Você está na página 1de 4

Antropologia, arma militar - Le Monde Diplomatique 30/11/20, 11:21

Edição do mês

Edição Novembro de 2020

Buscar Artigos
Comprar

0
Home Edições Online Especiais TV Diplomatique Podcast Produtos Acessar conta ASSINE

O FOGO DA AÇÃO

Antropologia, arma
militar
Dossiê 9
13 de janeiro de 2012

Em um artigo do dia 5 de outubro de 2005, o New York Times


elogiou o contingente de antropólogos engajados em uma
grande operação para reduzir os ataques contra soldados
compartilhar visualização
norte-americanos e afegãos

Em operação há vários anos, o programa Sistemas de Terreno Humano


(Human Terrain Systems – HTS) foi consideravelmente reforçado pelo
Exército norte-americano em setembro de 2007.1 Antropólogos foram
recrutados e diretamente integrados (embedded) em unidades de combate
nas brigadas e divisões no Iraque e Afeganistão. Eles foram encarregados de
aconselhar os comandantes sobre as ações culturais a serem realizadas em
campo. Gerenciado pela empresa privada BAE Systems,2 o HTS concentra-se
em fornecer informações aos militares confrontados com situações
potencialmente violentas, evitando que interpretem erroneamente as ações
da população local e permitindo-lhes analisar as situações nas quais se
encontram.

Em um artigo do dia 5 de outubro de 2005, o New York Times elogiou o


contingente de antropólogos engajados em uma grande operação para
reduzir os ataques contra soldados norte-americanos e afegãos. Tendo
https://diplomatique.org.br/antropologia-arma-militar/ Página 1 de 6
Antropologia, arma militar - Le Monde Diplomatique 30/11/20, 11:21

reduzir os ataques contra soldados norte-americanos e afegãos. Tendo


identificado um grande número de viúvas na área-alvo, os especialistas
presumiram que os jovens a elas aparentados poderiam sentir-se obrigados a
dar-lhes apoio material, unindo-se assim, por necessidade econômica, aos
insurgentes que remuneram os combatentes. Desse modo, a aplicação de um
programa de formação profissional para essas viúvas teria ajudado a reduzir
o número de ataques.

O programa HTS preocupa muitos antropólogos, até porque remete a tristes


precedentes. Lançado em 1965, o projeto Camelot, de curta duração,
recrutou antropólogos para avaliar as causas culturais da violência. O campo
de testes escolhido foi o Chile, na época em que a Agência Central de
Inteligência (CIA) tentava impedir que o socialista Salvador Allende chegasse
ao poder.

O segundo projeto, sob o nome de Apoio a Operações Civis e


Desenvolvimento Revolucionário (Civil Operations and Revolutionary
Development Support– Cords), tinha a missão de coordenar programas civis
e militares de “pacificação” norte-americanos no Vietnã. Ele visava
estabelecer um “mapeamento humano” do terreno, para identificar – e,
portanto, definir como alvos potenciais – indivíduos e grupos suspeitos de
apoiar os comunistas vietnamitas. Sabe-se com certeza que a pesquisa
antropológica foi utilizada durante essa operação.

Assim como os médicos acatam o juramento de Hipócrates, os antropólogos


possuem um código de ética que afirma que suas atividades não devem de
forma alguma prejudicar as populações estudadas, e que estas devem
“consentir, com conhecimento de causa”, participando das atividades de
pesquisa. Essa condição é obviamente impossível em condições de combate.
Muitas pessoas ao redor do mundo já consideram tais especialistas como
espiões, mesmo quando realizam pesquisas em uma situação normal, o que
atrapalha sua missão científica. Todas essas razões explicam por que a
operação HTS torna-se imediatamente o centro das atenções da categoria.

Em setembro de 2007, um grupo de universitários formou a Rede de


Antropólogos Conscientes (Network of Concerned Anthropologists),3
inspirada em físicos que se opunham ao programa “Guerra nas Estrelas”,
sistema de defesa antimíssil norte-americano lançado em 1983 pelo então
presidente Ronald Reagan. A rede escreveu um projeto de “compromisso de
não participação na contrainsurreição”. Um de seus fundadores, David Price,
da St. Martin University de Lacey (Washington), explica: “Não somos todos
necessariamente contra a ideia de trabalhar com o Exército, mas nos
opomos a tudo que se relaciona à contrainsurreição ou que constitua uma
violação dos padrões éticos da pesquisa. Solicitamos que nossos colegas
https://diplomatique.org.br/antropologia-arma-militar/ Página 2 de 6
Antropologia, arma militar - Le Monde Diplomatique 30/11/20, 11:21

violação dos padrões éticos da pesquisa. Solicitamos que nossos colegas


proclamem que não querem utilizar a antropologia para esse fim”.4

Em outubro de 2007, o Conselho Executivo da Associação Norte-Americana


de Antropologia publicou uma vigorosa declaração que não proibia
explicitamente a participação no projeto HTS, mas alertava todos os seus
membros contra a possível violação do código de ética da profissão que essa
participação poderia acarretar.

Na reunião anual da associação em Washington, em novembro de 2007, essas


atividades estavam no centro de uma controvérsia que continua gerando
polêmica. Em uma sessão intitulada “O Império responde: perspectivas dos
militares e serviços de inteligência norte-americanos sobre suas relações
com a antropologia”,5 defensores e opositores do programa enfrentaram-se
diante de uma enorme plateia. Participantes que haviam colaborado com o
Exército tentaram convencer os colegas do efeito salutar de seu trabalho,
que teria ajudado a transformar as atitudes dos militares e torná-los mais
sensíveis às diferenças culturais. Os céticos avaliaram que aqueles que
cooperaram com o Exército são ingênuos a respeito do uso de suas
pesquisas.

Essa viva controvérsia desembocou numa resolução que, se ratificada por


todos, poderá reforçar o código de ética e banir qualquer atividade de
pesquisa secreta para serviços de inteligência. Um dos principais defensores
da cooperação com o Exército é a doutora Montgomery McFate, antropóloga
da Universidade de Yale e membro do Institute for Peace dos Estados
Unidos. Em um seminário realizado no dia 10 de maio de 2007, Montgomery
apresentou um plano que contribuiu para o desenvolvimento do projeto HTS.
Segundo ela, o Exército gasta pouco com a pesquisa em ciências sociais, a
qual poderia revelar-se crucial para o sucesso das operações militares. Para
reparar essa grande lacuna em termos de conhecimento, ela recomendou a
criação de um vasto programa de pesquisa em ciências sociais, que
implicaria na construção de um banco de dados socioculturais, com o
recrutamento de jovens analistas culturais nos serviços governamentais, e a
fundação de um escritório central de conhecimento cultural.

Para a categoria, nenhum dos esforços de pesquisa defendidos por


Montgomery traz dificuldades. No entanto, quando o conhecimento é
utilizado como arma no campo de batalha, a situação torna-se mais
problemática. É precisamente essa fina linha entre o bom e o mau uso da
antropologia que continua a levantar questões.

1 Segundo um artigo publicado no site da British

https://diplomatique.org.br/antropologia-arma-militar/ Página 3 de 6
Antropologia, arma militar - Le Monde Diplomatique 30/11/20, 11:21

Broadcasting Corporation (BBC), “US army enlists


anthropologists” [Exército norte-
-americano recruta antropólogos], 16 out. 2007,
milhões de dólares foram disponibilizados para o
projeto. Um antropólogo enviado para uma
missão em campo equivaleria a US$ 400 mil por
ano.
2 A empresa foi criada pela British Aerospace e
Marconi Electronic Systems.
3 Muitas informações interessantes podem ser
encontradas no site da organização:
<http://sites.google.com/site/concernedanthropologists>.
4 Entrevista para o programa Democracy now
[Democracia agora], no dia 13 de dezembro de
2007.
5 “The Empire speaks back: US military and
intelligence organization’s perspectives on
engagement with anthropology”.

0 comentários Classificar por Mais antigos

Adicione um comentário...

Plugin de comentários do Facebook

ARTIGOS RELACIONADOS
https://diplomatique.org.br/antropologia-arma-militar/ Página 4 de 6

Você também pode gostar