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A Ponte

Lucienne Guedes

DIREITOS AUTORAIS
Este texto foi escrito especialmente para as escolas participantes do
Projeto Conexões Teatro Jovem
e fez parte do seu portfólio no ano de 2016.
Qualquer montagem fora do Projeto deverá ser
negociada com o autor ou seus agentes sobre os direitos autorais.

Contato Lucienne Guedes:

A Ponte – Lucienne Guedes


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fevereiro de 2016
*
segunda versão

“Ser feliz significa poder tomar consciência de si mesmo sem


susto.”
Walter Benjamim, em Rua de mão única

“Do vasto céu cai uma chuva de flores, ouço uma música, e uma estranha
fragrância espalha-se aos quatro cantos.”
Em Hagoromo, de Zeami, na tradução de Haroldo de Campos

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Personagens:
Íris, a flor
Yuri, o moço da bicicleta
Moça corifeu
Coro da ponte
Lígia e Lucas, o casal
Luísa
Victória, Jéssica e Bárbara, as três amigas
Um grupo de adolescentes
João e Júlio
Paulo e Ana Paula, um menino e sua irmã mais velha
Caio e André, dois moços
Isabel
Jorge, o avô de Isabel
Gabriel, o rapaz triste
Luciana
Dois irmãos ou duas irmãs (um(a) maior e outro(a) menor)

CENA 01
(É noite. Numa pequena ponte sobre o riacho da cidade, as flores indicam a chegada
da primavera. Um moço, Yuri, passa de bicicleta várias vezes, visivelmente intrigado,
olhando tudo, parando e seguindo.)

Yuri
Olá? Tem alguém aí?
Onde está a voz?
Onde, a voz que canta?
(silêncio)
Eu vou esperar.
Hoje eu não saio daqui. Posso virar a noite, mas eu não saio daqui.

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(ele escuta um ruído, levanta-se assustado)


Olá! Tem alguém aí? Olá?
Eu não tenho medo, só um pouco, na verdade.
Está escuro. Melhor assim.
Eu vou esperar. Esperei até agora, por três estações inteiras. Hoje é o primeiro dia
da primavera. Já sinto o cheiro daquela flor. Ficarei aqui até o final dela, se for
necessário. Tomara que não apareça ninguém aqui na ponte além de mim, ao
menos hoje.
(Ele começa a recolher gravetos e tentar acender uma pequena fogueira; ele tenta
várias vezes, insistentemente, mas não consegue. Ansioso, vai à beirada da ponte)
Olá! Eu estou aqui de volta! Já chegou a primavera, você está aí? Eu já sinto o cheiro
da flor, eu posso guardar segredo. Eu não vou contar pra ninguém. Olá! Pode
conversar comigo? Eu tenho um desejo! Olá!
(ele desanima, senta-se.)
Talvez ainda não. Talvez não seja ainda hoje. Será?
(O moço aconchega seu corpo o mais que pode, ao lado de sua bicicleta. Acaba por
adormecer.)

CENA 02
(A luz se modifica. A moça, Íris, surge sob a ponte, sem ser vista. Ela ainda não
percebeu que Yuri está ali, adormecido.)

Íris
Eu não ouço nada? Já é noite o suficiente para que ninguém escute nada além do
vento?
É a hora, então, da música começar.
A música, para mim, é o que dizem as pessoas. É o que desejam as pessoas. Toda
noite nessa primavera eu virei aqui. Todas as noites de primavera, sem descanso.
Porque eu não posso não vir. Eu não tenho paz. O amor que trago no peito não
descansa. E como eu gostaria de descansar...! O que faço com o amor que tenho?
Os desejos aprisionam, e então o amor não descansa. Os desejos mantêm cativos,
como se precisássemos viver do futuro, mas o futuro ainda não existe, e não

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existirá nunca, porque no momento seguinte o futuro já é presente. O presente é


a única eternidade possível. Eu canto, então, para que os desejos de futuro sejam
o presente, e por isso eternos, infinitos.
Meu nome é Íris. Um dia eu não precisarei mais cantar, um dia entenderão que essa
ponte vai existir sozinha na primavera, sem mim. Haverá um dia em que irei
embora. Talvez eu seja amada, ou talvez seja odiada, não sei, e então poderei ir
embora. Ser outro futuro.
Quem já tiver experimentado coisa semelhante vai compreender alguma coisa
disso. Eu não posso ser mais clara, não ainda, porque é muito nublado tudo isso,
tudo o que acontece. Tudo sai, tudo vai sair da memória, as palavras não existem.
Sobram só umas gotas dessa água, sobram só... é por isso que eu canto. Porque a
música a gente não esquece.

(Ela canta)
Existe uma coisa nesse mundo
Que me move até muito longe,
Sem sair daqui, dessa ponte.
Como uma flor plantada para sempre,
Eu voo com a música
Que me carrega, me arrasta.
Como esse cheiro,
que inaugura a primavera dos desejos,
e consegue te alcançar, talvez.

Existe uma coisa na primavera


Que não me permite parar,
E tudo se revolve em muitas voltas.
E então eu voo, vou junto,
Plantada, eu voo
Com os desejos dos outros.
Aonde irei parar
Quando tudo terminar?

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Quando é que verei teus olhos?, talvez.

Existe uma coisa nesse mundo,


E eu sei que ela existe,
Ainda preciso conhecer.
A vida será isso?
Desejar, voar?
Eu quero descansar,
Quero ver os teus olhos uma só vez.
Já bastará,
uma só vez.

Conhecer o amor,
E então descansar.

E, em tua companhia,
parar de voar.

Nos desejos dos outros


parar de voar.

Descansar contigo,
descansar em paz.

(Yuri acorda. Íris se esconde muito rapidamente.)

Yuri
Ei! Tem alguém aí? Eu escutei alguma coisa, tem alguém aqui?
Bobagem...! Acho que não. É difícil de acreditar. Sabem quando algo aqui, na
cabeça, te diz que é bobagem, mas aqui, no meio do peito, te diz o contrário?

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Eu ando de bicicleta porque meu coração é agitado demais, andar a pé é muito


devagar. Por dentro eu sou... por dentro eu tenho tanta coisa gritando...! Eu me
sinto tão vivo, mas tão vivo, que até dói. O que é isso? Dói mais agora, por que?
Quem já tiver experimentado coisa semelhante vai compreender alguma coisa
disso. Eu não posso ser mais claro, não ainda, porque é muito nublado tudo isso,
tudo o que acontece. Tudo sai, tudo corre, as palavras são muito lentas, lentas
demais. Fica só essa coisa aqui no peito, nas pernas, fica só...! Eu já nem sei o que
estou dizendo. Nem sei quem falou isso dentro de mim. Desculpem.
Eu escutei a música. Agora. Eu juro que escutei a música da flor.
Mas não pode ser música da flor, pelo amor de deus, flor não canta, não é possível,
isso. Que voz será essa?
Ainda agora eu escutei, de novo, agora pouco, agora mesmo.
Minha mãe me disse para nunca dizer coisas que a gente não sabe formular direito.
Desculpem. Tem alguma coisa aqui, tem alguma coisa... por aqui. Eu devo estar
ficando louco.
Dizem - o povo daqui diz - que se a gente tem um desejo muito forte, deve vir até
aqui, exatamente aqui, numa noite de primavera, lançar o desejo feito som, como
se fosse o cheiro da flor, deixar voar. Se o desejo tiver chance de ser realizado, se
ouvirá a canção da flor.
(pausa)
Bobagem. Eu não posso acreditar nisso. Devo estar ficando louco. Minha mãe me
disse que nunca...

(Chega uma moça na ponte e interrompe as palavras do moço com sua presença. )

CENA 03

Moça corifeu
Oi? Desculpe, atrapalhei você?
Yuri
Não, não, não foi nada.
Moça corifeu

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Você estava fazendo um pedido...?


Yuri
Não, não, que pedido? Pedido pra quem?
Moça corifeu
Para a flor. Hoje é a primeira noite da primavera.
Yuri
Não sei o que é isso, não. Não sei do que você está falando.
Moça corifeu
As pessoas já estão chegando. Como hoje é a primeira noite, a gente vai fazer uma
coisa aqui para a primavera começar e a flor despertar.
Yuri
Posso ficar pra ver?
(Entram muitas pessoas, trazendo espécies de oferendas nas mãos. Elas agem juntas,
como num coro. A moça é o corifeu.)
Coro
Se a beleza puder existir
Que venha nesta noite
Moça corifeu
(fala para Yuri) Pegue alguma coisa que você tiver com você, uma coisa muito
importante, rápido!
Yuri
Mas eu não tenho nada aqui...!
Moça corifeu
Qualquer coisa, não precisa ser de valor, mas tem que ser importante pra você.
(Ele procura algo nos bolsos, não acha nada.)
Vai logo, estamos esperando, vai!
(Ele retira a pequena luz de sua bicicleta e a pega nas mãos)
Moça corifeu
(fala como quem discursa)
Se a beleza pode existir
Que seja nesta noite a inaugurar
A clareza dos nossos pensamentos

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A beleza dos nossos desejos


E você pode nos agraciar
Coro
Se a beleza puder existir
Que venha nesta noite
E nas próximas noites de primavera
Até que o verão tudo desfaça
Em desejos a se realizarem
Moça corifeu
Bem vinda, primavera.
Que nós não sejamos tão pesados nas suas costas neste ano.

(Eles jogam as coisas no riacho sob a ponte, como uma espécie de oferenda, de
presente. O moço da bicicleta o faz, também. Todos comemoram e vão saindo dali.
Um casal se demora um pouco mais, a olhar com tristeza para o horizonte.)

Moça corifeu
(que fala com Yuri)
Vem? Vamos embora. Deixe os dois aí, eles precisam de silêncio.
Yuri
E se eu quiser fazer um pedido?
Moça corifeu
Depois, depois, vem, faz amanhã, deixe os dois aí, primeiro. A gente tem a
primavera inteira pra vir.
(ele pega a bicicleta e sai com os outros)

(O casal, já sozinho, não diz nada. Apenas olham, tristes. O moço do casal retira de
seus bolsos uma pequena bonequinha, e a joga da ponte, também. Os dois saem.)

(Íris vem até as coisas deixadas para ela. Segura nas mãos a luz da bicicleta, de maneira
muito especial. Volta a se esconder sob a ponte.)

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CENA 04
(Quando todos já saíram, Luísa chega sorrateiramente. Ela está ansiosa, aflita, com
um pouco de medo. Escuta os ruídos, hesita um pouco antes de falar. Quando tudo
fica silencioso e ela tem certeza de que está sozinha, uma música começa a soar muito
longe, e então ela fala.)

Luísa
Boa noite. Eu sei que hoje é só o primeiro dia da sua estação, mas, “flor da noite da
primavera”, eu gostaria de manifestar um desejo muito profundo, logo nessa
primeira noite, para que eu não me arrependa e nem aconteça nada que me impeça
de dizer, finalmente. Porque, no ano passado, eu vim aqui muitas vezes, e sempre
aparecia alguém bem na hora. E eu nunca consegui ficar sozinha nessa ponte o
tempo suficiente para contar-lhe tudo. Eu sei que eu falo demais; preciso sempre
de muitas palavras pra explicar uma coisa simples qualquer, quanto mais dizer uma
coisa complicada. Devo ter puxado isso dela, da minha mãe. Preciso saber se a sua
voz e seu canto podem me dar a esperança de ver meu desejo realizado.
Assim sendo, aí vai o meu desejo: eu desejo, com todas as minhas forças, conhecer
pessoalmente aquela que me deu à luz. Se posso ter esperança, por favor cante a
sua canção. Se não posso, deixe que eu me resolva com o silêncio, tão meu amigo
de sempre, tão interlocutor de mim.
Eu desejo muito, pensei nisso desde que consegui entender um pouco a vida. Eu –
quero – conhecer - a – minha – mãe. Eu sei que a gente constrói nossas relações,
que as amizades e os amores escolhidos são, de fato, amores e amizades. Eu não
sinto a falta dela, não é isso!
(Ela começa a falar como se fosse diretamente coma mãe, sem perceber que o faz)
Na verdade eu nem poderia sentir a sua falta se nunca tive você. Eu só queria
entender por que. Eu só queria entender o que é que afligia você tanto, mas tanto,
a ponto de não suportar ficar, entender o que a maltratava tanto, mas tanto, que
uma célula minha poderia impedir você de se libertar de todo o resto. O que fez
você ir embora? Ninguém me conta nada! E se tivesse sido bom? Já pensou? E se
tivesse sido bom ter ficado, ou ter me levado junto? Será que meu rosto
incomodaria, minhas feições? Tenho traços daquilo que não gostaria de lembrar?

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Já pensei muito nisso tudo. Inventei, conjecturei, aventurei pensamentos os mais


diferentes. Eu sei: se você tivesse me levado talvez eu sentiria a mesma falta desta
outra minha metade que cuida de mim com tanto cuidado, e talvez seria preciso
odiar você por ter me tirado daqui... Talvez você tivesse que ter trocado o meu
nome, para que nunca meu pai me encontrasse, nem meu avô. Talvez eu me
esquecesse deles, como quase me esqueço de você.
Isso, assim, eu nunca tinha conjecturado... na verdade... só agora entendo porque
tenho sua foto... porque deixaram que eu a visse naquele vestido bonito a cada um
dos meus dias... e não esquecer... foi pra não esquecer. Olha, meu vestido, é igual
ao seu, eu fiz um igual ao da foto.
(Faz uma pausa, parece duvidar do que está fazendo ali. Mas retoma a fala com muita
decisão:)
Eu mantenho o desejo. Eu quero ainda correr o risco de tudo, porque preciso saber
se eu sou amada, se fui amada, ouvir da sua voz o quanto você se arrepende, o que
seria capaz de me dizer depois de tanto tempo...
O que eu posso fazer se esse pensamento me persegue todos os dias da minha
vida...?
Eu não tenho descanso. E eu queria ter ao menos um pouco de paz. Quero saber.
Não é que eu queira viver a seu lado; eu nem sei como você é, o que pensa, como é
sua casa! Minha vida está boa como é, não quero outra. Só quero encontrar você e
olhar nos seus olhos e...
(a menina “volta a si”)
“Flor da noite da primavera”, eu desejo encontrar aquela que meu à luz. Devo ter
esperança? Espero seu canto, que ele se faça agora.
(a menina espera, mas nada acontece.)
“Flor da noite da primavera”, eu desejo encontrar aquela que meu à luz. Devo ter
esperança? Espero seu canto, que ele se faça agora.
(A menina espera novamente, e nada acontece. Então, ela vai embora. Só então Íris
aparece, com a luz da bicicleta piscando entre as mãos. Ela desliga a luz, e depois fala:.)

Íris

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O silêncio é a resposta mais cruel de todas. Eu sei. No silêncio sempre alguma coisa
vai continuar gritando. E então, um dia, no meio do corpo surgirá um basta. E a vida
poderá, então, começar.
A mãe dela já não vive, não será possível perguntar sobre o seu amor.
Eu não tenho uma canção que possa dizer não ao desejo. Eu só tenho a canção do
sim, e o silêncio. Eu não posso conversar. Eu só digo sim, à espera de um dia, talvez,
descansar.

(Yuri passa por ali algumas vezes. Íris se esconde)

CENA 05
(Yuri sai quando percebe que três meninas estão chegando à ponte. Elas se
posicionam como pessoas que ensaiaram a cena, e então falam)

Victoria, Jéssica, Bárbara


Nós queremos sair daqui.
Nós queremos sair daqui juntas.
Nós queremos ser felizes juntas, em outra cidade.
Essa cidade é muito pequena. A conversa nos sufoca. Não há nada o que fazer, já
que tudo é sempre o mesmo. O mundo aqui é pequeno demais. Aquilo que sai da
rotina toma muito tamanho, aqui. E isso nos aflige. Aquilo que escapa da regra
aparece demais. E isso nos aflige. Nós três não gostamos das regras. Nós três
queremos ser felizes, inventar jeitos, conhecer outros, construir acordos. Mas o
que sai da regra machuca nossos pais. Já percebemos. É isso é pesado. Nos custa
muito. Então a gente quer sair daqui.
“Flor da noite da primavera”, nós queremos juntas ir morar em outra cidade maior
que esta e mais interessante. Devemos ter esperança? Esperamos seu canto, que
ele se faça agora.
(As três meninas esperam, mas nada acontece.)

Victória
Ih, gente, acho que ela não vai responder.

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Jéssica
Vai sim, vamos esperar um pouco.
(repete, para a Flor)
“Flor da noite da primavera”, nós queremos juntas ir morar em outra cidade maior
que esta. Devemos ter esperança?
Victória
Não vai responder. Já era. Talvez no ano que vem.
(Esperam um pouco. Silêncio)
Bárbara
Não pode ser...! Eu não aceito, isso!
Victória
Não é pra aceitar ou não aceitar, a flor só canta se a possibilidade de fato existir. E
no nosso caso não existe, parece.
Bárbara
Deve ser um engodo, esse negócio, uma crendice de gente que não sabe fazer
sozinho, não sabe decidir por si mesma.
Victória
Ah, e por acaso você consegue sair daqui sem ter um pouco de esperança? A gente
não tem nada, a gente não tem dinheiro, ninguém vai deixar a gente ir.
Bárbara
Dane-se.
Jéssica
Dane-se, nada! Dizem que, se a flor cantar, tudo acontece como milagre. A minha
prima foi embora, ela veio aqui há três anos, pediu, a flor cantou, e ela foi estudar
fora.
Bárbara
Caiu dinheiro do céu, pra ela, por acaso?
Jéssica
Não, mas ela conseguiu um trabalho. Agora está estudando.
Victória
E por que a você não vai atrás dela?
Jéssica

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Eu queria ter esperança, sei lá, ter certeza de que está certo ir embora daqui. Tem
o meu irmão, vocês sabem. Ele precisa de mim.
Victória
(Vai se dando conta do que Jéssica revelou) Foi por isso que a flor não cantou...! É
preciso ter certeza, você não tem certeza dentro do coração.
Bárbara
Você não quer ir, então?
Jéssica
Eu tenho certeza, sim, eu quero ir, nós três combinamos.
Victória
Não tem, não. Que droga, Jéssica, a gente tinha acertado tudo...! Vai dar pra trás?
(silêncio)
Jéssica
Eu não quis prejudicar vocês. Eu talvez não possa ir. Eu quero muito, mas estou em
dúvida se devo.
(Yuri passa por ali em sua bicicleta, elas o notam)
Bárbara
Vamos embora. Tem mais gente que acredita em papai noel, nessa cidade, que
precisa da ponte.
(elas vão saindo)
Victória
Não fala assim, não é balela, não. Isso é desrespeito; e se a flor tiver escutado o que
você falou?
Bárbara
Dane-se. Flor não escuta. Flor é flor. No máximo, solta um pouco de cheiro.
Victória
Dane-se nada, não fala assim. Você está brava porque ela não cantou, mas a gente
conversa direito e volta amanhã.
Bárbara
Já era. Qual parte você não entendeu? Já era, nós três.
(Jéssica volta sozinha, depois de ter certeza que as outras estão distantes e que não
há mais ninguém ali.)

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Jéssica
“Flor da noite da primavera”, eu preciso falar rápido. Eu falei com dúvida, agora a
pouco. Eu quero muito, sim, ir com elas morar em outra cidade. Eu quero ir, eu
quero aprender coisas, conhecer, mas quero voltar logo. Eu não quero sumir para
sempre, mas antes preciso aprender, ver muitas coisas e sei que aqui não será
possível. Eu não estou fugindo. E também não quero decepcionar minhas amigas.
Eu posso me comprometer: nós podemos ir as três juntas e eu volto depois de
alguns anos, pra ensinar coisas para o meu irmão e pras outras crianças. Eu quero
ser professora de música, aqui, mas não conte isso a elas, por favor. Elas vão me
achar idiota, ingênua, como a Victória fala.
(Ela toma coragem e finalmente fala)
“Flor da noite da primavera”, nós queremos juntas ir morar em outra cidade maior
que esta. Devemos ter esperança? Espero seu canto, que ele se faça agora.

Íris
(Ela canta)
Eu só tenho a intenção
De tomar sua imaginação
E alçá-la com o vento

Eu só canto o teu desejo


Ajo sem querer
Impulsionada pelo tempo

Eu nunca te vi
Antes de ter te escutado
Vejo sem prever o que te será dado

Mas o canto da flor


Sopra todos os sins
Mesmo que não seja
nenhum para mim

(As outras duas meninas ouvem o canto e voltam para escutá-lo na ponte. Fascinadas
com a possibilidade, elas comemoram.)

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Bárbara
A música é muito bonita... eu não pensava...
Victória
(Pergunta para Jéssica) O que foi que você fez?
Jéssica
Nada, só deixei bem claro o que eu desejo.
Victória
Mas você pediu a mesma coisa?
Jéssica
Sim, sim! A mesma coisa! Só deixei meu coração mais aberto.
Bárbara
E quando a gente vai?
Victória
E se você escrever pra sua prima?
Jéssica
Vou fazer isso.
(Elas saem. Íris se esconde. O dia está clareando. Yuri passa por ali, em silêncio, em sua
bicicleta.)

CENA 06
(Com o amanhecer, a ponte ganha vida. Muita gente passa por ali, a caminho de seus
afazeres. Dentre a gente toda se destaca um grupo de adolescentes a caminho da
escola. Eles vem empurrando João jocosamente, provocando.)

Uma pessoa do grupo


Quem é que vai pagar hoje?
Outra pessoa do grupo
É você, João, pode começar a arranjar o dinheiro.
(Os outros empurram João mais uma vez)
Outra pessoa do grupo
Como vai conseguir, hein? Vai pegar de quem?
“Olha, o João é um merda, nem tem dinheiro pra pagar, vai pegar da vovozinha”!

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João
Chega, me deixem em paz.
Outra pessoa do grupo
Vai João, vai logo! Quem é que vai pagar, quem é que vai ter que pagar? Arranja o
dinheiro lá.
João
Eu não vou pagar nada. Não devo satisfação a ninguém. Virem-se, vocês, não é que
vocês são “foda”? Então, arrumem dinheiro sozinhos.
Outra pessoa do grupo
Nossa, João, não fala assim, “nossa, falando palavrão”... ! Olha pra sua cara, já viu
a sua cara no espelho?
Na sua cara está escrito “eu tenho cara de trouxa”, fala pra gente: “eu tenho cara
de trouxa, sou o bebezinho fofinho da minha casa”...!
Outra pessoa do grupo
Se a gente disse que você vai trazer o dinheiro, você vai trazer. E a gente disse isso.
João
Sai todo mundo, me deixa em paz.
Outra pessoa do grupo
Quem é o que tem cara de trouxa, aqui? A gente?
Se você não tem cara de trouxa, tem cara de que? O que você é?
Se a gente não te chamar de trouxa a gente vai chamar de que? De inteligente? De
sensível? De babaca? De fraquinho, de florzinha?
Acha que alguém vai te defender? Ninguém, babaca.
(Eles empurram João, que quase cai da ponte. Alguém ainda joga sua mochila no
riacho. Os outros saem, dando risada, menos Júlio. João fica um pouco, tenta descer
com dificuldade para pegar a mochila, tem medo. Júlio oferece ajuda.)
Júlio
Eu posso segurar a sua mão. Vai lá, tenta descer, eu seguro.
João
Vai embora você também, Júlio. Não preciso da sua ajuda. Sai daqui. Eu não preciso
da ajuda de ninguém.

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(Júlio vai embora também. João tenta descer sozinho, com dificuldade.
Pega sua mochila, parece escutar algo que vem debaixo da ponte. Fica com receio, um
pouco paralisado, até que sai correndo o mais rápido que consegue, para o lado
contrário dos colegas.)

(Ainda muitas pessoas passam e voltam pela ponte, enquanto o dia passa, inclusive
Yuri, em sua bicicleta, transportando coisas para lá e para cá, já que é seu trabalho.)

CENA 07
(Ao final do dia, quase anoitecendo, o casal volta, espera com que o fluxo das pessoas
diminua para que possam ficar sozinhos ali.)

Lucas
Eu preferiria que a gente não viesse mais pra essa ponte. Está todo mundo
começando a falar.
Lígia
Eu não pedi pra você vir.
Lucas
Me dá sua mão.
(ela não reage)
Me dá sua mão, Lígia.
(ela não o faz)
Isso é estúpido. Parece que você faz de propósito. Me provoca de propósito. O que
você quer é me provocar.
Lígia
Tenho mais o que fazer do que viver para te provocar.
Lucas
O que, você tem mais o que fazer?
Lígia
Eu não consigo sentir mais nada como antes. Eu não sinto minhas pernas.
Lucas

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Tenta. Tenta entender. Foi preciso que fosse assim.


Lígia
Não é questão de escolha. Você diz que me entende, mas não entende, não. Você
nunca vai entender, nunca vai entender. Não é no seu corpo, não é com você.
Lucas
A gente decidiu junto.
Lígia
Mas não foi escolha. Ter que escolher entre o sim ou o não não é escolha. Porque
eu sempre irei me lembrar que escolhi o não. Sempre, sempre, todo dia, na cabeça,
sem descanso.
Lucas
E se tivesse sido diferente, como a gente estaria agora?
Lígia
Não importa, a gente nunca vai saber. Mas o problema é conviver com a memória,
ela bate dentro da minha cabeça e do meu peito todos os dias. Era o sim, o não, o
sim, o não, é por fim o não que eu escolhi, batendo, pra sempre, aqui.
Lucas
(indicando o próprio peito)
Bate aqui, também.
Lígia
Um dia me perguntaram, naquele jogo besta de ter que dizer a verdade, não-sei-
que... me perguntaram: você daria cinco anos da sua vida para poder rever alguém
que já morreu? Eu disse que sim, nem precisei pensar...
Lucas
Vamos embora, Lígia.
Lígia
Vai você.
Lucas
Chega, vai? Chega de sofrer.
Lígia
Pra você é fácil: fácil dizer, fácil resolver, tudo fácil.
Lucas

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Que pedido você vai fazer, Lígia? É impossível voltar atrás, já foi!
(Silêncio)
Vamos embora, as pessoas já estão comentando.
Lígia
Que se danem, as pessoas. Não devo nada a ninguém. Só a mim mesma.
Lucas
Então qual é o pedido que a gente vai fazer?
(Ela olha pra ele como quem não escutou direito, ironicamente)
Sim, estou me incluindo no pedido. Se é pra desejar, vamos desejar junto.
O que foi, está me olhando assim por quê?
Lígia
Eu quero ficar sozinha. Vai embora.
Lucas
Não, eu não vou, não.
Lígia
Você não entende.
Lucas
Eu não saio daqui sem você.
Lígia
Então quem vai embora sou eu. Fica aí e faz o pedido que você quiser, pra você.
Não vem atrás de mim.
(ela sai, ele vai atrás logo depois)
Lucas
Espera!

CENA 08
(A luminosidade do dia diminui ainda mais. Passam um menino, Paulo, e sua irmã mais
velha, Ana Paula)

Paulo
Para, eu quero fazer um desejo para a flor da ponte.
Ana

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Bobagem, vamos embora, está ficando escuro.


Paulo
Mas eu quero fazer um desejo.
Ana
Ah, é? E o que você vai pedir?
Paulo
Você vai ver.
Ana
Ah, que saco, isso não existe.
Paulo
Só porque você não conseguiu.
Ana
Não existe.
Paulo
“Querida flor da ponte...”
Ana
Besta, não é assim que fala!
Paulo
Deixa eu pedir, que coisa!
Ana
Mas não é assim.
Paulo
Então como é?
Ana
Não vou falar.
Paulo
Querida flor da ponte, eu gostaria muito de ganhar... se não for pedir demais, eu
queria ganhar...
(Ana o interrompe, dá risada)
Ana
Ridículo. Sem noção. Quero só ver se ela vai cantar. Quero ver, vai, pede!
Paulo

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Se não for pedir demais, eu queria ganhar outra mãe... não precisa ser...
(Ana interrompe bruscamente, puxa o irmão com força para saírem dali)
Ana
Chega, vamos embora.
Paulo
Você é uma idiota mesmo, porque não cuida da sua vida? Eu odeio você!
Ana
Não estou nem aí.
Paulo
Eu queria que você morresse, sabia?
Ana
Não faz diferença pra mim.
Paulo
Me deixa em paz! Eu não tenho culpa se você não conseguiu, eu não tenho culpa
de ser seu irmão. Me larga, me deixa em paz.
(Eles saem, Ana arrastando Paulo.)

CENA 09
(Íris reaparece, com algumas das oferendas recebidas nas mãos.)

Íris
Eu já vi muitas coisas, muitos lugares. Por sobre as colinas é possível ver quantos
trabalham na terra, às vezes sozinhos, sob o forte sol, com chapéus imensos que
não lhes deixam ver o céu. Mais adiante, bem mais adiante, não há nada senão
muitos pássaros, parados, em conjunto, todos voltados para o Sul como se de lá
fosse surgir algo há muito esperado. No meio da mata, mais adiante, uma mulher
quase nua carrega sobre a cabeça um vaso de água, e é possível ver seu sorriso que
ignora o que aconteceu em sua casa, quando ela estava fora. Suas mãos seguram
os galhos das árvores para dar apoio ao peso que vai em sua cabeça. Ela terá força
ainda por muitos anos, e entenderá ainda melhor como aquela água se comporta
com o balanço de seus passos sem pressa, passos que ignoram o que vão encontrar
em sua casa. Os desenhos das águas, a tempestade, as curvas imensas da lama,

A Ponte – Lucienne Guedes


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tingindo de ocre todo o rosto da terra que era verde, molhada pela forte chuva que
parece uma serpente viva que se arrasta... é também a coisa mais linda, linda, digo,
porque finjo eu, dessa vez, ignorar o que acontece quando se volta pra casa. De lá
é tudo tão bonito, de cima é bonito, de longe é bonito. Rodas de pessoas juntas
cantam alguma coisa que não entendo. Eu vi um dia uma onça beber água em plena
noite iluminada pela lua mais cheia que já se viu, e mesmo à noite ela mantinha seu
olhar feroz no horizonte próximo à sua frente, porque beber água nunca pode ser
descansar. Alguns pontos se movem, do alto da montanha; lá embaixo muitos
pontos se movem, incansavelmente. A terra tem sulcos, caminhos insistentes de
movimento de um lugar a outro, de um desejo a outro. Um cavalo sozinho num
campo aberto, o que é? Mais adiante muitos homens se confundem com a terra,
quase não os vejo, quase não a vejo, a terra. Uma garça se faz contorno no meio de
tanto verde, e então eu lembro de quem sou, eu volto, eu sempre volto para cá, na
esperança de um dia poder descansar.
Quando poderei ver seu rosto? Quando? Quando?

(Ela pega mais uma vez a luz da bicicleta, acende-a, coloca perto do peito, talvez sob
a blusa, como se a luz fosse seu coração batendo, dessa vez.)

Se junto minhas mãos uma na outra não é em prece, porque não tenho a quem
rezar, não sei onde repousar a esperança do meu desejo. Junto minhas mãos assim
porque foi o gesto que vi tantas vezes, e isso acalenta meu corpo e me dá força.
Juntas as mãos, assim, um gesto que vi tantas vezes, em tantas mulheres no mundo
que conheci, e o gesto me faz bem. Assim permaneço, até que novo desejo
necessite voar, e então eu cantarei, para que os desejos de futuro sejam o presente,
e por isso eternos, infinitos.

CENA 10
(Aparecem dois moços na ponte. Cada um vem de um lado diferente, param próximos
das extremidades. Eles parecem não notar a presença um do outro, e falam
simultaneamente.)

A Ponte – Lucienne Guedes


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Caio, o moço da esquerda André, o moço da direita


“Flor da noite da primavera”, eu “Flor da noite da primavera”, eu
desejo que meu pai vá embora de desejo que meu pai volte para casa.
casa. Devo ter esperança? Espero seu Devo ter esperança? Espero seu
canto, que ele se faça agora. canto, que ele se faça agora.

Eu não quero mais falar com ele, Eu preciso conversar com ele,
nunca mais. Porque minha mãe não explicar, perguntar. Porque minha
aguenta mais. Porque eu não aguento mãe não aguenta mais. Ela precisa ter
mais. Ele se perdeu em algum ponto notícias dele. Eu preciso saber onde
da vida dele. Não há mais beleza em ele está, se precisa de ajuda, se está
seus olhos. Eu não quero mais ver perdido. Eu não quero mais ver minha
minha mãe chorar. mãe chorar.
Eu quero que ele vá embora e nos Eu quero que ele volte e que nos volte
deixe em paz, vai ser melhor assim. a paz, porque não está nada bom
Pode me ajudar? Eu desejo que meu assim. Pode me ajudar? Eu desejo que
pai vá embora de casa. meu pai volte pra casa.

A Ponte – Lucienne Guedes


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Os dois
Espero seu canto, que ele se faça agora.
(Silêncio)

( Os dois se olham, se aproximam um do outro)

Caio
Eu preferiria de outro jeito. Isso tudo é muito difícil. Eu preferiria não ter nascido.
Eu preferiria me jogar dessa ponte. Não Importa o que você disser, eu não vou
mudar minha opinião.
André
Não vou falar nada. Não se preocupe.
Caio
Acho que eu te atrapalhei.
André
Atrapalhou, sim. Eu não sabia que você tinha o mesmo problema que eu. O mesmo,
não; semelhante, eu quis dizer. Acho que ela escutou só você.
Caio
Eu acho que ela escutou só você, você falou mais alto.
André
Eu acho que ela escutou você, se não estaria cantando, agora.
Caio
Por que tanta certeza?
André
O que eu peço é justo.
Caio
Você não sabe o que é justo ou não; já viu o outro lado?
André
O da injustiça, você quer dizer?
Caio

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Sim, o da injustiça.
André
Já vi, sim. Minha mãe chora todo dia, como falei agora pouco. É injusto, alguém ir
embora sem dar explicações, sem se despedir, sumir como quem desaparece, isso
não é justo. Quando alguém desaparece, nem por isso deixa de existir. Desaparecer
é o pior dos castigos, pra quem espera, pra quem fica. Seria melhor se não tivesse
desaparecido, ainda que fosse difícil conviver. Quem fica não pode fazer nada, a
não ser tentar esquecer, e tentar esquecer sem saber não é justo. A gente não sabe
se ele foi porque quis, ou se foi levado, a gente não sabe de nada, não consegue
fazer nada. Eu prefiro mil vezes aquilo que se pode ver e enfrentar. Você não
precisava estar aqui.
Caio
Não concordo. Minha mãe chora todo dia pela presença, presença física, real,
violenta.
André
Não julgo.
Caio
Julga, sim. Acha que só você merecia o canto, a esperança.
André
Merecia, sim. Mereço. Você me atrapalhou. Não que você também não mereça. Só
acho que... (pensa melhor no que vai dizer, não encontra palavra, desiste)
Caio
Acha o que?
André
Nada. Deixa pra lá. Eu volto outro dia.
Caio
Acha mesmo que eu não deveria estra aqui?
André
Vamos embora comigo?
Caio
Você ficou com medo de me deixar aqui sozinho?
André

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É alto, é perigoso. Vamos comigo, vamos tomar alguma coisa, continuamos a


conversar, pode ser?
Caio
Não, obrigado. Tudo está fazendo sentido, agora. É difícil, mas faz sentido. Tenho
que enfrentar. São dois lados. Valeu, a gente se encontra qualquer dia.

(Caio vai embora para um dos lados. André fica um pouco. Chega Yuri, com a bicicleta)

André
(fala para Yuri)
Eu já terminei. Pode vir.
Yuri
Não, nada, fique à vontade, só estava passando.
André
Eu já terminei.
Yuri
Ela cantou..., não cantou? Eu estava passando, parecia que uma melodia vinha
daqui, não tenho certeza.
André
Cantou, cantou sim, cantou pra mim. A voz é a coisa mais linda que eu já ouvi. Fique
à vontade, eu já estava de saída.

(André sai. Yuri se aproxima da borda da ponte)

Yuri
Quem é você? De onde vem?
Se for dessa cidade, será que eu a conheço?
Quem é você? O que você é?
Você mora aqui?

CENA 11

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(Aparece na ponte uma menina, Isabel, que carrega seu avô, muito idoso, pela mão.
Yuri se esconde como pode por ali, para escutar o que vai acontecer.)

Isabel
Olá, boa noite. Meu nome é Isabel. Esse aqui é o meu avô. Desculpe se incomodo...
(Fala para o avô:)
Eu não sei exatamente com quem estou falando, vô, será que falo pra lá, para
aquela flor ali? Ou falo pra baixo, pra água? Ou pra cima? É melhor pra cima, acho
que é pra cima.
(Retomando, fala como quem está distante e precisa ser escutada.)
Oláááá! Boa noite! Eu me chamo Isabel, e esse aqui ao meu lado é o meu avô Jorge.
Eu vou falar, mas o pedido é dele, pode ser? Não tem problema?
(Ela tenta escutar alguma resposta)
(Fala para o avô:)
Vô, a flor não respondeu, será que eu posso mesmo falar por você? Acho que tudo
bem, não é?
(O avô não responde)
(Fala com a flor, de maneira muito clara:)
Muito bem, desculpa se incomodo, é rápido. Bem, é assim: a minha avó, que já era
bem velhinha, morreu no ano passado. Depois que ela morreu, meu avô ficou
assim, muito quieto, ele só fala comigo, não quer saber de mais nada, nem de comer
direito, nem de passear, nem de nada. Então, ele me pediu pra perguntar se ele
pode ir se encontrar com ela logo, pra ele voltar a ser feliz de novo, porque ele era
muito mais feliz quando ela cuidava dele...
(Fala com o avô)
Não é, vô? Tá bom assim?
(volta a falar com a flor:)
Então, só que a gente não sabe exatamente como fazer isso. Eu estou tentando
ajudar, ninguém da nossa família sabe que a gente está aqui, mas a gente não sabe
o que fazer agora. Então, vamos lá.
(ela retira do bolso do avô um papelzinho com coisas escritas, abre e lê)

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“Flor da noite da primavera”, eu - o meu avô, esse “eu” é ele, tá? - ... eu quero ir ao
encontro da minha esposa, embora não saiba o caminho. Posso ter esperança de
que logo conseguirei? Espero o seu canto, que ele se faça agora.
(A flor aparece sob a ponte, hesita. Silêncio.)

Isabel
Olha, vô, senta um pouco aqui, eu vou falar com ela de novo.
(Isabel coloca o avô sentado um pouco distante. Repara que Yuri está ali; ele pede
desculpas e sai. Ela se aproxima da ponte sozinha, fala como que sussurrando)
Olha, senhora flor, eu sei que você está aí me ouvindo. Vai ser melhor pra ele. Ele
quer muito, pode acreditar. Eu prometo que não conto a ninguém que a gente veio
aqui. Ele morre de saudade.

Íris
(Ela primeiro hesita um pouco, depois canta)
Eu só tenho a intenção
De tomar a sua imaginação
E alçá-la com o vento

Eu só canto o seu desejo


Ajo sem querer
Impulsionada pelo tempo

Isabel
(que foi buscar o avô)
Vem, vô, ela está cantando, consegue ouvir?
Pronto, vai dar tudo certo, escuta, escuta!

Flor
(que não parou de cantar)
Eu nunca te vi
Antes de ter te escutado
Vejo sem prever o que te será dado

Mas o canto da flor


Sopra todos os sins
Mesmo que não seja
nenhum para mim

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(o avô sai cabisbaixo, a neta vai atrás dele)

CENA 12
(Um rapaz triste chega, senta-se perigosamente na beirada da ponte. Está muito
triste. Tempo. Logo chega uma moça.)

Luciana
O que está fazendo aqui?
Gabriel
Você me seguiu?
Luciana
Segui.
Gabriel
Você me seguiu até aqui.
Luciana
É, queria ver aonde estava indo.
Gabriel
Agora já sabe.
Luciana
Não, não sei.
Gabriel
Sabe, sim.
Luciana
Veio pedir o que?
Gabriel
Eu quero que você fique viva. Não sei o que fazer. Eu me sinto impotente, é a pior
sensação do mundo. Se eu pudesse... se eu pudesse, eu piscaria os olhos e faria
parar o seu sofrimento. Mas não posso. Eu queria entrar embaixo da sua pele, na
sua cabeça, no seu peito, fazer alguma coisa, fazer você olhar pra mim de verdade...
Luciana
Você acabou de fazer o que podia fazer de mais bonito. Não precisa pedir nada,
não.

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(Eles se beijam e saem.)

CENA 13
(Dois irmãos – ou duas irmãs - chegam à ponte. Eles (as) têm receio de serem vistos
(as), estão bem juntos (as), como num filme de suspense.)

Irmã maior (ou irmão maior)


É o seguinte, “flor da primavera”: nós queremos que os nossos pais se separem. A
gente não aguenta mais tanta briga, todo dia.
Irmã menor (ou irmão menor)
Será que é possível? A gente vai ficar com os dois, a cada dois dias na casa de um, a
gente já combinou.
Irmã maior (ou irmão maior)
Porque separados eles são ótimos.
Irmã menor (ou irmão menor)
São ótimos mesmo, alegres e tudo.
Irmã maior (ou irmão maior)
Mas quando junta vira um inferno.
Irmã menor (ou irmão menor)
A gente já vai logo tapando os ouvidos.
Irmã maior (ou irmão maior)
Ligando o som alto.
Irmã menor (ou irmão menor)
Arrumando alguma coisa pra fazer fora de casa.
Irmã maior (ou irmão maior)
Outro dia estava até chovendo e a gente saiu mesmo assim.
Irmã menor (ou irmão menor)
Porque não dá, eles brigam demais.
Irmã maior (ou irmão maior)
Não é amor, isso.
Irmã menor (ou irmão menor)
É , não pode ser, não.

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Irmã maior (ou irmão maior)


É outra coisa.
Irmã menor (ou irmão menor)
(pergunta para a(o) outra(o))
O que será?
Irmã maior (ou irmão maior)
(responde)
Não sei o que é, mas amor não deve ser.
Irmã menor (ou irmão menor)
Amor não é assim, é?
Irmã maior (ou irmão maior)
Espero que não.
Irmã menor (ou irmão menor)
Isso é guerra.
Irmã maior (ou irmão maior)
É mesmo, não tem diálogo.
Irmã menor (ou irmão menor)
Isso é guerra.
Irmã maior (ou irmão maior)
(Volta a falar com a flor)
A gente prefere, então, ter paz.
Porque quando eles estão separados tudo vai bem.
Irmã menor (ou irmão menor)
Quando vem gente em casa tudo vai bem, também... Pensando bem...
Irmã maior (ou irmão maior)
Ou quando a gente vai pra alguma festa, aí eles ficam bem, e se divertem e tudo...
Irmã menor (ou irmão menor)
(Fala para a(o) irmã(o))
Que esquisito.
Irmã maior (ou irmão maior)
Esquisito mesmo.
Irmã menor (ou irmão menor)

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Vai entender.
Irmã maior (ou irmão maior)
“Flor da noite da primavera”, nós queremos que os nossos pais vivam em casas
separadas e se encontrem só nas festas, pra ser feliz. Pra gente vai ser melhor
assim, a gente já combinou, nós dois. Devemos ter esperança? Esperamos seu
canto, que ele se faça agora.

Flor
(Ela canta)
O canto da flor
Sopra todos os sins
Mesmo que não seja
nenhum para mim

Irmã maior (ou irmão maior)


Será que vai ser melhor assim, mesmo?
Irmã menor (ou irmão menor)
Vai sim; a gente está junto, também, não é?

(Saem dali.)

CENA 14
(A flor fica um pouco mais por ali, depois que os meninos saem. Ela, dessa vez, está
brava. Olha várias vezes para cima da ponte, à procura de algo, ou alguém. Furiosa,
começa a chutar algumas coisas, golpear outras, até mesmo seu próprio corpo,
enfurecida.
Yuri chega, com sua bicicleta, consegue vê-la de relance, vai para baixo da ponte sem
que ela perceba seu movimento, até que chega muito perto dela e a toca nos ombros.
Ela, assustadíssima, some sob a ponte. Ele também se assusta com o que quase viu,
Fica do lado de fora.)

Yuri
Tudo bem, tudo bem, desculpa.

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(silêncio)
Olha, tudo bem, eu não vou te incomodar, desculpa se te assustei.
(silêncio)
Eu vi que você está brava, precisa de ajuda? Aconteceu alguma coisa?
(silêncio)
Posso saber quem é você...? Eu queria conversar... é você quem canta a canção da
flor?
(Ele sobe a ponte, e fala lá de cima)
“Flor da noite da primavera”, eu desejo muito, mas muito mesmo, de todo coração,
conhecer você. Conhecer de verdade. A força disso é tão grande, ela me impulsiona
para cá, é mais forte do que eu possa resistir... Eu não entendo, nunca senti isso
antes... Eu venho aqui todas noites, já há algumas primaveras, nunca tive coragem,
porque é demais para mim isso tudo, eu tinha muito medo, eu sinto como se fosse
ser engolido, eu nem conseguia ter certeza... Eu não aguento mais, eu não consigo
dormir, agora meu desejo se tornou insuportável de segurar.
(Ele toma todas as forças que tem e fala:)
“Flor da noite da primavera”, eu desejo muito, de todo coração, conhecer você,
olhar dentro dos seus olhos. Devo ter esperança? Espero seu canto, que ele se faça
agora.

Flor
(Ela canta, com certa dificuldade pela situação)
Eu só tenho a intenção
De tomar a sua imaginação
E alçá-la com o vento

Eu só canto o seu desejo...

Eu nunca...

Mas o canto da flor


Sopra todos os sins

(Ela fala:)
Como posso corresponder a essa contradição, como posso ser o sim e o não?

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Yuri
Eu quero ver você! Meu desejo vai se realizar, você cantou...! É isso, não é? Eu posso
descer aí de novo?
Íris
Não, não pode!
Yuri
Aparece, então, por favor.
Íris
Amanhã, talvez.
Yuri
Você cantou, o meu pedido é esse, eu quero saber quem você é.
Íris
Amanhã.
Yuri
Você disse “amanhã, talvez”, não pode ser com certeza? Eu virei, estarei aqui, à
hora que você quiser.
Íris
Amanhã, então.
Yuri
Eu virei, logo ao anoitecer, ficarei toda a noite, à sua espera.
Por favor, me diga ao menos o seu nome.
Íris
Amanhã.
Yuri
Está bem, eu irei pra casa, então. Eu volto amanhã.
Íris
Espera.
Yuri
O que? O que foi que você disse?
Íris
Espera só um pouco.

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Yuri
Você não sabe o quanto eu estou feliz.
Íris
Mas ainda nem sabe quem eu sou.
Yuri
Mas já estou feliz assim mesmo. Já estou feliz demais por amanhã. Porque você me
escutou, porque você existe mesmo. Não existe? Você é uma pessoa, então?
Íris
Eu sou a flor que canta os desejos na primavera.
Íris
Mas eu toquei em você...! Eu senti...!
Íris
Não devia.
Yuri
Desculpe.
Íris
Não devia.
Yuri
Por que você canta?
Íris
Nunca é pra mim.
Yuri
Por que na primavera, por que escondida?
Íris
Eu não posso me livrar dessa tarefa. Até que... Eu não conseguirei descansar até...
até que meu próprio desejo seja desejado por outra pessoa. É assim. Há muitos
anos é assim. E hoje... hoje, talvez, amanhã...
(fala não diretamente com ele, como se falasse sozinha: )
São os seus olhos, finalmente. São os seus olhos aqueles que eu devo olhar, me ver
dentro deles, e então descansar como quem descansa do mundo terrível, como
quem pode, enfim, pra sempre, flutuar, por sobre a beleza... ficar em paz... Serão
seus, os olhos... daquele menino... de quando conheci o que a vida teria de melhor...

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o rio, seus olhos... Será que conseguirei, para sempre? O seu desejo, é o meu
desejo? Conhecer-te, afinal? Quer me ver...? Eu, me ver em seus olhos e conhecer o
teu amor...? Será que você vai lembrar, já faz tanto tempo...
(fala com ele novamente)
Já está clareando, eu não posso dizer mais nada hoje. Venha, então, amanhã, e eu
deixarei que me conheça, e contarei tudo o que você quiser saber.
Yuri
Está bem! Minha felicidade é tão grande! Eu prometo, estarei aqui.
Íris
Eu só posso existir à noite.
Yuri
Eu virei quando anoitecer.
Íris
Eu nunca conversei com ninguém que veio aqui, antes de você.
Yuri
Então eu serei especial? Você me conhece?
Íris
Se amanhecer eu já não estarei. Eu nunca me apresentei a ninguém, antes, não
assim. Você pode se assustar.
Yuri
Não, prometo, venho logo que anoitecer. Estarei aqui. O amanhã já é hoje, então!
Eu venho! Eu venho!
Íris
É uma promessa?
Yuri
Sim! Eu volto amanhã! Quer dizer, hoje!
(Ele pega sua bicicleta e sai, muito animado)

CENA 15
(É mais um dia na cidade. Muitas pessoas passam para a escola, para o trabalho,
inclusive Yuri, transportando coisas. Passam também os mesmos estudantes do dia

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anterior, só que dessa vez sem João e Júlio, que vêm depois, quando já começa a
escurecer.)

Júlio
Deixa eu ficar aqui com você. Eu espero. Eu fico lá na ponta, vendo se não vem
ninguém.
João
Pode deixar.
Júlio
Deixa eu ficar. Eu acho que vai dar certo.
João
Não precisa, pode ir.
(silêncio)
A gente não pode ser sempre essa pessoa medrosa. Eu quero ficar sozinho, desejar
sozinho. Sei que você me apoia, que você está comigo, mas eu quero ficar sozinho.
A gente não pode ser uma pessoa tão receosa a vida toda. Eu vou enfrentar essa
história. Eu sei que conto com você.
Júlio
É o melhor disso tudo. Em dois a gente pode tudo, João. Eu estarei ali na frente, tá?
De lá não dá pra ouvir a conversa, mas se precisar você grita alto que eu venho.
João
Tá bom.
Pode ir, então, já está escuro. Não vem ninguém, pode ir.
(O amigo sai dali. Quando fica sozinho, já escurecendo, João fala:)
Eu vou tentar explicar o que ainda ninguém entendeu. Eu gostaria muito de fazer
uma festa para a minha avó. Ela não lembra de mais nada, ao menos é o que todo
mundo pensa. Eu conheço, sei como é quente o colo dela. Ela dorme no meu
quarto, ninguém gosta disso, todo mundo acha que está me atrapalhando, mas eu
não acho, eu gosto muito. Desde que ela veio morar com a gente eu volto correndo
da escola, porque não quero perder por nada desse mundo a risada dela quando as
cortinas se fecham para proteger o quarto do sol forte da tarde. Eu adoro a risada
dela. Às vezes eu adormeço no colo dela, às vezes ela adormece nos meus braços,

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quando o filme está chato. Todo mundo acha que ela me atrapalha, mas não
atrapalha nada. Todo mundo acha que eu não devia. Mas eu sei que eu quero. Eu
prefiro ficar com ela do que ir andar de bicicleta. Bicicleta eu vou ter pra sempre.
Eu prefiro ficar com ela e perder amigos. (Quais são de verdade os amigos que
precisamos ter...? quantos...?) Eu não forço pra que ela tome os remédios, eu
guardo numa gaveta. Eu como o resto do jantar para ela, senão a minha mãe vai
ficar preocupada e vai aparecer mais vezes no nosso quarto. E a gente gosta de
ficar só nós dois. Às vezes ela some, mas sem sumir, some estando ali, mas eu
espero ela voltar, não tem problema. Eu costumo sumir também de vez em
quando, todo mundo que eu conheço some de vez em quando. Eu quero fazer uma
festa de aniversário pra ela. Eu preciso que minha mãe e meu pai e meus irmãos e
meu tio me ajudem a querer. E que os idiotas da minha escola não venham
atrapalhar. Eu quero chamar as amigas dela, fazer tudo que ela gosta. Eu quero vê-
la cheia de alegria com tudo isso. Eu quero vê-la entender tudo isso. Eu quero me
ver ali, ao lado dela, com tantas velas naquele bolo, que nem vão caber.
“Flor da noite da primavera”, eu desejo muito, de todo coração...
Não precisa. Já entendi. Desculpe ter tomado o seu tempo. Eu já entendi.
(O menino sai na direção de onde saiu seu amigo)

CENA 16

Íris
Ele não virá.
Algo dentro de mim diz que ele não virá. Já não se escuta mais o ruído das crianças
que relutam em dormir. Já não se escutam mais os amores nos escuros das casas,
já nem se escutam mais os amantes nos escuros dos becos nas margens proibidas
desse rio que chora as águas de cima das montanhas. Está tarde. Eu aprendi a
segurar o canto no silêncio sem desejos.
Ontem foi promessa de hoje. Eu acreditei, é meu defeito, minha sina, acreditei, me
iludi. Por todos esses anos, acreditei ainda mais uma vez. É claro que estou errada:
ele não virá. Mas ele desejou, embora não vá cumprir.

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Ouçam, esse silêncio. Eu sinto. Todos os desejos satisfeitos, promessas de


satisfação fortalecidas. Não haverá mais pedidos, nesta primavera. O dia de
amanhã para eles, dessa cidade, é como um rio que não se cansará nunca de
acreditar que receberá as águas da montanha mais uma vez, e outra vez, e outra
vez, e por isso não tem medo de deixar que as águas escorram a outros lugares.
E os desejos que não cantei se transformarão em outros, e novos, no ano que vem.
Menos o meu. O meu era um só. O meu, é definitivo. Eu quero descansar. Encontrar
você, o amor da minha infância, os olhos que nunca mais esquecerei, o último olhar
que vislumbrei no momento da minha queda. Você. Olhar-me dentro deles,
entender que não estou sozinha.
Mas você não virá, eu sei. Estou sozinha, por fim. Você não vai me ver, não irá me
reconhecer.
(Começa a chover)
Eu adoro a chuva. Adorava o barulho da chuva. É uma linda chuva numa noite de
primavera. Como naquele dia. Como naquele dia em que eu caí.

(Canta)
Existe uma coisa nesse mundo
Que me move até muito longe,
Sem sair daqui, dessa ponte.
Como uma flor
Plantada para sempre,
Eu voo com a música
Que me carrega, me arrasta.
Como essa chuva, que encerra
A primavera dos desejos...

(fala)
e não conseguiu te alcançar, porque você não veio.

(canta)
Aonde vou parar

40
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Quando tudo terminar?


(fala)
Terminou.
(canta)
Quando é que verei teus olhos?
(fala)
“Nunca”, me respondes,
no vislumbre do meu impossível.
E tudo gira mais uma vez.
E eu giro com o céu e com a terra,
Plantada, giro com os desejos emprestados
Querendo voar pra onde quer que seja
Pra onde quer que more a minha paz.

(Ela pega a luz da bicicleta mais uma vez, acende-a, observa um pouco.)

(canta)
Eu queria descansar,
Queria ver os teus olhos uma só vez.

Já bastaria,
uma só vez.

Conheceria o amor,
E então descansaria.

E, em tua companhia,
pararia de voar.

Nos desejos dos outros


pararia de voar.

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Descansaria contigo,
Descansaria em paz.

(Ela apaga a luz, deixa-a por ali, vai embora, enquanto o dia amanhece. Yuri chega
correndo, a pé, esbaforido)

Yuri
Olá! Onde está você? Cheguei! Ainda dá tempo?!?
Olá!
Eu estava ouvindo você cantar, vim correndo!
A bicicleta, quebrou, eu não consegui consertar e vir a tempo, olha, eu vim a pé! Eu
estava muito longe, mas deu tempo, não deu?
Olá!
Por favor! Responda!
Eu estou aqui, desculpa, vim o mais rápido que consegui!
Por favor! Desculpa, por favor, acredite em mim!
(Os pássaros tomam conta dos sons do lugar que amanhece. O moço continua na
ponte.)

FIM

Observação da autora:
As músicas cantadas pela personagem Íris são as das partituras que seguem,
criadas pela própria autora. O Canto do sim pode ser feito A cappella; a música Íris
pode ter acompanhamento instrumental. Caso algum grupo queira compor outras
músicas, não há nenhum problema, desde que sejam utilizadas as letras originais
da peça. Pequenos ajustes de prosódia podem ser feitos, também, e serão até
necessários para “encaixar” as outras estrofes ou cortes sugeridos na música em
cada cena.

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Ele Escreveu um Texto para Jovens – Alexandre Dal Farra
PROJETO CONEXÕES – www.conexoes.org.br – todos os direitos reservados

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