário de Andrade atento às
transformações que ocorriam no Brasil e no mundo. Seria difícil para
um artista esquecer as circunstâncias traumáticas daquele momento.
Sendo assim, talvez, suas preocupações fossem mais sociais e menos
estéticas. Andrade faz outra distinção, dessa vez entre o assunto e a
inteligência estética, expressão utilizada por ele. O escritor afirma que
o assunto não tem importância para a inteligência estética, que está
mais preocupada com o prazer da beleza. O assunto é diferente, repre-
senta uma mensagem a que não se pode renunciar. Percebe-se que
a preocupação com o assunto e o uso de termos como mensagem, o
transformaram em um pensador social da arte. O contraponto será
Mário Pedrosa, preocupado também com aspectos sociais, mas volta-
do, principalmente, para questões formais e perceptivas.

Após o incêndio que destruiu quase todo o Museu de Arte Moderna


do Rio de Janeiro, em 1978, foi criado um grupo para organizar sua
reconstrução. Em uma reunião desse grupo, o crítico de arte Mário
Pedrosa (1995) sugeriu uma nova estrutura com cinco museus inde-
pendentes: o Museu do Índio, o Museu da Arte Virgem (do Inconscien-
te), o Museu de Arte Moderna, o Museu do Negro e o Museu de Artes
Populares.

Como a arte moderna se inspirou na arte dos povos periféricos,


Pedrosa explicou que o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de-

Aspectos da cultura popular brasileira 113


veria apresentar a arte que há em grande quantidade no Brasil. Assim,
uma grande parte do Museu de Arte Moderna seria dedicada à arte
Filme brasileira. As artes indígena, afro-brasileira, dos pacientes psiquiátricos
– que Pedrosa chama de arte virgem –, além das artes moderna e po-
pular, seriam representadas em uma única denominação, que juntaria
todas as vertentes artístico-culturais, chamada arte brasileira.

A postura de Mário Pedrosa em relação ao Museu de Arte Moderna


do Rio de Janeiro é uma introdução a suas ideias. Outro texto dele foi
Arte, necessidade vital, que é também uma conferência e foi pronunciada
em razão da exposição de pinturas dos pacientes do Centro Psiquiátrico
Nacional, no Rio de Janeiro, em 1947. Estes eram atendidos pela Dra.
O filme Nise: o coração
Nise da Silveira (1905-1999), médica psiquiatra que fundou o Museu de
da loucura é baseado na
experiência da médica Imagens do Inconsciente, composto por trabalhos de pintura e modela-
Nise da Silveira, pioneira
gem de seus pacientes.
no uso da arte como
forma de terapia. Glória No início, Pedrosa (2015b) mostra a dificuldade do mundo em
Pires interpreta a perso-
nagem principal. Mário saber o que é arte. Seguimos ainda os cânones codificados desde a
Pedrosa é também uma Renascença, como a imitação da natureza e a representação da reali-
das personagens do filme
e aparece explicando a dade. Esses critérios, ele explica, são utilizados até hoje. A mesma in-
exposição de 1947. compreensão que há diante da arte moderna ocorre com as obras dos
Direção: Roberto Berliner. Brasil: pacientes do Centro Psiquiátrico. A atividade artística, para Pedrosa
2016.
(2015b), estende-se a todos os seres humanos, e vontade artística se
Figura 8 manifesta em todos nós. O crítico lembra que o conceito de arte moder-
Obra de Arthur Bispo do na era “a redescoberta do sentimento artístico na
Rosário exposta na 55ª
Bienal de Veneza sua pureza, tão translúcida da obra dos anô-
nimos artistas primitivos” (PEDROSA, 2015b,
p. 52). Por que, então, colocar barreiras
nesse espaço especial que Pedrosa
chama de “mundo encantado das
formas”? (idem, p. 66). É um espaço
sem dono, pois é comum a todos
os homens, indistintamente.

Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) não foi


paciente da Dra. Nise da Silveira, pois esteve
internado na Colônia Juliano Moreira, onde
viveu desde 1938. Na década de 60, começou
a criar obras com o que tinha à disposição:
madeiras, canecas, garrafas etc. Com fios, que
desfiava de sua própria roupa, fez estandartes,
édia Commons faixas e fardões. Estes foram expostos em
SunOfErat/Wikim
sua sala na 55ª Bienal de Veneza, em 2013.
114 Estética e história da arte
Nesse sentido, as classificações empreendidas neste livro não possuem
um caráter excludente, e sim didático. Chamar uma obra de naïf pode sig-
nificar alguma coisa para alguém, mas também pode significar absoluta-
mente nada. Sendo assim, a arte é o que importa, não o seu nome. Afinal,
todos podem sentir prazer em fazer arte, sem nenhuma preocupação,
movidos apenas pelo prazer de construir algo. O ideal é que essa cons-
trução seja chamada de arte, simplesmente, sem nenhum outro tipo de
acompanhamento classificatório. As obras da exposição dos pacientes do
Centro Psiquiátrico Nacional, interpretadas por Pedrosa, podem também
ser incluídas no compartimento dedicado à arte brasileira.

Naquela reunião de 1978, Pedrosa tinha o desejo de contribuir com


ideias para a reconstrução de um acervo que tinha desaparecido. Ao su-
gerir que o novo Museu de Arte Moderna apresentasse tudo de repre-
sentativo na arte brasileira, que batizou de Museu das Origens, Pedrosa
explicou o que entendia por arte brasileira. Não é difícil compreender
que sua definição é ampla o suficiente para que caibam as muitas mani-
festações das quais somos capazes. Isso define, ainda de modo aberto
e propositadamente inconclusivo, o que é arte e o que é arte brasileira.

Ao escrever, em 1949, sobre a comemoração dos cem anos de


nascimento de Paul Gauguin, Mário Pedrosa (2015b) afirmou que ne-
nhum pintor teve tanta influência sobre os artistas que vieram depois.
Cézanne iniciou a reação antinaturalista, mas, ainda assim, utilizou o
espaço renascentista com a perspectiva. Gauguin rompe completa-
mente com a reprodução da realidade externa, pois estava preocupa-
do com suas ideias e emoções subjetivas. Pedrosa não deixa de citar
que esse movimento radical tenha partido de um artista que fugiu de
Paris. Além disso, era um artista que usava arbitrariamente as cores. O
crítico (2015b, p. 103) cita uma carta a Van Gogh, em que o aconselha-
va a não copiar: “A arte é uma abstração”. Foi com Gauguin, segundo
Pedrosa (2015b), que as culturas primitivas começaram a influenciar a
arte europeia; e foi com a estética de Gauguin que os horizontes dessa
cultura foram ampliados. Pode-se dizer o mesmo de Antônio Francisco
e o interesse que despertou nos artistas modernistas.

Em 1924, um grupo de artistas paulistas faz uma caravana às cidades


históricas de Minas Gerais. Entre os viajantes estavam Mário de Andrade,
Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Essa excursão foi relatada pelos
modernistas como uma “redescoberta” do Brasil. Mário de Andrade fez
três viagens a Minas: em 1917, foi visitar um amigo em Mariana; em 1924,

Aspectos da cultura popular brasileira 115


foi com a caravana modernista, quando conheceu as obras de Antônio
Francisco e Mestre Ataíde; e, em 1939, fez a terceira viagem, momento
no qual os estudantes da Universidade de Minas Gerais o convidaram
para fazer conferências em Belo Horizonte. A “redescoberta” do país
Figura 9 durante a viagem também influenciou a pintura de Tarsila do Amaral.
Manifesto Antropófago.
Revista de Antropofagia, Em crônica de 1939, a artista relembra que passou para suas telas as
ano I, n. 1, maio de 1928 cores que encontrou em Minas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo
vivo e verde cantante. Passou a fazer uma pintura lim-
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pa, “sem medo de cânones convencionais” (AMARAL,


2008, p. 720). Quatro anos depois, viria o Manifesto An-
tropofágico, escrito por Oswald de Andrade e que teve
início a partir do quadro Abaporu (do tupi: “aquele que
come gente”), tela que Tarsila pintou em 1928.

O manifesto é um exercício de raciocínio sobre


o outro, isto é, sobre aqueles que moldaram nossa
cultura, nossa arte e nossa identidade. Este outro é
a representação do povo brasileiro. Oswald utilizou
a alegoria de que somos um país que “devora” várias
culturas. Pode não parecer novo hoje em dia, mas a
ideia de um povo antropófago, que “come” a cultu-
ra europeia e a recria, é inventiva até hoje. É como
se Oswald utilizasse a palavra globalização, que não
existia, mas que poderia ter sido inventada por nós,
brasileiros. Não foi à toa que o barroco-rococó de
Antônio Francisco e Mestre Ataíde chamou a aten-
ção do grupo de Oswald em 1924 e continua a nos
impressionar até hoje.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há um grupo grande de intérpretes do Brasil. Apenas neste capítulo
foram citados Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Mário de Andrade e Mário
Pedrosa, sem contar Oswald de Andrade, de quem tratamos brevemen-
te. Entretanto, vale a pena falar dele um pouco mais nestas considerações
finais.
Em seu livro Pau-Brasil (1924) escreveu um poema chamado Falação,
longo e com linguagem diferente de outros poemas do livro, que eram cur-
tos e sintéticos. O título é uma ironia com ele mesmo. Oswald fala de uma
nova arte brasileira, mas poderia falar também de um novo Brasil, com so-

116 Estética e história da arte


luções simples e inventivas. Pregava uma arte brasileira menos eloquente
e sem tanta “falação”. Tarsila do Amaral buscou o mesmo objetivo: seus
quadros se tornaram cada vez mais sintéticos. Mário de Andrade preferia
uma arte figurativa, de cunho expressionista, que poderia retratar melhor
o Brasil. Mário Pedrosa definia a arte como o exercício experimental da li-
berdade, fascinado pelas pesquisas artísticas que ocorreram por meio do
abstracionismo. Pedrosa apreciava as pesquisas formais, mas havia nessa
apreciação um valor crucial para ele: a liberdade. Foi tentando analisar esse
aspecto que Pedrosa apresentou sua definição de arte. Ele demonstra que
as teorias dialogam e completam-se. Esse é o horizonte relacional e dialógi-
co de todo pesquisador da arte.

ATIVIDADES
1. Defina a palavra sincretismo em seus aspectos religioso, filosófico e
antropológico.

2. Explique a afirmação de Darcy Ribeiro sobre o gesto de criatividade


autêntico de um artista.

3. Quais são as diferenças entre a pesquisa estética e a arte, segundo


Mário de Andrade?

REFERÊNCIAS
AMARAL, T. Pintura Pau-Brasil e Antropofagia. Publicado originalmente na RASM – Revista
Anual do Salão de Maio. São Paulo, 1939. In: Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral.
Pesquisa e organização Laura Taddei Brandini. Campinas: Unicamp, 2008.
ANDRADE, M. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974.
ANDRADE, M. de. O Aleijadinho. In: Aspectos das artes plásticas no Brasil. Belo Horizonte:
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Antropofagia hoje?: Oswald de Andrade em cena. São Paulo: É Realizações, 2011.
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GELL, A. Arte e agência: uma teoria antropológica. Trad. de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo:
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MARTINS, A.; KOK, G. Roteiros visuais no Brasil: Artes indígenas. São Paulo: Ed. Claro Enigma,
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Aspectos da cultura popular brasileira 117


MARTINS, A.; KOK, G. Roteiros visuais no Brasil: Nos caminhos do Barroco. São Paulo: Claro
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da arte. v. 6, n. 1. São Paulo: Departamento de Filosofia da PUC-SP, 2019. Disponível em:
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Arte no Ciclo do Ouro. São Paulo: Byk, 2000.

118 Estética e história da arte


GABARITO
1 Fundamentos de Estética
1. A palavra estética foi cunhada em 1735 por Alexander Gottlieb
Baumgarten, a partir da palavra grega aisthesis, que pode significar
sensibilidade, sensação ou percepção por meio dos sentidos. Em
1750, Baumgarten escreveu um tratado chamado Estética, tornando a
palavra ainda mais conhecida.

2. Durante o século XVIII, ocorreram transformações na Europa a partir


de revoluções que alteraram os sistemas políticos e as relações sociais
de diversos países. Paralelamente, ocorreram mudanças na relação
entre obras de arte e o público. Naquele período, surgiu a estética
como disciplina autônoma, os salões de arte e o primeiro museu,
o Louvre. Se antes a obra de arte ficava restrita à contemplação de
poucos contratantes dos artistas, como a aristocracia e o clero, agora
a obra estava visível nos salões de arte e nos emergentes museus.

3. Você poderá responder a esta pergunta de várias formas. Ela é


propositadamente aberta e será considerada a defesa que fará
de sua posição. Se concorda que há critérios objetivos para nossos
julgamentos, explique que os objetos são constituídos de aspectos
próprios, como proporção ou simetria, que determinam nosso apreço.
Se acha que o gosto é subjetivo, explique que ele é determinado
apenas pela nossa sensibilidade e não por critérios objetivos, como
aqueles citados acima. Se você prefere o “caminho do meio”, reflita
sobre o belo normativo, aquele que está no objeto que segue padrões
de harmonia e equilíbrio que nos agrada. Reflita também sobre
aspectos subjetivos, como os sentidos, que definem nosso agrado e
nosso desagrado.

2 Evolução histórica da estética


1. O artista criará o corpo da figura pintada ou esculpida, tendo a cabeça
como medida para a altura. Esse corpo terá a medida de sete cabeças.

2. Espaço renascentista refere-se ao resultado da utilização de técnicas


que permitem ao artista criar a sensação de ilusão, como a perspectiva,
que possibilita criar uma imagem próxima da realidade. O quadro
na parede parecia uma janela aberta, por causa da sensação de
profundidade obtida através da perspectiva.

Gabarito 119
3. a) finalidade de aproximar o homem de Deus; b) figuras sem
corporeidade; c) bidimensionalidade; d) as figuras não sugerem
movimento; e) as cores possuem finalidades simbólicas.

3 A arte nas diferentes culturas


1. A palavra cultura, conforme o dicionário, é o conjunto de padrões
de comportamentos, crenças, conhecimentos, costumes etc. que
distinguem um grupo social. O antropólogo Edward Tylor, em 1871,
definiu pela primeira vez a palavra cultura: ela inclui conhecimentos,
arte, moral, leis, costumes e hábitos que adquirimos como membros
de um grupo.

2. Segundo Teixeira Coelho, os objetos utilitários podem ser vistos como


documentos, pois podem comunicar algo sobre quem os produziu e
qual a razão de tê-los produzido. Por isso, eles se encaixam na categoria
de objetos culturais. A questão é que tais objetos podem também ser
apreciados como arte quando expostos em museus. Neste caso, eles
passam a não ter utilidade específica, transformando-se em objetos de
contemplação destinados à fruição estética. Ou seja, transformam-se
em objetos artísticos.

3. Formatividade é um modo de fazer que, enquanto se faz, inventa-se


o modo de fazer. Produção e invenção ocorrem simultaneamente.
Segundo o próprio Pareyson (1984, p. 32), a arte é um “fazer que,
enquanto faz, inventa o por fazer e o modo do fazer”.

4 O conceito de manifestação cultural


1. As manifestações culturais revelam características da cultura de um
determinado grupo. Um exemplo de manifestação cultural de um
grupo é a arte. Porém, as manifestações são variadas: além da arte, há
as investigações filosóficas, as crenças religiosas, as faculdades morais,
a justiça etc. É útil lembrar que cultura pode ser definida como o
conjunto de comportamentos, crenças, conhecimentos – entre outros
aspectos – de um grupo. Portanto, a arte é uma manifestação do
conjunto de comportamentos, crenças, conhecimentos, entre outros,
de um grupo.

2. Além das próprias obras, os pesquisadores valorizam também outros


documentos, como cartas, diários, bilhetes, fotografias, filmes, entre
outros. Eles ajudam a dar sentido às obras estudadas, e a iluminar

120 Estética e história da arte


detalhes que passam despercebidos. Por isso, a organização, a
classificação e a conservação desses documentos são importantes.

3. Cultura popular é a manifestação cultural de um determinado grupo,


o povo, que pode ser definido como o conjunto de pessoas que vivem
em uma comunidade, falam a mesma língua, têm interesses, histórias
e tradições em comum. Portanto, que compartilham a mesma cultura.

5 Aspectos da cultura popular brasileira


1. A palavra sincretismo é utilizada em diversas áreas do conhecimento.
Do ponto de vista religioso, ela se refere à possibilidade de reunião de
doutrinas diferentes; na filosofia, remete à síntese de visões de mundo
diferentes; na antropologia, refere-se à combinação de elementos de
várias culturas.

2. Para Darcy Ribeiro, um gesto de criatividade autêntico só terá validade


se for uma contribuição às criações da civilização a que pertencemos,
ou seja, se for significativo para nós e para outros povos. Por isso, ele
cita dois exemplos que considera atos maduros da criatividade dos
brasileiros e contribuições para todos os povos: Ouro Preto no século
XVIII e Brasília no século XX.

3. Mário de Andrade define pesquisa estética como a área do saber que


trata das formas, da técnica e das representações do belo. A arte é
diferente, ela tem uma funcionalidade social e uma força interessada
na vida. Arte é também uma profissão.

Gabarito 121
Este livro apresenta a estética como campo do saber que

Estética e História da Arte


reflete a respeito do belo, e mostra também como essa reflexão
se deslocou posteriormente para a arte. No decorrer dos
séculos, a estética ampliou o diálogo com outras áreas,
principalmente a história da arte, marcando a interação
mais vigorosa empreendida nesta obra.
Problematiza-se a definição de estética, seus aspectos
históricos e a capacidade de emitir juízos sobre alguma
coisa. Inúmeros pesquisadores e pensadores, durante
séculos, procuraram entender por que algo é belo.
Também se discute sobre cultura e seu vínculo com a
arte, assim como sobre as manifestações culturais e a
arte popular.
São muitos os temas deste livro, todos tratados sob o
ponto de vista da estética e da história da arte, e que
podem contribuir para a compreensão da força expressiva
da humanidade. Os diversos temas se associam ou se
aproximam porque os objetos pesquisados são construídos
há milênios. Essa capacidade de criar ou construir é o
que fascina a todos.

João Coviello

Fundação Biblioteca Nacional Código Logístico


ISBN 978-85-387-6612-4

9 788538 766124 59304

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