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ZARGUE

DESCOBRIM
I L H A D DE ^ I A
POEMA R(OLCO
D E D/I C A
*A O
ILLUSTRISSJlviqr, E EXOELLEI SLMO

CONI>Ê{DE VILLa verde


Grão Crux. (Lnurflem de S. Tia^o , Cavallelro dá
Ordem >^tsJTox.ão de Ouro , do Conselho de Esta-
do diK^lNCloé REGENTE JSÍ. S. Mi-^
issisteine ao Despacho do Gabinete de
t; ,
5"^?^' Gentil Homem da Car
mara , Presidente da Real Junta do
Conimercio , e^c. , (íTc. , ©'c.

POR SEU A.UTHOR


FRANCISCO DE PAULA MEDINA
E VA S C O N C E L L O S.
^b^
S B O A. M. D C C C VI, U
NA OF. DE SIM/LO THADDEO FERREIRA.
Com licença da Meza d^ Deseinhargi^ do P^p.
^^iv^ >i\.'>iC^'^,"^,^i\.^i^. M^ Tt" .!^.!^ .yp J^pJmV .m^.JmvmS 'T' !V.!V.

DEDICATÓRIA.

E XcELSo ViLLA Verde


Da Tua Protecção sombras
,

air.enas
a Ti ,
que espalhai

Sobre aquellss ,
que estimas , e agazalhas y

A Ti qu8 prezas das fiéis Camenas


O grato doce Canto alti-canoro ,
E que és dos Vates o Exemplar Mecenas',

Nas Aras do Respeito humilde imploro


Te dignes de acceitar estes meus Cantos ,
Em honra d hum Heróe ^ que tirinr -^ -'-r'»

Sua
VI

Sua Gloria immortal , seus Feitos Santos


Tentei eternizar em culto metro
Sem presumir de mim talentos tantos ;

'E com \'Oz costumada a humilde piectro


O meu Reróe cantei em tuba d'Guio
Sem que a Arte me desse o Delio Sceptro.

Confiou-me benigna o seu thesowro ,

He verdade , Senhor , Natureza


a
Mas não me pòz na frente o Sacro Louro.

Ulil vezes desmaiei na grande Empreza ,

Lançando minhas vistas receosas


Sobre a do Assumpto sem igual Grandeza

E a não ser eu por vozes poderosas


D'outro Heróe tantas vezes animado (*)
Kdo cantara por certo Acções Pasmosas.

Foi

(*) O D. José Manoel da Camará ,


Exeellentlsslmo
(]íte 1802. era Governador^ e Capitão Ge-
no anrto de
neral da lllia da Madeira , minha Pátria , J^éi fjiiem ,
despertando meu Estro adormecido , me animou per mui^
ias vçíÇs a embocar a Tub(t,
,

vil

Foi delle , cm fim , que pela mão guiado


Fntrei na Sacra Selva da Poezia
Onde o Grande Camões foi coroado ;

I
Tanto enredada a achei , tanto sombria ,
Que ,não ser sua Luz brilhante
a , c clara ,
No Laberyntho seu me perderia.

Oh maravilha mais que


!
,
todas , rara !

Oh milagre do Ceo mais


! que Divino !
,

Feliz o Vate , a quem Camões ampara ,

Ao Preceito faltei do Venozino ,


(*)
Tomei sobre meus hombros carga immensa ,
Quando quasi sem forças me imagino ;

Mas a quem fiz , Senhor , eu nisto oífensa ?


Appareça o Juiz , que julgue o crime ,
Pôde ser , que a favor saia a Sentença.

A
punir-me talvez ninguém se anime ,
Vendo a causa porque me dei ao pezo
D'hu(n fardo , que o maior Engenho opprime.

Tal-

(*) Smnioe malal^m vtistrls , eTc. , eTc. , Ce.

Horac. Art. Poet,


, )

Tiií

Talvez , taK^i que então de culpa illczo


Me acclamem pelo mundo , conhecendo
Ser Lei da Gratidão , que adoro , e prezo.

Diz Horácio , que cahe n'hum vicio horrendo


Aquelle , que, sem arte, quer ousado
Fugir ao próprio vicio (*) ( assim o entendo
: :

Mas como eu não fiz mais do que obrigado


Da Santa Gratidão , a quem respeito ,
Cantar Heróico Assumpto não cantado ,

Sc cahido tiver n'algum defeito


Castigo não mereço , porqwie tenho
Somente Natureza , c não Preceito.

He difficil do Assumpto o Desempenho :

Qnando he Grande a Matéria, que se trata.


Pouco vale , sem arte , haver engenho.

)) Mil \'ezes cahe quem


se não precata :
y> Qnem a ,
tudo o
que cuida , solta a penna
» Muitas cousas enfeixa, poucas ata. )) (**)

Mai

(*) In vitítim duclt , ^c. Horac. Art. Poet.

(**) São de bernardes , Carta X,


, ,, , , ,

iX

Mas já basta , Sekhor , mude-sc a Scena ;

Digno he de compaixão , e de piedade


Aqucllc , que a si próprio se condemna.

Benigno me
perdoa a liberdade
Que tomo o meu Poema
de ofFertar-te
Despido de belleza , e magescade.

Se o acceitas , farás com que eu ^não tema


Que corra pelo mundo afFoitamente ,
Antes nisso terei vaidade extrema.

Teu Grande Nome estampa-Ihe na frent» ;

Só assim posso ter inda a ventura


De ser ditoso , e de viver contente :

)) E se Tua Clara Luz


» Dos bons Engenhos vai alevantando ,
)) E do Pindo lhes mostra a mór altura

)) Me for por esta Selva lu miando


» Onde Amor me metteo alta , e sombria
» Por onde vou a medo caminhando

)) Iiv
, ,

» Inda espero ,
que vejas algum dia
» Com novo louvor teu mais doce Canto
)) Porque tendo tão certa , e fiel Guia
» Não ke muito de mim prometter tanto. (*)

Beija as Mãos de V. Excellenci^

O seu mais humilde súbdito.

Fnmciscâ âe Paula Medina, c VaSconceUos.

(*j Bernardes Carta 11,


,

PROLOGO.
E Mprehender hum Poema Épico no Sé-
culo XIX. em que as Luzes e os Exem-
, ,

plos são tão capazes de intimidar , como


de esclarecer , fóra sempre huma grande
animozidade , ainda quando este se não or-
denasse 5 e compozesse no curto espaço de
quatro mezes. Deve-se porém este Milagre
a Gratidão , e á Justiça. Animado ^ e sug-
gerido pelo Espirito Enérgico , e Fatrioi i-
co do Éx.mo D. José Manoel da Camará
em í8o2. Governador 5 e Capitão General
da Ilha da Madeira , minha Pátria , entrei
nesta Grande Empieza mais , para lhe dar
satisfação , e prazer , do que por fiar de
minhas forças tão difficil desempenho. Nes-
tas circumstancias o consultei como Quin-
tilio , e logo que a Paz desceo sobre a h u-
ropa me lancei nos braços das Musas que ,

me bafejavão mais com os favores


até alli
da Natureza do que com os dispêndios
,

da Arte; centrando então nos Bosques da


Ilha procurei nos desvios do povoado pro-
,

fundar o meu Assumpto soirando as azas


,

á minha Imaginação. Conheço que me atre-


vi a muito 5 e também conheço que falto
ao
XII PROLOGO.
ao judicioso Preceito do Divino Horácio
que muiro abertamente nos diz : Carmati
reprehencàte , quod ncn multa dies , d^
multa litura coercuit , atque prefectum
ilecies non castigavit ad unguem : e em
outra parte : nonumque prematur in an»
fium , é^c, porém revele o Púplico Res-
peitável o Vôo da Ousadia , pela esperan-
ça 5 que me fica de que nas suas reflecçóes.
acharei depois mais fundamento , para cor-
rigir o meu Poema , e talvez melhorallo ,
illustrando-o também com algumas Notas ,
que melhor disponhão a sua Inteligência ,
se merecer reimprimir-se. Os versos que
se encontrão cedilhado.s são pela maior par-
te do Imrnortal Camões, do Regular Ga-
briel Pereira de Ca^rro , do nosso Pindara
Portuguez Elpino iSloriacriense , e do Insi-.
gne Bocage.
M senhor Manoel Maria de Barbosa du Bocage,

SONETO.
Ti , Vate sem par , cujo Estro inflamma
Do Numen Patareo o Sol fulgente ,
A ti , Grande Bocage , cuja Frente
De Sacros Louros Deifica se enrama ,

Cumpre o levar o meu Poema á chamma


Da tua Sábia Critica Prudente
Ninguém mais do que tu independente
Lhe pôde grangear perpétua fama.

Segue tu pois da Sã Justiça o trilho ;


Castiga os Cantas meus dá-lhes belleza
; ;

A' tua Correcção he que os humilho :

Sejamos Immortaes na Redondeza ;


Tu dando ao meu Poema eterno brilho ,
E «u só porque tentei tão Grande Empreza,

Medina,
, , , ; , ,

Resposta no Soneto antecedenUt

SONETO.
D E "Z^x^o o Heróico ardor , que luz na Fama
Cantas em metro altisono , e fervente :
Náutica Lusa Gloria em seu Oriente
Por ti , qual no Zenith , esparge a flamma.

Do mísero Machim , da triste Dama


Choras o infausto amor tão docemente
Que o Tronco o sabe , que o Rochedo o sente
Que a Terra geme . c que fará quem ama !
. .

A ,ane de Homero a par no Elysio avulta


Sombra do Grão Camões Alta, e Divina,
Crê que falia em teus sons : attende , exulta

A face parati , sorrindo , inclina

E ao teu Canto Vivaz , que o Tempo insulta


Gráo , não longe do seu , já lá destina.

Bocage,
í*ag. 1

4S8S8558854 4SSS^^ 4^
:, ,

» ZARGUEIDA.
II.

~ ?elâ$ mimosas mãos da Sin2:e!czt


CingLdi a testa de ApoUinea Rtma ,
Bem qual outro Camões entro na Empreza
, ,

De cm metro eternizar Primeiro Gama :

Se 1 Arte for propicia á Natureza


Darei hum novoCanto á voz da Fama;
Do Teu Descobridor para memoria.
Farei resuscitar o Nome, e a Glocia.

III.

Em quanto geme preza a brutal Guerra,


O* tu ^'ingeia Cândida Verdade
,

Vem lá dos Altos Ceos á baixa Terra


Rcvestir-me da tua Divindade :

A fraqueza , o temor de mim desterra ;


Dá-me do Gráo Camões a magestadc ;
Se me tiras do languido lethargo
Serei Novo Cimôes , meu Gama o Zargo.

IV.

Não te intimide o ver seu Grande Nome


Já de Séculos curvado ao pezo j
rres
O Tempo tragador náo o consome ,
Ainda de seus golpes vive illeso
E pois que o Génio meu manda , que tome
A. Tuba de oiro , em Delia Chamma acccso
Só de ti , Sacra D
va , necessito *,

Dá nova força a meu sublime grito.

V.
! ,! ;

CANTO I: ^
V.
Aiuda-me a dizer como t Madeira
Se descobrio aos olhos dos Mundanos %
Para icr dentre as Ilhas a Primeira,
Que desse maior gloria aos Lusitanos:
Sim recira-me a historia verdídeira
,

Dos valorosos Feitos mais que humanos


D'A<]uelle ínclito Heroe d'Aita Grandeza
No valor , nas acções , na fortaleza.

VI.

Ah ! que eu já sinto , sim , ah ! que eu já sinto


A tua Divinal Doce Influencia
Idéâs mil em vasto labyrimho
Nova fórmi me dão e nova essência ,

Que tanto baste , ó Deosa naD consinto ,


j
Desce Olympica Eminência,
lá dessa
E , porque o Canto meu aos Astros subi ;

Ajuda-me a embocar sonoro a tuba.


VII.

Rasgando nuvens de fulgente prjta


A Sâcrosanta Diva me appaiece . . ! .

Seu Divino Esplendor eis me arrebata


h/ÍQ transporta , me anima , e fortalece ! . •

Já sobre mim solicita desata


Raios de Luz, quea mente me esclarece!..;
Salve Numen Fiel com furor santo
, ;

Ao 5om da Tuba o Grande Zargo Canto.

A ii VIII.
: , ,, ,

^ Z A R GU E I D A.

VIII.

E Vós
Excelso Principe Regente
,

Que Empunhais Soberano o Luso Sceprrô ^


Ouvi 5 Ouvi meu Canto ahi-cadsínte
Em grandíloquo estilo , em culio metro :
Se até Vós náo chegarão felizmente
Os sons canoros de meu brando plectro )
Cheguem da Tuba os sons ; talvez que eu seja
Algum dia por Vós digno de inveja,
IX.

Reinava em Portugal João Primeiro


Aquelle Grande Heroe d*;^I a Memoria ,
Aquelle Pai da Pátria Justiceiro ,
De quem íalla submissa a Lusa Historia:
Ainda deste Impávido Guerreiro,
A Quem propicia foi sempre t Victoria,
Longe de Ceuta aonde se escondia
Zalá-Bençalá pávido tremi*.

X.

O Infante Henrique , Santo Heroe Famoso


De Quem inda se adoráo as Proezas ,
Constante , Sábio , Justo , e Valoroso
Meditava grandíssimas Emprezas
De amontoar Conquistas Cobiçoso,
Indo apôs de arriscadas incenezas
Por vias peios Lusos nunca abertas ,
Tentava náo tentadas Descobertas,

XI,
, ;, , ; ,,

C A N T o I. $

ia.

Quando no Ethereo Assento,


Júpiter lá
Os Dcoscs em Concilio congregando ,
Faz de todos Sagrado Aiuntamento
A todos seus lugares destinando:
Nos voiumes do Sacro Pensamento
O Fulminante Numen folheando
Tendo entáo posto em
boa ordem tudo ,
Ficou por longo espaço Quedo , e Mudo»
XII.

Estava alli sentado o Deos Tonante


Sobre hum Throno de Estrellas Refulgente-;
Tinha na Dextra a Lança Penetrante
E na Sinistra o Raio Sempre Ardente:
Coroa de puríssimo diamante
Lhe circulava Augusta a Sacra Frente
E huma Faxa da cor do mar salgado
Lhe pendia do esquerdo ao dextro Lado.
xin.
Mais brilhante, que nunca a todo o Mundo
O Esteliifero Olympo se mostrava
Quanto pode haver de m^is jucundo
alii

Naquelle fausto dia alli se achava :

Tudo em silencio esteve o mais profundo


Entretanto que Júpiter pensava;
Was depois treme o Polo Crisrallino
Da Altisonanre Voz ao som Divino.

XIV.
,

6 Z A R G U E I D A.

XIV.
Deoses do Olympo Deoses Soberanos y
,

5em Nosso Fa^rocinio , ceru mente


Náo poderáó os mi-eros huminos
Tentar altas Fmprezas felizmente :

Emrando do Futuro nos Arcanos ,


Vejo estar descinado a Lusa Gente
O demandar nos séculos futuro í

Do Reino de Memnon os climas dufosr


XV.
Por immutaveis Leis de Justos Fados
Valorosos Heroes de Naçáo Lusa
Esiáo , ha lenhos tempos , destinados
A Emprezis , que audaz animo rècu t :
5, Por mares nunca dantes navegados „
Em curvas quilhas , de que o vento abusa ^
Vencendo prigos com audácia estranha ,
As Terras tociraõ, que o Ganges banha.
XVL
Fsta Illustre Nação , que se tem feito
Grande no Nome , Celebre na Fama ,
Verá da '^urora o Criscallino Leito,
Que abrilhanta do Sol nascente a chamma :

A primos mil, a guerras mil sujeito


Para esta tmpreza se destina hum Gama
Hum Heroe , que nos séculos vindouros
No Ganges colherá palmas , e louros.

XYIL
, , ,

C A N T o I. 1

XVII.
Deixando as margens do Cerúleo Tejo
Em cavos Lenhos , que amedrentem mares
Iráó com elle apôs do seu Desejo
Pacheco Iliusird , Almeidas Singulares :
Hiráõ com elíe , e com prazer sobejo
Da Hydaspea Região buscando os Lares
Heroes , em quem poder não tenha a Morte,
,, Albuquerque Terrível , Castro Forre. „

XVIII.

Mas para que esta Fmpreza assas temivel


Pareça acs Lusos menos arriscada,
E forque lhes náo seja táo sensível
Nave^íaçáo táo árdua, e dilâttda;
IJka Grande appareça , que aprazível
Por Nobres Pcrtuguezes habitada
Em serena bahia , em potto amigo
Lhes possa dar refresco , e doce abrigo.

XIX.
Em grossos nevoeiros escondida
Dentre Atlânticas ondas se levanta
Fértil Ilha , que d'arvores vcsrida
Inda ha pouco pizára humana planta :

Sua frondosa coma ao ar erguida


Dos Planetas a Luz nunca abrilhanta;
He táo densa , e pezada a névoa crassa ;
Que hum só raio do Sol nuncâ a traspassa.

XX.
, ,: ,

f Z A R G U E I D A.

XX.
Assim lá desde a creação do Mundo
Aoi' olhos dos Morcaes occulca existe.
Bem como nas entranhas do Profundo,
Po.s que enrre nuvens hórridas pe-sisce ;
Ainda qu; hum successo sem stgundo
Ja nella aconteceo tri gico , e triste,
Com tudo inda as Nações não gabem dellt ,
A pezir de ser grande , amena , e bella,

XXI.

Quero pois que pcrença ao Luso Sceptr^j


Táo Genil Ilha das Naçóes não vista ;

Dâ negra Escuridão no seio terro


Ah ! não consentirei qu3 mais persista
Luso Heroe , que inda hum dia em culto metro
Decantado será quero que , invista
Ao Negrume ,
Avernal
denrro encerra
q'ie
A den.re as Ilhas roais fecunda Terra.

XXII.

O Z«rgo o Capitão Pr,eclaro


Tlíu-tre ,

Que em quilha undame as ondas se^ho^ea,


E que intrépido apôs do Mouro ignaro
Fixando a mira nelle o mar voltea ^
Aquelle Invicto Heroe de esforço raro
Que Henrique Liberal tanto aprecea
Será Quem cedo por maior grandeza
De a descobrir ao Mundo tente a cmprezao

XXIII.
,

C A N T o I. r
XXIII.

Nellâ então lá nos Séculos fnmros


Acharão as Nações mti^i hospedagem :•

Seus ares saluuteros , e paros


Bafeiaaos seráo de doce í^.ragem ?

D'alii , d^aili seus Lenhos mais seguros ,


Wajs contentes , rcnJendo-lhe homenagem ^
Soltando as velas concavas ao vento
Iraó prenhes sulcando o salso argento.

XXiV.
Fallou Júpiter Alto desta scne
E os Decses , co* as cabeç?.s acenando 9
De immenso gosto em súbito transporte
Parecem o seu voto ir approvando :

Dentre dos Numes Div.nal Cohorte 9


a
O Thyrsigero Deos , a fronte alçando >
Coroada de pampsnos virentes ,

Estas vozes sokou dulci-cadentes*

XXV.
He que appareça essa Grande Ilha
justo
Esse ameno lo:rao, inculío e novo. ,

Para que como Rara Maravilha


Pertença ao í.u'o Sce^tro, ao Luso Povo:
Que esse , que o vásto mar ousado trilha ,
Seja o Descobridor , também ?pprovo ,
Porque Hum láo Grande Herce. ráo bom Guerreiro
Deve só nesta Acçáo ser o Primeiro.

XXVI.
, , , , ,::

Id ZARGUEIDA.
XXVI.
Porém se acaso , ó Júpiter , mereço
Que me concedas ineiíàvel grâça
Submisso desde já te rogo, e peço
Grande Mercê ,
que eçpero se me faça :

Eu farei , ^ue Esse Heroe de ramo preço ,


Sem que tema os assalros da Desgraça
Veja da Fértil Ilha a face be!la ,

Com tanto que me dès domínio nella.

XXVII.
Eu ser a Sacra Divindade ,
quero
Que Ilha proteia , e favc rcça ;
tal
Consenre , que a Thyrsigera ('cidade
Dos Lusos em soccorri» á Terra desça
E se a Tua Divina Magestade
Quer que e^sa Terra aos Lu.03 appareça 9
Pcrmitte-me , que eu p )s?a alli contente
Hospedar Carinhoso a Forte Gente.
XXVIII.
De Sublime Gr?^ça em recompensa
tão
Farei , que a Terra alli fértil produza
De saborosos vinhos cópia immensâ
Que :maÍ3 int'resse dem á Nação Lusa
Farei , que dissipada a névoa densa ,
Em que sempre tcqui jazeo confusa
A todas as Nações mostre viçosa
A verdejante frente pampinosi.

XXIX.
:

C A N To I. ft

XXIX.
Farei, que humi Nação forte, e Guerreira,
Cujo Poder ha de ass^jmbrar os mares,
Mostrando-se-lhe Amiga Verdadeira
Va sempre visitar seus ricos Lares
Farei , que e sa Naçáo seja a Primeira ,
Que , levando seus vinhos singulares ,
Vá levando também , ondas abrindo ,
( Se he possível ) seu Nome além do Indo. .

XXX.
Farei ,
que as Nações todas Europets
Amantes de seus vinhos , e seus frutos ,
Cheas de admiração , de prazer chcas
Lh« costumem render fieis tributos :
Se forem demandar Terras alheas
Paizes mais cruéis , Pcvos mais brutos ,
Farei que csres submissos, e contentes
,

Adorem Producçôes tão Excclientes.

XXXI.
Que appareça , farei , na Sicra Meza
Dos Deoses, em que tu, Jove, presides,
O mais íino Licor , que a Natureza
Extrahir pôde de pampineas vides:
Tu vendo com prazer sua^ pureza , t
,

Pôde ser , que a libalio te convides ;


F. que fazendo aos Numes companhia

Desprezes a bilsimica Ambrósia*

XXXII,
: ::

i« Z A R G U E I D A.

XXXII.
Se está Graçi , que peço , me pe''mittes ,
Farei quanto te digo , e te promecto ;
Contra mim. Caro Pai, ah! náo te irrites;
Em nada desmereço o teu affecto
Para que mais os Lusos feiici es
Qual Numen Soberano em tudo Recto ,
Que di^r-lhes fama , e gloria em fim pcitendc ,
As minhas Justas Supplicas attendc.
XXXIII.
Disse o Numen Leneo; e d'improvise
Perante o Grande Jupicer prostrado
Inclina o rosto rubicundo , e lizo
Sobre os degráos do Throno abrilhantado
Jupi-er olha com subtil sorriso ,
E Cheio entá) de Paternal Agrado
Solrando a Voz Suave , c Lisongeira
A Baccho respondeo desta matieira,

XXXIV.
Ergue-te , ó Filho meu ;
quanto desejas
Náo nego , antes tudo te concedo j
te
Justo he , que favoreças, que pro eias
Naçáo , que ranto prezo Amante , e Ledo
Seu Numen Tutelar , quero , que sejas i
Os meus Pcdsrcs Divinaes te cedo j
Vai pois fazer a próspera ventura
De quem for habitar Ilha tão para*

XXXV.
; , , , :

C A N T o r. i|

XXXV.
Fallou assim
; e os Deoses , approvando
Tudo , o
(juan alli Jupi:er di-sera
Ficarão longo tempo murmurando ,
Bem como quando hum pouco o mar se altera
Ourio-se entáo susurro doce , e br?ndo
Semelhante ao dos Bosques de Cithera
Quando Zephyro alli com Cioris falia,
E a ramagem das Arvores embala.

XXXVI.
Pari beijar a Dextra ao Pai Tonante
Pela Graça de novo conced da
De Nisa o Numen com gentil semblante
Ergue a fronte de pâmpanos cingida:
Sobe os degráos do Throno Coruscante,
E com mostra d huma Alma agradecida.
Sem á maior ventura ter inveja,
Curvando-se ante Jove a Máo lhe beja.
XXXVII.
Descendo então do Throno Asrri-formado
Briihaváo-lhe nos olhos , e no rosto
Satisfação, prazer, meiguice, agrado,
E a viva cor do rubicundo mosto :

Sobre os Lábios d'hum puro nacarado


Ferviáo Risos , respirando gosto
E meneando o Thyrso brandamente
Três vezes para Jove inclina a frente.

XXXVIII.
, , : ,

14 ZARGUEIDA.
XXXVIIT.
Eis delle em
rorno os Deoses se juntarão
A dar-lhe os parabéns desta ventura ;
Wumameme alli todos se abraçará j ^
Com mostras de amizade , e de ternura
Mas logo que estas honras se acabarão ,
Dos Deoses Cada qual então procuri
Fazendo a ]ove humilde acatamento ,
Recolher- se i seu fulgido Apozento.
XXXIX.
Depois disto 5 Confuso , passeando
Pelo Lácteo Caminho , Solitário
Parava Baccho alli de quando em quando.
Como quem em acto imaginário
fica :

Com madureza hum pouco entáo pensando


Eis vio , que lhe seria a^sás contrario
O Destino dos Fados Soberanos ,
Favorável aos Povos Lusitanos.
XL.

Que perderia aquella immortal fama ,


Que entre os Indicos Povos alcançara ,
Se hum dia lá chegasse o forre Gama ^
De quem Júpiter Alto lhe fallàra,
Nisto vindo-lhe á mente míida trama,
Part a empreza seu animo prepara
Em segredo dizendo s6 comsigo:
O Gama tem em mim hum Inimigo.

XLL
:

C A N T o I. 15

XII.
Da Grande Ilha , que vou com meigo afago
cm
Por meu gosto hospedar os Portuguezes ,
Farei que o Gama sintí duro estrago
Do Mar exposto aos hcrridrs revezes:
Farei , que eile vá ver o Estygio Lago ,
Porque tenho jurado tantas vezrs
De ser contrario áquelle , que imprudente
Tentar bater ás L^ortas do Oriente.
XLIL
O Macedónio Rei Gloria de Marte ,
,

Invicto Filho de Filippe Invicco


]á fez troar do Mundo em muita parte
Da Sua Augusta voz o horrendo grito
Subjugou por valor , por força , e irte
Do Império de Memnon Povo infinito ;
Tentando como Impávido Guerreiro ,
Submetter a seu jugo o Mundo inteiro.
XLIII.

Elle foi quem alli ao Povo adusto


Da Clara Região, que he do Sol Berço,
Fez vêr segunda vez a face ao susto
A' custa do seu sangue entáo disperso :

Pertendeo , pertendeo meu Nome augusto


Do Esquecimento pôr no pó submerso ,
Mas náo pode ( a pezar de viva guerra )
Roubar-me a gloria , o Nome , a fama ^ a Terra;

XLIV.
}

f« Z A R G U E I D A.

XLIV.
E hei de agora sofFrer , que do Occidente
Vão as fortes façanhas Porcuguezas
Da memoria brutal da inculca gente
Riscar as minhas ínclitas Proezas ?
Ah náo consentirei , que no Oriente
!

De Lusos Pinhos no mais alto prezas


Tremolem as Bandeiras , cujas Quinas
Ameaçáo terríficas ruinas.

XLV.
Em q'3ânto isto no Olympo acontecia ,
O forte Zargo Illusrre Lusitano
Em forre Lenho bellico fendia
As cristallinas ondas do Oceano:
Do Algarve o mar inirepido co'ria
Era cata do Hespanhol e do Africano , ,

Nações com que o se i Rei João Primeiro


,

Combatia com animo guerreiro.


XLVI.
Era Zargo de Célebre Ascendência
Heroe , Neto de Heroes , c de Heroe Filho ,
De quem fazia estima , e connde-^cia
O Infante, que do Pai seguia o trilho:
Sua Honra , Valor , Zelo , e Prudência
Lhe deráo a's Acções tão claro brilho.
Que a pezar de ser j^ Grande em Nobreza ^
Por ellas veio a sei Nobre em Grandeza,

XLV.
: ! ,

'

C A N T o I. 17

XLVII.

I DeDetamanho
Tângere no Cerco foi Soldado
poder forças tamanhas
, ,

Que mil vezes do Infante ao Dextro Lado


Fez inauditas célebres façanhas
De invicta espada , e de valor armado
De quantos Mouros vjo as vis entranhas ^
Proezas , porque Henrique Justiceiro
O Titulo lhe deo de Cavalleiro

XLVIII.

Fezoutras immortaes Heroicidades


Bem Dignas todas de immcrtal memoria ^
Conhecidas purissimas verdades ,
De que falia sem pejo a Lusa Hisroriã :
Em quanto houverem neste mundo idades
Deve ser immonal Gloria ,
a sua
Porque Este Heroe , que canto em metro culto 5
Inda morto merece o humano culto.
XLIX.
Cortava as ondas do Oceano hum dia
O Sublime Varão , Zargo Famoso ,
Que por ordem d^Henrique perseguia
Sobre os mares o Mouro caviiloso;
Eis apparece hum Lenho , que fendia
Crespas vagas do Pego Salitroso ,
E o Lnso Capitão com torça rara
Para o fatal Combate se prepara.

t.
, : , , ; :

j5 zargueida.
L.

De Zârgo t voz,
que d'impoviso sôt
Dos Lusos cada qual manda a seu posto
Qualquer delles alli não corre, voa,
Tâo grande he seu valor , tal he seu gosto
Para o Lenho , que avista , inclina a proa
O Heroe , que tudo tem Sábio disposto y
E d^igneo ferro concavo-redondo
Manda logo soltar sulfúreo estrondo,
LI.

Incendiada a massa sulfiirlna ,

Troa o rouco trovão de Mstiq horrendo,


E a bala , que se avança repentina
Os ares sibilantes vai fendendo
Ameaçando horrífica ruina
O férreo globo horrisono gemendo ,
Diz ao Lenho inimigo , qus ligeira
Solte aos ares a trémula Bandeira.

LII.

Constrangida dt voz da férrea bala


Sobe aos ares Bandeira Castelhana
E o Destemido Zargo , vendo içalla
Wanda içir a Bandeira Lusitana :

Eis de Marte o trovão de novo estala,


Annunciando guerra á Gente Hispana ;
Mas como ella a Bandeira frouxa ariia,
Cala-se a Forte Lusa Artilhcria,

LIII.
), :

C A N To I. 1|

LIII.

Rendido o curvo Pinho á Gente Lusft >


Valentes Ponuguezes destemidos ^
Cujo valor audácias náo recusa
Váo âbord r os miseros vencidos:
Dentre elles todos nem hum só se escust
De abordar pusillanimes rendidos ;
]á cheios de prázer pclt vicroria
Arrojáo-se aos bateis ébrios de gloria,

LIV.
Abordada sem susto a fraca preza ,
No número dos timidos captivos
Hum Piloto de célebre agudeza
Se achava alli por célebres motivos
Parece que lhe dera a Natureza
,

Idéas claras , pensamentos vivos ,


Para a Gloria augmenrar de Zargo Illustre
A Seu Nome Immorral dando mais Lustre.
LV.
De João de Morale^ (este o Nome
Do famoso Piloto prisione-ro
Ordena o Cauto Zargo , que se tome
Conhecimento firme , e verdadeiro :

O Tempo tudo gasta , raia , e come ^

(Disse Zargo Magnânimo Guerreiro )


Mas náo pode gastar o ódio ufano,
Que eu tenho contra o Bravo Castelhano»

t ii tVL
: ,, , ,

.MO % A R G U E í D A.

LVI.
Oavindo expressões do Grande Ztrgo
âs
Morales se intimida , e se entristece ;
E o rosto seu banhando em pranto amargo >
A' Dor sanhiida succumbir parece :
D'improviso em Lethifero Lethargo
O mísero Morales desfalece,
E de raiva em tyrannico transporte
Mil vezes tenta vêr a face á Morte.
LVII.

]á de Cynthia Formosa as Luzes bellas


Sobre o phno dos mares se esparziâo
E do alto Olympo as nitidap Estiellas
No brilhante das ondas reluziio ;

O Triste
,
pondo entáo seus olhos nellas ^
Julgando alii , que do seu mal se riáo
Contra o Ceo , contra os Astros , contra os mares 9
Estas vozeí soltou do peito aos ares

Lvni.
O' Ceo , Tyrânno Ceo , que* mal te ha feito
Hum vivente infeliz , que em nada oíFende
O Venerando Divinal Preceito ,
Que a Doce Jugo nos sujeita , e rende ?
Se eu hei de viver sempre deste geito
Se o meu Cruel Destino isto pertende,
Rouba-me antes a vida \ que eu não prezo
A desgraças viver atado , e prezo*

LIX.
: , , :, ,

C A N T o I. li

LIX.
Malignos Astros , Asrros Despiedados ,

Que entornais sobre mim influxos irisces

Se tínheis de. comigo ser malvados


Morresse eu , logo <que nascer me vistes
E vós , 6 Cruéis Mares , empolados
Dizei , porque razão náo me enguliçtes
A vez primeira , em que inrenrei buscar-vos
A vez primeira , em que intentei sulcir-vos í
LX.
Maldito seja aquelle , que primeiro
Vossas ondas sulcou em frágil Lenho
Apôs do vil Interesse aventureiro ,

Sem temer o seu misero despenho :

Se em cavo pinho undivago veleiro


Se náo o mar , por certo tenho ,
sulcasse
Que, á Cubica Ave^nal tomando as redias »
Evitara a Razão tantas Tragedias.

LXI.
Calou-se então o misero Rendido ,

E passado da mágoa , que o ferira ,


Mal supporrando a dor, desfalecido
Ao breado convéz o corpo atira
Alli por longo espaço sem sentido
Convulsivo , e frenético delira ;

Mas depois de algum tempo . a si tornindo >


S6 suspiros ao peito hia airancando.

LXir.
: ) ),:

^z ZARGUEIDA.
LXII.
Náo falti alli quem dentre os Portuguezes
O Confuso Morales ínimasse ,

Supplicando-lKe em por muiras vezes


fim ,
Q.ue náo se desse á Dôr , que socegasse
A fortuna , que tens , ah náo desprezes
!

( Disse hum delíes beiiando-ihe na face


O Illustre Capiráo , de que es captivo ,
He Nobre , Virtuoso , e Compassivo.
LXIir.

Amante do seu Rei, fiel Vassallo


Aborrece as Nações ,
que caviilosas
Fazem o seu prazer , o seu regalo
Em tecer-lhe traições industriosas
Mas Luso Heroe ( sem dolo fallo
este
Sabe prezar as Almas Virtuosas ,
Ou sejáo ellas de Nações Amigas ,
Ou sejáo ellas de Ntçóes Imigas.
LXIV.
Huma vez que elle encontre em tí Virtudes,
Tens nciie hum Protector ,
porq-.ie odiados
São somente por elle os vicios rudes
De Corações
infarass Peitos damnidos í
,

D'hoje em diante cumprirá , que eitudes


Os meios de alcançar os seus agrados ,
Sabe pois , que es e Heroe ficou ha po ico ^
Por saber quira tu és , de prazer Llucj.

LXV.
, , ,: , , :

C A N T o I. j|^

LXV.
Soccga em Fm , teu animo socegâ
( Permitte cjue esta súpplica te faça)
Huma grande Ventura , quando chega ,
Vem quasi sempre apôs dhuma Desgraça
Ao Cândido Prazer tua aima entrega,
Náo temis de máo Fado ímpia ameaça,
Porque 1 par deste Capitão Famoso
Hás de inda ser de todo Venturoso,
LXVI.
Desta sorte a Morales animava
Baccho , que então tomando a forma laumant
Dhum dos Lusos , que alli se náo achava.
Favorecia a Gente Lusitana :
Ao Forre Capicão , que descançava
Procura o Nizeo Deos ; na mente ufana
Em agradável Sonho lhe figura
Grande Ilha descobiir fértil , e pura.

LXVII.
Tendo tudo assim feito o Deos de Nizt
Stm dar-se a conhecer ao Lusitano ,
Subitamente então se diviniza
Tomando o antigo gesto Soberano
Neptuno na fulgente Concha liza
Recebe Carinhoso o Deos Thebano
E apenas he na concha recebido
Tritão emboca o búzio retorcido.

Lxin.
: , ,

^ ZARGUEIDA.
LXVIII.
A's vozes do maritimo Instrumento
Acodem as Nereidas em cardume :

Lácteos peitos , abrindo o salso argento ,


Aicáo da Lascivia o vivo lume
De escamosos Delfins de centos cento
Em honra de Lieo , e do seu Nume ,
As prateadas caudas entrelaça ,
E cheio de prazer a concha abraça.

LXIX.
Marinhos Monstros de estatura informe
Ligados á Carroça Neptunina
Com viva rapidez, força disforme
Nadaváo pela liquida Campina :

Toda a Corte do Mar , que então já dorme


A's vozes da Tri tónica Buzina
Desperta , e do seu Rei no seguimento
Vâi polio no seu húmido Aposento,
LXX.
Tçndo na esquerda o lúcido Tridente,
E dando a Dex:ra ao Numen Pampinoso
Por escadas de pérfido luzente
Sobe com toda a Corte o Nume Undoso;
Em magnifica Sala refulgente
D'hum Soberbo í^alacio Magestoso
Entrando , de prazer o Deos de Niza ,

Parece , que alii mais se diviniza.

LXXL
: ; , :

C A N T o I. 2$

LXXI.
Eríi o Rico Palácio construido
De Crystâl transparente , e jaspeado ;

Dhum auri-verde mármore pulido


Era o seu pavimento fabricado :

O Tecto todo em roda guarnecido


Estava d' lum lindíssimo brocado ,
DonJe pendiáo com lustroso mimo
Festoes de flores de cerúleo limo.
LXXII.

Com migestoso esplendido app^raro


A Regia Sala Augusta se oííerece :
Bâccho de admiração quasi insensato ,
Ficando immovel , té de si se esquece
IViâis precioso , mais brilhante ornato
No Olympo raras vezes apparece
Tudo respira alli pompa , e belleza ,

Tudo respira alli mimo , e riqueza.

LXXIII.

grandeza immensâ
Nitido Lustre de ,
Qae do alro tecto fulgido pendia ,
Cuja graça mimosa se náo pensa ,
A vastíssima Sala esclarecia
Estava a grande IV^áquina suspensa
Por três csdeas de ouro e parecia ;

Pelo seu brilho, e chamma incendiada.


Ser ceda de carbúnculos íoimada.

LXXIV.
: : ;; : ;, ,

»^ Z A R G U E I D A.

LXXIV.
Sobre degrao? de mármore brilhante
O Throno de Neptuno estava posto ;
„ Doutra pedra mais clara que o diamante ,,
Todo elle parecia ser composto
Tudo era alli gentil , tudo ele^^ante
Em tudo se encontrava mimo , e go^to j

He que eire Rei com gloria summa


alli

Aos seus VassiUos legislar costuma,


LXXV.
Apenas BaccHo vio a Regia Sala,
De assombro fica sem saber que faça
E Neptuno depois de bem mostralla
,

Com el!e a outra súbito se passa


A segunda á primeira não iguala
Na grandeza , e valor ; mas lem mais graça ;
Pois , quanto pode haver de ameno , e grato
Alli se encontra com mimoso ornato.

LXXVI.
Virentes ramos de auri-verdes plantas
Os lados todo? desta Saia orna vio
As recendentes flores eráo tantas ,

Que aromáticas tudo embalsamavao


Das Filhis de Nereo ( náo direi quantas
)
Entretidas alli muitas cstaváo
Em tecer de fragrantes flores bel las
Lindos festoes, lindíssimas capellas.

Lxxvn.
: :

C A N T o I. «T

LXXVII.
Quatro brilhantes Urnas reluzentes ,
(^e de ricos festoes de flores se ornáo ,

Sobre altos pedastaes auri-fulgentes


Da fresca Sala os angules adcrnáo
De puras aguas límpidas correntes
Em grandes Madrepérolas entornáo ,
Que com doce murmúrio grato , e brando
Os ouvidos cstáo lisonjeando.
LXXVIII.
^
Seguio-se então Banquete sumptuoso
De muita , sem igual , delicadeza :
Tudo o mais exquisito , e saboroso
A Baccho appareceo na Liuta Meza :
Wanjar junto a manjar delicioso ,

Gratos frutos no gosto e na belleza


,
,
De mistura co' a rub da ambrozía
Formaváo delicada symmetria.
LXXIX.
Três Ninfas de prestante formosura
A' meza aos Deoses com prazer serviáo;
Seus cabellos em conchas de mistura
Sobre o? collos de jaspe lhes cahiáo
Os lacíeos globos seus de neve pura
A cada instante mágicos ircmiso ,
E acordando dos Deoses oá Desejos,
Famintos lhes pediáo doces bejos.

LXXX.
,, ,,

23 ZARGUEIDA.
LXXX.
Entretanto que os Numes vão ceando
,
Algumas das Nereidas Carinhosas
Em honra de Lieo estão caniando
endeixâs sonorosas :
IVíelIifluas
Humas suaves citharas tocando
Outras tecendo danças graciosas
Os Deoses enererem duranre a cêa
Em cousas, com que Bàccho se recrêa,

LXXXI.
Acabado o Banquete o Deos dos Mares
,

Ao Deos de Niza falia desta sorte :

He tempo , Amigo , he tempo de te dares


D'hum Somno doce ao magico transporte :
He tempo , Amigo , sim , de descançarcs ,
E descançe também a minha Corte:
Disse e depois de graves comprimentos
:

Buscáo seus destinados Aposentos.


LXXXII.

Em quanto Baccho de prazer confuso


He pelo Rei dos Mares hospedado
Em aprazível sonho o Varão Luso
O Pensamento seu tinha enredado :

Morales , da razão cobrando o uso


Começa a respirar mais socegado j
E de^de enráo solicito medita
Fazer de Zargo a gloria , e a sua dita.

Fim do Canto Primeiro»

CAN-
,

CANTO SEGUNDO.
ARGUMENTO.
JL/ o Algarve a Terra , que a distancia encobre ,

Se avista com prazer , e ingente gloria j


j4o Luso Capitão ínclito , e Nobre
Conta Moraks de Machim a Historia :
DizJhe que he justo que o valor se dobre »
, ,

Porque fique Immortal sua memoria ;


Tentando aquella grande Descoberta
J)a fértil Ilha , flórida , e, deserta.

I.

J A de Tiran os Raios Scintilíantes


Esparzindo huma luz serena , e pura
Sobre o crysul das ondas ruiilances
Brincaváo com mimosa travessura 3
INJisto soão dos Lusos Navegantes
Altas vozes com vivas de mistura ,
Que despertando Zargo], lhe annunciáo
Ser Terra o que inda mal ao longe viãa.

II.
, ; ,

I© Z A R G U E I D A.

II.

Sâltâao convéz o Capitão Contente,


E conhecendo bem do Algarve t cesta,
He Terra , ( disse ) he Terra cerramen e
>\que!la sombra , que no mar se encosta :

O Promontório he de S Vicente
Onde a Viila de Sagres es:á posta ,
Villa , que o Grande Henrique edificará
Para alii cultivar Sciencia Rara.

III.

He d'âlli , que lançando sobre os mares


Suas vistas, subcis , pesquizadoras ,
Tenta Descobrimentos singula»es,
E tenta Emprezas mil conquistadoras :

He d^alli que enrre Estudos Exemplares


De sublimes idéas brilhadoras
Tem dado á Naçác» Lusa tanta idca
Que por ella já mares senhorea.
IV.

Assim do Sábio infante , Sábio em tudo


Fallava Zargo lllu.tre e reanimado
',

Pelo Seu Ge^to , eis que Elle fica mudo ,


IWorales apparece anteElle ousado:
Senhor , ( lhe diz
) eu tenho feito estudo
De merecer hum dia o reu agrido
Ah! presta-me attençao ao que te digo.
Ainda que Hespanhol , sou teu Amigo.

V.
,: , ,

CANTOU. '
31

V.
Saberás que dos Mouros fui Cap:ivo
( Nação briual , inculra , c fraudulenta )
E que enrre elles aftíicto ha icmpos vivo
De martyrios cm hórrida tormenta :

Quasi sempre sombrio , e pensativo


Entre Monsrros Cruéis de cor cinzenta
Existi , ic que hum dia . . ( oh triste dia. ! !
)
Senti quanto a Desgraça em fim podia.

VI.

Demíseros Câptivos rodeado


Inglezes de Naçáo , que alli chegnrao
Hum successo infeliz me foi narrado,
A cuja narração Mouios cherárâo :
O Caso mais fatal , mais desastrado ,
Com vivas expressões alli contarão ;
Caso , que causa horror á Natureza ,
E o mais triste , que vio a Redondeza.
VII.

Mas fc elle por huwi lado he triste , e feio ^


Por outro pode ser bem glotioso ;

Quanto de horrendo tem , ó Zargo , creio 9


Que também pôde ter. de proveitoso
D'algum modo , Senhor , eu me gloreio
De narrar- te este Caso lastimoso ,
Pois esta Narração , posto que dura
Pôde dar-ie mais gloria e a mim ventura.
,

Vill..
,, : , ; , «

32 Z A R G U E I D A,

VIU.
Na Famosa Inglaterra ( assim dizia
Hum dos Caprivos , de que fui cercado )
Hum Nobre Cavaleiro Inglez havia
Que Roberto Machim era chamado
No , e na figura parecia
gesto
Hum Narciso , hum Adónis namorado
Parece , que o dotara a Natureza
De tudo , quanto Ke graça , e gentileza,
IX
Quiz a sua Ventura , que elle visse
/^nna de Harfet , Ingleza bem nascida ,
E por ella de Amor logo sentisse
Da Paixão a sua alma combatida :
Quiz a sua Vcn.ruri descobrisse
Encantos , que dáo morte , e que dão vids ; # •
Ah que eu náo pos^o ao vivo aqui pintallos
! 5

AJas pôde , quem quizer , imaginallos.


X.
'"
Tinha Harfet áureas tranças reluzentes
Que em ondas sobre os hombrcs lhe pendião ,
Tinha hum rosto gentil , onde excellentes
Mimosas lindas graças se espafziáo ;

Tinfca faces de neve transparentes


Em que sanguíneas rosas floreciáo
Tinha huns olhos cruéis por matadores 9
E Lábios , que a rubim roubarão cores.
,; ,, , :, :

CANTO n* f1

XI.
Tinha hum Corpo gentil , meneio íâroso
Viveza natural , mimo , e doçura
Hum modo aíFavei , sempre gracioso ,
£ huma alma sempre terna , meiga , e purt
Eis de Harfet o Retrato Precioso
Quem náo vio inda Harfet, yeja a pintura;
Porque o mais , que ella tinha , e náo descrevo 9
Perfeito julgo, mas pintamáo devo,
XII.

O Filho de Diône , que não ccs?a


De ardiloso intentar novas conquistas
Para ferir Machim
sagaz se apressa,
£ ás Machim bemquistas
armas corre de
Para a Emprcza Cupido , sem que as peça j
Por settas escolhe© de Hsrfet as vistas
E dos olhos de Harfet fizendo os tiros.
Solta Machim ternissimos suspiros.

XIII.

Namorado Machim de Harfet Divina,


Quiz unir-se com ella em doce laço
Porém , quando a fazello se destina ,
Nos Parentes de Hartet acha embaraço:
A amorosa Paixão , que ambos dom. na ,
Lhes valor , e lhes franquea o passo
olá ,
E cm fuga postos os Fiéis Amantes
Deixáo da P&tria os Lares inconstantes.

XIV,
, , :, ;

.^4 Z A R G U E I D A.

XIV.
Já corta o crespo mu
a quilha undosa ,
Que no seu ventre occalta os dois consortes
]a fica atrás Bristol , donde animosa
Foge Harfet , sem tetrer prigcs e mortes ,

Machim , vendo a seu lado a amante Esposa ,


De prazer entre mágicos transportes
Pegando-lhe na máo , para bei «alia,
Neila os lábios imprime , e assim lhe falia :

XV.
Meu Bem , meu Doce Bem , a Natureza
Empenhou-se em formar Esse Composto
De mimos , perfeições ,
graças , belleza ,
por fazer me feliz por ,
dar-me gosto ;

Agora que de Amor és Pura Preza ,


E que prezo a teu lado me tens posto
Armados sempre de constância rara
Amem-se os Corações, que Amor ligara,

XVI.
]á distantes dos nossos Inimigos,
Que a táo doce União se oppunhão feros
Amda que sujeitos a perigos
Náo temamos seus ânimos severos :

Invoquemos os Deoses por Amigos


Por meio de fiéis votos sinceros ;

Inda que sem Piloto se navega


Tem bom Piloto , quem ao Ceo se entrega.

XVIL
,, , ,! ,

CANTOU. 55

XVII.
Os nossos tenos ctniidos Amores
Ha de o Ceo p«-o perar pois que sáo, puros i
Náo se temáo da Serre os desfavores
Tendo os Deoses por nós vamos seguros :

Se dl Procelli os rábidos horrores


Nos as^aUaiém h: rridos , e duro?
Devemos ler nos Deofes confiança
Porque atrás da Tormenra vem Bonança.
XVIIT.

Ouvindo do refno Amante ^


as expressões
Se julga a Linda Harfct mais que ditosa ^
E com vivo prazer , meigo semblante
Deste modo responde carinhosa :

Ainda que mulher, sei ser cons-ame


Sei arrostar trabalhos animo-a ;
Quando Amor S3 reveste de pureza ,
Coswuma tirar forças da fraqueza.

XIX.
Nestes , e curros colloquios entretidos
Kiáo os dois Amantes namorados
E em doce liga por Amor unidos
Os vi por muitas vezes abraçados :

(^ue meiguices ,
que mimos repetidos
Que afFigos ternos , que fiéis agrados í

55 Melhor he exprimental'o , que juígallo ,

^5 Mâs julgue-o quem náo pode exprimentallo*

C ii XX
, , ,, , :,

i6 ZARGUEIDA.
XX.
Vinha â Noite sombria , e «omnolenta

Hum -pouco triste negreiando os ares


Quando apôs delia hcrrifica Tormenta
E>esâba sobre o Lenho , e scbre os mares
Parece o Ceo que sobre nós rebenta ,
Desentranhando raios a milhares
A cuja luz o mar mostra ;»s entranhas,
Transformando-se em turg.idas montanhaSi
XXI.
Raivosos Aquilóes, Euros membrudos
Combarem entre si em viva guerra
E com força Avernal Tufões sanhudos
Pertendcm confundir Ceos , Mar e Terra , :

Wostráo-^e ambos os Poios carrancudos,


O Árctico Glacial hórrido berra ,
O Antárctico também , como de inveja ,
Káo berra , mas horrisono troyc;a.
XXII.
Nisto os temos Amantes se tssustárão,
E enfiados do medo , que os assalta
Ternamente abraçados desmaiarão.
Porque de todo o animo lhes falta:
Porém logo que a si ambos tornarão ,
Machim anima Harfet , e ao convéz sahâ
Donde vendo a Procella horrenda , e forte
Pondo os olhos nos Ceos, diz desça wrte:

XXIII.
,,
; :,
, :, , ;

c A N T o n. ir

XXIII.

O' tu , Cujo Poder abala , c move


A Mole immensa do Universo inteiro,
O' tu , Supremo Deos , Supremo Jove
Dos míseros Mortaes Pai Justiceiro
Se náo queres , Senhor , que hoje Harfet prove-
O veneno da Morte , te requeiro
Que por altos eíFeitos de Piedade
Abonances a fera Tempestade.

XXIV.
Harfet, a Linda Harfet, que tu creastc.
Para vir a fazer minha ventura ,
Harfet, a Linda Harfet, t quem dotaste
Hum puro Coração, huma alma pura.
Gelada eitá de susto , e tanto baste
Para em fim merecer tua ternura
Ah! náo me roubes, náo, t minha Bella
Deoses do Olympo , intercedei por ellt.
XXV.
Assim quando lhe disserão
dizia ,

Que a triste Harfet o seu Machim chamava j


E apenas esta nova lhe trouxeráo
Náo corria Machim , Machim voava
Neste momento os ventos se exasperlo
E o Lenho , que entre as ondas estalava ,
Da de lado , c parece , que procura
Nas entranhas do mar a sepultura.

XXVI.
,

jS Z A R G U E I D A.

XXVI.
Rôtâs âs velas , m ss^-os pedaços
Ondeáo pelos are^ sibilantes,
E de frio pavor cn re embaraços
Tremiáo os confj^os Nave^an es :
Machim , que tinha Harftt entre seus braços ,
Com meigas expressões dulci-tocantes
Confiado ).o Ceo consola , anima
A quem mais do que a própria vida estima.

XXVII.
Enrre^ue á discrição de ondas , e ventos
Por agans dias piira a quilha undosa,
Tc que veio ordenar o> hiementos
Huma serena, e bonarçósa :
Lvoite
Sobre o cryscâi dos mares somnolentos
Briiha de Phebe a chamma luminosa ,

E 03 Asiros, que em ssr lúcidos se apurão ,


Nos espelhos das ondas se figuráo.
XXVIII.
Alegres por nos vermos em bonança
E já livres d j naufrargo perigo ,

Veio en.áo socccrrer-nos a Esperança


De encontrarmos ainda porto amigo :

Jí mâi5 contente Harfet alli descança


N^s braços de Machim ; e em seu jazigo
Frocuri cada qual affadigado
Par ao corpo o repouso suspirado.

XXiX.
, ,, , ,! : :

CANTOU. í^
XXIX.
Era já âlto diâ , quando hum nosso
Ccmpânheiro fiel de cima berra ,
Dizendo assim com súbito alvoroço
AI viçaras , Amigos , terra , terra :
Inda que eu quem , aqui pincar nao posso
O prazer vivo, que entre nós se encerra:
Que scena para nós doce , e risonha ,
Depois de huma procella ráo medonha
XXX.
Aos ecos voz , que alegre soa
destt ,
Despertáo os Amantes, que dormiáo
E a todos nós chegando a nova boa
Huns acordaváo , outros já surgiáo :

Wachim correndo então de popa á proa ,


Kos olhos , e nos gestos se lhe viáo
Vivas demonstrações do prazer fone
Que a Alma senie em divinal transporte.

XXXI.
Apparcce , e bem perto, coroada
De nuvens huma Terra florecente
E aonde ella fazia huma enseada ,

Mandou ferro lançar Machim Conrente


Saibamos Terra he habitada
se esta
( Disse Machim de Feras , ou de gente
)
Quem acaba de naufraga fadiga ,
Deseja ter deccanço em Terra amiga.

XXXIL
:, :, ,,

)^ Z A UGU E I D A.

XXXII.
Náoacabava quando os marinheiros
Já dentro no batel se aparelhiváo
Para buscar magnânimos ligeiros
A Terra , porque tanto suspiraváo
Afoito quiz eu ser hum dos primeiros
Que para a dura em preza $e a prés ta vão 9
E armados todos nó? nos de.pedimos
De Machim , e de Harfet , e nos partimos.
XXXIII.
muito custo á Terra em fim chegamos
5em 9
E vendo-a toda chea de arvoredo
Entre todos primeiro consultamos
Se se devia entrar naquelle enredo
Por votos , em que todos concordamos
Animosos , sem vêr a face ao Medo,
Onde sahia ao mar huma Ribeira
Desembarcou a Gente Aventuieira.
XXXIV.
Embrenhados por arvores sombrias
Descobrimos dhum lado , e d^outro iado
Muitos frutos agrestes , fomes frias
E hum clima puro, tmeno , e temperado:
Levantadas incultas serraniis
Cobertas de Arvoredo apinhoado
Mais distantes as frentes escondiáo
Emre nuvens pezadas, que as cobri ão.

XXXV.
,

CANTOU. 41

XXXV.
Nem pízâdas humanas, nem ferinas
Enconcr^mos alli : ricos presentes
De agre$:es frutos, aguas crysrallinas
QuizemoJ i Machim Uvar Conrentes!
Fende o barel as ondas Neptuninas
Carregado de frutos diíFerences
Na forma , e no sabor , até que cbega
Ao Lenho , em que Machim a Amor se entrega,
XXXVI.
Ouvindo a narração da descoberta ,
Que fizemos , Harfet a Machim pede ,
Que a deixe em Terra , ainda que deserta ,
D MS dias descançar ; e Machim cede:
Valem-se ambos entáo da nossa oííerti ,
Para hum pouco abrandar a ardente sede
E entrando no batel , sem medo a p'figos t
A Terra buscáo com fiéis Am.igos.
XXXVII.
Eu fui hum dos que em
sua companhia
Dois dias felizmente viverão :
alli

Mas ah que o corpo meu todo se esfria


!

Ao lembrar-me do fim , que os dois liveráo!,,,'


Por Lei faral da Sua Sorte ímpia...
Ambos... infelizmente ... alli monêfáD :
Mais não posso dizer , porque a Dor fera
Me parte o Coração, e mo lacera.

XXXVIII.
42 Z A R G U E I D A.

XXXVIII.
Calon-se o Prisioneiro , e sufFocado
Soluçando algum tempo esreve affiicto,
E de saudade em lagrimas banhado
Desta scrte começa em alto grito :

Porém ah! que este Caso de^a-^trado.


Caso triste , e fatal , Caso inaudio
Devo em fim repetir : fique esta Historia
Por trágica dos homens na memoria,
XXXIX.
Prnsem agora as Almas ,
que sensíveis
yV'sde graças dos miseros humanos
Vão, ver hum dos successos mais horríveis 9
Que tem acontecido entre os mundanos :
Talvez que entáo conheçáo quão terríveis
Sáo para os homens da Desgraça os danos ,

E que desta inim:ga ao golpe lude


Também succumbe a Cândida Virtude.

XL.
Dois docemente se pa.-^sáráo
di3«;

Na Terri , m^s
inculta amena , e belía.
Onde os ternos Amantes descançáráo
Das fâdi2as da horrífica Procella :

Grande Tronco , que os annos escavarão ,


Enorme Tronco , que encontramos nella 9
Foi nossa habitação ; alli gostosos
Dois dias se passarão venturosos.

XLI.
CANTOU. '^3

XLI.
Nisto novt borrasca embravecida
Parece , que arraz^r o mundo inrenti ,
A Noi e mais medonha , e desabrida
Aos nossos tristes olhos se apresenta !

A Terra , em negras sombias envolvida ,

Parece , aue o seu peio náo susienra :


E o mar conrra os calhaos em dura guerra
Quer sanhudo enguiir caiháos , e Terra !

XLIf.

Abri^^dos do Tronco cavernoso


Passámos roda a nci^e , ai) C -e j rogindo ,
Que nos ircuxesse hum dia b<.nançoiO,
Hum mar tran«^'JÍUo , hum vento doce , e brando :
Mas nao nos escuiou o Ceo Piedoso ;
Mii desg-^açâi faiaes r.meaçando,
^uccece á Ncite hum dia cm tudo horrendo ,
Hum G;a o mais fatal, o mais iremendo.
xuir.
Aos nossos olhos já náo apparcce
O Lenho , que ficara fun^leado j
Aqui hum , alii entro á praia desce,

Para ver se retia rautiaí^sdo:


Desanim da Harfet eis dcsUlece
Nos braços de iV1?chim desanimado ,
Que homem náo era {a , pois mudo , e quedo") ^^^
ILra hum penedo junco de hum penedo.
}

XLIV.

(*) Imitação de Camões.


j, , ! , ., :

44 ZARGUEIDA.
XLIV.
""
, descontentes , pensativos
Affllctos
Viemos procurar os dois Amantes
Por dar-lhes neste lance compassivos
De Amizade , e de Amor provas bastantes
Sinaes não tinháo de que estaváo vivos j
As cores dos seus lívidos semblantes
Em muda linguagem nos diziáo
Que os Consories fiéis náo existião.

XLV.
Oh ! que Scena d'horror . . . â Natureza
!

5obre a Terra estendeo , só por náo vèUa


Nuvem de estupendissima grandeza
Fm partes negra, em partes amarella !

Táo grande nunca vio a Redondeza


Sim a Terra gémeo co' o pezo delia ! . .
E nós em suas sombra'? envolvidos
Andámos huns co^ os outros confundidos.
XLVI.
Caro Machim , ( gritei ) já não existes ?

Harfet, Qierida Harfet , já estás morta?


Porque á Dor táo depressa succumbisíes ?
IVIas nisio a mortal Dor t voz me corta :

Volvendo os olhos languidos , e tristes


Talvez porque esta voz viva os conforta j

Despertai os Amantes malfidados


Estreitamente aUi inda abraçados

XLVIL
:

CANTOU. 45

XLVII.
Aonde estás , Harfet ? ( Mâchim gritavi)
Aonde estás, Ma chim? (Harfet dizia)
Nem Machim via Harfet ,
que a si ligava »
Nem Harfet a Machim , que a si unia :
Machim entre seus braços apertava
Aquella , que procura , e que náo via ;

E Harfet linha em seus brsços ternamente


Aquelle , que procura , e que náo sente.
XLVIII.

Desta sorte dois dias mais correrão,


Sem que a mísera Harfet a Machim visse ;

Assim os Sacros Deoses o quizeráo ,


Para que mais t morte não sentisse:
Porém quando de todo falecerão
Seus alentos viraes , apenas disse
Adeos , Caro Machim , as Nossas Almas
Na Gloria colherão da Gloria as palmas.
XLIX.
A' triste voz da Linda Harfet, que expira.
Fica immovel Machim como hum rochedo:
Nem ao mesos o misero respira ;
Era a Imagem do lívido Segredo:
Oh quem scena táo triste nunca vira !
!

Seus olhos e^^pantados mettem medo!


Parece , que de susto os troncos tremem í
Parece, que de susto as pedras gemera!
: ,,

46 Z A R G U E I D A*

L.
Cheio eu me^mo de sunos penetrantes
CerranJo os olhos meus chegnei-aie a hum tronco,
V. encostando a Cabeça alguns ins:an es ,
Estive immovel , qual p^^nha co bronco :
Occupado de idéas vaciiiantes
Ouvi hum grito á imitação d Hum ronco ^
E dando hum pulo donie es ava po^to.
Olhei , e vi Machim co* a máo no rosto,
LI.

Machim , triste Machim , nâo desanimes


Não te entregues á Dor, ( lhe disse eu logo)
Por ora não convém qne te lastimes ,

Attcnde , Amigo , meu pungente rogo


a
Os excessos de Amor também são cumes
Se contra nós areáo vivo fogo ;

Quem a excessos a vida arrisca e rende ,


,

Irrita os Jysíos Coiis , os Ceos oftende.

LII.

, A Cira Hirf-t da Dor na guerra


tua
Ha pouco deo ao Ceo o qje era delle ,
E deixando na Terra o que he da Terra ,
Parece , que a tal dor não te compelle :
A tristeza fatal de ti desterra ;
A amargura cruel de ti repelle;
E deixa o mais so Ceo , que vigilante
Velará sobre nós dhoje em diante.

LIII.
, ,;
, ,

CANTOU. 47

LIII.

Mal acabei , o triste , alçando a frenre


Fixa os olhos em mim, estende os braços;
E equilibrando o corpo fracamente ,

Tremulo apressa fraquejantes passos :

Ao encontro lhe síio diligente ;


Alli se dáo terníssimos abraços ;
E mcstrando-mc hum ar de agradecido
Desci sorte fallou , dando hum gemido :

LIV.

Teusaudável conselho te agradeço


Bem , mas náo posso
quizera abraçallo
Em váo ao Justo Ceo constância peço
Em váo meu mal com lagrimas adoço:
Harfet, . mimosa Harfet , ( eu desfaleço

! • . ,
)
Quanto he duro, e cruel o Fado nosso!
Ah! quem diria, Amigo, que táo cedo
Havia de acabar de Amor o enredo ^
LV.
A
minha Linda Harfet já não existe,.,
E.devo eu existir ? que desventura
. . . !

Só huma Alma de bronze he que resiste


De igual separação á fcrça dura :

Se os Ceos se irritáo de me vêr táo triste ,


Se se oíFenJcm de excessos de rcrnurA ,
Rcsuscitem Harfet , a minha Bel ia ,
E deixcm-me viver aqui com eila.

LVI.
: :

4% ZARGUEIDA.
1^ LVI.
mesmos Desertos montuosos,
Nestes
5em
gozarmos de humana convivência y
Kossos dias faráo deliciosos
O puro Amor , a cândida ínnocencia
^/las ah que os meui desejos fervcrosos
!

Protegidos náo sáo da Providencia !

Harfec náo torna a si , porque em bonança


Já nos Elyseos plácidos descança.

LVII.
Agora pois, Amáveis Companheiros,
(Disse a todos Machim binhado em panio)
Devemos dir os cultos derradeiros
A quem por meu amor padeceo tanto:
Ajudai-me hoje, Amigcs Verdadeiros ,

A cumprir hum dever , que he justo , e santo j


Encerre-se em piedosa sepultura
O Thesouro , que foi da Formosura,

LVIII.

Nada mais Machim disse e destinando ; •

Hum lugar , para o Tumulo , sombrio ,


Vai com trémulos passos caminhando
Enredado emconfuso tresvario
Limpava o slli de quando em quando
triste
O rosto , que ensopava hum suor frio ,
E aos gemidos , que solta das entranhas >
Parece, que estremecem as montanhas.

LIX.
, ,: , ,

CANTOU. "
^
LIX.
Aberta a Sepultura , o Terno Amante
Armado ds hum valor religioso
Posto 4ue sempre atHicio , e delirante.
Se apressa para o Cul'0 Luccuoso :
Ainaa ^ue de forças fraqjejante
O Cidâver di Harfet sempre mimoso
Toma nos braços seus , e contra o peito
O aperra em trisres lagrimas desfwico.

LX.
De Maehim todos nós no seguimento^
Vertendo amargas lagrimas a mares.
Chegámos ao f unsreo Monumento
Que lideaváo lúgubres Pezares
Fizeráo-se de Haríec no Enterramento
Religiosas honras exemplares
E sobre i Campa dura se levanta
D'hum Sublime Madeiro huma Cruz Szfittf

LXI.

De alguns ramos de fúnebre Cypreste


Carregados do seu amargo truto
jMachim a Sepultura adorna , e veste
Das honras funeráes próprio tiibuto :
Do manto da Tristeza se rev^este ,
Poí(]ue náo tinha alli mais prompco luto
j
E no pé do Crucigero Madeiro
Por Epicaphio póz e^te Letreiro :

P LXÍI.
, , ,

}<» IL A R G U E I D A.

LXII.
Jaz aqui , ó Mortaes , Harfet Divina ,
Que por amar Machim a má Vencura
Perseguio atéqui sempre ferina ,
E aqui mesmo lhe deo a sepultura :

Se por lance de Sorte mais benigna


Indi habitardes esta Terra dura
Hum Templo erguei aqui Sacro , e Decente ^
Para Digno Louvor do Omnipotente,
LXIII.

Vinba a Noite fatal , mas socegada


Em mais grosseiras nuvens envolvendo
'A Terra já de nuvens carregada
Quando estava Machim isto escrevendo:
A Inscripçáo Sepulchral assim gravada
Foi-se entre mudss sombras escondendo ;
E o misero Machim á Noite fria
A fallar desta sorte principia :

LXIV.
Veste-te , ó Noite , veste-te de luto
E espalha sobre mim trevas escuras ,
Qu3 a Dor abafem , com que triste luto
Entalado entre feras Amarguras :
Em quanto minhas lagrimas tributo
Da minha Cara Hârfet ás cinzas puras »
Para que minhas lagrimas náo visse ,
Quizera , que do Dia a Luz fugisse.

LXV.
, ,, : ,

CANTO II. 5Í

LXV.
Agora em negras sombras envolvido
Posso afFouto soltar queixas aos ares j
Qual irováo vai soar o meu gemido.
Fugindo ás garras d'infernaes Pezares
Da minha voz o horrisono estampido
Vai troar nestes hórridos Lugares j
Da Dor nas Lides , em que afflicto gema
Vou fallar contra a Morte, que náo temo,
LXVI.
Faminta Morte , Aborto despiedado

Da sempre avara tétrica voragem


Inda o teu ferro agudo , e esfomeado
Náo está farto de fazer cainagcm í
Esse leu voraz animo danado
Dize , Monstro cruel , Monstro selvagem y
Inda faminto es'á de ajuntar ossos
E Cadáveres mil em montões grossos ?
LXVII.
Ah cruel ah cruel
! , ! , se ho^ poderá
No teu Império entrar , Leáo sanhudo
Em mil pedaços míseros fizera
O teu Corpo, o teu Throno , Sceptro , etudof;
Co' a tua própria fouce te fendera
O negro peito vil , maligno , e rudo y
O Infame Coração delle arrancara
E depois de mordello , o dsvorara.

P li LXIII.
. !

5* 2 A R G U E I D A.

LXVIII.
Que sacrílego golpe desfecliâíte í

Que immatura colheita , ( oh ! Ceos ! ) fizeste !

Em que tristezalúgubre deixaste


A Machim cor do fúnebre Cy preste
Nunca hum táo ímpio tiro disparaste ,
Netn cruez» táo barbara exerceste :

Da tua voraz fouce ao golpe rude


SSuccumbíráo Belleza , e Sá Virtude*

LXIX.
Ai de mim que no centro ào meu peito
Sinto o meu Coraçáo lascar-seao meio !

A quanto o Homem ha de estar sujeito!,,.


Tirai-me , ó Ceos , deste enreJad*) enleio :
Acaso nasce o homem sempre afFeito
Mais a tormentos vis , do que ao Recreio ?
Podem mais os Desgosto? , que os Prazeres ? • . •

Maldita a Sorte dos humanos Seres»

LXX.
Mas onde me arrebatas , Dor Cruenta í

Em que abysmo me lanças pavoroso >


Carrancuda voragem me apresenta
Aberto o fatal seio tormentoso !

E queres-me abysmar, ó Dor Violenta,


Naqueile horrivel Cahos espantoso ,
Naquelle horrivel Cahos esfaimado ,
Que milhões de Morcaes tem devorado ?

LXXI.
, ! , ,

CANTO ir." jjj

LXXT.
Os juízos dâ Sâcra Divindade,
Que o Universolirou das mãos ao Nada
Sáo arcanos 5 qi'!e a fraca Humanidade
Não deve investigar por Lei Sagrada:
Do Arrifice Divino a Magesrade
Não deve ser dos homens profanada ;
Tuda quanto acontece neste mundo
Sáo destinos d'hum Deos Sábio, e Profundo»
LXXII.
Quanto falsarios são os bens da vida
Se nos dáo de prazer algum momento ,
Wil momentos nos dão da Dôr na lidt ,
Em que cança o mais fone soffrimento :

Ah minha Doce Harfer Harfet Querida


! ,
,
Do seio deste escuro Monumento
Acceita ,
por penhor da fé mais pura ,
Os meus ais com meus prantos de mistura.

LXXIIÍ.
Na© temas ,
que Machim roube á Lembrança
Por hum breve momento a Imagem tua
Onde a tua Alma plácida descança ,
Cedo irá descançar taníbem a sua:
Vem ó Morte Cruel, vem, sem tardança.
,

Ensopar cm meu sangue a fouce cruaj


Ah! vem tu, ames que de Der gelado
Fique o sangue nas veias estagnado.

LXXIV.
, ,,

f4 Z A R GU E I A.

LXXIV-
Se o Destino não quiz ser-nos propicio
Ainda mesmo nesra Terra inculta ;
Se por fazer fatal o nosso exicio
Se mostrou contra nós a Sorte Estulta ;
Dá-me de compaixão hum claro indicio,
O' Morte avara mísero sepulta
,

O meu Corpo no tumulo , que encerra


Aquelía 9 que acabou da Dor na guerra.
LXXV.
Evós. Amigos meus, buscai constantes
Huma sorte melhor , que a minha sone j
Ide alegres viver de mim distantes
Em quanto espero aqui , que venha a Morte í

Náo poderão correr muitos instantes


Em que o fio da vida me náo corte
Aquella , que inda tem a fouce tinia
Np sangue d'huma Flor em flor. extinta,
LXXVI.
Compassivos deixai neste Deserto
Hum inste consumir mirrados dias
Deste sombrio Tumulo bem perto,
Sustentando-se em negras agonias :
Meu ro.to aqui de paliidcz coberto
Da minha Amada sobre as cinzas frias
Goteje embora amargurado pranto
Sem que vos cause horror , tristeza , espanto.

Lxxvn.
, ,

CANTO IL fj;

LXXVII.
Ide em paz, ide em paz buscar ventura,
( Esta graça por ultimo vos peço )
Que eu aqui junio desta sepultura
bspero o fim da vida, que aborreço:
]á que por dura Lei da Sorte dura
Premiado não foi de Amor o Excesso,
Unida com a de Harfet , e no seu grémio
Minha Alma alcançará da Gloria o premio.
LXXVIII.
SuíFocou-se Machim ; e a face unindo
Ao Mâusoico , á Dor se rende ,
frio
E os montes com soluços aluindo
O frágil corpo sobre a campa estende :

Assim se foi a noite consumindo ,


E o tanto á Dôr se liga , e prende
triste
Que ao quinto dia , sem dizer mais nada ^
Foz termo ás penas da vital jornada.
LXXIX.
Desta sone acabou Machim ,
que amara
Wais do que a própria vida Harfet mimosa,
E sua Alma , que á delia Amor ligara ,
A corpórea prizáo quebrou saudosa :

Oh ! Constância de aífecto em tudo rara J


Oh ! Excessos d'huma Alma virtuosa !
Pela Desgraça Amor foi combatido,
Pela Desgraça Amor ficou vencido*

LXXX.
,: ;

tf Z A R G U E I D A.

LXXX.
Alli CO* â Linda Harfec foi sepultado
O mísero Macliim por nós , que afflitos
De rêr este Successo desgraçado
De horror soltámos formidáveis gritos 2
Depois do seu cadáver enterrado ,
Depois de honras , e cultos infinitos ,
N'hum Cedro , que cobria a fatal campa >
Este Epitaphio lúgubre se estampa

LXXXI.
Jaz também tumulo no seio
deste
O Mísero Machim , que a dura Morte,
A' sua fera Dor tomando o freio,
Quiz unir com a mísera Consorte :

Pouco tempo viveo de Amor no enleio


Achou sempre contraria em tudo a Sorte,
Até que sobre as azis da Saudade
Foi viver com Harfet na Eteroidade.
LXXXII.
Alguns dias depois alli passámos
Sempre envoltos no manto da Tristeza ,
E , em quanto alli vivemos prante.imos ,

O Caso triste. Horror da Natureza :

Sobre o nosso destino consultámos *,

E cntáo , tentando huma arriscada empreza,


Por fugir de ião fúnebres Lugares
Quizemos entregar a vida aos mares.

LXXXIII.
, , !

CANTOU. IT

LXXXIII.
Lançando as ondas o batel pequeno
Que nrs tinha íícado sobre a praia ,
Qualquer de nós cem animo sereno ,
Para a vida perder no mar se ensaia:
Já parece tu^ir-nos o Terreno ,
Por nós dcixado , mas nenhum desmaia;
E a poucos sulcos da nadanre Quilha ,
Emrc as ondas se some a fértil ilha.
LXXXIV.
Poucos dias ând^'mos vagueando
Sobre mares paciticos , e puros ,
Na Piedade dos Deoses confiando
Porque assim navegássemos segures:
Tranquillos doce; Zephyros s prando
Trazem áà. Barbaria aos Climas duros
O boianre b^rel , que icmerario
Se expôz is fúrias do Oceano vârio.
LXXXV.
Finalmente aq» i omos Prisioneiros;
Por^m ih! ene vtniura aç ra tenho
De achar aqui aquelles Compa-.ineiros ,

Que ptrdidos julguei no undoso lenho


De Successos fataes , mas verdadeiros ,
Eis aqui fiueiissimo desenho ;

Pois he próprio de todo o desgraçado


Contar trabalhos , porque tem pasmado.

LXXXVI.
, :, :,

SS ZARGUEIDA.
LXXXVI.
Tal â narração da mesta hiitoríi
foi
De Machim , e de Haríec : este Captivo
Imprimio-mt toda ni memoria
Com termos , de que tinha o cunho vivo
Agora pois que tenho a ingente gloria
De achar em ti hum Numen Compassivo
A Morales , Senhor , permitte a graça
De que huma grande siipplica te faça.
LXXVIf.
Vamo» , Vamos tentar a augusta cmpreza
De Terra ,
descobrir aquella inculta
Onde dizem , que a Madre Natureza
Wimosas producções próvida encerra
Longe de nós a timida fraqueza ,
Rcdóbre-se o valor , que a ti se afferra 9
A fim de que in da hum dia , ó Zargo , seja
Tua Gloria Immorcal digna de inveja,
LXXXVIII.
Finalizou Morales , quando Zargo

Estava de o ouvir de assombro cheio ;


Sua Alma como em lan.:^u'da Lethârgo
Longo espaço jazeo da Dor no seio
Mas vendo então , que o leiKo a panno Itrgo
Crespas ondas do mar fendia ao meio
D'improviso se furta áquelle enredo
E assim rompe as prizôes ao seu segredo*

LXXXIX.
, : ,, : ,

CANTOU. $9

LXXXIX.
Co' â triste Narração , que me fizeste
D'hum Caso de De5^raças mil tecido
Tanto de pasmo , e dor minha Alma encheste 9

Que longo tempo estive s^m sentido


Tudo , quanto , ó Morales , me disseste
Com vivas expressões , inda duvido
Que possa acontecer ; porém , se he certo ,

A Ilha deve estar d'Affica peno.

XC.
Justo Ke , que to Grande Henrique se dè parte
De quanto como Amigo me tens dito ;
O Infante quer por génio , e quer por arte
Fazer soar da Lusa Gloria o grito
Este Heróe ha de Justo prem:ar-te ,
Ha de ter em te ouvir gosto infinito
E podes desde já ter a certeza
De que iremos tentar tão alta Empreza.
XCL
Ah! se eu vejo, ó Morales, realizado
Hum sonho que inda , ha pouco deleitoso
Me teve entre delicias embrenhado.
Dentre os Lusos serei o mais ditoso
Eu sonhei , que , fendendo o mar salgado
Lá do Atlântico Pego Salitroso
Grande Ilha descobri gentil , e pura
Coberta de frondosa vestidura.

XCII.
,, ! ,

^ ZARGUEIDA,
XCII.
Qae sonKo para mim tão lisonjeiro
Pârro amável áa prenhe Fantasia ,
Ah ! se tu inda fosses verdsdeiro ,
Quão feliz minha sorte eniáo seria !

Mortles , tu não és já p isioneiro ;

E's Vâssallo da Lusa Monarchia ;


Sim vamos procurar o Sábio Henrique,
Porque mais minha Gloria qualifique.
XCIII.

Dizendo assim do cavo Lenho entregi


O Commando ao Piloto Castelhano
Que ao fresco force yento , que refega ,
Mandou logo soltar iodo o mais panno:
Em demanda de Lagos já navega
O velifero Pinho Lusitano ,
Em quanto Zargo Illusrre assas Contente
Mil planos giza na fecunda mente.
XCIV.
O' Honras , após quem cruzando os mares
, ,
Corria o meu Heróe , quanto Ligeiras
Voais então da minha Pátria aos Lares
Para hospedar a Zargu Lisongeiras !

Aqui á Sua Gloria erguendo altares.


Com Gentes Estrangeiras
inveja das
Coroastes o Heróe , que alegre canto ,
Tornando-o Digno d'immortal espanto.

Fim do Canto Segundo,

CAN-
k23^Xh:3^

CANT
G U M-^N T O.

Eptuno para honrar o Deos Thebano


Cbama ao Pa^o as Miritimas Deidades j
O Thyrsigero Deos do Gama em dano
Pede a Neptuno Auxilio , e tempestades :
Vaticina Prothco do Deos Silvano
A vinganí^a as perfídias , as maldades ;
,

E Lieo , contra Pan enfurecido ,

He pelo undoso Numen divertido.

I.

JA dos Astros o Nirido Gigante ,


Lúcida Tocha do Sidéreo Assento ,
Espalhava huma luz loura , e brilhante ,*

Que esclarecia o Liquido Elemento;


Quando ordena a Trirão Nep:uno Undanrc ,
Que toque o seu maricimo Instrumento ,
Convoctndo a seu Paço Magestoso
As Deidades do Pego Salicroso*

n.
: , , 4
:

62 ZARGUEIDA.
JI.

Eis o Cerúleo horrisono. Trombeta


Embocâ o búzio retorcido', e -feio
E mais ligeiro ,-í]ue t volt til setra ,
Deo sobre os mares rápido passeio]|l
Tinha Tritão a pelle scmji-preta
Do informe Corpo nú ^uasi até meio
E dalli para baixo estiva ornado
D'hum muígo semi-verdc, e avermelhado»
III<

Sobre escamosos hombros lhe pendião


Huns limos verdes , outros amartUos
Que prenhes d agoa sórdidos fingiáo
Ser desre Monstro os fispidos cabellos
Seus olhos asquerosos se escondiâo
Em duas grutas concavas de vêllos
j

Náo se jactáo as salsas Divindades ,


Táo fundas sáo as negras Cavidades»
IV.

Susrcntava Tritão , Monçiro tremendo ,


., Obúzio atroador nas mãos calosas , ,>
É delle ao som estrépito o , e horrendo
Troaváo iis Campinas marulhosas
Já de todas as^partcs vem correndo
As húmidas Deidades pressurosas «
E ornadas todas de prestante gala
]á pizáo de Neptuno a Re^ia Sala.

V.
,:
, , :

CANTO III. <r

V.
Estando junta a Corte Neptunina
Sobe o Monarca ao Throno adiamantado y
E a mão dando ao Thyrsigero Divina
Beija-lhe a face, e o senta ao Dextro Lado:
Depois pondo a Coroa Crystâllina,
E empunhando o seu Sceptro [riplicado
A todos, quantos lhe faziáo Còrie,
£m honra de Lieo diz desta sorte :
VI.

Divindades do mádido Elemento


Este , que vedes , Numen Pampinòso
He Baccho , aquelle Deos , que tem assento
Entre os Deoses do Olympo Luminoso
Finalmente sabei , que he meu imento »
Que em dia tão feiiz , tão venturoso ,
Beijeis a Dextra , que áureo Thyrso move ,
A Dextra ao Filho do Supremo Jove.

VIL
Apenas isto disse o Rei dos Mares ,
Pela escada do Throno Refulgente
As Divindades vão subindo a pares ,
Para beijar a mão Thyrsi-virente ;
Baccho , vendo estas honras singulares

Desarreiga do peito a voz cadente ,


E á Regia Corte , que suspenst fica ,
Desta maneira o seu prazer explica

VIII.
! ,; :
,

64 Z A R G U E I D A.

VIII.
Eu sou Filho de Júpiter Sagrado
Was entre os Deoses da Celeste Corte
Náo fui indâ atéqui táo venerado
Nem passei por táo magico transporte:
Que enchente de prazer divinizado
híe alaga o coração! Divina Cohorte
De inexhiustas Delicias me arrebata >
£ sobre mim mil extasis desata
IX.

Agora pois, que a Prospera Ventura


Quiz , cjue eu viesse ao Reino Neptunino ,
Onde com tanto amor , tanta ternura
Me hospeda o Vosso Rei mais que Benigno j
Hum pouco me escutai vou com lizura
;

Declarar-vos a quanto me destino


E tu Supremo Deos do inquiero Argento
, >
O quanto vou dizer , escuta attento

X.

Dois dias ha que Jove congregar*


Os Deoses todos da Sub ime ksíera ,
Só porque n'alra mente projectara
Honrar a Nação Lusa , a quem prospera :
Disse então, que por Lei dos Fados rara
Dos Fados , contra quem nada se altera ,
Esraváo Varões Lusos destinados
A Maies cgmrasiar , não coniustados.

%l
CANTO Iir. 6i

XI.

Que das margens do Tejo iria hum Gama


Com maitos Heróes mais, fendendo Oi mares,
Increpdos spô? d'inclita Fama
Vêr inda hum dia do Oriente 03 Lares;
Que alli mesmo , onde Phrbo accende a chama ,
Por sublimes façanhas singulares
Se fariáo temer d'hum modo novo
Pelo fostado semi-fusco Povo.
XII.

Disse mais , que porque esta grande Empreza


Lhes parecesse menos arriscada ,
Queria fosse a Gente Portugueza
Em grande liha aprazivel hospedada:
Que do que alli a Madre Natureza
Produzisse , seria refrescada ,
Para que mais ^ífouta , e mais Contente
Buscasse as ricas Terras do Oriente.

XIIJ.

Disse mais , que seria descoberta


A gentil Ilha por hum Zargo Illustre,
Que inda por esta acção de gloria cer a
Daria ao Nome seu mais vivo Lustre :

E que esta ILmpreza que o valor desperta ,


,

Por íazello Immortal , náo quer se fruscre ,


Pois que tinha d'ha muito projectado
Tomáiio Digno d'inda ser cantado*

XIV.
,,

66 Z A R G U E I D A.

XIV.
Ouvindo
esta proposta ao Deos Tonante ,
Que Deo?es
os todos junios approváráo ,
Do Throno Augusro seu une puz diante
E a- tentos alii todos me escutsrâo :

Pedi enráo ao Numen fulmincnie


Com supplicas que o tocarão ,
humildes ,

]Vle desse da Grande liha o Torrão largo ,


Que eu nelie hospedaria o Nobre Zargo.
XV.
Assim mo concedeo Jove Supremo
Fez-me da fértil liha a Divindade ,
^as ah! quanto receio, ah! quanto temo
Vêr eclipsada a minha Mage^tâde !

Entre suspeitas mil vacillo , c tremo,


Parte-me o coração ímpia Anciadadc
Por vêr que hão de ir Illustres Lusitanos
Abrir as Fonas do Oriente ufanos,

XVI.
Allionde o meu
, Nome
he respeitado
Pelos índicos Povos , que
submissos
]Vle adoráo por seu ldo:o Sagrado ,
Sem que nos cultos meus sejáo remisses:
AUi, onde fui semp-e venerado
Por Povos brutos , e na ccr mistiços
Hei de soífrer , que hum dia ò forte Gama
Me roube o culto , a gloria , o Nome, a Fama ?

XVII.
,, , , ,

CANTO MI. él
XVII.
Alli, onde por célebres façanhas ;
Bem dignas todas de immorral memoria ,
Offuquei por Cidades, e Montanhas,
Do GrCj^o Rei a chamcjanre Gloria ;
Alii , onde fiz ver acções tamanhas
Qne não cabem nss paginas da Historia ,
Hei de soíFr^r que os Lusos as occuhem
E abaixo inda do Lethes as sepultem ^
XVIII.

colhi no Elydaspe, e o Ganges,


As palmas, que eu
E que es:áo novamente recrescidas
Pelos dos Lusos beilicos alfanges
Hão de ser cerceadas , e colhidas ?
O' tu. Supremo Rei, que a terra abranges
Com cérulas p.-izóes entumescidas ,

Quando o Gama intentar a Empreza estalcâ


Teu poder , teu auxilio me faculta,
XIX.
Quero então que o teu Reino revoltoso
Se mostre contra os Ceos em viva guerra
As ondas arrojando procelloso
( Se he possivel ) mais alias do que a Terra :

Eu quero ver do Gama o lenho undoso


Já naufrago saltar de serra a serra,
Até que co' a mais Frora de mistura
Entre as ondas encontre a sepultura.

E ii XX.
, ,, : ,,

^v Z A R G U E I D A.

XX.
Do teu Reino nas fundas Cavidades
Fncerra desde já Numen Porenre
,

( Ccmo em dura prizáo ) as Tempesrades ,


Que hão de contrarias ser á avara Geme:
t vós todas Cerúleas Divincisdes
, ,

Assanhai-as cruéis consianiemente


para que mais bravosas , e violentas
Desentranhem terríficas tormcn:»s.

XXI.

Ao Rei , cue prende em ásperas cadêas


Os Euros , Aqnilòes Ausiros e Notos , , ,

Direi,
que aos Ventos soke as prizóes feas ,

A Ventos na braveza ainda ignccos


Se a Sorte prosperar minhas idéas
A Climas do Occidente láo remotos
Sem que seja de todo destroçada ,
Náo poderá chegar a Lusa Armada.
XXII.

Nas Porta»? do Orienre está de guarda


O negro Adamastor , Gigante Informe ,
Cuja pállida cor , terrena , e parda
O faz temivel , monstruoso, e enorme:
A' lerta sempre esta , e sempre aguarda
Com Ígneos olhos, com rancor disforme
Para bravo investir qualquer humano
Que por alli quizer passar insano.

XXI II.
,, ,

CANTO III. e^

XXIII.
Se o Gama for com iucId prore^iJo
Por algum Numen , que me seja opposto ,
Chegando alli de sustos combatido
O esforço perderá e a cor do rosto
, :

Póie ser , que enrão , vendo ao ar erguido


O Gigance na forma descomposto
Se i-.umide , e dê cosras ao Oriente,
Buscando os Horizontes do Occidente.
XXIV.
Mas se este Heróe vencendo ímpias tormentas,
,

E o disforme enormissimo Gigante,


garras famulenias
E-^capaj-ído-lhe ás
Passar do Promontório inda adiante ;
Farei , que nas dos Mouros fraudulentas
Em Moçambique acabe o Heróe Pujante ,
C*Kindo infelizmente nas ci^ada> ,

Que por mim lhe estarão alli tramadas.

XXV.
E se acaso inda vencendo enganos
assim , j
E vencendo traições, que armar percendo , ''

Escapar com seus fortes Lusitanos ,


E tor segunda vez o mar fendendo ;

Tecer-lhe-hei denrre os mais perversos danos


O dano mais fatal , e mais tremendo j
Sagaz Piloto na apparenci* Amigo
Lhe dará dos seus crimes o castigo.

XXVI.
, , ,

•jo Z A R GU E I D A.

XXVI.
Cem estas precauções táo bem pensadas
Talvez possa evitar os ímpios danos ,
Que nas Indicas Terras dilatadas
Iráõ fazer os fortes Lusitanos :

Talvez que escapem minhas Leis Sagradas


Da vil profanação desses Tyrannos ,
A quem destináo Fados inconstantes
Grandes venturas , sólidas , prestantes.
XXVII.
Isto dizendo ; os Numes Neptuninos ^
Entre si longo tempo murmurando
Pareciáo estar contra os Destinos
Com sâcri legas vozes blasfemando ;
O Deos então dos Mares Crystallinos
Das prizôes do Silencio a voz soltando ,
Sem que do rogo ds Lieo se esqueça,
Principia a fallar , e assim se expressa :

XXVIII.
Que pode o Filho do Tonante Jove
Pedir , ou desejar , que cu lhe náo faça ?
Se queres, Thyoneo , que isto te prove ,
Pede outra nova , e mais sublime graça :

O Rei dos Mares , que o Tridente move.


Quando quer ,penedos despedaça ;

E a tanto ás vezes rábido se aiíbira
Que até co* as ondas terra , e Ceos açoita.

XXIX.
: ,

CANTO III. 71

XXIX.
Sim deixa a meu cuidado o ^rão castigo
:

Das , que querem fazer-re , vis aíFrontas j


Ncp uno he Tio teu, he teu Amigo,
Por tal o conta ja , se inda o náo contas :

Promeito maltratar tea Inimigo i

Horrendas Tempestades tenho prontas


Encerradas em Carceie- profundos
Capazes de arrazar milhões de mundos.
XXX.
Se dos antros escuros, em que jazem,
Forem todas a hum tempo desprendidas ,
Os mesmos altos Ceos talvez arrazem ,
Se a quizercm fazer embravecidas
Na9 prjzóes , em que escáo sanhudas , fazem
Desordens táo fitaes , táo desabridas ,
Que mil vezes rompendo o? quicios duros
Tentáo sahir dos Cárceres escuros,
XXXI.
Mas eu que tenho alli por sentinellas
,

Int rmes Mcnstros hórridos em tudo


Caoizes de aiterrar a todas ellas
Com hum só braço seu torre , e membrudo :

Náo receio ,
que, tendo estas cautelas'^
Possáo fazer estrago iniquo , e rudo ,
Sem que as mandem sahir das prizóes feas
E lhes tiriim as rigidas cadcis.

XXXII.
!

•72 Z A R G U E I D A.

XXXII.
Descânçâ , Thyoneo , serás vingado ;
Eu farei , que e>se Heróe , que se destina

A sulcar o meu Campo náo sulcado ,

Encontre a sua mísera ruina :

Temerário , náo vê que a Lei do Fado


Sobre o Numen dos Mares náo domina ,
E que nenhum mortal por mais valente
Tem entrado o meu Reino impunemente
XXXIII.

AK ! socegâ , Lieo , por minha conta


Deixa o punir as pérfidas injurias ;

Sem castigo ráo fique a tua aíFronta ,

Respeite o Gama
de Neptuno as Fúrias :

Da tua parre dolos mil lhe apronta ,


Trabalhos , affiicçóes , penas , penúrias ,
Para que , vendo a Sorte láo coniraria ,
Desmaie nessa Empreza temerária.

XXXIV^
Pelas agoas da Estyge somnolentas
Te juro, qiie esse Heróe, por ti temido.
Ha de ver-se entre horríficas icimentas
Por assanhadas ondas combatido :

F> se da Morte as garras truculentas


Fscapar de algum Nnmen protegido ,
Irá cahir nas garras execrandas
De brutas Feras Indicas , nefandas.

XXXV.
, ,

CANTO IIJ. 75

XXXV.
Mai? não disse: e Lieo , por d ir indicio
Da sua ^randáo, com ar afável.
Reconhecendo o ingente beneficio
Baixa a fionce com modo respeitável :

Tudo alii pa-eceo se'-lhe prrpicio


Já náo teme o ri^or ái S"orte instável,
Porque em auxilio seu náo duvidoso
Tem as Deidades do Elemento undoso.
XXXVI.
Estavão indâ os Deoses assentados
Em bancos de crysral , como he costume,
,, As Deosas em riquíssimos estrados „

Logo abaixo do Throno do seu Nume:


Quando o Profeta , que perscruta os Fados ,
E do Fu'uro lê no gráo volume ,
O silencio rompendo, em que jazia,
Começa desta sorte a Profecia ;

XXXVII.
Tu dizes ó , Thyrsig^ra Deidade ,
Qne por graça de Júpiter honrosa
Vas ser agora a Sacra Divindade
Désst Grande Ilha fértil e frondosa :
, ,

Eu bem sei que a Tonante Magestade


He Grande , Jusra , Recta , Poderosa ,
Porém temo que Pan , o Deos Caprino
,

Se opponha desia vez ao teu Desnno.

XXXVIII.
, « :

74 Z A R G U E I D A.

XXXVIII.
Este Numen por ti com seus Siivínos
]á lançado fora do Oriente ,
foi
Onde viveo com elles longos annos
Como Deos Tutelar da inculta Gente:
Ainda contra ti ódios insanos
Conserva no seu pei:o vivamente
Ainda resenrido desta afFronta
De rancor cheio co'' a viniianca conta.

XXXIX.
Das Indicas Flo-es as desrerrado
Por ,
que
ti eniáo lhe ârma<:te dura guerra «
Correo Fan a buscar seu gazalhado
Nos verdes bo5ques dessa Nova Terra
Alií de hirsutos 6'atyíos cercado
Fm grande gruta hcrriíica se encerra ;
He que o seu Novo Império estende
aili ,

He nestes Bosques ,
que ficir periende.

XL.
A Gruta , trx\ nue elle habita , assas profunda ,

No centro está d hum Bosque ai:i medonho ,

Que em corpolentos cedros tan o abunda ,

Quanto tem de copado, e de trisíonho;


Assombra a triste Cavidade immunda
Hum Negrume Avernal sempre enfidonho ,

Táo cerrado 5 láo lúgubre, táo feio,


Que nunca deixa perscrmar-ihe o seio.

XLI.
: , :

CANTO III. <sn

XLI.
D'hum lado , e doutro lado estão rochedos
Pendurados alli de immensa alrura
Coberros de Silvestres arvoredos ,
Que e?palháo huma sombra sempre escura
Alli por entre desi^^uae? penedos
Em grossos borbalhóes límpida, e pura,
Tombando d'alco cahe da gruta perco
Agoa sempre em confuso desconcerto.
XLII.

O
Semicâpro Deos alli vacando
Por valles , e por montes infinitos
Conduz sempre apôs si lascivo bando
De cornigeros Satyros âuritos
Ora montes descendo ora trepando
, ,

"No mar os olhos seus tem sempre fíros ,

Com temor de que alguém ainda o prive


Do socego , em que alli Contente vive.
XLIII.

Vive o Numen Caprino acompanhado


De montanhezas Dryades lascivas ,
Que no centro do Bosque emmiranhado
Andao sempre em corêas md Festivas :

^^luitas delias d'hum lado, e doutro lado


Fogem alli dos Satyms esquivas ,

Mas da Lascívia as chamas ateindo ,

5, Se deixio ir dos galgos alcançnio. „

XLIV.
,,:

76 Z A R G U E I D A.

XLIV.
Muitas delias em banhos de agí>â puri
Lavar se deixáo nas mais moles sestas.
Em (]u?nfo dentre arremula verdura
Erguem os Faunos as bicorneas testas
Tal ha , que , vendo canta formosura ,
^aha dentre as frondiferas Horestas ,
E surprendel.'as vai, porque náo tarde
5, A matar n'agoa o fogo , x|ue nelie arde. ,3

XLV.
Entre tantas delicias Pan vivendo
Cem os seus torpes Sa.yros biformes
Que lhas roubem esiá sempre temendo,
Armado alli de precauções disformei:
Ha de ó Namen Thyrsigero , em te vendo
Cruel tecer-te en-áo traições enormes,
Ha de , sim , com seus Satyros crinitos
Tecer-te Insano dolos infinitos.

XLVI.
Este bicórneo Deos moni-vas^anre
Conserva contra ti hf^m ódio anrigo
E quando aiii checares peulanre ,
Te negará na incuiia Terra abr;go :
Convém pois , ó Lieo , que neste instante
Contes com este pcrtido inimigo ,
Que abrazâdo em rancor, ardendo em fúria,
Náo quererá soíirer segunda injuria.

XLVII.
;

Canto in.
•'
77

XLVII.
He terrpo ainda , he tempo de cederes
Da eirpreza , a Que de novo te desclnas
Deixa , c]'je Pan alli goste os prszeres
Dos seus boíq':es, seus mentes, e campinas:
Náo lhe queiras roubar os seus p. deres i
Vê 5 de novo hum Numen amofinas,
<)ue
E que pode ser , que e!le irritado
jncía
Procure meios de se vêr vingado.
XLVni.
Mal acabou Protheode Ni^a o Nume ,

Abrazado em furor, em ira arderdo ,


Flamejando dcs clhcs vivo lume,
Solta do peiro a vez , assim dizendo :
5e o caprí-pedo Fan zombar presume
Do Ceos , Filho de jupirer Tremendo ,
Engana-se, porque eu , por vêr-me pago ,
Farei , que elle entáo sinta duro estrago.

XLIX.
Que direito rem Pan á Terra inculta ,
De que Jove meu Pai, me fez a graça?
Jii que este Deos monti-vago me insulta ,
Sinta pois sua mism desgraça :

Saberás , ó Nepruno , o que resulta


Da minha sem igual f/ rte ameaça;
Da Deidade Corni-gera Caprina
Verás cedo a tristisòima ruina.
, , , , ,

yg Z A R G U E I D A.

L.

Este Numen Lascivo em fundas Brenhas


Seu Império fundar somente deve ,

Onde cobertas tra^a as hirtas grenhas


De chuveiros brumies , de fria neve :
Denrre escarpadas rochas , altas penhas
Nem lhe cumpre sahir por tempo breve.
Pois pode accommetter pelas Florestas
As engraçadas Diyades honestas.
LF.

Fm quanto a gentil Ilha inhabiradi


Esteve ,
pode Pan existir nella ,
Porém logo que seja povoada
Fóde o Eiccrneo Deos deixar-se delia :
Quando náo eu farei , que incendiada
Seja hum dia a grande Ilha amena , e bella
Só porque a viva chama a Pan incite
A buscar outros Bosques , em que habite.

LU.
Por Júpiter , meu Pai ,
proreçto , e juro
Que se Pan oppozer aos meus intentos
se
O estrago senciíá mais ímpio , e duro
Que se vio atéqui de pensamentos
:

!Náo, náo mudo, ó Pr.theo ; quanto asseguro.


Centra Pan em brevíssimos momentos
Aerás executado, se com tudo
Este Deos se oppozer a mim sanhudo.

LIIL
, ,

CANTO Iir. 7f

UII.
Té farei , que essa Máo , que os Astros move,
5epulre nas profundas cavidade^
Do negro Reino do Taríareo ]ove
A Pan ,as mais Cornií;erâs Deidades:
e
Té farei
, que eíte Numen âlli prove
Por castigo da pérfidas maldades
Tormentos Infemaes , bem como Ticio
Está pigando da Lascivia o Vicio.

LIV.
Ah! perdoa 5 Nepruno , se excedido
Tenho aos limires d'hum Dever S;ígrado ;

Eu seiquanto respeito te he devido,


Ma? eu e3'Cu por Fúrias assanhado :

Hum Numen , que se vè doutro ofFendido,


Ivazáo tem de dar mostras de enfadado ,
E muito mais Líeo , a quem ofFende
Hum Deos , a quem nenhum culto se rende,

LV.
Apenas isto disse , então se ca'a,
Supprimindo no peito a voz queixosa
Donde de qu»ndo em quando afflicto exhala
Respiração convulsa, e dolorosa:
Rancor faminto o coração lhe rala ;

Do rosto a cor se torna luminosa i

E os olhos , scintillando vivo lume


Espalháo labaredas cm cardume.

LVI.
So ZARGUEIDA.
LVI.
Nepruno por domar de Baccho as irâs

Faz s nal ás flucti-vagas Donzellas


Para que aos sons das concertadas Lyras
XTnáo as vozes magicas , e bellas :
Com sendae:. recamados de safiras
Estaváo adornídas todas ellas ,
E com fios de pérolas brilhantes
Ornaváo as Cabeças elegantes.
LVII.

Nisto soão das Lyras brandam.ente


Os delicados sons, que a Baccho encantão,
E as formosas Nereidas docemenie
i\s puras vozes músicas levantáo :

Fm honra de Lieo em tom cadenre


Engraçadas Canções sonoras caniáo ,
Com que Baccho de gosto transportado
Tioca o vivo furor em terno agrado.

^
LVIII.

Para mais encantar Lieo, cantarão


A Invenção do Licor , que anirna os peitos 5
Cepois com. vivas vozes entcáráo
Os , que elle fez na índia , Heróicos Feitos :
Inda acima dos Astros levaniáTao
Seu Necrar , e seu Ne me ao Mundo acceitcs.
Rematando o Louvor , como he costume >
Em ires vezes baixar frentes ao Nume»

LIX.
, : :

CANTO III. Si

LIX.
Nas de crystaí abobadas lustrosas
Longo tempo soarão os accenros
Das melliRuas vozes sonorosas 9
E dos suaves doce? Instrumentos
Que divinas Canções harmoniosas !

Que bem desempenhados pensamentos !

Nunca atém Nereidas tentadoras


Se mostrarão tão célebres Cantoras.
LX.
O Filho de Semeie em doce enredo
Do seu rancor , e até de si se esquece ,
IVlostrândo apenasno semblante ledo
Hum riso affavel , que prazer parece :

Neptuno então rompendo o seu segredo


De novo a Baccho este elogio tece
Estas honras , Lieo , te sáo devidas ,
E a bem poucos por mim sáo concedidas,

Lxr.

Rogo-te pois , que inda que seja hum dia ,


Te dignes de ficar aqui comigo ;
Eu prometto fazer-te companhia
Até essa Grande Tlha irei comtigo ?

E se Pan com culpável ousadia


Te pertender negar na Terra abrigo ,
Para láo grande ultraje castigares
A teu lado terás o Rei dos Mares,

LXIf.
: : , ,

li Z A R G U E I D A.

LXII.
Assim disse e do Throno Crystallino
:

Segunda vez a Paccho a dextra dando ,


Cem hum ar carinhoso, mas divino
Da ^a!a ao pavimento foi baixando
As Dííidades do Reino Neptunino,
Jícroros vivas com prazer soltando
Em louvor do Pampineo Dcos Thebano
Seguem o Seu Monarca Soberano.
Lxiir.

Por muitas Regias Salas discorrendo,


Seguidos da Marítima Assemblea
Vão Neptuno , e Lico , que então vai vendo
Peilezas , com qtie todo se glorea :

Nos áureos quicios com fragor rangendo


Fburnea porra se abre, e patenrea
Magnifico Jardim , que attençáo pede,
E áquelle das Hespérides náo cede.
LXIV.
Os longos airos muros que o cercavão ,

Fráo todos d hum jaspe prateado;


Dois g»^andes Monstros hórridos guardavão
Este Jardim d'hum lido , e doutro lado
Aos mesmos Deoses , quando relle entraváo ,

Por Neptuninas Leis era vedtdo


O colher qualquer fior , ou quaíqrer fruto,
5em que cahissem n'hum comrriisso bruto.

LXV.
, , ,
:

CANTO III. «I

LXV.
Sobre grossas columnas auri-puras
Ornaváo o Jardim maravilhoso
Diversas emblemaiicas Figuras
Fabricadas de mármore lustroso :

Por entre as sempre floridas verduras


Ostentavão hum quadro precioso
Táo sublime , tão magico , táo bello
Que parece encantar quem chega a vêllo.
LXVI.
D'hum lado se estão v^ndo de máos dadas
Em tripbce Corea encantadora
As ternas Companheiras engraçadas
Da Formosa Dione tentadora :

De grinaldas de rozas coroadas


Mimo, que lhes fizera a casta Florâ ,
em mimoso amplexo
Alli figurão
Do desvelado Amor o estreito nexo.
LXVII.
A IH
se vê também posto defronte
O Filho de Liriope vaidoso
No puro espelho de sonora fonte
Admirando o semblante seu formoso
Pouco distante está de erguido monte
No seio, que apparece cavernoso,
A Ninfa convertida em penha dura
Pela Narcissca esquiva Formosura.

F ii LXVIII.
, ,, : ,

^4 Z A R GU E I D A.

LXVIII.
Doutro kdo se avista convertido
Em cornigero cervo desgraçado
O Filho de Aristèo , porque atrevido
Diana vè no banho prateado :

Do crime da Líscivia a>sim punido


He pelos próprios cães dilacerado
Enrreí^anto que a Deosa das florestas
Se banha entre Hamadryades honestas.
LXIX.

Alli vè tâmbem do lado opposto


se
.A Diva, que do Fspumeo iMar nascera,
Fm cujos níveos braços está pcsto
O Wenino que até nos
, Ceos impera
"Na dextra face do mimoso rosto
Da sempre Bella Deosa de Cithera
Os lábios seus o remo Filho imprime,
Mostrando que a ternura náo he crime.
LXX.
"Neptuno então , com Baccho passeando
Lhe mostra as producçôes , que a Natureza
Alli também cultiva , e que admirando
Vai Lieo com subtil delicadeza :
Acha íili , mil perfumes exhalando
Raras flores na graça , e na bellcza jj
Acha frutos de rara formosura ,
£ plantas de frondosa vestidura.

LXXI.
, ,

CANTO III. Sç

LXXI.
Depois de lhe mostrar as exceílentes
Bellezas natarâes , que a Baccho enleão ,
Passa a mostrar-lhe os campos transparentes Í
Que o<? gados escíimi-geros va^ueáo :
Campinas , valles , montes diííerentes
Co' as Divindades húmidas rodeáo ,
Té que váo dar nas grutas cavertiOdas >
Que habitáo Tempestades proceliosas.
LXXII.
Bem como nos ergástulos immundos ,
Em que Feras os Príncipes encerrão
Leóes sanhudos , Ursos furibundos
D'hum lado fremem , d "outro lado berrão ;
Assim também nos cárceres profundos
As Tempet^des , que ás prizóes se aíFertáo ,
K a cujo movimento os mares tremem ,
D'hum lado berráo , d'outro lado fremem.
LXXIH.
Nas gruías , em que Hippótades grilhôl
Os assanhados revoltosos ventos ,

Hum táo medonho estrépito não soa


Nem se escutâo fragores táo violentos :

Das Tempestades o motim recrôa


Das Cavernas nos antros turbulentos
Com mais forre estridor , mai:í infinito ,

Do que o das 1'arias no Avernal Cocito.

LXXIV.
: ; ,

t6 ZARGUEIDA.
LXXIV.
D*âíli pâssâ a mosrrar-lhe as grutas bellas
Em que habiráo as húmidas Deidades ;

Reluziáo alli em rodas ellas


^il conchas de diversas qualidades
Alfaias natnraes ,
graças singellas
5e encontrão nas marinhas cavidades;
Só de auríferos limos eráo feitos
Os destes Numes sumpruosos Leitos,
LXXV.
Ki«!to a Baccho fallou de«;ra maneira
O Maririnrio Rei : Numen Thebano ,

Tenho dado huma prova verdadeira


Pe que sou teu Amigo puro, e lhano :

Sigamog pois agora a mesma esteira


Voltemos a meu Paço vSoberano ,
Onde acharás de novo (se quizeres)
Inda não vistos Divinies Prazeres.
LXXVf.
Di^se : e as salsas estradas retrilhando ,

Aos Régios Paços Neptuninos chegáo ,

Onde a Prazer« mágicos em bando


De novo os Deoses Immortaes se entregão:
Em quanto isto acontece , o mar cortando
0=: Lusitanos prr)<;peros navegáo ,
E Zargo lá comsigo só consulta
JVIeios de descobrir a Terra inculta,

Fim do Cauto Terceiro.

CAN-
,

xxxxxj<^xxt^ *Ti<xx.t^ *rxxxxx>cx>o<T*

CANTO (QUARTO.

ARGUMENTO.
A^A jtindo o Lenho Luso na enseada
De Ligas , donde Zargo , alienas chega ,
p^ai informar da Terra inhabitada
Ao Grande Henrique \ Zar<^o se erjca^reç^4
Do se fá Descobrimento : aos ventos dada
A (juilha , o Luso Heróe ao mar se en*rega
j
E en^io coma , ao sulcar do Tejo a vêa ,
A fmdach da Célebre UHysse/i,

I.

i^O míis tiro do Olympo descânçavão


Os foí;o?os flammi-feros Ethonces ,
Qje o Plaustro de Titán leves tiraváo
Falindo do Orienre aos horizontes :

Quando pouco distantes se avismv.ío


Do Al^arv^e claramente os alro? montes
E La2;os offertava em porro Ami?,o
Ao Claro Zargo carinhoso abrigo.

11.
,

U Z A R G U E I D A.

11.

Fnfunâvão í3o Lenho brancas velas


as
Sonoras v*iraçôes , frescas soprando ,

E Morales entáo , por não perdêlias ,


De linho as azas solu ao sopro brando:
Sem que se arme de limidas cauiélas ,
O Pomi-gero Algirve costeando ,
De Lâ^os entra a plácida bahia ,

Soltando aos ares vivas de alegria.


III.

Omar da tenaz ancora ferido ,


Entrando pela proa , ao convéz salta ,
Que de globos de espuma guarnecido
Parece que de pérolas se esmalta :
,

Do Lenho pela amarra suspendido


„ Tomão as velas , tmaina-se a verga alta , „
E porque o férreo dente a área ferra ,
Vai Zargo com Morales logo á terra.
IV.

Vamos, vamos ( lhe diz ) ao Sábio Henrique


Informar da Grande Ilha ; e que eu pertendo ,
Porque assim minha gloria immorul fique ,
Tentar a Descoberta o mar fendendo :
Que porque o meu valor se justifique ,
Perigos enormíssimos vencendo
Me deixe ( Jhe direi ) tentar a Empreza ,
A que me chama Heróica Fortaleza,

V.
,
, ; :,

CANTO IV.

V.
Saberes que este Heróe assiduamente
Se embrenha em Marhematicos Esrudos ,
E que delles traz prenhe a Sabia Mente,
De que nascem Juízos sempre agudos
Rlle sabe prezar constantemente
Engenhos perspicazes , e não rudos
Huma vez qne te veja , e te conheça
Veras tua ventura , e bem depressa.

VI.
Vás hoje conhecer , Quem noite , e diâ
Trabalha pela Gloria Lusitana ,
Desejando estender a Monarchia
Ainda além da Terra Ting.itana :
Pela sua Immorcal Sabedoria ,
Que parece exceder a força humana ,
Se tem fdito Immorcal; ah! vamos vêilo,
A ventura terás de conhecello.
VII.

Tu mesmo informarás o Douto Infante


Da Nova Terra inculta e destemido ,
;

Porque lhe dês de amor prova bastante ,


Te o meu partido
ofFerece a seguir :

^^^nhecendo teu animo possante


Teu sublime valor , zelo subido
Saberá premiar ( como costuma , )
O Grande Heróe tua cora^íem summa.

VIII.
; :

9» Z A R G U E I D A.

VIII.

Assim Zargo , em quanto a estrada


dizia
rizava com Moraies animoso ,
Buscando a insigne V^ilia , que fundada
Foi pe!o Ínclito Infante F.studioso :
Cheg.inio em fim á esplendida Morada
D^Henrique , Marhemarico Famoso,
Por eUe com carinhos desmedidos
Forão Zâígo 3 e Moraies recebidos,
IX.

Excelso Tnfmre , ( Zargo principia


Des:a sorte a faliar ) aqui te trago
ílum Piloto , q']e t-^do , o que annuncia ,

Requer tua atenção, meiguice, e afago:


^Ho quero premio de maior valia
Com a vida arriscar me dou par pago ,
Deixa Zargo , que aíFoi^o os mares sulca ,
A Terra demandar , que elie te inculca.
A.,

^lal acaba , Monles animado


Das vivas expressões ,
q-ie Zargo anima ,
Beija a Dêxcra d^Henriqiie Celebrado ,
A Quem só pule da Viriude a Lima
Quanto Z3ríj;o lhe rinhn insinuado
Ao Sanro Infante com
facúndia intima ,
Rogando-lhe , que o deixe unido a, Zargo
A terra procurar pelo mar largo.

XI.
:

CANTO IV. 91

XI.
Quando Henrique Morales escurava ,
a
Reçia t Noire o taciturno Impírio
Das somnolentas sombras , que espichava ,
E em que envolvia o lúcido Hetrâ^fefio:
Sobre o sen Carro d''ébano trilhava
Logo abaixo do Olvmpo o espaço aerio ,
E Cynthia como em languidos desmaios
iÃpenas espargia frouxos raios.

X!I.

Fntão o S^hio Infante , de^a^ando


Do peito a Regia Voz , diz deste modo :
He juçro que essa Terra dím;indando,
,

Da ne^ra Rscuridáo se roube ao Lcd > :


Vai , Zargo , as ondas do alro mar rasgando ,
Essa Empreza tentar se o mundo todo
:

Podesses descobrir , com que a'egria


Tuas Grandes Acções premiaria !

XIII.

Tu és Aquelle Ileróe , que hoje mú-, prezo,


E Oigno da Acção , que ousado intenras
assas ;
FJuma Ftçanha tal tem tinto pezo ,
Que s6 tu , Forte Zar^o , he qie a sustentas
Do Parrio Amor nas chamas sempre accezo
f^e Fei'"03 immortaes s6 te alimentas ;
Com iVIora^.es apôs d*incliti Glorii
Vai-te Oi^no fazer d'alca memoria.

XIV.
, , ,

92 Z A R o U E I D A.

XIV.
Apenas de Tirán a Precursora
Os seus áureos cabellos sacodindo ,
Vier sobre os Jardins da gentil Fiort
Crystallinos aijofres esparzindo ;
ÍNobre a Quilha dos mares cortadora
Vá Zargo as salsas ondas dividindo ,

Té (jue entre a foz do Tejo , e alli me espere


Porque os intentos seus melhor prospere.
XV.
a Dextra Mão do Augusto Infante
Beijando ^
Com Ordens por elle decretadas
as
Vai Zârgo procurar o Pinho undante ,
Retrilhando veloz ermas estradas :
IndA envolvia a Noite vigilante
A Terra em vagas sombras desmaiadas ,
Qu.indo este Heróe , chegando ao Lenho leve >

Vianda tudo aprestar em tempo breve.


XVI.
Com ruidosa voz de prazer cheio
Griía , e diz : Levem
ancora ligeiros ,
Dera-se velas aos ventos , porque creio
Que a Aurora cedo mostra os seus Luzeiros.
Do concavo convéz posto no meio
C« m
vozes animsva os marinheiros :

Ouv"a-*:e ao mover do Cabrestante


A Náutica Coleurru dissonante.

XVII.
: , : ,,

C A N T O IV. 95

XVII.
Mostrava a bella face luminosa
Da Terra , e de Tiu'n a Clara Filha
Quando já fresca aragem bonançosa
Wovia pelo mar a curva quilha
De Neptuno a Campina marulnosa
De novo o cavo Pinho ouzado trilha ?

E co' a proa pareceque desata


,

Longas correntes de espumante prata,


xvin.
As V(rla? enfunadas parecião
Desdenhosas zombar dos limros ares ,
Quando os raios de Febo se estendião
Na cerúlea extensão dos crespos mares
Os Nautas ao Prazer, cue enráo sentião ,
Dentro em seus Ccraçces erguem íhnres
Pedindo aos venrcs e ?'s rrcpicias velas
,

Que os levem do aure© Tè;o ds m.argens bCiias.


XTX.
Quatro giros em tcrro no mundo inteiro
Tinha feito o Awídor de Larissea
Quando do flavo Tejo Lisonjeiro
Sangrava a Quilha undosa a clara vêa :

Por ver o Illustre Capitão Guerreiro


A torreada freme ergue Ulyssea ,
E abrindo os braços seus mostrar procura
IvAiL que ao longe a W
cremai ternura.

XX.
: , ,

94 ZARGUEIDA.
XX.
Vem , FilKo meu ( dizia ) nos meus braços
>

Descançar cas fadií^as , que tiveste


De Neptuno no; liqnidos espaços
Fm quanto nesse Pinho o mar fendeste :
Da Maternal Ternura em doces laços ,
Em que outro tempo por prazer vivesfe,
Vem viver algum tempo, ó Filho Amado,
Gozando em paz dhum carinhoso agrado.
XXI,

As Tágides aqui te estáo tecendo


Coroas de jasmins , myrtos , c rozas ,
Para adornar-te a frente , em que pertendo
Vêr ainda Coroas mais honrosas
O Tejo do seu Leito te está vendo
Com vistas Paternaes , vistas saudosas j

Vê como ,
para vèr-te , a frente altêa ,
E a cabeça musgui-fera menêa !

XXII.

Vem adoçar o amargo da Saudade ,


Que por ti sente o Tejo venerando;
Esqueça por hum pouco a Heroicidade
Que a emprezas immortaes te está chamando i

Com carinhosas mostras de amizade


Te estamos , Caro Filho , convidando ,
A nossos braços com prazer te lança
Em nossos brados com prazer descança*

xxin.
, ,, , , ,

CANTO IV. 95

XXIII.
Fis que se cíla o Tejo , que escutava
,

Tudo , quanto Ulycsea proferir ,


D'hum Tritão nas espaduaí? se firmava
F air^da acima d'agra a resta erguia :

Ver<do-]he a frenre excelsa , que adornava


^urea Coroa , Zirzo assim di2Í3 :

Salve , Tejo Feliz, Tejo Fecundo,


Tua Gloria a maior será do mundo.
XXIV.
Fm c;uan"o está Vâo do .^olio Augusto
Fegertdo ís rédeas d'lium Govetno Santo ,
F^palhando o terror, o meço, o fusto
Em Africa ferr? cem vivo espanto:
Henrique , o Filho 5eu , C( nstante , Justo ,

Cujo Alto Nom.e tu reípriras tanto.


Incansável q' er dar-re o v^cnV.orio
De novos mindos , ó Amável Rio.
XXV.
Deixa viresses sécu'cs futnros
Oue em douradas prizces trazem os dias
Que háo de ser para ti aurecs , e puros ,
Tecidos pelas rráos das Alegrias:
Deixa-os sahir dos cárceres crcurrs
Fm que os prendem do Tf rrpo as mãos soir.b;ias
Fntáo , eniáo verás , ó Tejo Lc uro
Renascer para ú a Idade de ouro.

f
^r XXVI.
: ,

9â ZARGUEIDA.
XXVI.
Em quanto assim dizia , o cavo Pinho
Fnrrava a rica foz do Tejo ufano ,
Er."<»^damenre estendendo azas de linho
Sobre o das a^oas cryçtallino plano
Brilha nos copos o pnrpureo vinho
Invenção Divintl do Deos Thebano ,
Bebem os Nauras , claros vivas soáo
De Zargo em honra , com que as praias troão.
XXVII.
D*hum e d''outro as Tágides brincando
lado ,

5cbre as húmidas , colhião


áreas
As prateadss conchas , que espraiando
Offerrar-lhes as ondas parecião :

D'hum lado , e doutro as Tágides em bando


/s finas ve«tes cândidas despião ,

Por se banharem nas cerúleas agoas ,


Onde accendia Amor ardentes fragoas.

XXVIII.
Favonio , que enráo plácido respirsí ,
Brincardo apds das X^^iraçóes serenas
Do Tejo pelos Csmpos de Safira
Cuia o Lenho, soprando-lhe as antennís:
Wcrales , que se espanta , e q'ie se admira
De ver as margens do áureo Tejo amenas ,
'Kcmpe o Silencio, e diz: Illusrre Zargo >
Tira-me dsste extático Letargo.

XXIX.
: , : ! .,

C A N T o IV. 97

XXIX.
De qnânto avisto, e que com pâsmo vejo,
Nunca fiz atév]ui tiecente id-^a

He e<tc pois o celebrado Tcio ,

Qae amante beija as plantís de Uly^seâ ?

De doce assomnro e de prazer sv.bejo ,

Cheio o meu Coração , minha Alma chei


Náo pedem contemplar ranra belleza ! . .

Oh bem! haja , bem haja a Natureza

XXX.
He este , sim , que vès , Rio Pomposo
( Zar^o responda ) o Tejo decantado ,
Que com arêas d'ouro precioso
Paga justo tributo ao Mar ssÀgado
He este o Padre Tejo Glorioso
Pelas suas riquezís invejado :

E Aquella,
que vès , Emula de Rema
D'Uiysses Im.mortal o Nome toma.
xxxr.
, Esse
UIys«:es Grego Heróe Facundo
Ulysses , Esse Heróe d^incliia gloria ,
Cujo Nome foi Célebre no mundo ,
E tanro lustre dso á Grega Hi>torit:
Depois de longos tempos vagabundo
Fazer-se dií^no de exemplar memoria.
Foi quem fundou a Célebre Cidade ,
De que ce admira a Regia Magestsde.

xxxa
,:

9S ZARGUEIDA.
xxxir.
Em quânto pois o Lenho docemente
Abre do Tejo as ondas aniladas
E Ulyssea nos mó;;íra a Augusta Frente
Cingida de mil torres levantadas
O' Morales , e^cuti afentamente
Denrre as acções de Ulysses decantadas
A mais sublime acçá-o , que a vaga Fama
Com cem trombetas pelo mundo acciair.i.

XXXIII.
Ulysses , Esse Heróe Industrioso ,
Eloquente , isagaz . Perito, Agudo,
Da Constante Penélope era Esposo ,
Penélope , q< e foi Famosa cm tudo :
Foi hum dcs Gregos Reis , que astucioso
Por vingar Meneláo , punio sanhudo
Do Adultero Troiano a torpe insânia,
Incendiando a mísera Dardania.
XXXIV.
Destruída de Priamo a Cidade ,
E transformada em hórridas Campinas ,
Onde em vez de belleza , e Magestade
Só se avistaváo cinzas , e ruinas :
Seguindo Agamemnon na heroicidade,
Com elle fende as ondas Neptuninas,
Quando o destináo já Fados seguros
Para erguer de Ulyssea os altos muros,

XXXV
,, , ,

C A N T o IV. 99

XXXV.
Em destroço fatal Tróia deixando ,
Atravessava o Pélago espumante ,
A que deo nome eterno , e miserando
A Desgraçada Filha de Athamante:
Os Gregos Estandartes , ondeando
Aos sopros d-huma aragem respirante,
Pareciáo beijar , e com ternura
Da infeliz Helle a triste sepultura.

XXXVI.
Viâo-se apenas os Dardaneos Muros
De fumegantes cinzas carregados ,
Aquelies, que mostraváo ser seguros
Contra a fúria do Tempo , e até dos Fados ',

Quando a Frota dos Gregos Pinhos duros


De bandeiras , e flâmulas ornados
Para Tenedo as proas inclinava
Porque alli tomar porto desejava.
XXXVII.
D'al!i cortando o golfo tormenroso
,

Deiáo as Gregas Náos velas ao vento.


Do Asiático Mar o seio undoso
Abrindo com estranho atrevimento :

Víráo depois o Tánais sinuoso


As ruas agoas d^r ao salso argento
Como que está por ordem do Destino
De guarda ás porcas do alto Mar Euxino;

G ii XXXVIIL
, , ,,

ICO Z A R G U E I D A.

XXXVIII.
Acoçidas d^Korrivel Tempestade
Os bárbaros Ciconeos Pcvos vírâo
A ferocidade
cuja vil brutal
Enfiadas de susto então fugirão :
Em Lemnos , Singular na amenidade
Por breve tempo plácidas surgirão ,

Onde co' os torpes Cyclopes trabalha


O Coxo Mestre , que na safra malba.
XXXIX.
Fgêâs ondas indo já fendendo,
Sobrevem contra as Náos em crna guerra
Medonho Terrporal , forte e tremendo , ,

Que parece abysrr^ar mares , e Terra :


Amaras ondas naufragas bebendo
Confusas vagão já de serra em serra.
Té que , dos altos Ceos baixando , Juno
Desperta em seu favor o Deos Neptuno.
XL.
Na Grínde Ilha de Sciro então surgindo
Aquellas Náos ,
que aos ventos escaparão ,

O mar co' graves ancoras ferindo


as
Das naufragas fadigas descarçáráo:
Quietas , e pacificas dormindo
Sobre o ferro tenaz , que ao mar lançarão ,
Deixâo CS Gregos as cerúleas Quilhas ,
Para verem de Sciío as maravilhas.

XLI.
, ,

C A N T O IV. loi

XLI.
Foi alli , oue em miisí:osa Lspa hum dia
O Fa^idico v^ace Nep unino
Ao que dormia,
Filho de L?.ertes ,

Fez V'*^r a^ Leis do Provido


Destino :
Dis^e-ihe então, que cedo fundaria
Sobre a margem dhum Rio crystallino
Cidade Augusta , para q'Je floreça
De novo Império Singular Câorirã,
XLII.

D'ai!i sahindo Náos , vento sereno


as
O panno lhes bafeja docemente ;

Dos Lotopha^os deixa o Porto ameno


Uiysíes animando a Cire^a Genre
, :

Atravessa esforçado o Mar Tyrrheno ,


E vence en'áo depois com força ingente
O Pastor bruto oo Sicaneo Monte ,
Que hum olho tinha só na bãça fronte.
XLIIÍ.

Vence os encantos da formosa Circe


Por quem foi com meiguices hospedado :

Do V20 da Humanidade sem desp;r-se,


No Averno he de Anticlea aconselhado :

Despede-s2 da Maga , e quer partir-se j


Fdla , que o rinha ternamente amado
Fazendo sacrifício ao seu desc)o ,
,, Lhe ensina os mares , onde morre o Tejo. „

XLIV.
,

101 Z A R GU E I D A.

XLIV.
Fendendo o mar Tyrrheno as Náos veleiras
Em quanto fica Circe pranteando ,
Pafpiadas de aragens lisonjeiras
Víráo o Tibre pelo mar enfando :
Fis f^chre as tristes Náos aventureiras
Vrm horrivel procella desabando ;
F í brindo bocas mil , os mares bravos
Pcnendem engolir os Pinhos cavos,
XLV.
/coitados das ondas, e dos ares
^^írão de Scylla asfauces vorsdoras ,
Oiie quando
, sorvem ondas â milhares ,
Fnçolpm altas Quilhas nadadoras ;
A^cmirando em cachões mil grossos mares
Pe Carybdes as fauces tragadoras
Também víráo. . . ( Que vista táo maldita !
)
Quando huma sorve , a outra entáo vomita.

XLVI.
Das Sereas vencendo o doce accento
As Ilhas Estoéchades vencerão ,

F do Rhód;no bravo, e turbulento


A<^ correntesindómitas beberão:
\'íráo Massiliado salgado areenro ;
Do fbéro as a^oas rápidas fenderão;
Passarão pelo Fstreito Gaditano ,
Onde tremem de ouvir o Heróe Thebano.

XLVII.
, , , ,

CANTO IV. loj

XLVII.
A' voz de Alcides , que nos ares troa,
Esiremece de susto a Grega Genie ;
Nas cavernas maricimas resoa
Da Herciilea voz o estrépito vehemerite :

Mas dando a Ulysses huma nova boa


Eis fende a Frota a liquida Corrente
Da Lusitana Costa , atrás deixando
O Bethis , seu tributo ao Mar pagando.
XLVIII.
Arrostando trabalhos cento a cento ,
Assaltado d'horrisonas procellas , -
E exposto ás fúrias do implacável vento
Que lhe tragou antennas , mastros , velas ;'

Com que doce feliz contentamento,


Chegou do flavo Tégo ás margens bellas
Aquelle Invicto Heróe , Heróe Supremo
V^encedor té do próprio Polifemo !

XLIX.
Vio aqui grande Garça levantada
Que mais veloz, que o vento, o ar abrit,
E apôs delia voando accelerada
Real Águia, que altiva a perseguia :
Foi encáo , que elle achou realizada
De Pròtheo a pasmosa Profecia ;

E que , lançando ao fundo o férreo dente


Desta sorte fallou á Ar^iva Gente;

L.
, ; ;

104 & A R G U E I D A.

L.

Aqui se acaba , Amigos , o fadário ,


A qne nos enrres^ou Sorte inconstante
Afe não temamos do Elemento vario
Ô-^domito furor hoirisoname :

Se 6 Fado se mostrou téqui contrario,


Foi por provar meu animo crnsrante;
He este o Porro , a que elle nos guiava ,

A pezar do ri^or da sorte brava.

Aqui devo erigir Cidade Augusta,


Porque a<:sim determina Immovel Fado,
Ou s^^a jnsra a Lei, ou seja injnsra,
Náo devo resisir, inda que ousado:
A Fmprezâ he grande , porém náo me assusta
Vou tenrallâ com animo esforçado :

Fia, Amigos, lancemos máos á Empreza ,


Mosire-se ao Mundo a Greea Fortaleza,

LII.

Deixando então as Náos , que a somno solio


Dormem sobre as amarra? com sccego ,

Em suave prazer de todo envolto


Já piza a Lusa Terra o Sábio Grego :

Pela Gloria seu animo revolto


E de seu Esplender ornado , e cego
Principia a eri^^ir fortes , e duros
Da Grá Cidade os invencíveis muros.

LIII.
:, , ,

CANTO IV. lOS

LIII.

Foi el1e o que primeiro abrindo a terra


Para anirrar os Gregos, que o seguião,
Humâ Cabeça humana desen^e-ra ,
A viííta os Gregos se arripião
cuia
O myrterio fstal , que alli se encerra
Enjáo s-^ber confusos pertendião ;

A Cabeça era alll como animada ,


E junco de si rinha aguda espada.
LIV.

Eripilo Agoureiro Ti quem disse,


0'ie , onde aquella Cabeça tinha a cama,
'"

Queí-iáo Sacros Fados se eri?,isss '-

Nlonarchia immortal de eterna Fima.


Outros muitos successo? m»is predisse.
Com q^e do Grego o espirito se infíamma,
E animando inda mais a Gente sua
A erigir a Cidade continua.
LV.
Hum dia , quando o Sol da excelsa altura
Do Oíympo espalhava ,
vivos raios
N^huma gruta enraivada em rocha dura
Perto do Tejo Ulys^es de^cançava :
Huma onda apoz outra a!Ii mnrm.ira ,
F> o Grea;»), que estas coiisas contemplava ,
Aos trabalhos sollciros se ne'^a ,

E aos br:ços de Mcrfec sua almí: entrega.

LVÍ.
, , ,,

lod Z A R G U E I D A,

LVI.
F.ntãoo Padre Tejo, alçando a frente,
Qae encostada tem sobre arêas d*ouro
Sobe ao cimo da liquida corrente ,
Em cuio seio encerra o seu ihesouro:
D'alli LJlysses vio distincitmenre
E então quiz com fausto agouro
falia r-Ihe ,

Eis ordena a Trieão , que o búzio toque


I^orque as Deidades húmidas convoque.

LVII.

Apenas em fseu Paço se ajuntarão


Os marítimos Deoses , disse o Tejo :

Eu iei , que inda ha bem pouco aqui chegarão


As Nãos de Ulysses , cuja gloria invejo :
Este Famoso Heróe , que os Ceos amparão
Comvosco , ó Deoses , visitar desejo ;

Accmpanhai-me pois, ah! vinde velío ,

Verei) como he gentil , galhardo , e bello.

LVIII.

Nunca ao Tejo hum táo Incido vestido


Pendeo das áureas nítidas espaldis !

Era todo de aljofres guarnecido ,


De pérolas , rubins , e de esmeraldas :

Delicado frânjâo de ouro tecido


)'.m tomo lhe adornava as soltas fraldas
E na frente , que as brancas prateaváo ,
Ramagens douro es ventos embalaváo.

LIX.
, : , ,

CANTO IV. 107

LIX.

As DciJadcs também todas traziâo


Riquíssimos vestido<; roça^an^es ,

Onde entre mil safiras rel''ZÍáo


Carbúnculos , corae^ e diamantes
.

Os cabello> nos bcmbro?; lhes cahiáo


Enfiados em pérolas bri'hanres
E de aurj-verdes limos todís ellas
Tfaziáo vistosíssimas capellas,

LX.
Ei? tremulo pizando a branda área,
O encanecido Tejo , qne se arrima
A grossa verde cana , fende a vei
Da túmida corrente , e salta acimí :
Dos D?oses Assem^léa
a hellissima
Caminhando adiante o velno snjma,
Acé que chej;a em fim a gnra fria
Em que inJa Ulysses plácido doimia,
LXI.

Alli lhe d'? o Téio em voz


cideite ,
Qie Cidádí
a Mi^nifici levanre ,
Para que seja o Empório í*ermíineT'e
De RiqL'ezâs, que o mund> todo e pante :
Diz-lhe q ne --eri Mái da Forfe Genre ,
Que irá , fendendo os mires do Levante
A enganos , e a perigo? ret;istindo ,

O Ganges demandar , o Hidaspe , e o Indo.

LXII.
,, ,

io8 Z A R G U E I D A.

LXII.
Fez-lhe vêr entre as sombra^ dos futuro?
O que tinha Protheo vaticinado
Depois Gue elle erigisse os ahos muros
Da Cidac^e, que tinha começado:
Fez-lhe v.êr as ?cçces , e os Feitos pnros
Dos Lusiianos Reis d^Kenriqae Amado
:

Também fez vêr os Ínclitos Talentos ,


IL qu& faria alguns descobrimentos.

LXIIÍ.

A Ulysses ,
que dormia , então deixando
Ct:m os Deo;e.s marítimos se ausenta ,

Pira o seu Paço o Velho venerando ,


Onde em seu Throno de crystal se assenta :

Das Divirdadí*s hum.idas o bando


Ao Lusitano Tejo ccm.primenra
E bci:ando-Ihe a dextra se retira ,

Fcr dar pariô a Neptuno do que vira.

LXIV.
Acorda o Grego , e de prazer confuso
Ke}£ie quanto ouvio ao scmno entregue j

A's ondas ajoelhou do Tejo Luso ,


E da nova Cidade a estrada segue ,
O valor, e a coríi^em, pondo em uso,
A ccnsírucção magnitica prosegue;
Fabiicác-ic Ediíicios sumptuosos,
Toires , Palacios , Templos Magest<Dsos.

LXV
CANTO IV. 109

LXV.
nórgor's então Rei da Lusitânia
Pelas malignas Fúrias assanliâdo
Se entrega do Rancor á torpe insânia
Centra o Itnaco Heróe de ]ove Amado:
O que e^te fez á nnsera Dardania
Perttnde o Rei em fúrias abrazado
Fazer á Grá Cidade, armindc guerra
A Geiíie Argiva , que em seu seio encerra»
LXVI.
Soa de Marte ahorrisona trombeta ,
Tuniáo-se os Lusitsnos centra es Gregcs ,

E envoltos de vil |ó em nuvem preta


AísaJráo a Cidade ímpios, e cegos;
A espada mais veloz , rue a leve setta ,
Ulysses manciando , fundos régios
Abria nos rebeldes reitos duros.
Que tema V ao montar es rdios mures.
LXVIJ.
Vendo Górgoris firo rr.úlogradâs
As per.erçóes de novo intenra
suas
Fazer com que as Nács Gregas abrazad^s
Seiáo por fm po Tejo , que as sustenta :
Quando a Koiíe com srrrbras carregadas
Cobria a Terra de Huma cor cinzenta.
Vem Górjzoris cruel oussdârrente
Entre as Nács atear a chama ardenie.

LXVIIL
: :,

lio Z A R G U E I D A.

LXVIII.
Pelas NocrurriJs Scmbra? protegido
^tèa as chamas enrrc as Náos undantcs 5
Mas o Tejo áo es:rago condoído
Açoita as labarea^s Citalantes
O mesmo Sacro Jove , commovido
Das súpplic^s dos Gregos anhelantes ,
Desprendendo dcs Cecs as cacaratas,
Apaga as chamas, deixa as Náos intactas.
LXIX.
Afrontado então Gór^oris , a lança
Posro á (esta dos seus feroz brandindo 9

De ncvo acs muros súbito se avança


De corpos mortos por deg;ráos subindo
Ulysses immcrtal , que náo descança ,
De ncvo CS Inimigos investindo,
Os cercados soccorre ; e vendo a guerra ,
Tieme o Ceo , treme o Tejo , e treme a Terra.

LXX.
Depois de mil Combates furibundos
Em que se consumirão muitos dias ,
Fm negros mares de seu sangue immundcf
Górgoris íepultou as ousadias i

Sua A Irra foi dos hórridos profundos


Ver as Cavernas retricas sombrias ,
Em Quanto ao Grego Heróe a Eterna Gloria
Cinge a frente dos Louros da Victor iâ#

LXXI.
, , ,,, :

CANTO IV: iii

LXXÍ.
Inda os Campos estiváo roxeados
De lagoas de sangue , onde os seus vultos
Escondiáo os Corpos traspassados
Dos Gregos , e dos Lusos insepultos ;
Quando Uiy^ses de novo aos começados
Edifícios , rendendo a Palias cultos
Com divino furor forças applica
Completando a Cidade Augusta, e Rica,
LXX!I.
Edificada a Célebre Cidade
E o Templo Sacroa Palias , nelle rende
Sacrifícios Pura Divindade ,
á
Que o protegeo na guerra , e que o defende
Do Tejo er.táo deixando a amenidade ,
De linho as azas concâvas estende
E de lihaca pizando o salso trilho
Voa a buscar Penélope , e seu Filho.
LXXIII.
Por longo tempo o Tejo entáo saudoso
Do Filho de Licrtes , e Anticlea,
Gemer se ouvio atfiicio , e doloroso
Languido posto sobre a fulva arêa :

Na dura ausência deste Heróe Famoso


Se mostrou sentidíssima Uiyssea,
E CO' as do Tejo em prontos de am:irgura
As suas turvas laíjimas irjòtura.

LXXíV.
,

112 Z A R G U E I D A.

LXXIV.
Por longo rerrwo as Tiígides sentidas ,
Arrepelando as tranças , vaguearão
Por estas praias , e de dor feridas
A Saudade de Ulyfses prantearão:
As agoas deste Rio amonecidss
Scbre is túrbidas margens se encostarão,
E parecem alli de quando em quando
Estar da triste ausência murmurando.

LXXV.
Desta sorte , ó Morales , foi fundada
A sempre Alii-fami-gera Ulyssea ,
Cuja brilhante frente torreada
Se vè do Téjo na espelhenra vêa :
Virá tempo , em que seja respe-tada
De tudo quanto o mar, e o Ceo rodea-;
Contempla pois a fulgida Grandezt
D'AqueJla ,
qte das Ccrtes he Princeza.
LXXVI.
Dizia Zargo a?sim , qujfdo chegava
O Lenho ao porto , cm que ancorar devia ;

lá pc uco a pouco o panno se arriava


E a srcora bidenre se movia :

Por enrre cavos pinhos serpeava


O Wídeiro, que ao leme obedecia j
E já de todo as virações contentes
Encolhiáo as azas transparentes.

LXXVII.
, ,

CANTO IV. ut
LXXVII.
Tomba da proao ferro denta ^uco
Ferindo is mansas ago/s cryítallinas ,
E vai descarregar seu golpe rudo
Nas húmidas arèas auri-finas:
Estava o Padre Tejo vendo tudo ;

E vendo tremular as Lusas Quin^s 9


Alçando mais a tremula cabeça ,
Com sonorosa voz assim começa :

LXXVIII.
Salve , Zargo Feliz , cujas Proezas
Hão de ser inda hum dia decantadas ;
O Sacro Jovè te destina a Empiezas ,
Que inda háo de ser em metro eternizadas :

Essas , que ondeáo , Quinas Fortu^^uezas


Vai fazendo no Mundo respeitadas ;
Inda sulcando não sulcados mares
Has dô tazelias tre;nular nos ii^u i

LXXIX.
Calou-se o Tejo: e a frente profundando.
Por entre as a^oas cérulas se some
Alegre só consigo ariiculindo
Do meu ínclito Heróe o Grato Nome:
Morales no convez as vozes dando ,
Manda o panno ferrar e sem que dome
;

Os transportes de gosto , que sentia ,


Di-sc de todo á Cândida Alegria.

H Lxxx;
, ,

ai4 Z A R G U E I D A.

LXXX.
Contempla da Cidade
Belli=;sima
Os altos edificios porremosos
E a sempre Augusta Regia Magesrade
Pos seus Sagrados Templos sumptuosos :

Contempla dos bateis a immensidade


Que vagáo sobre as ondas animosos ,
E as desmedidas Máquinas undances ,
Humas fundeadas , oucras inda errantes»

LXXXT.
Gozando destas vistas lisonjeiras ,

Qne o fulgido Commercio abnihantavâ ,


E vendo tremular solta? Bandeiras
Diff*renies , com que Zcfyro brincava ,
Pelas Ordens d"*Henrique Justiceiras
O Luso Hetóe Magnânimo esperava y
Ensaiando seu animo valenre
Para tentar a Descoberta Ingente.

Fim do Canto Quíirto,

CAN-
, :

CANTO (^U I NT O.

ARGUMENTO.
V
E
Em Baccho de Ner>tuno ãcompanh^.do
dos Deoses A^aritimos seguido
,

A Ilha demandar , onde assaltado


He de Pan , f^ae se mostra re sentido
O capripedo N;*men rechaçado
A^ sna grutd corre espavorido ;
£ o profeta da Undivaga Campiaa
As Prodtic^Òes futuras vaticina.

I.

XZi M
luminoso Carro ê: Diiininte
Seis vezes tinha o Sol í!ammi-ta:^en:e
Sahido pelas Portas do Levinte
E entraao pelas portas cio Occid-nte j
Quando na liza Concha fulgurante ^

Com o Num.en, cjue move áureo Triienre,


E a movinnenro o mar se humilha
cujo ,
Vinh* Lieo buscar a gentil Ilha.

H ii lí.
:

iitf ZARGUEIDA.
n.
Todos os Deoseç húmidos sepuiáo
A crysuUina Concha cjue tirívao
,

íeis Cavallos maritirROS , cjuc ardiáo


Em chamas de furor , e relinchaváo
Jri sobre zs ondas rápidos surdiio
Os Monstros , cuios crinos cndeaváo ;
E da Grande Ilha na cinzenta praia
Encalha a Concha , quando o mar se crpraia.

III.

As musgosas caheçís sacodindo ,

Saltão do mar es Deobes ,remandode;


Ka arèa ,
pela qual se váo sumindo.
Globos de espuma , aljcfres imitando :
Do Thyrso de Lieo estáo cahindo
Piniíos d'agca , que o Sol crysralizando
Lhes d-^va tanta giaça , e tal belleza ,
Que imiiáo diamantes na pureza,

IV.

Descem da Concha
os Deoses Scberanos ,
E a apenas pizáo
pedregosa praia ,

O Comigcro Deos cem seus Silvsnos


Correndo por entre arvores divisão :
Saltando montes ia p idos , e insancs
De longe os torpes Satyros pesquizáo
Quem seja aquelit Gente , que adveis;ria
Desembarca ml aiêa umtraria.

r.
) ,:

C A N T o r. iif

V.
A Thyrso conhecendo,
Baccfiò pelo
E Neptuno
a também pelo Tridente ,
Solta o disforme Pân hum grito horrendo
Como quem fera dor no peito sente
Das assanhadas fúrias accendendo
No igt\eo coréçáo a chamma ardente,
Pondo os lábios nos ásperos canudos
Chama a Ck)ncelho os Faunos cabelludos.

VI.

Vassallosmeus , ( diz elle ) he renpo agora


De punirmos de Baccho a alcivosia ;
Aquelle , que^-ine preza , e que me adora ,
Desça á praia ni minha companhia :

Lancemos Baccho desta Terra fora ,

Façi-se o que elle fez ]\ n'algum dia;


Meu ódio cresce , meu rancor náo cança ,
E estáo pedindo barbara vingança.

VII.

Eia , vamos , Amigos , sem receio


Assaltar quem nos fez já ; viva guena
Este Numen virá ( segundo creio
Conquistar pira si mais esta Terra ?
Do meu bravoso coração no seio
A Vingança Avernal seus dentes Ferra j

Vamos pois castigar este Importuno ,


A quem náo valerá o Dto* Nep:uno.

VIII.
:

%iJ XAK.GUEIDA.
VIU.
Dizendo assim
os Satyros se armário
,

De píneos troncos , quaes Hercúleas clavas 9


E apôs do hirsuto Pan todos marcharão
Quaes sanhudos Leões, quaes Feras bravas:
De penedos durissimos pejarão
Coldres de Coiro á imitação de aljavas ;
E já de lon^e reroar se vião
Mil penedos , c[ue montes pareciáo,
IX.

j^
Apenas vio , o Nizeo Nume
isto
0$ peiulantts Satyros persegue ,
E c'os Deo^es Marinhos em cardume
jMais , que nunca , feroz Neptuno o segue
Dos vivos olhos chammejando lume ,
O Thyrsigero Deos á sanht entregue
Vai topar-se com Pin , que hum Cedro abraça >
Para delie fazer uemenda Massa.

X.

Eis tomando a Neptuno o Grão Tridente


O Filho de Semeie denodado
Descarrega-ihe hum golpe sobre a fiente ,
Com que Psin fica logo atordoado :

A Tropa dos Silvanos que ouve


, , e sente

O estrondo do revéz desmezurado ,


Soltando ao ar de horror enormes roncos ,
Timida tícpa os ramalhudos troncos.

XI.
,
,

CANTO V. 11^

XI.

Assim (quando em Selvática expessurâ


O vigilante Caç-idor ,
que aguarda
A críça , que solicito procura ,
Dispara a férrea horrisona espingarda ")
Ouvi-^do o estrondo do trováo , que aturâ
A tropa juvial , lasciva , e parda
Dos Libycos Bugios graciosos
Pávida trepa os troncos ramalhosos.
XII.

He esta i punição das ousadias


( Disse o Numen Leneo ) que rens comigo í

D'heie em diante as tuas rebeldias


Teráó , H,stuito Pan ,
pronio castigo:
Para punir-te as vis aleivosias
Terás e.Ti mim acérrimo Inimigo ;

E se inda Louco disputar quizeres


Conheceras a fundo os meus poderes,
XIII.

Sabe pois , que por Júpiter fui feito


De^ta Grande Ilha a Tutelar Deidade,
E que por isso tenho já direito
De expulsar-te daqui com crueldade:
Se outra vez me faltares ao Respeito ,
Que requer minha Excelsa Dignidade,
Verás então quanto em teu dano move
O Sacro Filho de Semeie , e Jove.

xir.
, :

il2e E A R G U E I D A.

XIV.
Vai paz habitar com teus Silvino«
em
Essas montanhas ásperas , e duras ,
0»^de não possáo ir braços homanof
Abrir as Terras , e fazer Culturas :
Ac\ui náo tardio fortes Lusitanos ,
De quem farei as prósperas venturas ,
F que hão de agricuhar todas as terras
Inda sendo penhascos , brenhas , serras.
XV.
Cedo verás romper da Terra o seio
O férreo dente do robusto arado ,
E o forte Agricultor d''espVanças cheio
Tornar o Bosque em Campo semeado
Cedo verás por meu maior recreio
O duro Camponez de fouce armado
Podar as parras , que daráó fecundos
Racimos áureos, outros rubicundos.

XVI.
Do recinto de agrestes Serranias
Náo te he dado o sabir , ( outra vez digo^)
Vai habitar fragosas penedias ,

Onde só deves ter o teu jazigo :

í^e outra vez intentares rebeldias


5^entirás dos teos crimes o casrigo
E então te ensinarei, ó Deos Imbelle
,
A respeitar o Filho de Semeie.

XVII.
,, )

CANTO V. lAt

XVII.
Emquanto assim se explica ; o Dcos Caprint
Esteve madamenre praguejando
O Seu tyranno bárbaro Destino ,
E icrriveis vinganças projectando :
O lúcido tridente de ouro fino
Lieo ao Salso Numen entregando ,
Ah! vamos vèr ( ihe diz) o quanto occultâ
Dentro no seio seu a Terra inculta.
XVIII.

Então Fan , e os seus Satyros que virão


,

Ausentar-se l.ieo co' as Divindades


E)o mádido elemento , se reiiráo
Da sua Gruta ás negras Cavidades :

D'hum Monte ao cimo os Numes se subirão ,

E em quanto observáo mil fertilid^des


Deste modo Protheo to Deos de Niza
As Producções futuras profetiza.
XIX.
Por Ordem do Famoso Henrique o Zargo
Em curvo pinbo ( mas por via incerta ,
Fendendo do Oceano o Campo largo
Fará cedo Cita rara Descoberta :

Ht de Este Grande Heróe ter a seu cargo


O povoar a Ilha inda deserta ,
Ilha , que , por ser d'árvores balseira ,
O Illuotre Zargo chamará Madeira.

XX.
, ;

laa ZARGUEIDA.
XX.
Aquelle Valle ameno , qur , talKadai
Por três grandes Ribeiras pedregosas ^
Apparece de Funchos semeado .

Empalhando fragrância*; deleitosas.


Será por este Heroe funchal chamado ^
E , por punir de Pan iiaiçóes danosas ,
Nelle se atearão chimmas intensas.
Que háo de tragar as Arvores imtncnsas.
XXI.
Roendo troncos, e crestando Fomes,
Sete annos vivo incêndio lentamente ,

Descendo aos vtlles , e trepando aos montes y


O ToLfáo deixará tostado, e quente:
Mais puros fícaráó os horizontes
Da crassa nevot , aqui táo perm»nente
E a Terra, que indi inculta em tudo abunda.
Ficará sendo muito mais iecunda.

XXII.

Esta Terra , depois de povoada


Tu verás pouco a pouco ir-se fazendo
A Ilha mais gentil, mais engraçada
Das que o Africo Mar está lambendo :

Tu a verás com
gosto cuitivada,
Deliciosos frutos prometi erdo ,
R^osirar-se terna IVlái , Mai Compassiva
Da^ueliS , f]ue soiicito a cuitiv*.

XXIIL
: , ,

C A N T o V. 1*1

XXJII.
Na Fstação pelas Campinas
florida
Verás , ó Thioneo , com vistas curas
Bordadas de papoilas , e bor^inas >
As pullulantes tremulas searas
Verás aqui mil flores peregrinas ;
Verás mil producçóes em tudo raras ;
Verás brotar de Flora os gratos mimos;
E das pampineàs vides os lacimos*
XXIV.
Em qualquer parte abrolharão das terras
Ag oas mais paras , que o crystal nevado 9
E até dos cimo^ das fra^oí^a» serras
Rolarão , imitando ao prateado :
Sem que temáo aqui do Tempo as guerras
Daráó as plantas fruto sazonado
Mifiioso no sabor ; e na grandeza
Ham prodigio será da Natureza.

XXV.
Cobertos de gramínea vestidura
Estâídõ sempre os prados, e as florestas.
Onde Amores com graças de mi-^tura
Passarão por prazer as molles sestas :
Sempre frondentcs firmes na verdura
Erguerão muitas árvores as testas ,
Prome* tendo huma eterna Primavera
Semelhante á da flórida Cichera.

XXVI.
,

124 Z A R G U E I D A.

XXVI.
Aqui o lácteo Lirio deleitoso,
A delicada Angélica fragrante ,

O nevado ]a mim
puro, e mimojo,
,

O florigero Mirtho verdcante


Aqui o rubro Cravo mages^oso ,
E 3 rozeaFlor de \^cnus elefante
F-spalharaô suavíssimos perfumes 9
Bem dignos de incensar Celestes Numet,
XXVII.
/.qui agrestes flores recendentes ,
Fn^be!lf7ando valles , mi nres , prados.
De vivâs gratas cores diíFerenies
Tos mostrarão aos olh s n)atizados :
Nelles entáo verás sakar contentes
Pingues rebanhos de lanosos gados »
E trarquillos os rústicos i^astores
Dormir , sem medo a Lobos voradoret»
XXVIIT.
Dos Troncos pelo Fo^o carcomidos
Até pullularaó denir® rochedos ,
De musgos , e de mirthos revestidos ,
Pimpolhos, que ícrdó irida Arvoredos:
Os Campos se háo d: ver abastecido?
De parras em frondiferos enedo? ,
Com que tu , Thioneo ornar bem pode»
,

O pan^ipinoso Thyrso , que súcodes,

XXIX.
: ,

C A N T o V. 1*5

XXIX.
Cs álsrrcs aqui
, aos Ceos subindo,
E CS verdes cdoriferos Loureiros
^ os olhos mostrarão hum quadro lindo
Nas encostas dos íngremes Oireiros
Aqui daquella planta ir:.ó cahindo
As flores, qte ev?poráo gratos cheiros
Fm todas as Sazões seus pomos bellos
:

Seráõ cor òcs do Sol áureos cabellos.


XXX.
Também ncs ?ectlcs vindouros
sqiii

O Terreno »crá que ttcrrdo


rrais
Fm cafés, c algocces , rices thesouros ,
De que ranro se jacrt o Novo Mundo:
Do Liberal Planeta os raios louros ,
Que tudo animáo lá do Ceo rotundo.
Torna ráõ susceptivel esta Terra
De quantas Pioducjóes o Mindo encerra.

XXXT.
Aqui vèr-re-háo p$ árvores tiota^-do
Fm CS frutos, que Fcmona adoiâ
flor

E que no ardente Fstio , sazonando,


Seu terno Esposo Liberal cf Jora :
Aqui, as brardas pJtmas despregando.
De C Icris V AmóOT Filho da Aurora,
Co' as ineigas Virações entre a verdura
£iincaiá cem lasciva travessura.

XXXIt
: ,
, ,

126 Z A P. G U E I D A.

Acni rão acliar^s I.eóes tu-Jaces ,


Privas PíínTheras , Jovalís cerdosos ,
Torpes Tarsos crnci í
, Lobos rapacr? ,
Nem iida mesmo insectos venenosos .*

/h! Thyrsieero Heos , se bera pcnsísses


Quando o<; Mcr^aes aqni seráó ditosos
Nas fre«cas Estações das Primaveras
Do Ganges , e do Hydaspe te esqueceras.
xxxni.
^qwí verit os ví^o? píssir-nhos
Doces Cantores da Fioresra imena 9
í^a lidarem dos tremA7lo<; raminhos
A bella /nrora , cândida , e serena;
"^'êllos-bas ordenando c'gs biquinhos
Das e do Corpo a crespa penna
?z«s ,

Fm quarto pelos cumes dos Oiteiros


Balarem os lanígeros Cordeiros.
XXXIV.
Aqu\ verás mil gru a«: , emalbadas
Da Natureza pelas mãos sinceras
Fm marmóreos penhascos, recamadas
De verde avenca , de rorcidas heras
/\qiii veras algumas raplzadas
De branda relva : podes crer deveras
Que mo ri verão tanta graça junta
Ciihcra , Chypre , í aphos , e Amathuntt.

XXXV.
! , ! ! ,

CANTO V. 127

?:xxv.
Ar» ! quânras ve2es nos recintos deUaj
Sacrifícios i Amor faraó pre<^r?ntes
As formosas Donzelhs
rernissimas
^sOs meigos braços dos fiéis Amar.res
Quantas vezes tecendo-lhes capelhs
Das flores mais mimosas, mais fragrantes.
Consumirão alli lic,eiras horas
As engraçadas simplices Pastoras!

XXXVI.
Quantas ve7es cm rústicos passeios
Verás as Insulanas Carinhosas
Ornando Ledís os nevados seio5
De verdes mirthos , de purpúreas rezas
Quantas vezes por mágicos rodeios
Wais de amor , do c]ue d'agoa , sequiosas
As verás c'os Am.antes pelos montes
Descerem a buscar sombrias fontes !
'}y{\^ ^. XXXVII.
Oh ! que f.imintos beijos mutuamente
Se daráô entre a flórida ve^^dnra ,
Mergulhando de Amor a chamma srdenre
Em mares de meiguice , e de ternura !

Que afagos , e carinhos docemente


^'eráscom ira honesta de misturt
Sobre Leitos , de relva guarnecidos
Da Natureza peias máos vestidos

XXXVIII.
, , ) ^

12? ZARGUEIDA.
XXXVIII.
No
seco Estio liberal , fecundo ,
Frurigera Fítaçáo a Geres grati ,
Quando em calmas arder o vasro Mundo
A Madeira será da chamma intacta :
O seu terreno aqui faráô jucundo
Vagos mananciaes da fluida prata ,
Em que os Fivonios , ensopando as azas,
Apagarão da Calma as vivas brazas.
/ XXXIX.
Aqui então d'bum lado a Loura Ceres
E doutro lado a rúbida Pomona
Fm repartir faráõ os seus prazeres
Os frutos , que qualquer delias SàZr na :
Aqui nas frekas noites ( se quizetes
^ eras ccmo o Cultcr cm paz resona
Ora junto das messes sazonadas
Ora á sombra das árvores copadas*
XL.

Aqui verás a grata Cerejeira


Curvada ao pezo dos seus frutos bellcs ;

A folhosa, eppinhifera Cidreira


Encostada co' os pezos amareiios :
Veras também a pródiga Gingeira
Mostrando os frutos seus , que com desvelos
Imitarão na rara formosura
3, As Cerejas purpúreas na pintura*

XLL
: : , ,

CANTO V. 12^

XLI.

De curvos ramos se veráõ pendendo


Beb'ras roxas , e figos retorcidos ,
Que , apenas a manha vier rompendo
Seráó das Ninfas pelas máos colh-dos :
Alli , traições humanas não temendo ,
Oá mansos Tucinegros acolhi.Jos ,
Soltando as vozes com sonoro accento 9
Acharão para si doce alimento,
XLJI.

Verás pendendo d'ârvores frondosas


Mil frufos difFerentes nos sabores ,
As pêras na gíandeza portentosas ,

Os pcce^os raiados de mil cores


Negrejando nas arvores fclhosas
„ As amoras , que o nome tem de amores , „
E 03 formosos limões , que alli perfeitos
Imitáo da Donzeila os lácteos peitos.
XLIIÍ.

Aqui floreceráó em ma^a densa


As doces Canas, que o assacar geráo ,

E abundaráó por certo em cópia inmensa


Bem como nas Ameiicis prospéráo
Da terra aqui , á producçáo propensa ,
Jvlil frutos brotarão , que náo se esperáo

Frutos náo conhecidos noutras partes ,


Onde se empenháo da Cultura as Arfes.

xuv.
, : ! ,

ijo Z A R G U E I D A.

XLIV.
Aqui cl'arvores raes , como os Coqueiros ^
Verás pender ts célebres bananas ,
Que em túmidos racimos feiticeiros
A cor imiráo das maduras canas :
Estes frutos ao gosto lisonjeiros
Náo produzem as Terras Lusitanas
Razáo porque háo de ser mniro prezados
Dos Lusos ás Delicias inclinados.

XLV.
O mimoso Ananáz aqui transposto
Florecerá com tanta galhardia ,

Que ha de ter melhor forma cheiro e , , gosto


Que quantos o Brasil produz e cria ,

Os morangos aqui da cor do mosto


Crescerão, sem cultura em terra fria,,
,

E tão grandes , tão bons , táo saborosos ,

Que háo de exceder do Mundo aos mais foimosos.

XLVI.
Oh ! como então contentes pelas Eiris
Marcando alegres festivaes Corças
Saltarão Leves Ninfas feiticeiras
De transportes de amor, e gosto cheas
Alliconsumirão noites inteiras
Dritdes, Hamadriades , Napeas ,
Ora em magicas danças entretidas ,
Ora cm doces Amores embebidas.

XLVII.
,, «

CANTO V. ijl

XLVII.
Na tbundanre Estação em que o Sol vario
He no vasto Zodíaco hospedado
Por Libra, Escorpião, e Sagitrario
Com terno mimo carnhoío agrado ;
Veras que aqui náo falta o necessário
Sustento ao camponez , que agricultado
Tiver com grato amanho a fértil Terra ,
Que no seu seio áureo thesouro encerra.
XLVIII.
Verás então a Laranjeira linda
Produzir vaidosa os pomos d^ouro
IVIsiorcí atéili náo vistos inda.
De Gue fará Pomona o seu thesouro :

De maçãs sazonadas copia infinda


Colorando-se aqui d'hum vivo louro ,

Pelas margens frondosas das ribeiras


Penderá das frondiferas iVhceiías,
XMX.
Veris também aqui romãs formosas
Com graro desalinho abrir-se ao meio
Para mostrar ás vistas cubi^osas
Agri-doces rubins no fértil seio:
En:áo das curvas parras pampinosas.
Do avaro Agricultor mimo, e recreio.
Pendentes se veráó lindos , e bellos
Huns cachos roxos , outros amarelios*

I ii
; , , !

iji Z A R G U E I D A.

L.

Verás mais de galhosos Marmeleiros


Os saudáveis frutos pendurados ,
E dos folhados altos Castanheiros
Cahirem os ouriços csp>inhadcs ;

Verás mais nos ramigeros Pceiros


Em pinhas os seus pomos matizados,
E canjrem das pródigas Nogueiras |
As tentadoras nozes chocalheiras. •

LI.

Oh como então solicites , comentes


!

Veras os Camponezes nas vindimas


Dos sazonados fruros excellentes
Que tu , Numen de Niza , tanto estimas
Durante estes trabalhos innocentes
Endeixas ouviras em doces rimas
Entoadas por simplices Cantores ,
A <juem o Dcos de Amor mate de amores. .

LII. '
Nachuvosa Estação , gelada , e fria ,
Em que Hippotades abre as gruías feas
E aos ventos ghciaes , que aiii prendia.
Quebra as duras risperrimas cadèas :

Não do Inverno a tyrannia


soífrerá
Esta Terra feliz , que senhoreas
Káo sotfrerá dos Aquilcneos Mezes
Gs inclementes ásperos revezes.

LIII.
,,: :

CANTO V. II)

LIIÍ.

Fmquanro n'outrâs terras mais áistântes


O enregelado inverno carrancudo
Com chuveiros brumaes , neves salrantes
Perrender inundar campos , e tudo ;
Em quanro os Aquilóes horrisonantes
Com Ímpeto brutal , furor sanhudo
Pertenderem com Euro em duras guerras
Os planos mares igualar com as serras
LIV.

. Em
quanto nos Paizes mais sombrios,
Que do Árctico Polo e^táo mais pertos ,
Se encanecerem montes , prados , rios ,
De niveos gelos hórridos cobertos :
Fm
quanto os ares seus pezados , frios,
Fizerem nestes Climas desconcertos
Os míseros humanos retalhando
E as mais robustas Arvores creàtando :
LV.
Na singular Mide'râ en^ão apenas
\^cris cahir dasnuvens condensadas
Mil grossas chuvas sim , poiém serenas ,
Benéficas fecundas , temperadas
,

O Inverno , sacodindo aqui as pennas


De aljofrados granizos carregai; s ,
>\penas cobrirá delles os montes
Sem que perturbe , e que en:orp£ça as fontes.

LVI.
: ,

t34 Z A R G CJ E I D A.

LVI.
Aqui não soprará constantemente
O Boreas Glacial,
gemendo insano ;
Se al^um dia soprar com fúria ingente ,
Rápido pasííârá sem maior dano
Raras vezes verás túrbida enchente
Despenhar-se dos montes no Oceano ;

ívlas quando acontecer , ó Dsos de Niza ,


Verás como o Torrão se fertiliza.
Lvir.

Por entre agudos íngremes rochedos


Fntâo as agoas correrão fragosas
Ora tombando d'buns noutros penedos ,

Té se unirem espumosts
co' as ondas :

Despido? ficaráò os Arvoredos


Oas suas veuimenras gracio<;as ,
E apenas estarão vesriios de hera ,

Té que voite a florida Primavera.


LVIII.

Raras vezes veras negro , e tristonho


O Dia amanhecer em sombra envolto ;
As mais das vezes o verás risonho,
Com seu áureo cabelio aos vento solto :
Raras vezes verás o mar medonho
Nos cinzentos calháos quebrar revolto;
Mas quando o virem neste d.esconceito ,

Os Nautas fujáo , que o naufrágio he certo.

LIX.
: , , ,

C A N T o V. ij;

LIX.
Raras vezes verás forre tormenta,
Pe roxas nuvens abafando os ares f
í^fí-pejar do «eu seio turbulenta
Tenebrosas proceilas a milhares :
Do estrondoso trovão a voz violenta ,
Troando sobre a Terra , e sobre os mares >
Fará soar horrisono estampido
Mas seu estrago não será temido.
LX.

OH com quanto prazer na sazão


! fria
Verás da fértil Ilha os Moradores
Transportados da mágica Alegria
Forrarem-se de rúbidos Licores I

Dos Deoses a odorífera Ambrósia


Náo terá tso balsâmicos sabores
Nem a sua cor nítida, e fulger.te
Parecerá mais viva , e transparente.

LXI.

Em fim , ó Thioneo , os Habitantes


Desta Terra , de que és a Divindade ,
Co' as raras producçóes suprabundantes
Seraó felices na futura idade
D'Aves mil diíFerentes , e elegantes
Aqui teráó immensa quantidade j
Tetàó pingues rebanhos nas Campinas ,
E mais pingues nas ondas Neptuninast

LXII.
, :

I]6 Z A R G U E I D A.

LXII.
Por suâs Prodiicçóes nesta grande Ilha ,
Com quem predigafoi a Natureza
Terá mais huma Rara Maravilha
O Mundo em toda a vasta Redondeza:
Esta do Africo Mar a melhor Filha
Será das Ilhas Lusas a Princeza ,

Será das Nações todas respei(ada ,

Será das Nações todis invejada.

LXIII.

Estas , ó Thioneo , sáo as mimosas


Vindoiras Producçóes da Terra pura ,
Em que v.is ho-pedar as animosas
Gentes Lusas que aqui guia & Ventura ;

Esras são as Rellezas preciosas


Da Grande liha pres^anie em formosura
Lá nos remotos séculos klizes ,
Em que tu talvez mais te divinizes.
LXIV.
Agora pois convém, que também diga
^uceessos , que talvez saber desejas ,
Fermitte sim , que os \'aricinios siga
Se ícaso de e:cutar-me te não pejas
Permitie ( outra vez rogo ) que prosiga
Os vaticínios meus , só pjrque vejas
O. sjccessos , que estáo por Leis dos Fados
Aos Povos da Madeira destinados.

Fim do Canto Quinto^

CAN-
,

M7
xxxíooocKxT^ *TxxxT^ *rxxxxxx:xx.xT^

CANTO SEXTO.
ARGUMENTO.
P Ronostica Protheo as AccÕes Bellas
D^ Zargo , e àos /ilustres Descevdemes :

Co?n vivas expressões repete AquellãS


Lã do Sex^o ^0X0 Sempre Exceli entes :

Leva o Seu Nome ás fii'id:is EstrelUs ;

Conta muitos successos differetites ,

£m íjue Este Excelso Princ^pe Famoso


O Povo do Funchal fará ditoso.

I. •

-/vTtentos os dois Numes escutando


Fstâváo na Ceríiiea Companhia
O Profeta Protheo, que, a voz soltando;
Com divino furor assim dizia :

Náo te irei , ó Lieo profetizando ,

Oí Successos da Lusa Monarchii


Nem táo pouco Acções dos Soberanos
as j
Que háo de reger os Povos Lusicânos.

II.
ijS Z A II G U E I D A.

II.

Não'
re direi as ímmortaes Proezas
Do Primeiro João d Alra Memoria ,
Esse Keróe , que das Gentes Portuguezas
Tem feito o brilho, a Perfeição, e a Gloria:
Náo te direi as ínclitas Emprezas
D'Henrique porque deixo á Lusa Historia
,

O memorar nos séculos futuros


^"eus Feitos Divinaes, Augustos, Puros.

III.

Náo re direi o quanto os Justos Fados


Pestináo a favor do Heróe valente ,
Que por mares ainda náo sulcados
Demandará as Terras do Oriente;
Náo Arcanos , que aos Decses mais Sagrados
Náo devo descubrir , por Lei Prudente
D'Aque)le Numen , que as Esferas move ,
O Grande , o Recto , o Omnipotente Jovc.
IV.

Direi sim as Façanhas Espantosas


Do Gráo Descobridor da Grá Madeira ,

K dos seus Descendentes as Pasmo sas


Acções Dignas da Deo^ia Trombeteirà :

Direi as Providencias Portentosas


Da Magestade Augusta e Justiceira ,

De Joáo Sexto o Principe Potente ,


,

iNO tenipo em que do Remo for Reger»te^

V.
, ,

C A N T o VI. M9
V.
Do Futuro nos túrbidos volumes
Ha rempos lendo vi Forienros claros
, ,

Que por Leis insondáveis d'aIros Numes


Háo de inda obrar estes Heróes Preclaros:
Os Portenros que sáo, tu náo presumes;
,

Sko Acções ímmortaes , sáo Feitos Raros


Wui:os , ó Thioneo , vou dcclarar-te ,
Com cj'je possas talvez lisonjear-te.

VI.

Descoberta a frondifera Madeira,


Por Graça de ]oáo Primeiro o Zar;^o
Pm prem:o desta Acçío iáo lisonjeira
Terá de Donatário delia o cargo :

Entre este Herne , e hum Célebre Teixeira


^•e p^rrirá da Ilha o torrão la';^o ,

Terá Aquelle do Funchal herança a


E es:outro ae outra parce a governança.

VII.

Também em premio desta Acçáo prescante


Perdera Esse Heróe de Zargo o Nome
Porque João Primeiro, então Reinante,
O de Camará , quer que elle só tome
, :

Vai ru ser ( lhe dirá ) d'hoje em diante


Quem do Funchal o Povo reja , e dome j

Vai ser o Protector, o Pai, o Ami^o


Dos que forem alli viver comtigo.

VIII.
,

14© Z A R G l) E I D A.

VIU.
Vzi povoar a Terra fre?ca , e pjra ,
Que dís nuvens roubasse ao negro seio ;
Trata mais, que rudo , da cultura,
alli

Q-.ie he dhum Povoador todo o recreio :


Edifícios erguer alli procura ;

Levanta Templos de briihanre asseio


Para que nel es rendas com decência
Tiéis adorações á Providencia.

IX.

\'^aidescançar da^ ?>speras fidigis ,


F^m que tu tens vivjdo ha longos annos
>
;

Me justo agora que outra estrada sigas


Náo juncada d'horrore9 , p'rigos , danos :
^eris bem cedo de Nações Amigas
Visitado nos Lares Insulanos 5»
Onde per meio de txemplar Governa
Lspero faças o Teu Nome Eterno,
X.

Munido pela Regia Maee<;tide


De táu Famoso Rei , de Herói táo Santo ^
Desta Terra na Antárctica metade
Zargo CouFas fará íJii^nas de espanto :
Pcrém primeiro hum Templo erigir ha de
Sobre hum Tumulo irisie , que do pranio
D'hi:m Olebre Machim fora banhado ,
E cm que co' a sua Hàúsi jaz sepultado*

xr.
; :

CANTO VI. I;t

XI.
Levinrará depois hum Templo Augusto
Ko seio do Fnnchal e tão sublime,
,

Que á visra delie tremerá de susto


Quâiquer perverso , cjue ir alli se anime
Levanrirá depois â todo o custo
Outro Terrplo Sagrsdo , a que $e arrime
A sua Habitação , cnde Ccntente
Viverá longa idade felizmente.
XII.

.^eguirdo acui da Humanidade a Esteira


Fcvesrido d hum ar religioso
Ni margem de ameníssima Ribeira
Findará hum Hcspicio Magestoso :
Na maier parte da feliz ^Jadeira
Traçará 5acros 7eirp;cs an mcso ,
Que depcis de 5eu Fai seguindo os trilhos
Erguerão deste Heróc os Dignos Filhos.
XIIJ.

Fundará do Funchal t Grande Villa ,


Que a ser virá depois gentil, Cidade ;

Fará por levcn^alia e construilla


,

De Edifícios de ingente iWagesiade:


Fará per adcmalla , e rcvestilU
De esplendor , e susve amienidide
Fará , que as duras terras se cultivem ,
Fará^ que as Leis da pura Fé se avivem.

XIV.
, ,

142 Z A R G U E r D A.

XIV.
Qnândo
a Velhice frís^ida , e rugosa
encanecer , gelando-lhe as enrrannas.
Fará hnma façanha a mais pasmosa
De todas as mais cél-bres Façanhas :
Animado d^huma Alma beliicosa
Com sublime valor , forças estranhas
1-1 um dia arrostará , sem medo a prigos y
Fera invasão de bravos Inimigos.

XV.
Quaes os lanosoç tímidos Cordeiros
Ouvindo o vofAZ Lfbo esiar rangendo
Os esquálidos dentes carniceiros
Fogem velozes pávidos tremendo ;

Taes es^es Inimiíios venrureircs ,

/rmado o Forte Heróe na praia vendo ,

Fugirão pela liquida Campina ,


Temendo a sua misera reina.

XVI
Regendo Povo? com saber profundo ,
Fdificando Villas e Lugares ,
,

1 ste Heróe Generoso, e «em segundo

Honrará da JVadcira os tureos Lares :


) dando de virtude ao Mundo ,
receitos
Mais de oito Lustros todos Exemplares
Viverá felizmente , até que hum dia
1 tgue o justo tributo á ^^orte fria.

xvir.
, ,

CANTO VI. 145

XVII.
Fn'áo os SáiidosGs Insulanos ,

X^ertendo tristes lágrimas p'e/iosas «

A's Cinzas desre Heróe de Dor In-anos


Uenderaó justas honras luciiiosas:
-As Ninfas choraráô per longos annos
Scbre a lúgubre Campa saudosas ,
Repelindo entre magoas, e eníre prantos,
O Seu Nome immortal seus Feitos Santos.
»

xviir.

Morreo o Nosso Pai ! ( d'ráó sentidas


Com vozes por soluços recortadas )
A'^oríeo o No'so Pai!,., estáo perdidas
As nossas esperanças bem fundadas :

5e para o conhecer fomos nascidas


E náo para o gozar ... (oh Desgraçadas I !
)
jAntes nunca sahissemos do fundo
Cahos do Nada , para vir ao \jundo.
XIX.
Convulsos ais ao coração roubando ,
O tremulo Anciáo , d'instanie a instante ,

E em pranto o rosto palliJo banhando


Muitas vezes dirá com voz tren ante :

Fci-se o meu Bemfeiíor . (]uáo mibersndo


! . .

Serei eu , justos Ceos , d^hoje em diante I

Oh quem podéra ter ho)e a ventura


!

De ir com elle também á sepultura !

XX.
,

144 Z A R G U E I D A.

XX.
A viuva infeliz co* â máo no rosto»
Ferido o coração pela Ancijdade ,
Fm contínuo lethar^ico desgosto
Dirá por desafogo da saudade :
Pelos Fados estava assim disposro,...
Oh! funesra pensão da Humanidade!
O Nosso Protecíor já náo existe ! . . .

Tudo a meus olhos se figura triste ! • . •

XXT.
Até mesmo os sonoros passarinhos ,
Que sempre a!li canráráo sempre ledos
Sentidos trocaráó os Pátrios ninhos
Pelos mais solitários Arvoredos:
Até me?mos os lanosos ccrdeirinhos
A^agaráó pelos cumes dos rochedos
Cheios de dor das caras Wáis perdidos
Soltando sentidíssimos balidos.
XXII.

Aprópria Terra , que elle povoara »


E que por seu trabalho enriquecera ,
A própria Terra , que elle agricultara ,
E que entre muitas Célebre fizera ;
Perdendo a natural belleza rara ,
Porque também o seu Cultor perdera,
Per longo tempo mostrar-se-ha sensível
A' Saudade Ciuel , á Dor Terrível.

XXIIL
, , , ; «

CANTO VI; 145

XXIII.
, como chorando
As tgoas correrão ,
Hamas rochedos
d^iltos despenhadas
Outras , por enire relvas serpeando
As ondas buscaráó do màr salgadas:
Echo chorosa , lúgubre vagando
Repetirá nas grutas descarnadas
O Nome deste Heróe ; e ao repetiilo
A$ mesmas grutas tremerão de ouvillo.
XXIV.
Oeste moco será sentida a Morte
De Zargo , cujo Nome, e cuja tama
]^ mais háo de soíFrer da Parcí o Corte
Da Parca dura que os respeita , e ama
, :

Apôs dellc a Ternissima Consorte


De virtude âbrazada em viva chamma
Wostrando-â ao Mundo por mil obras pias ,
Deixando o mundo , acabará seus dias.
XXV.
Ficarão desre Tronco Originário
Três tlorecentes Ramos: o Primeiro
Ha de ser o Segundo Donatário
Do Funchal , e cambam s,ráo Cavalleiro :
Fazer nâo devo agora hum Commentario
Das acções do Segundo , e do Terceiro
Nem dis quatro Vergonteas , que formosas
Do mesmo Tronco brotarão viçosas.

K XXVI.
, ,:

J46 Z A R G U E I D A.

XXVI.
Só direi que esu lUustre Descendência
Felizmente se irá ramificando
De famosas Acções pela exccllencia
Da insigne Gloriai ao Cume remontando:
Será egrégia a sua Competência;
Sublimes Dignidades occupando ,
Por todo o IViundo lançará ftlizes
Preclaras Fecundíssimas Raizes.

XXVII.
Quatro Grandes Fidalgos Lusitanos
Por Acções , e por Sangue Esclarecidos ^
Demandarão os Lares Insulanos ,
Em bellezas , e em glorias embebidos
Aqui háo de viver por longos annos
De Zargo as Filhas por Amor unidos.
Desfrutando seus Claros Dotes Bellos
Cabral , Sousa , Aguiar , e \'asconcellos#

XXVIII.
Propagando-se a Prole Venturosa
Do Nobre Zargo , Kerces Famigerados
Da Lusa Corte a Gala Preciosa
Faraó dos seus Monarcas bafejados :
Os Ramos desta Prole Numerosa
Com outros Nobres Ramos enlaçados
De Ornato servirão em Régio Abono
Lá na vindoura idade ao Luso Throno*

XXIX.
,

CANTO VI. 147

XXíX.
Destes Illustres Ramos Florecerr-es
De Insigne Geração por Linha Ra^i
Háo de então ser Preclaros Descendentes
Os Condes da Ribeira e da Callieta
, :

íteguindo , como os Nobre> A^cenden-es ^


Oi Gloria a Estrada ene arjó á meta
,

De serem lá nos séculos futuros


Do Throno Pcrtuguez Degrács Seguros.
XXX.
Descenderão os ínclitos -Senliores
Das Ilhas ( Malogradas! ) por Desertas 9
Aquellas , que na > tendo habitadores
De matas estarão sempre cobertas ;

Descenderão também do Rei v> os Mcrtí»


Claros Almoracés^j Famiiias Certas ,
Que háo de lá neàses séculos vjndauros
Colher da Gloria os verd^jàn:es Louros.
XXXI.
Destes Grandes Fleróes , Ramos Frondosos
De táo IlliísCíe Tronco , e tio Fecundo ,
Háo de brotar mil Ramos Assombrosos ,

Que háo de ainua assombrar a todo o Mundo:


Que Heròes , que Heròe? Famosos
Valentes
Que Heròes de Engenho , e de saber profundo j
Trazendo os seus Maiores na memoria
Faraó da Lu*iuaia a insigne Glona i

K ii XXXII.
! , ,, !,
, !

US Z A^R G U E I D A.

XXXII.
Que Famosos Heróes delles provindos
Faraó da Lusitânia a Grá Nobreza
Por feitos immorraes , por feitos lindos
IVfemorizando a Gente Portugueza !

Que Fanr.osos Heróes , que Heróes infindo»


De tão Sublime Estirpe na Grandeza
Viráó a ser em séculos iTiâis puros
Do Império Fortuguez Colossos duros
XXXIII.

Com estes Reaes Sousas Generosos


Os Marquezes d'Angeja e IVarialva ,
,

/Aveiras, Tancos, Arcos venrurosos


Os Condes d'Atfío^uia , os Condes d'Alva ,
Sublimes Vú de Reis , e es Valorosos
Alornas , Cunbas , Limas . e Penalvt
Que a Pátria defenderão por seus braços >
Feliccs prenderão em doces laços.

XXXIV.
Lusitânia Feliz , tu serás Leito
De parte da immortal Posreridade
Que entáo nutrida da Grandeza ao peito
Bafejada será da Magesrade :
Ssldanhas Oliveiras , que respeito
Náo devcTi merecer era longa idade
Assêcas , Portugnes , e outros Saldanhis
Dos berços ayezados ás façanhas

XXXV*
, :,

CANTO VI. 14^

XXXV.
Tn Madeira
, , rambem serás o berço
De Parte desta Prole Prosperada ,
Cuio S^angue por vèas mil disperso
j\ irá fazendo e:erna , e dilar^da :

Sem que o sin;a do Fado adverso


ri^or ,
Esta Prole feliz Ramificada
Tua Grandeza ha de fazer hum dia ,
Fará , sim , tua Egrégia Fidalguia.

XXXVI.
Viráó tempos felices , tempos ledos ,
Em que os Ramos dos Cameras Inviros,
Vegecando , quaes verdes arvoredos
Espa.hem Nobres Ramos InfinÍ!:o^
Háo de então florecer nestes Enredos
Bithanconrs , Carvalhaes , Freiras , e Britos 9
Giratido-lhes o sani^ue pelas vèas
De Esmeraldos , Orneilas , e Cuireas.

XXXVII.
Também Acciaióles, verdejando,
os
Alb 15 , e Seixas , florecendo ,
i(^'jerqu
Iraó Viçosos Ramos espalhando
De Zargo a Df^cendencia enriquecendo :

Vasconcellos também , ramigeranJo ,


Athoguias , em fim , reverdecendo ,
Formiraó com aquelles de mistura
Da Nobreza a írondifera iispeásura^

XXXVIII.
, : ,, ,

tjo Z A R G U E I D A.

XXXVIII.
Wais não ílirei da Grã Genealogit
D'Aquelle Grande Heróe direi somente
:

As Acções Immortaes, a Fidalguia


í^os que referem esta Terra ingente :

Sempre Lusa Monarquia


fiel á
De Zargo o Primogénito Valente
Tomando de sen Pai o Car^o , e o Nome
Em parte o Fado quer , que a Gloria tome,
XXXIX.
Comas armas na.mãj Soldado Forte
Aos Mouros mostrará valor robusto ,
E acada golpe seu , que leva a Morte
Arzila , e Ceuta tremerão de susto:
Será nos bravos Campos de Mavorte
Hum Fiagello Cruel do Africo adusto
Pelejando com força mais que humana
Pelo augmento da Gloria Lusitana.
XL.

Imitando seu Pai- em si virtude


Este Heróe Generoso , e V^eneravel
Na dura encosta d 'hum tochedo rude
Fundará hum Mosteiro [le.«:peitavel
Sem que d honrados sentimentos mude,
Fazendo-se por elles memorável
Viverá sete Lustros não completos ,
Seguindo da Jusriça os termos retos.

XLI.
: , : ,
,

CANTO VI. J51

XLI.
Hum Filho deste Heros , Filho Secundo ,
Qae entáo seri Magnifico chamado ,
Exemp o^ dando de grandeza ao Mundo
Suecederá ao Pai no Emprego Honrado :
Será na Guerra Monstro Furibundo ;
Nove vezes rompendo o mir salgado 9
E os Lenhos esquipando á própria custt
O Mouro açoitará d'Africa Adusta.
XLII.

Acompanhado d'hum valente Ornellas


Seguindo o Grande Ouque de Bragança,
De frio Susto as Gentes amarellas
De Azamor háo de vêllo com pujança
Por estas , e por outras Acções Bellas ,
Bjm dignas todas d'immorial lembrança ,
Por indulto da P^egia Magestad:
A Villâ do Funchal será Cidade.
XLIII.

Será então que hum Templo o mais Pomposo


,

De immcnsa altura los ares se levante ,

E que hum Grande Edificio Apparatoso


Se construa Magnifico , e brilhance
Antes terá entáo Manoel Famoso
Tentado abrir as Levante
Portas do
Pondo nas mios do Garn^ a chave
force
„ Deste Commettimemo Grande, e Grave. „

XLIV.
: ,

jj« Z A R G U E I D A.

XLIV.
Sínco Lustros, e mais tendo regido
Os com amor frs terno
Insulanos
Do Grande Zargo o Nero Esclarecido
O Exemplo seguira do Avô Paterno :

No seu Primeiro Filho mai? Querido


Cederá pnr seu ^osto o seu Governo ,
E cnfáo ha de n'hum sitio retirado
A infallivel pensáo pagar ao Fado,
^
XLV.
OFilho deste Heróe , seguindo os passos
De lllujrre Pai , por muitas vezes
seu
Ha de sulcar os líquidos espaços
Em soccorro dos fortes P<. rruguezes
Sem temer Africanos ameaços ,
Da Guerra cxp-^çto aos bárbaros revezes
Do Duque de Bragança em companhia
Mostrará sua Heróica valentia,

XLVI.
Quâsl dois Lustros viverá , regendo
Os Funchalenses Povos com ternura
De rodos clles com prazer fazendo
Os Gostos, as Delicias, a Ventura:
A' negra Morte o Espirito rendendo ,
Irá Corpo á fria sepjltura ;
seu
Porém seu ÍCome , e Feitos Soberanos
Respeitados scrj.ó dos Insulanos.

bíLVIL
! ,, ,

CANTO VI. I$l

XLVIT.
Será seu successor seu Fillio Amado
Heròe , que ainda me<<mo em terna idade
Fará , que o Mouro bárbaro tostado
Conheça do seu braço a potestade
Pizando de seu Pai o trilho honrado
Para Gloria da Lusa Magestade,
Fará , pondo em fugida o Mouro izedo ,
O Gráo Cabo de Gué tremer de medo.
XLVIII.
Virá tempo , em que tenha este Heróe Claro
O Titulo de Conde •,
e to mundo dando
De Singular Virtude Exemplo Raro,
Irá Feliz seu Povo governando:
Do Rico Prezador , do Pohre Amparo ,
As Leis da Humanidade executando ,
Mais de oito lustros viverá fazendo
A Gloria do Funchal , que irá crescendo.

XLIX.
OFilho deste Heróe por tempo breve
Succederá no Cargo , e no Condado
Porque a Morte cruel com mãos de neve
Desfechará sobre elle o golpe irado :
Nos áureos Livroj , em qje a Fama escreve
Será sempre o seu Nome eternizado
A pezir de ráo cedo a desabrida
Morte cerrar-lhe o circulo da vida.

L.
154 ZARGUEIDA.
L.

Por immuraveis Leis do Fado Eterno ,


( Cuja iníiondâvel Sibia Piovidencii
Tem 5obre os homens hum Poder Superno ,

Sagríida Força , Divinal Potencia )


Desta grande li ha o célebre Governo
Andará sempre nesta Descendência ;
Longos tempos será como Foreira
Da iliusire Prole a singular Madeira.
LL
Virá depois hum século Famoso
Pira os pulidos Povos Insulanos
IJum século feliz , e o mais fastoso
De quantos prende o vinculo dos annos :
Pm quanto nhum naufrágio Tormentoso
De guerras , vexações sustos , e enganos
X^^agar o Mundo inteiro , a fértil Terra
Verá sempre de longe a face á Guerra.
LIL
Entío Hum Ramo , Illustre Descendente (*)
Do Claro Zargo , as rédeas meneando
IThum Governo Fiel
, e Prudente
, .Sábio ,

Evitará da Guerra o njal nefando :

Fazendo a Gloria da Insulana Gente


Noite, e dia Incansável trabalhando
Tratará da Policia , e dá Cultura
Por dar de todo os Povos a Ventura.

Lin.

(*) Veja-sc a Nota no fim deste Canto,


,

CANTO VI. ISÇ

LIII.

Talhando altivo de Neptuno o dorso


Em concaves Madeiros , como Amigo
Virá entáo Britânico Reforço
Auxiliallos contra o Inimigo :

Mostrando alli da Gratidão o esforço ,


Ha de Este Heróe na Terra dar-lhe abrigo ,
Afagando Nação Guerreira , e Forte
a
Que nos Combates nunca teme a Morte.
L!V.
Elle ha de nesta Crise delicada
Desígnios perscrutar do Seu Regente
Na Mente r:Volvendo impercurbadi
Os moJos de salvar a liha , a Gente:
Acção ha de ser esta Celebrada
Na Ilha mais , que nunca , florecente ,
Devendo por tal guiza , tal victoria
O Templo guarnecer d'alta Memoria.
LV.
Organizanc^o Fábrica*; , fazendo
Reedificar a^ Regias Fortalezas,
Officinas esplendidas erguendo ,

A peEo de grossíssimas despezas :


Hábeis Agentes Próvido elegendo
Para láo ucilissimas emprezas ,
Fará com que a Madeira ao ar levante
A frente mais , que nunca ^ entáo brilhante.

LVI.
: , , ,

156 Z A R G U E I D A.

LVI.
Das ^ciência? fará , que o Ramo cre^ç* ,
Fará com que o Commercio amortecida
y^os ares erga a tLÍmida Cabeça ,

Que a Discórdia Avernal tinha abatido:


Fará , em
fim , que a Ilha reverdeça ,
'

Mostrando ao mundo aspecto mais luzido,


E , porque as invasões de Pan evite
Bardando as Terras , lhe porá limite.
LVII.

Fará com que se aplanem as estradas ,


/.brindo montes ásperos ao meio ,
Com férreos alviões , férreas enxadas ,
Fará do frstVesse Público meneio:
Fará também que as agoas encanadas
A^enháo fertilizar da Teira o seio,
Da Terra , que atélii regida fora
to de chuvas , ou lagrimas da Aurora.
LVIII.

Será então , que o Principe Regente


Joáo Sexto dos Príncipes Modrio ,
Mostre ao Mundo vSeu Animo Excellente ,
Fv pelo Povo Seu Ardtnte Zelo
JSerá entáo que o Principe Porenre
joáo Sexto dos ímprobos Fltgello ,
l/snce hunr.a Vista Pura , e Lisonjeira
Sobre os Fclices Povos da Madeira..

UX.
,

CANTO VI. i$7

IIX.
Deste Principe Excelso o N', me Augusto
Inda acima do Olympo Crysrailino
Levado àeve ser , porque hum Rei Justo
Tem me'^os de Worral, que de Divino:
Kste Príncipe então a rodo o custo ,
Velando do Funchal sobre o Destino ,
Per fazello feliz com fausto agouro ,
Grande parte dar-lhe-ha do seu Thesouro.
LX.
Vendo do*? Insulanos a humidade ,

A .^ubmissáo ás Leis, a vassailagera ,


O valor , a ternura , a lealdade ,
Mostrar-lhes-ha do Amor tudâ a Coragem :

Mais não faria a Sacra Divindade ,


Que he da justiça a Verdadeira imagem;
Este FVincipe R^regio noite , e dia
\'elará do Funchal sobre a Armonia,
LXI.

Vendo o IVlonsrro da Guerra turbulento


^cbre as azas das Fúrias assanhadas
Pelo m»indo voar san^uisedento ,
Semeando ruinas desgraçadas ;

Vendo este enorme Monstro truculento.


Não farto de ver Terras abrazadas ,
Furioso atear , cruzando os ares ,
Sulfúreas chftinmas âié sobre os ir.ares:

LXIÍ.
: ; , :

15? Z A R G U E I D A.

LXII.
Esre Príncipe Tn igne , Insigne em tudo,
5sem lemer suas negras ameaças,
Virrude tem por forie Escudo ,
Porq'''e a
A' Madeira fará sublimes Graças
Entregue rodo ao mais profundo Estudo
De eviíar-ihe as terríficas Desgraças,
Dará mil Providencias Necessárias,
Para arrostar as Invasões Contraiias,

LXIII.

Vendo â Celebrai Europa ensanguentada,


E ,
por elia va::;ando , Marte horrendo
í^cprar da Guerra a chamma incendiada ,

Que os montes tala , e os campos vai lambendo


^ endo a Discórdia em fim desenfreada ,

Por mares , e por terras discorrendo ,


/<pcs do Carro do Cruento Marte
Fazer rolar seu pomo em toda a parte
IXIV.
Pertenderá co' as armas da Virtude
Este Príncipe Grande em ludo Egrégio
Do Mundo desrefrar a Fesie rude ,

Que commeite hum sacrilégio


conrra a Paz
Izento da ambição, cjue os máos illude
Ha de interpor Seu Peito Augusto , e Regio ,
Fazendo , que em fugida posta a Guerra
A Paz des^a dos Altos Ceos á Terra..

LXV.
: :

CANTO VI. 159

LXV.
Esta será eniáo a iiióc veniura
Dos Povos Funchalenses commovidos
Pelos eífcitos d'huma Guerra dura ,
Dignos de serem com razão temidos
Encáo á Santa Paz serena , e pura ,
Os Povos do Funchal agradecidos ,

Ardendo alli da Gratidão na chamma ,


Renderáó cultos de memoria , e fama.
LXVI.
Que Scenas de Prazer que amáveis,
scenas
Tu verás Thycneo assas festivas
, , !

Que noites táo felices táo sereias


, !

Que delicias que glorias excessivas


,
!

A Alegria verás , batendo as pennas


Por e-^.tre turmas de sonoros vivas
Levar comsigo aos Astros Supricres
Da Paz Santa os Altisonos Louvures,
LXVJI.
llluminada em grata simetria
Verás também frendi fera Lameda ,
Que em frescura , primor , mimo , e valia
Aí^uella dos Eliseos arremeda
A Noiíe alli mais clara, do que o Dia,
Se ostentará vaidosa , meiga , e leda ,
Convidando os pasmados Insulanos
A ver da Paz Emblemas Soberanos.

LXVIII.
:

léo Z A R G U E I D A.

LXVIII.
No centro delia tu verás erguida
Aos limpos ares com grandeza esinnhi
De Louros, e de ^íirthos revestida
A ApoUmea Florigera \2ontanha :

^'^erás cantar os Vates á porfia


I^o som das agoas que ella desentranha
,

For entre a fenda da Pegásea pata


Imitando na cor límpida prata.

LXIX.
da Paz ^agrada na Bonança
A 111
rntoaraó os Meficcs Cantores
Da Clara Regia Prole de Bragança
Os sonorosos métricos Louvores
Do Luso Império á ^^hxlmâ Esperança
O Funchal pelos seus Habitadores
Vcris render da Gratidão nas Aras
Cultos fiéis. Adorações Preclaras.
LXX.
Tu verás o Funchal também Contente
Da Pura Gratidão sobrt es altares
Do seu Descobridor á Gloria Ingente
Kender Sclemnes cuhcs a milhares:
K quando decantar for docemenre
Do Immortal Zargo os Feitos Exemplares
Ouvirás como grato lhe responde
Lo Elysio Campo, em que acs Mortacs se esconde.

LXXL
, :, ,

CANTO VI. l6l

LXXI.
Verás mais Re^ia Praça illaminada
Em simétrico risco apparatoso »
E de Estâncias xMsgnihcas cercada
Com tablado no Centro luminoso :

Verás em cada noite desinada


Ao Publico Festejo á Paz honroso ,

Alli tecerem fcstivaes Coreas


Destros Pastores , Cândidas Nap^as.
LXXII.

Tu mesmo , no teu Carro então girando


Pela vistosa Praça , amena , e linda ^
O verdejanr.e Thyrso meneando ,
Festejarás da Paz a Santa vinda ;
Tu mesmo vozes métricas soltanda
Vozes por náo
ti repetidas inda ,

Farás com que o Funchil cheio de espanto


Escute Alegre o teu Celeste Cinto.

LXXIÍI.

Hum Século feliz auri-formado


Virá depois ao Povo Funchalense
Que esquecerá aqueile decantado
Do Governo Monarchico Cretense
Hum Século feliz , divinizado
Tanto , quanto talvez nunca se penso
Trará Venturas da Madeira aos Povos
Então regidos por Preceitos Novos*

LXXIV,
, :

i62 ZARGUEIDA.
LXXIV.
Verás então , Lieo , nas Insulanas
Praias gemer Nepruno ao pezo duro
Das fluctuantes Máquinas Liritanas ,
Que àili viráó fazer Comniercio puroi

Prenhes Quilhas verás Arricricanas


Desentranharem do seu ventre escuro
]Vlil víveres períeicos náo mesquinhos
Por se pejarem de mimosos vinnos.
LXXV.
Verás d'outras Nações Quilhas veleiras
Abrindo as azas aos propícios vcn'.os
Soltas âos ares Nacionaes Bandeiras
Aqui trazerem graros mantimenios ;

Prenhes também do sumo das videiras.


Sumo , que da valor , reforya alentos ,
Iráó Comentes demandar seus L;ircs>
E no seu seio ce ereueráS Altares.
LXXVÍ.
Estas S30 , Thyoneo , as consequências
D'hum Governo feliz , e sáo a^jJellas
Do Grande Zargo , e suas Descendências
As Acçóes Immortaes , as Acções Bellas
Tanto podem do Fido as Providencias ,
Devemos respeirallas , e temelias ;

Devemos confessar que ás L?is do Fado


ió pôde resistir Jove Sagraco.

Fim do Canto Síx:o. .


,

o Excellentissimo D. José Manoel da Camará


Governador , e Capitão General da ilha da Maúei-
ra em 1^02, na Qualidade de Neto dos Senhores
das Ilhas Desertas fica sendo descendente do Dasco-
bridor , Heróe deste Poema.

L ii CAN-
, ;

a6f

CA N ^

E N T o.

Gradece a Neptuno o Deos de Nizaj


Neptuno busca o seu Império undoso j
Lieo a Láctea Fia Alegre piza ,
E vai faliar a Jove Poderoso :
Então Zargo Immortal , ^ue se ahalizA
por hewico valor , pnde Animoso
Os Atlânticos Alares , com espanto
Dos Lusos , té que chega ao Porto Santos

I.

A
Ao
Dmjrado Lieo de quanto ouvira
fluctivago Vate, em gozo torna

A , que Pan accendêra , horrivei ira

E de excessivo júbilo se adorna :


Parece que delicias mil respira
Seu Coração , em que o Prazer se entorna
Nas rubras lizas faces se lhe via
And;r brincando a mágica Alegria*

ir.
,! ! , !

)66 X A R GU E I D A.

fll.

Pensando longo espaço na abundância


Das raras Producçôes da Nova Terra
>\inda mais que Divinal Jactância
Dentro em seu Coração Divino encerra :
Pensando das Proezas na Constância
n'Heróes Grandes na Píz , Grzndes na Guerra,
De ser a Divindade se glorea
Da Fértil Ilha de VenturáS Chea.
III.

Oh ! Bemaventurada neste MunJo


Thyoneo ) Aquella Gente ,
( Dizia
A quem só rege com giber profundo
Hum Governo Benéfico , e Exce!!entc
Feliz o Magistrado , que Facundo
Sóbi; o Pcvo ret^er , e Prudente
Justo
E niil vc^res Feliz o Soberano ,
Que para os Povos seus He Mais que Humano
IV.

He então , que entre os homens resplendecem


A Concórdia Feliz, c a Paz Dourada ^
He «ntáo uM)e fruri geres florecpm
j

Os ranaos da Cultura táo prezsda :

Também os do Commercio reverdecem


E a Boa Ordem, Dádiva Ss^rada,
Didiva Pura dos Celestes Numes
Respiri nas Acções, e nos Costumes,

V.
, ,

CANTO VII. i6t

V.
He eniâo ,
que se cKe''cem com pureza
As vene andas L.eis da Pied/.de
Aq.ellas, que gravara a Níturf^za
No Coração da fraca Humanidade :
He eniáo , que se vè toda a Bellezâ
Da dos Morraes devida Sociedade ,
He então , que entre docsí alegrias
Cons' mem iodos docemente os d>as.
VI.

Oh ! mil vezes felices os Mundanos ,


Que tiverem hum dia inda a ventura ,
Que vão ter os meus Caros Insulanos
Lá nessa idade plácida , e íutura í

O Destino dos Fados Soberanos


Adoro cheio de fiel ternura,
E , abrindo de-^de já Celesses ares y
Mil cukos vou render nos seus Altareí.
VII.

Neptuno , em paz quanto tens feito


Vai-te , :

Ao Numen do Funchal , levo em lembrança ;


D hum Numen , como eu sou , no Sacro Pcit(j
]á mais a Gratidão fílece , ou cança :

E vós , 6 Deoses , que r-.mibem respeito


E de quem prezo a Cândida Aliiança ,
Ide em paz, que mais rápido, que o vento,'
Subir me cumpie ao Luminoso Así^enro.

VIU.
, : ,

i6l Z A R G U E I D A.

VIII.

Depois de assim fallar , Navem Douridt 9


Descendo sobre a Terra , no seu seio
Occulta o Deos de Niza , e remontada
Nos ares forma hum lúcido rodeio:
Neptuno então na concha prateada
-A CSCavailo5 batendo o açoite, e o freio,
Seguido das Deidades Crystaliinas
Veloz retrilha as liquidas Campinas.
IX.

}á pela Ethérea via o Deos Thebano


Glorioso caminha , até que chega
A' Presença de Jove Soberano
Que a Pensamentos Divinaes se entrega :

Lieo , que estava de prazer Insano ,


A voz do centro ao peito desapega ,
E ante o Throno de Júpiter prostrado
Começa deste modo em alto brado
X.

Segunda vez , 6 Pai , ^rAças te rendo


Pela grande Mecê, que me fizeste,
Agora , sim , a^ora ccmprehendo
O qnanio Liberal me cocícedes e :
A Gentil f lha , ha poucas horas , vendo
Aprazível a achei , posto que agreste,
IVl as espero bem cedo , que a cultura
A torne mais polida , amena , e pura.

XI.
, ;, :

CANTO Vil. 169

XI.

Tu
5
que tudo prevês , destinas tudo
E que do Fado ás Leis dás força ingente |
Que a hum leve aceno teu abalas Nludo
Dos Ceos , Máquina fulgente ;
c Terra a
Já sibes muito bem o qúe o Sizudo
Fado quer a íavor da Lusa Gente j
]i sabes muito bem a feliz sorte
De Zargo , e sua Prole Illustre , e Forte,
XI í.
Agora pois só quero a Nova Graça
De mandares, que Pan dalli se aparte,
Para que com seus Satyros náo faça
^Igum dano á Cultura em qualquer parte:
Deste Kjmen náo temo ímpia ameaça ,

Excedo-lhe em valor em força, e arte ,

Mas náo quizera guerrear com elle ,


Por isso mesmo que o conheço imbelle.

XIII.

Inda ha pv^uco , este Numen atrevido


E os seus rudes Silvanos percendèráo
Expellir-me com modo desabrido
Da Terra , cm que cruéis me accommettêráo
Eu fui pi)r estes Mon*tros investido i

Nuvens de rochas sobre mim choverão


Porém soLibe punir n'hum só mcmenio
Do Capripedo Deos o Atrevimento.

XIV.
,

170 Z A R G U E I D A.

XIV.
De-eio pois ó , Jupirer ^'agrado ,
Mais severa, mais rígida vin^^ança;
Deí?ie Numen o crime arrebatado
R iscar nào posso ainda da Lembrança :

íeja Pan cem seus Faunos desterrado ,

E seja. Caro Pai , sem mór taidança ,


Forque aprenda a náo ser o temerário
/»os DeostTs d alta Corte tão contrario,

XV.
Seu crime he digno de exemplar castigo
Terça até dis monranhas o Governo ;

Nem mesmo cm ermas serras renha abrigo


Hum I 'eos que aos Dcoses tem hum ódio etirno
,

"^^á e?te Numen vil , meu Inimigo ,

0% do escuro Averno ;
anrros habitar
Ah pune, Jucto Pai, o Deos Intorme ,
!

C^uàl puniste da Terra a Proie Enorme.

XVI.
Mais diria Lleo , se o Grão Tonante
r«.áo lhe ata'h<»sse a voz , assim dizendo!
^ocega, Filho meu cciasa bâscanre }

Tens para te semir de Pan horret^e :

Me grande o seu delicto he ag^^ravante , ,

> unillo d'algum modo em íim perrendo ;

Porém pedir vingança táo severa


He impróprio d hum Dcos da lua Esfera,

XVII.
: , ,:

C A N' T o Vn. I.J1

XVII.
Náo devem ser os Numes vingativos.
Devem ser Jusros ,
porem ser Pie<do.cs
P*râ que dos Morraes em quanto vivos
Seiáo sempr* huns Rspelhos Luminosos
Pára tanto rigor náo tens motivos ;

Ce eu íu'min>;i Gigante» Orgulhosos


Foi porque esta Infeliz Proie da Terra
Se armara contra os Ceos , pondo-l-^es guerra.
XVIIÍ.

5^erá punido Pan do fero in^julro


Coura con:me't:do ; hum fogo len^o
ti

Os bosque? do Terreno inculto


densos
Em seu castigo tragará vjolenro
Advinido seiá q'''e dê mais culto
Aos Deoses ca do Sacro Firmamento ,
E pira que com el'e náo te irrites ,

Lá nas montanhas lhe porei limites.

XIX.

A Máquina do Mundo Porcenrosa


Com Supremo Poder somente eu rejo ;

Nada me encapa a Vista Magesrosa,


Tudo sei , tudo ordeno , tudo vejo :
Do Futuro penetro â tenebrosa
Cerrada Escuridão quando desejo ,
:

Adivinho o projecto dos humanos ,


E até mismo o dos Deosjs Sob»ranoj.

XX.
, , , ,: ,

17» Z A R G U E I D A.

XX.
Pem poderá evitar de certo modo
Mil fururos succesios : bem poderá
Fazer com que inda hum dia o mundo tod»
Visse o Sacro poder de quem o impera :
IVJas da Ignoranci* viverão no lodo
Té mesmo os Deoses da Celeste Rsfera 5
Conhecerão somente os meus Preceitos y
Náo pelas Causas , sim pelos LíFeitos»
XXf.
Desta sorte o Omnipotente
fallanrlo ,

Bem mostrava prever o mal futuro,


Que Baccho aparelhava á Lusa Gente
Que fosse de Memnon ao Clima duro
Mas Lieo , cuja inveja náo consente
Que então penetre o Pensamento p^scuro
Náo se lembra , que Júpiter previa
O que elle contra o Gama pertendia.
XXII.

Beijando a Dextra ao Pai , Biccho projeta^


Ir de He.spero ao Jardim, onde florece
A videira melhor , e a mais seleta
Q^ue do Mundo nas Terras apparece :
Da Presença de Júpiter , qual setta ,
O Thyrsi<^ero Deos desapparece
E entáo baixando da Cclesie Altura;
O Jardim das Hespérides procur*.

XXIII.
: : , , ,

' CANTO VII. 173

XXIII.
Entretanto no Tejo se breava
De novo o Lenho para a Nova FrnpreZâ i

A cordagem também se alcatroava ,


E tudo com insólita presteza
O Valoroso Zargo se es^^uipava
De Gente de náo vista fortaleza ,
E o Forte Infante , que dispunha tudo ,
Em vêllo além da fóz fazia estudo.

XXIV.
do prompto Madeiro a toda a pressa

Os mastaréos o Contramestre acunha ,
E a Companha Maritima começa
A despegar da arêa a férrea unha :

Eis o Velame tos Ventos se arremeça


Robusto Marinheiro o Leme empunha ,
E a Cortadora Proa encanecia
As Tagiranas ondas, que fendia.

XXV.
Do
Gran(áe Henrique as Ordens recebmdo
Dando animoso a Deos aos seus Ámi£os
Navega o Claro Zar2;o , náo temendo
Do Vario Mar os hórridos Perigos
Aos Ulyssci a voz erguendo
ares
Ah praza aos Ceos ( dizia ) que inimigos
!

Náo encontres os Fados : fresca Aragem


Te sopre o panno na feliz viagem.

XXVI.
: ,
,; ,

174 Z A R G U E I D A.

XXVI.
PrAZâ aos Ceos que , sulcando planos mâre5
Sem vêr escolhos , sem topar torrnenias
Descubras novas Terras , novos ares >
Já que d^honras, e glorias te alimentas:
Se acaso hum dia aos braços meus voltares 5
Depois de conseguires o que inrcntas ,
Cem que doce prazer , e de que geito
Te cerrarei , ó Filho , contra o pei:o !

XXVII.
Vai-te em p»z , Filho meu , Honras Lustrosas
Não se alcançáo sem áspera fadiga ;
Costurráo mais alfas, mais famosas.
ser
Quando a ganhallas Amor Pairio obriga;
>*s Acções dos Heròes sáo façanhosas.
Quando a vida se ai risca , e mais periga ;
Pela esirada da Inércia em váo presume
^ubir o Homem da Ventura ao cume.

XXV Hl.
Tu Fados elegido
estás pelos
Fará essa Empreza , que a li só se deve
Tu fosic dentre todos escolhido ,

Pcrque s6 teu valor tanio se atreve


O fardo dcsie Emprego tão subido
Para o teu Grande Esforço he Carga Icvej
/ o pezo desta Acção , posto que insano
I^áo succumbe hum Alcides Lusitano.

XXIX.
)
!

CANTO VII. 171

xyix.
Em tanto que Uiysset as>im dizia ,
Da praia os Lusiranos acenavao ,
E em muitas partes mujmwâr se oi:via
De Kmpfczas , t que humanos se arriscavão :

O' Glofia vá , ( tialli hum repetia ,

Em quano muiios lúgubres choraváo


A que âbyjmos conduzes essáis Gencej
Roubando-as t seus miseros Parenies
XXX.
Surda aos ecos das vozes lamentosas
Das consternadas Mais dos Pais aíriicios, ,

Aos brades das ternissimas Esposas ,


Dos tenros Filhos a innocentes gritos -,

Arrastas pelas ondas peçigosas


Pais , Maridos , e Filhos infinitos
Com falsas luzes encobrindo aos olhos
Equoreas Syrtes , hórridos escolhos.

XX Kf.
Pa^^ que he intentar grandes Fmpreza^,
Ariiscando-se a Cousa mais queiida.
Se o iruto das mais Ínclitas Proezas
Só para se colher he curta a vida J
As cegas navegar entre incertezas,
Trdhando salsa via náo sabida ,
Chamáo-lhe Ingente Gloria Soberana j

Mas ah quanto o Moirai loucc s3 engana


1 !

XXXII.
:: ,,

176 Z A R G U E I D A.

/ XXXII.
Queira o Ceo conduzir-tc , ó Quilha undante ,
Sem que topes horrisonas procelías
A Cbma deste Clima náo distante ,
E a Regiões pac-ficas , e bcllas
Hum vento sempre doce , e murmunnre
Com brar.»ios sopros te refresque as veias ,
Para que abrindo o mádido Elcrr.ento
Vás , e voltes á Pátria a salvamento.
XXXIII.

A fâes vozes o Tejo , que dormindo


Estava scbre as urnas , despertando ,
E » musgosa Cabeça sacodindo
Alça a frente , e vê Zargo ondas rasgando :

A voz entáo do peito despedindo


Vai com saudoso pranto misturando
Estas palavras 3 que, fendendo os ares,
Kesoáo sobre a ferra , e sobre os maresL

XXXIV.
Queira o Ceo , Luso Heroe , ser-te propicio
Em quanto as ondas do alto mar fenderes ,
E^ nunca arrostes do fatal F.xicio
Os deploráveis hórridos Poderes
(^ueiía o Cgo , que bem cedo hum sacrifício
Venhas render nas aras dos Prazeies
Ao Primeiro joáo na pura ofíerta
Da Tem , de que vás á Descoberta.'

XXXV".
:

CANTO VII. 177

XXXV.
Se de saudoso pranto as faces banho ,
Se sinto da Saudade a vehemencia ,
Se languidos suspÍTOs desentranho ,
São efteitos da tua cura ausência :

Mas âh meu Zars^o , que prazer tamanho


!

Me d<?scina do Fado a Providencia !

Vai-re em paz , que da Gloria laureado


Espero ver-te cedo, e premiado.
XXXVÍ.
Em quanto assim dizia , o Pinho fende,
Cheio de floria, e de prazer sobejo,
As crystaliinas a^oas , que desprencle
Das áureas Urnas o Sereno Té|a
As líneas azas cândida*; , que estende
Incha o vento com prospero batejo ;
E a poucos sulcos já do mar em íóii
Navega a curva Quilha nadadora.
XXXVII.
Era o tempo , em que a Diva Camponeza
Entre auri-verdes messes passeava ,
E por dar as espigas mais belleza
A dourallas de todo começava :

Era o tempo em que a Etherea Tocha acceza


,

No Zodíaco a Câncer visit-va ,


Quando Zargo na Quilha temerária
Procurava a Giande íiha Soiuaria.

M XXXV III.
,

I7S ZARGUEIDA,
XXXVIII.
Sonoras virações , doces , e brandas ,
Cujo bafejo 06 Nautas lisonjca ,

Propicias refrescando as velas pandas


O mar encrespáo , <jue Neptuno enfrea :

O^ 1 u , que reges tudo , e tudo mandas >


( Dis?e Zargo com voz suave , e cbca )
Lá do alto Olympo venerando e>cuia
D^hum Submisso Mortal a voz arguta*
XXXIX.
Não sem mysterío d*entre o p6 do Kíida
Was a do Terráqueo feundo
Tiraste a ;

Não sem mysicrio Tua Máo Sagrada


Fez este mar táo vasto , e láo profundo :

^e hoje em concava quilha aos vcntcs dada


^s ondas talho do Oceano fundo,
He por mostrar á fraca Humanidade
Tua Sacra Suprema Potcsíadc.
XL.

Náo foi debalde , náo , que tu formaste


Esta immensa exiensáo do Mar incerto j
Náo foi debalde , náo que o semeaste
De Terras , que irda náo se ha descoberto í
Se o vasto Mundo para nós creaste
He pena, que haja Mundo inda deserto;
Ah protege-me , ó Deos , porq' eu intento
!

Fazer hum Immottal Descobrimento.

XIX
, ,: ,

CANTO VII. 17,

XLI.
Appareção is tuas Maravilhas
Aos olhos dos Mundanos novos mares , :

Novos Ceos , novas Terras , novas Ilhas ,


Descubráo-se aos Morraes , e novos ares
Tu , que Ceo , Terra , Màr , e Inferno humilhas
Deixa , que cedo te íevante AUares
Nessa Terra Gentil , que hoje demando ,
Para alli dar-te Culto venerando.
XLII.

Não consintas , que E6I0 os ventos solte


Dos horrisonos Cárceres escuros
Porque os mares ,
que fendo , não revolte.
Levantando altas serras , altos muroj :

Permitie
, sim , que cedo á Pátria volte ,
Sem que enconcre jámnis perigos duros
Dando maia huma Terra náo mesquinha
Ao Lusiiano Império , á Pátriaminha.
XLlíf.

Ja distantes dos Pátrios Horizontes


Os Novos Ar2;onautas navegavão.
Vendo apenas de Cintra os altos montes ,
Que sombras carregaváo
as vespertinas i

Já de Febo os*^ igni feros Ethontes


Nas Amphitrítcas ondas mergulhavão
O luminoso Plaustro crystallino.
Entrando pelo Império Neptunino:

M is XLIV.
,,

'i"So Z A R G U E I D A.

XLIV.
Quando aos Ceos o Grão Zargo desta eortí
Seus rogos enviava , que subindo,

Sobre as azas da voz serena , e for:e


Os mansos ares hiáo dividindo :

Da aguda Quilha rer^lhava o cone


As ondas , que espumantes vão sahindo
n'ambos os lidos da lií^eira Froa ,
Onde cm dcce murmúrio a Linfa sôi,
:xLv.

Seguio-se então a Koire socegada ,

F mais que nunca a Juminosa Estera


De brilhantes Estrellas marchetada
No tremulo das ondss reverbera :

V^inhâ mostrando a Lua prateada


A face em que da neve
, a cor se esmera ,

E em plaustro de crystal de luies thea


Os Astros visitava a Clara Dêa,

XLVL
Enredado em sublimes pensamentos,
Fm quanto o Luso Capitão descança ,
Worales calculava os movimenros
Dos Astros, a que experto as vistas lança;
Fazia a cada instante .apontamentos ,
Para sua mais firme segurança ,
E no mar da llazáo lançando o prumo
Da Bússola seguia hum ceiío luma*

XLVII.
: ,

CANTO Vil. 1 Si

XLVIÍ.
Tá de Venu3 gentil o A^tro brllhnte ,
Dl muda Noite as sombras apartando.
Espalhava huma luz clara , e radiante
Sobre os mírej, que o Lenho hia sulcando:
Da Culta Grande Europa já distante ,
Porque lhe refrescara o vento brando,
Zargo animoso com feliz a'jspicio
Somente via o Mar, e o Ceo Propicioi
XLVIII.
Os Novo? Argonautas navegarão
Desta sorte alguns dias felizmente ,
Até que em certa altura projecráráo
Avante não pissar prudentemenre
For alií;uns dia? sobre o mar pairarão
Em demanda da Terra florecen^e ,
Até que hum dia pí;Ia me-íTia rota
Houveráo vista d'hama Terra nota.
XLIX.
Aquella ( disse Zar^o ) Illiâ frondo5a ,
Que vemos, e talvez vos cause espanto,
He a aprazivel Ilha milagrosa ,
Que por mim chamada o Porto Santo
foi
'

Horrivel TempesraJe tormentosa


Desabou sobre mim com furor tanto.
Que fui!indo-lhe aos rábidos furores
Alii vim escapar aos seus rigores.

L.
, : ; : ,

iti Z A R G U E I D A.

L.

Devemos pois , Morales , aportalla ;

Não julgues , que ella ainda está deserta ,


Tem vindo Geme Lusa povoalla
E Gente Lusa na Cultura experra
Devemos, sim, d'alli fazer Escala,
Para tentar a nossa Descoberra ,
Pois ( cá segundo a minha conjectura )
A Ilha deve andar por esta altura«
LI.

He certo sim ( Worales lhe responde )


Que ( secundo o meu cálculo já íeito )
Porque entre nuvens téciicas se esconde ,
Bem pode perto estar , como suspeito
Oh quem podéra , Zargo , saber onde
!

Tão estimável Tlha tem feu leito !

Was não se desanime nalta Empreza ,


Lcnge de nós t tímida Fraqueza.

LIL
Com estranho ralor , Zargo Sublime ,
Tenho mil vezes encarado t Morte j
Á minha Intrepidez jamais opprime
Do Cobarde Pavor o pezo forte :

Longe de mim da Timidez o crime


Inda que encontre sempre opposta a Sorte
O ardente sangue não regela o Susto ,
Sou Homem , tenho hum ânimo robusto.

LIII.
, : , , ,

CANTO vir. iti

LIIÍ.

Vamos sim , como dize? , tomar porto ;

E delle , inda que seiáo vezes cenro


Depois de al^um refresco , e são conforto ,
Hifcmos véUf ao propicio veito
Sim , ó Zargo Immorrsl , antes eu morto
Que perder hum táo bom Descobrimento;
Ou se hl de descobrir t Terra pura ,

Ou se ha de ter no mar a sepultura.

LIV.

Quando Morale? isto repetia


Com suave expressão , mas animada ,
A Intrepidez na hcc se lhe via
Com rubra cor vivissima pintada :

O Luso Capitão tudo attendia ,


E sentindo sua alma arrebatada
Pela força de tanra Heroicidade
A Morales jurou pura Amizaue.
LV.
Entretanto o fluctivs2;o Madeiro
Busca a Terra , que Zargo descobrira »
Quando cruzando o mar Aventureiro
Do bravo Temporal fugio á ira ;
Voava o cavo Pinho , e táo ligeiro
ímpellido da aragem , que respira ,
Que náo parece alli ser Lenho grave
Nem undivaga Quilha , mas ser Ave,

Lvr
:

tU Z A R G U E I D A.

LVT.
Os et"''.ere'>s e«íp2ços dividindo ,

Quasi chegando costumada mctâ ,


á
Nas ondas sua« luzes submergindo
Hia o Giga^^te Lúcido Planeta :
Quando o Madeiro côncavo surgindo
No amifío Porto mais veloz , que a settâ ^
i\rrojâ ás a^oas o bidente ferro ,
A cu)o golpe deo Neptuno hum berro.
LVII.

As velas .d^imp^oviso se amain?'rão ,


Colhèráo-se ?s Bandeiras iremolanies,
F aquella noite alegres descançáráo
Os destemidos Lusos Navegantes
Para a empreza seus animes preparáo ,
Reforçando seus ânimos constantes ,
E todos elles de Morfeo nos braços
Prender-sc deixáo com dourados laços.

LVIII.
^/. 7ar?o Tllu-ítre toda a noite vela ,
Ao lado de Morale-? calculando ,

Onde estar»* a fértil Ilha bella ,

Que andava pelas ondas procurando :


Apenas vinha a Matutina Rstrella
Dúbias luzes nos arc=; semeando ,
Ap'esri-se o bnrel , que desaferra ,
E a Zargo com Morales lança em terra.

LIX.
, : ,,, ,

CANTO VII.. i8s

LIX.

Os Novos Argonautas recebidos


Com ternura dos Novos Insulanos
Alii se d^imoráráo entretidos
Fm novos cálculos , e planos
fazer
Noite , e dia nos montes mais subidos
Faziáo pensamentos m^is que humanos.
Observando huma Névoa grossa, e forte.
Que alli se vê do Porto Santo ao Norte.
LX.

Já emáo se dizia alli (tremendo


De susto ) que onde esrava a Névoa Crassa
.

Era a Garganta do Cocyto horrendo,


Que ruina aos Mundanos ameaça :

( Dizia-se ) quem for o mar rompendo ,


De certa aliura pira lá náo passa
Pois peia boca da Infernal gsrganta
iSahc voz horienda , que os Moriaes espmta.

LXí.

Parece que o Trifauce alli , ladrando i

Quer investir aos Navegantes


tristes ,
E que a^ malignas Fúrias , vozeando
Alli mil roncos dissonantes
soltáo :

Parece estar o Inferno vomitando


]Medonhas nuvens mil horrisonantes
E delias he táo túrbido o Negrume
Que vèr náo deixa em fim Tartáreo Lume,

LXir.
iS6 ZARGUEIDA.
LXII.
Tudo i'to ouvindo , Zargo mtis ê^ ínflamma ,
E em discretos exames continiia,
A mira tendo na prestante Uma
Dos Povos Lusos , c da Gloria sua :

Ardendo de Amor Pátrio em viva chtmmt.


Projecta desde então na nova Lua
Investir o Negrume horrendo , e feio ,
Que dizem ter o Báratro no seio*

Fim do CAtito Sétimo.

CAN^
; ; ,

rt7

CANTO OITAVO.
ARGUMENTO.
N.Egar na Terra abrigo d Lusíí Gente
Projecta Pan , e desce ao Flegethonte^
Cuja medonha túrbida Corrente
Passa na Curva barca de Charome :

Falia ao Dne Avern^l que attemamente


,

Escuta o Numen de hicómen fronte ,


E do Tártaro traz Furtas ímpias ,
Scyllas , Centauros , Górgones , Harpias,

I.

i V xUitos dias se tinKão já passado


Depois <]U2 o torpe Deos pedi-caprino
Fora nt Terra inculta rechaçado
Pelo Sacro Lieo Thyrsi-divino
Quando de Velhos Satyros cercado
O Numen Montanhez , Monstro ferino ,
No recinto di Gruta , em que habiravi %
Insano desta sorie vozeava

rr.
,, ,

i88 X A R G U E I D A.

II.

Riscar não posso ainda dí leTibnnça


A , que me fez Lieo , oezida offensa ;
Dentro em meu Coruçáo berra a Vingança ,
^3is , e mai5 assanhando a Mágoa intensa :

'^inra Baccho de ^^'\ inda t possança


Ninta a c6!en minha em rudo immensa ,
E desra fértil ilha a Genre Lusa
Fma de Assombro, e da Pavor Confusa.
III.

v^e por 8;râça de Jupirer me. coube


O diíarado Império das Montanhas ,
!•'
o Filho de Semeie ousado soube
Roubar-me aquellas indicas tamanhas,
Hei de inda mais soifrer , que esta? ms roubei
Ah! náo consentirei: de Pan a<í sanhas
^upporre o >3izeo De.^s eia Sylvanos ,
:

Ponha-se guerra a Baccho, e aos Lusitanos.

IV.

Fm quanto de-ço ao Cavernoso Avemo


( Porque me cwmpre assim ) ficai guardando
Esta Orande Ilha ; eu cedo o meu Governo
Aquelle dentre vós mais venerando:
Ao» ne^ro^ antros do TartTreo Inferno
A<T bsças Fúrias voi: buscar em bando ,
Torpes Centauros , hórridos , enormes
Scyilas , Harpias, Górgones informes.

V.
, , ,

C A N T O VIIÍ. 1S9

V.
Por todos estes Mrnsrros socccrrido
Bem posso ç;i erra por ao Mcrdc inteiro;
Pagarás, ó L leo , Nume A^rtvido,
A offení^a , que fizeste ao Deos mcnceiro :
Teu vil delicio deve rer punic;o ;

F. aquelle 5 Aven'iHciro
(]ue tentar
Tccar as praias desta fértil Terra ,
Hospedado seiá por ciuâ Gutiri.
VI.

Náo acabava ,
qaando a Noite , abrindo
As seirii-net!ra?; azas , appr^rece ,

E no seu Carro os ares diviJindo


*'ubiiimerte scbre Terra descera
Pan ao st Coche entzo sv-bindo
rr. brio

Que toco ^tossa Nuvem ser p^rtce ,


Noire Arriga , ( lhe ciz rm zhc ^lifí^^;
Leva-me ás nii^rgens do Avcinai Ctcyio.
VTJ.

Apenas isto disse, a n^^da Noite


Scbre os Nocturnos Arimaes , tjuc tiiáo
O seu Carro veloz , vibra o açoite
Cujos estalos íescí.r se ouvíráo :

I^or mais cjue o Plaustro de Titán se afoite


Suas rodas láo rápidas náo gyiáo 5

Cs ferros Fixos , fuzilando, gemem,


Os negros Monstros j relinchando , tremem.

VIU.
: ! ,

i$e Z A R G U E I D A.

VIII.

]á sobre o cume do Cimmerio Monte


Pousa o Carro d» Noite taciturnt ;

Olha Pân , vê sahir quasi defronte


Túrbido Rio por sulfiJrea furna :
Acjuelle C diz a Noite ) he o Acherontc ,

Que pela boca esquálida , e soturna


Cem tremendo fragor , hórrida grita
O Tenebroso Tártaro vomita.
IX.

ftm quanto , ó Pan descanço em minha


, gruta
Vzi sulcar este Rio tormentoso,
Em ondas cança a Força bruta
cuias
Do Cocyrio Barqueiro ambicioso
Olha como elle já cançado luta
Co as agoas do Acheronte pavoroso
Desce á piaia , e na barca horrenda , e fêa ,
Vai afoito cortar Tartátea vêa,
X.

Suffocando no peito a voz tremenda ,


Que longo e<paço horrisona resôa ,
Da Cimmcria ^'cnianha pela fen^a
Fntrando , a Noice as Trevas agrilhoa '
De vagas pardas sombras tropa horrenda
Na ausência delia todo o ar povoa ;
Por entre as quaes soltando guinchos graves
As azas batem rapinances Aves.

XI.
; : , ; ,

CANTO VIÍI. »9t

XI.

Era o Cimmerio Monte coroado


De sulfúreos pestíferos vapores
Pcndiào-lhc dhum lado , e d'outro lado
Rochedos de ruina ameaçadores
De espaço a espaço em roda era gretado *,

Pelas greris sahiáo mil fragores ,


Que, imitando do Báratro o ruido,
Foimtváo confusíssimo estampido.
XII.

Em parte em negras Arvores se enreda


Em pane em densas maras mil se embrenha ;

<^uasi (]ue em tudo o Tártaro arremeda ,


Menos na forma, e na espinhosa grenha:
Tomando o hirsuto Pan rude vereda,
C?pripedo ligeiro se despenha
Do erguido cume á
fralda cm que o, bar(]ueiro
]a encalhava o concavo Madeiro.
XIII.

Era Charonte grande , alto , e membrudo


Was de Velho mirrado , e carcomido
O corpo tinha em partes gadelhudo.
Em partes baço, etn partes denegrido:
O semblante rugoso , e carrancudo ,
De longas brancas íínha guarnecido ;
Tinha hirsutos os ríspidos cabellos
„ A boca negra , os dentes amaiellos. ,9

%IV.
, , ,

192 Z A R G U E I D A.

XIV.
Fra a Barca Avern^l Betuminosa
De enormissimos lenhos fabricada i

Qualquer remo , que move a máo calosa ,


Parece a Hercúlea massa decantada :

fra hum pinheiro o mastro, em que alterosa


Subia grossa verga desmarcada ,
A que preza a ci*izenta vela rota
Açoita os ares Co' a farpada escota,

XV.
Lança o Barqueiro a prancha sobre l praia
For onde róláo lúbricas serpentes ;
Fmbarca o Deos das Brenhas, e se ensaia
Para sulcar ss túrbida? correntes :
"Pesa Ferra o batel
, e an^es que saia ,
Prende Charonte a escota aos ralos dentes
E os miiSguiferos remos meneando
Vai pelo Avemal Rio serpeando.

XVI.
D'hum lado , e d oirro lado se divisão
^^agândo pelas praias lutulentas
Pállidas scmbras , que dispersas pizao
As arêas esquálidas cinzentas :

Sombrias negras Arvores matizáo


Aqui , e alii as mârgen^ peçonhentas
E dentre ellas com vozes agoureiras
Grulháu í;iminuã Aves Carniceiras,

XVII.
:

CANTO yill. ifs

XVII.
Alll gemem os Mochos á porfia
Co' as lúi^ubre» Corujis rapinanres ,
O negro Bufo guincha , e dcsaria
Os pardos Noitibós pium-estaiances
Fazem huma confusa vozeria
Aves Sinisrras , Serpes sibilantes ,
Em quanto as vagas Sombias d'horror chêas
Tímidas calcáo hórridas arèas.

XVIII.

Corre em partes o Rio accelerado ,

Formando rouco estrepitoso estrondo ;

E em partes prezo escá , como estagnado ,


Exhalando hum vapor sempre hediondo :

O Capripedo Xumen espantado


De quanto escuta , e vè nos olhos pondo
,

As máos calosas longo espaço existe,


,

Roubando aos olhos hum pamel táo triste.


XIX.
Passando a Barca o Rio caudaloso ,
Entra na Estygia Sórdida Lagoa ,
Onde já táo violento , e fragoroso
O dissonante estrépito náo soa :

Eis que o Lago tranquillo , e bonançoso


Serena fende a pontaguda proa
Larga os remos Charon-e , e satisfeito
A vara encosta ao calejado peito.

N XX.
, ,, :

194 Z A R G U E I D A.

XX.
Assim Qrilha undírsga navega
a
Pela túrbidaFsiyge. tjue serpêa ,
Aié que á margem declinada chega,
Onde encalhar cosUim^ em branda arêa :

Charonie á praia o curvo lenho entrega ,

E na vara encos ando a face fêa


A face horrenda, cjne o suor alaga,
Negra dextra estendendo, espera a paga.

XXI.

Os Deoses Pan ) e tão isentos


( disse
Das pensões da Huniinidaue
Infeliz \

Se dos Deoses náo tens eonhevimentos ,


Aprende a conhecer a Divindade:
Hum dcs de Jove Sacros Mandamentos
He respeitar dos Numes a Deidade ;
Eu sou o Deos das Brenhas , e periendo
Entrar hoje no Tártaro Tremendo.

XXíI.

Em quanto falio ao Dite, a]ui me espera ,

Desta praia, Charcnte, náo te ausentes;


Isto dizendo , sahe na praia fera
E vai calcando os areaes fervenics
Esta margem do Tártaro só gera
Esp nhosoá abrolhos pestilentas
íntre elles ^rasnáo com accentos torvos
Abutres ^ Quinchos ^ Gralhas , Grous , e Corvos.

XXIII.
; , , , ^

CANTO VIII. I9J

XXIII.
Altos Montes agrestes apparecem
Como que estáo de guarda ao negro Avcrno;
A cada instante todos estremecem
Co' a voz , que da garganta sahe do Inferno :

As vistas monstruosas , que ofFerecem ,


Lançáo nas Almas hum pavor inrerno ;
Graves Espectros por alli vaguêáo ,
E os seccos montes mais , e mais âfeão»
XXiV.
Mal cfiega Pan do escuro Inferno á Porta
Abre o Cerbéro a tríplice garganta ,
E t onante Voz, que as sombras cortt
tri

Troando horrendamen'e , o Avemo espanta:


Eis a fronte cornigera recorta
Da opica Entrada a Escuridão levan.a
:

A voz o L*»Jumen de fendida pata ,


E estas pakvras súbito desata:
XXV.
O' vÓ3,quem
quer que sois, que estais guardanda
Do Reino de Plutão a triste entrada
Se vos póie mover meu rogo brando ,
Ensinai-me do Inferno a dub:a estrjda :
Eu sou o Deos Sylvano , que buscando
Vou de Plutão a tétrica Morada
Vinde guiar-me ao Paço Tenebroso
Do Ne^ro Irmão de Jove Poderoso.

N ii XXVÍ,
,, , , ,

ijò Z A R G U E I D A.

XXVI.
Apenas assim di^se , Espectro horrendo
Anre o Numen Sylvano se apresenta
O corpo giganteo ao ar erguendo
Que soberbo Colosso representa :

Os gázeos olbos para Han^ volvendo


Com voz , que imira ahorrisona tormenta ,

Vem comigo, C Ibe diz) o Avernal Dite ,

Que entres no Reino seu , sei que permiue.


XXVII.
Era o lúgubre Fspecrro o Horror disforme ,
Que na porta do Jníerno está de guarda;
Tinha do rosto carrancudo , e enorme
As faces macilentas , a cor parda :

Fste Aborto Avernal em tudo informe


Do Deos Csprino pondo-se á vanguarda ,
Rompendo as sombras co' os nervosos braços
Para o Birktfo en^áo apressa os passos.
XX MIL
Já ?e âvistáo as torres abrazàdas
Do Plutónio Palácio ardente , e feio ,

E as muralhas cruéis incendiadas


Que o cercão , e que o prendem no seu seio :

Sobem aos ares nuvens carregadas


De sulfúreo vapor, e em quanto cheio
Caminha Pan de assombro , os olhos lançt
Aos Campo3 Infeináes , que a vista alcança.

XXIX.
, ;

CANTO viir. 197

XXIX.
^e â^^ombrâs ( lhe diz o Horror ) de veres
te

O tenebroso Tártaro infinito ,


Que assombro senrirás , quando souberes
Tormentos , que ha por tod-» este Gocyto !

He tempo agora pois de conheceres


A punição que tem qualquer delito;
,

Aqui pâgáo os míseros Mundanos


Os seus Crimes fataes , Crimes insanos.
XXX.
Aquelle, que tu vês , já macilento,
A cujas plantas corre o rio asruco
He Tântalo Infeliz San'^uino!ento ,
A qjem da mão mirrada foge o fruto :

De sede , e fome em hórrido tormento


Pt:nido assim se vê do crime bruto
De haver com de«piedada tyrannia
Feito do Filho barbara iguaria.

XXXI.
Aquellâs ,
que tu vês , em vão roubanda
Ao triite rio as verdenegras agoas ,
São Filhas de Dânao miserando ,
as
Que assim apagáo do seu crime as fragoâs
Seus peitos homic!dâ9 retalhando
Buidos gumes de aguçadas Mágoas,
Expiáo as traidoras ímpias mortes
Dos malfadados míseros Consortes.

XXXII
; !

JpJ J^ A R G U E I D A.

XXXII.
Aquelle cujo fi^^ado d vora
.

Ne^ro Abutre carnívoro faminto ,


E que aos mórsf s da Fera rragadora
Vêr náo consegue o seu martyno extinto ;

He Ticio Que a Lapcivia seducrora


.

Linçou da Eterna Dor no Labyriniho


Por perrender violar Latona Bella
Entre as garras da Dor de dor anhela.

XXXIII.
Vês aq^elIe infeliz em vão procura
,
que
Subir do Monte á elevação sublime,
R que pertende pôr na mor aliura
O penedo falaz , que o dorso opprime ;
He Sí.-,ypho Cruel , que em pen* dura
Paga de roub^dor o torpe crime ;
Lá lhe tomba o penedo ! . . eis vem buscallo • ! • •

Lá torna o desgraçado a carrega Ho!

XXXIV.
OntTos muifos ,
que vês em seus supplicios
Por efernos tormentos lacerados ,
São os que em lodo de execrandos vicies
Vivêráo noutros tempos atolados :
Agora nos seus hórridos exícios
Fxpiáo os delictos ^cus malvados :
Tristes aquelles que se
, atoláo inda
Em vicios , sem temer a penna infinda

XXXV.
,

CANTO VIII. 19^

XXXV.
Se âos antros fore? cio Sulfúreo Inferno ^
Também encontrarás Chefes Insanos ,
Cada qu.^l em seu vil tormento eterno,
Tormentos infemaes , ímpios , tyrannos :

Aquelles , que fizeráo do Governo


Longa Serje de males , crimes, dano?,
Alli veras 5 e com rig r punidos,
Soltando tristes lúgubres j^cmidos,
XXXVI.
Encontrarás Ministros diíferenres
Em martyrios cruéis , perdida a Fsp'rânça
De haver lim<te ás pe as inclementes ,
A cuja sanha o Soiírim?nto cança ;
Alii soffrcm castigos vehemíntes
Os que não nivelarão a balança
Da Sagrada Jusiiça , qu j deixara
No Mundo Asirea , q ^ando aos Ceos voárjU
XXXVII.
Alli verás os ímpios Parricidas ,
Os pror^irvos . neiírios roubadòres ,
Os bárbaros insanos fraTicidas
Os perversos iniquoj malíciíores:
Alli verás tambcm os homicidas,
E da Sá Casridade 03 violadores ,
Todos soífrendo aspérrimos tormentos ,
Aluindo 03 Infernos çom lamentos.

XXXVIII.
, , :

aeo ZARGUEIDA.
XXXVIII.
Sempre em teimoso gyro arrebatado
DHuma roda crwel , que nunca para ,
Ixión ver^s tyrannamente arado
Pagando da Lascivia a audácia rara
Vive a tormento eterno condenado
Porque Lascivo a nuvem abraçara ,
Julgando , que abríçava Juno Bôlla ,
Senti ndo-„e abrazar de iS^mor por ellâ.

XXXIX.
Alli verás Hypócritas malinos ,

Verazes Corvos ,Cisnes na apparencia ;


Veras torpes Fanáticos mofinos ,
Pagando todos sua vil demência :
Veras também íJacrile^os ferinos
Fiagellos da Suprema Omnipotência ,
Expiando seus pérfidos delidos
Por meio de supplicios inauditos,
XL.
Acbírás os belligeros Gigantes ,
Que C'"'nrrâ os Sacros Deoses se juntarão ,
E a que os raios de Júpiter pujantes
Em punição da audácia fulminarão:
Assim punidos sáo os Arrogantes
í^acrilegos , que contra os Ceos se armarão ,
E ere^namenie a^sim seráó punidos
Os Sacrilegos Crimes atrevidos.

XLI
: ; :: , ,

CANTO VIIL *oi

XLI.
Assim dizia ,
quando em fim chegarão
A' entrada escura dos Piutonios Paços j

Alii de Pan os crinos se erriç.íráo


D'improvÍ80 pavor entre embaraços
Por entre hórridas sombras pene-rárão
Com dúbias luzes de cUróes escasso?
Hlas ei> cjue entrarão nas ardenres Casas,
Rompêfáo chammas , e pizáráo brazas.

XLII.

Mil vastíssimas Salas discorrendo ,


Cbegáráo de Piurlo á Regia Sala ,
Em que es. a des^e Rei o Throno horrendo 9
O Throno , que huma yiva braza iguala
i\pparece do Inferno o Rei tremendo ,
Chega-se Pan, e desprendendo t falia.
Com voz, que rrot pelo inferno dentro,
Taes palavras roubou do peito ao centro
XLIII.

Eu sou , Tartareo Dite , o Deos Sylvano ;

Sou do iVJênalo a Sacra Divindade;


Pertendo guerra pôr ao Lusitano ,
E á Lenêa Thyrsigera Deidade :
Tu , que és do Averno o Numen Soberano
Tu , que és Segundo Jove em Magestade
Attende ao Deos das Brenhas , que animoso
Implora o teu Auxilio Poderoso-

XLIV.
,

202 Z A R G U E I D A.

XLÍV.
Depois que Thioneo me lançou fórt
Das Memnoniâs incultas Espessuras
Talando os C.-mpos, em que nasce a Aurora,
Pe ferro , e fogo em vivas guerras duras :

D ilha aprazível, que inda habito agora.


Fui demandar as Brenhas mais escuras ;
Nellas renho vivido socegado
Dos meus Amantes Satyros cercado,
XLV.
Agora (que eu vivia assas contente)
Quer o Numen Cruel , meu Inimigo ,
Roubar-me aquella Terra florecente
Para dar nella ao Lusitano abrigo :
Contrario quero ser á Lusa Gente,
Contrario ^uero ser ( outra vez digo )
Ao Nizeo Deos , e áquelles Lusitanos ,
Que pertendem roubsr-iTie a Terra insanos,
XLVI.
Tintos insultos vis , tantos aggravos
Náo pôde supportar o Deos Caprino;
Dos homens nunca devem ser escravos
Aquelles , que tiveráo ^er Divino:
Ao Nizeo Nume , e aos Lusitanos bravos
Náo valera do? Fad'^s o Destino ;
Contra rodos >rmado em guerra viva
Mostrarei minha cólera excessivíl*

XLVII.
; , , : ,

CANTO VIII. 20 j

XLVII.
Quero pois , ó Flutáo ,
que em fim me ajude?
A puPif hum táo bárbaro delico
Os monuros mar-' cruéis do Inferno rudes
Deixem por ora is margens do Cocyto
Convém q le em m:u favor hoie te mudes ;
Ah í muJ^.- e em lavor d'hurTi Deos afHito 9
Si^4o-me Harpias a punir mjariai,
Centauros , ^cyllas , Gór^ones , e Fúrias,

XLVIil.
Mais diria o Deos Pan , se a cruel ira
Lhe náo prendesse a voz no ardente peiío;
Vivas chammis frenético respira,
Mostrando mais q-ia nunca irado aspeito r

A visca a hum lado, e a outro lado atira,


Como quem d'ímpia Dor sente o eíFeito j

E em quanto o Coração rábido freme


O informe Corpo seu convulso treme.
XLIX.
Então com rouca voz ,
que tudo espanta
Da Implacável Frcs.^rpma o Consorte
Abrindo a negra sórdida garganta ,

Ao Cornigero Deos diz destt sorte:


Tua suppiica tem justiça tanta ,

He em fim tua súppIica táo for'e,


Que ida que rcsistir-lhe
i hoje quizese.
Talvez que o mesmo Jove náo podeise.

L.
: ,, , ,

204 Z A R G U E I D A.

L.

Vem comigo ás Cavernas soterradas y


Fm que habiiáo as Fúrias revoltosas ,
Os medonhos Centauros , as malvadas
Rapinanres Harpias Monstruosas
V*em comigo ás Cavernas habitadas
Por Górgoncí , e ScylUs horrorosas
Cruéis Mrns ros , dos quaes posto na frente
Bem podes guerrear co* â Lusa Gente,
LI.

D'zendo issim Plutão marcha adiante,


,

E o Capripedo Nume o vai seguindo


Estrépito confuso , e dissonanre ,
De momento em mom.ento hórrido ouvindo:
A negro Abysmo , sempre fumegante,
O Esposo de Prosérpina , investindo
Por escadas de ferro abrazeado
Desceoj e desceo Pan do Horror ao lar!o<

LIL
Chegarão pois do Tártaro to Recinto
Onde do Averno os Monstros habitaváo ,
E onde n'hum tenebroso Labyrintho
Todos insanamentc voze3váo :
As cores de expressão com que aqui pinta
.

Este Lugar, que os Monstros afeiaváo,


Inda que vivas sáo , sáo mortas cores
Para ao vivo pintar tantos horrores.

LliL
; , , ,

C A N T O VIII. £0S

LIII.

Tudo en feio tudo tristonho ,


alli ,

Tudo horrendo , tudo disforme ;


cruel ,

O Inferno r^adi tem de mais naedonho


Que aquella Habitação em fudo enorms :

Hum hilito
f
esfifero , e enfadonho
Exhala iboca d'huma gruta informe ;

Ella está sempre monstros mil tragando ,

Está sempre mil monstros vomitando,

LIV.
Semelhante ao Trováo ,
que hórrido troa ,

Dobrando os ecos abalando o mundo ,


,

A voz Piuionia d'improviso soa


Nas entranhai do Tártaro protundo
Súbito em torno de Plutão revoa
De famintas Harpias bando immundo;
3untáo-se Scyllas , Gorgones iradas ,
Cruéis Centauroí , Fúrias assanhadas,
LV.
Ide ( lhes diz Plutão ) na inculca Terra
A que Pan vos guiar, com ira insana
Prestar-lhe auxilio na terrível Guerra
Que alli quer pôr a gence Lusitana ;

Todos os Monstros, que o Averno encerra,


Warchem após de Pan em tropa ufana ,
E desde agora ás suas Leis suieitos
xecutem somen:e os seu» preceitos.

LVI.
, ,

2o6 Z A R G U E I D A.

LVI.
Mais não disse; e então Pai agradecido
A ne^ra dexrri de Plutão beijando
Mostrava no semblanre denegrido
O prâzer , que o estava dominando :
Cepois , do Avernâl D:te despedido ,
A Monnriiosa Tropa comm^nd^ndu.
Por soierrânea fenda, que apparcce,
Guiado pelo Horror afoito d^isce.
LVII.

Apenas Pan dalli se desenreda ,

Despedc-se do Horror cem meigo af?go »


Que lhe aponta huma insólita vereda ,

Que no Estygio Lago


vai direita dar :

Charonre , que d'alli se náo arreda,


Inda que náo espera vòr-se pago
Tendo encalhada ainda a B^rca fèa ,

Dormia a somno solto sobre a arêa.

LVIIl.

A' margem chega Pan da Estyge impura 9


Onde Charonte tétrico dormia ,
Cuja arêa se torna mais escura
Com a sombra da tropa , que a cobria :

Hum monstro griía alii , ouiro murmurai


E aos ecos da confusa vozeria
Despertando , o Barqueiro desencalha
A ion^i Quilha , em quanto a Tropa ralha.

LIX.
, : ,,

C A N T O VIIÍ. 207

LIX.
Embarci Pan co' as Górgones ínfimes ,

Co' as Scylias , e Centauros mcnsrruosos


E cias Fúrias e Harpias 05 Enx-mes
5

Manda fender os ares tenebr sos :

Seguem de Pan os péssimos dic.:ames


Todos Cs^es vis monsírcs horrorosos
Já dispondo seus ânimos ferozes
Para combates miseros atrozes.

LX.
]á sobre a praia lúgubre cinzenta ,
Que lambe o triste túrbido Achercnte ,
Saita Trepa dos Monstros Truculenta,
a
E sobe ao cimo do Cimméfio Monte
A' espera estava a Noitc somnoienta
Do informe Numen de biccmca fronte ,

E apenas f-i chegado , o carro ap.onta ,

E sobre clie com Pan e os M;,nsiros mjntâ,


,

LXI.

Ladeado de Fúrias , e de Harpias


Voa o Carro veloz cruzando os ares
,
;

E semeando Nuvens, que sombrias


Abafáo terias , e sulfocáo mares :

Eis se avistáo as duras serranias ,

Onde tem Pan do seu ímpeno os Lares


E apenas sobre 1 Terra o Carro topa,
Espalha-se por ella a Infernal Tropa.

LXIÍ.
, : ,,

2gS. z a R G U E I d a.

LXII.
acodem logo os Sátyros biformcs
A de Pan a grata vinda
festejar j

Admiráo-se de ver Monstros intormes


Por elles ráo Ouéis não vistos inda :
]unra a Turba àvs Sáyros deformes
Dos Monstros infernaes á Turba infinda
Parecem náo poderem as Montanhas
Co' o pezo destas Mát^uinas tamanhis.
LXIII.

Eis aqui ( dirse Pan ) a Terra inculta


Em ^ue tenho vivido , ha longos annos -

E onde inda o Deos Thyrsigero me insulta ,


^^cstrando-se a favor dos Lusitanos
Punir devemos esta audácia estulta ;
Eia Monstros do Avemo , eia Sylvanos ,
Contra os Lusos, e Baccho estai á lerta ,
Trave-se a Guerra , <]ue a Victor ia he cena.
LXIV.
Pertence t Alecto o pes^uizar somente
Quando as ondas do salso mar rompendo
Se avizinha de nós a Lusa Cjente
Com que inda fero guerrear periendo:
A Tisiphone cumpre , certamente ,
Iveger das Fúrias o Esquadrão tremendo.
Em quanto anda Megera pesquizando
Se Baccho aporu aqui , o como , e <]uando..

LXV.
, : ,

CANTO VIII. 509

LXV.
Evós , ó Cruéis Monstros , que assanhados
Poieís por certo demolir mil mundos ,
Andai por estes monres espalhados
Defendendo estt Terra vagabundos í
De fortes pinhos hórridos armados
E de ingenres peiedos , furibundos
Accommertei aquelles , que tyrannos
Tentarem nesta Terra entrar insanos.
LXVI.
Vós , Filhas de Typhèo , immu^^d'?? Aves
Sempre torpes , famintas , e avarentas ,

Que Hs mezas de Phinèo , rnezas suaves ,

Os Manjares roíbastes famulen^as ;

Medonhos guinchos entre agudos s^raves


Soltai de quando em quando turbuieiías
Para que a Gente Lusa , smedrentada
De ouvir-vos , deixe a Terra inhabitada.
LXVII.
Em fim , Sylvanos meus , de vós erpera
Memorandas façanhas singulares ;

Quando náo saberei punir severo


O que náo defender os Nossos Lares
Contra os Lusos Magna*iimo3 vêr qnero
Cahirem estes Montes sobre os msresj
E contra o Deos de Niza ver quizera
Voarem montes i Celeste Esfera.

O LXVIU,
210 ^ A R G U E I D A.

LXVIII.
Assim tudo di*:punha o Deos hirsuto
Contra o Sâcro Lieo , e a Genre Lusa ;
Assim risca na mente estulta o Bruro
O plano infoime , de que Baccho abusa :
Tudo isto estava ouvindo o Nume astuto
Filho de ]ove n^huma parte escusa ,
Em que as Cepas frrndiferas plantara ,
Que ao Jardim das Hespérides roubara.
LXIX.

Então a Noite , r?'pida voando


No seu Carro veloz , a Teíra deixa ,

E taciturna os ires recortando,


Sobre es seus montes sombras mil desfeicha j

Em áurea Nuvem Thyoneo montando


No seu seio de súbito se feicha ,

E retalhando o límpido Elemen/o


Piza dcs Astros o òidcreo As^icnío,

Fim do

CAN-
2lt

CANTO NONO.
ARGUMENTO.
-1 Nveste Zargo línpávído o Negrume
Na fluctivííga Quilha Avui urre ira ,

Descobre a Terra d"* arvores Jnp-ftne


.
,

A que deo lego o Ncme de AíddAra :


De áurea Nuvem ike faHa o Nizeo Num? ,

Com doce vez Celes:e , e Lisonjeira ;

A4andã-o surgir e Afecto , que is.o escuta


:
,
Vòa de Pan d Cavernosa Gruta,

I.

\J £spedir-';e de Câncer pertendia


Dos Asrros o flammifero Gigante ,

já projecrandono seguinte dia


Visitar o Leão chammigeranfe,
Quando Zargo ( inda náo amanhecia)
Levanta o ferro sobre a proa unjjnre ,

Que abrindo as azas , aual vokuil Ave ^


Toda se entrega á viração suave.

O ii II.
; ,

íi* Z A R G U E I D A.

II.

Mostrando ao Mundo a face luminosa


Aginha a purpúrea Aurora desgrenhada
Por entre nuvens cjuasi cor de roza
Sacodindo a Wadeixa aljofarada
Era o teir.po , em que a curva Quilha undosi
Ja pelas salsas ondas alongada
Veloz buscava a Escuridão sombria ,
Que ao perto mais horrenda parecia.
III.

A' medida que o Lenho hia chegando


A' negra Cerração , de susío , e medo ,
O5 marinheiros todos , descorando ,
Se ouviáo murmurar quasi em segredo :

Zsrgo Animoso a rodos reanimando


,

Com vivas expressões , aspecio ledo


A' viração, que hum pouco se acalmava.
Com insigne valor mais panno dava,

iV.

O Pinho marcando , os Marinheiros


Quasi todos de susto amarellados
Se escuraváo dizer Aventureiros
:

Onde vamos , ó Ceos , ser abysmados l


O' Caminhos da Gloria Lisonjeiros ,
Quanto sois perigosos , e arriscados !

Oh ! mal haja , mal haja a Gloria Insana ,


Após quem corre cega a Gente humana.

V.
:

CANTO IX. «ri

V.
A esíâs expressões mal proferidas
D^improviso mijácu Zargo de aspeito,
E espalhando enfurecid»s ,
as visras
Taes palavras tirou do Heróico Peito
Vós , que tanto prezais as vossas vidas >
Animai-vos , faltando-me ao respeito ,
A proferir blasfémias , sem receio
De achar prompto castigo ao crime feio l

VI.

Rebeldes , não sabeis , que sois vassâlloí


D'Hum Rei , que vezes mil por vossa glorit.
Em a vida arriscar fez seus regalos ,

E alcançou para vós sempre a victoria í


Lembrai-vos de seus Feiros i imitallos
Devemos , pois sáo Dignos de Memoria 5
Quem se deixa gelar do frio susto,
Náo he Vassâllo do meu Rei Augusto.
VII.

He a Vida <l'hum Rei Áureo Thesouro ^


Que devemos prezar com avareza ;
E quantas vezes com infausto agouro
Ella se arrisca em perigosa empreza ?
Quantas contra o Hespano ^ e contra o Mouro
Sempre Armado de Heróica Fortaleza
O Nosso Rei p^r nós tem arriscado
O Thesouro do Mundo mais prezado?

Vllt
:,

ai4 Z A R G U E I D A.

VIII.

E vós d^hum Pv.ei , Que Invicto


sois Vâosallos
Vos dá em Acção sublime Exemplo?,,.
cada
Por certo que o náo sois Vosso deiicto :

Dos do mundo o mais pérfido contemplo :


Expiai vós hum crime táo maldito,
Em vosso coração erguendo hum Templo ,
Em que deis puro culto mais que humano
Ao Pátrio Amor , e ao Vosso Soberano»
IX.

De que serve huma


he mesquinha
vida , se
Para a ,Pátria e seu Rei
, de que serve?
? Sim
Náo vedes , que também arrisco a minha ,
Só porque Régias Leis humilde observe ?
Se acompanhar-me aqui vos náo convirthi
Com outro igual valor ao que em mim ferve.
Ficásseis entre os braços da Moleza ,

Tsláo niostrarieis , náo , tanta fraqueza.

X.

Fií pois não temais os ímpios danos.


Que o Negrume Avernal vos representa 5
Nunca a Fiéis Vassalios Lusitanos
A Appírencia dos P'r/gos aniedrenta
E se acaso insistis no medo insanos ,
Mostrando-me huma face amarellenta
Breví="men^e vereis quanco ao Perigo
Excede desses crimes o Castigo.

XI.
, , , ,

CANTO IX. íiç

XI.

Volt-nílo-se Jepois para Morales


Continua , dizendo desta sorre :

Agora cumpre, que em valor me iguales,


Fíum Grande Coração nâo teme a Morte ;
Cumpre a Deos evitar os nossos males
Porém huma Alma Grande hum Peito forte ,

Não podem n'huma F.mpreza tão sublime


Succumbir ao Pavor sem torpe crime.
,

XIT.

E vos , Varões Illustres ,


que Animosos
Não tendes atégora desc6''ado ,

Descei ao<; Fscaléres pre<^suro303


Para que seja o LenSo rehocsdo :

A ires , e Gago Lusos


, vaio-osos ,

Isro a vós he somente encarrei^^.do


I«^pp-^is co' os mais fortes marinheiros

Sirgando o Lenho áq'-ielies nevoeiros.

XIII.

Apensa assim òio os Heróes descem.

Aos equorens bateis com goto in^en^ej


Como á porfia os Nautas se offerecem
ívescendo pelos bordos vel' zmente :
^eus ânimos de todo fr.f^alecem ;
Viva Zar;^o, (repete toda a Gente )
E e'«tenú'dí'; as sirgas pe'a proa ,
Navega o Leiiho dccemenre á toa.

XIV.
! , , :

aiS Z A R G U El D A.

XIV.
Tinlii o Monarca Lúcido do Dia
Vingado já do OJympo o Excelso Cume,
Quando o ^^alenre Zar^o dividia
As negras sombras do Infernal Negrume
D'hum lado , e doutro horrisono se ouvia
Bramir o Mar ráo fora do costume
Que a não ter Zar^o hum animo constante ,
Káo passaria a curva Quilha avante,
XV.
Manda Zargo emproar Quilha dura
a
PAra a parre , em que o mar mais bravo berra ,
Porque enxerga por entre a névoa escura
Huns altos serros , que figurão terra :

Dos Nautas cada qual a vista apura ,


F.m quanto ao Susto a Intrepidez faz guerra,
E a poucos sulcos ( oh Portento raro )
! !

Descobrem terra , vendo o mar mais claro.


XVI.
Que transportes de gosto ! que altos vivas
Se escutáo retinir enráo nos ares !

Que transportes de gosio ! que expressivas


Graças se dão a Zargo s intitulares
Com mais vivo valor , forças mais vivas
Os Nautas em maritimos Cantiires
Viva Zargo , mil vezes repetindo ,
As ondas vão c'os remos dividindo.

XVII.
: :

CANTO IX. 217

XVII.
Graças ao Grande Deos Omnipotente
(Começa Zarçço encáo desii. maneira )
Que me deixou topar co' a Terra ingente y
Que eu bu^ícâva na quilha aventureira !

A' Grande Ilha , que vemos florecente ,


Desde já fique o Nome de Madeira ,
Porque Trrra , que entre Arvores se some ,
Madeira deve em fim só rcr por Nome.
XVIII.

Tinha acabsdo,
quando o Deos Thebano 9
Que aPoitugueza Gente protegia ,
D Áurea Nuvem n'hum Carro Soberano
Sobre o Madeiro undiva;go descia :

Insigne Zar^o , 1 Ilustre Lusirano ,


(Sobre a Nuvem baixando, assim dizia)
Se evitar queres Avernal perigo,
Ouve as vozes de hum Numen teu Ami^Ot
XIX.
Apenas isro ouvio , o Vario Luso
Fixa os olhos na Nuvem áurea , e beíla ,
E CO Hemp ando-a hum pouco assas confuso ,
Remos manda amainar , e a grande vela
Longe de nós da Divindade o abuso ;
Devemos re>peitalla , emfim temella :
Dizendo assim , sobre o convéz prostrado
Ouve o D^s , que assim falia em alto brado

XX.
, ,;

2íS ZARGUEIDA.
XX.
Fai ''on , 6 Zargo 5 a Tiuebr Ocidadel
Da fértil Ilha , c]ue apor ar procuras -,

Pesejo-re t maior prosperidade ,


Que podem ter huinanas Crea^uraç :

He por Lei da Suprema vindade D


Que alli re háo de hospedar meigas Venturas^
^^'as cump»e-te evirar primeir mente
O dano, c|ue te está quasi eminenie#

XXI.
Vshe pois que o Deos Pân , o Deo^ Agre.te^
Qiie hab-ta os bosques de^ra Nova Terra
Com Mcn?rros infemaes , T?.rárea Pescc
Al i te espera per fazer- e g er^a :

A'ma-te, ó Zargo d hum Poder Celeste,


,

Dos Nobres Lusos o pavor desterra j


K huma vez qu; alli fores ss»altaJo ,
inccndêa-lhe os bosques denodado.

XXI!.

Assim farás os monstros vis do Averna


Fugirem para o Báiarro profundo,
Lstancia tiisrc do Tormento eterno ,

Do pavoroso Horror do Pranto immundo ,

Assim o manda o Deos Mais que Superno,^


Fará pnnir o Numen iraciu^do ,
O Cornigrro Nun.en, que Inimigo
Te pcrtende negar na Teria abrigo.

XXIIÍ.
: ,

CANTO IX. 219

XXIII.
Has de nella encontrar cepas viçosas
Em do Terreno rransp'antadas
partes ,

3á mostrando seus frutos pampinosas


Por máos da Natureza agricultada?
Far's , que destas parras preciosas
Fiquem âç terra^í brevenien e inçadas ,

Porque f^çáo nos séculos vindouros


O Prizer das Nações , os seus Thesouros»

XXIV.
Seja pois esta a planta mais quer'da ,

De que ^ra-em os íncolas primeiros j


Seja A T
rra d? cepas revestida
Fm vez de Louros , Cedros , e Pinheircs :

A cultura das parras seja a lida


Dos que forem alli teus Companheiros *,

Dizer-re nada mais me cumpre ago-a ,


Na en-eada , que vès , à Zargo , anccra.
XXV.
Caiou-^^e '''hyon^o
, só porque vira
Cruzando relczmen.e Alecro ,
os ^res
Tremendo Aborro que terror inspira ,
,

De enorm dades mil nefando Obiecco :


Porque as palavras uhiiia; ouvira ,
Aproximou -se ao Lenho o Monstro Infecto,
E em rorno dclle só rres ^yros dandj
Para traz voka , os ares reccriando.

XXVI.
: ,,

220 Z A R G U E I D A.

XXVI.
Em qiiânro bate as plumas esta fiirsuiâ
Negra Furia Avernal, Monstro sanhudo ,
Biiscaiuio a opaca formidável gruta
Do semicapro Numen gadelhudo ;

De Zargo a Mente singular perscruta


O qiianto ouvira
,
plácido , e sizudo
, 5
K adorando em silencio a Divindade ,
De tudo , quanto ouvio , se persuade.
XXVII.
Então Sacando â voz do Peito ao seio y.

Religiosamente assim se expressa


O' Numen Bemfei:or, ea me gl ;reio
De vêr , qne a minha Gloria te interessa :.

Eu vou já de prazer , e valor cheio


Teus preceiros cumprir a tcda a pressa 9
/^ uxilia-me , ó Numen Bemfazeio ,

Nos graves p'rigos3 que vencer desejo.


XXVÍII.
Sem Auxilio Supremo ninguém pode
Glorioso sahir dardua; emprezas ;
Se a Divindade aos homens náo ac^de
Sáo sempre os homeas da Desgraça Prezas
inda que audâZ humano o mundo rode
Para Gloria alcançar pelas proezas,
Sem Auxilio do Ceo Piedoso, e Justo
Nunca verá da Gloria o rosto Augusto».

XXIX.
CANTO IX. 221

XXIX.
Fmborâ estuliamenre alguns humanos
Projecfem, sem favor da Divindade,
Perigos arrostir , sem temtr danos
Confiados na vã Felicidade :
Inda c^ue tarde , os miseros in';anos
Conhecerão , qne a sá Prosperidade
He dadiva do Ceo , que só se alcança
Por auxilio do Ceo , não por pujança,
XXX.
Suspende â clara voz, crgue-se , e msnda
O panno marear por ir avante ;
Ao brando sopro dhuma aragem branda
5o!ra as azas o Pássaro nadanre :

Guiado pelas sirgas já demanda


A Terra que apparece inda disranre »
,

Da qualse vai de novo descobrindo


Kovos Montes, que vão aos Ceos subinJo.
XXXL
V^endo Zargo já perto amena Praia,
Que formava huma plácida Enseada ,
Onde apenas o mâr , qnando se espraia ,
A Viga mostra hum pouco encapellada ;
Para tllí lançar ferro eniáo se ensaia j
E a Nauiica Celeuma começsda ,
Colhe-se o panno , e a ancora bidente
Cahir da proa sobre o mar se sente.

XXXII.
22i Z À R G U E I D A.

XXXIÍ.
Pcrcm mosrrava duvidosa
já s€
A luz, que acorrpanhar
Ci stuma o Dia;

Parda Sombra vagava pressurosa ^

„ Porque a Lsrripada Grande se escondia ; ^


Quando de icdo surra a Quilha undosa
N'hum n.ar , que entáo apenas se movia.
Hospedada da plácida Bonança
i^os braços delia plácida descança.

xxxm.
Vendo Zargo , que tinha felizmente
Posto em parte limite a scus iniencos ,
Perrendeo ene, éter a Sua Gente
Aqr.eiia noite em mil Divertimeníos
Veio o rubro Licor , puro , e Excellente
Inspirador de alegres pensamentos ,
E apenas vitrtas taças estáo cheas ,
Fervem os brindes , fervem as Coreas.
XXXIV.
Entretanto que rudo isto acontece ,
A Nuvem, que escondia, aurirczada ,
No seio a Tl.yonco, deíarpareee
Velozmene cruzando a láctea estrada:
"Nisto a Futia Avemal insana desce
De Pan á funda Grota descarnada ,
E com medonha voz que a Gruta abala
,

Ao iemicípio Deos desta arte falia:

XXXV
, :

C A N T O IX. 32 5

XXXV.
Ccmigera Deidade , Kirsuro Ni^me ,

Que imperas nestes bosques , e mvntanhas ,

Sanhuda Raivà com buido gume


Me retalha frenética as en ranhas
Atèa disde já da Guerra o lume ,
Larguc-se o freio ás indomáveis .Sanhas ,

A s indomáveis Sanhas , tjue ferina s


Káo de fazer dos Lusos aá rjinas.
XXXVI.
Da Grande ilha bem perto já navega
O Lusitano Lenho aventureiro ,

O Thyrsigero Deos he qaem se empre^^a


Em conauzir o concavo Made ro :

Ccmo quem de amparailo se encarrega


jVíanda-o surgir no Pcr.c lisonjeiro ;

ívlas náo temas , ó Pan quando se agús'5o


;
,
Para tudo vencer as Fúrias bastão.

Em quanto assim fallava a infernai Fera


Estava o Deos Caprino pensativo ;
Eis apparece a bárbara Megeía
Dos olhos cliâmmejando hum fogo vivo ;
Grande Pan , (diz a Fúria) que ^e esp..a^
Ah náo percas o tempo fugitivo ,
!

Para da Guerra mane;ar-se o açoite,


^aproveitemos a propicia Noite,

XXXVIIL
: : ,

224 Z A R G U E I D A.

XXXVIII.
]á lá váó aos Aníipodâs levando
Do Sol o Carro os férvidos Ethonres:
Já semi-negras soiní:r6S vem toldsndo
Os alícs cimos dos erguidos montes :

Já váo opacas sombras abafando


D'hum lado , e doutro 05 tristes horizontes ;

E anres que sobre nos a Noite desça ,


Disponha-se o Combate a toda a pressa.
XXXIX.
Eia r disse Tislphonc tremenda)
Disponha-se o terrifico Certame ;
Para ordenar a rábida Contenda
Quero ir na testa do Cocyrio Enxame
Desta Fúria Cruel á voz horrenda
Dos Monstros Avernaes a Tropa infame
Acede velozmente á Gruta fea ,
Onde estulta , e frenética vozea.

XL.

isto ouvindo triste , mudo , e quedo ,


Tudo
Por longo tempo esteve o Deos hirsuto ,
Até que em fim , roubando-se ao segredo
Desta sorte fallou o Informe Bruto
Ah 1 náo penseis , Eumenides , que ao medo
Succumbe o meu valor ; se quedo escuto
Tudo , quanto dizeis , he porque penso
Do Ni2eo Numcn no Poder immeriso.

XLK
: j , ,,

CANTO IX. iaj

XLI.
He Numen Filho do Supremo Jove
O Numen que me tece ímpio.^ enganos
,
:

Talvez em fim que Jupirer approve


O favor, que ellc prcs:a aos Lusiíâno?:
Quem se intenta vingar , quem guerras move
Prever deve primeiro infaustos danos
O combater ás cegas He demcncia ,

O prever os futuros he prudência,

XLII.

Deixemos pois , que os Lusos , sem receio


Incautos pizem esta nova Terra
,

Talvez, que do Prazer o doce enleio


Lhes occulte a traição , que aqui se encerra:
He n'hum valíe de funchos todo cheio
Que perteido comvosco armir-lhes guerra 5

He alli que eu pertendo vêr confusa


A roaii que destemida Gente Lusa.
XLlir.

Talvez que o? Lusitanos , que descjão


Esta Terra habitar a todo o cjsco ,
Acoçados por nós a face veiáo
Do formidável descorado Susto
Estultos , nao se temem , nío se pejáo
De frentear com Pan , Nu.nen roÍDusto!
O' Demência fatal , ru lhes preparas
Tragedias tristes da Fuior na;] aras.

XLIV.
,, : ):

2i6 Z A R G U E I D A.

XLÍV.
Talvez qne Thicneo valer náo possa
Aos Lu iianos seus tanto prezados
Huma vez que desabe a 1 ropa nossa
Sobre elles os furores seus malvados
Talvez que náo se opponha á fui ia vossa ,
Vendo tantos mil Monstros assanhados
E quando intente oppôr-se , talvez seja
yictiiTiâ triute da Cruel Peleja.

XLV.
Emborcados em densos Arvoredos
Devemos pois C segunda vez vos di^o
Armados de pinheiros , e rochedos
Fspreitir cautelosos o Inimigo:
Quando o virmos nos mágicos enredos
D hum
incauro prazer, pronipto castigo
Devemos entáo dar-lhe ao cnme reio
De tentar invadir Terreno alheio.
XLVI
Nada rnais disse Pân : e as Fúrias baças
Em confusos violentos alaridos
Faziáo feras negras ameaças
Aos Lusos em folias entretidos :
Desiinando-lhes hórridas Desgraças
Os Monstros Infernaes enfurecidos
Longo tempo murmuráo guintháo, mugem,
Bramâo , grasnáo , sibiláo , fremem , rugem.

XLVII.
,

CANTO IX. 227

XLVII.
Em que de Pan na Gruta Escura
tanro
-Se ensâiáo os visMonstros sempre insanos ,

Para a châmma accender da Guerra dura


Contra os fortes Heróicos Lusitanos ;
O Filho de Semeie , que procura
Dos Lusos evitar os ímpios danos
No Carro Divinal da Nuvem bella
Em guarda delles toda a noite vela,

XLVIIL
Nunca tão estrellada, e tão serena
Regeo a Noi^e o taciturno Império!
Nunca mais linda , ma s brilhan e scena
Appareceo no Lúcido Hemisfério'
Clara se distinguia a Terra amena ,
Figurando-se bem no Espelho etherio>
E os Lasos em dulcisonos Cantares
Suspendiáo os Astros , Ventos , Marei.
XLIX.
Morales , cuja voz branda , e canora
A' do Thr^cio Cantor muito imi ava ,
Aos sons debumea Cithara Son ra
Unindo a voz suave , assim cantava :
O' Gloria , dos Heróes Despertadora ,
Apôs quem Zargo Invicto navegava ,
Nesta Terra Feliz tu ih; prtjparas
Solemnes Cultos do Prazer nas aras. -

P ii L.
,

sa: Z A R G U E I D A.

L.

5eu Nobre Esforço , sua ^i Virtude


Merecem recompensas j
vantajosas
Wascarada Lisonja náo me illude ,
Nem me enreda a Razão em névoas densâg :

Se o meu Estro náo fora hum tanto rude


Suas Régias Acções em tudo immensas
Ao som da acorde Ciihara cantara ,
E aos Astros o Seu Nome sublimara,

LI.

Mas como pôde , ó Ceos , batel pequeno''


Navegar confiado em ténues velas ,
( Inda que as sopre Zephyro Sereno )
5, Ham Portentoso Golfão de Acções Bellas ?
Em grosso Lenho lá no Mar Tyrrheno
Soffreo Ulysses rábidas procellss ;
E náo hei de eu sofírer naufrágio horrendo ,

Por este immcnso Golfão discorrendo ?

Lll.

A' minha Lyra pois se colha o panno ,


Que no mar do Silencio fundeada
Náo temera por certo o fatal dano ,
A que ella , navegando , anda arriscada :
Immortai Zargo , I Ilustre Lusitano,
Tua Gloria ser deve eternizada ,
IWas náo por mim : hum passarinho implume
.Tomba do ^ninho^, se voarj presume.

LIII.
, ;, :

CANTO IX. 22^

LIII.

Taes palavras Morales enioava


Ao som da acorde Cithara que pulsa j ,

E porque já cantar náo cosrumavâ


, ,

Suspende a voz hum pouco já conviâlsa


Com suave prazer isto cj^cutava
Pasmada no Convez t Gente avulsa
E apenas se suspende a voz cadente,
Viva Zargo , repeie toda a Gente.
LIV.
Toda t noite em harmónicas folias
A Maritima chusma se entreteve
E consumido o tempo entre a^^rias
A noite pareceo espaço breve :
O' Aurora Gentil , tu , quando abrias
A Porta Oriental com máos de neve
Que festivos prazeres adejando
\'iste em tomo do Pmho em denso bando ?

LV.
Nâo viste em roda ao Lenho tUi surgido
O Coro das Nereidas bellas
belio ,

OíFerecendo a Zar^o Esclarecido


Mimosas prendas cérulas Capelias ?

Náo ouviste o Mantimo alarido,


E o das e-^uoreas mágicas Donzellas ,

Que em harmónicos sons o ar fendiáo,


E em harmónicos sons tos Ceos subiào ?

LVI.
ai9 XARGUEIDA.
LVI.
Não viste em torno ao Lenho fundeado
Undivâgos Delfins andar saltando ,

Luzindo-ihes o dorso prateado


A' luz clara, que vinhas derramando?
Não visre em tomo delle o mar coalhado
De escamosos Tritões barafustando?
Sim 5 tu viste, tu viste, Aurora Amena,
Transportada de gosto a grata Scena.

Fim do Canto Nono.

CAN-
)

xxxxxxxxxT^ *Txxx T^ ~xxxxxxxxx f^

CANTO DECIMO.
ARGUMENTO.
1 VjL Anda Zargo a Rui Paes saber da Terra ;
Desembarcai ; e no Tu nulo saudoso ,
f

Que Harfet triste e /Vjachim no seio encerra ,


,

jRende graç^as ao TODO-PODEUOSO :


Por evi'ãr de Pan a horrivel gnerra^
Aos Bosques jogo pÕe Z
irgo Auimoso;
VoUã ao Tejo , onde , apenas he chegado ,
He por *^cão Primeiro premiado.

I.

P Or
Mal vinháo
enrre ténue Nnvcm cor de rosa
( como em languidos desmaips
Da Gigantèa Tocha fulgorosa
Reluzindo os prin;eiros tropxos ríios;
Quando Zargo com voz respeitiiosa ,
Porque quer ter da Terra mais ensaios ,
Wtnda hnm certo Rui ^^aes , cjne audácia provâ 5
Com ouiros obseivar a Terra Nova*

n.
:

fi|t Z A R. G U E I D A.

II.

Com elíe ir.nito<? Lusos se partirão


Fm demanda dâ Terra,já sem medo,
E bem perto da praia descobrirão
Novos Montes cobertos de arvoredo :

Para hun? grossos calbáos , q' a hum lâdo vírão,


^
Ccnduzi^^do o batel , sobre hum penedo ,
Onde quebrava o mar menos violento
Desembarca Rui Paes a salvamento.
IIT.

Aíra's delle também desembarcarão


Alguns dos Lu'os, que levou comsigo ,
E todos animosos se embrenharão
Por entre arvores mil, sem medo âo p'íigo;
Dentro em poucos instantes encontrarão
O FaMl mebncólico Jazigo
De H^rfet , e de Mâchim , a cuja vista
De todos hum náo ha , que á Dor resista.

IV,

Fi« , lendo as inscripçõe? alli gravadas,


A*'s dnas Alnits té na morte unidâs
Sobre as cinzas no Tumulo encerradas
Tristes triburáo lagrimas sentidas
Com as faces em pranto inda banhadas ,
E vivas expressões de Dor nascidas
V^áo logo reccnrar o Caso amâr?,o
Ao Grande, ao Forte , mas Piedoso Zargo.

V.
;,
, ,: :

C A N T o X. 535

V.
Vendo este Capitão , que o seu Desejo
Tinha chegado á meta , a que aspirava
Quiz o Dia passar todo em Festejo ,

E prompro para tudo , as ordens dâva


,

Lanto Banquete de valor 5ube)o


Por mezas differentes se e?palhavâ
Em Urnas de crystal brilha o rozido
Licor ao Dv^os de Niza Consagrado.

vr.

Aquellas ricas Meza? singulares


Que depois ( na Grande Insula Divina )
Cobertos de vivificos manj-res
Ao Gama preparou meiga Erycina ;
Aquellas , em que Amor erí^ueo altares
A Fphyre na belleza pere2;rina ,
5, Quando as formosas NmFas co" os Amantes „
Se eni;olfaváo em práticas tocantes;

VII.

Se forão como dizem


( ) excellentes ,
Se foráo ( como dizem ) preciosas
Mais do que estas n^io foráo imocentes ,
Mais do que estas náo foráo sumptuosas
Que infinitos manjares differenres 1

Que finas iguarias saboroças !

Com que doce prazer , com que a'egriâ ,

Sc entornava nos vazos a Ambrósia !

VIIL
,, , : ,

2i4 ZARGUEIDA.
VIII.
A^sim consumindo ts horas
se forão
Do diâ
, que então rápidas voando,
-^obre as azas do Tennpo dissonoras
Se vão do Nada ao Cahos abysmando
Succedem as da Noite , Precursoras
D'hum Dia sempre Grande, e Memorando,
Claro Oiâ em que Zargo íibrio de Gloria
,

Seu Nome recommenda á Lusa Histoiia.


IX.

Já de Titan os raios auri-finos


Penetrando dai Nuvens os enredos ,
Douraváo com Luzeiros crysralinos
A Coma dos frondosos Arvoredos ;

(Juando Zargo, prevendo dos Destinos


(-)s sagrados recônditos segredos
f"om muiios Lusos m^is desembarcava
h por entre balseiros se embrenhava.

X.

Antes (dizia o Capitão Piedoso)


Que m^is se observe do Terreno inculto ,,

Mostrai-me o Monumento Luctuoso ,


Fm que jaz com Harfe? Machim sepulto;
Qcero alíi facrificio respeitoso
Render aos Ceos com reverente culto ,
iobre as cinzas de Amantes , que contempla
*>er cada qual de Amor hum raro Exempla^

XI.
: , , ,,

; C A N T O X. 2j$

XI.

Mâs Rui Paes, que sabia da vereda,


Que hii dar de Machim na sepultura
Na frente por mil arvores se enreda ,
E o Monumento Lúgubre procura:
Deste triste Lugar a entrada veda
Huma Sombra de cor morena escura.
Que prohibe o chegar á Campa fria ,
S^m que se entre do Susto em Companhia.
XII.

Apenas chegou Zargo ao Monumento ,


Que os Amantes encerra no seu seio
JV!il ais roubando ao peito a cento, e cento.

Desfalece de susto, e magoa cheio:


Longo esp:ço depois cobrando alento
E á morcifera Dor tomando o freio
Pondo os olhos nos Ceos , geme , suspira ,
E estas vozes fataes do peito tira
XIII.

Benignos Ceos , que humano despiedado


Pode sem mágoa vèr indi tf crente
O Trágico Theatro desgraçado ,
Patibulo do Amor mais innocente ?
He preciso , que fosse homem gerado
Entre os Monstros Cruéis da Libya ardente ,
E que do leite seu fosse nutrido
Aquclle , que isto visse empedernido.

XIV.
,

2}6 Z A R G U E I D A.

XíV.
Faminta Morte , â Dor , que me consome ,
Me obriga a náo temer p'riíi;os , e danos i

Náo basráo a fartar-te a voraz fome


Aqnelles , que são victimas dos annos ?
Sem respeitar Virrude idade , ou nome
^ ,
Assim matas misérrimos humanos ?
Inda tens , para encher , mais sepulturas y
De innocentes humanas Creaturas ?

XV.
Quíndo de Harfet a vida preciosa
Intere>savâ mais a Machim triste ,
Tu , 6 Morre cruel , sediciosa
Sobre eUa mortal Golpe despediste:
Como a bonina cândida mimosa
Fm flor cortada sobre a terra a viste ,
Desgraçado Machim ; e em tempo breve
O mesmo fim tiveste ,
que ella teve.

XVI.
Qual C?çador de alados passarinhos
Que , encontrando a Avezinha dtscuidada ,
Á faz cahir dos trémulos raminhos
Do veloz chumbo matador cortada ;

Tal TUó Morte , á sombra destes pinhos


, y
E cedros , de que a Campa está cercada >
Cahir fizeste Harfet , sem mais respeito ,
Da sepuiiura no funéreo Leito.

xvn.
!! ,

CANTO X. 1J7

XVII.
Não lhe valerão votos innocentes
Feitos aos Ceos por seu Amante afflito ;

Não lhe valerão súf plicas frequentes


Ha mortal Dor no misero confliio :

Não lhe valerão lagrimas ardentes


Despiendidas em número infinito ;

Tudo baldado foi , pois , sem piedade ,


Te ensurdeceste á voz da Humanidade.

XVIII.

Sotre hum golpe outro golpe desfechaste


Sem que eu possa dizer qual foi mais rrisie ,
Se âqv.elle , em que a Wachim Harfet rcuhaste,
Se aqnelle , em que a Harfet Machim uniste :
Tumulo
i^o centro deste arrojaste
Corpos, que Amor ferio , e tu feriste;
3Was ( que diffrença ) Amor lhes dava vida
!
,
£ tu lhes deste a moiie na ferida.

XIX.
Porém que scena horrível se apresenta
Aos tristes olhos meus oh Ceos sagiados
, ] !

Eu vejo , eu vejo a R4orte


macilenta
Sobre o seu Throno dossos esburgadcs
Tendo na dextra a fouce tiuculenta ,
Tinta em sangue d^humanos lacerados,
Parece , que preside á sepultura ,
Em que os Symbolos jazem da Ternura

XX.
, , ,

2jJ Z A R G U E I D A.

XX.
Parece-me estar vendo em torno delIâ
Vaguearem Fantasmas Pavorosos
Em quanto triste Amor a hum lado anhelâ
Soltando a furto roucos ais saudosos!
Amor as áureas tranças arrepela
Aííogtem pranto es olhos lacrimosos ,

Enos braços da pállida saudade


Da vil Morte pragueja a crueldade.
frt A Al*
Mas ah
que escuto , ó Ceos , que voz divina
!

Me ao coração dentro no peito


falia !

Que voz, que doce voz meiga me ensina


A suíFocar a Dor , que me ha desfeito !

Que Luz brilhante a Mente me illumina I

O' Natureza a tua voz respeito ;


,

Fazáo, a tua Luz pura, e sagrada


Mostra y
que a vida do Mortal he nada.
XXlí.

Quantas vezes do berço se tem visto


Descer á sepultura o tenro Infante ,
E quantas o mincebo mais bem quisto
Imberbe desce ao Tumulo constante í
Se verdo estamos tantas vezes isto ,
No Thcatro do Mundo a cada instante.
Tara que he prantear com tanto excesso
(A ptzar de inaudito) este successo?

XXIII.
, :

CANTO X. 239

XXIIÍ.
Amigos meus 5 10 pc ik^te Cyrre':*^e
Levan:e-se hum Altar t Dl^OS rkOPlCIO ;

No escuro seio deste sitio Agreste


Vamos fazer solemne Sacrifício ;

Rebombcm p"Ia Abóbada Celeste


Fcos, tjiie dem de gratidão indici ,
E 10 mesmo tempo sirváo de suííVigios
Por quem morreo da Dor cnirc os nauf.-gios.
XXIV.
Inda não tinha bem Zargo âc.bado ,

Quando ao pc do Cy preste ,
cjue assombrava
O frio Mausoléo , Aliir Sagrado
Para o Divino Culto se approntava
Já Casto Sacerdoie ImmacuUdo
O Ptiro Sacrifício começ«va
K sobre nuvens cândidas de incensos
Hião subindo ao Ceo voios immensos.
XXV.
nos ricos thuribulos ardia
],í

O Incenso , que o Lugar aromatiza i


Ao Culto Divinal Zargo assisrit
Com tal Religião, que o diviniza:
Os Lusos deste Heróc na companhia ,
Que por suas virtudes se abaliza ,
Ladeando o Rncreo Monumento ,
Imitáo este Heróc no acatamenio.

XXV r.
, , : ,

140 Z A R G U E I D A.

XXVI.
Sa cridos hymnos todos entoarão
Unidos em louvor do OMNIPOTENTE;
As rr.áos , e os olhos para os Ceos alçarão,
Dsrdo grnças a DEOS solemnemenre
l>pois saudosos, trisres derramarão
Sobre o Tumulo frio pranto ardente
Fogtndo ao Sslvador pelas venturas
Das almas das sepulias creaiuras.
XXVII.
Findou-se o culto fervoroso , e puro ;
E á voz do Grande Zargo os Lusitanos
O cenrro deixáo deste Bosque escuro ,
Por vêr montes, e valles Insulanos:
Pizando parte do Terreno duro ,
Sem encontrarem Pan , nem seus Sylvanos ,
Colherão frutos surprendcrão Aves ,
,

Lindas na forma , no cantar suaves.


XXVUL
O dia quasi todo consumirão
Fm fundos valies em agrestes
, montes
Por orde a cada passo amenas virão
Nascer fecundas ciysiallinas fontes :

Para o Lenho ancorado se pastírâo


Quando já nos distantes horizontes ,

Por vêr as dublas que restaváo ,


luzes ,

Da Noite as pardas sombras se assomavâo».

XXIX.
:, , ; ; ,, , ::

CANTO X. 141

XXIX.
Quando indt apenas a manhã rompia 9
lá Zirgo 9 muitos Lusos ajuntando
F w dois grandes bateis , ondas fendia ,
A verde fenil Ilha costeando
Fcntas , praias, rebeiras descobria,
A que célebres Nomes hia dando
Dobra alta ponta , dá n'huma enseada
Amena , grata , limpa , e socegada.

XXX.
Descobre Zargo hum valle ameno, e fundo.
Por onde três ribeiras scrpejaváo
D'irvoredos despido , c só fecundo
Em funchos , que alli ferreis abundaváo
Os hálitos fragrantes do jucundo
Funchcso valle os ares perfumavào
Montes em meio circulo frondosos
Lhe serviâo de guarda numerosos.

XXXL
Deo Zargo ao do Funchal o Nome
valle 3
E n'hum amigo
lado d'aquelle Porto
Porque de noite entáo descanço tome,
De dois grandes Ilhcos buscou o abrigo
Alli a noite plácido consome
Sem desgosto , sem susto , sera perigo
E quando apenas vinha am.inhecendo
]á novg$ mares Zargo hia fendendo*

Q XXXU»
, ;
: ;

«4* 2: A R G U E I D A.

XXXII.
Novas pontas , e praias descobrindo
Cobertas de Arvoredo emmaranhado ,
Que das ondas se vè no espelho lindo ,
Do seu próprio verdor como encantado
Depois de discorrer por mar infindo ,
Mar ainda aié lli nunca sulcado,
Descobrio huma Praia deleirosa ,
A que deo logo o Nome de Formosa.
XXXIII.

Depois entrando plácida Bahia


Descobre em negro mármore entalhada
Húmida L«pa cavernosa , e fria ,
Por mil Marinhos Lobos habitada
Entretida de alguns na pescaria
Muita parte da tarde foi passada ;
E á Lapa , que de Lobos era rica ,
De Camará de Lobos nome íica.
XXXIV.
Volta Zargo âos Ilhéos , onde contente
Outra vez pernoitar tem pertendido ;
E alli tarde da noite escuta , e sente
Medonho estrondo horrisono ruido
Era o Caprino Deos , que insanamente
Contra os Lusos armado , e enfurecido
Posto na freate do Tartareo Enxame
Dispunha o cego bárbaro certame.

XXXV.
:, :, ,:

CANTO X. í»4f

XXXV.
Fmquanto as negras Fúrias vozearão,
As monstruosas Gcrgonâs fremi ão
As Harpias alígeras grasnaváo ,
E os Centauros indcmitos rugiáo
As Scyllasquaes Serpentes , sibilaváo,
,

Quaes Java 13 os Sátyros gru^híáo,


E e?a tão dissonante a hcrrenda grira
Quanto a Gloria de Zargo era infinita.
XXXVI.
Lembrando-se entáo Zargo do que ouvífâ
A' da Grande Ilha S?cra Divindade,
Pondo os olhos na Nuvem ,
qiie inda gira
Na Etherea Região cem magestade,
Taes do centro d'alma tira
palavras
O' tupor mim Incógnita Deidade ,
,

Protege os Lusos ah não fique multa


.'
!

A forte Gente , que o vil Pan insulta,

XXXVII.
espera , que amanheça
Isto dizendo ,

E do Funchal chegando ,
junto á praia
Mais que animoso á Terra se arremessa ,
Com Lusos mais desembí>rcando
outros
Do Bosque mais vismho a icda a pressa
A's matas vivas chammas applicândo ,
Começáo-se a atear chammas ferinas,
Talando Montes , Valles , e Campinas.

Q ii XXXVIII»
, : ,,

344 Z A R GU E I D A.

XXXVIII.
D'improviso ateada a labareda
Com sanha incrível , cqm furor insano ,
Do bosque o Luso Heróe se desenreda ,

Temendo o fogo mais que o Deos Sylvano


Da praia do Funchal eis que se arreda ,
Rasgando ondas do Oceano,
as salsas
Entre nuvens de fumo vê brilhantes
Semeadas as chtmmas estalantes.

XXXIX.
Já se unem os bateis ao Lenho cavo.
Já no
salta convéz a Lusa Gente ,
E o forte Gapitáj de animo brAvo
Parece mais que nunca estar contende
Entretanto o Caprino Deos ignavo,
Que incendiados os seus bosques seníc
Estulto de furor , de raiva brame
For entre as filas do Coe y tio Enxame*
XL.
Bem como quando rábida Tormenta
Horrisona troando , abafa os ares
Das entranhas de nuvem corpulenta
Tombando sobre a Terra , e sobre os mares
Retrôa a vozeria truculenta
Dos indómitos Monstros , que a milhares ,
Subindo aos cumrs dos agrestes serros
Do peito arrancão dissonantes berros.

XU
, ,: ;, ,

CANTO X. M5
XLI.
Do Lilybeo o Cyclcpe sânhudo
A quem o Gfcgo Undivago cegara,
Crívardo-líie na frente hum páo agudo ^
Que o redondo Luzeiro lhe eclipsara ;
Qutndo arrancou pinheiros, montes, tudo^
Com violento furor , com fcrça rara
Para cego arrojar ás Náos de Ulysses
Que lhe escapaváo pelo mar felices
XLII.

Tantos troncos , rochedos , e montanhas


A's ondas nlo lançou do mar Tyrrheno,
Quantcs alli cem forças mais que estranhas
/rroja o Córneo Deos ao Mar sereno:
Chsirmss de raiva solta das entranhas,
E , exhalando pestífero veneno
Para a parte , em que o fogo se ateiva»
Atrás de mentes mentes atirjiva.

XUII.
Achando mais matéria , o fogo activo
Cada vez mais voraz se ensoberbecei
Assanha-se láo ispido , táo vivo,
Que querer abrizar o Ceo parece
Por algtm tempo entío Pan pensativo
5er castigo de Jcve reconhece,
E mais limido alli, c^ue furibundo ,
Falia aos m.onstror do Báratro profundo.

XLIV,
, ,

%46 K A R G U E I D A.

XLIV.
Clâro ená (disse Pan ) que o Grande Jove
A BaccHo favorece , e aos Lusitanos
A Dextra
, qje fez tudo , e tudo move
He que semêa sobre nós os danos :

Para q )e em fim mais danos se não prove.


Ao Tárraro baxai : com meus Sylvanos
Vo'j-me encerrar da gruta no recinto ,
Ate que o force incêndio seja extinio.
XLV.
quando a Noite escura
Isto dizia
,

No seu Carro ái sombras cirregado


Tocava da Grande Ilha a terra dura
Do Thyrsigero Numan por mandado t

Do negro Tártaro á m")rada impura


Desce o Carro veloz , então tirado
Pcílas rábidas conduzindo
Fúrias ,

Dos Monstros Avernács o bandj infindo;


XLVI.
Já sem remédio o Bosque todo ardia ,

E a muitos miis as chamTJis emprescavi ,


La;cadi pelo fogo a penedia,
Saltando peios ares , estalava :

Pan , q ie timido alli tudo isto via ,


Com qje cada vez mi is ^e horrorisavi ,
A' Gruta corre com seis Faunos destro
Furioso praguejando o Fado Sestro.

XLVII.
, , ;

C A N To X. 2^T

XLVII.
Fmquânro isto âccnrece , o Grande Zârgo
Pcrtendit &o rciT;per da Wídrugada
O Lenho dâr ás ondas do Mar largo
Demandando Ulyssea Celebrada :

H Morales , que entáo tinha a seu cargo


3s Quilha fundeada
aprestos da ,

Em ordem pondo o Lenho , e pondo tudo ^


vianda levar o ferro denta gudo.

XLVIIL
Vinha de Vénus a fulgente Estrella
VTensageira Gentil da branca Aurora
Wostrando no Oriente a face bella ,
^ face luminosa , e brilhadora :
Quando Morales, desprendendo a véla
Aos d'huma aragem tentadora,
sopros
A' Frondosa Madeira a popa dando ,
Hia serenamente ondas cortando.
XLIX.
Corria pelo mar a undante Quilha,
Deixando atrás assignalada a esteira ;
Entre Nuvens se esconde a fértil Ilha
A sempre fértil Ilha da Madeira ;
}á Zargo as ondas plácidas retrilha
Que t Terra laváo , que lhe está fronteira
Já também deixa atrás o Porto Santo ,
Dos Habitantes seus com raro espanco.

L;
: :

14» Z A R GU E I D Ai:

L.

Era altâ, no Ice


quâtido os Nautas virão
Hum confuso Ciarão, que o Ceo dourava»
Ser do Incêndio faul se persuadirão ,
Pois que enrão pela popa lhes ficava
Quanto mais delle os Luso? se retira o ,
Mais crescia o Clarão , mais se ateava ;
Parecia a flammigera Madeira
Do Mongibello a Imagem verdadeira.
LI.

Assim forão cortando o mar sereno


Os Lusos immortaes Descobridores,
9, Até que houvêráo vista do Terreno, „
Onde muitos do? quaes tinhão amores
„ Entrarão pela foz do Téio ameno „
Com assombro dos seus Habitadores ;
Que já de longe o Lenho conhecendo ,
A'$ praias vinhão com prazer correndo.
LIL
Com mão de rosas , e jasmins formada
Doze vezes a Estrella refulgente ,
Precursora fiel da Madrugada
Havia aberto as portas do Oriente :
Quando a nadante quilha embandeirada
Do Téjo abria a plácida corrente ,
E Ulyssea mais leda , que saudosa ,
Abria a Zargo os braços carinhosa.

Lni.
; : ; ,

Canto x. 249

Lllf.

Agora , Filho mea , ( diz Ul/sseâ )


Terás o galardão, e Gloria cert»
A Quilht undtnte de bandeiras chea
Me mnuncia a Famosa Descoberta
Se exposto ás Fúrias da Tormenta fea
Navegaste atéqui por via incerra ,
Vens hoje descançar no CoUo amigo
Da Mái saudosa , que te oíferca abrigo»
LIV.
O Primeiro JoíoEs?e Monarca ,
,

Caio N3me ímmortal será levado


Além das metas , que o Oceano mtrca
E até d'hum Polo a outro congelado
Joio Primjiro , cuja Gloria abarca
A immensa Mole d'hum feliz Reinado ,
Ancioso re espera , para dar-te
O premio deita Acção , para illastrar-te,
LV.
Oj Cos , 05 Justos CeDs jámaiç deixara©
A? heróicas Acções sem recompensa ,
E por isso talvez lhe deitináráo
Miis esta, que vem dir-lhe gloria immenst:
Con esta Descoberta premiarão ,

Aindt mais, do que talvez se pensa ,


As Decantadas Célebres Proezas
Por Ellc obradas eai miihóás de Emprezas.

LVI.
;: ; ,
, ,

2$o Z A R G U E I D A.

LVI.
Tem Segurado o Thrcno Lusitano,
De Louros cercando a Regia Frenre
Fez de susto tremer o bravo H empano
Wostrando-lhe da Guerra o raio ardente:
Do seu Insigne Esforço mais que Humano
He Testemunha ainda a Lusa Gente :
Ninguém mais falle , Aliubarrota diga
Os estragos , que fez á Gente Imi^a.
LVII.

O Grande Henrique, o Infante Virtuoso,


Que se tem feito em tudo Memorando
Também te espera ha tempos Ancioso
Premiar teus Serviços projectando
Ah vem ó Filho meu , vem Glorioso
I

A's Honras dar-te , que em risonho bando


Colhem da Gloria nos Jardins floridos,
Para ti , Louros , que te sáo devidos.

LVJII.

Disse : e apena^s ancorava o Pinho


Se víráo pelo Tejo Aves N^danres
Aos Zephyros soltando azas de linho
Adornadas de flammulas tremanres
Bebem os Nautas rubicundo vinho;
Resoão vivas, mil altissonantes ,
E cm breve esprço o Lenho fundeado
De festivos bateis se vê cercado.

LIX.
C A N T o X. 25Í

1 LIX.
Do? Lusos confasissimo ruido
J^e escuta âlli com esrranheza rara :

Hm ver o seu filho , que perdido


q'ier
Tantas vezes frené:ieo entrara :
Qier outro vèr o Pâi , o Pai cjuerido ,
Cuja pe''dt mil vezes pranteíra :
Qual vend^ o Amigo seu , fica contende
, ;

Qual se enche de prazer , vendo o parente.

LX.

Com âppUuço do Povo Tagirano


Checando Zargo de Ulyssea á praia ,
Entre o? braço? do ínfane Lusitano
Ébrio de Gloria , e de Prazer desmaia :
Para fali ar depois ao Sob?rano ,
Tornando eniâo a si , o H »r6e se ensaia ,
E já de Henrique ao lad ) a pleno passo
Piza as Salas Reaes do Régio Paço.
LXT.

Mal che^â ao Pé doThrono, âo Rei declara


Fiustoi sacce^sos da feliz viagem ,
E como a fértil Ilha amsna achara ,
Qie lhe oíferta por máos da vassallagem :
I)iz-'he miis que Madeira lhe chamara
Por ter ranço? pinhaes , taota ramagem
De Cédro5 , Louros, Tis, que apinhoada
Parecia ser de arvores formada.

Lxn.
:,
; : , : ,

í$a Z A R G U E I DA.
LXII.
Finalmente lhe diz, que elle accerdèra
O fogo , que os seus Bosques devorava
Por castigar de Pan a sanha fera
Que insidias infeinaes l^e maquitíâva
O Rei , que tudo cniáo Sábio pendera,
A Zargo entre feus braços apertava
E á Soberana Vo2 Jar^ando o freio,,
Desta sorte fallou de Prazer cheio
Lxin.
Henrique , Filho N^eu , nesse teu resto
lendo estou teu Pesejo assas bem justo:.
Tu queres ter a Gloria , ter o Gcsro
De premiar a Zargo a icdo o custo :
Em fim por breve mstante seja pcsto
Nas Tuas Wáos o meu Pcder Augusto j
Elege o Premio ,
que dar devo a Zargo;
Eu tudo apprcvarei d Animo Largo,

LXIV.
A Ti C que hum tão feliz Pescobrimcnto
Despertaste , contando co' a victoria ,

E que trabalhas tanto jelo au^mcnto


Do meu Reino e da Fe ) compete a
, Gloria
De premiar o Seu Merecinrenio
Perpetuas assim Nossa A?emcria
Nas Mercês , que por ti lhe forem dada^,^
Deixas Nossas Acções perpetuadas.

LXV
; ; , ,

^A N T o X. ajl

LXV.
A vozes o Infante Agradecido
taes
A Dextra beija ao Pai por tanto indulto,
E voltando-se a Zargo Esclarecido
Assim lhe falia com sereno vulto :

O teuProcedimento , que tem sido


Digno de inveja , de respeito , e culto
Vai ter o Galardão Sublime, e Régio,
Que he bem devido a teu Valor Egrégio.
LXVI.
Isto dizendo; deo-lhe o verdadeiro
Preexcelso Esplendor da Fidalguia ;
Dco-lhe o Claro Brazáo dArmts , Primeiro ^
Que de Camera o Titulo trazia
Deo-lhe em fim, por mostrar-se Justiceiro,
Do Funchal a Feliz Donatária
Prémios estes , que o Pai Benigno approva ,
Mandando-o povoar a Terra Nova.
LXVII.
Eis aqui , Pí^tria minha , Decantado
O Teu Feliz Descobridor Preclaro,
Cujo Nome roubei não infestado
Do Lethes infernal ao bojo avaro :
Eis aqui o Heroísmo premiado ;
Eis aqui para o iMundo Exemplo Claro,
De que não perde o Premio o Bom Vassallog
Que em servir hum Bom Rei faz seu regalo.

Lxvin,'
i54 Z A R G U E I D A.

I XVIII.
Os Príncipes, que os irériros premêáo,
Suas Acções, e Nones erernizão;
Dos Povos sens Adorações grangeáo,
E a pe7âr de Morrses se divinizáo :

Seus Vassalios de os ver se Is^n^eáo;


E com provas fiéis raracrerizáo
A sua \'assalla£;ero , náo march?da
Pela vil nódoa da Traiçáo dairinâda,^
LXIX.
Não mais, Piva , ráo rraís ,
pris felizmeRte
Clies^iiei á rréta da arriscada Firpieza:
A Tuba deponha que semente
se ,

Soprou a dcce voz da Nau reza :

Deixa que a Idade rre encareça a frente,


E que o meu Estro alcarce rròr fiimeza j
He então , he eniáo Deosa , c^ue e^perOj
,

Embocar o clarim do Grande Htn.ero.


LXX.
Sim, ó Príncipe Luso, Que a ventura
De mil Povos Fazeis em roda a parte,
Do Paternal Amor . . . ( e còm ternura )
Arvorando o Pacifico Fs'andarte,
Então Vosí>a V^irtude Augusta, e Pura,
,, Se a tanto rre ajudar o Fngenho, e Aite, 5»
Do Esmirneo Va'e ro Clarim Fícurdo
Cantando, espalharei por tcdo o Mundo,

Fim do Decimo , e ultimo Canto»


PQ Medina e Vasconcellos,
9261 Francisco de Paula
M39Z3 Zargueida

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