Você está na página 1de 80

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE HISTÓRIA

Julia Zaniboni Cerejo

Aprisionamento e transformação na literatura medieval: estudo comparado dos Lais de


Marie de France e das Mil e Uma Noites.

Florianópolis
2021
Julia Zaniboni Cerejo

Aprisionamento e transformação na literatura medieval: estudo comparado dos Lais de


Marie de France e das Mil e Uma Noites.

Trabalho Conclusão do Curso de Graduação em História


do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Santa Catarina como requisito
para a obtenção do título de Bacharel em História.
Orientadora: Profa. Dra. Aline Dias da Silveira

Florianópolis
2021
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Cerejo, Julia Zaniboni


Aprisionamento e transformação na literatura medieval. :
estudo comparado dos Lais de Marie de France e das Mil e
Uma Noites. / Julia Zaniboni Cerejo ; orientador, Aline
Dias da Silveira, 2021.
79 p.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -


Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Graduação em História,
Florianópolis, 2021.

Inclui referências.

1. História. 2. Marie de France . 3. Mil e Uma Noites.


4. confinamento feminino. 5. amor cortês. . I. Dias da
Silveira, Aline. II. Universidade Federal de Santa
Catarina. Graduação em História. III. Título.
AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar à minha família: minha mãe que sempre me deixa encantada
com a força, a gentileza e a felicidade que ela consegue demonstrar frente a qualquer situação.
Ao meu pai que me ensina a ser quem eu sou e me desafia.
À minha irmã, Jade, com quem eu sempre tive um lugar seguro para me expressar da
forma mais sincera e ridiculamente eu.
Ao Leonardo, meu irmão, em quem eu sempre busquei orientação e sempre esteve
conosco.
Ao Fabrício, que torna os dias sempre mais leves e engraçados com o jeito dele de
olhar a vida e sua determinação.
Ao Daniel, meu sobrinho, que tem meu coração todinho.
E a cada uma das pessoas que – estando ou não na minha vida ou no meu cotidiano no
momento – me escutou falar desta pesquisa. Seja nos momentos de puro entusiasmo em achar
uma nova fonte ou uma forma de colocar em palavras o emaranhado de pensamentos que as
fontes me traziam. Ou mesmo em momentos de apreensão quando eu tive a sorte de receber
acolhimento e suporte de pessoas que acreditaram e acreditam em mim. E muitas vezes me
emprestaram esse olhar gentil. Considero a esta pesquisa e a minha transformação como pessoa
durante a graduação, como o resultado destes encontros. O passado, o presente e minhas
esperanças para o futuro me constituem e são igualmente importantes.
Este trabalho foi um verdadeiro processo de descoberta de mim mesma. As damas das
histórias que eu estudo precisaram enfrentar um isolamento ritual para depois se libertar e
encontrar a própria força. Em um paralelo muito curioso, estamos passando, nacional e
mundialmente, por um isolamento. Várias vezes eu busquei conforto no que essas damas
corajosas e essas histórias, maiores que o mundo, poderiam me ensinar. E eu ainda estou em
processo, me livrando ao menos dos aprisionamentos pessoais e inseguranças que se apresentam.
Agradeço imensamente à minha orientadora, Aline Dias da Silveira que me mostrou o
tipo de pesquisadora e professora que eu quero ser e me apresentou uma Idade Média muito
mais viva e interessante, onde os conhecimentos e as pessoas nunca pararam de circular.
Agradeço a cada um dos professores que fizeram parte da minha trajetória durante toda
a minha vida. Pessoas que me fizeram me apaixonar pelo conhecimento de forma irreversível.
E como não poderia deixar de ser, agradeço ao Luan, meu companheiro, que é a melhor
pessoa que eu poderia imaginar para, do meu lado, “descobrir os mistérios do mundo”. Com
quem juntos o futuro parece uma aventura que eu mal posso esperar para conhecer.
Agradeço a todas as pessoas com quem eu pude dividir as angústias, momentos
inacreditáveis e marcantes da faculdade.
Agradeço a cada um dos integrantes do Meridianum e que foi a minha casa e o meu
clã dentro da UFSC.
Escrevo esses agradecimentos com a plena consciência de que nenhuma palavra que
eu disser aqui tem a capacidade de abranger experiências ou meu carinho pelas pessoas da
forma que eu gostaria e que elas mereceriam.
A janela é estreita, a torre é alta. Lá dentro uma dama suspira sua solidão
(COLASANTI, 2001, p. 9).
RESUMO

Com esta pesquisa busca-se estudar o motivo literário do aprisionamento, a partir da


comparação e análise entre um conto das Mil e Uma Noites: “A história dos amores de
Camaralzaman, príncipe das ilhas de Kaledan e Badura, a princesa da China” e dos Lais de
Marie de France: Guigemar e Yonec, com especial atenção para a forma que este motivo
expressa um aspecto da relação entre homens e mulheres, no contexto da nobreza medieval. É
parte também do desenvolvimento psicológico dos personagens aprisionados nas narrativas e
das estruturas míticas que permeiam o imaginário medieval. O primeiro capítulo divide-se em
três partes: a primeira discorre sobre o contexto e legitimação da escrita de Marie de France, e
as duas partes seguintes analisam os contos Yonec e Guigemar, respectivamente. Já no segundo
capítulo, discorre-se sobre os caminhos do saber entre Oriente e Ocidente, seguindo, em
especial, duas rotas: a valorização do conhecimento dentre os árabes em seu processo de
expansão territorial e as possíveis influências árabes no fenômeno do amor cortês e na poesia
trovadoresca provençal. Como metodologia usamos a História Comparada e a análise
Hermenêutica das fontes. Compreendemos a Literatura como uma rica fonte histórica que
reflete, transforma e cria a realidade e utilizamos a mitologia medieval, o imaginário, e a
translatio studii como conceitos principais. Os resultados desta pesquisa apontam para a
conexão entre o aprisionamento e o processo de individuação dos personagens das narrativas.
Sendo assim, o confinamento não representa inércia ou falta de agência e sim é alegoria para
profundas transformações psicológicas.

Palavras-chave: Mil e Uma Noites. Lais de Marie de France. Mitologia medieval.


Confinamento feminino. Literatura medieval. Amor cortês.
ABSTRACT

This research aims to study the literary motif of imprisonment from a comparative analysis
between a tale from One Thousand and One Nights: “The history of the loves of Camaralzaman,
prince of the islands of Kaledan and Badura, the princess of China” and the Lais of Marie de
France: Guigemar and Yonec. With special attention to the way that this motif expresses an
aspect of the relationship between men and women, in a noble medieval context. It is also part
of the psychological development of the trapped characters in the narratives. and of the mythical
structures that permeate the medieval imaginary. The first chapter is divided into three parts:
the first discusses the context and legitimation of Marie de France’s writing, and the two
following parts analyze the short stories Yonec and Guigemar, respectively. In the second
chapter, the paths of knowledge between East and West are discussed, following two routes:
the valorization of knowledge among the Arabs in their territorial expansion process and the
possible Arab influences in the phenomenon of Courtly love and Provençal poetry of the
troubadours as a methodology we use Comparative History and Hermeneutic analysis of the
sources. We understand Literature as a rich historical source that reflects, transforms, and
creates reality. As main concepts we use medieval mythology, the imaginary, and translatio
studii. The results of this research point to the connection between imprisonment and the
individuation process of the characters in the stories. Thus, confinement does not represent
inertia or lack of agency, but is an allegory for profound psychological transformations.

Keywords: One Thousand and One Nights. Marie de France. Medieval Mythology. Female
confinement. Medieval literature. Courtly love.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Roman de la Rose. London, British Library Ms. Harley 4425, f. 39r. Brugge ca.
1490. .......................................................................................................................... 31
Figura 2 - Roman de la Rose. València, Biblioteca Històrica, Universitat de València, Ms 387,
f.146v. Paris ca. 1410. .......................................................................................................... 32
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12

2 LINGUAGEM E ESCRITA FEMININA SEGUNDO MARIE DE FRANCE .... 21

2.1 GUIGEMAR: SOBRE TORRES E CINTOS DE CASTIDADE ................................ 27

2.1.1 Estudo do conto ...................................................................................................... 28

2.2 YONEC: “DE QUE TEM MEDO QUE ME MANTÉM EM TÃO FORTE
PRISÃO?” ............................................................................................................... 39

2.2.1 Estudo do conto ...................................................................................................... 40

3 AMOR, POESIA E SABER ENTRE ORIENTE E OCIDENTE ......................... 47

3.1 SOBRE VIAGENS E A VALORIZAÇÃO DO SABER ENTRE OS ÁRABES. ....... 47

3.2 A POESIA AMOROSA DE AL-ANDALUZ E O TROVADORISMO..................... 50

3.3 O PRÓLOGO MOLDURA....................................................................................... 58

3.3.1 Resumo do conto ..................................................................................................... 61

3.3.2 Estudo do conto ..................................................................................................... 62

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 69

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 73
12

1 INTRODUÇÃO

Quantas histórias já não ouvimos sobre donzelas presas em torres, vigiadas por
dragões, bruxas, madrastas ou maridos ciumentos? O que será que o aprisionamento quer nos
dizer sobre a jornada das personagens? E o que este motivo literário nos diz sobre as sociedades
nas quais ele se desenvolve?
Movido por essas curiosidades, o seguinte trabalho é o estudo comparado de fontes
literárias do Ocidente e do Oriente medieval para explorar o desenvolvimento de um mesmo
elemento em contextos diversos. E ainda, mergulhar nas conexões entre culturas que podem ter
colocado nossas fontes em diálogo, ou ao menos criado ambientes de produção de
conhecimento que colhiam de influências semelhantes.
Nossas fontes são os contos Yonec e Guigemar dos Lais de Marie de France e o conto
“A história dos amores do príncipe Camaralzaman das ilhas dos filhos de Kaledan e de Badura,
princesa da China”, presente nas Mil de Uma Noites.
Seis dos doze Lais de Marie de France abordam casamentos infelizes sob a perspectiva
feminina e exploram as estratégias usadas pelas mulheres para se expressar ou alcançar o amor
(KRUEGER, 2002, p. 80-91). Muitas vezes, com a ajuda de objetos e animais mágicos
originados de um maravilhoso céltico,1 que interage e se mistura com elementos cristãos. São
eles: Yonec, Guigemar, Bisclavret, Laüstic, Milun e Chevrefoil (BLOCH, 2003, p. 57-58).
Dentre estes contos, escolhemos Guigemar e Yonec por abordarem o aprisionamento
feminino por conta do matrimônio. A partir da análise deles pretende-se compará-los com a
história de Chamaralzaman e Badura. Essa narrativa nos conta de uma princesa que não queria
se casar para não ter que obedecer a um marido. Com essa recusa, o pai de Badura a trancou
em um aposento e prometeu sua mão em casamento a quem conseguisse curá-la de sua
“loucura”. Enquanto isso, na Pérsia, um príncipe – que posteriormente se apaixonaria por

1
A maravilha no medievo se caracteriza pela raridade, pelo espanto e admiração que inspira e refere-se ao
assombro visual já que vem da raiz mir que origina as palavras miror e mirari (surpreender-se) e mirus
(surpreendente). A partir do século XI e passando pelos séculos XII e XIII ocorreu um florescimento do
maravilhoso em face do acolhimento que teve por parte da cultura laica cortês que se interessava pelo folclore
rural e queria tanto ampliar suas fontes de conhecimento quanto aumentar os benefícios da vida terrena. (LE
GOFF; SCHIMITT, 2002, p. 106-108). “no domínio literário o lai e o romance cortês veem-se totalmente
penetrados pelo maravilhoso, e a aventura cavalheiresca, é em si própria uma maravilha” (LE GOFF;
SCHIMITT, 2002, p. 108). A presença do maravilhoso pede mais pela visão, pela audição e pelo sentir do que
do que do entendimento e o pensamento (SILVEIRA, 2011, p. 5).
13

Badura – foi preso em uma torre porque seu desprezo pelas mulheres e pela perspectiva de um
casamento eram prejudiciais ao reino (GALLAND, 2015, p. 480-485).
Pretendemos entender o papel do aprisionamento em ambas as fontes, tanto narrativa
quanto socialmente, e estudar o que este motivo literário representa para a relação entre homens
e mulheres nestes dois espaços culturais distintos. Com o objetivo de questionar a imagem de um
feminino indefeso e submisso à espera de resgate, que normalmente é associado ao medievo.
Os Lais de Marie de France foram escritos em pleno século XII, um período de enorme
florescimento cultural no Ocidente. As línguas e literaturas2 regionais começaram a se formar,
concorrendo com o latim. No mesmo período, as primeiras universidades foram criadas e
traduções de obras greco-romanas e árabes foram feitas em um constante fluxo de
conhecimento que atravessava três continentes – África, Ásia e Europa – pelas rotas de
mercadorias, saberes e pessoas ao longo de toda a antiguidade e a Idade Média (CARVALHO,
2009, p. 33-39).
A história da África, Ásia e Europa estão conectadas por rotas de comércio, relações
diplomáticas e guerras desde a antiguidade. Essa conexão se expande no milênio
muçulmano3 desde a antiguidade – como chamaremos aqui – esse momento histórico
com espaços axiais de conexão: a região mediterrânica, a região do Mar Negro, do
Mar Cáspio e a do Mar Arábico entre a África Oriental e a Índia Ocidental. Juntos
com as rotas terrestres da seda que passam pelas pradarias turco-mongóis e a Báctria,
o trânsito entre os três continentes era conhecido e experimentado em viagem que
poderiam durar grande parte da vida dos viajantes, como nos casos de Ibn Batutta,
Benjamim de Tudela e Marco Polo (SILVEIRA, 2019, p. 142).

Além disso, circulavam traduções feitas muitas vezes diretamente do árabe, que
passavam por pessoas de diversos credos e culturas, de forma que as obras eram comentadas e
enriquecidas, formando um repertório cultural que transcendia a separação que temos hoje entre
Ocidente e Oriente.

As relações da Europa com os muçulmanos ocorriam, de um lado, pela Espanha, e


sobretudo por Toledo; do outro, pela Sicília e o reino de Nápoles. O trabalho dos
tradutores era realizado nestes dois pontos com igual ardor e pelos mesmos
procedimentos. Quase sempre um judeu, às vezes um muçulmano convertido,
desbastava a obra e aplicava a palavra latina ou a palavra vulgar sobre a palavra árabe.
Um clérigo presidia o trabalho, encarregava-se do latim e dava seu nome à obra.

2
O termo “literatura” não existia na Idade Média de acordo com a concepção que temos hoje. O termo em latim
litteratura referia-se à leitura comentada de autores ou à gramática. As línguas vulgares não possuem um termo
para atividade ou obras literárias, porém há uma consciência da ação literária em seu conjunto e suas características
específicas (LE GOFF; SCHIMITT, 2002, p. 79). O termo aqui é usado com o propósito de simplificação.
3
A autora Aline Dias da Silveira (2019, p. 142) caracteriza o milênio muçulmano como o período entre o século
VII e o século XVII da era cristã, marcado pela expansão árabe.
14

Algumas vezes, no entanto, levava também o nome do secretário judeu, de onde


decorre que uma mesma tradução seja frequentemente atribuída a personagens
diferentes. Nos séculos XII e XIII, as traduções eram feitas sempre diretamente do
árabe. Somente muito mais tarde, começou-se a traduzir os filósofos árabes sobre
versões hebraicas (RENAN, 1992, p. 146 apud MONTEIRO, 2021, p. 422).4

O ambiente que gestou os Lais de Marie de France era um onde o romance se difundia
enquanto gênero, assim como as canções de gesta5 e as cantigas trovadorescas6, que circulavam
nas vozes dos poetas nas cortes do mundo latino e do mundo árabe. Os romances reuniam
influências greco-romanas, germânicas, celtas e árabes, e ajudavam a cavalaria a se afirmar
como grupo social e criar uma identidade própria (CARVALHO, 2009, p. 36-43).
Nessa época extremamente dinâmica, Marie de France quis eternizar a memória das
aventuras que circulavam oralmente pela corte de Henrique II (5 de março de 1133 – 6 de julho
de 1189) e Eleonor da Aquitânia (1122 — 1 de abril de 1204), transformando-as em poesia
escrita e as adaptando aos ideais da cortesia e do amor cortês. A corte de Eleonor era famosa
por ser um reduto das artes e ela própria, assim como seu avô – Guilherme IX (22 de outubro
de 1071 – 10 de fevereiro de 1126), o primeiro trovador conhecido na Europa – tiveram muitas
oportunidades de interação com o mundo árabe. Alguns destes momentos serão abordados no
segundo capítulo do presente trabalho.
A cortesia – já citada – era um conjunto de regras de comportamento feitos para a
aristocracia que prezava pela polidez, pelo refinamento, a honra e a elegância, como forma

4
Texto original: Las relaciones de la Europa con los musulmanes tenían lugar de un lado por España, y sobre todo
por Toledo; del otro por Sicilia y el reino de Nápoles. El trabajo de los traductores se operaba en estos dos puntos
con igual ardor y por los mismos procedimientos. Casi siempre un judío, s a menudo un musulmán convertido,
desbastaba la obra y aplicaba la palabra latina o la palabra vulgar sobre la palabra árabe. Un clérigo presidia el
trabajo, se encargaba del latín y daba su nombre a la obra. Algunas veces, sin embargo, llevaba también el
nombre del secretario judío, de donde proviene el que una misma traducción sea frecuentemente atribuida a
personajes diferentes. En los siglos XII y XIII, las traducciones se hadan siempre directamente del árabe. Sólo
mucho más tarde se empezaron a traducir los filósofos árabes sobre versiones hebraicas (Tradução de Francisco
César Manhães Monteiro).
5
As canções de gesta são um gênero épico que celebra ideais guerreiros, estabelecendo uma ancestralidade
gloriosa com relação àqueles que escutam essas aventuras, fortalecendo modelos de comportamento e valores
da cavalaria cristã (ARIAS, 2019, p. 302).
6
Fenômeno caracterizado pela ação de poetas e músicos que surgem a partir do século XI no contexto de
urbanização e aumento do comércio em longas distâncias que possuíam “um saber inteiramente dedicado à
capacidade de viver intensamente, ao envolvimento amoroso, à exaltação da natureza, à experiência da
verdadeira liberdade e, sobretudo, à fina arte de tecer versos e fazer da própria vida individual, ela mesma, uma
obra de arte.” Conhecidos pela itinerância que “facilitava trocas culturais e criava uma grande malha que recobria
o ocidente europeu com seu tecido de versos e sonoridades,” os trovadores são figuras que se opõem a ideia da
rigidez medieval (BARROS, 2007, p. 84-86).
15

de afirmar uma superioridade e se diferenciar de outros grupos sociais (RÉGNIER-BOHLER,


2002, p. 47-48).
Já o amor cortês foi uma tendência iniciada por trovadores e trovadoras medievais
nas formas de sentir e expressar o amor, que se aproximava dos rituais de vassalagem e
transformaram os modelos de sensibilidade do Ocidente. Era um amor contraditório e
extremo. Idealizado e sublime, mas cheio de erotismo, que buscava ao mesmo tempo
expressar os sentimentos da nobreza intensamente, porém de uma forma controlada e trágica
(BARROS, 2008, p. 2-7).
O desejo expresso por essa poesia era maior do que tudo. Maior do que a própria vida,
mas inalcançável, porque a dama desejada era superior em hierarquia social ou comprometida.
O amor tinha que ser expresso, mas não poderia ser descoberto para que a reputação da dama
não fosse arruinada. E ela era a musa e suserana do eu-lírico que deveria sofrer até a morte por
seu amor, se necessário (BARROS, 2008, p. 2-7).
As ideias sobre o amor e as maneiras de expressá-lo são fenômenos históricos de
longuíssima duração presentes em muitas culturas que muitas vezes interagiam entre si e se
influenciavam. Sendo assim, é difícil delimitar ou limitar tais manifestações a uma cultura apenas,
pois os fenômenos históricos e culturais não são criados de forma isolada ou independente de
outras regiões ou culturas circundantes. Com isso em mente e levando em conta os diversos
pontos de intersecção entre o mundo latino e o mundo árabe no momento de florescimento da
poesia amorosa provençal e do amor cortês, argumentamos uma possível influência da literatura
amorosa árabe no desenvolvimento do romance e da poesia amorosa europeia.
É importante lembrar que as éticas amorosas descritas na literatura convivem, refletem
e ajudam a criar as relações entre as pessoas na sociedade. As representações literárias
medievais não são estáticas, ainda que possam seguir modelos. Ao invés, são representações
complexas das relações humanas e nos contam muito das sociedades retratadas (KRUEGER,
2002, p. 80). Muitas vezes de forma sutil à própria linguagem, as metáforas e alegorias usadas
subvertem e aumentam a diversidade dos modelos de conduta. E elas não são criações
desinteressadas, muitas vezes servindo para a legitimação de grupos e práticas, sendo elementos
extremamente políticos (BARROS, 2011, p. 201-202).
Na sociedade de Marie de France o direito à palavra era masculino. As mulheres eram
descritas por clérigos e aristocratas que não conheciam a vivência feminina e defendiam a
inferioridade delas para se afirmarem (CARVALHO, 2009, p. 124). Nas palavras de Virginia
16

Woolf (2014, p. 30), “as mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos
e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural”. Portanto, devemos
considerar que Marie não teve completa liberdade discursiva: muitas vezes ecoa os ideais de seu
meio ou os subverte, seguindo um contexto literário específico (CARVALHO, 2009, p. 125).
Apesar disso, a autora reclama um lugar entre seus contemporâneos no meio literário
que se construía (WHALEN, 2011, p. 5), como expressa a citação a seguir: “Ouvi, senhores, o
que diz Maria, que não passa seu tempo distraída” (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 40). Marie
constrói personagens femininas que desafiam definições simplistas, idealizações ou condenações,
e o julgamento da escritora se adapta a diferentes situações (GUTHRIE, 1972, p. 1). As damas
de Marie são perspicazes e muitas vezes são suas palavras que impulsionam a narrativa
(KRUEGER, 2003, p. 176).
Marie de France, assim como seus pares, participava da translatio studii, que era o
movimento de saber de um lugar, tempo e/ou cultura para outro. Buscava-se a acumulação, a
transformação e a transmissão do saber, tanto entre o Oriente e Ocidente, quanto entre o passado
e o presente, de forma colaborativa, visando enriquecer e refinar uma tradição já existente
(LONGARD, 2016, p. 17-24).
Da mesma forma, ao longo de sua expansão durante os impérios Omíada e Abássida,
o mundo árabe trouxe consigo uma valorização impressionante pelo conhecimento e um grande
esforço para que ele fosse aprimorado a partir do contato com as culturas encontradas. E
levando em conta que os árabes “dominaram a Espanha por quase oito séculos, a Sicília por
dois séculos, Creta por 125 anos, instalaram-se em Malta e fundaram colônias no sul da França”
(YOUSIF, 1980, p. 2, tradução nossa)7 temos um vislumbre do mosaico cultural que se formou.
Estruturalmente, o primeiro capítulo (item 2) deste trabalho será dividido em três
partes: a primeira será dedicada aos usos da linguagem e estratégias de legitimação de Marie
de France, a segunda e terceira (itens 2.1 e 2.2) se dedicarão às análises dos Lais Yonec e
Guigemar respectivamente.
O segundo capítulo (item 3), intitulado “Amor, poesia e saber entre Oriente e
Ocidente”, é também dividido em três partes: na primeira discute-se os possíveis caminhos de
intercâmbio cultural que podem ter posto elementos das nossas duas fontes em contato e criado
ambientes de produção de saber com influências comuns. Para isso, no item 3.1 falaremos um

7
Texto original: They held Spain for almost eight centuries, Sicily for two centuries, Crete 125 years, and they
settled in Malta and founded colonies in Southern France (YOUSIF, 1980, p. 2).
17

pouco sobre a valorização de saber dentre os árabes, que favoreceu a criação e a difusão de
saberes entre as três religiões monoteístas – cristianismo, judaísmo e islamismo – com especial
atenção para trocas entre árabes e cristãos, por serem as que nossas fontes contemplam.
No item 3.2 iremos explorar a possível influência árabe na poesia trovadoresca e nos
ideais do amor cortês que viriam a se espalhar por toda a Europa e iriam moldar a escrita dos
Lais de Marie de France. No item 3.3 pretende-se fazer a análise do prólogo moldura das Mil e
Uma noites, com especial atenção para o papel do feminino na narrativa. No item 3.3.2 faremos
então a análise do conto “A história dos amores de Camaralzaman, príncipe da ilha dos filhos
de Kaledan, e de Badura, princesa da China”, buscando paralelos com as análises dos contos
Yonec e Guigemar e os significados narrativos do aprisionamento na história.
Os aportes teóricos que sustentam esta pesquisa partem da História do Imaginário para
entender o conjunto de imagens coletivas que se formam e transformam ao longo do tempo.
Atravessando todos os aspectos da vida das pessoas, orientando suas ações e alimentando seus
pensamentos. Para o contexto medieval Ocidental, europeu e cristão devemos considerar que
as fronteiras entre o imaginário e o mundo material são muito mais fluídas do que as atuais. O
próprio cristianismo institucional se esforçou para interiorizar a visão de mundo dos fiéis, já
que o olhar interno podia perceber verdades mais profundas e próximas de Deus do que o
mundo exterior poderia. Portanto, os sonhos, a mística e a abstração que ajudam a constituir
essas imagens mentais coletivas desempenhavam um importante papel na cosmovisão cristã
ocidental (LE GOFF, 1994, p. 16).
Usaremos o conceito de mitologia medieval segundo a concepção de Hilário Franco
Júnior (1996, p. 47-51), que entende as mitologias como conjuntos de narrativas sempre em
transformação, que se expandem, agregando outras e expressando os sentimentos e verdades
mais profundas de uma sociedade. Os mitos retratam o seu contexto e ajudam a transformá-lo,
influenciando muito os valores e comportamentos das pessoas (FRANCO JR., 1996, p. 53).
Para realizar a análise dos contos de Marie de France levando em conta os elementos
mitológicos que os cercam utilizaremos as contribuições de Joseph Campbell, a partir do
conceito de jornada do herói delineada em sua obra Herói de mil faces.
Interpretamos também o cristianismo medieval a partir da perspectiva mitológica,
apesar dos esforços do cristianismo institucional em negar sua própria natureza mítica,
atribuindo um caráter fabuloso e falso à mesma. Segundo os clérigos, os mitos escondiam as
verdades da fé. Mas, “se o cristianismo medieval era um vasto sistema de representações,
18

mentais, verbais, gestuais e imagísticas através do qual os homens de então atribuíam certa
ordenação e sentido ao universo, era exatamente porque ele era uma mitologia” (FRANCO
JR., 1996, p. 53).
Nesta pesquisa defendemos a aproximação entre a História e a Literatura, dado que
ambas podem ser vistas como narrativas que se entrecruzam, dando voz aos anseios dos
indivíduos e criando significados a partir da realidade. Compreendemos a Literatura para além
da ideia de verdadeiro e falso, e como parte da percepção de mundo compartilhada por um
grupo, ajudando a construir o imaginário e transformando a sociedade. Cabe refletir que o
exercício do historiador é também de imaginação, para alcançar a vivacidade das experiências
humanas ao longo do tempo (PESAVENTO, 2003, p. 32-37).
A metodologia deste trabalho se insere no campo da História Comparada, que segundo
José D’Assunção Barros (2007, p. 23-24), consiste na iluminação recíproca de dois recortes de
pesquisa histórico-sociais distintos, a partir de uma problemática comum. E usaremos a
Hermenêutica imaginativa, para diminuir a distância entre a visão de mundo medieval e a
contemporânea. Pretendemos, partir da interpretação dos próprios conceitos e noções medievais,
nos aproximarmos da forma mais respeitosa e imersiva possível do pensamento medieval.
Entendemos as fontes primárias como vozes que podem ressoar em nós e estão
preenchidas de suas próprias questões. Buscamos manter o diálogo constante com elas
(SILVEIRA, 2016, p. 86-87) tentando criar uma sintonia, um ritmo e experiência de tempo
semelhantes (SCHUBACK, 2000, p. 32-33). Além disso, procuramos considerar a
materialidade dos textos, as subjetividades de seus criadores e de que forma essas fontes foram
recebidas por seus meios (SCHUBACK, 2000, p. 11-28).
O que rege a Hermenêutica imaginativa é a responsabilidade com a transformação do
presente e a construção de um mundo mais igualitário e acolhedor, portanto, nega-se a
neutralidade no estudo do passado. Defendemos também a necessidade de se pensar nas
aplicações práticas do conhecimento histórico para o cotidiano das pessoas. Esse futuro melhor
implica em olhar para o mundo como ele poderia ser e não só para como ele está no momento
(SCHUBACK, 2000, p. 28-33).
Em termos de bibliografia, iremos destacar Critical analysis of the roles of women in
the Lais of Marie de France de 1976, na qual Jeri S. Guthrie parte de uma esquematização dos
papéis das personagens nas histórias para mostrar sua centralidade e complexidade, assim como
19

os momentos de crítica ou diálogo da autora com os ideais prevalecentes, em especial a


literatura cortesã e a idealização do feminino (GUTHRIE, 1976, p. 1).
Em Anonymous Marie de France, publicada em 2003, na qual Howard Bloch analisa os
trabalhos da escritora individual e comparativamente, atentando para seus principais temas e
conceitos, seu uso da linguagem e seus silêncios. Aborda a relação da autora com a memória (sua
preservação e transmissão), com a oralidade e sua fixação no meio escrito, a recepção de um texto
e sua relação com o saber já existente (BLOCH, 2003, p. 24-28).
Já a obra A companion to Marie de France, de 2011, reúne trabalhos de especialistas
em diferentes aspectos da obra de Marie de France. No primeiro capítulo Logan Whalen aborda
o trabalho de legitimação retórica da autora à partir de seus prólogos e epílogos. No segundo
capítulo Emanuel J. Mickel explora os usos da tradição greco-romana nos Lais. No terceiro,
Roberta L. Krueger nos conta sobre a visão da autora acerca do amor, seu tema central. No
quarto Judith Rice Rothschild destaca o grande aumento de estudos acerca dessa fonte, e suas
principais características. No quinto Glin Burgess compara os Lais levando em conta seus
personagens, temas, estruturas e técnicas literárias. E, finalmente, no sexto capítulo Matilda
Tomaryn Bruckner estuda os significados dos animais, importantes para entender o conto
Guigemar e seu entrelaçamento com diferentes tradições (WHALEN, 2011, p. X-XII).
A dissertação de Ligia Cristina Carvalho, publicada em 2009, debruça-se sobre a
temática do amor cortês na obra de Marie de France, a partir de uma perspectiva historiográfica,
começando por traçar as escassas informações sobre a identidade da autora, seu contexto
histórico e literário e prosseguindo para descrever os diferentes personagens e manifestações
do amor cortês nos Lais de Marie de France (CARVALHO, 2009, p. 10-17).
Para a análise em específico do elemento do aprisionamento feminino na obra de Marie
de France usaremos o artigo Barred Windows and Uncaged Birds: the Enclosure of Woman in
Chrétien de Troyes and Marie de France, de Jean-Marie Kauth, que enxerga esses espaços não
somente como exemplos materiais de controle masculino sobre o corpo feminino, mas também
como lugares de agência e resistência. São espaços criadores e iniciáticos que subvertem a
ordem patriarcal original (2010, p. 34-67). Levando em conta essa resistência, usaremos o artigo
The Power of Feminine Anger in Marie de France's Yonec and Guigemar, de Jennifer Willging,
publicado em 1996, acerca do poder subversivo da revolta feminina nos Lais Yonec e Guigemar
e a posição que expressam sobre o adultério, em diálogo com as estratégias anti-matrimoniais
do amor cortês (1986, p. 123-135).
20

Para o estudo do elemento das viagens e seus significados na estrutura narrativa das
Mil e Uma Noites, escolhemos o estudo The Thousand and One Nights: space, travel and
transformation, publicado em 2007, por Richard van Leeuwen; e o artigo de Beatriz Bissio
sobre o papel e simbolismo das viagens nas narrativas islâmicas, em 2010.
Para explorar as conexões entre o mundo árabe e o mundo latino utilizamos a obra The
Arabic Role in Medieval Literary History, de Maria Rosa Menocal. Ainda neste tópico,
utilizamos a tese de mestrado Hispano-arabic poetry, the provençal medium, and middle
english lyrics, de Abdul-Salaam Yacoob Yousif.
Sobre as fontes primárias utilizadas para esse trabalho recorreremos à edição traduzida
para o português por Antônio. L. Furtado dos Lais de Marie de France, direto do francês antigo
e publicada em 2001 pela editora Vozes, que reúne integralmente os doze Lais conhecidos,
precedidos por um enriquecedor prefácio contextualizando historicamente a obra. Já para
analisar o Mil e Uma Noites utilizaremos a edição, em dois volumes, contendo a versão de
Antoine Galland, estudioso orientalista que traduziu para o francês, adaptou e complementou
as narrativas que hoje conhecemos como as Mil e Uma Noites, a partir do mais antigo
manuscrito das histórias e realizando por princípio o tipo de intercâmbio cultural que
exploraremos neste trabalho (DEMIEN, 2017, p. 13). Essa edição é traduzida por Alberto Diniz
e foi publicada pela editora Nova Fronteira.
21

2 LINGUAGEM E ESCRITA FEMININA SEGUNDO MARIE DE FRANCE

Marie de France é muito consciente do seu uso da linguagem. Seus silêncios e suas
palavras são muito bem pensados (BLOCH, 2003, p. 24). Ela brinca com as palavras usando
trocadilhos e repetições propositais que criam novas camadas de significados e nuances
(ROTHSCHILD, 2011, p. 110). A escritora se insere em uma tendência artística de
relativização de significados e valorização da subjetividade. E discute a forma que seus
personagens se relacionam com a sociedade, pensando a relação entre homens e mulheres e a
integração do feminino na sociedade medieval (BLOCH, 2003, p. 24).
As mulheres foram e são submetidas a um silenciamento sistemático que surge,
dentre outros muitos pilares, do medo que suas palavras despertam. Esse medo gerou uma
série de preconceitos: como a ideia de que mulheres falam demais, ou são capazes de
manipular, enfeitiçar e seduzir com as palavras. Assim, durante o século XII, no Ocidente,
não era bem-visto que mulheres se dedicassem a assuntos muito abstratos ou que escrevessem
(BLOCH, 1991, p. 14-37).
A relação entre o feminino e o masculino foi construída a partir de dicotomias: O
homem seria o portador da essência e da substância; a mulher estaria ligada à fragmentação, à
degradação e à multiplicidade. Adão seria participante ativo da unidade, da eternidade e da
universalidade do divino, sendo associado com a alma e o espírito; já Eva seria responsável pelo
princípio animalesco, a luxúria, o desregramento e a decadência (BLOCH, 1991, p. 25-37).
O homem era associado com a inteligência; a mulher com os sentidos. Portanto parte
da legitimação da superioridade masculina vinha da lógica de que o intelecto, a racionalidade
e o autocontrole deveriam governar os aspectos menos elevados da humanidade como o
prazer, a luxúria, a desordem, a irracionalidade e a emoção que a mulher representava
(BLOCH, 1991, p. 25-37).
Considerando a importância de legitimar a escrita feminina nessa conjuntura e a
importância que a linguagem tem nas motivações e nos temas dos Lais, é prudente começar
esta pesquisa analisando os prólogos de Marie, onde ela descreve seu projeto de escrita. Os
prólogos servem a funções retóricas e emolduram o texto.
Dentre estas estratégias retóricas está a técnica captatio benevolentiae, que pretende
prender a atenção do leitor/ouvinte e conseguir sua boa vontade, influenciando suas emoções e
valores. Essa estratégia foi mencionada primeiro em Boécio, em comentário a Cícero, e podemos
22

encontrar exemplos em textos de Quintiliano e Homero. Seu uso é comum tanto em discursos
públicos durante a antiguidade quanto em textos literários medievais (ANDOKOVÁ, 2016, p. 2).
No prólogo, Marie de France deixa claro que o artista tem a obrigação de compartilhar
o conhecimento que ele ou ela detém, mas que este não é um caminho fácil. A tarefa é árdua e
a escritora demonstra muita preocupação com a recepção de seu trabalho e os possíveis
impactos desta recepção em sua reputação. Ela reflete sobre a forma que o conhecimento criado
por aqueles que vieram antes dela deveria ser estudado e interpretado de forma a enriquecer
este conteúdo com novas camadas de significado. E fala sobre a enorme responsabilidade em
se lidar com uma matéria prima de um alto valor cultural (KRUEGER, 2003, p. 173).
Logo no primeiro parágrafo dos Lais, iniciamos com Deus abençoando o artista com
o dom do discurso e o dever de falar. Essa é uma referência a tradição bíblica, onde a criação
começa com a palavra. E a obrigação de falar quando se tem algum conhecimento era um topos
comum ao período, servindo a Marie e a seus contemporâneos como justificativa para a escrita
(causa scribendi) (BLOCH, 2003, 36-39).

Quem recebeu de Deus o conhecimento e o dom de falar com eloquência8 não se deve
calar nem se esconder; pelo contrário, deve estar pronto a aparecer. Quando um
grande bem se faz ouvir, começa primeiro a brotar e quando é elogiado por muitos, é
então que se abre em flores9 (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 39).

Era comum que poetas no fim do século XII e no século XIII começassem sua prática
de forma metalinguística, escrevendo ou declamando sobre o próprio ato de escrever. Além
disso, o trecho faz referência à parábola dos talentos, em Mateus 25:14-30, que condena aqueles
que desperdiçam os dons de Deus quando escolhem não se instruir, mesmo tendo condições e
capacidade para tanto (BLOCH, 2003, p. 37). Falando em um meio dominantemente masculino,
Marie de France tem a irreverência de se colocar dentre os grandes autores de seu tempo que
possuiriam a eloquência e o conhecimento para escrever com a bênção de Deus (WHALEN, 2011,
p. 4-5) e reivindica seu espaço naquele meio e a atenção de sua audiência dizendo: “ouvi, senhores,
o que diz Marie, que não passa seu tempo distraída (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 40).

8
Pode ser entendido como a capacidade do artista de organizar a matéria tratada de maneira a apresentar a uma
audiência de forma atrativa. Quanto a Marie isso especialmente se manifesta em sua habilidade descritiva
(WHALEN, 2011, p. 6).
9
O florescer enquanto metáfora nos remete à fertilidade e à vida; e assim como a esterilidade e a morte, são temas
constantes nos Lais e comuns na tradição da lírica e do romance medieval (WHALEN, 2011, p. 6-7).
23

Esse trecho também é um importante exemplo do uso do topos auctoritas que perpassa
toda a obra. Trata-se de um conceito muito heterogêneo que teve diferentes usos ao longo da
Antiguidade e da Idade Média dificultando sua definição. Mas o que se pode afirmar para a
compreensão de nossa fonte é que a autoridade de um texto vinha da tradição. Dos saberes do
passado. Ao invés de um senso de autoria e originalidade individuais, o medievo construía um
conhecimento colaborativo por meio de técnicas retóricas e narrativas que iam agregando
autoridade e influência cultural aos textos (SUMMIT, 2003, p. 91-93).
Deus era considerado a autoridade por excelência: A garantia maior da legitimidade e
verdade do texto, responsável por toda e qualquer criação. Da mesma forma, a maior de todas
as fontes era a Bíblia, por ser a palavra divina (ZIOLKOWSKI, 2009, p. 432-433).
Logo a seguir, no prólogo, Marie de France justifica a adaptação de uma matéria
cultural já existente a um novo contexto, inserindo-se na tradição translatio studii e utiliza a
menção a Prisciano 10 – uma autoridade retórica e gramática do século VI – para aumentar sua
credibilidade e a da corte para a qual escrevia, além de ressaltar seu treinamento retórico
(WHALEN, 2011, p. 8-11):

Era costume entre os antigos, como testemunha Prisciano, exprimir-se de modo


bastante obscura nos livros que outrora escreviam. Assim, os que viriam depois e que
deveriam aprender com eles teriam motivo para adicionar suas glosas à letra dos
antigos, contribuindo com sua interpretação para suprir o que faltasse. Os filósofos
sabiam disso; eles próprios entendiam que, quanto mais tempo aplicassem ao estudo,
mais sutil compreensão alcançariam e melhor saberiam guardar-se contra o que
estivesse por vir. Quem do vício quer se defender deve estudar e propor-se a
empreender uma obra trabalhosa. Graças a ela poderá evitar ou, senão livrar-se das
grandes dores (MARIE DE FRANCE, 2001, p.39).

A translatio studii pode ser entendida como a movimentação do saber de um lugar,

tempo, e cultura para outra. O refinamento colaborativo dos textos por meio da retórica e da
troca cultural era um poder e uma responsabilidade fundamentais ao trabalho de escritores
medievais, que se consideravam herdeiros destes saberes antigos. O importante não era a
fidelidade e objetividade na reprodução das fontes – como é costume atualmente – mas sim
colocar o mundo da fonte em diálogo com o presente deles, misturando as visões de mundo
(LONGARD, 2016, p. 21-24).

10
Aponta-se que essa menção faz referência ao primeiro parágrafo de Institutiones grammaticae que versa sobre
as intenções dos autores antigos. Um importante tratado gramático largamente usado para propósitos
educacionais durante a Idade Média. Ou da obra Praeexercitamina, uma tradução latina da obra Progymnasmata
datada do século II E.C., cujo autor é o retórico Hermogenes de Tarso (WHALEN, 2011, p. 8-11).
24

Marie de France usa sua autoridade enquanto compiladora de saberes antigos para dar
legitimidade para a herança cultural bretã, equiparando-a com a herança latina – muito mais
prestigiada – que ela tinha inicialmente pensado em adaptar (LONGARD, 2016, p. 20-21): “Por
tudo isso que, de início, pensei em ocupar-me com alguma estória clássica, adaptando-a do
latim para o francês, mas não me pareceu que valesse a pena: era o que tantos outros haviam
feito!” (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 39). Nesse trecho, Marie também parece se preocupar
em não soar como todas as outras vozes, ou seja, realizar um trabalho original.
Marie cria uma sensação de familiaridade e comunhão entre a fonte, ela própria, e sua
audiência. 11 Suas histórias criam uma continuidade e um passado compartilhado entre a cultura
bretã e a anglo-normanda, colocando os anglo-normandos como herdeiros de direito da cultura
bretã. Assim, ela ao mesmo tempo ajuda a legitimar a conquista anglo normanda sobre os
bretões e ajuda a preservar a memória dos conquistados (LONGARD, 2016, p. 29-30).
Além disso, ela usa a linguagem para fragilizar as barreiras entre o passado (da fonte) e
seu próprio presente, assim ela e seus leitores/ouvintes vivem a temporalidade das histórias. As
maravilhas desse passado parecem possíveis e pertencentes a sua audiência também. Marie aceita
a alteridade da fonte e elementos de origens diversas coexistem (LONGARD, 2016, p. 29-30).
A seguir, na dedicatória do prólogo, Marie de France elogia um “nobre rei”, segundo
os valores corteses que permeiam toda a obra e utiliza o topos da capitatio benevolentiae. Essa
técnica servia para aproximá-la da virtude cristã da humildade e ajudava a conquistar a simpatia
da audiência (CARVALHO, 2009, p. 31-32). Ainda assim, Marie se dirige diretamente a um
homem. Esse ato poderia ser considerado descortês, principalmente por ele ser um rei. Porém,
Marie suaviza o ato para ser bem recebida (FREEMAN, 1984, p. 860). Podemos ver ainda um
reforço a metáfora botânica que mencionamos anteriormente quando ela aponta que no coração
todo o bem deita raízes (WHALEN, 2011, p. 15).

Em honra a vós, nobre rei, que tanto sois bravo e cortês, favorecido por toda a alegria
e em cujo coração todo bem deita raízes, dediquei-me a coletar lais e a recontá-los em
versos rimados. Em meu coração pensei, senhor, e disse a mim mesma que os
presentearia a vós. Se vos agrada recebê-los, muito grande júbilo me darás, para
sempre isso me deixará contente. Não me tomeis por presunçosa se vos ouso entregar
este presente (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 40).

11
O anglo-normando é um dialeto do francês antigo, falado no território insular pela aristocracia normanda que se
firmou literariamente como língua da nobreza durante os séculos XII e XIII, como forma de hierarquização e
distinção (CAVALHERO, 2011, p. 3).
25

A escritora tem consciência de que “mandar seu texto ao mundo” implica uma perda
de controle – um perigo que ela considera inevitável – e que é impossível controlar os usos
feitos de seu nome ou os sentidos dados ao texto. É visível a sua preocupação com os impactos
do texto em sua reputação e com a recepção que ele terá, como expresso logo no início de
Guigemar, a história que analisaremos a seguir (BLOCH, 2003, p. 11-12):

Quem de boa matéria trata, muito lhe pesa se não o faz bem. Ouvi, senhores, o que diz
Maria, que não passa seu tempo distraída. Todos deveriam louvar a quem faz por ganhar
boa fama, mas em qualquer país em que haja homem ou mulher de grande valor, é
comum que os que invejam sua sorte espalhem vilanias: querem aviltar seu mérito; e
assim comportam-se como o perverso cão covarde, traiçoeiro, que morde as pessoas por
maldade. Nem por isso vou desistir: se por força de zombaria ou de lisonja querem
deixar-me mal, é direito deles a maledicência! (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 41).

Nesse trecho pode-se interpretar que a inveja é o resultado esperado quando alguém
faz um bom trabalho. A escrita vem com este preço e implica na vulnerabilidade da escritora.
O pagamento por este sacrifício seria a recepção gentil de uma audiência (BLOCH, 2003, p.
11-13): “Quando um grande bem se faz ouvir, começa primeiro a brotar e quando é elogiado
por muitos, é então que se abre em flores”. (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 41). Sua
preocupação não é infundada já que ao longo do tempo seu trabalho foi muitíssimo comentado
(BLOCH, 2003, p. 11-13).
Esses críticos atribuem a ela características culturalmente associadas ao feminino e a
uma moralidade cristã, tais como: simplicidade, espontaneidade, delicadeza, modéstia, clareza,
sinceridade, capacidade de confortar. Tal retrato muitas vezes foi utilizado para rebaixar sua
poesia e não condiz com a sofisticação de sua linguagem e com as questões que seu trabalho
propõe. Nos mostram mais sobre a visão de seus críticos do feminino do que sobre Marie de
France ou seu texto (BLOCH, 2003, p. 14-19).
O único comentário de um contemporâneo de Marie que chegou até nós é de um
poeta que trabalhou para a corte de Henrique II, chamado Denis Pyramus, na obra Vie Seint
Edmund, Ie Rei:

E assim como Lady Marie


que fez e compilou em rimas
e compôs os versos dos lais
que não são verdadeiros de forma alguma
e por eles ela é muito elogiada
e sua rima é amada por todos
Porque muitos gostam, lhes dá muita alegria
26

condes, barões e cavaleiros


e eles são tão enamorados da escrita
que frequentemente eles leem e recontam
o que lhes dá muito prazer
É costume que os lais agradem às damas
com alegria e prazer elas escutam as coisas
que são feitas de acordo com o seu desejo
(PIRAMUS, apud PAPPANO, 2003, p. 339, tradução nossa)12

O poema questiona a veracidade dos Lais e critica o gosto da corte por eles.
Provavelmente com o objetivo de reafirmar a obra do próprio Pyramus. Porém, é um
testemunho da repercussão e apreciação da audiência pela escrita de Marie que colocava em
foco os anseios femininos (PAPPANO, 2003, p. 338-339). As damas não ficavam encantadas
apenas pelas lindas histórias e sim porque tinham o prazer de ver ali refletidas a vida que
conheciam e a si mesmas, de forma ainda mais bonita do que imaginariam e mais acolhedora
do que a realidade (MASON, 1911, p. 1-7). Por meio do maravilhoso, Marie constrói um
refúgio onde sua audiência podia encontrar alguma compreensão e liberação do cotidiano.
É importante salientar que Marie de France não era “a frente do seu tempo”, como é
comum se dizer, ou a única mulher notável em sua época. Ela fazia parte de um rico universo
feminino que produzia conhecimento e exercia poder em diversas regiões. Dentre as
governantes, pouco antes do período de Marie, havia a rainha Matilda de Flandres; na Itália,
Mathilde da Toscana e Adelaide de Susa; na França, Eleonor da Aquitânia sobre quem já
comentamos anteriormente, que cercou-se e financiou a criação de artistas e poetas (dentre eles,
provavelmente a própria Marie de France), difundindo os ideais do amor cortês. Dentre as
poetas podemos destacar Lady Lullach e Liadain, na Irlanda; e Maria Alphaizuli e Libana, da
Espanha (COLASANTI, 2001, p. 13). Dentre as mulheres de saber durante o século XII, de
diferentes localidades podemos destacar Ava von Göttweig (1060-1127),13 Hildegard von

12
Texto original: And likewise Lady Marie / who made and assembled in rhyme / and composed the verses of the
lais, / which are not at all true; / and for this she is much praised / and the rhyme loved by all, / Because many
like it, they have much joy, / country, barons, and knights; / and they are so enamoured of the writing / that they
often have them read and recounted, / by which they have pleasure / The lais are accustomed to please ladies, /
with joy and pleasure they listen to those / things that are made according to their desire.
13
Ava viveu na Áustria e foi a primeira poetisa conhecida na língua alemã. Depois da morte do marido, ela se
tornou monja beneditina na abadia de Göttweig. Desde 2001, como forma de reconhecimento, um prêmio
literário bienal em sua honra chamado Literaturpreis Frau Ava é entregue para obras em alemão que tratem de
temas espirituais, religiosos ou políticos de forma notável (COSTA; COSTA 2012, p. 46-48).
27

Bingen (1098-1179),14 Heloïse de Argenteuil (1101-1164),15 Beatriz de Dia (1140-1180),16


Anna Komnēnē (1083-1153)17 e Herrad de Landsberg (1130-1195)18 (COSTA; COSTA 2019,
p.46-110). Esses são apenas alguns exemplos de mulheres que nos levam a questionar a
passividade que atribuímos às mulheres medievais e a ideia de um medievo obscuro e estéril.
A visão de que alguém possa pertencer fora de seu tempo faz parte de uma crença em
um tempo linear e progressivo. É acreditar em uma visão pré-estabelecida e fixa de como um
período como a Idade Média deveria ser. E todo o brilhantismo que escape da visão iluminista
e colonizada que nos condicionou não pode pertencer a esse período, portanto é “a frente de
seu tempo”. Um período é composto por muitas experiências de tempo diferentes – tão diversas
quanto as pessoas que o vivem – e o período entendido como Idade Média é complexo “bifurcado,
labiríntico”, interconectado e não deve ser reduzido apenas a divisões ou linhas didáticas e
políticas, ou mesmo a uma concepção de medievo apenas masculino (PEREIRA, 2019).

2.1 GUIGEMAR: SOBRE TORRES E CINTOS DE CASTIDADE

A história pode ser rapidamente resumida da seguinte forma: havia, na Bretanha, um


cavaleiro muito amado por todos, chamado Guigemar, que não tinha nenhum interesse pelos
jogos do amor. Esse cavaleiro feriu uma corça branca em meio a uma caçada e a flecha voltou
e o feriu na coxa. O animal, lamentando-se, amaldiçoou Guigemar a só ser curado da ferida
pelo amor de uma dama que sofreria muito por ele.
O cavaleiro, buscando ajuda, cruzou um campo e encontrou um barco esplêndido e
mágico. Esse barco o levou para as terras de um rei muito velho e ciumento que mantinha sua

14
Hildegard foi uma monja beneditina, escritora, médica, mística, artista plástica, musicista, compositora e
dramaturga, que descreveu em diversas obras e cartas suas visões e reflexões sobre teologia, a relação entre o
micro e o macrocosmo e a relação entre o ser e o divino dentre muitos outros temas (COSTA, 2012, p. 195).
15
Heloise desde jovem mostrava uma instrução notável e se tornaria uma importante abadessa. Em suas cartas
desenvolveu argumentos filosóficos e teológicos que revelam um profundo conhecimento de retórica, lógica e
dialética (COSTA, COSTA, 2019, p. 101-108).
16
Importante trobairitz que cantou o amor durante o século XII e nos legou o único poema trovadoresco de autoria
feminina cuja música continua intacta (COSTA; COSTA, 2019, p. 230-231).
17
Princesa bizantina versada em filosofia, história, literatura, gramática, teologia, astronomia e medicina.
(COSTA, COSTA, 2019, p. 228-230).
18
É “conhecida como autora da obra Hortus deliciarum (Jardim das delícias), que é um manual ou compêndio de
324 páginas, escrito ao mesmo tempo em latim e alemão, oferecendo uma enciclopédia de ciências (artes
liberais) e teologia em palavras e imagens (iluminuras), além de poesias e hinos a serem utilizados por religiosos
e leigos nas escolas” COSTA; COSTA, 2019, p. 110-101).
28

esposa sob a vigilância de um padre eunuco. Nas paredes do quarto da moça se erguia em destaque
a pintura de Vênus, a deusa do amor lançando ao fogo o livro de Ovídio sobre a arte de amar.
Em um passeio pelo jardim – o único espaço que a dama podia circular – a dama e sua
aia encontraram Guigemar. Ela cuidou dele e lhe contou a sua situação. Eles se apaixonaram
profundamente, e viveram juntos por um ano e meio. Sentindo que eles seriam descobertos, a
dama pediu que ele fosse embora com um nó na camisa que só ela poderia desfazer. Ele em
troca pediu que ela usasse um cinto de castidade. Mas, antes que ele fosse embora, eles foram
vistos. Guigemar, então, contou ao marido da dama a aventura que o levou até ali e conseguiu
provar a verdade de suas palavras. Por isso, o senhor o deixou ir. A dama, ao contrário, ficou
presa em uma torre de mármore por mais de dois anos.
Depois destes dois anos de muita angústia e saudade, a dama decidiu que se
conseguisse escapar de sua prisão, ela iria se afogar na costa de onde Guigemar tinha ido
embora. Se arrastando até a porta, a dama a encontrou misteriosamente aberta. Ela então,
conseguiu escapar e encontrou o barco mágico ancorado à sua espera.
Ela entrou nele e foi levada até as terras de Meriaduc, um grande senhor da Bretanha.
Meriaduc a queria como esposa, mas ela não lhe deu atenção. A moça só poderia amar aquele
que abrisse o seu cinto sem quebrá-lo. Meriaduc então lhe contou que havia um cavaleiro com
uma história como a dela em terras vizinhas. Um com um nó na camisa que só poderia ser
desfeito por uma dama. Para resolver esta questão, Meriaduc chamou Guigemar em sua corte e
o desafiou em batalha pelo amor da dama. Guigemar terminou vitorioso e libertou sua amada,
com quem viveu dali por diante.

2.1.1 Estudo do conto

Nossa aventura começa descrevendo o personagem de Guigemar como “sensato,


valoroso e muito amado por todos”, porém a natureza lhe tinha faltado em um aspecto: ele não
tinha nenhum interesse nos jogos do amor, apesar de muitas damas o solicitarem. Por isso todos
lhe davam por “perdido”. Em um contexto em que os casamentos eram acordos políticos e
econômicos entre senhores de terras, um primogênito como Guigemar não querer se casar era
um grande problema que ameaçava a continuidade da sua família (KRUEGER, 2011, p. 60).
Em uma caçada, Guigemar atira sua flecha em uma corça branca escondida com sua
cria. A corça cai ferida, mas a flecha ricocheteia e atinge Guigemar na coxa. Então o animal o
29

amaldiçoa a somente ser curado de sua chaga pelo amor de uma dama que sofreria muito por
ele. Esse amor seria a maravilha e o exemplo para todos que amaram ou amarão um dia (MARIE
DE FRANCE, 2001, p. 43). A corça representa o mensageiro do destino que inicia o herói em
sua jornada. Esse é o momento do chamado da aventura que dá início ao processo de
individuação e transformação dos padrões de vida do personagem. A corça é andrógina e
representa a fertilidade, a natureza e a harmonia entre masculino e feminino (CAMPBELL,
1949, p. 38-41). A matando, Guigemar mostra que está com esses atributos em desequilíbrio e
por isso sua jornada é necessária.
A cor branca da corça19 (candidus, em sua etimologia) indica o candidato a passar por
uma transformação. Para os medievais, o branco estava associado ao Além, por isso é a cor
usada pelos druidas, ligada aos anjos, santos e fantasmas (FRANCO JR, 1996, p. 127). A
floresta por onde Guigemar passa – assim como a maior parte dos espaços naturais na literatura
medieval – é lar para seres mágicos e maravilhas que se ligam muito a uma influência céltica.
A floresta representa o imprevisível da natureza, onde aventuras, perigos e maravilhas
acontecem. Se opõe às regras estabelecidas socialmente e se alinha com o elemento feminino
da história (BURGESS, 2011, p. 147).
Guigemar se afasta dos outros homens e de seu meio cortesão, entrando em um barco
mágico – o auxílio sobrenatural – que o levará para terras distantes, deslocando o centro de
gravidade da narrativa para o desconhecido (CAMPBELL, 1949, p. 41). Todos os contatos com
o maravilhoso e aproximações com a natureza indicam a travessia da sutil fronteira entre o
profano e o sagrado (ELIADE, 1992, p. 26).
As terras nas quais Guigemar chega são governadas por um homem muito velho que
Marie critica por seu ciúme desmedido, próprio da idade. Talvez criticando o próprio costume
dos casamentos arranjados entre meninas muito novas e senhores, por patrimônio.
Para além da reprodução das pessoas, os casamentos durante o século XII buscavam a
perpetuação do sistema cultural que ordenava as relações entre indivíduos, estabelecendo
funções e poderes socialmente aceitáveis para o feminino e o masculino. Nesse contexto, o
desejo do casal, em especial, das mulheres, não era muito relevante (DUBY, 1988, p. 11-12).

19
A caçada a um animal branco que aparece em Guigemar é um tema frequente em várias histórias em francês
antigo durante os séculos XII e XIII. Em Graelent a caça leva o cavaleiro de encontro a uma fada. Em Erec
et Enide a caçada é comandada por Artur que deve matá-lo para escolher a moça mais bonita da corte. Em
Tyolet o animal é símbolo do Graal e deve ser presenteado a uma dama feérica para ter sua boa vontade
(MICKEL JR, 2011, p. 35).
30

Socialmente era preciso definir as uniões mais convenientes para a manutenção dos
privilégios das famílias nobres, por isso um casamento não era apenas entre um casal, mas sim
a junção de duas linhagens. E, para garantir a preservação da riqueza, era preciso passar a
herança para um número restrito de herdeiros legítimos (DUBY, 1988, p. 11-12).
Essa constante preocupação com a fragmentação de heranças e a linhagem gerava um
controle quase obsessivo da fidelidade das mulheres (BLOCH, 2003, p. 59). As damas eram
vistas como seres sexuais pouco confiáveis e difíceis de controlar, portanto eram
constantemente vigiadas, para que casassem virgens e quando esposas, não colocassem filhos
de outros homens na linhagem. (DUBY, 1989, p. 17). A circulação das mulheres nobres nos
ambientes era limitada ao espaço privado, enquanto os homens podiam circular livremente
(DUBY; BARTHÉLEMY; RONCIÈRE, 2009, p. 90).
A arquitetura ajudava a manter estas barreiras entre o corpo feminino e o mundo: torres,
cercas, jardins, muros e diferentes setores em uma moradia não eram aleatórios e faziam parte do
sistema de valores existente. A tal ponto que símbolo iconográfico para a pureza feminina se
tornou a torre (JARITZ, 2006, p. 28-30), formando um imaginário que perdura até hoje.
Um bom exemplo disso é a obra Roman de la Rose de meados do século XIII, onde
um cavaleiro tenta conquistar a pureza de uma dama, que é representada por uma rosa,
cuidadosamente guardada em um castelo. Posteriormente esta história foi ricamente ilustrada,
representando em imagens este motivo literário. Na figura 1, logo a seguir, por exemplo, uma
mulher dentro de um castelo é retratada olhando tristemente para fora enquanto um homem
segura as chaves da propriedade. E na figura 2 a alegoria entre o castelo e o corpo da mulher
fica ainda mais evidente, já que o corpo feminino se torna o castelo e é penetrado por uma
espada (LANDEWÉ, 2010, p. 108).
31

Figura 1 - Roman de la Rose. London, British Library Ms. Harley 4425, f. 39r. Brugge ca. 1490.20

Fonte: LANDEWÉ, 2010, p. 108.

20
É possível acessar o manuscrito on-line: http://www.bl.uk/manuscripts/FullDisplay.aspx?ref=Harley_MS_4425.
Acesso em: 26 nov. 2021.
32

Figura 2 - Roman de la Rose, València, Biblioteca Històrica, Universitat de València, Ms


387, f. 146v. Paris ca. 1410.21

Fonte: LANDEWÉ, 2010, p. 109.

A relação entre o corpo da mulher e o castelo passa a ideia de que ela está contida;
restrita; isolada do mundo, mas ainda assim é objeto de desejo a ser possuído. O próprio obstáculo
representado por seu isolamento a torna mais convidativa. O castelo ou torre como alegoria
mapeia o corpo da mulher para que ele seja mais facilmente compreendido, representado e
conquistado de forma que o avanço do homem no castelo torna-se uma metáfora sexual.

21
Não encontramos o manuscrito digitalizado.
33

Este recurso literário também está presente em um poema do século XIV, escrito por
Van de Borch Vroudenrijc, de onde hoje é a Alemanha: ele escreve sobre um ideal de mulher
perfeita para a audiência da corte do Conde Jan van Blois, no sul de Paris, na França
(LANDEWÉ, 2010, p. 109):

Nele a cabeça da mulher ideal é apresentada como um castelo. Seus olhos são janelas,
sua boca é simbolizada pelo grande salão, seus dentes são as cadeiras nesse salão e
seu queixo é formado pelas fundações do castelo. O castelo-cabeça está no topo de
uma oliveira e os ramos formam os braços, mãos e dedos da dama. O castelão desse
lindo castelo é o coração puro da dama e ele está sendo assistido por cinco cavaleiros,
os cinco sentidos da dama. Juntos eles têm que resistir a intrusos cruéis (LANDEWÉ,
2010, p. 109, tradução nossa).22

Porém, esta alegoria não é estática, nem ao longo do tempo, nem nas palavras de
autores diferentes em um mesmo contexto, portanto a abordagem desse motivo literário em
Roman de la Rose e nos Lais de Marie de France é bastante diferente. Enquanto no primeiro o
corpo e os espaços femininos são representados como perigosos, não confiáveis e
desconhecidos, no segundo estes ambientes de clausura são também de criação. São tratados
com proximidade e detalhamento, de forma que a lógica masculina pode ser subvertida para o
benefício das damas (KAUTH, 2010, p. 34-35).
Além disso, por ter uma origem oral e ser feito para passar por várias formas de
expressão como a fala, a escrita e o canto, as metáforas nos Lais são ainda mais versáteis e
maleáveis, podendo ser transformadas conforme a vontade das performances e audiências.
Assim como podem assumir uma materialidade e uma visualidade muito maior, uma vez que
em sociedades cuja oralidade tem muita relevância, as imagens e alegorias tendem a tornar
presente aquilo que se fala na mente dos leitores ouvintes. E em meio ao aumento da
importância da ideia de privacidade a partir do século XII, a alegoria se enriquece cada vez
mais em significados contextuais e sociais (KAUTH, 2010, p. 35-38):

A defesa da honra consistia em primeiro lugar em erguer um anteparo diante do


público: o temor de ser desonrado pelas mulheres da casa explica ao mesmo tempo a
opacidade arranjada em torno da vida privada e o dever de vigiar de perto as mulheres,

22
Texto original: in which the head of the ideal woman is presented as a defensive castle. Her eyes are windows,
her mouth is symbolized by the great Hall, her teeth are the chairs in this hall and her chin is formed by the
castle’s foundations. The head-castle is at the top of an olive tree of which the branches form the arms, hands
and fingers of the lady. The castellan of this beautiful castle is the ladies’ pure heart. The castellan is being
assisted by five knights, the five senses of the lady. Together they have to withstand vicious intruders.
34

de mantê-las tanto quanto possível enclausuradas, e se era preciso fazê-las sair, para
as cerimônias ostentatórias ou para as devoções, de escoltá-las [...] Mulheres
encerradas no recinto, para que homens da casa não sejam maculados por suas
extravagâncias, para que estas permaneçam ocultas, no segredo da privacidade. Salvo
se sua falta, se o adultério era proveitoso, se era boa a ocasião para se desembaraçar
de uma esposa estéril ou aborrecida, de uma irmã da qual se temia que reclamasse
parte de herança (DUBY; BARTHÉLEMY; RONCIÈRE, 2009, p. 90-92).

Este motivo literário e o contexto de restrição das mulheres nobres é muito bem
exemplificado no Lai Guigemar de Marie de France, tanto o enorme esforço do senhor para
conter sua esposa:

Não facilitava quanto a guardá-la. Em um vergel, ao pé do torreão, havia um espaço


circundado por um muro de mármore verde muito grosso e alto. Tinha uma única
entrada, que era guardada noite e dia, sendo que o mar o cercava pelo outro lado.
Ninguém que precisasse entrar no castelo ou sair dele, poderia fazê-lo a não ser de
barco. Para encerrar a mulher seguramente, o senhor mandara construir no interior
desse espaço emuralhado uma habitação [...] Ali era a dama mantida prisioneira. [...]
Até que ele retornasse, nenhum homem ou mulher podia entrar ali ou sair além das
muralhas. Um velho padre de florida cabeça branca guardava a chave do póstigo;
perdera seus membros de baixo, sem o que não teria a confiança do senhor. Prestava
os ofícios religiosos e servia comida (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 44-45).

Quanto à perspectiva da dama sobre seu isolamento, quando ela explica a Guigemar
sua situação e expressa a raiva que sente pelo padre que a vigia:

– Belo e caro senhor, de bom grado vos atenderei. Esta cidade pertence a meu esposo,
bem como todo o território em volta. É homem rico, de alta estirpe, mas muito idoso
e agoniado pelo ciúme. Pela fé que vos devo, digo-vos que me prendeu neste cercado.
Para o exterior não há senão uma passagem. Um velho padre guarda a porta; queira
Deus que fogos malditos o queimem! Estou confinada aqui dia e noite e nenhuma vez
ouso sair, salvo quando ele avisa que meu marido me chama (MARIE DE FRANCE,
2001, p. 46-47).

Ainda que às vezes a raiva feminina apareça nos Lais de forma estereotipada e
moralizante, em Guigemar ela parte de um lugar mais sincero: expressa a solidão, o tédio e a
frustração da dama. Esses sentimentos parecem ser acolhidos como naturais, conduzindo os
leitores ouvintes a empatizar com a personagem (WILLGING, 1995-96, p.123).
Os espaços femininos da casa, apesar de símbolos de desterro e restrição, também
eram espaços de expressão, divertimentos e trabalhos, porque é impossível eliminar a
capacidade criativa e as trocas humanas de acontecerem a despeito das normas de conduta.
Como tudo que é desconhecido, esses espaços escapavam à compreensão dos senhores e
35

criavam uma lógica própria dentro da dinâmica da casa nobre, gerando curiosidade e temor nos
homens (DUBY; BARTHÉLEMY; RONCIÈRE, 2009, p. 90).

O poder masculino se sentia impotente diante dos sortilégios, dos filtros que debilitam
ou então curam, acendem o desejo ou extinguem-no. Detinha-se à porta do quarto
onde os filhos eram concebidos, postos no mundo, os doentes cuidados, os defuntos
lavados, onde, sob o império da mulher, no mais privado, estendia-se o domínio
tenebroso do prazer sexual, da reprodução e da morte (DUBY; BARTHÉLEMY;
RONCIÈRE, 2009, p. 90)

Dizer que a circulação e as escolhas das mulheres da corte eram limitadas não quer
dizer que as damas não tinham poder ou possibilidades de negociação e subversão
(CAVALHEIRO, 2011, p. 9). Correlacionar espaços e poder não significa uma oposição entre
quem tem e quem não o tem, mas sim falar sobre as diferentes formas nas quais ele se manifesta
(DUBY; BARTHÉLEMY; RONCIÈRE, 2009, p. 90). Senão, existe o risco de ignorar a agência
de mulheres que viveram em ambientes restritivos.
No conto Guigemar o quarto da dama é um bom exemplo de subversão de espaços: na
parede se erguia orgulhosamente uma pintura de Vênus, que jogava ao fogo um livro de Ovídio,
onde ele ensina a reprimir os impulsos do amor. A pintura de Vênus desempenha um papel
didático ensinando como se deve amar lealmente e rejeitar a repressão do sentir (MARIE DE
FRANCE, 2001, p. 45).
Para Krueger (2002, p. 83) esse trecho substitui a autoridade masculina de Ovídio, por
uma deidade feminina que traz uma mensagem muito mais espontânea e libertadora do amor.
De acordo com Whalen (1996, p. 210), Marie de France se alinha e, até certo ponto, se compara
com a deusa do amor para reafirmar a autoridade de sua escrita.
Segundo Tracy Adams (2005, p. 287) enquanto Ovídio dá prioridade à satisfação dos
desejos sexuais, Marie dá prioridade ao amor enquanto sentimento moral e natural. Portanto,
ainda que a autora reconheça a influência retórica e temática de Ovídio em sua obra, citando-o
diretamente, as concepções de ambos sobre o amor são muito diferentes.
O gesto de Vênus é de desafio e faz com que o quarto seja um domínio da dama. Um
espaço para a expressão de sua individualidade e sexualidade. Nos dá acesso a sua revolta com
a injustiça de seu casamento e legitima seu posterior romance com Guigemar. É onde toda a
relação deles se desenvolve, e é o reflexo concreto e personalizado das experiências da moça
36

(DÍAZ, 2005, p. 598). É um espaço onde o cavaleiro pode se curar e aprender pelas mãos da
dama, ressaltando a autoridade e os saberes dela.
Não se sabe se foi a própria dama quem pintou o mural em sua alcova ou se foi seu
marido, porém é irônico que o quarto que deveria servir como prisão para dama e garantir sua
castidade, seja justamente o espaço onde uma deidade feminina reina, enaltecendo a paixão e
permitindo a infidelidade ao marido. A pintura entra em franca contradição com os aspectos
restritivos e estéreis da história: a prisão da dama, o padre eunuco, o marido velho e ciumento
e o casamento infeliz (WHALEN, 1996, p. 210).
O amor na história é descrito como uma ferida. Um sofrimento que precisa ser
satisfeito para ser curado, senão pode levar os amantes à morte (MARIE DE FRANCE, 2001,
p. 47). Ainda que o cavalheiro não entendesse bem o que sentia, seu sofrimento era tanto que
ele sabia que se a dama não o socorresse, a morte o levaria, sem dúvidas. A associação entre
amor e morte/sofrimento está nas raízes do amor cortês e ajudou a fundar a concepção ocidental
do amor. Habitam em nossos filmes, nossas músicas e literatura infinitas histórias de amantes
que “morreram de amor”.

Amor e morte, amor mortal: se isso não é toda a poesia, é, ao menos, tudo o que há
de popular, tudo o que há de universalmente emotivo em nossas literaturas; em nossas
mais antigas lendas e em nossas mais belas canções. O amor feliz não tem história.
Só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela
própria vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz
fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão
significa sofrimento. Eis o fato fundamental (ROUGEMONT, 1988, p. 15).

O amor nos Lais é comparado ao fogo. Uma chama que dura muito, por vir da natureza.
Marie critica aqueles que amam de forma leviana. Esse amor é contraditório e exige lealdade,
compromisso e serviço segundo as normas da cortesia e dos rituais feudo-vassálicos.

Mas quem não revela sua enfermidade dificilmente terá cura. O amor é uma grande
chaga dentro do coração que por fora não se percebe; é mal que dura muito porque vem
da natureza. Vários levam o amor na galhofa, como aqueles vis cortesãos que
galanteiam por toda a parte, e depois se gabam do feito. Isso não é amor, mas insensatez,
maldade e libertinagem! Quem consegue encontrar alguém leal no amor muito deve
servi-lo e amá-lo e estar a seu comando (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 49).

Acerca da sexualidade expressa em nome do amor fora dos laços do casamento:


37

Dama, por Deus, piedade! Não vos enoje que vos diga: a mulher leviana de profissão
faz-se rogar por longo tempo para valorizar-se, e também para que não pensem que já
provou desse deleite. Mas a dama de bons propósitos, que tem em si valor e senso, se
ela encontra um homem a seu gosto, não se fará de orgulhosa em demasia diante dele,
e sim o amará e gozará dele. Antes que alguém perceba ou escute contar terão
aproveitado o mais que podem (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 50).

Depois de um ano e meio de relação, a dama previu que o caso seria descoberto e a
roda da fortuna dos amantes iria girar. Portanto ela pediu a seu amado que fosse embora, mas
antes, ela fez um nó que apenas ela poderia desfazer nas pontas de sua camisa. Assim, mesmo
separados, ela teria certeza da fidelidade dele. O cavaleiro, em troca, pediu que ela colocasse
um cinto de castidade e só amasse aquele que o conseguisse abrir sem quebrá-lo.
O nó e o cinto representam fidelidade 23 e são uma forma de identificação quando os
amantes se reencontram na corte de Meriaduc. A alegoria do nó lembra rituais de fidelidade de
povos celtas. Porém, a proximidade desses objetos dos órgãos sexuais e seu papel na restrição
da sexualidade não pode ser ignorada (DINGELDEIN, 2014, p. 16)
A temática das amarras e dos enlaces é uma constante nesse conto e ecoa a própria
restrição da dama. O nó na camisa de Guigemar, por exemplo, rima tematicamente com o enlace
que a dama fez para que o cavaleiro se curasse de sua ferida na coxa. Esses objetos não
representam apenas restrição corporal, mas também moderação, disciplina, fidelidade e o
aprendizado na arte do amor que Guigemar precisa para completar sua iniciação
(DINGELDEIN, 2014, p. 17). Ao longo da narrativa Marie mostra a transformação de
Guigemar de um homem não iniciado que rejeita envolvimento tanto emocional quanto sexual
para o ideal de cavaleiro cortês.
A união arranjada é a antítese do ideal de amor que o conto constrói, portanto, a
fidelidade deve ser mantida entre os amantes e não dentro do casamento. Isso nos mostra que a
noção de fidelidade aqui depende da situação: do consentimento da dama e do amor envolvido.
A infidelidade da moça só ocorre por causa dos maus tratos que ela sofre em seu casamento,
que é uma prisão tanto material quanto psicológica (DINGELDEIN, 2014, p. 18-19).
Os amantes foram descobertos pelo marido, como previsto, e Guigemar contou a ele
sua aventura. O senhor afirmou que Guigemar poderia ir embora se pudesse provar a veracidade

23
Marie de France relaciona esse item com a relação e a fidelidade dos amantes. Em outras histórias que contém
práticas e objetos semelhantes ao cinto de castidade, como as de Rabelais e Brantôme, o objeto é uma imposição
do marido ciumento, usualmente rico. Porém é comum que haja um amante para a dama e que essa traição seja
causada pelo ciúme obsessivo do marido. Seu controle desperta na esposa a necessidade de liberdade e vingança,
culminando em um caso extraconjugal, assim como nos Lais de Marie de France (KEYSER, 2008, p. 255-256).
38

da trajetória que o levou até ali e assim aconteceu. Já a dama foi presa por dois anos ou mais
em uma torre, como mostra a descrição a seguir: “seu senhor a aprisionara em uma torre de
mármore escuro. Passava mal de dia e pior de noite; ninguém no mundo poderia dizer de sua
grande pena, nem do martírio, nem da angústia, nem da dor que a dama sofria na torre” (MARIE
DE FRANCE, 2001, p. 52).
A infidelidade teve consequências muito mais severas para a dama do que para
Guigemar, que pode simplesmente ir embora. A forma que Marie descreve o impacto emocional
da clausura na moça é forte e o texto é vago o suficiente para preenchermos as lacunas com
inimagináveis sofrimentos que uma mulher em sua situação iria passar em um lugar isolado,
nas mãos de um marido – já cruel – depois dela tê-lo traído.
Em um gênero literário como o Lai, cuja principal característica é ser breve, é notável
a quantidade e a potência das palavras que Marie usa para descrever esta cena. Depois desse
período a dama consegue fugir, encontrando a porta da torre magicamente aberta. O barco que
havia ajudado Guigemar estava à sua espera na costa e a levou até a corte de um nobre senhor
chamado Meriaduc que a tomou como pretendente.
Com essa personagem, assim como no conto Yonec, que será analisado em seguida,
Marie nos dá mais um exemplo de suas personagens mal-casadas (malmarrie). Esta temática
se repete em mais cinco de seus Lais: Guigemar, Bisclavret, Laüstic, Milun e Chevrefoil. E
reflete a experiência vivida de muitas jovens, filhas e esposas, a partir de um olhar feminino
(ROTHSCHILD, 2011, p. 103).
O perfil dessas personagens se relaciona com o subgênero de canções de
mulheres trovadoras, chamado “mal-maridada” (chanson de malmariée). Nelas as poetisas
criticam os casamentos arranjados por seus pais, denunciam e lamentam a infelicidade de seus
casamentos e a violência de seus maridos, assim como desejam por aventuras e amantes
corteses, como no exemplo da canção a seguir da trovadora Compiuta Donzella que escreveu
durante o século XIII (DEPLAGNE, 2019, p. 30-31):

Na estação em que o mundo fronda e flora


cresce o prazer dos corteses amantes:
seguem juntos pelos jardins afora
até os passarinhos solfejam diletantes;
a franca gente se enamora,
e para servir cada um se coloca adiante,
e cada donzela em alegria mora;
e em mim abundam tristeza e choro angustiante.
39

em casa meu pai me colocou no erro,


e me mantém contínua em grande aflição:
doar-me quer à força a um senhor,
e eu disso não tenho desejo nem afeição,
e grande tormento vivo todas as horas;
por isso não me alegra nem flor nem fronda
(DEPLAGNE, 2019, p. 30-31).

Ou na canção anônima a seguir:

Quando longe o ciumento,


Vem pra mim, belo amigo.
O bailado tem me alegrado
Quando longe o ciumento...
Tornando o desprazer agrado
Quando longe o ciumento...
Pelo doce canto cantado
À noite e de manhã, por nós ouvido.
Se acaso, amigo, vos terei
Quando longe o ciumento
No meu quarto, que enfeitei
Quando longe o ciumento
Com prazer o beijarei
Pois bem de vós tenho ouvido.
Se o ciumento me ameaça
Quando longe o ciumento
Utilizando pau ou maça
Quando longe o ciumento
E se bater assim o faça
“Não mudará meu coração”, afirmo
(DEPLAGNE, 2019, p. 32).

Esses exemplos mostram que a insatisfação com os casamentos arranjados era um aspecto
comum que atravessava diversas regiões e formas de expressão feminina. É notável a não
submissão dessas canções e das personagens de Marie e a forma evidente e aberta com que esses
eu-líricos femininos expressam seus desejos. As comparações entre gêneros literários com
motivações e aspectos semelhantes é importante para localizar a obra de Marie de France dentro de
seu contexto, reconhecer suas influências e a diversidade de vozes e obras femininas com anseios
parecidos, combatendo a ideia de que Marie de France era uma exceção ou um caso isolado.

2.2 YONEC: “DE QUE TEM MEDO QUE ME MANTÉM EM TÃO FORTE PRISÃO?”

O conto pode ser resumido da seguinte forma: Um homem rico e idoso se casa com
uma linda dama de alta linhagem. Por ciúme ele a prende em uma torre e coloca sua irmã mais
velha – uma senhora viúva – para vigiar a moça. Por sete anos ele espera que a dama, ainda
40

presa, lhe dê um herdeiro, enquanto ela perde sua beleza e vontade de viver. Um dia enquanto
a dama lamenta sua infelicidade e deseja por um amor como aqueles dos tempos de outrora –
quando as mulheres podiam escolher seus amantes e viver aventuras – um pássaro entra por sua
janela e se transforma em um belo cavaleiro chamado Muldumarec. Ele diz que foram as
palavras dela que o trouxeram e que ele voltará sempre que ela assim desejar. Para provar sua
boa natureza, o pássaro se dispõe a assumir a forma da dama e receber a hóstia sagrada. E assim
a dama o aceita como amigo. Eles vivem juntos e felizes por algum tempo, e um filho é
concebido, porém o cavaleiro prevê que logo eles serão descobertos e isso matará Muldumarec.
A previsão se cumpre e Muldumarec é ferido em uma armadilha do marido da dama.
Logo em seguida a dama pula da janela da torre sem se machucar e o segue pelos rastros de
sangue até chegar em uma bela cidade, passando por dentro de uma montanha. Lá ela encontra
seu amado, senhor de um reino mágico. Maldumarec lhe entrega um anel que fará seu marido
esquecer de todo o ocorrido, e uma espada que ela deveria entregar ao filho, Yonec, quando
adulto, para ele matar o marido da dama e assumir o lugar do pai no trono daquele reino.

2.2.1 Estudo do conto

“Pois que comecei os lais, não abandonarei meu trabalho”. O conto começa com Marie
reafirmando seu trabalho e assegurando que não irá desistir dele. A passagem assemelha-se
com o primeiro parágrafo de Guigemar, onde ela afirma a responsabilidade e a honra
envolvidos em se lidar com uma matéria de grande valor cultural e diz que apesar do empenho
de outros em retirar seu mérito e caluniá-la, ela não irá desistir do trabalho (MARIE DE
FRANCE, 2001, p. 41-100). A aventura que ela irá nos contar trata da história de amor dos pais
do protagonista Yonec.
O tempo da história é o tempo de “outrora”. Algum lugar indefinido no passado que
nos deixa um ar de mistério, magia e possibilidade, tal como um “era uma vez”. O antagonista
dos nossos amantes é o marido da dama, governante e senhor do país de Carwent. A dama e o
marido são muito opostos e incompatíveis. Em idade, na conveniência e infelicidade do
casamento e nos adjetivos usados para descrevê-los: enquanto o marido é “um homem rico,
velho e decrépito”, personificando características da esterilidade e da morte, a moça nobre dada
a ele em casamento é “sábia, cortês e extremamente bela”. Ela reúne valores prezados pelo
41

contexto literário para o qual Marie escreve, mostrando a posição que a escritora quer que seus
leitores/ouvintes tomem (HODGSON, 1974, p. 24).
“Como iria deixar uma herança apreciável, tomou mulher para ter filhos, que depois
dele, fossem seus herdeiros”. Aqui Marie explora bem a preocupação com o destino da herança,
a função reprodutora das esposas e a finalidade econômica e política dos casamentos nobres
(MARIE DE FRANCE, 2001, p. 100).
O marido se empenhou em “guardá-la”, prendendo-a em uma torre por mais de sete
anos, sob a guarda de uma velha viúva, irmã dele. Havia outras mulheres em outros quartos da
torre, porém a dama só poderia falar com elas com permissão de sua vigia (MARIE DE
FRANCE, 2001, p. 100).
Nenhum homem era permitido próximo a ela, nem para servi-la e “a dama vivia numa
tristeza constante, com lágrimas, suspiros e prantos” que a fizeram perder a beleza com o tempo
“como acontece com aqueles que não se cuidam” (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 101). Aqui,
a beleza da dama não é apenas um aspecto exterior e sim um reflexo de seu estado de espírito
e das consequências de uma relação forçada. Aos poucos ela perde sua vontade de viver e de
cuidar de si, como Marie afirma: “por ela, teria preferido que uma morte rápida a levasse”
(MARIE DE FRANCE, 2001, p. 101). O casamento e a falta de liberdade para ela são como
uma “morte em vida” e a morte se apresenta como uma saída tentadora, se comparada ao
sofrimento e a falta de perspectiva de seu dia a dia (SILVEIRA, 2014, p. 63).
O isolamento da dama também pode ser entendido como parte de um processo
iniciático:
O primeiro estágio iniciático está relacionado ao isolamento na torre, sem ver
ninguém, a não ser o velho marido e a velha guardiã. Longe de todos, encontra a morte
em vida e aceita morrer a viver daquela forma [...]. O isolamento, a velha guardiã, a
morte, pertencem à estrutura iniciática. O marido rico, velho e decrépito não. Esse
elemento reflete a condição social e histórica da mulher medieval de ser utilizada nas
estratégicas políticas sem o direito de escolha (SILVEIRA, 2014, p. 70).

Em uma manhã de abril, com o canto dos pássaros como que anunciando boas novas, a
dama se viu sozinha em seu quarto depois que o marido saiu para o bosque (MARIE DE FRANCE,
2001, p. 101). O cenário primaveril é comum nas cantigas trovadorescas, merecendo um subgênero
próprio, chamado reverdie, e celebra o florescer e a chegada de novos amores (DEPLAGNE, 2019,
p. 29-30). Quando é deixada sozinha, a dama se permite expor suas frustrações:
42

Muito se lamentava e suspirava, e chorando, queixava-se: – Infeliz, em má hora nasci!


É muito duro meu destino. Estou aprisionada nesta torre, não sairei dela senão por
morte. Este velho ciumento, de que tem medo que me mantém em tão forte prisão? É
muito louco e entoleimado. Teme sempre ser traído. Não posso ir a igreja nem assistir
ao serviço divino. Se pudesse conversar com as pessoas e sair a passeio com ele,
mostrar-lhe-ia cara alegre, mesmo contra a minha vontade. Malditos sejam os meus
parentes e todos aqueles que me deram a este ciumento e me fizeram casar com ele.
Em vão o esganariam com uma corda forte: ele não pode morrer jamais! Quando ia
ser batizado, foi mergulhado no rio do inferno; seus nervos são duros, duras as veias
que estão cheias de sangue vivo. Muitas vezes ouvi contar que se costumava achar
outrora neste país aventuras que devolviam a alegria aos aflitos. Os cavaleiros
encontravam jovens a seu gosto, nobres e belas e as damas encontravam amantes belos
e corteses, honrados e valentes e não eram censuradas por causa deles nem ninguém,
afora elas, os viam. Se isso pode ser, se deveras já foi assim, se alguma vez aconteceu
com alguém, preza a Deus, que tem poder sobre tudo, fazer-me a vontade! (MARIE
DE FRANCE, 2001, p. 101).

Nesta oração a dama maldiz a sua sorte e aos seus pais por lhe imporem esse casamento
infeliz e ao seu nascimento mostrando que não aceita gentilmente os acordos que foram feitos
com sua vida. Lamenta seu aprisionamento, sua solidão, seu isolamento de Deus, e das pessoas
e o vazio de sua vida que a faz querer rejeitar a realidade (HODGSON, 1974, p. 24). A dama é
muito expressiva em sua revolta e suas palavras manifestam seus sonhos e desejos por amor e
aventuras, evocando as próprias histórias que Marie de France escutou e escreveu (KRUEGER,
2011, p. 75).

A menção a essas histórias remete à confluência do passado pré-cristão com um tipo


de cristianismo readaptado e sincrético que se desenvolveu durante a Alta Idade
Média européia. Através dessas histórias, o mundo feérico é forjado, com imagens de
seres transeuntes entre o mundo patriarcal cristão e o Outro Mundo de matriz
matriarcal pré-cristã céltica, governados por Medb, Morrígane e seus consortes. Esses
entes povoavam as mentes femininas de belos cavaleiros, invisíveis aos olhos de
outros, como podemos observar no lai de Yonec, e falam de uma época, na qual as
mulheres teriam o direito de escolher seus amantes (SILVEIRA, 2014, p. 63)

Além disso, ao citar o batismo nas águas do inferno, Marie de France mais uma vez
afasta o personagem do marido de suas leitoras e leitores, associando-o a uma imagética
diabólica. Em oposição, Muldumarec será continuamente descrito como gentil, cortês, belo,
honrado, nobre e, mais importante, temente a Deus. Também é interessante que a dama mostra
saber que a origem da vigilância que sofre seja o medo que ele tem dela e de uma possível
traição. Ironicamente é esse controle obsessivo que acaba causando a traição da dama.
Ao entrar pela janela da torre a ave promete que não faria mal à moça, professando
sua gentileza e dizendo: “por longo tempo vos amei e muito desejei em meu coração; nunca
amei mulher que não vós, nem jamais amarei outra. Mas não podia vir até vós, nem sair de meu
43

palácio se não me tivésseis requerido. Agora posso muito bem ser vosso amigo” (MARIE DE
FRANCE, 2001 p. 102).
Portanto o desejo da dama é atendido, por vontade de Deus, com o aparecimento de
um homem-pássaro que reúne a realidade cortesã em seu comportamento e é originário de
histórias pré-cristãs. É como se o poder sagrado de suas palavras e de seu desejo o
materializassem, atendendo suas necessidades (HODGSON, 1974, p. 24). O consentimento da
moça desempenha um papel fundamental no desenrolar da trama, porque ele só pode encontrá-
la quando chamado. Em oposição ao casamento no qual as vontades dela não tem lugar.
A dama estabelece a condição de que o cavaleiro acreditasse em Deus para que eles
fossem namorados. Ele garantiu sua crença e recebeu a hóstia e o vinho, assumindo a aparência
da dama. A metamorfose, em uma perspectiva cristã medieval institucional, poderia significar
a interferência e ilusões de forças malignas (BRUCKNER, 2011, p. 180-181). Porém, o
cristianismo expresso nos Lais é sincrético, e acolhe influências de crenças antigas, povoadas
de seres feéricos ao mesmo tempo em que mostra um profundo temor ao Deus cristão.
(SILVEIRA, 2014, p. 64). O pássaro afirma sua nobreza, boas intenções e crença insistindo em
receber o corpo e sangue de cristo na forma da hóstia. Assim ele tranquiliza a dama e os
leitores/ouvintes de Marie, e prova seu mérito para ter o amor da dama.
A forma de pássaro do cavaleiro remete à espiritualidade, à memória, aos
pensamentos e à ascendência do espírito em direção ao divino. Representam presságios ou
mensagens e simbolizam a libertação da alma do confinamento corporal para atingir estados
mais elevados de espiritualidade. É interessante que o desejo de liberdade da dama se manifeste,
por intervenção divina, em um animal que por si só seja signo de liberdade para com as
contingências da vida e da proximidade com o sagrado (CHAVALIER; GHEERBRANT, 1993,
p. 687-691).
Muldumarec mescla aspectos humanos, animais e divinos. Assim como mostra a
união entre alma e corpo, e entre a dama e ele próprio, uma vez que o casal se torna um só
corpo tanto para que ele recebesse o sacramento, quanto para conceber Yonec (BRUCKNER,
2011, p. 180-181).
Ao final da primeira visita o cavaleiro diz que virá sempre que a dama desejar, mas ele
a adverte que se eles forem descobertos, ele morrerá (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 102-103).
44

Nisso o cavaleiro se foi, deixando sua amiga em grande alegria. No dia seguinte
ergueu-se inteiramente sã; esteve muito contente durante toda a semana. Cuidou do
corpo com grande carinho: recobrou toda a sua beleza [...]. Quis ver amiúde seu amigo
e deleitar-se com ele. Desde o instante em que seu marido se afastava, de noite, de
dia, cedo ou tarde, tinha o amigo a seu inteiro prazer. Que Deus lhe conceda desfrutar
dele longamente! (MARIE DE FRANCE, 2001 p. 101).

A beleza e a felicidade que a dama reencontrou acabam denunciando os amantes.


Então, o marido e a irmã armam para descobrir o que estava acontecendo. A viúva anunciaria
a saída de todos e o marido ficaria à espreita. “Ai. malsinados aqueles que alguém espreita para
trair e enganar” (MARIE DE FRANCE, 2001, p.104). A ideia de sina permeia todo o conto,
mostrando a inevitabilidade dos acontecimentos e a clarividência de Muldumarec, que como
ser feérico tem consciência e poder sobre o destino dos humanos (SILVEIRA, 2011, p. 3-4).
Quando o marido descobriu sobre o amante, mandou forjar espetos de ferro afiados
como navalhas e prendeu-os na janela para matar o pássaro quando entrasse. “Deus! Soubesse
ele que traição lhe armava o miserável!”. Quando o cavaleiro voltou para ver a dama “o sangue
vermelho jorrou fora [...] encharcando as cobertas de sangue. Ela viu o sangue e a ferida,
alarmou-se, foi tomada de angústia” (MARIE DE FRANCE, 2001, p.105).
Ele disse a ela: “– Por vosso amor perco a vida [...] vosso semblante seria a nossa
morte” (MARIE DE FRANCE, 2001, p.105). “No mundo medieval de Maria de França, o belo
semblante de uma jovem poderia ser sua ruína. Esse é o motivo pelo qual a protagonista do lai
é dada em casamento ao velho rico e decrépito e, também, através do qual são revelados seus
encontros com o amigo feérico” (SILVEIRA, 2014, p. 65).
Mais importante ainda do que a metamorfose mais óbvia do pássaro que se transforma
em cavaleiro, Marie de France foca na jornada da dama que se transforma de uma jovem infeliz,
para uma amada e depois para uma mãe. Todas essas mudanças expressas em sua aparência.
Sua beleza e o sentido para a vida retornam a partir do amor recíproco e da realização dos seus
desejos (BRUCKNER, 2011, p. 178).
De forma semelhante ao mito de Psiquê e Eros, Perséfone e outras narrativas de descida
da deusa em busca de seu amado, a moça seguiu o rastro de sangue do cavaleiro, e atravessou uma
colina, passando por um longo prado (SILVEIRA, 2014, p. 66). O sangue de Muldumarec serve
como ligação entre os amantes tanto guiando a dama quanto no filho que ela carrega no ventre.
Nesse conto, o desejo e a morte estão fortemente ligados. Porém, apesar do desejo da
dama trazer a morte, o mesmo também é a força motriz de toda a narrativa e é responsável por
45

todas as transformações na jornada iniciática da moça. Portanto, esse Lai é um exemplo bastante
intenso dos riscos e belezas que o desejo poderia trazer para uma mulher daquele contexto
(KRUEGER, 2011, p. 76).
A dama entrou em uma cidade riquíssima e, passando por dois quartos com cavaleiros
adormecidos em leitos, no terceiro, encontrou o seu amado (MARIE DE FRANCE, 2001,
p.106). Ela temia a reação do marido: “prefiro morrer junto convosco do que com meu senhor,
sofrer as penas que ele me reserva: se voltar a ele, irá matar-me!” (MARIE DE FRANCE, 2001,
p.106). Por isso, o cavalheiro deu-lhe um anel que faria o marido esquecer de todo o ocorrido.
Os anéis são alegorias que nesse contexto mantém a harmonia e a integração entre o marido e a
dama enquanto ela ainda é necessária, protegendo a moça e Yonec da reação violenta do marido.
Eles simbolizam a união entre os amantes e são objetos que trazem de volta lembranças,
permitindo que a dama continue ligada à aventura e ao amor que teve (BURGESS, 2011, p. 149-
150). Além disso, o anel sela a aliança da dama com o mundo feérico (SILVEIRA, 2014, p. 70).
Muldumarec lhe deu também sua espada para que fosse de Yonec, quando adulto. A
espada representa a virilidade e a mulher desempenha o papel de sua guardiã. Esses elementos
aparecem frequentemente em histórias de origem celta durante o medievo, como por exemplo as
lendas do ciclo arturiano com personagens como a Senhora do Lago e a Donzela Laida.
(SILVEIRA, 2014, p. 70). A dama do conto guarda em si a linhagem dos amantes, fruto de um
sentimento sincero de origem tanto mágica quanto terrena. E a responsabilidade da criação de
Yonec, da passagem de valores que o tornariam um cavaleiro valoroso e da memória da história de
sua origem recaem inteiramente sobre ela. As dimensões das transformações e amadurecimento da
dama a partir do encontro com o amor podem ser entendidas da seguinte forma:

No imaginário feminino de Maria, a moral é inversa à eclesiástica em relação ao


casamento. Apesar do marido, a jovem encontra a maturidade com o amor verdadeiro,
seu real consorte que lhe traz à nova vida em união sagrada (hierogâmica). A morte
do amante marca um novo processo iniciático, mas também social, pois, agora que
ela assume a maturidade, a atuação da jovem na trama assume dimensões coletivas: a
sorte do reino feérico, na morte do amante e no filho (a nova semente) que traz no
ventre. A relação morte do amante e gravidez remete à relação mítica e sagrada do
feminino com a fertilidade e a morte (SILVEIRA, 2014, p. 12)

Antes de morrer Muldumarec predisse que no futuro, a moça, Yonec e o marido iriam
a uma festa em seu reino, onde a história dele seria contada e Yonec vingaria seus pais. Portanto,
nessa festa, quando a aventura de Muldumarec foi contada e ela entregou os presentes a seu filho,
46

a dama faleceu sobre a tumba do amado e Yonec decaptou o padrasto, assumindo o posto
longamente esperado de governante daquele país (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 107).
Descrita pela frase, “nenhum homem vivo a viu novamente”, ao invés de separar
os amantes, a morte da dama é simbólica, pois os une de forma eterna e espiritual
(SILVEIRA, 2014, p. 71).
Por meio do estudo dos contos, pudemos concluir que o casamento arranjado é a
verdadeira prisão, na perspectiva de Marie de France. Foi ele que alienou as damas da vida e
de si mesmas. E é no isolamento da torre – por mais irônico que pareça – que elas conseguem
ter o amor verdadeiro que as liberta e as reafirma como mulheres. Esse tempo é necessário para
que as personagens façam suas transições para a maturidade sexual por meio da realização dos
seus desejos, de sua individuação e de suas relações amorosas. Em ambos os contos, que
retratam o mundo através de jornadas femininas, há uma defesa forte da fidelidade com o amor
e com a felicidade e não com as imposições sociais.
47

3 AMOR, POESIA E SABER ENTRE ORIENTE E OCIDENTE

3.1 SOBRE VIAGENS E A VALORIZAÇÃO DO SABER ENTRE OS ÁRABES.

A viagem é um dos pontos centrais da estrutura narrativa de muitas das histórias das
Mil e Uma Noites. As tramas se desenvolvem sempre em movimento, envolvendo muitos
personagens, muitos acontecimentos históricos e lugares. Não é à toa que seja assim. O amplo
mundo medieval que gestou essas histórias se construía no encontro entre pessoas. Era assim
que trocas de produtos e acordos políticos eram feitos. Era assim que poesias e músicas eram
criadas e se espalhavam. Pela voz, pelo vento e pelas viagens (LEEUWEN, 2007, p. 1). E é por
reconhecer este dinamismo que é importante entender Oriente e Ocidente de forma integrada
neste trabalho.
Há muitos caminhos possíveis para entender os movimentos de saber entre Oriente e
Ocidente. Nossa primeira rota seguirá a expansão árabe: depois da morte do profeta Maomé,
seu genro Ali, o sucedeu. Porém, ele foi assassinado depois de apenas cinco anos, em 661 E.C.,
dando início a ascensão da dinastia Omíada. Esta dinastia transferiu a capital de Medina para
Damasco, que anteriormente já havia sido governada por sírios, gregos, romanos e cristãos,
portanto, já era um local com um legado e uma vida cultural muito diversa. Os Omíadas não
ignoravam o que existia antes e sim aproveitavam os vestígios de outras culturas para erigir os
seus próprios monumentos (MENOCAL, 2002, p. 28). Houve nesse período uma
impressionante expansão territorial:

As fronteiras do império islâmico continuaram a se espalhar e, em 711, exércitos de


berberes recentemente convertidos, liderados por omíadas da Síria, se deslocaram
para a Europa. Dentro e ao redor da bacia do Mediterrâneo, dos montes Taurus no
nordeste (fronteira com a Anatólia) até os Pirenéus no noroeste (a fronteira com a
Gália) (MENOCAL, 2002, p. 29, tradução nossa).24

Ainda no tempo dos Omíadas, a expansão árabe havia chegado até a Pérsia e o noroeste
da Índia. Tinham como sua maior força estratégica, a capacidade de dialogar e assimilar

24
Texto original: The borders of the Islamic empire continued to spread, and by 711, armies of recently converted
Berbers, led by Umayyads from Syria, moved into Europe. Within and around the Mediterranean basin, from
the Taurus Mountains in the north-east (the border with Anatolia) to the Pyrenees in the northwest (the border
with Gaul).
48

elementos das culturas já existentes, de forma que elementos árabes passaram a fazer parte de
histórias e da cultura popular dos lugares encontrados. As histórias de matriz persa e indiana
nas Mil e Uma Noites são testemunha deste fenômeno (MENOCAL, 2002, p. 29). Havia um
esforço consciente para se dialogar com as conquistas e tradições do passado de forma que elas
fizessem um sentido renovado e poderoso para aquele momento (MENOCAL, 2002, p. 62).
A expansão árabe estendeu-se ao Afeganistão, à Índia, à China Ocidental, à Pérsia, ao
norte da África e à Espanha (LYONS, 2011, p. 80). Estes territórios eram incrivelmente
diversos, mas ainda assim constituíam uma unidade que facilitava a disseminação da cultura e
o trânsito de pessoas:

Sem fronteiras delimitadas entre os diversos reinos, porém com alfândegas a


demarcarem divisões administrativas internas, esse mundo era percebido como
unitário. A amplidão do espaço árabe-muçulmano seria, em si mesma, um estímulo à
viagem. Poucos povos tiveram, na história, uma oportunidade semelhante de percorrer
distâncias tão grandes mantendo-se sempre dentro de um mesmo contexto cultural
(BISSIO, 2010, p. 5).

Assim, estiveram em convívio cristãos, árabes, zoroastristas, judeus e grupos de várias


crenças e correntes de pensamento, que tinham fugido da perseguição de Bizâncio a grupos
desviantes da ortodoxia (LYONS, 2011, p. 80). Com estas pessoas vinham também manuscritos
dos sábios da antiguidade e, a partir disso, “centros intelectuais importantes prosperaram em
toda a região, de Edessa, à cidade iraniana de Jundishapur, de Harã na atual Turquia, a Marv,
num oásis da Ásia Central, oferecendo aos abássidas um formidável corpo de habilidades
linguísticas, talento científico e conhecimento cultural nativos” (LYONS, 2011, p. 81).
Os árabes também tiveram acesso à tecnologia de confecção de papel, de origem
chinesa. Essa descoberta só alimentou ainda mais a cultura de valorização do livro e do
conhecimento presente na sociedade muçulmana. O papel permitiu que filosofia, literatura e as
mais variadas ciências fossem registradas e transportadas de forma rápida e barata (LYONS,
2011, p. 81-82). E a criação de majestosas bibliotecas permitiu que uma quantidade imensurável
de informações fosse protegida, aprimorada e disseminada, graças à mentalidade de que a
disseminação do conhecimento era uma obrigação piedosa de quem o tinha. Como não havia
uma separação definida ou limitante entre campos do conhecimento, de tal forma que o saber
era entendido de forma mais integrada e dialógica (MENOCAL, 2002, p. 41).
49

O patrocínio da elite a autores e livros logo levou a criação de grandes bibliotecas,


algumas das quais eram abertas ao público, tinham salas de leitura e materiais para cópia
[...]. Até as coleções particulares eram imensas, com frequência chegando às dezenas de
milhares de volumes. Em geral, na morte do dono, eram deixadas como herança
caridosa para mesquitas, santuários ou escolas, onde podiam ser adequadamente
cuidadas e postas à disposição dos leitores cultos (LYONS, 2011, p. 83).

A busca e a valorização do saber são características fundamentais para o entendimento


das sociedades islâmicas medievais. Era através do saber que “a elite política preparava os seus
descendentes para a vida social e para o exercício do poder, e também por meio dele os filhos
de famílias excluídas das linhagens nobres e dos círculos palacianos podiam ascender
socialmente” (BISSIO, 2010, p. 5).
É importante salientar o grande amor que os árabes tinham pela linguagem e pela
poesia, uma vez que ela era sagrada: o veículo da mensagem do profeta. Mesmo antes disso, a
poesia era uma herança da cultura pré-islâmica beduína, que tinha raízes fortes na poesia de
homenagem à natureza, dos sofrimentos e aventuras do amor, e de um passado idealizado –
para citar alguns exemplos de temáticas (MENOCAL, 2002, p. 64). E durante sua expansão, os
domínios árabes se tornam referência em refinamento e a língua árabe se torna a língua da
poesia, das trocas culturais, da filosofia e da ciência. Sendo profundamente admirada dentro e
fora do mundo muçulmano. Nas palavras de um bispo cristão de Córdoba, em 854 E.C.:

Nossos jovens cristãos, com seus ares elegantes e fala fluente, são vistosos em suas
roupas e porte, e são famosos pelo aprendizado dos gentios, intoxicados pela
eloquência árabe, eles manejam gananciosamente, devoram avidamente, discutem
com zelo os livros dos caldeus [isto é, os maometanos] e os tornam conhecidos
elogiando-os com todos os floreios de retórica, nada sabendo da beleza da literatura
da Igreja e olham com desprezo as correntes da Igreja que fluem do Paraíso; ai de
mim! Os cristãos são tão ignorantes de sua própria lei, os latinos prestam tão pouca
atenção à sua própria língua, que em todo o rebanho cristão dificilmente há um homem
em mil que pode escrever uma carta para perguntar pela saúde de um amigo de forma
inteligível, enquanto você pode encontrar incontáveis turbas de todos os tipos que
podem declamar eloquentemente as grandiloquentes sentenças da língua caldéia. Eles
podem até fazer poemas, cada linha terminando com a mesma letra, que exibem altos
vôos de beleza e mais habilidade em manejar a métrica do que os próprios gentios
possuem (PAULUS ALVARUS apud MENOCAL, 2010, p. 28, tradução nossa).25

25
Texto original: Our Christian young men, with their elegant airs and fluent speech, are showy in their dress and
carriage, and are famed for the learning of the gentiles; intoxicated with Arab eloquence they greedily handle,
eagerly devour and zealously discuss the books of the Chaldeans [i.e., Muhammadans] and make them known
by praising them with every flourish of rhetoric, knowing nothing of the beauty of the Church's literature, and
looking with contempt on the streams of the Church that flow forth from Paradise; alas! the Christians are so
ignorant of their own law, the Latins pay so little attention to their own language, that in the whole of the
Christian flock there is hardly one man in a thousand who can write a letter to inquire after a friend's health
intelligibly, while you may find countless rabble of all kinds of them who can learnedly roll out the
50

O árabe era muito mais sedutor porque por meio dele os jovens tinham acesso a uma
literatura riquíssima que ainda não tinha chegado ao mundo latino. Era a língua do Corão. Dos
mais abstratos e sofisticados comentários filosóficos, mas era também a língua das conversas
nas ruas e das canções e poemas de amor declamados em toda a sua musicalidade.
Das fronteiras com a China até a Europa, cristãos, judeus e zoroastristas vinham ao
mundo árabe para se educar com os grandes mestres em todas as ciências e fascinavam-se com
as poesias de amor e aventuras que ouviam. Para a concepção islâmica, as três religiões
monoteístas que receberam revelações em escrituras sagradas – islamismo, judaísmo e
cristianismo – eram legitimas e os cristãos e judeus recebiam proteção e tinham liberdade
religiosa no mundo árabe, mediante pagamento de um tributo sob o estatuto de Dhimmi. A
conversão ao islamismo não era obrigatória, mas trazia benefícios socioeconômicos e de status,
caso a pessoa assim escolhesse. Isso e a atmosfera de convivência intercultural e inter-religiosa
relativamente pacífica impulsionou muito a adesão ao islamismo. Os cristãos e judeus só não
poderiam tentar converter pessoas a sua fé, expor seus símbolos religiosos em público ou
construir novos templos (MENOCAL, 2002, p. 72).

3.2 A POESIA AMOROSA DE AL-ANDALUZ E O TROVADORISMO.

Segundo Souza (2017, p. 346-350) uma vez que a presença árabe chega a península
ibérica, ela conta com diversos contextos políticos: “o início da presença muçulmana, o período
do Califado de Córdoba, os Reinos de Taifa 26, o Período dos Almorávidas, o Período dos
Almóadas, breve retorno dos Reinos de Taifa, a ‘Reconquista’, e o último baluarte da resistência
islâmica: o reino de Granada”. Para o recorte deste trabalho, não entraremos em detalhes sobre
as configurações políticas do domínio árabe em Al-Andaluz, mas comentaremos brevemente
os motivos pelos quais esta presença foi importante para o desenvolvimento cultural da região.

grandiloquent periods of the Chaldean tongue. They can even make poems, every line ending with the same
letter, which display high flights of beauty and more skill in handling meter than the gentiles themselves
possess.
Para maior aprofundamento, a obra original chama-se Indiculus Luminosus.
26
Taifa significa fração, uma parte de um todo. Este período significou a descentralização política do califado de
Córdoba em muitas cidades relativamente independentes que disputavam entre si por poder. No início do
período dos taifas estas cidades podiam somar 60 e eram lideradas por aliados dos Omíadas, por grupos árabes
diversos ou por berberes (MENOCAL, 2002, p. 45).
51

Por volta de 750 E.C., os abássidas – que clamavam ter descendência direta do profeta
e portanto, direito de governar – chegaram ao poder e mataram todos os integrantes da dinastia
Omíada, exceto um (MENOCAL, 2002, p. 32). Este herdeiro sobrevivente, chamado Abd al-
Rahman, chega na península ibérica aproximadamente em 755 E.C. e cria um emirado Omíada
em Córdoba, sem rivalizar com a dinastia Abássida, cuja capital era Bagdad. Ao longo do tempo
o poder em Córdoba se consolida, dando origem ao Califado de Córdoba, em 929 E.C., que
promoveria grandes avanços culturais para a Península Ibérica.
Com o enfraquecimento da presença marítima de Bizâncio, o mediterrâneo tornou-se
ainda mais disponível aos árabes, levando ao enriquecimento de Al-Andaluz tanto comercial
quanto culturalmente (SOUZA, 2017, p. 346-350).

Com o califado e sua tradição de mecenato, as artes tiveram um desenvolvimento


considerável. Os califas também incentivaram a produção cultural e científica e
chegaram a construir uma biblioteca com 400.000 volumes. Em sua atmosfera nasceu
a idealização romântica do amor e a devoção quase religiosa do amado pela amada,
que depois iria encontrar sua expressão no estilo poético da Itália do século XIII, que
acabaria retornando à Espanha no Século de Ouro. Também é nesse ambiente que se
originou a nova poesia lírica, que influenciou a lírica dos trovadores que surgiria na
região de Languedoc e se estenderiam por toda a Europa ocidental. Também na
questão religiosa predominou a tolerância, principalmente com ‘Abd al-Rahman III
(912-961) e Hakam II (961-976). (SOUZA, 2017, p. 350).

Já no período dos Reinos Taifas, no século XI, devido à dificuldade de comunicação


entre o islã oriental e a Península Ibérica, a liberdade religiosa e a produção de saberes
aumentou ainda mais, de forma a criar um verdadeiro mosaico cultural das mais diversas
referências. A divisão em Taifas também aumentou a quantidade de centros difusores de
conhecimento em Al-Andaluz (SOUZA, 2017, p. 351-352). E provocou a constante
reorganização das fronteiras políticas, que consequentemente levou ao contato e a
movimentação de pessoas de diferentes ramos linguísticos, etnias e religiões entre territórios
(MENOCAL, 2002, p. 46). Diversidade que só se aprofundou quando os Normandos
conquistaram a Sicília em 1072. Este território estava em domínio árabe desde o século VIII,
quando Al-Andaluz foi fundada.
O século IX foi importante também para a renovação da poesia árabe-andaluz:

É também a grande época da poesia andaluza. Secretários ou embaixadores,


trovadores errando de palácio em palácio, cercados por pequenas orquestras de
escravos músicos, cantam, seja em árabe dialetal, seja em românico; as mais das
vezes, misturam as duas línguas ou acrescentam-lhes curiosos empréstimos. Essa
52

poesia popular andaluza, original, delicada, desconhece os temas clássicos ou


religiosos. Mais picaresca, já desabusada, fala ela do orgulho das cidades da Espanha,
da nostalgia do campo e dos tempos passados, das alegrias e tristezas do amor
(HEERS, 1977, p. 332 apud SOUZA, 2017, p. 352).

O século XI era um tempo em que Al-Andaluz experimentava um florescimento em


poesia de amor, filosofia, arte, música, como exemplos de homens de saberes, temos Ibn
Shuhaid, escritor de uma viagem ao mundo espiritual; Ibn Hazm, autor de um tratado sobre o
amor que será aprofundado mais adiante; e Ibn Zaidun, um escritor muito influente de poemas
de amor. Esses e muitos outros artistas eram patrocinados pelas cortes andaluzas que se
tornaram centros das mais refinadas ciências e artes.27 Ao longo do tempo, cortes de Barcelona,
Castela, Aragão, Sevilha, Granada e Toledo atraiam o fascínio de trovadores cujo trabalho
resistiu ao tempo, como “Guiraut de Borneil, Arnaut Daniel, Peire Vidal, Marcabru, Raimbaut
d’Orange, e Peire d’Auvergne” (MENOCAL, 2010, p. 27-30).
Dessa forma, Al-Andaluz era um ambiente multiétnico e multi-religioso, que foi de
fundamental importância para o desenvolvimento da poesia amorosa e da cultura trovadoresca
que conhecemos, uma vez que:

[...] muçulmanos e cristãos viviam lado a lado na Andaluzia. As cortes muçulmanas


da Andaluzia eram parte da mesma tradição daquelas presentes no restante da
Espanha, que também eram importantes centros para a escrita e declamação da poesia
de amor. Era representativo dessa tradição o famoso poeta Ibn Hazm, autor de The
Ring of the Dove (O colar da pomba) (1022), um poema sobre a arte de amar (às vezes
interpretado alegoricamente). Havia, claro, muita poesia de amor escrita no mundo
muçulmano, que influenciava até as áreas periféricas como a Somália, no chifre da
África. Porém, no sul da Espanha a tradição era especialmente forte, e não somente
entre os homens, também entre mulheres. Uma das mais proeminentes, Wallada, a
filha do califa, tinha um salão literário em Córdova. Havia outras mulheres que
também escreviam poesia mostrando “uma surpreendente liberdade em suas
expressões e plenitude em seus sentimentos de amor”. Na Andaluzia, até mesmo
algumas judias dedicaram-se a escrever poemas de amor. A interação com os Estados
cristãos era fácil e frequente. Os próprios poetas eram mediadores da comunicação.
“Um grupo de poetas errantes surgira, passando de uma corte para outra”, como
ocorreu um século mais tarde na França. Na Sicília, poetas do norte frequentavam a
corte normanda de Rogério II e a de Frederico II (1194-1256), em Palermo, muito
voltada para a cultura árabe, para aprender as artes locais (GOODY, 2008, p. 89).

27
As muitas inovações estilísticas destas poesias/canções que adicionavam influências diversas ao árabe clássico
serviram como uma das muitas motivações para a invasão almorávida que buscava um estreitamento dos
códigos morais e tradições árabes. Essa invasão acabou por provocar o exílio de Maimónides e Averróis, dois
filósofos de Andaluzia que muito influenciaram o pensamento ocidental (MENOCAL, 2010, p. 27-30).
53

A epístola citada, O colar da pomba, foi escrita no século XI, pelo aristocrata árabe-
cordobês Ibn Hazm (994-1064). Ela apresenta fundamentos que provavelmente influenciaram
a ideia de amor cortês que iria se difundir mais tarde. A obra tem elementos de tradições
filosóficas gregas e pré-islâmicas, compondo um novo ideal de amor, o “amor verdadeiro”, que
sublima o desejo e busca a união com o divino, expresso no ser amado, que é inacessível
(SOUZA, 2016, p. 1).
O colar da pomba guarda muitas semelhanças com o Tratado do amor cortês, de
André Capelão, tanto em temáticas quanto em estrutura, uma vez que aborda as seguintes
temáticas: como o amor chega; quem pode se apaixonar; os perigos do amor não correspondido,
da distância e separação entre amantes; os riscos da traição; do ciúme; e os sofrimentos que o
amor impossível pode trazer, chegando a provocar a destruição da vida dos amantes. Mas Ibn
Hazm não foi único em sua filosofia e sim parte de um amplo gênero de poesia amorosa
circulante nas cortes árabes que pode ter influenciado os temas e ideias da poesia trovadoresca.
Essa poesia cortesã árabe tem inclusive personagens arquetípicos em comum com o amor cortês
que vemos representado nos Lais de Marie de France, assim como em muitos outras obras: o
amante atormentado, o mensageiro, a amiga ou amigo fiel que ajuda os amantes e o espião
(SCHULTZ, 2012, p. 2-13).
A poesia árabe também tem um aspecto quanto idealizador da dama quanto erótico
e sensual, aproximando este sentimento talvez de uma experiência tanto sagrada, quanto
profana. Há também a ideia do amor enquanto um martírio que conduz os amantes à loucura
ou à morte. Levando a histórias com finais trágicos tanto dos personagens quanto às vezes
dos poetas em suas próprias vidas. Um exemplo disso é a lendária história de Layla e Majnun.
“Da mesma forma, as trágicas histórias de amor dos poetas jamil e sua amada Buthaina e de
Kuthair (do período abássida) e sua amada ‘Izza ainda estão circulando entre os árabes”
(YOUSIF, 1980, p. 20, tradução nossa). 28
Segundo Yousif (1980, p. 21), uma vez que a idealização quase mística da mulher era
relativamente nova na Europa, a poesia romântica árabe pode ter sido decisiva para a
caracterização da poesia dos trovadores provençais e, de forma mais ampla, para a poesia
europeia como conhecemos.

28
Texto original: Likewise, the tragic love stories of the poets jamil (d. 701) and his beloved Buthaina and of
Kuthair (Abbasid period) and his beloved ‘Izza are still circulated among the Arabs.
54

Na verdade, muitos fatores árabes podem ter contribuído para a evolução e difusão do
conceito de amor cortês: poesia árabe e hispano-árabe, fraseologia da religiosidade
sufi, ideais cavaleirescos árabes, o conceito de amor andaluz (Hubb al Murrwah)
enquanto conectado à honra e o status da mulher em Al-Andaluz refletido na
literatura. A cultura, a poesia, a música árabe-andaluz eram acessíveis aos trovadores;
o conteúdo das primeiras canções trovadoras é similar ao das canções hispano-árabes
(YUSIF, 1980, p. 21, tradução nossa).29

Canções de amor cortesão e ideais cavaleirescos desenvolveram-se também na Índia,


em sânscrito, em momentos tão recuados no tempo quanto 500 A.E.C. a 1200 E.C., o que nos
leva a pensar que a expressão e definição do amor é um fenômeno histórico cujas manifestações
se estendem em longuíssima duração entrelaçando múltiplas regiões e culturas.

Canções de amor cortesão e histórias cavalheirescas eram cultivadas em sânscrito


clássico (500 A.E.C. - 1200 E.C.). Como o latim medieval, o sânscrito era
frequentemente falado na corte e em instituições religiosas, como mosteiros. Era a
língua comum de conversação entre as classes educadas de diferentes províncias e a
principal língua escrita da Índia antiga. Os contos de cavalaria, como as histórias de
Aquiles, Odisseu, Enéias, Arthur, Roland, Lancelot e Gawain, são encontrados nas
duas grandes epopéias de Rãmãyana e Mahãbhãrata, compostas entre 500 A.E.C. e
800 E.C. Esses épicos contêm não apenas contos de valor, mas também histórias de
amor, como aquelas entre Rama e Sita, Sita e Ravana, Naia e Damayanti, Satyavan e
Savitri, os Irmãos Pandava e Panchali (THUNDY, 1981, p. 46, tradução nossa).30

Antologias de poemas desta natureza eram usadas na educação de príncipes e


religiosos, assim como em festivais nas cortes que contavam com performances e música.
Nessas ocasiões o amor era visto como um jogo, com regras a serem seguidas e cantar ao amor
era uma ocupação digna das mais respeitáveis pessoas (THUNDY, 1981, p. 46).
No século X muitos contos indianos chegaram até Bagdá pela Pérsia e foram
traduzidas e coletadas por estudiosos e poetas árabes para depois serem levados para a Europa
no século XII, pela Península Ibérica de domínio muçulmano ou por meio das viagens de
retorno dos cruzados. (THUNDY, 1981, p. 54).

29
Texto original: In fact, many Arabic factors could have contributed to the evolution and spread of the concept
of courtly love: Arabic and Hispano-Arabic poetry, Sufi religious phraseology, Arabic chivalry, the Andalusian
concept of love (Hubb al-Murrwah) as connected to honor, and the status of women in alAndalus as reflected
in literature. Hispano-Arabic culture, poetry, and music were accessible to the troubadours; the content of the
early troubadour lyrics is similar to that of Hispano-Arabic lyrics.
30
Texto original: Courtly-love lyrics and chivalrous stories were cultivated in clas- sical Sanskrit (500 B.C. -A.D.
1200). Like medieval Latin, Sanskrit was often spoken at court and in religious institutions like monasteries. It
was the regular language of conversation among the educated classes of different provinces and chief written
language of ancient India. The tales of chivalry, like the stories of Achilles, Odysseus, Aeneas, Arthur, Roland,
Lancelot, and Gawain, are found in the two great epics of Rãmãyana and Mahãbhãrata, composed between 500
B.C. and A.D. 800. These epics contain not only tales of valor but also stories of love such as those between
Rama and Sita, Sita and Ravana, Naia and Damayanti, Satyavan and Savitri, the Pandava Brothers and Panchali.
55

Ainda, não se pode esquecer da relevância das escolas de tradução para o intercâmbio
de conhecimentos entre regiões e religiões diversas. Um dos grandes exemplos disso ocorreu
quando Afonso VI de Castela, monarca cristão e protetor do território taifa de Toledo, tomou o
seu controle em 1085. Ele e seus sucessores preservaram, traduziram e disseminaram muito do
saber árabe e da herança greco-romana que beneficiou o Ocidente (MENOCAL, 2002, p. 48).

Séculos antes da obra de Aristóteles ser discutida na Paris do século XIII, muçulmanos,
cristãos e judeus já trabalhavam em conjunto na tradução e interpretação de textos
aristotélicos na escola de tradução de Bagdá (séculos VII-IX d. C.). A mesma colaboração
é documentada na escola de tradução de Toledo (século XII-XIII), a qual traduziu os
trabalhos do árabe para o latim. A necessidade de utilizar intelectuais de diferentes idiomas
no trabalho de tradução formou uma comunidade de tradutores e comentadores
multicultural ao longo destes quatrocentos anos na área mediterrânica. Estes intelectuais
escreveram os comentários das obras traduzidas e empreenderam discussões entorno das
fontes helenísticas, cristãs, judaicas e islâmicas (SILVEIRA, 2009, p. 405).

E toda esta movimentação cultural circulava por todos os domínios árabes e se


espalhava por toda a Europa por diversos caminhos e ocasiões, ajudando a moldar a cultura
europeia. Em última análise esta influência pode ter feito parte do repertório cultural que Marie
de France dispunha para compor os seus Lais.
Em 1064, durante a ocupação normanda em Barbastro, em Aragão, as tropas
rapidamente assimilaram características da cultura aragonesa:

Os normandos entraram na primeira cidade andaluza que haviam visto e rapidamente


se fizeram nativos. Com vivacidade e facilidade eles adotaram os modos e prazeres
inesperados desta terra anteriormente desconhecida. Eles se apaixonaram pelas roupas
finas, ruas limpas, comidas saborosas e simplesmente tudo o mais deste lugar
próximo, e ainda assim, maravilhosamente diferente, incluindo um bom número de
mulheres (MENOCAL, 2002, p 112, tradução nossa).31

Dentre estes normandos estava Guilherme de Montreuil, que trouxe ao mundo


provençal várias mulheres escravas junto aos espólios da vitória. Essas mulheres traziam
consigo a música e a poesia de seu lugar de origem – Al-andaluz – e essas músicas entretinham
e passaram a fazer parte do repertório cultural das cortes da Aquitânia. Algumas destas moças

31
Texto original: the Normans, walked into this first Andalusian city they had ever seen and immediately went
native. With alacrity and ease they adopted the ways and unexpected pleasures of this previously unknown
land. They fell in love with the fine clothes, clean streets, flavorful food, and just about everything else in this
near and yet marvelously different place, including a fair number of the women.
56

foram inclusive dadas de presente a Guilherme VI de Poitiers, pai de Guilherme IX, duque da
Aquitânia, conhecido como o primeiro trovador da Europa.
Guilherme IX também viajou a Jerusalém em 1100 e permaneceu lá durante vários
anos, em virtude da primeira cruzada. Ele também participou de expedições para a contra o
domínio almorávida na Espanha, em aproximadamente 1020, em Cutanda. Estas influências
árabes em múltiplas ocasiões podem ter encontrado caminho até sua poesia, que é considerada
o berço da poesia provençal, que influenciou enormemente o desenvolvimento do amor cortês
na Europa (MENOCAL, 2010, p. 30). Este mesmo Guilherme IX foi o avô de Eleonor da
Aquitânia, cuja corte provavelmente foi o ambiente de escrita dos Lais de Marie de France.
O mesmo se aplica à própria Eleonor de Aquitânia, que teve inúmeras oportunidades
de contato com o mundo árabe e provavelmente trouxe tais contribuições para as cortes sob sua
influência:

Pouco depois de 1146, Eleanor de Aquitânia, neta de Guilherme, seguiu os passos


de seu famoso avô, insistindo em acompanhar o primeiro de seus dois maridos em
uma cruzada para a Terra Santa. Mas, também como seu avô antes dela e,
parcialmente por causa da qualidade diversa das cortes da Aquitânia em que ela
cresceu e das cortes de trovadores viajados que ela encontrou lá e iria cultivar ela
mesma, este dificilmente seria o primeiro contato que Eleanor teria com os mundos
não românicos e não cristãos. E porque ela reinou sobre cortes no norte da França
e, em seguida, na Inglaterra normanda, que foram beneficiárias das traduções que
moldaram tanto a vida intelectual no século XII, ela continuaria durante sua longa
vida a ter muitas outras razões e oportunidades para se familiarizar com a cultura
da Europa arabizada, e isso incluiria a vida intelectual da Espanha bem como a da
Palestina (MENOCAL, 2010, p. 48, tradução nossa). 32

Combatentes das cruzadas – muitos deles trovadores e artistas diversos – conheceram e


transmitiram as histórias árabes que passaram a compor o repertório cultural dos romances
europeus. Por exemplo, o confronto entre Abd al-Rahman, herdeiro Omíada, e Carlos Magno,
governante dos francos, na batalha de Roncesvalles, em 778, é a matéria prima para a Canção de

32
Texto original: Shortly after 1146, Eleanor of Aquitaine, granddaughter of William, followed in her well-known
grandfather's footsteps by insisting on accompanying the first of her two husbands on a crusade to the Holy
Land. But, also like her grandfather before her and partially because of the less than - pure quality of the
Aquitainian courts in which she grew up, the courts of the well-traveled troubadours she encountered there and
would herself cultivate, this was hardly the first knowledge Eleanor would have had of the non-Christian, non-
Romance-speaking worlds. And because she reigned over courts in northern France and then Norman England
that were the beneficiaries of the translations that so shaped intellectual life in the twelfth century, she would
continue during her long life to have many other reasons and opportunities to be familiar with the culture of
Arabized Europe, and that would include the intellectual culture of Spain as well as that of Palestine
(MENOCAL, 2010, p. 48).
57

Rolando – uma das peças-chaves para a canção de gesta e para a tradição literária europeia
(MENOCAL, 2002, p. 59-60). E, mais diretamente, o motivo literário do encarceramento (inclusa
motif) que é problemática deste trabalho também deve sua origem ao Oriente (ILLINGWORTH,
1961, p. 507).

De forma significativa, a Occitânia em si não era alheia à tradição árabe, já que estes
ocuparam Narbona em 720 e depois fundaram uma colônia em Fraxineto que durou
quase um século. Além disso, os portos de Montpellier, Narbona e Marseille tinham
relações de troca com Al-Andaluz e o Levante. Esses portos, depois, se tornaram
centros de difusão da cultura árabe. Além disso, o contínuo fluxo de peregrinos,
mercadores, e cruzados através dos pirineus e ao longo do “camino frances” (a rota
de Santiago de Compostela) trouxe a Occitânia a um contato mais próximo com a
Espanha cristã e muçulmana (YOUSIF, 1980, p. 11, tradução nossa).33

Além disso, deve-se considerar que os casamentos e parentescos entre nobres de


diferentes cortes também favorecia um trânsito constante de saberes, influências culturais e
presentes (muitas vezes livros e traduções). A partir do exemplo de Eleonor da Aquitânia, temos
um vislumbre do caleidoscópio de relações entre culturas a partir das ligações familiares:

Uma das filhas de Eleonor e Henry II se casou com o rei normando da Sicília, uma
Sicilia apenas recentemente tomada dos árabes, mas tão fortemente arabizada
culturalmente e intelectualmente que iria se tornar um dos mais importantes centros
de saber árabe em qualquer lugar. Uma segunda filha se casou e entrou na família real
de Castela, e como esposa de Alfonso VIII de Castela e uma eminente figura em
Toledo, esta outra Eleonor (ela tinha o nome da mãe) recebia visitantes de toda a
Europa que vinham à Toledo para beber de sua fonte do conhecimento – e para levar
muito deste conhecimento de volta para a Inglaterra, França e reinos germânicos.
Ambas, Joana, rainha da Sicília, e a mais jovem Eleonor estariam tão familiarizadas
com aquele mundo híbrido quanto sua bisavó Philipa de Aragão havia sido, e Branca
de Castela, criada em Toledo e Burgos, descendente de William de Aquitânia, e
Philipa e Eleonor de um lado e dos Alfonsos de Castela de outro seria a esposa de
Luís Capeto e rainha da França (MENACAL, 2010, p. 49, tradução nossa).34

33
Texto original: Significantly, Occitania itself was not unfamiliar with Arabic lore as the Arabs had occupied
Narbonne in 720 and later founded a colony in Fraxinetum which lasted for nearly a century. Besides, the ports
of Montpellier, Narbonne, and Marseille had trading relations with al-Andalus and the Levant. These ports later
became centers for diffusing Arabic culture. Further, the continuous flow of pilgrims, merchants, and crusaders
across the Pyrenees along the “camino frances” (the route to Santiago de Compostela) brought Occitania into
closer contact with both Christian and Muslim Spain.
34
Texto original: One of the daughters of Eleanor and Henry II married the Norman king of Sicily, a Sicily just
recently taken from the Arabs but so heavily Arabized culturally and intellectually that it was to become one of
the most important seats of Arabic learning anywhere. A second daughter had married into the royal family of
Castile, and as the wife of Alfonso VIII of Castile and an eminent figure in Toledo, this other Eleanor (she had
been named for her mother) welcomed visitors from throughout Europe who came to Toledo to drink from its
fountains of knowledge—and to take much of that knowledge back to England, France, and Germany. Both
Joanna, queen of Sicily, and the younger Eleanor would be as familiar with that hybrid world as their
greatgrandmother Philipa of Aragon had been, and Blanche of Castile, brought up in Toledo and Burgos,
58

Outra oportunidade de interação em meio trovadoresco entre árabes e cristãos foram


os duelos poéticos e satíricos em Portugal e Castela, onde os poetas de várias culturas tinham a
oportunidade de debater entre si as questões sociais e políticas em voga, além de aprimorar as
suas técnicas a partir do contato com o outro. E todo esse mosaico cultural é refletido na poesia
escrita ou falada e na construção da subjetividade dos indivíduos (BARROS, 2005, p. 55-57).
Estas são algumas das incontáveis oportunidades de conexão entre o mundo árabe e o mundo
cristão que podem ter colocado nossas fontes em diálogo ou proporcionado influências comuns
a ambas. A seguir nos dedicaremos a analisar o prólogo moldura das Mil e Uma Noites, uma
vez que ele determina o tom para as demais histórias.

3.3 O PRÓLOGO MOLDURA

Presente no título da obra e um motivo recorrente das narrativas, a noite é parte da


relação entre luz e escuridão; da vida, da morte e do renascimento, que governam os ciclos da
natureza. A noite é o território do desconhecido; das jornadas de aventura e das maravilhas; dos
desejos do inconsciente; do sono e dos sonhos; da paixão, do amor e da sexualidade; da
desordem e do caos necessários para a regeneração e a vida. Ordem e equilíbrio só podem
existir em constante diálogo com o seu oposto. O manto da noite pode ser assustador e
incontido, pois revela partes dos seres humanos que são cuidadosamente escondidas do
convívio social. E talvez seja exatamente por transitar pelos impulsos e dilemas mais profundos
dos seres humanos que as Mil e Uma Noites encontraram uma ressonância tão duradoura na
cultura oral e literária da humanidade (LEEUWEN, 2007, p. 50-53).
O título Mil e Uma Noites nos traz a sensação do inesgotável (CODENHOTO, 2008,
p. 45-49). Nos conduz a uma infinita teia de histórias partilhadas e construídas nos encontros
entre pessoas e culturas. Por este motivo, esta obra não tem uma origem única e sim é fruto de
inúmeras compilações, vozes e ramos linguísticos diferentes. Dessa forma, ela testemunha o
movimento e a diversidade do mundo medieval.
A obra tem um caráter cíclico, sempre retornando à narradora, Sherazade, ao final de
cada noite, com elementos fixos e repetitivos que facilitam a memorização, a coesão e a

descendant of William of Aquitaine, Philipa, and Eleanor on one side and of the Alfonsos of Castile on the
other, would be Louis Capet's queen of France.
59

sensação de infinitude. Os próprios personagens sobre os quais Sherazade conta também são
habilidosos contadores de histórias, transformando a obra em uma elaborada teia
metalinguística (CODENHOTO, 2008, p. 45-49). A narrativa moldura nos prepara para entrar
em um mundo de aventuras e maravilhas, como se fossemos o próprio príncipe Shariar
iniciando sua jornada, ou um dos tantos viajantes que ouviram essas histórias antes de nós
(LEEUWEN, 2007, p. 6-7).
As histórias se organizam em torno de um prólogo moldura que pode ser resumido da
seguinte forma: o príncipe Shariar, ao ser traído pela esposa, a sultana da Índia, mata todos os
envolvidos e resolve se casar com uma mulher por noite, para matá-la na manhã seguinte. Este
padrão só é quebrado quando Sherazade casa-se com ele e com a ajuda de sua irmã, conta-lhe
uma história a cada noite, parando sempre no ponto mais emocionante das narrativas.
Encantado pela trama tecida por Sherazade, o príncipe não consegue matá-la. Ele gradualmente
aprende com as aventuras e se transforma, abandonando seus excessos.
Outro ponto a ser destacado é a maneira que as mulheres são representadas no prólogo
moldura. A força motriz da narrativa é a traição da sultana da Índia ao marido o príncipe Shariar
que levou a uma reação brutal:

Mal chegado, correu aos aposentos da rainha. Ali, mandou amarrá-la e entregou-a ao
seu grão-vizir, com ordem de estrangulá-la, o que o ministro cumpriu sem ousar
perguntar que crime ela havia cometido. O príncipe, irritado, não se contentou com
isso, com suas próprias mãos, cortou a cabeça de todas as companheiras da sultana.
Depois de tão terrível punição, persuadido de que não existia mulher recatada e para
evitar as infidelidades das mulheres que possuiria no futuro, resolveu desposar uma
por noite, e ordenar que a estrangulassem no dia seguinte (GALLAND, 2015, p. 35).

A partir desta visão, as mulheres são naturalmente inclinadas à traição, de modo que
confiar na lealdade delas é uma demonstração de fraqueza (GALLAND, 2015, p. 31). E mais
do que um caráter individual, a traição da sultana da Índia tem contornos políticos, já que
prenuncia a queda do império Persa Sassânida que Shariar governa. Devido à traição, este rei
que antes era amado, sábio e bem-sucedido passa a ser tirano, causando o sofrimento e medo
das mulheres da comunidade que sabem que serão mortas se o rei as escolher, e de suas famílias
que já lamentam em antecipação (SECCO, 2016, p. 185-193).
O prólogo estabelece a seguinte sequência de eventos como padrão para várias
histórias da coletânea: Um homem deixa sua esposa sozinha para alguma viagem; ele retorna
por coincidência e encontra a mulher com um amante; o marido então mata todos os envolvidos.
60

A partir deste padrão somos levados a concluir que as ações e o processo de individuação dos
homens são muitas vezes definidos pela sexualidade das mulheres, que são colocadas como o
inimigo. De início os homens são apresentados por suas funções e ao longo das histórias as
mulheres são as iniciadoras que fazem com que os homens encontrem a sua essência e sejam
recompensados ou punidos de acordo (SCHULZE, 2004, p. 46-50).
Apesar disso, Sherazade é descrita de forma muito elogiosa, com o foco em suas
habilidades e inteligência que a farão por um fim na carnificina feminina:

Ela tinha “muitíssimo espírito e admirável inteligência”. Muito culta, era dona de
memória tão prodigiosa que nada lhe escapava de tudo que havia lido. Aplicara-se
com afinco ao estudo da filosofia, da medicina, da história e das artes e compunha
versos mais lindos que os poetas mais famosos do seu tempo. Além disso, tinha uma
beleza extraordinária e uma virtude solidíssima coroava tantas lindas qualidades
(GALLAND, 2015, p. 36).

Ela é vista como uma exceção extraordinária dentre as mulheres, tendo uma “coragem
acima de seu gênero”. Tanta coragem que ela está disposta a sacrificar sua vida pelo bem das
outras mulheres de sua comunidade, colocando-se em uma posição de serviço a uma causa
coletiva. E ela mostra determinação ao não aceitar que a insistência ou as histórias de seu pai a
convença a desistir da estratégia. Nas palavras de Sherazade: “conheço o perigo que corro e
não tenho medo. Se eu morrer, minha morte será gloriosa, e se conseguir o meu intento,
prestarei à pátria inigualável serviço” (GALLAND, 2015, p. 36).
Além disso, é Sherazade que tem o conhecimento e a didática para guiar o príncipe
Shariar por seu processo de iniciação. É pelas histórias dela que ele conhece os perigos e
recompensas que cada conduta acarreta. Tal qual em um espelho de príncipes, ele se
instrumentaliza para governar melhor, a partir do conhecimento dos antigos e a da experiência
de personagens. É por meio das histórias de Sherazade que ele encontra moderação, se
individualiza e é iniciado nos mistérios da vida e das relações humanas (LEEUWEN, 2007, p.
9-11). De forma análoga, é a dama no conto Guigemar, que inicia o protagonista nos jogos do
amor, curando a única falta/ferida que a natureza o tinha legado e tornando-o inteiramente
participante dos ideais da sua comunidade.
Apesar de ao longo do prólogo e das histórias, muitas vezes o feminino ser representado
como caótico e sexualmente incontrolável, é Sherazade que restaura o equilíbrio e a prosperidade
do reino. E é a conduta desmedida do príncipe que traz o caos social (LEEUWEN, 2007, p. 10-
11). Além disso, ao longo das histórias vemos tanto homens quanto mulheres representando
61

ideais de virtude e de vício, compondo um mosaico balanceado e heterogêneo dos sentimentos e


das atitudes humanas (AL-HEMYARI, PAWAR, 2018, p. 188-189).

3.3.1 Resumo do conto

O príncipe das ilhas de Kaledan, de nome Camaralzaman, – filho único e muito


esperado de um próspero rei – tinha aversão às mulheres e ao casamento, colocando em risco a
continuidade de sua dinastia. Depois de muitas tentativas de convencimento, seu pai o julga
insolente e o tranca em uma torre. Distante dali uma princesa chinesa, de nome Badura, é
trancada em um aposento e mantida sob vigilância por não querer se casar e ter que obedecer a
um marido. Com a intervenção de uma fada e um Jinn 35 que levam a princesa da China até a
torre do príncipe Camaralzaman, os dois se apaixonam. Enquanto um dorme, o outro acorda e
se encanta com a beleza do que está adormecido. Eles trocam anéis e são levados voando para
seus lugares de origem.
Na manhã seguinte os dois lembram do que aconteceu e tentam convencer a todos. No
caso do príncipe, o rei acredita em sua história ao ver o anel e no caso da princesa, ela só é
considerada mais louca. Então é anunciado que quem conseguir curar a princesa, terá sua mão
em casamento. Algum tempo depois, Marzavan, o irmão de leite da princesa, volta de suas
viagens e consegue visitá-la disfarçado de mulher. Assim ele conhece a sua história e reconhece
que é muito parecida com a do príncipe de Kaledan, do qual ele ouviu falar em sua jornada.
Marzavan serve de intermediário para os amantes, levando Chamaralzaman – que se
fez passar por morto para poder viajar – até Badura, que ainda está presa. Os amantes ficam
juntos, mas se separam logo depois por causa de um talismã. Na longa separação, o príncipe se
torna fazendeiro e a princesa precisa se disfarçar de homem e assumir a identidade do amado
para conseguir abrigo em um reino. Vestida como o príncipe, Badura assume esse reino e se
casa, governando de forma próspera. Eventualmente, os amantes se encontram e as identidades
verdadeiras de ambos são reveladas. Eles permanecem e reinam juntos.

35
Gênios que fazem parte do sistema de crenças em maravilhas que tem origem em um período pré-islâmico e
que com o tempo incorporou uma infinidade de elementos que permeiam o imaginário árabe islâmico que
constrói as Mil e Uma Noites (DAMIEN, 2017, p. 57
62

3.3.2 Estudo do conto

O conto começa em um tempo de outrora, localizando os leitores/ouvintes


geograficamente, na costa da Pérsia, mas apresentando-os um tempo indeterminado, onde as
maravilhas são possíveis – da mesma forma que nos dois contos de Marie de France que foram
apresentados. A história se passa na Ilha dos filhos de Kaledan, governada por um sábio rei que
tinha muitas filhas, esposas e concubinas, mas nenhum descendente homem para quem deixar
o trono. Isso lhe causava muito sofrimento. Essa preocupação com a linhagem para o sucesso
de um reino perpassa as nossas duas fontes e marca muito a relação entre homens e mulheres
em contexto nobre medieval.
Frente a este problema o rei orou para que Alá concedesse um filho ao reino e assim
se fez. Depois de preparar o filho com os melhores mestres, quando o menino fez 15 anos, o rei
quis passar-lhe o governo para que ele não fosse “corrompido pela ociosidade da juventude”,
porém o grão-vizir aconselhou o rei a casá-lo ao invés: “o matrimónio prende e impede que um
jovem se esgote” (GALLAND, 2015, p. 480).
O rei aceitou o conselho, porém o príncipe foi enfático recusando o matrimônio:

Nem sei se poderia decidir-me um dia ao casamento, não apenas por causa das
preocupações que as mulheres causam, mas também por causa do que li nos nossos
autores, sobre seus ardis, as suas maldades e as suas perfídias” [...] “Com efeito, os
inúmeros males causados pelas mulheres desde que o mundo é mundo, como vi
perfeitamente em nossas histórias e como ouço todos os dias, são motivos que me
levam a não querer ligar-me a elas (GALLAND, 2015, p. 481).

Essa passagem retrata bem o ideal de que as mulheres supostamente não seriam
confiáveis e espelha a rejeição inicial ao feminino que o príncipe Shariar demonstra no prólogo
moldura das Mil e Uma Noites. E da mesma forma que ele, o príncipe Camaralzaman irá
alcançar um equilíbrio e um respeito maior ao feminino ao longo da sua jornada de
descobrimento de si, do outro e do mundo.
A pedido do sultão, a mãe de Camaralzaman, Fátima, resolveu intervir e conversar
com o príncipe sobre sua aversão ao casamento:

Não quero defender as mulheres más [...], mas é uma injustiça das mais fortes afirmar
que todas o são. Meu filho, porque vos detendes em algumas de que falam os vossos
livros e que causaram na verdade grandes desordens? Porque não vos lembrais de
tantos monarcas, sultões e outros príncipes cuja tirania, barbaridade e maldade causam
horror? Por uma mulher, encontrarei mil desses tiranos. E as mulheres, honestas e
63

bondosas, meu filho, que tem a desgraça de ligar-se pelo matrimônio a esses furiosos,
julgais que são felizes? (GALLAND, 2015, p. 483-484).

Aqui a obra toca em temáticas que são importantes para ambas as nossas fontes: A
governança boa e a tirania; o sofrimento das mulheres com casamentos impostos e a perspectiva
feminina. Fátima questiona o ponto de vista dos autores sobre as mulheres e evidencia o quanto
ele é limitado. O quanto não compreende a totalidade e a complexidade do feminino.
A recusa do príncipe em se casar se torna um problema político com o tempo. Um
problema que o faria ser o último de sua dinastia. O casamento, portanto, não era uma questão de
escolha individual, simplesmente. Nas palavras do pai Camaralzaman: “Já não é simplesmente
por ter de satisfazer um pai que não podeis recusar-vos; é o bem do Estado que o exige. Todos
estes senhores o exigem comigo (todos os vizires do conselho)” (GALLAND, 2015, p. 485).
Frente a outra recusa do príncipe – desta vez, perante todo o conselho – o rei mandou
que os guardas o prendessem em uma torre, sob acusações de insolência. Aqui vemos o conflito
entre as convicções individuais do príncipe e as prioridades do reino, representadas pela
autoridade do conselho e do seu pai. O desafio à ordem estabelecida resulta no isolamento de
Camaralzaman. Ele deixa de ser considerado parte ativa da sociedade (LEEUWEN, 2007, p. 66).
O tema do aprisionamento é comum em ambas as nossas fontes, mas diferentemente dos
Lais de Marie de France, as Mil e Uma Noites não limitam este motivo literário ao feminino, apesar
dele ter consequências diferentes para a mulher e para o homem, como veremos mais adiante.
Dentro da torre, o príncipe se entreteve com seus livros e ficou bastante tranquilo.
Quando adormeceu, uma fada que vivia em um poço próximo veio admirar a sua beleza. Ela e
um jinn começaram a disputar sobre quem teria a maior beleza: o príncipe Camaralzan ou a
princesa Badura, das terras distantes da China, que o jinn havia visto durante seu voo, trancada
em um aposento. Jinns são criaturas feitas de fogo que fazem a ligação entre o mundo cotidiano
e o mundo de maravilhas que estão em constante interação nas histórias das Mil e Uma Noites.
Os Jinns e as fadas são representantes das forças do destino e do imprevisível das forças que
governam o mundo. Dessa forma eles encaminham os personagens das histórias até onde eles
são predestinados a estar. Eles representam a transformação, o desequilíbrio necessário para o
processo de formação dos personagens e as metamorfoses que fazem parte da natureza e da
vida dos seres humanos (LEEUWEN, 2007, p. 120-123).
64

Essa presença do destino e da intervenção de seres feéricos como seus agentes – com
suas metamorfoses e poderes – na vida dos humanos é algo comum em nossas fontes, uma vez
que para o caso do conto Yonec, o personagem Muldumarec é um ser feérico que consegue se
transitar entre a forma humana e a forma de pássaro, consegue predizer o destino da dama e do
romance deles, assim como a gravidez dela de um filho, que seria capaz de vingar os amantes.
(MARIE DE FRANCE, 2001, p. 101-106).
E no caso do conto Guigemar, um animal branco, com características andróginas e
capacidade de falar foi ferido pelo protagonista em caçada e amaldiçoou o destino de seu algoz
da seguinte forma:

Ai, pobre de mim! Estou morrendo! E tu, vassalo que me abateste, tal será o teu
destino: jamais acheis remédio, nem de erva, nem de raiz; e nem de médico, por
nenhuma poção, encontrarás jamais alívio da chaga que tens na coxa. Salvo daquela
que irá te curar. Tal mulher sofrerá por teu amor tão grande pena e dor como nenhuma
outra sofreu, e farás outro tanto por ela, para a maravilha de todos que amam, ou
amaram, ou amarão um dia. (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 43).

Neste exemplo, vemos um ser dos domínios do maravilhoso, com ligações com a
natureza, com características animais e humanas, e poderes sobre o destino, encaminhando o
nosso protagonista para onde ele deve estar para cumprir sua sina.
Na corte de seu pai, Badura era coberta de atenções de forma até bastante ambígua
entre o amor paternal e o romântico:

Quem não conhecesse bem o rei, pai da princesa, poderia crer, pelas suas
demonstrações de ternura, que está apaixonado por ela. Nunca amante nenhum fez
pela mulher querida o que ele tem feito pela filha. Com efeito, o mais violento dos
ciúmes jamais deu a imaginar o que o cuidado de torná-la inacessível a qualquer outro
homem que não ao que deve desposá-la, o fez excogitar ou inventar (GALLAND,
2015, p. 488).

Situação parecida pode ser vista no lai Dois amantes, de Marie de France:

O rei tinha uma bela filha, uma donzela muito cortês. Afora ela, não tinha filho nem
filha; muito a queria e amava. Foi solicitada por homens ricos, que de bom grado a
teriam tomado como esposa. Mas o rei não se dispunha a dá-la, porque não podia
passar sem ela. Desde que perdera a rainha, não tinha mais a quem recorrer, ficava
perto dela noite e dia, era confortado pela rapariga. Muitos o julgavam mal por isso,
até mesmo os seus o censuravam. Quando ele ouviu como falavam, entristeceu-se
muito, muito lhe pesou. Começou a imaginar como poderia livrar-se de quem lhe
pedisse a filha (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 95-96).
65

O motivo social para o isolamento retratado em Guigemar e Yonec é esta aparente


necessidade de manter as mulheres fora do contato masculino. Para que fiquem intocadas
sexualmente, garantindo uma linhagem monogâmica. A separação entre homens e mulheres da
elite gera a necessidade de criar espaços e esferas sociais separadas para cada um deles. Assim
como conjuntos de significados e ideais que dão corpo e sentido a essas separações físicas. Isto
é, ao menos a um nível teórico, porque é preciso sempre lembrar que normas sociais são
continuamente quebradas e repensadas (LEEUWEN, 2007, p. 91).
O rei da China, quando chegou o momento, decidiu casá-la, porém, Badura se recusou.
Mas, diferentemente de Camaralzaman, a princesa não queria se casar para não ter que
renunciar a sua autonomia e conforto. Havia sido feita para governar e não se submeter às
vontades de um marido: “os maridos sempre querem ser patrões e eu não tenho inclinação para
obedecer” (GALLAND, 2015, p. 488). Frente à possibilidade de ser obrigada a se casar, a
princesa ameaçou “afundar um punhal no peito”. Assim como em Yonec, a morte é uma opção
preferível para a protagonista do que continuar em um casamento infeliz. Nas palavras da dama
do conto Yonec “Por ela, teria preferido que uma morte rápida a levasse” (MARIE DE
FRANCE, 2001, p. 101). Porém no caso da dama do conto Yonec, seu aprisionamento na torre
durante sete anos e em seu casamento a levaram a querer isso.
Uma vez que a princesa Badura recusou o casamento, seu pai a julgou louca e resolveu
trancá-la com dez velhas e com sua aia para servi-la. Com a sua atitude, Badura rompeu com a
ordem social esperada. Não estava disposta a cumprir as funções que sua comunidade esperava
dela. De forma análoga, à forma que Guigemar, apesar de muito cortês e bem-amado dentre os
seus, não era inclinado ao amor, o que o faria não se casar e nem ter filhos. E por isso, a natureza
deveria ter lhe faltado. Da mesma forma que a dama em Yonec rompe com as expectativas
sociais ao não dar um filho ao velho, seu marido e o trair com um amante cortês.
As velhas que vigiam a moça fazem parte da estrutura iniciática. Esse é um elemento
comum em nossas fontes. Em Guigemar “um velho padre de cabeça florida guardava a chave
do postiço; perdera seus membros de baixo sem o que não teria a confiança do senhor. Prestava
os serviços religiosos e servia comida” (MARIE DE FRANCE, 2001, p. 95).
Neste exemplo não se pode ignorar que o velho é um representante da religiosidade
cristã. Adiciona um tom de oficialidade, sacralidade e castidade, ao mesmo tempo em que a
velhice e a falta dos membros sexuais o tornam ainda mais inofensivo para o marido da dama.
Já em Yonec a dama estava sob a vigilância da irmã de seu marido, uma velha viúva.
66

O príncipe Camaralzaman e a princesa Badura são personagens que se espelham. Eles


têm semblantes muito parecidos, de igual beleza – a ponto de serem confundidos um com o
outro em um determinado ponto da narrativa. Praticamente tudo que acontece na trajetória de
um, acontece na do outro também. Ambos não querem se casar, são presos, quando se
encontram se apaixonam, e tentam acordar um ao outro. Os dois tem a mesma ideia de fazer
uma troca de anéis como sinal de que estiveram ali. Na manhã seguinte ambos são
desacreditados e acham que o encontro da noite anterior foi uma armação; e são violentos com
aqueles que estão os servindo, por desconfiança de que estas pessoas fazem parte da trama.
Quando separados, não conseguem manter-se bem, tendo muitos sofrimentos. Quando
finalmente conseguem ficar juntos, ambos são forçados a viagens e ambos se casam com a
mesma mulher, a princesa Haiatalnefuz (Badura quando assume a identidade de
Chamaralzaman e o próprio Chamaralzaman quando desfaz o mal-entendido, e a assume como
sua segunda esposa) (LEEUWEN, 2007, p. 64).
Eles fazem parte de uma harmonia – uma unidade – e dividem o mesmo destino, desta
forma, passam pelos mesmos estágios de individuação. Assim como sofrem e lidam com
consequências quando estão separados. (LEEUWEN, 2007, p. 47-48).
Por isso que ambos passam por aprisionamentos. Semelhante aos contos Yonec e
Guigemar, na trajetória de Badura e Camarazalman este isolamento é parte de um processo
iniciático, em que os personagens têm tempo para amadurecer e fazer a transição entre um
estágio infantil e a sua maturidade sexual, na qual eles são capazes de assumir plenamente os
seus papéis na sociedade, mas ainda mantendo parte das suas vontades. Ou seja, os personagens
amam e se unem, tal como é esperado, mas a parceiros que não foram impostos e por amor
verdadeiro. O principal ponto de conflito do conto é entre os casamentos arranjados, ou mais
amplamente, as imposições sociais, e as uniões por amor, ou o direito a escolha própria
(LEEWUEN, 2007, p. 68).
Mas apesar de se espelharem, Badura e Camaralzaman tem tratamentos bastante
diferentes durante este período de isolamento. A despeito de ser considerado insolente pelo pai
e ser levado a torre por consequência disso. Uma vez que Chamaralzaman consegue provar
para seu pai que havia sido visitado durante a noite por uma moça por quem ele se apaixonou,
o rei se compadece do príncipe. Acredita nele, tira-o da torre e muitas vezes chora pelo
sofrimento dele, até deixando de fazer tarefas de governo para isso. “Vinde, vamos chorar
juntos, vós por amardes sem esperança, e eu por vê-lo chorar e não poder remediar o vosso mal
67

[...] o rei encerrou-se com ele e chorou durante vários dias, sem querer tomar conhecimento dos
negócios do reino” (GALLAND, 2015, p. 499).
Já Badura é recebida de maneira completamente diferente quando tenta provar o
mesmo acontecimento:

O rei da China não soube o que pensar, quando reconheceu o anel de um homem. Mas
como nada compreendesse do que a filha lhe dizia, julgou-a mais louca ainda do que
antes. Assim, sem dizer mais nada, com medo de que ela praticasse uma violência contra
ele ou contra os que dela se aproximassem, mandou que a acorrentassem, deixando-lhe
apenas a ama para servi-la, com guardas à porta (GALLAND, 2015, p. 501).

A notícia se espalhou de que quem conseguisse curar a princesa de sua loucura, teria
a sua mão em casamento e controle sobre todo o reinado, mas quem fracassasse, seria
executado. Muito tempo se passou e muitos tentaram curar a princesa do seu mal. Até que
Marzavan, irmão de leite da princesa, chegou de suas viagens e se vestiu de mulher para poder
passar por seus guardas. A partir daqui o disfarce se torna um dos elementos recorrentes da
história. No caso de Marzavan, disfarçando-se ele consegue passar pelas separações entre
feminino e masculino e chegar até Badura (LEEUWEN, 2007, p. 66).
Marzavan é um agente para a união dos amantes. Ele consegue transitar facilmente
pelos locais porque não está preso a normas de conduta de um lugar específico. Ele é um
viajante. Tão à margem quanto Badura e Camaralzaman, mas essa posição lhe dá vantagem e
experiência de vida. E em seu caminho ele ouviu muitas histórias, inclusive a de Camarazalman
e do seu mal de amor. Isso o faz compreender o que ocorre com Badura e o faz acreditar nela.
(LEEUWEN, 2007, p. 66).
Então ele se compromete a ir buscar Camaralzaman. Ele sofre um naufrágio e, pelas
forças do destino, é salvo próximo da ilha dos filhos de Kaledan. Marzavan é aceito na corte e
trama com Camaralzaman para que ele se passe por morto para poder ir em busca de Badura.
Viajando e se passando por morto, Camaralzaman se desvincula da autoridade paterna e de seu
reino de forma ainda mais extrema do que quando desobedeceu a seu pai e foi isolado. Dessa
forma, ele tem a liberdade de se descobrir como indivíduo, enquanto ele experimenta o mundo
e a dinâmica da sociedade para além do conhecido e assume as identidades e funções
necessárias para sobreviver (LEEUWEN, 2007, p. 66-68).
Ao chegar à corte do rei da China, Camaralzaman se disfarça de astrólogo para poder
se aproximar da princesa e lhe passa o anel que eles trocaram como prova do acontecido. De
68

forma análoga ao conto Yonec, o anel tem um papel importante na união entre os amantes,
apesar do tempo, da distância e das dificuldades. O anel evoca a memória e é um emblema do
tempo que eles passaram juntos criando uma ligação entre os dois.
Depois de algum tempo juntos, com a benção do rei da China, os dois decidem viajar
para visitar o rei Chahzaman, o pai de Chamaralzaman. Durante essa viagem, o príncipe
descobre um talismã escondido nas vestes íntimas da princesa Badura enquanto ela dorme ao
seu lado. Curioso, o príncipe pega a joia para olhar mais de perto e um pássaro acaba arrancando
o objeto de sua mão. O talismã, nesse contexto, pode representar tanto uma proteção para a
castidade de Badura, tal qual o cinto de castidade da dama no conto Guigemar, ou mesmo pode
significar um aviso sobre os perigos da curiosidade e da ganância, uma vez que é por causa
delas que Camaralzaman se afasta de Badura por vários anos (LEEUWEN, 2007, p. 68).
O príncipe segue o pássaro, que funciona como um agente do destino, levando
Camaralzaman para mais um estágio da sua aventura. Ele consegue abrigo trabalhando como
jardineiro, ou seja, descendo em status e conhecendo outra realidade mais simples. Já Badura
vai atrás de Camaralzaman quando acorda e, depois de caminhar por muito tempo, ela consegue
abrigo na Ilha de Ébano, onde ela se disfarça como príncipe de Kaledan. Passando-se por um
homem experimenta privilégios que não conhecia e governa de forma próspera por muitos anos
até conseguir trazer o príncipe de volta até ela (LEEUWEN, 2007, p. 66).
69

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos últimos dois anos, devido à pandemia de Covid-19, foi necessário que cada um
de nós se isolasse para o bem coletivo. É um momento em que somos forçados a reavaliar,
como sociedade, a nossa relação com o outro e com o planeta para garantir a nossa
sobrevivência. Precisamos encarar a solidão, a convivência com as nossas próprias sombras e
a saudade dos nossos. Nosso imaginário se transformou em um curto tempo. Novos medos
surgiram, novos hábitos se tornaram regra e convivemos com a presença constante da morte.
Experiência para a qual os medievais estavam muito mais preparados para lidar do que nós.
Todas essas transformações fizeram com que este momento também fosse pontuado
por jornadas de autodescoberta muito particulares ao cotidiano de cada um. Mas, apesar da
parada ou diminuição das atividades produtivas por segurança, esse com certeza não foi um
período de inércia.
Essa pesquisa foi toda desenvolvida neste contexto, o que tornou a nossa problemática
ainda mais real: Os significados do isolamento na literatura medieval a partir da análise
comparada dos contos Guigemar e Yonec e a “História dos amores do príncipe Camaralzaman,
da ilha dos filhos de Kaledan e de Badura, princesa da China”. Ao longo da pesquisa
percebemos que além de um reflexo preciso das restrições sociais, em especial para as
mulheres, este era também um momento de iniciação e transformação dos personagens.
Estas torres, quartos e jardins, na literatura, não representavam inércia. Eram
justamente o contrário. Eram lugares de autodescoberta e criatividade onde a autoridade dos
captores (e das normas sociais) entra em conflito com a necessidade de expressão do amor e da
individualidade. Onde as metamorfoses internas dos personagens são possíveis – muitas vezes
com a ajuda de outras metamorfoses de origem maravilhosa.
O caminho que escolhemos para esta pesquisa se inicia analisando a escrita de Marie de
France, que a partir de uma perspectiva feminina de mundo, colocou em rimas, antigos Lais bretões,
popularizando-os e os trazendo para a corte de Henrique II e Eleonor de Aquitânia. Por meio de
suas personagens Marie de France lança luz sobre a realidade de muitas damas presas em
casamentos arranjados que usam da sua criatividade para retomar a liberdade subjetiva e física.
A coragem dela de se colocar dentre os autores de seu tempo, pedindo igual
reconhecimento, é um exemplo da agência feminina medieval. Muito diferente do que o senso
comum de donzelas indefesas em torres nos leva a acreditar. Além disso, como a própria
70

escritora faz questão de pontuar em seu prólogo, ela faz parte da translatio studii, que é o
movimento de saber tanto do passado para aquele presente (tomando e reinterpretando
referências dos antigos) quanto no movimento constante entre Oriente e Ocidente.
Na análise de Guigemar notamos que tanto Guigemar quanto a dama estão à margem
socialmente, com motivos e consequências diferentes para ambos: Guigemar não se adequa
aos jogos do amor cortês e isso é considerado uma falta, levando em conta a política
matrimonial de seu meio, enquanto a dama está presa em casamento infeliz e é isolada de
todos pelo marido ciumento.
É a partir do afastamento de Guigemar da corte e para dentro da floresta em uma
caçada que ele encontra o seu destino anunciado por um animal mágico. É no isolamento dele
com a dama que ele é iniciado nos mistérios do amor e da sexualidade. Da mesma forma, é a
partir do isolamento dela em sua alcova com ele - lugar decorado com os ensinamentos da deusa
Vênus e habitação dela, portanto, feminino por excelência - que ela consegue recobrar a sua
alegria e a sua liberdade com Guigemar ao final do conto. Essa temática de restrição e
isolamento se repete quando os amantes se separam porque a união e a fidelidade deles é
representada por uma amarra e um cinto de castidade, símbolos de restrição do corpo. O que
nos traz a noção de fidelidade da escritora que é sempre entre aqueles que se amam e não no
casamento necessariamente. A felicidade, o amor e o consentimento dos envolvidos é levado
em conta para que a fidelidade faça sentido.
Um elemento importante é que como punição por ter traído o marido com Guigemar,
o aprisionamento da dama se intensifica. Ela é trancada em uma torre por aproximadamente
dois anos, até que por artifícios mágicos, consegue escapar. Já Guigemar recebe permissão para
ir embora ileso. Portanto, nota-se que as consequências da infidelidade são em forma do
recrudescimento da prisão e foram mais graves para a moça.
Em Yonec pudemos ver um aprisionamento ainda mais rigoroso, já que desde o
casamento a dama do conto foi confinada em uma torre por seu marido ciumento, tendo contato
apenas com uma senhora viúva e com um padre eunuco, alegorias para a esterilidade de sua
situação. Assim como o próprio marido decrépito, negação de toda a vida e alegria dela. Os
impactos deste isolamento são tantos que se tornam físicos, tirando a beleza de sua fisionomia.
Até que ao expressar seus sentimentos quanto a sua prisão e desejar pelo amor, a dama evoca um
pássaro que é símbolo do amor, da fertilidade e da beleza que o casamento arranjado lhe roubou.
71

Já no segundo capítulo, compreendendo o fluxo de conhecimento que caracteriza as


nossas fontes e a própria Idade Média, para analisar o motivo literário e social do
aprisionamento foi importante olharmos para suas possíveis influências e conexões
acompanhando as trocas culturais entre Oriente e Ocidente.
Pudemos observar a importância do conhecimento, sua disseminação entre os árabes
e a interculturalidade de sua expansão territorial. Assim como abordamos o florescimento de
uma poesia de amor cada vez mais elaborada que pode ter influenciado os trovadores e
trovadoras provençais. Seja por diplomacia, instrução, curiosidade ou comércio, as palavras
circulavam por agitadas ruas e múltiplas vozes.
De maneira mais direta, foi notável que tanto Guilherme IX, conhecido como o
primeiro trovador da Europa, quanto a própria Eleonor da Aquitânia tenham colhido muitas
influências da península ibérica de domínio muçulmano, em viagens em decorrência das
cruzadas ou por acordos e relações diplomáticas entre famílias da nobreza que compunham um
verdadeiro mosaico de parentescos e culturas. Por ter sido influenciada por tal encruzilhada de
trocas culturais, a obra de Marie de France é ímpar para que possamos analisar o trânsito de
saberes medieval.
A partir destes encontros, e considerando os possíveis paralelos entre os Lais de Marie
de France, realizamos a análise do prólogo moldura das Mil e Uma Noites que nos informa o
tom das histórias seguintes e nos apresenta Sherazade. Essa personagem, que praticamente
personifica o ato de contar histórias, assim como nossas damas – Marie de France, a dama em
Yonec e a moça em Guigemar – soube usar sua inteligência e criatividade para, no seu caso,
recobrar a felicidade de todas as mulheres de sua comunidade, assim como suas famílias, além
de livrar a si mesma de uma morte violenta. Sherazade nos enreda em uma teia de histórias que
nos apresentam o universo simbólico árabe-islâmico medieval.
Em seguida, realizamos a análise do conto “A história dos amores de Camaralzaman,
príncipe da ilha dos filhos de Kaledan, e de Badura, princesa da China”. Neste conto, assim como
nos Lais, questões matrimoniais estão no centro da narrativa e levam ao aprisionamento dos
personagens principais. A princesa Badura não quer perder a sua relativa autonomia e conforto
casando-se. Não quer ter de obedecer a um marido. Já Camaralzaman tem um desprezo tão
profundo por mulheres que não quer desposar. Ambas as atitudes representam uma ameaça ao
equilíbrio social, colocando em debate novamente a oposição entre as vontades individuais e as
necessidades da comunidade, que também está presente nos Lais. Durante a marginalização
72

destes personagens em torres, eles entram em contato com o amor por meio de agentes do
maravilhoso. Novamente o isolamento alia a marginalização social com uma oportunidade de
individuação dos personagens e reintegração ao seu meio de forma mais harmônica, tal como um
afastamento necessário a um rito de passagem. Mas é importante notar que, assim como em
Guigemar, as circunstâncias deste aprisionamento são muito diferentes para o príncipe e para
Badura: acredita-se que ela ficou louca ou doente por não querer se casar e quando Badura conta
a seu pai sobre o encontro com Camaralzaman, ele manda que a acorrentem na cama. Já o
príncipe, ao fazer o mesmo relato, é solto imediatamente e conta com a compreensão da família.
Nossa problemática nos permitiu debater questões como a marginalização social, suas
consequências psicológicas e representações alegóricas; a forma que a sociedade se relaciona
com a literatura; a ligação entre espaços, poder e gênero; o literal e o alegórico, a mobilidade e
a imobilidade (LEEUWEN. 2007, p. 90). E ainda, em um movimento entre o passado e
presente, nos faz refletir sobre o quanto esta diferença de tratamento entre homens e mulheres
ainda é presente na sociedade. Em especial no rigor e violência com que mulheres são julgadas
por suas atitudes e a facilidade com que suas palavras são desacreditadas.
Por fim, a relevância desta pesquisa está em questionar a ideia de feminino indefeso e
submisso associado ao medievo que se espalhou pelo senso comum devido a infinidade de
narrativas ao longo da História que retratam donzelas em perigo ou à espera de resgate. Ficou
muito evidente ao longo de nossa pesquisa que tanto as personagens femininas de Marie de
France, quanto Sherazade e Badura têm agência e buscam ativamente por felicidade e liberdade.
Seus atos movem as narrativas e elas mostram criatividade e estratégia, retratando lindamente
a vivência das mulheres na sociedade medieval, tanto em contexto Ocidental, quanto Oriental.
Além disso, a pesquisa se destaca por analisar as conexões entre literaturas ocidentais e
orientais, buscando a valorizar a transculturalidade do medievo que nos influencia até hoje. A ideia
de que o Ocidente é extremamente original e isolado na construção de sua cultura não passa de uma
ilusão e as possibilidades de estudo acerca das ligações entre Oriente e Ocidente são imensas.
Esperamos ter contribuído para a construção desta vertente historiográfica tão necessária.
73

REFERÊNCIAS

ADAMS, Tracy. “Arte Regendus Amor”: Suffering and Sexuality in Marie De France’s Lai
De Guigemar. Exemplaria, [s.l.], v. 17, n. 2, 2005, p. 285-315. Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1179/exm.2005.17.2.285?journalCode=yexm20.
Acesso em: 27 nov. 2021.

ANDOKOVÁ, Marcela. The role of captatio benevolentiae in the interaction between the speaker
and his audience in Antiquity and today. Systasis, [s.l.], v. 29, 2016.
Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/MarcelaAndokova/publication/
312627709_The_role_of_captatio_benevolentiae_in_the_interaction_between_the_speaker_and_
his_audience_in_Antiquity_and_today/links/5887329192851c21ff4f9655/The-role-of-captatio-
benevolentiae-in-the-interaction-between-the-speaker-and-his-audience-in-Antiquity-and-
today.pdf. Acesso em: 27 nov. 2021.

BARROS, José D’Assunção. A gaia ciência dos trovadores medievais. Revista de Ciências
Humanas, [s.l.], v. 41, n. 1 e 2, 2007, p. 83-110. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/15623. Acesso em: 27 nov. 2021.

______. A prostituta como agente de circularidade no trovadorismo ibérico (séculos XIII e


XIV). Revista Ártemis, [s.l.], v. 2, 2005. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/31515092_A_PROSTITUTA_COMO_AGENTE_
DE_CIRCULARIDADE_NO_TROVADORISMO_IBERICO_SECULOS_XIII_E_XIV.
Acesso: 27 nov. 2021.

______. História comparada: um novo modo de ver e fazer a história. Revista de História
comparada, [s.l.], v. 1, n. 1, 2007. Disponível em:
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4813084. Acesso em: 27 nov. 2021.

______. O amor cortês-suas origens e significados. Raído, [s.l.], v. 5, n. 9, p. 195-216, 2011.


Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/Raido/article/viewFile/979/811. Acesso em:
27 nov. 2021.

______. Os trovadores medievais e o amor cortês-reflexões historiográficas. Revista


Aletheia, [s.l.], v. 1, 2008, p. 1-15.
Disponível em: https://www.passeidireto.com/arquivo/69209246/os-trovadores-medievais-e-
o-amor-cortes-reflexoes-historiograficas. Acesso em: 27 nov. 2021.

BISSIO, Beatriz. A viagem e as suas narrativas no Islã medieval. Revista Litteris, [s.l.],
v. 4, 2010, p. 1-18. Disponível em: https://www.academia.edu/4241724/
A_viagem_e_as_suas_narrativas_no_Isl%C3%A3_medieval. Acesso em: 27 nov. 2021.

BLOCH, R. Howard. Medieval misogyny and the invention of western romantic love.
Chicago: University of Chicago Press, 1991.

______. The anonymous Marie de France. Chicago: University of Chicago Press, 2003.
74

BRUCKNER, Matilda Tomaryn. Speaking Through Animals in Marie de France’s Lais


and Fables. In: WHALEN, Logan. A companion to Marie de France. Leiden: Brill,
2011, p. 157-187.

BURGESS, Glyn S. Marie de France and The Anonymous Lays. In: WHALEN, Logan. A
Companion to Marie de France. Leiden: Brill, 2011, p. 117-156.

______. The Lais of Marie de France: text and context. Manchester: Manchester
University Press, 1987.

______. BROOK, Leslie C (ed.). Doon and Tyolet: Two Old French Narrative Lays.
Liverpool: University of Liverpool, Department of French, 2005.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2014.

CARVALHO, Ligia Cristina. O amor cortês e os Lais de Maria de França: um olhar


historiográfico. 2009. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Letras de Assis, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/93390. Acesso
em: 27 nov. 2021.

CAVALHEIRO, Gabriela da Costa. A torre reserva-se à dama, aos caval(h)eiros o salão:


gênero, espaço e hierarquização social no medievo insular. Anais do XXVI Simpósio
Nacional de História da ANPUH. São Paulo, 2011. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300810933_ARQUIVO_Atorrereserva-
seadama,aoscaval(h)eirososalaogenero,espacoehierarquizacaosocialnomedievoinsular.pdf.
Acesso em: 27 nov. 2021.

CODENHOTO, Christiane Damien. Nas tramas das noites. Revista de Estudos Orientais,
[s.l.], v. 6, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/reo/article/view/90730. Acesso
em: 27 nov. 2021.

COSTA, Marcos Roberto Nunes; COSTA, Rafael Ferreira. Mulheres intelectuais na Idade
Média. Porto Alegre: Editora Fi, 2019.

COSTA, Marcos Roberto Nunes. Mulheres intelectuais na idade média: Hildegarda de


Bingen-entre a medicina, a filosofia e a mística. Trans/form/ação, Marília, v. 35, Edição
Especial, 2012, p. 187-208. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/trans/a/JffLJcbmPmfsmhkQyRPZWDg/?lang=pt . Acesso em: 27
nov. 2021.

DE MORAES ARIAS, Ademir Aparecido. Servir a Deus e servir ao rei nas Canções de
Gesta. Anais dos Encontros Internacionais de Estudos Medievais, Porto Alegre, v. 3,
n. 1, 2019, p. 299-308. Disponível em:
http://abrem.org.br/revistas/index.php/anais_eiem/article/download/441/396. Acesso em:
27 nov. 2021.
75

SOUZA, Celia Daniele Moreira de. O Colar da Pomba e o passado omíada glorioso. (séc. XI).
In: Jornada de Estudos Históricos Professor Manoel Salgado, 9, 2016, Rio de Janeiro. Anais,
Rio de Janeiro, PPGHIS/UFRJ, 2016, p. 1-12. Disponível em:
https://www.academia.edu/44166932/O_Colar_da_Pomba_e_o_passado_om%C3%ADada_gl
orioso_s%C3%A9c_XI_. Acesso em: 27 nov. 2021.

DEPLAGNE, Luciana Eleonora de Freitas Calado. Primaveras medievais: sobre resistência e


transgressão nas cantigas de trovadoras. In: Carlos Magno Gomes; Christina Bielinski
Ramalho; Ana Maria Leal Cardoso (org.). Escritas de Resistência: Intersecções Feministas
da Literatura. Aracajú: Criação Editora, v. 2, 2019, p. 19-34. Disponível em:
https://docplayer.com.br/185071715-Escritas-de-resistencia-interseccoes-feministas-da-
literatura.html. Acesso em: 27 nov. 2021.

DAMIEN, Christiane. O sobrenatural e o mágico nas mil e uma noites. 2017. Tese
(Doutorado) – Letras, Universidade de São Paulo Tese de Doutorado. Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2017. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8159/tde-
14082017-122820/publico/2017_ChristianeDamien_VOrig.pdf. Acesso em: 27 nov. 2021.

DÍAZ, Esther Corral. El espacio y la femina inclusa en los Lais de María de Francia. In:
Actes del X Congrés Internacional de l’Associació Hispànica de Literatura Medieval.
Valencia: Institut Interuniversitari de Filologia Valenciana, 2005, p. 597-610.

DINGELDEIN, Leslie. Textiles and meaning in the lais Guigemar, Lanval, and Laustic of
Marie de France. 2014. Tese (Doutorado) – Department of Classical and Modern
Languages, University of Louisville, Louisville, 2014. Disponível em:
https://ir.library.louisville.edu/etd/353/. Acesso em: 06 jun. 2020.

DUBY, Georges. Idade média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.

______. (org.). História da vida privada: da Europa feudal à Renascença, v. 2. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FRANCO JUNIOR, Hilário. Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo:
EDUSP, 1996.

FREEMAN, Michelle A. Marie de France's Poetics of Silence: The Implications for a


Feminine Translatio. PMLA, v. 99, n. 5, p. 860-883, 1984.
Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/pmla/article/abs/marie-de-frances-
poetics-of-silence-the-implications-for-a-
femininetranslatio/A802161564B08396653EBFB8201595DD. Acesso em: 27 nov. 2021.

GALLAND, Antoine. As mil e uma noites. Trad. Alberto Diniz. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015.
76

GOODY, Jack. O roubo da História: Como os europeus se apropriaram das ideias e invenções
do Oriente. São Paulo: Contexto, 2008

GUTHRIE, Jeri S. Critical analysis of the roles of women in the Lais of Marie de
France. 1976. Tese (Mestrado) – Department of Foreign Languages, University of
Montana, Missoula, 1976. Disponível em:
https://scholarworks.umt.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2960&context=etd. Acesso em:
27 nov. 2021.

HASNA’A SAEED ALI, AL-Hemyari; PAWAR, Sadashiv. Arab women’s role in the tales of
arabian nights. Literary endeavour, Aurangabad, Maharashtra, v. 9, n. 4, 2018, p. 187-192.
Disponível: https://literaryendeavour.org/files/ssy9ikzogu6messgwav2/Issue-2018-
10.pdf#page=196. Acesso em: 27 nov. 2021.

HODGSON, Frederick. Alienation and the otherworld in Lanval, Yonec, and Guigemar.
Comitatus: A Journal of Medieval and Renaissance Studies, [s.l.], v. 5, n. 1, 1974.

ILLINGWORTH, Ronald N. Structural parallel in the lais of Lanval and Graelent.


Neophilologus, [s.l.], v. 71, n. 2, p. 167-182, 1987.

JARITZ Gerhard. Gendering Space. In: SCHAUS, Margaret C. (ed.). Women and gender in
medieval Europe: an encyclopedia. Routledge, 2006.

JOSEPH, Sister Miriam; MCGLINN, Marguerite. The trivium: The liberal arts of logic,
grammar, and rhetoric. Philadelphia: Paul Dry Books, 2006.

KAUTH, Jean-Marie. Barred windows and uncaged birds: The enclosure of women in
Chrétien de Troyes and Marie de France. In: Medieval Feminist Forum: A Journal of
Gender and Sexuality. Society for Medieval Feminist Scholarship, [s.l.], 2010, p. 34-67.

KEYSER, Linda Migl. The Medieval Chastity Belt Unbuckled In: HARRIS, Stephen;
GRIGSBY, Bryon L. (ed.). Misconceptions About the Middle Ages. New York:
Routledge, 2008.

KRUEGER, Roberta L. Beyond Debate: Gender in Play in Old French Courtly Fiction. In:
Gender in Debate from the Early Middle Ages to the Renaissance. New York: Palgrave
Macmillan, 2002, p. 79-95.

______. The Wound, The Knot, and the Book: Marie de France and literary traditions of love
in the lais. In: WHALEN, Logan. A companion to Marie de France. Leiden: Brill, 2011, p.
55-89.

______. Marie de France In: DINSHAW, Carolyn; WALLACE, David. The Cambridge
companion to medieval women’s writing. Cambridge: Cambridge University Press,
2003, p. 172-184.
77

LANDEWÉ, Wendy. The Image of the Castle: The Castle as a Motif in Medieval Marriage
Ideology. Genesis, v. 2, p. 22-23, 2010. Disponível em:
https://scholar.google.com.br/scholar?hl=ptBR&as_sdt=0%2C5&q=landewe+castle+motif&b
tnG=. Acesso em: 27 nov. 2021.

LE GOFF, Jacques. Imaginário Medieval. Editora: Estampa. 1994.

LONGARD, Jeffrey S. Making Your Memory Mine: Marie de France and the Adventures of
the Bretons. TranscUlturAl: A Journal of Translation and Cultural Studies, [s.l.], v. 8, n. 1,
2016, p. 17-37. Disponível em:
https://journals.library.ualberta.ca/tc/index.php/tc/article/view/28009. Acesso em: 27 nov.
2021.

LYONS, Jonathan. A Casa da Sabedoria. Como a valorização do conhecimento pelos árabes


transformou a civilização ocidental. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

MARIA DE FRANÇA. Lais. Trad. de Antônio Furtado e Marina Colasanti. Petrópolis:


Vozes, 2001.

MARIE DE FRANCE. French Medieval Romances from the Lais of Marie de France
Tradução Eugene Mason (1911). Disponível em:
https://www.gutenberg.org/files/11417/11417-h/11417-h.htm. Acesso em: 02 jun. 2020.

MENOCAL, Maria Rosa. The Arabic role in medieval literary history.


Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2010.

______. The ornament of the world: How Muslims, Jews, and Christians created a culture
of tolerance in medieval Spain. New York: Back Bay Books, 2002.

MICKEL JR, Emanuel J. Marie de France and the Learned Tradition. In: WHALEN, Logan.
A companion to Marie de France. Leiden: Brill, 2011, p. 31-55.

MONTEIRO, Francisco César Manhães. A Escola de Tradutores de Toledo: a oralidade da


escrita. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 23, p. 417-435, 2021.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/clt/article/view/188374. Acesso em: 27 nov. 2021.

PAPPANO, Margaret Aziza. Marie de France, Alienor d’Aquitaine, and the Alien Queen. In:
WHEELER, Bonnie; PARSONS, John Carmi (org.). Eleanor of Aquitaine: lord and lady.
Nova York: Palgrave Macmillian, 2016, p. 337-339.

PÁSSARO. In: CHAVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos:


Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1993, p. 687-691.

PEREIRA, Nilton Mullet. Descolonizar a Idade Média: Heloísa não foi uma mulher “à frente
de seu tempo”. In: Café História – história feita com cliques, [s.l.], 7 jul. 2019. Disponível
em: https://www.cafehistoria.com.br/descolonizar-a-idade-media/. Acesso em: 26 nov. 2021.
78

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo como texto: leituras da História e da Literatura.


Revista História da Educação, [s.l.], v. 7, n. 14, 2003, p. 31-45. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/asphe/article/view/30220. Acesso em: 27 nov. 2021.

RAPOSO, Eduardo Manuel da Conceição Candeias. Fundamentos históricos da poesia


luso-árabe (no século de almutâmide) na nova música portuguesa o amor e o vinho. Tese
(doutorado) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa,
2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/10362/5690. Acesso em: 26 nov. 2021.

RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Amor cortesão. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMITT, Jean-


Claude (org.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. v.1. Bauru: EDUSC, 2002, p. 47-56

ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. Tradução de Paulo Brandi e Ethel Brandi
Cachapuz, Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.

ROTHSCHILD, Judith Rice. Literary and socio-cultural aspects of the Lais of Marie de France.
In: WHALEN, Logan. A companion to Marie de France. Leiden: Brill, 2011, p. 89-117.

SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais: ensaio de hermanêutica


imaginativa. Petrópolis: Vozes, 2000.

SCHULZE, Reinhard. Images of Masculinity in the Arabian Nights. In: MARZOLPH, Ulrich;
VAN LEEUWEN, Richard; WASSOUF, Hassan. The Arabian nights encyclopedia. Santa
Bárbara: ABC-CLIO, 2004.

SECCO, Pedro Ivo Dias. Sob teus seios empinados: os caminhos dos ardis femininos no ramo
sírio das Mil e uma noites. Grau Zero, [s.l.], v. 4, n. 2, 2016, p. 185-212. Disponível em:
https://www.revistas.uneb.br/index.php/grauzero/article/view/3347. Acesso em: 27 nov. 2021.

SILVA, Paulo Duarte; NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Ensaios de História


Medieval: Temas que se renovam. Curitiba: CRV, 2019.

SILVEIRA, Aline Dias da. A “Fada Medieval” e o Destino. Revista Mosaico - Revista de
História, Goiânia, v. 4, n. 1, p. 2-9, abr. 2012. ISSN 1983-7801. Disponível em:
http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/mosaico/article/view/2025/1280. Acesso em: 03 maio
2020.

______. A Morte e a Iniciação Feminina nos Lais de Maria de França. Revista Brasileira de
História das Religiões, [s.l.], v. 6, n. 18, 2014, p. 59-74. Disponível em:
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/article/view/22752/12836. Acesso em: 27
nov. 2021.

______. Temporalidade, historicidade e presença em uma análise do prólogo do Picatrix (séc.


XIII). História da Historiografia: International Journal of Theory and History of
Historiography, [s.l.], v. 9, n. 22, 2016, p. 185-201.
79

SOUZA, Celia. O tratado do amor cortês e o colar da pomba: a sistematização de um ideal


religioso através do amor. Medievalis, [s.l.], v. 3, n. 1, 2015, p. 1-13.

SOUZA, Carlos Frederico Barboza de. islã, culturas e religiões: um diálogo possível?
perspectivas históricas acerca da presença islâmica em al-andalus. Interações, v. 12, n. 22, p.
343-368, 2017.

SUMMIT, Jennifer. Women and authorship. In: DINSHAW, Carolyn and WALLACE,
David. The Cambridge Companion to Medieval Women’s Writing. Cambridge:
Cambridge University Press, 2003, p. 91-109

THUNDY, Zacharias P. Courtly Love and Ancient India. Journal of South Asian
Literature, [s.l.], v. 16, n. 1, 1981, p. 45-59.

VAN LEEUWEN, Richard. The Thousand and One Nights: space, travel and
transformation. London: Routledge, 2007.

WHALEN, Logan E. A medieval book-burning: Objet d’art as narrative device in the Lai of
Guigemar. Neophilologus, [s.l.], v. 80, n. 2, 1996, p. 205-211. Disponível em:
https://link.springer.com/article/10.1007%2FBF00212100. Acesso em: 27 nov. 2021.

______. The Prologues and the Epilogues of Marie de France In: ______. A companion to
Marie de France. Leiden: Brill, 2011, p. 1-31.

WILLGING, Jennifer. The Power of Feminine Anger in Marie de France’s “Yonec” and
“Guigemar”. Florilegium, [s.l.], v. 14, n. 1, 1996, p. 123-135.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo. Tordesilhas, 2014.

ZIOLKOWSKI, Jan M. Cultures of authority in the long twelfth century. The Journal of
English and Germanic Philology, [s.l.], v. 108, n. 4, 2009, p. 421-448. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/20722770. Acesso em: 27 nov. 2021.

Você também pode gostar