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COMÉRCIO EXTERIOR

“O Mercosul precisa
de oxigenação”

Lucas Ferraz
Foto: Divulgação

Secretário de Comércio Exterior da Secretaria Especial de Comércio


Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia

Solange Monteiro, do Rio de Janeiro


Participação de Lia Valls, pesquisadora associada do FGV IBRE

Conjuntura Econômica — O go- De forma sucinta, do ponto de vis- mas sobre a qual Brasil, Paraguai e
verno tem defendido mudanças no ta da flexibilidade, entendemos que a Uruguai são favoráveis. Então, o que
Mercosul que permitam mais agili- regra de consenso para as negociações vemos é uma realidade que vai se im-
dade nas negociações comerciais acaba se constituindo em uma trava pondo, da dificuldade em se manter a
com outros países. Esperam avan- negociadora. Um grande exemplo é regra do consenso e, ao mesmo tem-
çar em alguma frente específica o acordo Mercosul-União Europeia, po, fazer os avanços necessários den-
neste semestre, em que o Brasil tem que levou 20 anos para ser concluído. tro do bloco para transformá-lo de
a presidência temporária do bloco? Há dificuldade em montar uma oferta fato em uma plataforma de inserção
Primeiro, vale ressaltar que o Bra- conjunta entre quatro países que têm internacional, coisa que ele nunca foi.
sil está consciente da importância estruturas política e produtiva muito Em 1991, quando o bloco foi criado,
do Mercosul para o seu projeto de diferentes, bem como de convergir tínhamos 1,3% de participação no
desenvolvimento econômico, e para interesses negociadores para deter- comércio internacional, e até hoje em
sua inserção internacional. O que minado país ou região. Hoje, por nada aumentamos nossa inserção.
temos feito é trabalhar junto dos só- exemplo, estamos testemunhando Veja, isso não significa que não
cios pela modernização do bloco, a a resistência, do lado argentino, em entendamos a importância do bloco,
partir de duas frentes: a busca por negociar com a Coreia do Sul. Não que vai além da agenda econômica e
mais flexibilidade negociadora, e a que a Argentina tenha obstaculizado envolve temas institucionais, geopo-
revisão de nossa tarifa externa co- o avanço das negociações, mas deci- líticos, entre outros do interesse do
mum (TEC), criada em 1995 e que diu de forma soberana não negociar governo brasileiro. O Brasil não tem
até hoje, com todos os avanços do o capítulo de bens e regras de origem. nenhuma intenção de romper com
comércio internacional, da globali- Então, ela está fora dessa negociação, o Tratado de Assunção, de acabar
zação, das cadeias globais, nunca foi mas continua negociando os temas com o Mercosul ou de sair do bloco.
reformulada. Pelo contrário. Em go- não tarifários. Ainda poderia citar a Isso são narrativas criadas de forma
vernos passados, tivemos aumento negociação com o Vietnã, que tam- equivocada, provavelmente por ato-
das tarifas de importação. bém encontra resistência argentina, res desse processo – não só no Brasil

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como nos outros países – que eventu- Sim. No âmbito da Associação Latino- nei, nossa média tarifária é três vezes
almente defendam o status quo. Mas Americana de Integração (Aladi) isso maior que a média mundial. Mas
o Mercosul precisa de oxigenação, de já é uma realidade, com acordos que atribuir nosso isolamento à tarifa
dinamização. Hoje a TEC no Brasil andam em velocidades totalmente di- de importação, sem falar em outros
é, em média, três vezes mais alta do ferentes. Gostaríamos que esse mesmo pontos dessa agenda não tarifária,
que a média mundial de tarifas de conceito pudesse ser estendido às nego- seria simplista. Em geral, avaliações
importação. E queremos reduzi-la. ciações com pares de fora da região. sobre avanços no campo do comér-
Temos pleiteado algo conservador, cio ficam presas ao paradigma dos
como 10% de redução horizontal acordos tarifários, e com isso várias
(estudo da Secex aponta que essa re- Um dos objetivos que o governo de- iniciativas são pouco valorizadas.
dução teria impacto positivo de 0,2% fende é o de realizar uma “faxina re- Como a do protocolo não tarifário
no PIB brasileiro). E isso não inclui gulatória”, que promova a facilitação que o Brasil firmou no ano passado
produtos da lista de exceção, dada a do comércio internacional brasileiro. com os Estados Unidos (veja matéria
importância que os setores privados Como tem avançado nessa tarefa? no Blog da Conjuntura Econômica:
dão a essa lista de bens para os quais https://bit.ly/2WrF3VG).
os países têm liberdade de fixar suas Vou citar aqui outros exemplos
alíquotas. E que, aliás, não é a única menos óbvios no campo não tari-
via de ressalvas à TEC. Pelas nossas fário, sobre os quais estamos tra-
O Brasil não tem nenhuma
contas, algo como 40% do universo balhando. O Brasil é um dos países
tarifário da TEC é abarcado por ex- que mais aplicam licenciamento de
ceções, sejam elas regimes especiais,
intenção de romper com importação no mundo. Em 2019,
waivers, além da própria lista. a Secex era o principal anuente de
O que temos colocado, justamen-
o Tratado de Assunção, comércio exterior – do total de 22
te por esse histórico de flexibilidade e – em emissão de licenças de im-
exceções que caracterizou a formação de acabar com o Mercosul portação, com 1,2 milhão naquele
do Mercosul, é a possibilidade inclu- ano, seguida pela Superintendência
sive de que países que não se sintam ou de sair do bloco. São da Zona Franca de Manaus (Sufra-
confortáveis em fazer essa redução da ma), o Ministério da Agricultura,
TEC agora, ainda que a consideremos narrativas criadas de a Anvisa, o Inmetro, o Ibama e a
extremamente conservadora, que o ANP, para citar os principais desse
façam em um momento posterior. E forma equivocada ranking. Fizemos um mapeamento
ainda assim enfrentamos alguma difi- dessas licenças que eram atributo
culdade. Mas achamos que com boa da Secex e, em muitos casos, os pró-
diplomacia, diálogo – até mesmo a prios técnicos tinham dificuldades
participação do ministro Paulo Gue- para explicar por que elas existiam.
des, que já reforçou a posição brasilei- Quando chegamos à Secex, em Vale lembrar que a necessidade des-
ra junto aos sócios do bloco – alcança- 2019, tínhamos plena consciência de sa licença atrasa o processo de im-
remos a margem de 100% almejada. que abertura comercial, nos dias de portação, em média, em 3 dias. Até
hoje, não se faz pensando apenas nos agora, reduzimos em 52% esse vo-
instrumentos tradicionais do GATT lume de emissões de licença – entre
O Acordo de Complementação Eco- (Acordo Geral de Tarifas e Comér- as que envolviam preço de referên-
nômica do Mercosul com Colômbia, cio, na sigla em inglês) ainda que cia, produtos sujeitos a medidas an-
Equador e Venezuela, de 2005, já esses instrumentos – cotas, tarifas, tidumping, casos de investigação de
partiu de um arranjo semelhante, subsídios – sejam importantes, e que regras de origem não preferencial –
com cada país negociando seu cro- ao Brasil ainda reste lição de casa a e esperamos chegar a um corte de
nograma de desgravação, correto? ser feita nesse campo. Como mencio- 75% até o final de 2022.

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Outra coisa que fizemos foi a elimi- trapartida, nós abriremos nosso mer- de produtos importados ao país.
nação do Siscoserv, sistema de registro cado de compras públicas, estimado Como ficou a eliminação de fato
de operações de exportação e impor- em US$ 250 bilhões, levando em con- desse mecanismo, já que o artigo
tação de serviços no país, criado em ta os três níveis de governo. Com esse que formalizava o fim de tal prática
2012 com o objetivo de entregar um acordo, não só as empresas brasilei- foi excluído da MP 1.040, que trami-
mapeamento mais preciso para a for- ras poderão disputar em condições de ta no Congresso?
mulação de políticas que ampliassem a igualdade as compras públicas dos 48 Essa questão do preço de referência
inserção do Brasil nesse comércio. Evi- países que fazem parte desse acordo, permeia, digamos assim, o subterrâ-
dentemente, a ideia era fabulosa. Mas como vamos alinhar nossa normativa neo da política comercial brasileira
a operação foi um desastre, com um em compras públicas às melhores prá- pelo menos desde a década de 1950.
sistema tão burocrático que em mui- ticas internacionais. Nossa estimativa E por que digo isso? Porque não há
tos casos obrigou empresas a destacar é que essa adesão possa gerar cerca previsão legal no ordenamento ju-
equipes específicas para fazer esses re- de 10% em economia, ou R$ 25 bi- rídico brasileiro para a aplicação
gistros junto ao governo, sob pena de lhões ao ano. Além de colaborar no desse mecanismo de preço mínimo.
multa da Receita Federal em caso de Por 70 anos, basicamente o setor
erro. Era algo que gerava um limitante privado chegava na Secex, alegava
de comércio, custos adicionais de tran- que uma mercadoria importada de
sação, burocracia e insegurança jurídi- determinada região chegava com
Nossa média tarifária é três
ca. Decidimos acabar com esse siste- preço que consideravam baixo, a
ma, eliminando esses registros, que em Subsecretaria de Operações fazia
2019 somaram 5,4 milhões. Como sa-
vezes maior que a média uma breve pesquisa internacional e
bemos que eram desnecessários? Por- proibia a importação da mercado-
que para criar essa inteligência poderí-
mundial. Mas atribuir ria com preço abaixo do estipulado
amos trabalhar com o banco de dados como de referência. Quem eram os
de balanço de pagamentos do próprio nosso isolamento à tarifa de principais clientes desse mecanismo?
Banco Central. Que é o que estamos Em ordem, a Associação da Indús-
fazendo agora, inclusive já publica- importação, sem falar em tria Têxtil (Abit), que garantia essa
mos o primeiro relatório anual de cobertura a cerca de 70% das impor-
comércio exterior de serviços (https:// outros pontos da agenda tações têxteis vindas da Ásia; a Asso-
bit.ly/3yckoD4) com dados do BC, de ciação da Indústria de Pneumáticos
2020. Além das economias para em- não tarifária, seria simplista (Anip); a de máquinas (Abimaq), e a
presas e para o governo – a operação de aço (IABR). Todos os fabricantes
do Siscoserv custava cerca de R$ 24 de insumos importantes para o setor
milhões por ano –, com essa mudança industrial. No final dos anos 1990,
também eliminamos a Nomenclatura houve um pedido de consulta rela-
Brasileira de Serviços (NBS), que não combate à formação de cartéis. Com tivo a essa prática feito pelos Esta-
conversava com a nomenclatura inter- o aumento esperado de concorrentes dos Unidos e pela União Europeia,
nacional, o que nos impedia de com- nos certames públicos, esperam-se visando a uma possível abertura de
parar dados com segurança. preços menores e menor probabilida- painel contra o Brasil na OMC. Des-
Ainda no campo dos temas de na- de de formação de conluios. de então, o Brasil parou de aplicar
tureza não tarifária, não poderia dei- esse controle de preço de referência
xar de citar nosso processo de adesão para essas origens, limitando-o ao
ao acordo de compras governamen- Algumas dessas licenças de anuên- continente asiático. Ainda assim,
tais da OMC, que vai abrir um mer- cia que a Secex conseguiu eliminar para ilustrar a importância do que
cado da ordem de US$ 1,7 trilhão por faziam parte do chamado preço de estamos falando, em 2019 esse me-
ano a empresas brasileiras. Em con- referência, que regrava a entrada canismo representou 545 mil licen-

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ças de importação, envolvendo cerca mecanismo, no artigo 8o. Na hora Ainda quanto à facilitação de co-
de US$ 10 bilhões. em que fizemos esse movimento, mércio, há previsão para se concluir
Quando chegamos à Secex, colo- entretanto, a conversa com o setor a implementação do Portal Único
camos a seguinte argumentação: qual privado envolvido nesse tema mu- de Comércio Exterior?
a justificativa para a existência desse dou. Enquanto falávamos de tirar O projeto do portal foi iniciado em
mecanismo? Se fosse por prática de o mecanismo neste governo, houve 2014. A parte das exportações já ha-
comércio relativa a dumping, temos aceitação; quando mencionamos via sido concluída em 2018 pelo go-
a Subsecretaria de Defesa Comercial formalizar essa exclusão em lei, de verno Temer e está operando a 100%
que trabalha justamente para coibir forma permanente, aí a resistência de sua capacidade. Com isso, conse-
práticas desleais de comércio. Fora foi maior. Infelizmente, tivemos que guimos reduzir os atrasos médios nas
isso, não enxergamos a necessida- retirar o artigo, para não prejudicar exportações brasileiras de 13 para
de de um terceiro instrumento para os demais temas tratados nessa MP 6 dias. Agora estamos trabalhando
fazer esse controle. Esse mecanismo – cujo texto aprovado na Câmara, à para concluir o lado das importações.
contraria a normativa internacional exceção da retirada do mencionado Antes, do produto chegar no porto
(do GATT) já internalizada no Bra- até ser liberado para o consumo in-
sil. Se o país quer ascender à OCDE, terno levava em média 17 dias. Ago-
precisa se aproximar das melhores ra, esse prazo já foi reduzido para 8
práticas internacionais, e essa vai no dias. Isso só para o modal marítimo.
Se o país quer ascender
sentido oposto. Se levarmos em consideração modal
Logo, em 2019, ganhamos um marítimo e aéreo, o tempo médio de
reforço com a aprovação da Lei de
à OCDE, precisa se importação caiu para 6 dias. Quando
Liberdade Econômica, que no ar- o processo de implantação for con-
tigo 4o trata da questão do abuso
aproximar das melhores cluído, o que prevemos que aconte-
de poder regulatório, da criação de cerá até o final de 2022, esperamos
reserva de mercado, prejuízo à con- práticas internacionais, e uma melhora ainda maior.
corrência, impedimento à entrada de Também gostaria de citar, nes-
novos concorrentes, dificuldade para essa prática do preço sa área, um projeto de inserção de
livre realização da atividade econô- micro, pequenas e médias empresas
mica. E foi esse artigo que embasou de referência vai no (MPEs) nas cadeias globais de va-
o parecer da Procuradoria Geral da lor. Ele é parte de uma parceria com
Fazenda Nacional (PGFN), dando a sentido oposto o Reino Unido que prevê um inves-
consistência jurídica necessária para timento de 80 milhões de libras em
que fôssemos ao setor privado abrir diversas ações no Brasil até 2023. A
um canal de diálogo para extinção ideia é a criação de uma plataforma
desse mecanismo. Iniciamos esse virtual de exportação, como um gran-
processo em 2019, que se estendeu artigo, me parece melhor do que o de marketplace em que as MPEs que
ao longo do ano passado, e depois original, abrindo caminho para ele- queiram exportar possam expor seus
de um phasing out de 3 meses, esse var a posição do Brasil em 20 pon- produtos, obtendo apoio técnico, lo-
mecanismo foi banido do comércio tos no ranking Doing Business. Não gístico e de acesso a financiamento. A
internacional brasileiro. Entretanto, sabemos se conseguiremos negociar previsão é de que, até 2023, sejam de-
aqui trabalhamos com a perspectiva uma volta do artigo na tramitação senvolvidos nove projetos piloto, que
de que tudo que não se coloca em da MP no Senado. Se não der, pa- incluem comércio exterior de empre-
lei pode ser modificado a gosto do ciência. Faz parte do jogo democrá- sa a empresa, para consumidor final e
inquilino de turno. Então, buscamos tico. Como secretário de Comércio exportação indireta, via fornecimen-
plasmar na MP 1.040, de Ambien- Exterior, entendo que isso é prejudi- to a empresas âncora que exportem a
te de Negócios, a ilegalidade desse cial à economia brasileira. partir do Brasil.

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