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Arte, objetos e coleções

Carlos Fernandes

RESENHA (A)

IPANEMA, Rogéria de. Museu do Açude: Pedra litográfica. In: KNAUSS, Paulo et al. História do
Rio de Janeiro em 45 objetos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/ Jauá, 2019, p. 287-293.

Em Museu do Açude: Pedra litográfica, a historiadora da arte Rogéria de Ipanema faz


imergir de seu detalhado estudo as 478 pedras litográficas à primeira vista ocultas nas impressões
de marcas, rótulos e embalagens de diversos produtos comerciais difundidas durante o século XIX;
pedras que estão, atualmente, expostas na Galeria Debret, no Museu do Açude, localizado em meio
à Floresta da Tijuca, no Alto da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro.
O acervo lá presente pertencia a Raymundo Ottoni de Castro Maya (1894-1968), industrial,
colecionador de arte e então proprietário da antiga casa, hoje transformada em museu, que, segundo
nos informa a autora, ampliara seu arsenal de pedras ao adquirir a Estamparia Colombo em 1956, e
que, portanto, elas rememoram “uma época da cidade caracterizada pela difusão de determinado
tipo de imagem impressa” (IPANEMA, 2019, p. 287). Vejamos melhor tanto de que época do Rio
de Janeiro, quanto de que tipo de imagem impressa se referem essas pedras.
De acordo com nossa historiadora da arte, as pedras presentes no acervo mencionado
pertencem à produção gráfica da litografia, técnica inventada em 1796, na Alemanha, com a qual é
possível imprimir num papel uma imagem a partir de um modelo desenhado previamente “sobre
uma pedra calcária que deve ser bem polida […]” (IPANEMA, 2019, p. 288). E, salvo pequenas
expressões particulares desta técnica durante o início do século XIX, no Brasil, apenas em 1825,
escreve Rogéria de Ipanema, “é o governo que instala uma oficina litográfica oficial e, a seguir,
estabelecimentos litográficos começam a suprir a reprodutibilidade da imagem em edições
impressas mecanicamente e iguais a partir de um mesmo original” (IPANEMA, 2019, p. 288).
Com isso, foi possível a produção, primeiro em preto e branco, de diversos produtos –
mencionados pela autora – como álbuns de vistas, costumes e retratos, caricaturas em jornais e
rótulos, e, bem posteriormente, em cores, entre o final do século XIX até o ternário do século XX,
aproximando-se, por exemplo, na década de 1940, da arte fotográfica com a implementação do
fotolito. Neste último ponto, ao diferir ambos os processos, a historiadora da arte nos esclarece o
modo de seu fazer, o qual julgamos importante reproduzi-lo na íntegra devido a riqueza do
detalhamento do mesmo:
Na litografia, o desenho é realizado diretamente na pedra, que já é a matriz das
futuras impressões, com o fotolito, e este lito advém de litografia, a imagem-
referência é subdividida em quatro filmes transparentes reticulados (retículas –
pequenos pontos), correspondentes às quatro tintas da impressão: ciano, magenta,
amarelo e preto. Deles são produzidas quatro matrizes e, pelo método das quatro
impressões sobrepostas, as cores são reunidas novamente, retornando-se à imagem
do original, que pode se multiplicar em cópias às centenas, aos milhares, aos
milhões. (IPANEMA, 2019, p. 288-289)

Além do fotolito, Rogéria de Ipanema tecendo uma ligação com a litografia menciona o
sistema de impressão offset, pois, embora seja um sistema mais atual de impressão, ele ainda se
mantém, por princípio, próximo à “velha litografia”, na “incompatibilidade entre a água e a gordura
das tintas de impressão.” (IPANEMA, 2019, p. 289).
Nesse sentido, nossa autora relembra que a modernização industrial não foi nem social nem
temporalmente homogênea e que, por isso, as novas técnicas de impressão conviveram ao mesmo
tempo com as antigas no Rio de Janeiro até quase o final século XX, como, por exemplo, a
presença, em 1990, conforme afirma Rogéria de Ipanema (2019, p. 289) de casas de clichê:
“Chegado ao Brasil no final do século XIX, o clichê é uma matriz de impressão obtida a partir da
gravação fotomecânica de uma placa de metal. Largamente utilizado para a reprodução de
fotografias, principalmente na imprensa do século passado.”
Nestas histórias fluminenses da imprensa narradas pela historiadora da arte encontramos
também a impressão artística de humor, altamente crítica e desveladora das ideologias sociais e
políticas, cuja vida de maior atividade deu-se “na segunda metade do século XIX e atravessou o
século XX.” (IPANEMA, 2019, p. 289). Rogéria de Ipanema cita algumas revistas e jornais (como
A Vida Fluminense, O Mosquito e a Revista Illustrada) exemplos da sobrevivência das caricaturas
como fortes expressões visuais da cidade do Rio de Janeiro, então a corte do país, “onde se
destacam o traço e a opinião do litógrafo Angelo Agostini”, bem como as litografias a vapor, que
aceleravam a sua reprodução.
Ainda sobre a imprensa artística de humor, a autora observa que um outro caricaturista
importante, que se destacara, posteriormente, fora J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha, 1884-
1950), contribuindo com seus desenhos em revistas como O Malho, O Tico-Tico, Tagarela, O
Cruzeiro, Para Todos e Eu sei tudo. (Cf. IPANEMA, 2019, p. 290).
Retomando de maneira direta as pedras litográficas, preservadas no Museu do Açude,
Rogéria de Ipanema nota que “são latitudes construídas pela reprodução em série da letra e da
imagem” (IPANEMA, 2019, p. 290). Com a corte portuguesa, fugida dos ataques de Napoleão, em
1807, viera ao Brasil, esclarece a historiadora da arte, os membros do Conselho de Estado, além de
três ministros, sendo o ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, o conde da Barca Antonio
de Araujo e Azevedo, responsável pelo equipamento gráfico da imprensa do Estado.
Segundo a autora, ainda, com as prensas tipográficas trazidas de Portugal, teve início, em
1808, o jornalismo brasileiro com o pequeno jornal Gazeta do Rio de Janeiro, proliferando-se a
partir de então, com destaque especial para o Jornal do Commercio, publicado desde 1827. Aliás,
no período em que o Rio de Janeiro era a capital federal, até 1960, “ aletra e a imagem, durante todo
o século XX foram potencializadas com uma vigorosa imprensa […]” (IPANEMA, 2019, p. 292).
Curiosamente, além da litografia marcar sua presença nas embalagens de produtos
comerciais, nas folhas de jornais e nos desenhos de revistas, Rogéria de Ipanema também destaca a
relação, no país, da litografia com a música. De acordo com a historiadora da arte, foram as
partituras impressas com aquela técnica que disseminou “a música pautada no Rio de Janeiro desde
o século XIX” (IPANEMA, 2019, p. 292). Como escreve Rogéria de Ipanema (2019, p. 292): “Hora
de registrar que não foi um fenômeno do acaso, e sim uma vocação, pois a primeira impressão
litográfica inventada pelo escritor teatral Aloys Senefelder foi a de uma marcha musical!”.
Concluindo sua perambulação pelas riquíssimas histórias da litografia no Rio de Janeiro,
além das modernizações técnicas da impressão de letras e imagens, no feliz entrecruzamento com o
desenho e a música, Rogéria de Ipanema considera que, apesar de substituídas pela modernização
digital da imagem, as pedras litográficas “continuam a ser usadas, no entanto, nos processos de
expressão artística.” (IPANEMA, 2019, p. 293). E sua conservação é também a conservação de “um
patrimônio cultural da cidade muito além da sua materialidade imediata” (IPANEMA, 2019, p.
293). Valor cultural, inclusive, que a autora soube tão bem nos mostrar em sua excursão pelas
subterrâneas histórias das pedras litográficas do Museu do Açude.
RESENHA (B)

SIQUEIRA, Vera Beatriz. Coleção privada, juízos públicos: a narrativa do moderno na coleção
Castro Maya. In: MALTA, Marize et al. História da arte em coleções: modos de ver e exibir em
Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: FAPERJ/Riobooks, 2016, p. 125-133.

Na visão da historiadora da arte Vera Beatriz Siqueira, a coleção Castro Maya propõe uma
“narrativa de modernidade” que poderia nos auxiliar “na construção e consolidação da ideia de arte
moderna no Brasil”. Vejamos, a seguir, como a autora desenvolve a sua hipótese de pesquisa.
O ponto de partida de sua reflexão iniciou-se, de acordo com seu relato, em 2011, na
comunicação que apresentara no Comitê Brasileiro de História da Arte, a qual tinha como foco
principal a compreensão das obras modernas europeias presentes na coleção do industrial
Raymundo Ottoni de Castro Maya, principalmente a singular relação de três conceitos: “liberdade
estética, gesto expressivo e naturalismo” centrada na Escola de Paris.
De acordo com Siqueira (2016, p. 126), dentro deste recorte analítico, as aquisições do
colecionador carioca concentram-se em: a) antigos fauves vinculados à tradição clássica; b) obras
de jovens pintores que revalorizam “poéticas líricas e expressivas dos entre-guerras”; c) uma tela de
Matisse anterior, no entanto, ao fauvismo; d) obras cubistas, como as de Braque e Metzinger, menos
cartesianas e mais sensuais (sensíveis) e simbólicas; e) alguns retratos melancólicos ligados ao
expressionismo francês e f) algumas obras avulsas, dentre as quais uma do criador e mestre do
cubismo, o artista Pablo Picasso.
Para além do fato dessas obras terem sido adquiridas por “oportunidades de mercado”, visão
um tanto quanto simplista, argumenta a historiadora da arte, a aquisição da obra de Picasso, no
entanto, revelaria que o colecionador na verdade vez uma escolha meditada. Segundo Siqueira, o
interesse de Castro Maya partiu de uma reprodução parcial da obra em uma revista francesa
(L’Oeil), em 1957, cuja reportagem de Georges Limbour enfatizava características de ingenuidade e
instinto na pintura de Picasso, valores caros, por sua vez, ao colecionador e à visão de modernidade
que o mesmo planteia.
A anedota de que haveria preferido um quadro do pintor “primitivo” Henri Rousseau a um
carro, em Paris, nos anos de 1920, embora a soma de dinheiro para a sua aquisição fosse maior,
reforça a predileção do colecionador por artistas ingênuos, primitivos, populares desde já moço;
predileção, contudo, que confirmava a pretensão europeia de universalidade da arte, na medida em
que se passa a considerar e valorizar obras não acadêmicas, sem técnicas ilusionistas ou
demasiadamente artificiais. (Cf. SIQUEIRA, 2016, p. 127)
No cenário brasileiro, entretanto, sendo ainda ausente o estabelecimento de caracterizações
da arte moderna – quem afirma isso é a própria autora, que, a seu ver, a arte moderna apenas em
1970 será efetivamente incorporada ao mercado de arte no Brasil – Castro Maya serve-se de sua
ampla concepção de modernidade para “conformar a atuação junto aos artistas brasileiros”
(SIQUEIRA, 2016, p. 127).
Neste sentido, Siqueira vale-se de duas pinturas da coleção do industrial, quais sejam, La
plage de Saint Adresse, de 1904, de Raoul Dufy, e Os noivos, de 1927, de Alberto da Veiga
Guignard, num exercício visual de aproximação, a fim de comprovar sua suposição acerca da
concepção de modernidade considera por Castro Maya. Vejamos em detalhe o que nos diz a
historiadora da arte, ao comparar uma obra francesa e outra brasileira, ambas “modernas”.
No caso da pintura de Dufy, Siqueira argumenta que fora feita sob influência do
Impressionismo ainda, de certo modo, próximo do Romantismo, pois retém apenas “a liberdade do
traço, a agilidade das pinceladas, a leveza das cores”, e não as pesquisas óticas que irão caracterizar
forte e vivamente o movimento. A descrição do quadro feita pela autora enfatiza justamente o
aspecto lírico da paisagem e das figuras no quadro de Dufy, bem como a relação deste com os
valores tradicionais da arte.
O quadro de Guignard flerta já no tema com a tradição popular brasileira, como indica
Siqueira, que no caso é o casal de noivos. Para a historiadora da arte, os elementos presentes na
pintura, desde a jaqueta do fuzileiro até a bandeira do Brasil, funcionam dubiamente como
interesses cultural e pictórico. A ingenuidade presente no quadro, escreve a autora, é o que justifica
o infiltramento da “cultura e [d]a natureza brasileiras como motivos poéticos” (SIQUEIRA, 2016, p.
129) para o pintor.
Conclui-se dessa comparação pictórica, segundo Siqueira, que o colecionador Castro Maya
construiu a sua coleção de arte brasileira pautando-se numa concepção estética de modernidade
própria, “fora dos tradicionais limites historiográficos” (SIQUEIRA, 2016, p. 129), apontando para
a arte ingênua, popular e lírica, mesmo quando adquire obras de Portinari, artista conhecidamente
crítico da sociedade, Castro Maya escolhe as obras mais poéticas, líricas e literárias do pintor.
Este direcionamento do colecionador, como observa Siqueira, se repete, por exemplo, na
coleção que Castro Maya faz dos artistas abstracionistas brasileiros. Como escreve a historiadora da
arte: “Tudo isso aponta para o seu interesse em pinturas vinculadas à tendência lírica e expressiva
do abstracionismo internacional e brasileiro.” (SIQUEIRA, 2016, p. 129). Assim como se repete,
essa tendência da visualidade moderna e do lirismo, também, nas escolhas que fizera, enquanto
presidente, tanto da Sociedade Os amigos da gravura, quanto d’Os Cem Bibliófilos do Brasil.
Além disso, a coleção de Castro Maya ainda apresentava um setor mais acadêmico, sem
rompimento com a tradição, como no caso de Eliseu Visconti, Belmiro de Almeida, Baptista da
Costa e Castagneto, mas que, por outro lado, “atualizavam, de acordo com Siqueira, a pintura feita
no Brasil, fazendo-a participar da modernização das convenções pictóricas” (SIQUEIRA, 2016, p.
130).
Vera Beatriz Siqueira, por fim, menciona as obras de diversos artistas populares,
“primitivos” ou “ingênuos” que figuram, embora em menor quantidade, na coleção de Castro Maya.
Podemos citar, como alguns dos exemplos apresentados pela historiadora da arte, a obra de Djanira,
as cerâmicas do Mestre Vitalino, Vastir e Zé Caboclo, da arte folclórica carioca e da cerâmica
indígena (uma urna marajoara e bonecas carajás). (Cf. SIQUEIRA, 2016, p. 130). Assim como
menciona as pedras litográficas, os cartazes da gordura de coco carioca, também presentes na
coleção, e que, a seu ver, fariam parte, com os objetos decorativos, de uma ampla concepção de
modernidade do colecionador Castro Maya.
À guisa de conclusão, Siqueira cita, em primeiro lugar, uma passagem do artigo de Ronaldo
Brito na revista carioca Jóia, por ocasião inauguração da casa moderna Chácara do Céu, também
de Castro Maya, em 1958, no qual o articulista, citando um verso de Baudelaire, elogia a arquitetura
da casa: “Aí, tudo está senão em ordem, luxo e volúpia”. Citação com a qual a autora faz reviver
uma segunda anedota da vida de Castro Maya: a recuperação de um exemplar de “Flores do mal”,
vendido por ocasião de um leilão da biblioteca paterna do colecionador e, no entanto, por este
recuperado. Em segundo lugar, Siqueira religa a passagem de Baudelaire, ou melhor, a sua
codificação de modernidade com a ingenuidade e não com a erudição, com o novo e não com a
tradição. E, em terceiro lugar, a historiadora de arte considera, afinal, que esta ingenuidade, no
entanto, é associada – quer para Baudelaire, quer para Castro Maya – ao juízo crítico e, portanto, à
“uma sofisticada narrativa colecionista” no caso deste último, o que, para a autora, pode “ajudar a
prática colecionista de Castro Maya como um importante discurso histórico sobre a arte produzida
no e a partir do Brasil.” (SIQUEIRA, 2016, p. 132).

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