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SÉRGIO VALLE

SILVA MELLO

E OS SEUS

MISTÉRIOS

PREFÁCIO

DE
PEDRO GRANJA

EDIÇÃO DA LAKE – SÃO PAULO

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TRABALHOS DO MESMO AUTOR
SOBRE HIGIENE E HIDROLOGIA:

— Postos de higiene — In “Brasil-Médico”, 1928.


— Fórmulas matemáticas em Pediatria — Conf. na Soc. dos Internos dos Hospitais do Rio,
1928.
— Cambuquira — Esboço de um estudo sobre a Estância Maio, 1929.
— Clima e Águas de Cambuquira — Tese apresentada ao Congresso de Araxá, em Agosto
de 1929 — Imprensa Oficial de Belo-Horizonte, 1934.
— A missão civilizadora do farmacêutico brasileiro — In Rev. “União Farmacêutica” de
São Paulo, Março, 1933.

SOBRE OFTALMOLOGIA:

— Prophylaxie de la cecité au cours de la lèpre —, In “Archives d’Ophtalmologie, Oct.


1937, Tome I, Nº 10, Masson & Cie., Paris.
— Exposé relatif à La “Choroidite Lepreuse Precoce de Hoffman” — In “Revista
Brasileira de Leprologia”, Vol. V, Número Especial. Presenté au Congrés Internacional
de Leprologie, Mars, 1938, premiado pela Academa Nacional de Medicina. (Prêmio
Moura Brasil de 1938).
— O anaveneno crotálico em oftalmologia — In “Arqs. Bras. de Oftal., Vol. I, Nº 4, dez.
1938.
— Particularidades da clínina oftamo-oto-rino-laringo-lógica de leprosário —. In “Rev.
Bras. de Leprologia”, Junho, 1938.
— Uma operação de catarata em hanseniano — In “Arqs. Bras. de Oftal., Vol. III, Nº 1,
1949.
— Possibilidades da cirurgia plástica na lepra — In “Brasil-Médico”, Nº 5, Janeiro, 1939.
— A lagoftalmia na lepra e a sua correção cirúrgica —, In “Arqs. do Instituto Penido
Burnier”, Vol. V, Dez., 1939, Campinas.
— As suturas mueo-mueosas na dacriostomia plástica — In “Arqs. do Instituto Penido
Burnier” — Vol. V, Dez., 1939, Campinas.
— Diagnóstico de Tracoma — In “Arqs. do Instituto Penido Burnier”, Dez. 1940,
Campinas.
— Cirurgia conservadora das vias lacrimais — Imp. da Tip. da “Ave Maria”, São Paulo,
19 41.
— Subsídios para o estudo da lepra ocular (incompleto) — In “Arqs. Bras. de Oftal., Vol.
III, Nº 2, 1940.
— Uma auto operação de catarata — In “Arqs. Bras, de Oftal.”, Vol. V, Nº 6, Dez. 1941.
— Exoftalmo unilateral na Moléstia de Basedow — In “Anais do IV Congresso Bras. de
Oftal.”, Vol. III, pág. 362’.
— Subsídios para o Estudo da Lepra Ocular — Imprensa Nacional, Rio, 1944.
— Subsidiary Studies to Leprosy of the Eyes — Imprensa Nacional, Rio, 194C.

OUTROS TRABALHOS:

— Um fator de integridade — In “Revista de Língua Portuguesa”, N.° 16, 1922.


— Os índios e o Padre Antônio Vieira — In “Ilustração Brasileira”, Junho, 1922.
— O 13 de Maio e Castro Alves — In “Ilustração Brasileira”, Out., 1922.

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4
A
Charles Richet,
que trabalhou árdua e gloriosamente por um
Tesouro — a Verdade, iluminando-se e
acendendo luzes em todos os espíritos
matriculados na Escola da Terra.

Últimas palavras de RICHET, em carta


“confidencial” a ERNESTO BOZZANO:

«...Et maintenant je m’explique tout à fait


confidentillement avec vous.
C’est vrai ce que vous avez suppose. Ce
qu’on n’a pu obtenir ni Myers, ni Hodgson, ni
Hyslop, ni Sir Oliver Lodge, vous l’avez
obtenu avec vos magistrates monographies que
je lis toujours avec une attention religieuse. Ils
font un étrasige contraste avec tes fumeuses
theories qui encombrent noire science.
Croyez, je vous pris, à tous mes sentiments
de sympathie et de reconnaissance.

CHARLES RICHET.

In PSYCHIC NEWS (Londres), 30 de Maio


de 1936.
(Vide fac-simile, pag- 372-A).

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ÍNDICE

Prefácio 15

INTRODUÇÃO
O duelo e os seus motivos 29
O exemplo clássico de Littré 29
O nosso “irmão” Silva Mello 30
Conseqüências morais e sociais da biopsicologia de Silva Mello 31
Psiquiatricamente falando 32
Silva Mello em ambivalência 32
A semelhança entre o ditador Silva Mello e o ditador Freud 33
As ilusões dos carolas 36
A vocação pelas funções digestivas 38
A pandemia das fraudes 41
O Espiritismo não é “mais uma” religião 44
A mistura das águas 53
Eu sou religioso, mas 55
O ponto central da questão 56
As obras de Richet 58
Compadece-te 60

CAPÍTULO I
Silva Mello e os seus panegiristas 63
Deus, a ciência e as religiões 64
O ateísmo infuso de Silva Mello 69
Experiências in anima vili 70
Sua biopsicologia 72
Um fã digno do humor de Monteiro Lobato 75
Conseqüências de sua biopsicologia 76
Uma purgação fenomenal e. . . inútil 77
A mediunidade de Silva Mello 79
A soberania dos instintos 82
A ingratidão para com os mestres 83
Ainda a mediunidade de Silva Mello 86
Os críticos e a literatura de Silva Mello 87
Inimigo acérrimo da espiritualidade 90

CAPÍTULO II
O quebra-cabeça de Silva Mello 95
Precauções contra as fraudes 97
A exatidão e o conhecimento dos detalhes 101
Traduttore, traditore 103
A omissão velhaca dos pormenores 104
A incredulidade de Crookes 106
A defesa de Crookes feita por Richet 107
Richet ratifica as experiências de Crookes 110
A “passagem” de Richet 111
Richet aceita a sobrevivência 114
A idéia de Deus para Monteiro Lobato 114

6
A convicção de Monteiro Lobato 117

CAPÍTULO III
Condições a que se devem sujeitar os experimentadores 127
As leituras de Silva Mello 129
O bom metapsiquista 130
A impotência da ciência humana 132
Os médicos e os prestidigitadores 133
As “experiências” de Silva Mello 134
O prestidigitador Silva Mello em ação 136
As dificuldades naturais da doutrina 139
Silva Mello versus Silva Mello 142
Como se faz um Presidente da República 145
Cientismo anti-científico 146

CAPÍTULO IV
Vocação irresistível para os truques 155
Médicos e prestidigitadores servem e não servem 156
A verdade atestada por sábios 159
O escamoteador em ação pública 161
Richet, o experimentador mais completo 162
A “Hipótese” espírita 165
Entre as várias hipóteses, a de Silva Mello 166
Os convertidos 167
O caso excepcional de Lombroso 169
O médium Mirabelli 175

CAPÍTULO V
As materializações 183
As fraudes conscientes e as inconscientes 184
A fraude, no conceito de Silva Mello 187
A mediunidade e os médiuns 191
As razoe da fraude, na moral de Silva Mello 193
Silva Mello depõe e contrapõe 195
As conclusões de um pobre sofista 197
A medicina e a metapsíquica 198
Convites de Silva Mello 199
A vida de alguns médiuns, na versão de Silva Mello.... 200
Uma confissão imoralíssima 201
Opiniões sensatas de Bozzano e de William James 202
William James e a Sra. Piper 204
Oliver Lodge e a Sra. Piper 205
A mediunidade de Anton Johansen 207
Materializações na Noruega 208
Generalizações imprudentes do Professor Janet 209

7
Retratações de Janet 211
O perispírito, modelo imperecível 211

CAPÍTULO VI
A vida nos organismos elementares 217
Para a compreensão do mistério da vida 220
A matéria espiritualizou-se 224
As ginásticas do misoneísmo 225
Crookes chegou ao limiar da espiritualidade 229
A explicação espiritualista dos casos estranhos de Crookes e de Richet 230
Silva Mello interpreta a negação diante do “excesso de provas” 231
Hipóteses tão burlescas, quanto eruditas 232
Idéias, perispíritos, pianistas 234
A sabedoria dos desencarnados 236
A existência do subconsciente nos foi revelada pelos espíritos 238
As experiências telepáticas 240
Diferenças entre descobertas científicas e fatos espíritas 242

CAPÍTULO VII
As qualidades dos experimentadores e as variedades dos fenômenos 247
A mediunidade e os seus instrumentos 249
As paupérrimas experiências de Silva Mello 253
Um repto 255
Por que Silva Mello se dedicou ao estudo dos problemas metapsíquicos 257
Confusões propositadas de prestidigitador 258
Diagnosticador de corpo presente e diagnosticador à distância 259
Uma cena de teatro de variedades 260
Diagnóstico e curas supranormais 260
A argúcia clínica de Silva Mello 263
Médicos confirmam as curas supranormais 264
Exigências, contradições e conclusões absurdas 265
Uma esperança e uma promessa 266

CAPÍTULO VIII
A sugestão e a hipnose 271
A sugestão viola as leis naturais 275
Os fenômenos são absurdos, mas são reais e universais 278
Não compreende nada, mas explica tudo 280
O ectoplasma ou éter vitalizado 282
O mecanismo íntimo da sugestão 284
Uma experiência de Felícia Scatcherd, ou proezas do ectoplasma 285
Fotografias trnascendentais 286
Se isso acontecesse a Silva Mello 287
A psicologia de Richet explica 288
Outros poderes do ectoplasma 288
As oito horas de experiências de Silva Mello 289
Silva Mello conversa com madames Fraya, Detay e Briffault 291
Um caçador de esmeraldas maluco 294
Silva Mello entrevista o médium Pascoal 295

8
Confronto de protocolos 297
A mediunidade legítima 298
Sócrates 299
Joana d’Arc 300
A mediunidade de Santa Teresa 303

CAPÍTULO IX
O uso do cachimbo faz a boca torta 311
Contra a medicina alopática e homeopática 313
Como explica as crianças-prodígios 314
Contra as escolas, a matemática e os poetas 316
Prestidigitador contumaz 318
Confusão de animismo com Espiritismo 319
O espaço e o hiperespaço 322
A convicção promana do coniunto dos fatos pesquisados 323
O retorno à mitologia grega 325
Como deviam ser os espíritos, na opinião dos “sábios” 326
Os médiuns glossólogos e psicógrafos 327
Identificação completa de Oscar Wilde 329
A literatura de além-túmulo convenceu Vitor Hugo 329
Silva Mello omite Chico Xavier 330
A história de Chico Xavier 332
As condições sob as quais trabalha 334
Os defensores do Espiritismo 335
A convergência de provas 337
Pasticho, modalidade de fraude consciente 339
As exigências crescentes dos incrédulos 341
Chico Xavier e os críticos literários 342
Casos semelhantes na literatura espírita estrangeira 345
As “banalidades” das comuncações mediúmcas 349
“A Grande Síntese” 355

CAPÍTULO X
Acredite quem quiser 365
Uma página de Rui Barbosa 366
Richet e Bozzano 369
Advertência necessária 374

CONCLUSÕES
O homem 377
A obra 385

9
PREFÁCIO

Eu não sei, meu caro Sérgio Valle, como lhe surgiu à idéia, o desejo de um prefácio
meu ao seu belíssimo e muito bem arquitetado trabalho, que agora vai publicar. Que
pena! Um livro excelente, tão bem escrito, profundamente documentado e útil, porém
tão mal apadrinhado por mim. Se não fora o temor ao grave pecado, eu me recusaria a
levá-lo à pia batismal. Enfim, cá me encontro com o pimpolho aos braços, cumprindo
esta missão cristã. E começo a sorrir. . .
Sorrio, sim, pelos desvelos que venho tendo pelo afilhado; e, solícito, ponho-me .a
dar-lhe os carinhos que ele merece. Mas, a falar a verdade, o garoto parece nem já
necessitar de tais cuidados, tão sabidinho veio ao mundo. Nota-se-lhe muito juízo; dir-
se-ia completamente emancipado de tutelas, e os seus argumentos são de tal peso e de
tal ordem que me deixam atarantado. É um genuíno artista da palavra e disserta com
impecável maestria. Seus comentários, cheios de erudição e de lições admiráveis,
revelam o “menino” de letras e de muita ciência.
E para meu orgulho de padrinho discorre sobre os fatos e conhece de cor todos os
protocolos experimentais de Crookes, de Richet, de Geley, de Delanne, de Lodge, de
Bozzano e de inúmeros outros psiquistas, com o que, por certo, porá a moer de inveja a
rancidez dos sábios da atualidade. Ou melhor, dos que pensam que o são.
Há dias, por exemplo, deu-me lições de seu ecletismo, citando de memória a célebre
conversão do Professor Charles Richet, confessada ao seu íntimo amigo Professor

10
Ernesto Bozzano, mas que muito metapsiquista de escol ou sábio de fancaria ainda
desconhece.
Veja você, meu caro Sérgio Valle, a minha difícil situação: encontro-me naquelas
condições dos mestres de Israel. E me sinto assombrado, tremendamente assombrado,
porque o “bambino” faz várias traquinadas nas acomodações daquelas “opiniões
antigas e respeitáveis”, onde estão cimentados os textos escolásticos das “tradições e
das idéias mais venerandas”, e se diverte com tanta displicência e maldade, como o
gato quando está a recrear-se com o rato. Evidentemente, no caso, o rato não seria
eu... E você sabe quem é. Afinal, sendo o padrinho, o guri me respeita.
Todavia, para o seu governo, devo comunicar-lhe o que ultimamente ele fez. Quis,
tout de suite, substituir o rato pelo homem, procurando-lhe um nome. Pousou, então, a
vista sobre um grosso calhamaço, que dormitava na estante, e sentenciou: será este! A
sorte caiu no do seu colega Silva Mello. E, sem mais delongas, entrou a decompor o
“Homem” (*) com tanta habilidade e perícia, que nesse momento a alma do saudoso
mestre Bovero, sentiu todas as angústias do ciúme a atormentar-lhe a sensibilidade de
artista do bisturi...
O sutil examinador começa por apreciar o tema dessa obra, expondo as origens de
complexos e recalques do Autor à luz do sol. Recuei apavorado, meu caro Sérgio Valle,
porque jamais supus que no subconsciente daquele “homem” houvesse tantas lacunas
psíquicas, calcadas e decalcadas na ambivalência do seu eu.
Condoído da sorte dele, tentei parlamentar com o pequeno-analista, mas o rapaz,
absorvido no exame, nem sequer me ouvia. Tive, então, de usar de um estratagema — a
chicana. E saí com os mais capciosos argu-

(*)
Referência ao livro “O Homem”, de autoria de Silva Mello.

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mentos em defesa do “homem”, a fim de silenciar os seus recursos de polemista-mirim
e fazê-lo remar do seu esmagador propósito. Mas fui vencido, irremissivelmente
vencido, pela dialética e pelo valor dos conhecimentos teóricos e práticos do pequeno,
que salientaram a minha inferioridade...
Prevaleci-me, porém, do recurso brutal dos fortes, quando se vêem perdidos: cassei-
lhe a palavra. Mas, enquanto recolocava o cadáver do “Homem” na prateleira,
procurei distrair a atenção do garoto com as novas histórias dos “Mistérios e
Realidades deste e do Outro Mundo”, sem desfazer, contudo, a sensação de minha
derrota integral.
Ora, como você vê, esse garôto-prodígio irá incomodar a situação de muita gente
mais... Enfim, como lhe tirei o direito da palavra, nesta época de imunidades
parlamentares, agora quem vai prosseguir no assunto sou eu.

***

Você sabe, meu caro Sérgio Valle, e todo mundo sabe, que a ciência materialista,
embora possa escravizar o nosso corpo, jamais conseguirá subjugar o nosso espírito.
Poderá a tirania, nas mãos de sábios perversos, também paralisar as nossas mãos e os
nossos pés, amordaçar a nossa língua, torturar o nosso corpo, enterrar em vida o nosso
organismo e até abreviar a nossa existência, segundo verificamos das realizações
científico-experimentais, no decorrer da última hecatombe universal. É que eles, os
sábios, podem tudo isso e muito mais... O que, entretanto, jamais hão-de conseguir,
será impedir que pensemos, que sonhemos, que evolvamos espiritualmente e que, em
nosso foro íntimo, creiamos naquele mundo perfectível dos espíritos, onde nos conforta
a idéia imortalista de uma vida superior a esta.

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Ser-lhes-á possível, aos nossos adversários, oferecer coisa melhor à humanidade?
Poderiam, com mais eficiência, calmar-lhe as angústias, curar-lhe as chagas íntimas,
conceder-lhe esperanças mais suaves e convicções mais firmes do que lhes oferecemos?
E se podem, lembrava Léon Denis, então que o digam e que forneçam a prova de
suas convicções, porém isentas daquelas misérias. Se, todavia, persistem em opor
afirmações desmentidas pelos fatos; se, em substituição, apenas oferecem o nada, o
desânimo ou o inferno daquelas torturas, estamos no direito de repelir energicamente
essa “evolução científica”, com seus anátemas e seus sofismas.
Entre os espíritas, meu caro Sérgio Valle, você sabe, eu sei e todo o Universo
também o sabe, há almas simples, às quais lhes basta o tênue bruxulear de uma candeia
de fé para serem guiadas na vida. São mais felizes, é verdade, porque permanecem
mais esperançosas. Mas há outras almas, como a sua, por exemplo, que preferem ficar
deslumbradas ao clarão do conhecimento. É que àquelas é necessário apenas crer;
enquanto que estas sentem a incoercível necessidade de investigar. É onde você se
acha.
E nós respeitamos muito a fé ingênua dos crentes, quando resplandece irradiando
indulgência, tolerância e amor; assim como sabemos aquilatar a capacidade do sábio,
através daquela simplicidade e modéstia, “que o faz consciente de que apenas sabe que
nada sabe”. Mas o fanatismo, em todos os setores humanos, é uma perversão, e por
isso condenável. De um lado, para que nos iludirmos, perseguindo miragens místicas,
que se desvanecem como o fumo? Por outro lado, há nova maneira de nos enganarmos
e de preterir a verdade: é negar ostensivamente aquilo que se não harmoniza com os
nossos conhecimentos.

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Mas, onde está a verdade? Não estará contida nas máximas de Buda? Nas lágrimas
de arrependimento de Madalena e no remorso final de Judas? Nos provérbios de
Salomão e nos preceitos de Epítecto e Marco Aurélio? Na resignação de Job e nas
visões de Maomé? No cálix de cicuta, no qual, sorrindo, Sócrates bebeu a eternidade?
Na esponja amarga em que Cristo — o pregador da Verdade — molhou os lábios
moribundos, “lá quando, no serro do Calvário, ao murmurar, da vida, a derradeira
estrofe, quis sorver o último trago da taça do martírio”? Ou, finalmente, no
microscópio-eletrônico em que o sábio pesquisa a gênese da vida?
Que é a verdade, perguntava Pôncio Pilatos a Cristo, e Cristo calava. Que poderia
entender Pôncio Pilatos da verdade? E ainda hoje quando vemos tantos sábios metidos
a saber da verdade, que é o mesmo dizer, metidos a falar do que não compreendem e a
discorrer sobre o que não sabem, pensamos que o Mestre Divino continuaria mudo
como diante do Sumo Pontífice. É que a Verdade ainda não poderá ser vislumbrada
pelos incorrigíveis míopes do planeta, para os quais seria preciso inventar a luneta
capaz de os curar.
Como é triste conhecer ou reconhecer outra verdade, esta com o v minúsculo, a dos
enfatuados, dos que se julgam detentores dela, que não querem ouvir falar em novos
fatos, nem procuram conhecer o que essas descobertas possam encerrar de acertado e
de legítimo nos últimos pronunciamentos da ciência, que o paciente labor de uma
plêiade de sábios fez abrir profunda brecha em nova aurora do saber, onde a luz da
verdade espiritual se esparge de maneira assombrosa, deslumbrante e avassaladora.
E esses trabalhos de observação experimental, que já datam de mais de cem anos,
capazes de fornecer fatos de inatacável segurança, passaram à categoria de ciência
positiva, proclamando que o Espiritismo, ou seja, a prova

14
científica da existência e da sobrevivência do espírito, já não é mais utopia.

***

O principal escopo de Sérgio Valle foi reunir os fatos capitais de natureza espirítica
e anímica a fim de contestar os argumentos negativistas e materialistas de Silva Mello.
Demonstrou, a seguir, que através desses fenômenos maravilhosos ficou comprovada a
sobrevivência da alma, causa única de todas as manifestações psíquicas e espiríticas,
verificadas em todos os tempos, e que atualmente se multiplicam, com o fim
providencial de erguer, sobre suas bases, o templo da Ciência, que é inseparável do da
Religião, num novo mundo que ensine aos homens a Paternidade de Deus e a
Fraternidade humana.
E o distinto Autor nos faz ver, então, que sendo o mundo uma imensa escola, e a vida
interminável lição, não seria justo nem natural que toda a nossa evolução se
processasse, inteira, dentro do prazo brevíssimo de algumas décadas de vida
planetária.
É que quando chegamos à vida, conta-nos Sérgio Valle, quando nascemos, vimos de
dezenas, de centenas de outras vidas anteriores, e continuaremos, depois, em dezenas,
em centenas, em milhares de outras vidas, neste ou em outros mundos, a série intérmina
de nossa evolução espiritual, de acordo com o valor preparatório da existência
pretérita.
Sair, portanto, das baixas regiões da matéria e ascender a todos os degraus da
imensa hierarquia dos espíritos, libertar-nos do jugo das paixões e conquistar uma a
uma todas as virtudes, todos os conhecimentos, tal é o fim para o qual a Providência
criou as almas e dispôs os mundos, teatros predestinados para lutas e trabalhos. E ante
a vasta perspectiva de nossas exis-

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tências, cada uma das quais é um combate para a luz, diante dessa ascensão prodigiosa
do ser, elevando-se de círculo em círculo para o Bem, o problema do mal desaparece.
Então, perante o fúlgido clarão, que da nova Ciência da Alma irradia, a idéia de
Deus ressalta extraordinariamente bela. É na crença fundamental de um Ser Universal,
inefável e bom para todos — que deixa a cada um a liberdade de ação necessária para
criar e fomentar o seu próprio destino — que está garantida a salvação de todas as
criaturas, em períodos mais ou menos longos, consoante os esforços individuais do
progresso indefinido e constante das reencarnações.
A objeção mais freqüente à doutrina reencarnacionista, que parece impressionar, é
esta: qual o motivo por que não nos recordamos das vidas pregressas? Esse primeiro
obstáculo poderíamos saltá-lo comodamente, citando apenas as recordações que
inúmeras pessoas têm do seu passado, colecionadas e registradas na Doutrina Espírita.
Preferimos, porém, argumentar de modo mais direto, afirmando que todas essas
obscuridades se iluminam, ‘todas essas sombras se desvanecem diante das modernas
experiências, em que a sensibilidade se manifesta, a intelectualidade abandona o
cérebro, a motricidade se expande além dos órgãos, enfim, quando o desdobramento do
espírito se produz, dando-nos a irredutível prova de que o eu é alguma coisa de real e
concreta, cuja inteligência, exteriorizada do organismo, dos sentidos e do cérebro, se
recorda de suas existências passadas, já citando fatos, já trazendo o testemunho das
menores particularidades, que depois são documentadas.
Mas o fato de não termos vulgarmente essa recordação de uma existência anterior, é
perfeitamente compreensível. Escapam-nos à lembrança tais reminiscências,

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porque reencarnamos em novo corpo, em outra matéria. Isso quer dizer que as células
plasmáticas que formam os tecidos do novo invólucro não são as mesmas. Embora
senão idênticas quanto às aptidões, não conservam as imagens de coisas que ainda as
não impressionaram.
Assim, em face da simplicidade dessas lições da Doutrina Espírita, têm de ser
rejeitadas, como fósseis inúteis, todas as obscuridades sistemáticas e velharias
incoerentes da Filosofia e da Ciência, que, em dois mil anos de domínio, não
conseguiram legar ao espírito humano a demonstração cabal e irrefutável da vida além
da campa.

***

Que nos falece competência para apreciar devidamente a obra de Sérgio Valle, não
tenha o leitor a menor dúvida. Trata-se de um nome de projeção científica e que possui
enorme bagagem de conhecimentos gerais. Pensador profundo, aguda e erudita
inteligência, espírito amplo, de coração reto e leal, características que exornam o
verdadeiro sábio, eis o perfil do nosso Autor.
Nenhum filósofo, com, efeito, poderia defender melhor a tese do Espiritismo e sua
marcha evolutiva, nenhum explicaria melhor o verdadeiro destino da alma e as
condições da vida de além-túmulo, numa linguagem escorreita e de pureza sem igual,
como ele o faz com clareza e precisão.
Dotado de espírito analítico, às vezes irônico ou levemente mordaz, Sérgio Valle,
como médico e médico sábio, apto a discorrer sobre várias disciplinas, acha-se
suficientemente credenciado para o empreendimento, que se propôs, de refutar o livro
de Silva Mello, autor que traz as suas obras refertas de títulos e de páginas, páginas e
títulos demasiadamente longos, em flagrante contraste com a argumentação científica e
o estudo sério do

17
assunto. A desproporção entre o volume e a lógica é verdadeiramente espantosa, e a
extraordinária palidez desta salta-nos à vista imediatamente.
Entretanto, se nos falta aquela competência científica, julgamo-nos credenciado
diante dos princípios da Doutrina Espírita, que Silva Mello se esforçou por
amesquinhar, a emitir a nossa opinião, porque, se a nosso ver, no livro de Silva Mello,
se encontra alguma “ciência” disfarçada, na obra de Sérgio Valle há Ciência de fato,
É que Silva Mello atribui ao Espiritismo os mais nefandos crimes; e, para os provar,
inventa carapetões, ou aponta fatos passados nas macumbas, nos candomblés, nos
canjerês, nos centros redentores e em, todo e qualquer antro escuso, indo em busca da
prestidigitação, dos Heuzés e Dessoirs, das fraudes de supostos médiuns e dos
pareceres dos pseudo-sábios, embora tudo isso reunião nada tenha que ver com a
Doutrina Espírita.
Se, porventura, Silva Mello pretendeu com tão pífios argumentos desmoralizar a
parte científica do Espiritismo, o fez, todavia, com muita infelicidade, pois embora a
dialética e os sofismas fossem bem planificados, a fim de impressionar os leigos, a sua
“ciência” e “sapiência” não foram suficientemente expressivas para merecer a
espetacular acolhida que o Autor dos “Mistérios” desejava no conceito daquela outra
Ciência que Sérgio Valle representa.
O leitor notará, no Autor da presente obra, a mesma capacidade moral, intelectual e
científica dos antigos mestres do Espiritismo, como a de um William Crookes, dc. um
Charles Richet, de um Gustavo Geley, de um Gabriel Delanne ou de um Ernesto
Bozzano, capaz de reduzir, cientificamente, na tese que discutem, a importância de
Silva Mello à sua verdadeira expressão — um zero à direita da vírgula.
Verificará, também, nas páginas deste livro, o espírito de equilíbrio e o valor
científico de Sérgio Valle,

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que foi compulsar os documentos originais das experiências, permanecendo nas
altitudes em que se colocam os verdadeiros mestres da dialética, os senhores da
argumentação e os artistas da pena. Tanto as suas citações têm de idoneidade e de
fidelidade quanto os seus conhecimentos de realidade, porque hauridos em fonte
cristalina.
Entretanto, no doloroso paralelo a que nos forçam as circunstâncias, vemos que as
virtudes lítero-científicas que sobram em Sérgio Valle, minguam e faltam em Silva
Mello. Não tem este os predicados essenciais que distinguem um pesquisador imparcial
de um sectarista comum; e assim, vemo-lo limitado em campo estreito e estéril,
agarrado às deturpações inconscientes dos tolos e às conscientes de velhacos como
Paul Heuzé e Max Dessoir.
Entra, então, desassombradamente a citar autores que desconhecem o assunto tanto
quanto ele, ou mais ainda; a rever as velhas páginas dos psiquistas quando, ainda
neófitos, nos primeiros degraus do estudo, julgavam tudo fraude, e relega
sistematicamente a fase ulterior desses mesmos psiquistas, quando lançam, o penitet me
peccati, isto é, quando confessam franca e lealmente o erro em que caíram. Finalmente,
apega-se a outros, e com interessantes manobras literárias, apresenta-os como
demolidores da formidável construção espírita.
Haja vista os trabalhos monumentais de William Crookes, e outros pesquisadores,
igualmente gigantes, trabalhos que chegaram adulterados ao conhecimento de Silva
Mello, o qual não percebe o “passe” que sofreram, em caminho, pelos interessados em
turvar as águas limpas.
Conforme diz Sérgio Valle, e é coisa sabida de muitos, ‘o Autor de “Mistérios e
Realidades deste e do Outro Mundo” é cheio de complexos, de recalques, de
amedrontamentos, vivendo a tremer de susto com os fantasmas.

19
E desse medo aos fantasmas surgiram os seus mistérios, válvula de segurança, com que
pretende fugir aos seus pavores. Supõe que assusta as almas do outro mundo,
escrevendo um livro em que as nega. Ou então, pretende auto-sugestionar-se,
afirmando em todas as laudas que elas não existem. Processo quase igual àquele do
avestruz, que toda gente conhece. A ave escondia a cabeça em baixo da asa; ele
esconde o medo debaixo da pena. Quase que vem a dar no mesmo.
O processo, aliás, só engana os caçadores bisonhos do mundo das letras. Realmente,
alguns foram no engodo. Mas quem conhece a arte, para logo percebe o truque.
Valeria a pena saber se no caso pessoal do Autor, conseguiu ele o afastamento das
almas, ou se continuaram elas a tocar-lhe irreverentemente nos joelhos, falta de
respeito, diga-se a verdade, muito comum nessas entidades do Além.
Essa familiaridade das almas para com o mestre ê que deram motivo àqueles
“Mistérios” e já daí se desvenda o mistério do livro. E já por aí poderemos desculpar
em parte o desserviço que prestou à Ciência, tendo-se em consideração que se tratava
de legitima defesa, uma dirimente aue deve ser levada em conta.

***

Afiança-nos Silva Mello que ficou quarenta anos estudando os seus “Mistérios”,
necessariamente em misteriosa meditação.
“Sete anos de pastor Jacó servia...” E serviria outros sete anos, “se não fora para
tão longo amor tão curta a vida.” Silva Mello esgota quarenta anos em narrar
inverdades e baralhar as cartas de um mau jogo. Para consertar aquilo, dir-se-iam
necessários outros quarentas anos ou uma vida igual à de Matusalém. Pois o meu caro
Sérgio Valle, sem escrever “mistérios” conseguiu

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um maior que todos os do livro de Silva Mello. E esse mistério-mor obumbrará os
mistérios-menores do seu colega. Sem a longevidade dos patriarcas, sem os quarenta
anos que lhes assinariam para a resposta os mais modestos calculadores, sem mesmo
os sete anos de Jacó, e o seu desânimo, diante de tão curta vida para tão longo
empreendimento, você, meu caro Sérgio Valle, em poucos meses, com o facho terrível
de sua hermenêutica, ao mesmo tempo que iluminava o assunto, reduzia a cinzas o livro
misterioso.
Grande coisa é o fogo! O colossal castelo que o seu colega andou levantando, sabe-
se lá com que esforço ingente, em quase meio século de lutas, você o destrói em pouco
tempo e em poucas páginas. Poucas, em relação às outras, às seiscentas do laborioso
“estudo”...
Enfim, pecamos a Deus que o nosso Silva Mello possa guarir do pavor das trevas e
dos fantasmas, caso contrário, como dizia o nosso brilhante confrade Carlos
Imbassahy, “terá que sofrer as agonias desses pavores, até que a piedade infinita do
termo de todas as coisas lhe recolha ao seio do eterno esquecimento os restos inúteis de
uma existência sem epitáfio”, a fim de que seu espirito recomece a peregrinar outra vez
neste mundo de provas.
— Que acha você?
Parabéns, meu caro Sérgio Valle, pela sua enorme coragem e um grande abraço do

PEDRO GRANJA.

21
INTRODUÇÃO

SUMÁRIO

O duelo e os seus motivos. O exemplo clássico


de Littré. O nosso “irmão” Silva Mello.
Conseqüências morais e sociais da
psicobiologia de Silva Mello.
Psiquiatricamente falando. Silva Mello em
ambivalência. A semelhança entre o ditador
Silva Mello e o ditador Freud. As ilusões dos
carolas. A vocação pelas funções digestivas. A
pandemia das fraudes. O Espiritismo não é
“mais uma” religião. A mistura das águas. Eu
sou religioso, mas... O ponto central da
questão. As obras de Richet Compadece-te...

“Um primeiro fato é evidente: todas as vezes que um sábio assentiu em estudar de
maneira aprofundada esses fenômenos, chamados outrora ocultos, adquiriu a convicção
da existência deles. Na história da metapsíquica, não conheço um só caso, um só, de
observador consciencioso que, após dois anos de estudo, concluísse pela negativa.”

CHARLES RICHET.

“Quando eu quis fazer um livro sobre os fenômenos chamados espíritas, após uma
existência consagrada inteiramente ao desenvolvimento da psiquiatria e da antropologia,
os meus melhores amigos me atormentaram com objeções, dizendo que eu iria
prejudicar a minha reputação. Apesar de tudo, não hesitei em prosseguir, julgando que
me cabia o dever de coroar minha carreira de lutas pelo progresso das idéias, lutando
pela mais contestada e achincalhada idéia do século. Meus adversários têm, aliás,
algumas boas razões. Ainda não faz muito tempo, eu pensava como eles. Ninguém foi
mais hostil ao Espiritismo do que eu, pela educação

LOMBROSO.

“Isso é muito da natureza humana: para termos razão e acertarmos as nossas idéias,
todos os recursos e argumentos tornam-se bons e aproveitáveis.”

SILVA MELLO (Mistérios, pág. 200).

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INTRODUÇÃO

O duelo e os seus motivos.

O duelo entre mim e o colega Silva Mello nasceu da provocação insólita dos
MISTÉRIOS. Foi ele quem escolheu o campo em que nos enterreiramos, que elegeu o
pretexto, a maneira-e o estilo de resolvê-lo. Forçou-nos àquela situação descrita por
Euclides da Cunha, no estouro da boiada, quando o vaqueiro se arremessa impetuoso na
esteira dos destroços “enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre
o lombilho, preso às crinas do cavalo”.
Ora, os duelos, os bons duelos, segundo o pundonor antigo dos combatentes,
pressupunham, para que o prélio não se mudasse em suicídio, ou em assassínio, que os
contendores se utilizassem dos mesmos recursos e dos mesmos instrumentos de
agressão.
Eis a origem do nosso SILVA MELLO E OS SEUS MISTÉRIOS.
Nunca se viu, entre nós, um ateísmo mais agressivo, um hedonismo mais nocivo à
evolução espiritual da humanidade. E quer fazer prosélitos, atirando-se à grande
publicidade... Até aqui, o costume era viver o agnosticismo, que se armava cavaleiro
pelo estudo e pelo uso prolongado das células cerebrais, recolher-se serenamente aos
seus penates, enfurnado na sua itaoca, desistindo de importunar os companheiros
errados nas suas crenças. Quando muito, proporcionava-nos, de vez em quando, uma
exibição de ironia e de piedade, muito naturais nos que se julgavam, por motivos
óbvios, indiferentes e acima das cogitações religiosas.

O exemplo clássico de Littré.

Afora alguns partidários de Augusto Comte, maus alpinistas que resignaram cedo a
escalada à Imortalidade, diante das primeiras agrestias, o ateísmo recolhia-se à doçura
do seu lar e dos seus livros, como o fez, por exemplo, entre nós, quando na companhia
de um João Ribeiro ou de um Capistrano de

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Abreu, os quais ouviam, complacentemente, a ladainha rezada pelas pessoas do seu
eoração. Foi desse gênero o ateísmo de Littré. Enquanto trabalhava arduamente, sentado
à sua secretária, a esposa extremosa fazia, ao lado, as suas orações. Para aquele espírito
privilegiado, a verdade e o bem era o fim supremo da vida.
Na memorável sessão realizada na Academia Francesa, em 1882, Pasteur foi o
recipiendário e Renan o receptor, girando os discursos de ambos em torno da
personalidade excepcional de Littré. A religiosidade sincera de um competia com o
cepticismo elegante do outro. Mas confundiram-se nas mesmas prescrições de
tolerância e de bondade, que transparecem nestas palavras, por um deles atribuídas ao
incrédulo Littré:

“Je me suis trop rendu compte des souffrances et des difficultés de la vie humaine
pour vouloir ôter à qui que ce soit des convictions qui les soutiennent dans les diverses
épreuves.”

Tendo alcançado o que lhe parece ser o auge da sabedoria, I o ateu deve viver na
introverto do seu Nirvana. Convencido da inanidade de tudo. Todas as religiões são
falsas. Deus é uma linda mentira. A vida, um fardo inútil. O homem, um macaco
degenerado. Qual deva ser a conseqüência lógica destas convicções? Para que gritar
diante de um incêndio fatal, se não há bombeiro nem água que possam extinguir o fogo?
Vale alguma coisa a gritaria de um louco ou de um histérico? O ateu atuante e
interventor é mais irracional e mais bruto do que o fanático da inquisição, porque este
desejava, pelo menos, salvar as almas do Eterno Inferno, para maior glória de Deus. O
ateu, convencido do Nada, quer arrancar aos crentes os últimos farrapos com que se
abriga do frio, à boca faminta as derradeiras migalhas de pão.
Não há quem se possa conter diante desse crime; então, “a palavra se eletriza, brame,
lampeja, atroa, fulmina”, em defesa das grandes causas humanas, entre as quais Rui
Barbosa colocava a da consciência religiosa.

O nosso “irmão” Silva Mello.

A nossa simpatia natural pelo irmão Silva Mello, se não . encontrasse em Jesus
Cristo a sua razão de existir, iria buscá-la no que há de comum entre nós dois, embora,
sob alguns aspectos, em graus muito variados. Foi em Juiz de Fora, onde viveu e cantou
o lírico e o satírico, — o doce e o amargo

24
Belmiro Braga — que ambos nascemos e passamos a meninice e a adolescência. Ambos
somos médicos: ele, grande, afamado, possuidor da melhor clientela do país, por
conseguinte, rico; eu, obscuro, ignorado e pobre, porque, “por caminhos tortuosos”, o
campo das minhas atividades médicas foi, a princípio, a massa sofredora dos
leprosários, onde encontrei os meus clientes e os meus amigos; depois, a assistência à
infância desvalida, sempre a soldo do Governo. Sou um dos precursores da socialização
da medicina... Tomamos rumos opostos na vida, em tudo: Norte e Sul, Leste e Oeste.
De semelhante só temos a feição humana.

Conseqüências morais e sociais da biopsicologia de Silva Mello.

Se, por uma fatalidade de que nos livre a misericórdia divina, a teratogenia de Silva
Mello grassasse em nosso país, como grassou na Alemanha e está grassando na Rússia,
a “justiça sem Deus” subverteria a ordem social e a ordem moral, quebraria o ritmo de
nossa evolução espiritual, que se processa à luz dos Evangelhos.
Quem somente vê na vida o efêmero, o perecível, o pó, a satisfação dos instintos,
descamba insensivelmente para o desrespeito à dignidade humana. Se a moral com
Deus fraqueja ainda, que esperar da moral que deifica os animais? Eis o dedo do gigante
que Silva Mello procura pôr em gestação com a sua literatura, a pior de todas, porque se
esconde sob o burel da saúde e sob o pretexto da felicidade geral, revestida a
mistificação com as insígnias da ciência médica.

“Cada um, advoga a sua biopsicologia, tem direito natural ao sou lugar, o direita natural de ocupá-lo
livremente, segundo a sua própria natureza. É dessa sensação que deve nascer o sentimento de justiça,
sentimento universal, que não deve falhar nem entre os animais. Mas justiça real, verdadeira,
biologicamente real e verdadeira. Justiça que dá ao leão o direito de devorar a sua presa, tão naturalmente,
quanto ao herbívoro de comer os seus vegetais.”

Medite-se sobre o conteúdo dessa doutrinação e teremos por justificados, senão


aplaudidos, todos os apetites carnívoros do “espaço vital” que o tigre Kaiser, a hiena
Hitler e o chacal Mussolini deixaram desaçaimar-se livremente contra os herbívoros
pacíficos, os quais viviam contentes com o seu capim.

25
Os que são partidários dos direitos naturais do mais forte — la raison du plus fort est
toujours la meilleure — não se lembram de que, ao invés de lhes tocar o cabo do
chicote é bem provável que lhes caiba, ao contrário, o oferecimento e a doação do
próprio lombo.

Psiquiatricamente falando...

Psiquiatricamente falando — a linguagem empolada não é nossa — Silva Mello vive


em estado antofônico, com desequilíbrio emotivo de colorido obsidente. A sua
disposição pantofóbica levou-o a um compromisso neurótico e vicário — os
MISTÉRIOS — nos quais fixou a ânsia de se livrar de fantasmas. É um desajustado do
sistema nervoso, que se agita em ansiedade mórbida, cuja motivação psicógena oculta
provocou o afrouxamento da “censura”, o relaxamento do nível mental, sem perda da
autocrítica. Daí aquela exoneração catártica, forçado pelas cenestopatias (sensação de pé
agarrado, no escuro), que muito lhe devia doer ao amor próprio de sábio “orientador da
mocidade”. Não teve outro recurso senão falar prolixamente de si mesmo, de confessar
para se curar. Em vão!
Deixemo-lo entregue aos psicanalistas ortodoxos e dissidentes, aos psiquiatras
clássicos e ecléticos, aos neurólogos, endocrinologies e sexologistas, a todos os quais
tem dado muita dor de cabeça, tanto maior quanto inteiramente gratuita.
Vamos explicar o seu caso de modo muito chão, muito simples e naturalístico,
roubando-lhe um tema predileto — biopsicológico — o estilo levemente colorido e
despretensioso, que alguns críticos estranharam em sábio de tamanha profundidade.

Silva Mello em ambivalência.

Silva Mello — não vai no símile, está claro, nenhuma intenção de ofender — está em
atitude de ambivalência semelhante à que se provoca em certos bichos escolhidos para o
desencadeamento de neuroses experimentais. Tomando-se um animal doméstico, um
cachorro, de preferência, podemos pô-lo, dentro de poucos dias, completamente
indeciso entre o pavor de um choque elétrico e a fome crescente. Ambivalente.
Acostuma-se o animal a alimentar-se ao mesmo tempo que se lhe descarregam
pequenos choques suportáveis, nesta ou naquela parte do corpo. Treina-se
progressivamente.

26
Quando se lhe desenvolveu o reflexo condicionado, a associação lógica entre o ato de
comer e o de receber choques sem importância, altera-se, abruptamente, o ritmo da
experiência. Aumenta-se a intensidade da corrente que é descarregada agora de modo
imprevisto, em pontos diferentes do corpo do animal. O instinto de conservação reage
violentamente, entrando em ambivalência: não sabe mais como proceder. O cão
inquieta-se, agita-se continuamente, ladra, uiva, arrepiam-se lhe os pêlos, fareja o
alimento, acossado pela fome, mas não se atreve a tocá-lo, devido ao horror dos
choques.
Silva Mello acha-se em ambivalência, em antofonismo: sua personalidade bipartiu-se
entre o ateísmo (o alimento) e o choque elétrico (a mão dos fantasmas). Foi disso,
somente disso, que nasceram os MISTÉRIOS.

A semelhança entre o ditador Silva Mello e o ditador Freud.

“A psicanálise, diz Karl Kraus, é uma doença que tenta a sua própria cura”. O
mesmo se diga, com absoluta propriedade, do biopsicologismo silvamelliano. Aprendeu
com a psicanálise de Freud “exemplo de enfermaria projetado sobre o mundo são” a
coragem inaudita de afirmar as teorias mais enxovalhantes para si próprio e para a
espécie humana.
Umas respigaduras nas vidas de Freud e de Silva Mello, feitas com ambas as mãos,
encontram nas suas personalidades muitos pontos de contacto e muitas similitudes.
Colocam-se os dois, como se fossem deuses, acima do bem e do mal. Em Freud, “o
médico transformou-se em filósofo, o neurologista em ditador da história e da cultura, o
profeta em fundador de uma seita perigosa para a sociedade sadia”: em Silva Mello, o
especialista em moléstias do aparelho digestivo, sempre preocupado com o que se refira
à assimilação e à desassimilação, desde o abuso do arroz descorticado até os nomes
dados aos papéis higiênicos, a certa altura de sua vida começou a resolver todos os
problemas sociais, filosóficos e religiosos, erigindo em postulado infalível uma
biopsicologia revolucionária e não menos perigosa, que veio balburdiar ainda mais a
vida do “bicho homem”.
Durante oitenta anos, Freud não pôde reprimir o ódio ao próprio pai e por isso
infernou a alma de todos nós de um pansexualismo bestial, que contamina com a sua
baba nojenta a inocência infantil, a pureza dos amores filiais, eriçando-nos de auto-
erotismos, complexos para cima e para

27
baixo, levando-nos a preferir a vida de um ruminante, muito menos complicada e muito
mais moral.
Silva Mello pega do seu ateísmo destorcido, envolve-o na fobia pelas assombrações
e, numa tentativa homérica para se livrar da ambivalência em que vive torturado, como
o animal em neurose experimental, descarrega a sua purgação contra a espiritualidade
em geral e o Espiritismo, em particular, para ver se consegue o afastamento de um
fantasma teimoso, que o não deixa dormir em quarto escuro.
Na presunção de uma sexomania patológica, produto de convivência com cacopatas
mentais e reminiscências próprias, Freud reduziu todos os instintos da vida a instinto
sexual “olhou de revés para a humanidade, viu-a a um canto encolhida, achou-a uma
criança inocente e casta que, após quarenta séculos de existência, ainda precisava de
conhecer muitos segredos da boca do grande mestre, meteu-se-lhe na cabeça que
haveria de a desvirginar, pôs-se-lhe a fazer cócegas por debaixo dos membros e a
murmurar-lhe “coisas feias” aos ouvidos e saiu-se com uma dessas insinuações
maliciosas que vem muito a jeito para fazer rir às escancaras a boêmia do “bas-fond”...
(Almir de Andrade).
Silva Mello arrolou os melhores sábios da terra e todos os médiuns de que teve
conhecimento, reduziu-os à massa informe de hebetismo e fraudulência para com ela
levantar o monumento da biopsicologia animal, onde todos os problemas do corpo e do
espírito encontram a solução apropriada.
Para Freud, tudo é libido, é erotismo, tudo é sexualidade anal, oral, fálica, filial, em
latência ou manifesta, mamada no seio materno e visível nas algas dos caixões; Silva
Mello, não somente concorda com tudo isso, mas ainda pede mais, pede a volta
imediata ao orangotango, do qual Freud possuía apenas uma estátua sobre a sua
escrivaninha.
Ponde na boca de Silva Mello as palavras seguintes, que Almir de Andrade atribuiu,
sinteticamente, a Freud, e tereis redivivo e lampeiro, o homem que vasculhou durante
cinqüenta anos as doenças mentais dos outros homens, apresentando, afinal, todos os
sintomas de uma intoxicação por contágio sugestivo, encerrado numa casa “sem música,
sem poesia, sem alegria” (Ludwig):

“Vós todos deveis viver de acordo com os vossos instintos, “seguir a lei das vossas naturezas; não
temais a força do “tabu”, não vos ajusteis à imposição dos fortes — vossos pais que criaram em vós o
maldito complexo de Édipo, vossos mestres e vossos chefes que encham de sadismo o vosso Super-Ego;
não recueis

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diante da autoridade da consciência e da razão, porque tudo isso é uma ilusão e uma mentira, a vossa
consciência não é nada, é um simples invólucro protetor, porque a vossa verdadeira vida está no
inconsciente; eliminai essa moral, que vos tolhe a liberdade dos instintos e provoca em vós a terrível
neurose que persegue a civilização; destruí a família, que contribui para a perversão, que educa sempre
mal a vossa sexualidade; reformai de cima para baixo essa sociedade que proveio de um crime inicial, que
traz a marca da imposição do mais forte, que se compraz em toda a sorte de inibições e de punições,
reformai tudo, destruí tudo — porque chegou o dia da grande libertação, o dia da luta do filho contra o
pai, o dia sublime da ressurreição.”

Para “ajustar tudo à sua tese”, Freud generaliza e reduz os vultos máximos da história
(Napoleão, Goethe, Leonardo Da Vinci, Bismarck, etc.) a neuróticos como ele, vítimas
do pansexualismo (como, aliás, toda a humanidade), pervertidos, incestuosos,
disputando com os próprios pais a posse da mesma fêmea, como qualquer irracional.
Por quê? Porque assim o decretou uma doutrina, para a qual a Arte, a Cultura, a
Religião, tudo é produto de instintos recalcados.
“Nenhum instinto de aperfeiçoamento existe no homem”. “Nenhum conteúdo
psíquico existe, peculiar às neuroses, que não se encontre também nos homens sãos”.
São as razões de Freud. Dentro do seu programa de “tornar bons e aproveitáveis” todos
os recursos e argumentos, Silva Mello generaliza a imbecilidade e a desonestidade, que
passam a ser patrimônio de todos os sábios e de todos os médiuns.
Freud foi seis vezes pai, isto é, três vezes presenciou o complexo de Édipo, em que,
ele próprio, representou papel saliente; três vezes atestou a existência não menos
interessante do complexo de Electra, de que participou sua esposa. Em todas as seis
vezes, o criador da psicanálise se enriqueceu de novas experiências, ratificadoras da sua
doutrina: “Os desejos instintivos, que despontam em cada recém-nascido são o incesto,
o canibalismo e o prazer do morticínio”. Ao Silva Mello a natureza o privou até agora
dessas experiências ilustrativas: não lhe deu filhos, para grande mágoa sua “pois não me
libertei, diz ele, desse desejo, nem mesmo depois de ter entrado na velhice”. Para que
iria a “cegonha” dar um filho a Silva Mello? Para que ele o visse, sem que o pudesse
impedir, naquela degradação que Freud pinta com as cores mais sombrias?
Freud fazia as suas observações clínicas pelo ouvido, sentando-se detrás dos
pacientes; as observações mais sofríveis de Silva Mello ele as realizou por “intermédio
de ter-

29
ceira pessoa”. Freud não respeitava as almas sofredoras, torturava-as egoisticamente,
sugestionava-as pornograficamente, em sessões demoradas, até que, como as vítimas de
policiais arrancadores de confissões, elas concordassem com as suas interpretações,
“ajustadas às suas teses”; Silva Mello, não se lhe deparando oportunidades semelhantes,
porque as suas observações foram feitas através de livros alheios, confessou, todavia (o
homem nunca se perdeu por deixar de confessar, fosse o que fosse) que “isso é muito da
natureza humana: para termos razão e acertarmos as nossas idéias, todos os recursos e
argumentos tornam-se bons e aproveitáveis”.
Em suma, onde quer que se ouça a palavra pai ou a palavra filho, na família ou nas
religiões, leia-se neurose coacta da criança, originada do complexo de Édipo. Aposto
como o leitor já imaginou a figura material do símbolo com o qual se deveria premiar
tão dedicado falóforo, pelos benefícios que trouxe à alma humana. Quem quiser
entender Freud, que leia Silva Mello, e vice-versa. Quando tiverem o curso completo de
ambos, requeiram a entrada num manicômio. Por muito menos, por umas filosofias que
não eram de todo malucas, o nosso Machado de Assis fez Quincas Borba morrer doido,
em Barbacena, pregando o seu Humanitismo ao amigo Rubião.

As ilusões dos carolas.

Alguns carolas — religiosos fanáticos que preferem estender1 a mão a um


materialista ou a um ateu a estendê-la a um irmão de outra crença — que leram no
original ou escutaram as histórias que Silva Mello inventou, babam-se de gozo diante do
que consideram a destruição das “patacoadas do Espiritismo”. Santa ingenuidade!
Se o autor dos MISTÉRIOS conseguisse romper as trincheiras dos fatos espíritas,
construídas por sábios de verdade, fatos cuja pretensão é, na opinião de um escritor
católico que por acaso tomou conhecimento deles — “oferecer uma base mais sólida ao
espiritualismo em geral”, a tais horas o carola e toda a sua parentela, as suas igrejas, os
seus sacerdotes, os seus sacramentos, os seus santos e o seu próprio Deus estariam
atirados numa lata de lixo, que é para onde enviam tudo o Silva Mello e o seu comparsa
Freud, sobrando somente a Psicanálise e a Biopsicologia. Para salvar essas duas
doutrinas, imitaram Camões, mas não tiveram a sorte deste, nem a meróciam: lutando
contra as águas revoltas de suas lou-

30
curas, levantaram para o alto os seus alcorões, mas pereceram também asfixiados e
emporcalhados no naufrágio.
Freud antecipou solidariedade a Silva Mello, em troca da adesão do “sábio” nacional
à sua sexomania:

“Infelizmente, diz ele, devo reconhecer que pertenço ao grupo daqueles indivíduos indignos, em cujas
atividades não transparecem espíritos e diante dos quais o supra sensível se dissipa; assim, não estou em
condições de me emocionar com o maravilhoso.”

As bordoadas que Silva Mello dá às patacoadas do Espiritismo e que merecem o


aplauso idiota de um “religioso”, custam-lhe a este tão caras que o “inocente” sai do
negócio condecorado com um símbolo fálico na lapela, gafado de auto-erotismo,
componentes anais sádicos, angústias de castração, pervertido, incestuoso,
envergonhado de ser criatura humana, preferindo a vida despreocupada da minhoca.
As palavras mais puras do vocabulário — mãe, pai, filho — com o p minúsculo ou
com P maiúsculo, assumem significados de tal natureza, que não podem ser
pronunciadas em voz alta. Há uma inversão total de tudo, capaz de enlouquecer, se a
humanidade não estivesse vacinada contra ela pela profilaxia salvadora do cristianismo.
Vejamos se o carola se reconhece no espelho de algumas definições do falicismo,
que Silva Melo subscreve e aplaude:
Moral: “a essência da ética consiste na voluntária renúncia da satisfação sexual”.
Estética: “raízes de um erotismo anal recalcado”. Arquitetura: “derradeiro e irredutível
elemento da cavidade abdominal”. Poesia: não há diferença alguma entre o neurótico e
o poeta”. Religião: “desfiguração mórbida da realidade, loucuras coletivas”;
psicanalítica ou biopsicologicamente falando, isto é, dentro da autoridade suprema do
sexo coisa semelhante às neuroses coactas da criança, pois “tem origem no complexo de
Édipo, relacionado com afigura do pai”.
Peça o carola a explicação do complexo de Édipo ao seu confessor e... suicide-se.
Aliás (simples associação de idéias), a versão bíblica segundo o qual Adão e Eva foram
os primeiros e os únicos pais da humanidade, subentende, necessariamente, as relações
incestuosas da segunda geração com a primeira, dando razão ao mito de Freud. Mais
tarde, a teoria melhorou quando, após o dilúvio, somente se salvaram Noé, sua esposa,
três filhos e três noras. Aqui, apenas, os inconvenientes dos cruzamentos entre
consanguíneos.

31
O Freud ninguém o viu jamais “surpreender-se com as suas narrativas”. Uma só
coisa lhe importava: “fazer com que tudo se ajustasse às suas teses”. Para isso, pedia
crédito ilimitado: “Se repudiardes o que digo, simplesmente por julgardes fantástico,
ficarei naturalmente indefeso”. Eis a ingenuidade do psicanalista... O ditador nacional, o
“carrasco de fantasmas”, não se envergonha de dizer1 coisa pior: “para termos razão e
acertarmos as nossas idéias, todos os recursos e argumentos tornam-se bons e
aproveitáveis”. Eis o cinismo da biopsicologia...
Preferem os carolas tais companhias? Pois fiquem com elas; que lhes façam bom
proveito!

A vocação pelas funções digestivas.

A biopsicologia “desce aos animais inferiores e mesmo às plantas”; lamenta o


“advento da razão consciente”, que veio quebrar “o progresso ascendente em sua
formação, indo desde os indivíduos unicelulares até os mamíferos superiores»;
preconiza o direito natural do mais forte, “a justiça biológica”, “a que dá ao leão o
direito de devorar a sua presa, tão naturalmente quanto ao herbívoro o de comer os seus
vegetais”, e conclui, muito razoavelmente, que “os problemas da educação têm fundo
essencialmente filosófico, pois dependem das concepções que possuímos do Universo e
das próprias condições do homem sobre a terra”.
Investiguemos como tem agido Silva Mello, no campo de suas atividades científicas,
de acordo com as concepções que possui do Universo.
As suas preferências notórias e apaixonadas pelas funções digestivas são já o começo
da eclosão das taras materialistas.
No comer bem, secundum artem, assenta a felicidade do homem, porque todas as
suas forças animais só se manifestam em plenitude, quando os alimentos lhe entrem e
lhe saiam, em proporções iguais, bem escolhidos, bem equilibrados, de preferência sem
o sofrimento das manipulações que os desnaturam, prejudicando o rendimento da
máquina.
Silva Mello pleiteia a celebridade nessa província da medicina. Os seus trabalhos
avultam. Na quase totalidade das páginas de “A Alimentação, o Instituto e a Cultura” e
das do “O Homem”, na sua literatura científica que enche as colunas de sua “Revista
Brasileira de Medicina”, o assunto é versado com meticulosidade, com assombrosa
pertinácia, com

32
eloqüência, socorrido pela moderna ciência da nutrição e até, pela psicanálise. Esta lhe
deu as chaves das razões pelas quais os papeis higiênicos se chamam Tico-Tico ou
Araponga. E uma página que vale a pena ler, para desopilação do fígado. Não é
pornográfica, não: é coprológica. (Ver. Brás. de Medicina, março, 1949, págs. 163-167).
Lembra-nos aquele malabarismo dos filólogos, quando querem, à viva força, por meio
de uma semântica esquizofrênica ou megalomaníaca, fazer com que uma palavra se filie
obrigatoriamente a outra.
Consome-se Silva Mello com os erros palmares cometidos pelos comedores.
Vaticina desgraças próximas e remotas. Dá-nos a impressão de um sinaleiro, postado no
leito de estrada de ferro, para deter o comboio que avança com a vertiginosidade de 100
quilômetros à hora.
Que será do bicho-homem, se acabar desdentado, devido ao uso das farinhas
descorticadas? Luta denodadamente por deter a marcha da involução física do seu
cliente que, se continuar tão descuidado dos seus músculos e dos seus dentes ficará
completamente desarmado aqui no planeta.
Conseguirá que a população do Rio e de São Paulo, para se tornar sadia, de boa
dentadura e inteligente, se resolva, como os nordestinos, a viver de “carne de bode,
farinha e rapadura?”

“É preciso ensinar essa gente, dogmatiza ele, a viver e a comer, ensinar-lhes a copiar a alimentação do
sertanejo, a dar preferência íi rapadura e ao açúcar mascavo, ao arroz vermelho, ao leite de cabra e à carne
de bode, às comidas de milho, ao feijão, à abóbora d ao aipim, ao melado, ao caldo de cana. . .”

Aí fica a receita, raramente gratuita, que o grande dietólogo pôs ao alcance de nossa
saúde e de nossa felicidade.

“Se o sertanejo é inteligente, sadio, resistente, possuidor de esplendidas qualidades físicas e


intelectuais é isso razão para aprofundarmos tal realidade, procurando torná-la extensiva à massa
da .nossa população.”

Quem não percebe logo a impossibilidade absoluta dessa “mística”? Quem não vê
que o resultado final da experiência rnilizada no nordeste não se pode transferir para
outros meios, onde se realizaram, concomitantemente, outras “adaptações?” E o clima, e
o modo de vida, e a natureza do trabalho, e o cruzamento que acabou por excluir, quase
que de modo absoluto, o elemento europeu? E a pele bronzeada, e a estatura meã, e a
cabeça chata, e o hábito, e o gosto? Será que iremos merecer tudo isto com o leite de
cabra,

33
a carne de bode, a rapadura e o açúcar mascavo? Encantou-se com a desproporção entre
o que o nordestino come e o que ele é, e faz. Isto lhe pareceu em desacordo com o que
os nutrólogos europeus e americanos haviam estabelecido na ciência da alimentação. E
já se agita na ânsia doida de generalizar, pondo abaixo os seus rivais estrangeiros, tal
qual o fez com a medicina alopática e a homeopática, convolando-se a novas núpcias
com a sugestão.
Para que se chegasse em o Norte à maravilha atual — um motor pequeno, leve,
econômico, eficiente — foi mister uma experiência de adaptação que durou quatro
séculos. Não foi assim mesmo, em tentames milenares, que se cristalizou o tipo físico e
mental do japonês, graças a uma reciprocidade de estímulos entre os hormônios, a
alimentação, os fatores acessórios e o clima, dando como resultado final a fixação dos
elementos genéticos num tipo padrão?
Os princípios gerais da bioenergética não sofreram abalo algum com tais
experiências. Se seguíssemos a orientação de Silva Mello, teríamos uma ciência da
alimentação variável conforme a escrevesse um esquimó, um siberiano, um senegalês,
um etíope, um italiano, um brasileiro do Norte ou do Sul.
Que aconteceria se Silva Mello, ditador na Groenlândia, introduzisse ali o modo de
vida e de comer do nordestino? Primeiro, hecatombes. Depois, ao fim de milênios,
quando todos os groenlandeses estivessem bem reduzidos de estatura, inteligentes e
vivos, bons músculos e bons dentes, mas transformados em criaturas arredondadas e
peludas, para se defenderem contra o frio, auxiliados somente pelo uso generalizado da
rapadura e da farinha de mandioca, que só poderiam ser obtidos de fora, em troca dos
seus produtos naturais, um Silva Mello do futuro, talvez o mesmo, deduziria que os
habitantes de zonas frias abusavam dos gordurosos e que os seus nutricionistas estavam
positivamente errados. A visão unilateral dos fatos, a ânsia de se tornar célebre
conduzem os homens mais inteligentes (Silva Mello e Freud), a zombarem da
inteligência alheia.
Se à evolução física se lhe aprouver extrair aos homens alguns dentes (os incisivos
laterais e os dentes do siso já estão claudicando), ou desdentá-los de uma vez, repetir-se-
á a história do apêndice caudal — e não adianta desesperar.
E quanto a nós, digamo-lo muito à puridade, preferimos perder todos os dentes a
passar ao uso da rapadura, do leite de cabra e da carne de bode.

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A pandemia das fraudes.

O homem que se firmou no princípio inqualificável, porque a si mesmo se definiu —


“para termos razão e acertarmos is nossas idéias, todos os recursos e argumentos
tornam-se bons, aproveitáveis” — sustenta, a propósito de fraudes, opinião que a sua
inteligência não abonaria, se não estivesse voluntariamente subordinada àquele
“critério” acima enunciado.
A série de mistificadores dos quais nos dá notícias minuciosas, todos facilmente
desmascarados, muitos por Richet, Oeley, Schrenck-Notzing, Harry Price, acordes em
que, ao lado do fenômeno falso (prestidigitação), há o fenômeno verdadeiro, ao lado das
fraudes conscientes (simples casos de polícia), há as fraudes inconscientes, que não são
fraudes, se tivesse de depor contra alguma coisa, deporia contra a sua tese, errada desde
o seu próprio enunciado — todos os médiuns são farsantes. É uma generalização tola e
imprudente, que os fatos desmentiram, desmentem e desmentirão sempre, porque a
mediunidade se espalha por toda a parte, surge no meio de famílias respeitáveis,
deflagra nos indivíduos de qualquer crença, numa demonstração evidente de
impessoalidade, de espontaneidade, de universalidade. Causa dó o teorista que pretende,
ainda hoje, desconhecer tais fenômenos.
Sem experiência alguma (nunca procurou defrontar um médium verdadeiro),
arrimado naquele princípio imoralíssimo — todos os argumentos são bons e
aproveitáveis — quer contradizer as experiências de 40 anos de um Richet ou de um
Schrenck-Notzing.)
Atribuindo tudo ao “temperamento”, às “tendências espirituais”, nega e renega o
valor do “testemunho humano”, da competência: “porque divergem as pessoas
igualmente competentes”, mas tudo isso somente para os seus adversários. Ele excetua-
se a si próprio de todas estas contingências e alcandora-se à altura inacessível aos outros
mortais, donde, como Júpiter, fulmina todo o mundo com os raios da sua ciência. Não
tem respeito algum pelo testemunho humano, nem pela observação individual, mas
neutraliza “Crawford, aliado a Richet, com o testemunho de um tal Fournier d’Albe; às
experiências de Crookes, auxiliado por Varlev, contrapõe o testemunho de um tal Jules
Bois; destrói a médium Florence Cook por intermédio do médium Dunglas Home e
este, a seu turno, com a proteção de um tal Philip Davis, que lhe

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recolheria, na hora da morte, a confissão de “nunca haver encontrado espíritos no seu
caminho”.
Harry Prrice, o prestidigitador que se transformou em metapsiquista, é cera maleável
sob os dedos ágeis e hábeis de Silva Mello: ora é a inconteste notabilidade em
prestidigitação, que desmascara todos os truques, possuidor da maior e mais completa
biblioteca sobre o assunto, ora, quando atesta quer em determinadas circunstâncias não
houve fraudes, nem podia havê-las, baixa à falibilidade, como todo mundo.
Cita-o muito, em várias páginas dos MISTÉRIOS, coma autoridade insuperável, no
gênero, mas não aceita o seu postulado, que sempre defendeu intransigentemente, o
postulado da ciência incrédula, mas possuidora de “caráter” (Richet, Crookes,
Schrenck-Notzing, Ochorowicz), quando admitiu diante da evidência dos fatos, que o
mesmo médium apanhada em flagrante de fraude seria capaz de produzir fenômenos,
verdadeiros.
Para fazer vitoriosa a sua doutrina, não se peja de equiparar os médiuns que sempre
fraudaram, entre os quais Laszlo, o qual mereceu até um livro inteiro de Schrenck-
Notzing — “As fraudes do médium Laszlo” — aos médiuns famosos, médiuns
familiares, que não deram espetáculos como Reese, Slade, Hans, etc. (difamados por
ele, através de testemunhos alheios), tais como William Stead, Laura Edmonds, a mãe
de Gabriel Delanne, o vidente Johansen, a Sra. Piper, deste modo qualificada por
Richet:

“Se, para afirmar esse poder misterioso (clarividência) da nossa inteligência, não tivéssemos senão as
experiências realizadas com esse médium seria isso largamente suficiente. A prova está dada, e de
maneira definitiva.”

Para a sua inconsciência de leguleio falido, Silva Mello, o grande especialista, que
nos trouxe da Alemanha toda aquela ciência das funções digestivas, é igualzinho ao
dietólogo ou ao dietista que professa na cozinha de algum frege-môsca chinês dos
bairros cariocas.
Falsidade maior do que a de Silva Mello, com relação ao sábio Crookes (e tais
copistas infiéis querem impedir a marcha vitoriosa das verdades espiritualistas), foi a do
psiquiatra Leonídio Ribeiro, quando perpetrou, cumulativamente, dois erros, não
diremos que conscientemente, porque, então, seria um caso de polícia, mas
ingenuamente, ignorantemente, simplòriamente: ele declara Crookes apaixonado por

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Florence Cook, a médium. Poderíamos deixá-lo discutir o caso controvertido com o seu
parceiro Silva Mello, que opinou pela paixão de Crookes ao fantasma Katie King, mas é
preciso salientar até onde vai o poder inventivo desses médicos, que nada
experimentaram e discutem, nesse continente, as conclusões de seus colegas
estrangeiros.

“O grande físico inglês William Crookes, cujo trabalho tanto barulho fez em sua época, serviu-se para
as suas primeiras experiências de uma senhorita chamada Florence Cook, a quem dedicou, no referido
volume, alguns versos bastante apaixonados”.

Podemos garantir1 que, ou este cidadão, por muitos títulos que possua, nunca leu a
obra original de Crookes, ou é detentor de um modo original de ler — lê tudo às avessas
— ou é um vulgaríssimo contador de anedotas.
O procedimento de Silva Mello para com William Crookes, roubando-lhe o
protocolo das experiências e acusando-o de fazedor de versos amorosos à Katie King é
desses que exemplificam ao máximo a coragem de para quem “todos os argumentos são
bons e aproveitáveis”:

“Tem-se explanado, porém, que os erros e as imprecisões eram por demais compreensíveis, porque
Crookes apesar de grande sábio, se apaixonou por Katie King (o fantasma), escrevendo versos inflamados
de amor, inspirados pela jovem donzela, cuja beleza julgou indescritível.”

Duas vezes falso: os versos não são de Crookes, são intercalados no texto entre
aspas, e não são versos de amor, são versos de admiração. A diferença é muito grande,
para “se tornar1 boa e aproveitável.” Vamos fazer uma tradução livre dos versos, para
que o leitor sirva de juiz:

“Criava em torno de si uma atmosfera de vida; seus olhos eram belos, doces e cheios de promessas
do céu; dir-se-ia que tornavam o próprio ar mais brilhante; sua figura vos dominava até a idolatria,
como se vos convidasse a cair de joelhos.”

O modo pelo qual tais versos foram intercalados no texto, sem referência alguma e
entre aspas, faz-nos crer que o autor apenas se serviu deles para expressar a sua
admiração, mais do que natural, contida no período em prosa que os precede:

“Mas a fotografia é impotente para representar a beleza perfeita do rosto de Katie, quanto as próprias
palavras o são para

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descrever o encanto de suas maneiras. A fotografia pode, é verdade, dar um desenho do seu porte; mas
como poderá ela reproduzir a pureza brilhante de sua tez ou a expressão sempre cambiante dos seus
traços, tão móveis, ora velados pela tristeza, quando narra algum acontecimento doloroso da sua vida
passada, ora sorridente, com toda a inocência de uma menina, quando reúne os meus filhos ao redor de si,
e os diverte contando-lhes episódios das suas aventuras na Índia?”

Declaração de amor, aqueles versos? Então fê-la também Heine, quando,


poeticamente, se referiu a Goethe: “quand il étendait la main, il semblait que son doigt
put montrer aux étoiles du ciel le chemin qu’elles devaient suivre.”

Não sabemos por que milagre não se lembrou de atribuir também ao Dr. Von
Bergen, de Gothembonrg (Christiania), uma paixão semelhante por Nepenthes,
fantasma que se mostrava à luz, ao mesmo tempo que a médium (D’Esperance) se
conservava acordada e consciente, fora do gabinete e assentada entre as demais pessoas.
A certa altura de seu relato, o Dr. Bergen não cabe mais em si e exclama:

“Não obstante toda a admiração e o respeito que nutro para com as amáveis e encantadoras senhoras
das minhas relações, devo dizer que meus olhos jamais viram coisa alguma de comparável a essa criatura
sublime — mulher ou deusa, pouco importa; — e estas minhas palavras mais não fazem do que traduzir a
opinião geral.”

Suponhamos, “para acertarmos as nossas idéias”, que Crookes, diante da mulher


maravilhosa com quem fugazmente conversou durante poucos anos, se tivesse
apaixonado por ela, desprezando a médium ali ao alcance de suas mãos. Que argumento
formidável a favor da realidade perfeita da materialização!

O Espiritismo não é “mais uma” religião.

O Espiritismo não é “mais uma” religião. Não destrona as seitas cristãs, nem pretere
as crenças imemoriais do oriente. Adversa o materialismo e fornece à espiritualidade,
neste século que não quer mais crer, bases mais racionais para as convicções filosóficas
e religiosas.
Certo ou errado, não intenta substituir nada: deseja esclarecer. Firma-se na ciência
experimental de sábios incré-

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dulos, que dá às mensagens vindas do Alto, dentre as quais sobressai a mais autêntica de
todas — a de Jesus Cristo — o alicerce de uma convicção positiva e demonstrada.
Sustenta que o espírito humano é, como tudo, um produto da evolução, associando-se às
manifestações biológicas e aos fatos naturais. Daí a espontaneidade com que se espalha
pelo mundo inteiro, a sua indiferença pelo credo a que se ache subordinado o sujeito. De
sua universalidade deixemos que nos informe o Cardeal Lépicier (Alexis Henri Marie),
no seu livro “O Mundo Invisível”:

“Dia a dia, a literatura espírita aumenta assombrosamente. Estão constantemente a aparecer no


mercado livros que ensinam a evocar os espíritos; grossos volumes registram as respostas obtidas em
diversas sessões, ao mesmo tempo em que as revistas nos informam periodicamente do movimento
espírita. Os próprios nos jornais diários não encontram outro meio para entreter os seus leitores senão
com o relato das sessões espíritas e das respostas obtidas por intervenção dos médiuns.”

O Cardeal Alexis Lépicier atem-se, como é natural, à Teologia Católica, segundo a


qual o mundo angélico compõe-se de dois tipos bem definidos de anjos — os bons, que
somente atuam sobre o homem (corpo e espírito) por ordem de Deus, e os maus, que
agem por conta própria, estando no entanto a sua malignidade permitida por Deus, pois
o contrário seria inconcebível:

“Todas as ações podem ser realizadas por intervenção dos anjos bons ou dos anjos maus, mas sempre
sob a condição de que Deus, Senhor e Mestre dos anjos e dos homens, ordene, ou, pelo menos, permita
tais fatos.”

Se Deus, essencialmente bom, “permite o mal”, é porque, infinitamente sábio, acha


que o mal é necessário, tem finalidade útil. Poderia impedi-lo, mas não o faz:
racionalmente, a função do diabo, aliás, dos diabos, faz parte da ordem universal das
coisas. Por outro lado, o livre arbítrio do homem ficaria anulado, se não oscilasse entre
o bem e o mal. O merecimento está na escolha.
“Os espíritos de malícia espalhados por esses ares”, segundo o Apóstolo S. Paulo,
são capazes de produzir obras preternaturais, “à margem das forças físicas que nós
conhecemos”. Realizam fenômenos objetivos ou subjetivos, dos quais o Espiritismo nos
dá notícias minuciosas.

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Há, porém, uma condição necessária, um estado especial, uma “disposição física”,
segundo a definição do Cardeal Lepicier, que algumas criaturas humanas possuem em
quantidade ou intensidade maior.

“Não será descabido lembrar aqui, diz ele, o caso de Saul, de quem se conta que, sempre que o
espírito maligno se apoderava dele, David pegava na harpa, tocava e Saul ficava mais sossegado e
melhor, porque o demônio o abandonava.”

Para nós, a “disposição física” de Saul era pura mediunidade.


Os fenômenos do Espiritismo estão dentro das potencialidades dos anjos, conclui o
Cardeal. Aqui vai um pedacinho para os católicos, que negam os fatos preternaturais:

“Se um espírito despido de preconceitos (o grifo é nosso) se quiser dar ao trabalho de examinar, um
por um, todos os fenômenos que se produziram em tempos idos, por intermédio de pitonisas ou de magos,
ou aqueles que ocorrem em nossos dias nas sessões espíritas por intervenção dos médiuns, averiguará
prontamente que não há um só desses fenômenos, quer seja de natureza mecânica, fisiológica ou
intelectual, que não possa ser atribuído a uma ou outra das várias formas do conhecimento angélico e do
poder dos anjos, a que atrás nos referimos.”

Segue-se a enumeração dos fatos espíritas:

“Assim, a aparentemente espontânea produção de luz, de calor ou de sons, a deslocação automática de


objetos de um lugar para outro, a apresentação de imagens fantásticas, as emissões de voz, a redação de
escritos inteligíveis, o aparecimento repentino de plantas vivas, o delineamento de figuras humanas, com
tôda a aparência de vida e de movimento, a revelação de acontecimentos ocultos ou passados à distância,
o poliglotismo do médium, a revelação, por parte do mesmo, de conhecimentos científicos que não
possuía — todos estes e semelhantes fenômenos não excedem a capacidade dos espíritos angélicos bons
ou maus, e todos estes efeitos lhes podem ser atribuídos como a uma causa adequada.”

Para os médicos católicos (que Deus lhes dê um bom catolicismo!) reservamos as


seguintes informações do Cardeal:

“À atuação angélica pode também ser atribuída uma grande variedade de fenômenos de ordem
patológica que a medicina é muitas vezes incapaz de desvendar. Assim, está dentro do poder angélico
causar uma paralisia total ou parcial, a afasia ou incapacidade de articulação, a anestesia ou perda dos
sentidos do tato ou da sensibilidade, a amnésia ou perda da memória, a ataxia geral

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ou parcial e outras perturbações que dependem do sistema nervoso como causa imediata.”

Entre nós e a Igreja pode haver entendimento porque somos, quanto aos fatos,
testemunhas deles. Voltaire, prudentemente, só aconselhava a discussão entre os que
fossem da “mesma opinião.” Acreditamos nos fenômenos; aliás, identificamo-los,
autenticamo-los. Tudo se resume no deslindamento da questão: são os anjos maus, os
diabos, os autores e atores das manifestações supranormais ou tudo ocorre por conta de
espíritos desencarnados, variáveis ao infinito em moralidade e em saber?
Quando diagnosticam as nossas enfermidades; quando as curam, se possível; quando
nos aconselham a caridade, a humildade, a fraternidade, o desprendimento dos bens
materiais, a mansidão, a tolerância, a pureza, a castidade, o uso lícito das coisas lícitas;
quando nos enviam mensagens que não somente se podem chamar de “inteligíveis”,
mas equiparam-se às advertências da mais pura espiritualidade de todas as Escrituras
Sagradas do mundo, inclusive aos melhores sermões dos católicos e dos protestantes;
quando nos fornecem todas as provas de identidade que as exigências sociais requerem
para extremar as personalidades; quando se dizem (e o provam), que são nossos pais,
nossos filhos, nossos irmãos, havemos de, desprezando tais fatos, admitir que é o diabo
que as arma? Não há impossibilidade, dir-se-ia material, de enquadrar toda a
fenomenologia estranha dentro dos chifres de Mefistófoles? Um padre ilustre —
Lacordaire, em conferência na igreja de Notre Dame transigiu: “Com freqüência, meus
irmãos, Deus, para chegar aos seus fins, emprega meios verdadeiramente diabólicos.”

Para que os estudiosos e conhecedores dos fatos espíritas, cuja veridicidade a própria
Igreja não pode mais desfazer, propendessem pela explicação da Teologia Católica,
seria preciso que houvesse a colaboração de uma força supra-humana, que alterasse as
normas usuais de que se utiliza o raciocínio lógico, seria indispensável um grande
milagre, o maior de todos — miraculum miracidorum omnium.
Não há desobediência à Santa Madre Igreja: há impossibilidade física de se
intrometer dentro da noz da angelologia diabólica a grandeza e a eloqüência dos fatos
espontâneos, universais que se acumulam assombrosamente, graças ao aparecimento e
ao exercício da mediunidade, isto é, da porta que se abriu, definitivamente, entre os dois
mundos.

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E desta vez a bruxaria não irá mais para as fogueiras.
Na “Oração aos Moços”, escrita nas antevésperas de sua morte, e por isso mesmo
lida por outrem em cerimônia pública, há uma passagem em que a eloqüência
indefectivelmente espiritualista de Rui Barbosa dá conselhos aos seus colegas e
afilhados em termos inequívocos de quem tomou, direta ou indiretamente,
conhecimento da sobrevivência humana, de acordo com a versão espiritista:

“A maior de quantas distâncias logre a imaginação conceber é a morte; e nem esta


separa entre si os que a terrível afastadora de homens arrebatou aos braços uns dos
outros. Quantas vezes não entrevemos, nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma
imagem cara? Quantas, vezes não a vemos assomar nos longes da saudade, sorridente
ou melancólica, alvoroçada ou inquieta, severa ou carinhosa, trazendo-nos o bálsamo
ou o conselho, a promessa ou o desengano, a recompensa ou o castigo, 0 aviso da
fatalidade, ou os presságios do bom agoiro? Quantas nos não vem conversar afável e
tranqüila, ou pressurosa e sobressaltada, com a afago nas mãos, a doçura na boca, a
meiguice no semblante, o pensamento na fronte, límpida ou carregada, e lhe saímos do
contato, ora seguros e robustecidos, ora transidos de cuidado e pesadume, ora cheios
de novas inspirações, e cismando, para a vida, novos rumos? Quantas outras, não
somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-túmulo, e com eles
renovar a prática interrompida, ou instar com eles por alvitre, em vão buscado, uma
palavra, um movimento do rosto, um gesto, uma réstia de luz, um traço do que lá se
sabe, e aqui se ignora?”

Para os que contraíram a enfermidade incurável da ignorância, da “pior espécie de


ignorância”, segundo Sócrates, “a que presume saber o que não sabe”, ser espírita é
andar somente em busca dos fenômenos pelos fenômenos, às voltas com as mesinhas ou
os copinhos, para resolver os problemas domésticos, como os colegiais que procuram
“colar” nos exames.
O Espiritismo não tem culpa de que a gota de orvalho matutino, ao invés de cair
sobre a esmeralda de uma folha, que a faça brilhar à luz de Deus, caia sobre o pó da
terra que a transforma em lama.
O Espiritismo põe a sua mira na mais alta espiritualidade de que as palavras de Rui
Barbosa nos deixam entrever alguns benefícios; se delas não emana a profissão de fé
integral, revelam, no entanto, a perfeita compatibilidade entre as três revelações — a de
Moisés, a de Cristo e a da Doutrina dos Espíritos — que mutuamente se auxiliam e se
completam.
Diversificam entre si as convicções e as crenças. Mas. Deus, o Pai, é um só. Ou não
seria Pai. Seria padrasto.

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Ninguém adquiriu direitos de monopolizá-lo.
A nossa discrepância consiste em não reconhecer na Terra alguém, nem mesmo um
S. Francisco de Assis, que se interponha entre a nossa consciência advertida, burilada e
sublimada, antes pelo exemplo insofismável de Cristo (e não foi sem razão que ele não
escreveu nada) do que pelas suas palavras verbais, a que cada Evangelista infundiu as
suas características humanas, passíveis, como todas as palavras, de interpretações e de
adaptações, e um Deus Impessoal, acima do Bem e do Mal, que espera, com paciência
infinita, a realização dos seus desejos através da Evolução física e espiritual dos
personagens e dos episódios que idealizou.
Deus é um artista de recursos infinitos, que concebe os seus poemas cósmicos
através da eternidade dos tempos.
Quem tergiversa nesse ponto é a ciência, a pobre ciência humana, cuja finalidade
única é andar em busca das causas de todos os fenômenos, por mínimos que sejam. E
dentre todas, despreza a preexcelente — a Causa Suprema.
Não percebe que está agindo anticientificamente e se sai da “longa odisséia sem os
créditos de Ulisses.”
Para Sua Eminência, a intenção clara do Espiritismo é “substituir a doutrina e o culto
que Cristo ensinou e que a Igreja sempre tem conservado e pregado ao homem”; é
envolver em suas malhas almas sinceras, mas talvez incautas, “que se encontram
ameaçadas pela ruína temporal e eterna.”
Perdoem-nos os católicos a irreverência de pôr Silva Mello a debater tais problemas
com a autoridade e a respeitabilidade de uma grande e nobre figura do clero romano. É
que aconteceu, simplesmente, o inacreditável. Enquanto que o Cardeal Lépicier, no seu
livro The Unseen World, pelo qual mereceu, em 1921, a Bênção Apostólica do Papa
Benedito XV, protocola e comenta observações que poderão ser consideradas, para
alguns leitores, di-lo modestamente, “mais como engenhosas conjecturas do que como
realidades objetivas”, não obstante se apoiarem na pureza da iluminação angélica da
Suma Teológica, o biopsicólogo Silva Mello, o cientista, o “experimentador”, o dono da
matéria, tresvaria no mundo imaginário de coisas fantásticas e mentirosas. Digna-se o
Cardeal de lhe dar uma lição proveitosíssima para a irracionalidade de sua
metapsíquica, nos termos que se seguem:

“Há de verificar-se também que admitimos a realidade objetiva das manifestações espíritas como
dimanando realmente, em muitos casos, dos espíritos do outro mundo e não meramente, como-

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resultado duma fraude ou de uma prestidigitação. Parece ter sido moda, ultimamente, reduzir todos os
fenômenos espíritas a uma autêntica burla por parte dos médiuns. Embora, de fato, assim seja na maior
parte dos casos, pretender marcar esses fenômenos todos com o labéu da desonestidade é um processo
altamente anti-científico, como se mostrará no decorrer da presente obra.”

Sua Eminência, na severidade de sua linguagem, usa o eufemismo “anticientífico”,


que devia arder na pele do doutor como um sinapismo. Senti-lo-á Silva Mello, através
da carapaça de sua insensibilidade espiritual?

“Desnecessário será mencionar, continua Lépicier, como são surpreendentes algumas das respostas
obtidas por intermédio do Espiritismo. Não é raro que essas respostas venham lançar por terra tudo
quanto até agora tinha sido acreditado universalmente.”

E o Cardeal conclui, demonstrando extremo zelo pelas suas ovelhas tresmalhadas:


“Oxalá que essas almas conheçam a verdade que “as há de libertar”. Já a
conhecemos, Eminência; e estamos convencidos de que, não nos faltando a bênção de
Deus (e ela não faltou aos maiores pecadores, porque a todos Jesus perdoou em Seu
nome, no momento culminante de sua doutrinação, quando já estava pregado na cruz e
diante da morte), havemos de nos encontrar nos outros planos, não para uma beatitude
eterna e vadia, mas para um trabalho interminável.
Tenta o Espiritismo desempenhar aquele papel que Lecomte du Noüy atribuiu ao
homem de ciência:

“Creio firmemente que hoje a obra mais útil que um homem de ciência pode realizar, fora do seu
esforço técnico, consiste em prosseguir a reconciliação entre as atividades racionais e as atividades,
sentimentais ou espirituais do homem, reconciliação sem a qual o seu desenvolvimento moral coletivo é
retardado, a sua alegria de viver diminuída e a sua evolução demorada. Por outras palavras: o fim moral e
o papel social do sábio devem ser a realização do sonho de Renan: “a elaboração dum catecismo de ora
avante aceitável.”

Se a Igreja Romana hospedou Lecomte du Noüy com todo o seu evolucionismo, tão
maravilhosamente desenvolvido e documentado no livro Human Destiny, que tentamos
resumir em outro capítulo desta obra, se o não obrigou, para “ o acolher ao seu seio
materno, a abjurar as convicções científicas das suas “atividades racionais” da biologia,
então podemos garantir que o dogmatismo, para felicidade do gênero humana, alargou e
multiplicou as suas portas.

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Falou a voz da ciência pela boca de um biologista que se tornou religioso; fale,
agora, a voz da espiritualidade, diretamente do hiperespaco, de onde nos envia a sua
literatura, a melhor de nossos dias, e a sua ciência das coisas supranormais, uma das
mais seguras.

“Infelizmente — são palavras de Emmanuel — se a Ciência e a Religião constituem as forças


motrizes do esclarecimento das almas, vemos uma empoleirada na negação absoluta e a outra nas
afirmações arriscadas e absurdas. A Ciência criou a academia, e a religião sectarista criou a sacristia; uma
e outra, abarrotadas de dogmas e preconceitos, repelindo-se como polos contrários, dentro dos seus
conflitos, têm somente realizado separação em vez de união, guerra em vez de paz, descrença em vez de
fé, arruinando as almas e afastando-as da luz a verdadeira espiritualidade.
Entre a força de um preconceito e o atrevimento de um dogma, o espírito se perturba e, no círculo
dessas vibrações antagônicas, acha-se sem bússola no mundo das coisas subjetivas, concentrando,
naturalmente, na esfera das coisas físicas, todas as suas preocupações.”

Nas obras de André Luis, que os nossos esculápios deviam ler, quando por nenhum
outro motivo ao menos por solidariedade de classe, na época das Associações Médicas,
dos Sindicatos e das Previdências, encontramos em muitos passos, finamente literários,
as intenções e os ideais do Espiritismo:

“Jamais endossaremos um Espiritismo dogmático e intolerante.”


“É por esta razão que pugnamos pelo Espiritismo com Jesus, única fórmula de não nos perdermos em
ruinosa aventura.”
“A profissão de fé não é tudo. A experiência da alma no corpo denso destina-se, de maneira
fundamental, ao aprimoramento do indivíduo.”
“Em todas as casas, de fé, os mensageiros do Senhor distribuem favores e bênçãos compatíveis com
as necessidades de cada um; entretanto, é imprescindível que se prepare o coração nas linhas do mérito, a
fim de recolhê-los.”

Eis um excerto que dedico aos meus irmãos católicos, se algum deles passar por
aqui, não para os tirar de suas igrejas, mas para que compreendam a seriedade de que se
devem revestir os atos litúrgicos, que nós, espiritualistas, incluímos no quod abundant,
mas que de modo algum menosprezamos:

“Cubio espraiou o olhar através da multidão que presenciava a cerimônia, aparentemente contrita, e
acentuou:

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— Em verdade, a missa é um ato religioso tão venerável quanto qualquer outro em que os corações
procuram identificar-se com a Proteção Divina; no entanto, raros são aqueles que trazem até aqui o
espírito efetivamente inclinado à assimilação do auxílio celestial. E para a formação de semelhante clima
interior, cada crente, além do serviço purificação dos sentimentos, necessitará também combater a
influência dispersiva e perturbadora que procede dos companheiros desencarnados que lhe buscam
arrefecer o fervor.
Continuou Gubio a prestar-nos valiosos esclarecimentos alusivos à solenidade, enquanto a missa se
encaminhava para a fase final.
As vozes do coro como que projetam vibrações harmoniosas e lúcidas ao longo da nave radiosa, e vi,
num deslumbramento, que muitos espíritos sublimes penetram no recinto, de semblante glorificado,
rumando para o altar, onde o celebrante eleva o cálice, depois de abençoar a sagrada partícula.
Intensa luminosidade fluía do sacrário, envolvendo todo o material do culto, mas, surpreendido,
reparei que o sacerdote, ao erguer a oferta sublime, apagou a luz que a revestia com os raios cinzento--
escuros que ele próprio expedia por todas as direções. Logo após, quando se preparou a distribuir o
alimento eucarístico entre os onze comungantes que se prosternavam, humildes, à mesa adornada de alvo
linho, notei que as hóstias, no prateado recipiente que as custodiava, eram autênticas flores de farinha,
coroadas de doce esplendor. Irradiavam luz com tanta força que o magnetismo das mãos do ministro não
conseguia inutilizá-las. Todavia, à frente da boca que se dispunha a receber o pão simbólico, enegreciam
como por encanto. Somente uma senhora, ainda jovem, cuja contrição era irrepreensível, recolheu a flor
divina com a pureza desejável. Vi a hóstia, qual foco de fluidos luminescertes, atravessar a faringe
alojando-se-lhe a claridade em pleno coração.
Intrigado, procurei ouvir o Instrutor que, muito ponderado, elucidou sem delonga:
— Apreendeste a lição? O celebrante, apesar de consagrado para o culto, é ateu e gozador dos
sentidos, sem esforço interior de sublimação própria. A mente dele paira longe do altar. Acha-se
sumamente interessado em terminar a cerimônia com brevidade, de modo a não perder uma alegre
excursão em perspectiva. Quanto aos que compartilharam à mesa da eucaristia, cheios de sentimentos
rasteiros e sombrios, eles mesmos se incumbem de anular as dádivas celestes, antes que lhes tragam
benefícios imerecidos. Temos aqui grande quantidade de crentes titulares, mas muito poucos amigos do
Cristo e servidores do bem.
O “ite missa est” dispersou os fiéis que, ao fim da reunião, mais se assemelhavam a barulhento bando
de passarinhos de bela plumagem.

Eis o que se pode chamar a missa vista dos bastidores. O realismo da descrição é
impressionante. Não há intenção de amesquinhar, mas de realçar os erros e as verdades.
Se

46
é o diabo que se dá a este trabalho benemérito, poderemos profetizar que a sua derrota
final já está muito próxima...
O assunto não cabe, evidentemente, dentro de um capítulo; ocuparia todas as páginas
de um livro. Fechemos as nossas considerações com o pensamento de Swami
Vivekananda:

“O Senhor nos diz:


— Abandona todas essas veredas e lutas. Refugia-te em Mim. Eu te levarei à outra margem; não
tenhas medo. Ouvimos estas palavras de todas as Escrituras Sagradas do mundo. A mesma voz nos ensina
a dizer: — Seja feita a Tua vontade, assim na terra, como no céu! — porque Teu é o reino, o poder e a
glória.”

A concepção comum de Deus é, necessariamente, antropomórfica, porque é humana.


Deus seria, então, o nosso Pai. Foi assim que Jesus nos ensinou a chamá-lo. Se
quisermos ser seus filhos, cumpre-nos viver no regime de fraternidade.
Um Pai infinitamente bom, se deseja reciprocidade no seu amor, o a que obriga,
imperativamente, os seus filhos é à prática do bem, ao exercício da caridade.
Deus não precisa das nossas homenagens: nós é que vivemos na dependência de
servi-lo, amando os nossos semelhantes.
Menos homenagens e mais reto proceder: qualquer pai da terra assim o prefere.
Renúncia das coisas supérfluas, tolerância, fraternidade, eis os sentimentos que devem
reinar entre irmãos, em primeiro lugar.

A mistura das águas.

Quando o Amazonas, o Rio Mar, o maior rio do mundo pelo volume de suas águas,
enfrenta, na sua foz, a massa gigantesca do oceano, depois de um percurso de 5.800
quilômetros, impõe-lhe o sabor trazido de longes terras, muitos quilômetros além de
suas barreiras. Encrespa-se nos macaréus ou nas pororocas, para se opor ao fluxo da
maré, como se as suas águas se voltassem sobre si mesmas, num recuo que se lhe faz
sentir entranhas a dentro, à grande distância. O rio empresta ao mar o colorido e a
densidade de suas águas, o conteúdo de sua fauna marinha, até que a diluição se
complete no seio do grande oceano.
Reina confusão semelhante nas hostes da cristandade: o dogmatismo se irá
amenizando em suas arestas e represálias, à proporção que intimidade maior desfaça os
equívocos, aca-

47
bando-se os irmãos em Cristo por se presentearem com os melhores frutos de suas
semeaduras.
Com suma satisfação lemos e relemos a Imitação de Cristo, provavelmente obra
mediúnica, pela sua substância e pelo anonimato em que se ocultou o seu autor. Foi a
mediunidade de algum frade que captou quase tudo aquilo e envergonhou-se de lhe pôr
na face o seu nome humilde. Na vida de Santa Teresa aprendemos coisas notáveis a
respeito da luta de que todos nós participamos. A Agenda Cristã, se fora divulgada, sem
o nome de seu autor — André Luis — um médico que falou pela pena de um
psicógrafo, seria lida e decorada pelos católicos e pelos protestantes, pois dificilmente
os nossos irmãos encontrariam, em máximas curtas e sublimes, a essência do pelo que
Cristo veio e morreu.
A mistura das águas é bem visível na confusão reinante ao redor da literatura de
Constâncio Vigil.
O imortal pensador e espiritualista uruguaio é autor de obras numerosas, entre as
quais El Erial, traduzida para o português (Terra Virgem), o castelhano, o italiano, o
inglês, o francês, o alemão e o japonês.
Dele disse Gabriela Mistral: “Este homem tem a mais alta missão entre as que têm
sido dadas aos homens.”
Outra obra notabilíssima de Vigil — Reflexões Cristãs — obteve, entre nós o Nihil
obstat dos censores eclesiásticos. Não é propriamente espírita, mas essencialmente
espiritualista, de um espiritualismo comum a todos os cristãos. Não se lhe percebe quase
nada dos sestros espiritistas; apenas o escritor se trai uma vez, quando discorre da união
e da paz da família:

“Feliz o homem que, ao lado de uma mulher dessa tempera, compartilha com ela as alegrias e as penas
do mundo e, com ela pela mão, vai até Deus. Tal homem — em cada jornada — avançará três vezes mais
do que os outros no caminho da redenção.”

Que jornadas serão estas? Na linguagem espírita, equivalem a reincarnações...


Provavelmente estaremos, como se diz no vulgar, puxando a brasa para nossa sardinha.
Vamos, então, ao seu livro mais célebre, que já circunvagou a terra — El Erial, e
respiguemos aí alguns pensamentos:

“Indagar dos sentidos se existe vida de além-túmulo é o mesmo que mergulhar as mãos num lago para
apanhar a estrela refletida em suas águas.”

Pensamento polivalente, que serve a todas as espiritualidades...

48
“Quem anda muito depressa terá de repetir a mesma coisa muitas vezes. Só se pode executar um certo
número de coisas de cada vez. Em muitas existências, que foram cortadas, o que se suprimiu foi a
repetição.”

Aqui já começa a transparecer qualquer coisa de anormal... Não prolonguemos a


expectativa, que esta guerra de nervos pode causar danos:

“Não olhes para trás e não te detenhas ante os que voltam. Bem sabes que, do invisível, acompanham-
te os que morrem e — que vivem. Bem sabes que o solo é formado do que viveu e agora é pó.”
“Tal o pombo que foi solto para que volte ao pombal, volta à terra o espírito do homem.
Tal o pombo que se eleva ao espaço e, em sucessivos círculos, voa, assim também — em sucessivas
vidas e desejos — voa o espírito do homem.
Tal o pombo que, finalmente, se orienta em direção ao pombal, assim também a alma humana se
orienta em direção à Grande
“Esta vida, meu filho, não é o princípio nem o fim: — é uma parte da vida, único trecho, agora visível,
do caminho.”
“Os mistérios da morte são iguais aos de uma casa iluminada, quando se apaga a luz. O invisível
subsiste. Desaparecemos, aparentemente.”
“Os mortos são os que mais realmente estão ao nosso lado Eles nos entendem, acompanham-nos em
nossos desejos e, cada noite, velam o nosso sono.”

A catolicidade agradou-se das expressões de Vigil que, se dispensa, como os


espíritas de verdade, as manifestações espalhafatosas, provocadas por ignorantes ou
curiosos, e que somente se justificam dentro de finalidades científicas, perfilhou a
doutrina da sobrevivência e da reinearnação tal como o Espiritismo cristão a
compreende e a defende.
Um dia seremos todos um lago tranqüilo e azul, em cujas águas serenas e límpidas se
refletirá a soberana beleza dos céus de Deus.

Eu sou religioso, mas...

Quando alguns dos nossos irmãos de outras seitas cristãs iniciam, espontaneamente,
a narrativa de coisas supranormais que lhes aconteceram a eles mesmos, aos pais, aos
filhos, a qualquer membro da família, engrossam a voz batem a mão direita contra o
peito e advertem, sérios e olhos conpungidos: “Eu sou religioso, mas...”. Eis a semente
da intriga, que

49
apresenta o Espiritismo como obra satânica, destruidora, imoral, cuja finalidade é
arrancar do coração humano as suas “crenças”. Cuidado, amigo, ação muito feia e
pecaminosa é essa. Nosso Senhor castiga tais pecados com o Inferno Eterno!
Temos, também, o nosso Deus, um pouquinho diferente, mas temos; amamos a Jesus
de todo o nosso coração, prezamos a sua palavra, sobretudo veneramos a sua vida e os
seus exemplos. Os santos, canonizados ou não, temo-los como criaturas iluminadas —
partículas maiores do espírito divino — que protegerão, indiferentemente, ainda que
nada lhos peçam, todos os necessitados em trânsito pela penitenciária do mundo. São
advogados da liberdade condicional para todos nós. Vemos nas suas figuras aureoladas,
não os frutos do romanismo, simples arquitetura terrena, mas da árvore da caridade
cristã que uma vez desabrochou na flor humana mais linda que o céu protegeu com a
sua bênção — o pobrezinho de Assis — apresentado oficialmente como modelo que
ninguém segue, para confirmação do dito sarcástico de Feuerbach quando ironizou —
“na prática, todos os homens são ateus.”
Queremos respirar um pouco, se no-lo permitirem, à sombra dos Evangelhos, mas
escolhendo, apenas — é um direito da consciência humana — as árvores de nossa
predileção. Se a nossa companhia vos molesta, tende paciência, a viagem dura poucos
anos, cova igual espera os nossos ossos, ao término da caminhada. Na realidade, já
estamos todos mortos! Pensai assim, e a fraternidade, pela qual Cristo agonizou na cruz,
reinará no mundo para sempre.

O ponto central da questão.

Os MISTÉRIOS, na opinião insuspeita do seu autor, que depois de algumas dezenas


de anos de “leituras” se julgou apto e na obrigação de expender “a própria experiência
dentro da questão”, começa na página 6 por ser um livro “medíocre, ingênuo, humano
(concordamos com os dois primeiros adjetivos), na mais vasta acepção (vasta e restrita)
desses termos, para se transfigurar, na página 609, a última, num “roteiro” salvador,
capaz de dar rumo diferente, tanto em relação “às ocupações” de um homem, quanto ao
“panorama que o mundo se lhe apresenta”.
Sempre incapaz de resistir aos convites insistentes da prestidigitação, pela qual
possui “tendências instintivas”,

50
resume todo o assunto de que se tem ocupado a metapsíquica numa cena funambulesca
de ilusionismo teatral, na qual um elefante voasse ou uma vaca pusesse um ovo de
galinha. Temos que acompanhar a rês tresmalhada, metendo-nos, com o nosso cavalo,
nos espinheiros cerrados, como os vaqueiros de Euclides da Cunha.
Comecemos pelo elefante. Que ele possa voar, no sentido de criar asas, concordamos
com a impossibilidade. Ninguém sustentou jamais que o espiritualismo equivale à
subversão das leis naturais. Ao contrário, o que se propugna é que, dentro delas, há
fenômenos inabituais, há fatos comprovados, que precisam de explicação, explicação
que a ciência materialista não pode dar, porque ou considera o espírito uma força
sobrenatural, ou o nega. Erradamente. Mas a possibilidade de um elefante ser elevado
ao ar, apesar de todo o seu peso, ficou demonstrada pelos fenômenos da levitação. É
pura questão de acúmulo de forças fluídicas em determinadas condições.
Sabe Silva Mello quem nos atesta a possibilidade do fenômeno? Não é o Mirabelli,
de quem tanto se riu, mas não se rirá em último lugar: é Lombroso, em companhia de
Bianchi, Tamburini, Vizioli, Ascensi... Todos estes senhores presenciaram a maravilha
da levitação conjunta do médium (Eusápia Paladino) e da mesa. Quem fala é Lombroso,
em pessoa:

“O médium, que se achava sentado a uma das cabeceiras da mesa, foi levantado com a sua
cadeira e colocado, a resmungar, sobre a própria mesa, conservando-se suas mãos seguras pelos
que lhe estavam aos lados.” (Vide Fenomeni Ipnotici e Spiritici, Torino 1909).

Admitindo-se que Lombroso e os seus companheiros fossem todos ingênuos e


idiotas, seriam também cegos? A máquina fotográfica que registrou a levitação da mesa
estaria alucinada? Diante da negação de tais fatos, só a crítica severa de Faraday: “os
animais tirariam conclusões mais lógicas...”
E, a propósito de elefante, há outra observação de Lombroso, assim relatada:

“Quando terminada a sessão, estávamos para retirar-nos, acesa já de novo a luz, viu-se um grande
armário colocado no fundo do quarto, mais ou menos a dois metros de nós, deslocar-se lentamente em
direção ao lugar onde estávamos. Parecia um grande paquiderme, caminhando a passos lentos para nos
atacar e como que empurrado por alguém.”

51
Para que foi Silva Mello se lembrar de elefante? Por que razão não requereu um
piano, que lhe poderia servir perfeitamente? Provavelmente foi porque o seu riquíssima
subconsciente lhe havia contado que o médium Home já executara tal
“impossibilidade”.
Passemos, agora, ao ovo posto pela vaca. Seria, realmente, para desconcertar uma
criatura, para enlouquecer. Há, porém, outra impossibilidade dentro das coisas possíveis
e não menos surpreendente. Por que motivo o diagnosticador de profissão que é Silva
Mello não é capaz de diagnosticar à distância, na só presença do nome e da residência
do doente, quando um médium semianalfabeto o faz, em alguns minutos? Quem viu
esta outra maravilha, aparentemente contraria à ordem natural das coisas? Foi Silva
Mello, na página 27, linhas 27-29, capítulo I, dos MISTÉRIOS:

“O poder de determinados médiuns era por vezes tão prodigioso que bastavam essas simples
informações (nome e residência) para que pudessem diagnosticar moléstias mesmo à distância, em
qualquer doente.”

Aqui, dentro desses fatos mediúnicos que Silva Mello abona com a sua autoridade de
médico é que “se encontra o ponto central da questão, do qual não podemos fugir.” Não.
confundamos prestidigitação, meu caro colega, com fatos verdadeiros e reais aos quais a
metapsíquica já concedeu o seu Nihil obstat ou o seu Imprimatur.
Silva Mello, o retardatário, o anacrônico, o descobridor atual da pólvora, da América
e do Brasil, enche-se de saúde para ostentar a sua maior invenção — a fraude — que
William Crookes conhecia muito melhor do que ele, que Geley definiu muito bem nas
suas duas modalidades — consciente e inconsciente — e sobre a qual um
experimentador (Schrenck-Notzing), lá da Alemanha, cujo leite Silva Mello mamou
durante 10 anos, escreveu até um livro muito instrutivo, onde o assunto ficou
definitivamente esclarecido — “A fraude do médium L. Laszlo”.

As obras de Richet.

Richet não viveu os seus 85 anos (1850-1935), à maneira de alguns sábios que
exercitam as suas atividades-prodigiosas dentro de um campo limitado do saber
humano, interessando-se, com mão diurna e noturna, pelos fenômenos

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que se lhes venham pela frente, como animais de tiro atrelados aos varais de um veículo
e escravizados pelos antolhos.
Duas vezes obteve o prêmio Nobel: em 1901, o de Literatura, em colaboração com
Sully Prudhome (Le problème des causes finales); em 1913, o de Fisiologia e de
Medicina, com L’anaphylaxie.
Deixou traços inapagáveis na Fisiologia, na Terapêutica e na Patologia Geral. Foi
médico, filósofo, psicólogo, sociólogo, historiador, dramaturgo, poeta (La gloire de
Pasteur, 1923, prêmio da Academia Francesa).
Prefaciou, esclarecida e serenamente, as obras espíritas de Ochorowicz, Myers,
Lombroso, Schrenck-Notzing.
Afora a colaboração assídua nos Annates des Sciences Psychiques, no Journal de
Physiologie et de Pathologic Generate, na Revue Scientifique, na Revue Philosophique,
em Les Maítres de la Science, escreveu as seguintes obras, que apresentamos em
conjunto e por ordem cronológica, no lapso de 60 anos:

Poésies (sob o pseudônimo de Charles Epheyre, 1875; Recherches expérimentales et cliniques sur la
sensibilité (1877); Les poisons de l’intélligence (1877); Structure des circonvolutions cérébrales (1878);
Suc gastrique chez l’homme et chez les animaux (1878); Physiologie des muscles et des nerfs (1882);
L’homme et 1’intélligence (1884); Essai de Psychologic Générale (1887); La Physiologie et la Medicine
(1888); La chaleur animate (1889); Cours de Physiologie (1890); Possession (1890); Soeur de Marthe
(1892); La recherche du bonheur (1895); Conscience de l’homme (1895); La douleur des autres (1898);
Les guerres et la paix. Étude par l’arbitrage international (1899); Les problèmes des causes finales
(1901); Pour les grands et les petits (1902); La pax et la guerre (1905); Le passe de la guerre et l’avenir
de la paix (1907); L’anaphylaxie (1911); La selection humaine (1919); Ce que toute femme doit savoir
(1920), Histoire générale (1921); L’homme stupide (1921); Traité de Physiologie médico-cirurgicale
(1912); Traité de Metapsychique (1912); Le savant (1923); L’homme impuissant (1927); Notre sixième
sens (1928); Les coupables (1928); L’âqe d’or et l’âge de lor (1930); L’avenir et la prémonition (1931);
La Grande Espérance (1933); Souvenirs d’un physiologiste (1933); Au seul du mystère (1934); Au
secours! (1936).

Seria possível qualquer mudança para melhor nas crenças de Silva Mello, nesta
encarnação em que nos encontramos? Richet, o grande e incomparável Richet, apesar de
tudo, duvidava... Silva Mello é um bloco, é um monolito de certeza ateística. Ele não
poderá evoluir, ainda que o queira. Não desanimemos, porém.

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Ao cabo de algumas décadas de estudos, de experimentações e de polemicas, Richet
acabou aceitando a sobrevivência, conforme nos comunicou o seu amigo e adversário
Bozzano!

“É para mim profundamente animador saber que, finalmente, venci, porque Richet morreu
convencido da verdade da sobrevivência.”

Compadece-te. . .

O nosso irmão Silva Mello é um sofredor, apesar de ter realizado na idade adulta o
ideal da adolescência, uma das raras felicidades da vida. Dificilmente encontrará,
porém, quem lhe queira vestir a pele.
André Luis, O médico do espaço e não do Hospital das Clínicas, que tantas obras
notabilíssimas nos enviou já, através da mediunidade de Chico Xavier, aconselha-nos,
no Compadece-te, a piedade para todos os nossos companheiros de jornada e nos dá as
razões da necessidade dela. Alguns exemplos:

“Compadece-te do juiz — ele pode enganar-se.


Compadece-te do servo — ele padece, aprendendo a obedecer.
Compadece-te do velho — ele começa a sentir os golpes da verdade.
Compadece-te do jovem — ele é susceptível de mergulhar-se nos abismos da ilusão.
Compadece-te do desanimado — ele congela as oportunidades de esperança e serviço.
Compadece-te do rico — ele partirá da terra sem o próprio corpo.”

Todas as criaturas, resume ele, diante da Grandeza Divina e perante a Glória


Espiritual que nos cabe atingir, apresenta, em caracteres invisíveis, mas infinitamente
vivos, no próprio peito, o apelo individual de todos os tempos: — Ajuda-me!
Compreende-me! Compadece-te de mim!
Peçamos a Jesus que nos envie, por intermédio de algum mensageiro da Verdade,
num raio de luz divina, a paz para o espírito torturado de Silva Mello, a paz “que é a
única felicidade possível no mundo”, na expressão feliz de Constâncio Vigil.
Já no-lo ensinou a expressão humana mais perfeita da doutrina de Cristo — S.
Francisco de Assis:

“Deixai que a paz comece nas pequenas coisas de vossas próprias vidas e a paz será levada a todos,
uma grande paz para o mundo inteiro, e o mundo inteiro tornar-se-á a casa do Pai.”

54
CAPÍTULO PRIMEIRO

SUMÁRIO

Silva Mello e os seus panegiristas. Deus, a


ciência e as religiões. O ateísmo infuso de
Silva Mello. Experiência in anima vili. Sua
biopsicologia. Um fã digno do humor de
Monteiro Lobato. Conseqüências de sua
biopsicologia. Uma purgação fenomenal e...
inútil. A mediunidade de Silva Mello. A
soberania dos instintos. A ingratidão para
com os mestres... Ainda a mediunidade de
Silva Mello. Os críticos e a literatura de
Silva Mello. Inimigo acérrimo da
espiritualidade.

“Celui qui proclame l’existence de l’infini, et persone ne peut y échapper, accumule


dans cette affirmation plus de surnaturel qu’il n’y en a dans tous les miracles de toutes
religions; car la notion de l’infini a ce double caractère de s’imperer et d’être
incompréensible. Quand cette notion s’empare de l’entendement, il n’y a qu’a se
prosterner.”
PASTEUR.

“Diante de Deus, todos somos, por igual, sábios e patetas”.


EINSTEIN

“Por derradeiro, amigos de minha alma, por derradeiro a última, a melhor lição de
minha experiência. De quanto no mundo tenho visto, o resumo se abrange nestas
palavras: Não há Justiça onde não haja Deus.”
RUI BARBOSA.

“Pelos 10 anos de idade, atravessei uma fase de intensa religiosidade, já estando,


porém, aos quinze anos ou dezesseis, impregnado de uma convicção ateística tão
profunda e absoluta, que não deixou mais lugar para qualquer dúvida ou vacilação.”
SILVA MELLO.

“Confesso, humildemente, que tive sempre, tão longe quanto possa pensar, tremendo
medo de fantasmas e assombrações.”
SILVA MELLO.

55
CAPÍTULO I

Silva Mello e os seus panegiristas

O nosso colega e conterrâneo Silva Mello, depois de bons trinta anos de medicina
prática, houve por bem escrever algumas obras à moda germânica, isto é, minuciosas,
extensas, profundas, recheadas de notícias científicas de várias províncias do
conhecimento humano, de cujas leituras saímos sempre mais eruditos, embora um tanto
cansados. Quem o disse foi um crítico da literatura médica que lhe é muito afim nos
sentimentos, nos ideais, na maneira de encarar os problemas da espiritualidade, ao lhe
comentar1 e elogiar o segundo livro publicado — Alimentação, Instinto e Cultura, Rio,
1942. Vamos ouvi-lo:

“Tem, porém, os pequenos defeitos dos livros dos mestres da língua alemã: para ser exaustivo, o autor
foi obrigado a repetições, às vezes desnecessárias, que tornam o livro demasiado extenso e, às vezes, de
leitura demorada e monótona.” (Leonídio Ribeiro).

A restrição, dada a boa-vontade de quem a emitiu, deve ser insuspeita e justa. Vale a
pena ler, não como obras literárias, mas como tratados de ciência, tudo quanto escreve o
médico patrício, cuja chegada ao Rio de Janeiro, depois de dez anos de Berlim, dois
anos de Suíça, um naufrágio na guerra de 1914, com a perda total da biblioteca, material
de pesquisa e laboratório, milhares de preparados microscópicos, manuscritos, etc.,
revolucionou a medicina indígena.
Instalou consultório como não se usava nos tempos dos biombos, ocupando um andar
inteiro, por cujas salas acamparam Raios X, laboratório de análises, etc. Ganhou a
vitória espetacularmente. No tempo do dói, não dói, tome o remédio às refeições,
executou plano de suma simplicidade — examinou os seus clientes, alcançou o
diagnóstico de suas mazelas, curou-os, se possível. Distribuiu quinau aos mestres,
fazendo-se pagar exabundantissimamente Non nova, sed nove. Granjeou fama e
pecúnia. Hoje é um vitorioso, tanto na medicina como na vida social. É célebre e é
rico... Parabéns.

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Um panegirista seu, que “não acredita em almas do outro mundo nem em
manigâncias” (Leo Vaz), exultou com as 609 páginas de MISTÉRIOS E
REALIDADES, admirou-se de que haja, na extensa bibliografia citada “conclusões
diametralmente opostas às dos crentes”, como se a unanimidade neste mundo não
existisse senão em tomo da certeza da morte, mas não inferiu nem deduziu da leitura se
o autor é ou não seu correligionário no ateísmo:

“Em sua obra, por tantos títulos notável e valiosa, mantém o Prof. Silva Mello uma atitude tão discreta
acerca de suas próprias crenças, que não há por onde se lobrigue a menor fila do credo a que porventura
pertença.”

E pede-lhe notícias de Deus, do diabo, dos santos, dos profetas, das virgens, dos
mártires, do Inferno, do Nirvana, do destino do “bicho-homem”, etc. Deseja-o “menos
radical” nas conclusões! Solicita pitada de ironia ou de dúvida, como tempero. Excita-se
um pouco com o cheiro do sangue, como as feras dos circos romanos; acoroçoa o
carbonário dos MISTÉRIOS a estraçalhar o resto, excluída tamanha frieza tudesca,
usando a graciosidade de Renan ou de Anatole, para lhe satisfazer o apetite despertado.
Se houvesse lido as obras anteriores de Silva Mello, em cujas últimas páginas já se
profetizava o aparecimento do “carrasco de fantasmas” (Menotti Del Picchia), não teria
feito o pedido para a explicação de outras questões de igual transcendência.
Vamos contentar o ateu alvoroçado, dando-lhe notícias seguras das idéias filosóficas
com o auxílio das quais o nosso colega tracejou o seu modus vivendi neste “pífio
planeta”, antes de opor algumas objeções aos seus MISTÉRIOS.

Deus, a ciência e as religiões

Ao contrário de Copérnico, que reduziu o nosso planeta à sua insignificância atual,


desfazendo o multimilenar geocentrismo, sem prescindir jamais de Deus; ao contrário
de Darwin, que animalizou o homem, acabando com o antropomorfismo, sem perder a
fé religiosa; ao contrário de Pasteur, que criou a medicina moderna sem deixar de
prosternar-se diante do Infinito, equivalente, para ele, à idéia de Deus, diante da qual “il
n’y a qu’a se prosterner”; ao contrário de Einstein, o Newton do século XX, para quem,
“diante de Deus,

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todos somos por igual, sábios e patetas”, o nosso ilustre biografado não conseguiu
senhorear-se da biologia, da fisiologia e da genética sem se impregnar de materialismo e
de ateísmo.
Sempre houve e haverá perfeita compatibilidade entre a boa ciência e o sentimento
religioso. Recentemente, no seu livro “Human Destiny”, Lecomte de Noüy, eminente
biólogo mundialmente conhecido provou que a matemática, a física, a química e a
biologia não adversam a espiritualidade nem implicam na exclusão da idéia de Deus,
idéia inimaginável, semelhante à de um eletrônio, que ainda ninguém viu. Idéia
aproximada de Deus, como o concebeu Einstein, cujos trabalhos possibilitaram a
libertação da energia atômica; sua teoria da relatividade também assenta sobre
postulados indemonstráveis.

“Não posso conceber um Deus, diz Einstein, que recompensa e pune as suas criaturas, ou que se deixe
levar por desejos do tipo dos que nos arrastam a nós outros. Não posso imaginar um Deus cujos fins e
propósitos são modelados segundo nós mesmos — um Deus, em resumo, que não passa de um reflexo da
fraqueza humana.”

A igualdade entre as criaturas, a tolerância mútua entre religiões, ele as compreende


e define do seguinte modo:

“Vivemos todos submetidos ao beneplácito de Deus e possuímos quase as mesmas capacidades


espirituais. Judeus ou arianos, livres ou escravos, todos somos criaturas de Deus. Se não aceitamos as
suas crenças, ou eles não seguem as nossas, num sentido mais estrito e minucioso, não há razão que nos
iniba de lutar juntos para a felicidade comum de todas as vidas: servir o próximo e a Humanidade.”

Eis outra expressão feliz do maior sábio da atualidade:

“A religião real paira acima de dogmas mesquinhos, de catecismos, de orações


solenes e antagonismos. A verdadeira religião é a vida real— vida com todas as veras da
alma, com toda a nossa bondade e integridade.”

A necessidade da vida real, com toda a nossa bondade e integridade, sem adiamento
para o futuro dos nossos problemas morais e espirituais, com que burlamos os preceitos
estabelecidos pelas religiões, sob as quais nos recenseamos, constitui uma das mais
originais pregações de Krishnamurti. Diz ele:

58
“Sabeis que alguns modernos cientistas estão dizendo que existe uma vida futura. Dizem eles que, por
meio de médiuns podemos descobrir por nós próprios, que existe uma vida após a morte. Muito bem,
tomemos isto como decidido, que ela existe. Que acontece se houver uma vida futura? Não sois por isso
mais felizes, nem mais humanos, nem mais refletidos e afetuosos. Estais onde estivestes antes. Tudo o
que aprendestes é um outro fato — que existe uma vida depois desta. Pode ser um consolo; porém, que é
que resulta disso? Dizeis: “Isto me dá a certeza de que viverei na próxima vida”. Então, que resulta daí?
Mesmo que isso vos dê a certeza de que vivereis, tendes, precisamente, o mesmo problema, os mesmos
aborrecimentos, as mesmas alegrias e prazeres transitórios, embora exista uma outra vida. Ao passo que,
para mim, embora ela possa ser um fato, isto é de pequena importância. A imortalidade, a eternidade, o
que quer que lhe querais chamar está agora no presente; e o presente só a podereis compreender,
quando a mente estiver liberta do tempo.”

E mais adiante pergunta:

“Não é, na realidade, mais importante saber como viver, do que verificar o que acontece quando
morreis?”

Jesus Cristo não nos recomendou senão a prática do bem, desde o nascimento até a
morte, como condição da futura felicidade. Não criou religiões, nem filosofias. Aquilo
em que o indivíduo crê não o salva, se não vê no seu semelhante, a imagem perfeita de
si mesmo. Esta é a lei soberana da espiritualidade que soluciona, já no presente, todos os
nossos problemas futuros. É o que nos aconselha Einstein e Krishnamurti, dois grandes
espíritos irmanados por concepção igual da verdadeira religiosidade.
O livro de Lecomte de Noüy, cujo nome já sabíamos associado aos trabalhos de
Carrel sobre a cultura permanente de tecidos vivos, a estas horas já devia estar traduzido
em todas as línguas e posto nas mãos da mocidade de todos os continentes, a fim de
preservá-la dos descaminhos e dos extremismos.
Dele disse Robert A. Millikan, prêmio Nobel de Física, presidente do Conselho
Executivo do Instituto Politécnico da California: “é dum alcance e duma penetração tão
fundamentais, que não é fácil aparecer mais de um ou dois como ele no transcurso de
um século.”
Das suas páginas se desprende o magnetismo das grandes idéias, dos alevantados
ideais a que nos leva a ciência, quando irmanada com a espiritualidade.

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A doutrina dos espíritos tem-no como mensagem eloqüente que o alto inspirou a um
terrícola para estímulo e edificação da grande massa dos amorfos, dos conformados, dos
“adaptantes”, dos quais jamais saiu um santo ou um herói.
Há perfeita concordância entre os ensinos dos espíritos, iniciados há cem anos, e as
conclusões finais da ciência moderna, citadas por Lecomte: a vida começou sob formas
extremamente simples; pela evolução foram surgindo formas de crescente
complexidade; o resultado deste processo cuja realização durou muitas eras foi o
homem, com o seu cérebro; o aparecimento do pensamento abstrato equivaleu a
substituição do instinto pelo intelecto; o crescimento espontâneo e paralelo das idéias
morais e espirituais foi concomitante em pontos afastados do mundo.
A evolução física de homem já terminou; a evolução moral e espiritual, que apenas
se inicia, prova que há um ímã, o Supremo Bem, que nos atrai para cima, contrariando a
lei finalista da gravidade, à qual obedecem somente as neves fundentes dos cimos das
montanhas, na sua descida para o mar.
A consciência moral, quer o queiram ou não os biopsicólogos materialistas, colocou
o homem, definitivamente, acima dos outros animais e acima dos instintos, contra os
quais luta denodadamente, vencendo sempre e cada vez mais. A finalidade do livre
arbítrio, não absoluto, senão condicionado, não é a satisfação dos instintos animais, cuja
energia vulcânica deve ser antes coibida e ordenada do que estimulada, e levará o
homem à conquista segura da dignidade, da imortalidade e de Deus.
A evolução é a lei soberana, onipresente na terra e na erraticidade — um como
pensamento de Deus que se vai materializando pouco a pouco através das eras, sem
começo e sem fim, como a curva plana e fechada de uma circunferência. Os rudimentos
dos nossos cinco sentidos, mesmo reforçados e multiplicados pelos instrumentos
técnicos são impotentes para tomarem conhecimento das forcas misteriosas que povoam
o mundo. Os nossos problemas políticos, sociais e morais não pedem uma solução
animal, pela qual se bate Silva Mello, nas 1.645 páginas cerradas de três grossos
volumes, descansadas nas palmas de muitos críticos que não as leram ainda, e que não
estão, positivamente, como devia ser o primeiro e mais instante dos deveres da
inteligência e da cul-

60
tura, colaborando com Deus para acelerar a evolução no planeta.
Em suma, Deus doou uma pequenina centelha de sua Força à sua criatura mais
perfeita - o homem, a fim de que, livremente, ela evoluísse para uma personalidade
integral, da mesma substância divina.
Esta é, mais ou menos, a filosofia do maravilhoso livro de Lecomte de Noüy, a quem
a doutrina espírita, devido à identidade absoluta de idéias, delega todos os poderes para
defendê-la perante as academias.
Depois de Newton, de Descartes, de Kepler, de Leibnitz, de Pascal, nada ocorreu nos
domínios da ciência que eliminasse a idéia de Deus. Ao contrário, Kant, “William
James, Bergson e outros, libertaram a filosofia do dogmatismo materialista,
reverenciando o Criador e a Criação.
Para J. S. Haldane, o cientismo absolutista e cego é que se mudou em superstição...
Se Voltaire, o livre pensador, morreu, “adorando a Deus”, Newton não estabeleceu
conflito entre a gravitação e a sua profunda crença religiosa; Descartes associou a idéia
de Deus à supremacia universal da razão e da dúvida; Pascal somou seus princípios e as
suas leis da matemática e da física com a fé nas leis de Deus; Kepler sentiu
melhormente o poder e a sabedoria divina nas leis dos movimentos planetários; a
biologia de Leibnitz não se avrogou a pretensão de desdenhar de um Criador.
O próprio Darwin, diante da majestosa beleza de uma floresta tropical, esqueceu a
filosofia materialista para exclamar: “Nenhum homem pode permanecer aqui sem sentir
que estas matas são templos cheios de vários produtos de Deus, da natureza e que há no
homem algo mais do que o hálito de seu corpo.”
Heine resignou o seu ceticismo para confessar: “Há, afinal, uma centelha divina em
cada alma humana”.
E as razões proféticas de Lord Bacon continuam de pé: “Uma filosofia profunda
conduz as mentes humanas à religião.”
Quando um sábio, servidor ou intérprete de qualquer ciência humana, casualmente
ou ao fim de observação demorada, decifra ou descobre algo até então ignorado, ao
invés de se coroar com folhas de louro ou de se enfeitar com medalhas honoríficas, o
seu primeiro pensamento devia ser o de voltar-se para esse Deus infinito e eterno, que
desejou e permitiu a ascensão da monera, através de milênios sem con-

61
ta, à perfeição do cérebro humano, o primeiro elo entre a criatura e o Criador, elo
através de cuja consciência se estabeleceu a comunhão ou sintonizacão do mundo físico
com o mundo espiritual.
Todas as maravilhas que o sábio antevê ou descobre já existiam nos planos de
Criação. Estavam criadas. Se o tolo se gaba da argúcia própria, deve, também, recordar-
se de que o prodígio do descobrimento pressupõe a sabedoria de um Deus, que tudo
criou. É por isso que um Einstein, o maior sábio vivo da atualidade, baixa
humildemente a cabia encanecida, para exclamar: “Diante de Deus, todos somos, por
igual, sábios e,.. patetas.”
Note-se que citamos tão somente os cumes mais elevados da inteligência criadora, os
sábios que maior influência exerceram sobre a evolução do pensamento humano. Deus
se afasta cada vez mais, para o “fundo dos espaços infinitos”, mas sua presença é
sempre real na cabeça e no coração do maior número de sábios de verdade.

O ateísmo infuso de Silva Mello

Não foi, aliás, porque respirou durante dez anos a atmosfera germânica saturada de
Nietszche, o fermentador da megalomania do Kaiser e de Hitler, nem porque se deixou
contaminar pela literatura dos corifeus da matéria (Moleschott, Büchner, etc), como
todos os que passamos pela irreligiosidade, que o médico patrício se tornou
“definitivamente” descrente. Ele descreve as crises por que passou, com tamanha
naturalidade, que não nos podemos forrar à tentação de transcrever as suas próprias
palavras:

“Pelos dez anos de idade, atravessei uma fase de intensa religiosidade, já estando, porém aos quinze
ou dezesseis, impregnado de uma convicção ateística tão profunda e absoluta, que não deixou mais lugar
para qualquer dúvida ou vacilação.”

Uma “intensa religiosidade” aos dez anos não é prodígio que se admire, pois o
homem é um animal instintivamente religioso; é justificável o seu anseio desesperado
para decifrar todos os mistérios que o rodeiam, mistérios que decrescem ou se afastam
apenas à proporção que o estudo e a experiência o iluminam interiormente. Precocidade
extraordinária, porém, é um ateísmo absoluto, profundo temporão, sem dúvida ou
vacilação, num fedelho de quinze anos, deste modo enunciado:

62
“Não posso dizer como isso aconteceu, mas foi coisa muito súbita e inesperada, independente de
qualquer leitura ou troca de idéias. Foi um ato de intuição, como uma pedra caída de repente sobre a
cabeça e cujo efeito foi decisivo e definitivo.”

Eis um tipo de irreligiosidade sui generis — geração espontânea — manifestando-se


precocemente, como certos estigmas da lues congênita, ou exteriorizações patológicas
devidas à consangüinidade dos progenitores. Caiu-lhe a descrença sobre o crânio, como
lhe poderia cair um meteorito no jardim. Pura fatalidade. Com o tempo e os estudos,
tornou-se um biólogo materialista, menos evolucionista do que Darwin, mais instintivo
do que Freud, tão partidário do homem forte, “o bem animal de Spencer”, integral,
vitorioso, como Nietszche, cuja “vontade de domínio” e cuja revolta contra os «escravos
da moral”, receberam comprometedora colaboração da esquizofrenia e da paralisia
geral.
Interessa-se vivamente pelos problemas sociais, apresentando o modelo russo como
digno de imitação; grande lhe é o entusiasmo pela “organização científica da Rússia”,
que contrapõe ao “sentimento quase romântico” das democracias. Quer a realização da
cultura, o domínio da ciência, a posse dos bens materiais, esquecendo-se de que nem os
próprios animais trocam o estômago cheio pelo confisco da liberdade. Parece-lhe que “o
comunismo russo saltou todas as etapas, dando, de um golpe, satisfação a todos os
desejos e a todas as esperanças do trabalhador”. Admite, deseja e goza a felicidade, que
conquistou com o trabalho e o estudo, confiando no reinado da Justiça sem Deus, ao
contrário do que pensava e apostolava o nosso Rui Barbosa.

Experiências in anima vili.

A dolorosa experiência russa, enquanto se realizar intra-muros, não deve ser


desprezada. É um trabalho de vivissecção in enima vili muito útil para esclarecimento
da humanidade, já que esta se obstina em não obedecer ao bom comunismo existente na
palavra mansa de Jesus Cristo — o comunismo de meios. Ameaçada pelo bisturi de
Stalin, a democracia, ou melhor, os democratas parasitários sentir-se-ão mais propensos
a realizar as reformas sociais necessárias para desempêço do caminho da Evolução.
Serenamente, biologicamente, sem condescendências e sem exageros, a vontade
divina se expressa através da história, mesmo quando, em virtude do livre arbítrio doado
ao homem,

63
para torná-lo mais digno, as aparências dos negócios terrestres nos fazem pensar numa
regressão. Deus se aproveitou das tendências instintivas da Rússia para um trabalho de
experimentação em grande escala, semelhante ao que os cientistas realizam,
individualmente, cada um com as suas cobaias, nos biotérios de seus institutos. As
conclusões úteis serão aplicadas in anima nobile. Gostaríamos de nos deter neste ponto,
mas os MISTÉRIOS de Silva Mello requerem, no momento, os nossos cuidados
clínicos.
Rui Barbosa, o mestre universal da democracia, já nos forneceu o assunto para a tese
e já no-lo desenvolveu em suas linhas gerais. Eis a súmula de sua gloriosa experiência,
que alcançou em Haia a maior vitória individual da verdadeira sabedoria — a em que
concorrem, em partes iguais, a ciência e a espiritualidade:

“Por derradeiro, amigos de minha alma, por derradeiro a última, a melhor lição de minha experiência.
De quanto no mundo tenho visto, o resumo se abrange nestas palavras: Não há justiça onde não haja
Deus.”

Guardemo-nos dos extremismos irracionais, das ditaduras do homem-panacéia ou de


classes privilegiadas. A questão social resolver-se-á dentro dos princípios morais e
filosóficos contidos nas seguintes palavras do nosso Rui, ou redundará na substituição
indesejável do domínio natural das elites pela irresponsabilidade e a brutalidade do
pecus:

“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em
que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a
verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com
desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.
Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um,
na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.
Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria,
proclamada em nome dos direitos do trabalho; e. executada, não faria senão inaugurar, em vez da
supremacia do trabalho, a organização da miséria.”

Pela transcrição de alguns de seus aforismos, que pontuam aqui e acolá as páginas
maciças de seus livros, compreenderá melhormente o leitor a psicologia e a filosofia do
autor dos MISTÉRIOS.

64
Sua biopsicologia.

Dissemos que é menos evolucionista do que Darwin, porque lamenta tenha a


evolução levado o homem a alcançar a fase da palavra articulada, assim como dá a
entender que urge arrepiar caminho e voltar aos instintos. Aqui a palavra do biólogo
emparelha com as desesperações de Nietszche, quando acusa a introspecção, a
abstração, o aparecimento da consciência humana como verdadeiro cataclismo no
mundo moral.

“Foi talvez a posse da palavra articulada diz ele, que nos levou para o mau caminho, tendo criado a
abstração.”

A razão e a inteligência chegaram-nos tardiamente “quase à última hora”, para


amarquizar tudo, dando origem a um conflito muito sério. A inteligência recém-nascida
— intrusa, débil, nociva, errada, irracional — e os instintos multimilenários — sábios,
protetores, racionais — entraram em conflito “que se vai tornando cada vez mais
profundo.”
Para Silva Mello, o raciocínio e a razão redundaram em malefício tremendo para a
espécie, que desaprende, progressivamente, a comer, a procriar, a buscar a felicidade
animal, o fim precípuo da existência, sem as peias e as teias das religiões e da
metafísica, que lhe amarguram os dias e aceleram a degenerescência.
Eis uma das suas lamentações:

“Já mostramos que o homem atual vai perdendo sua acuidade ou seu interesse pelos prazeres da
vida, desde os da mesa até os do amor.”

A cada passo busca o exemplo na vida dos animais (macacos, cães, etc.), que
realizam na terra a felicidade integral, aconselhando-nos, insistente e prolixamente, a
“olhar mais para o nosso ser animal, para a escala zoológica” e a “desconfiar de nossa
inteligência, da nossa razão, do nosso raciocínio.”
Tais pensamentos são reiterados de mil maneiras, na ordem direta e na inversa,
admirativa e exclamativamente, de modo sereno ou exaltado, com aquela
superabundância de argumentos que requer muita paciência do leitor. Em suma, o
homem tenta dar marcha-à-ré à evolução inexorável, para fixar o homo sapiens na
vizinhança do chimpanzé e do oran-

65
gotango. Da vida sexual desses bichos (vide “Alimentação, Instinto e Cultura”, pág.
386) ele extrai conclusões impublicáveis nesta página, pelo realismo de que se
revestem. Aplica-as, todavia, à nossa espécie, com sencerimônia desconcertante. Dentro
dos nossos instintos, dentro das nossas tendências biológicas devemos viver a nossa
vida. Aqui vai uma síntese gloriosa:

“É sob tal exigência que tem de ser estabelecida nossa alimentação, criados nossos filhos, feita nossa
educação, executada nossa própria religião (?), sendo então possível que a felicidade assim obtida seja
mais segura, mais profunda, pelo fato de estar mais de acordo com a nossa vida animal e o ritmo da nossa
própria existência.”

Eis no que resultou o desposório entre o ateísmo de geração espontânea e o profundo


conhecimento das funções digestivas.
Menos evolucionista do que Darwin, já o dissemos linhas atrás, pois dá a entender
que a espécie humana, somática e psiquicamente deve, se não lhe for possível regredir,
estacionar, pelo menos, na etapa atual, por muito girem nos espaços infinitos os corpos
celestes, inclusive a nossa terrinha.
Obediente a Freud, a quem considera como o decifrador dos enigmas da alma
humana, através do sexo, menospreza os motivos de Steckel (maldade) e de Adler
(ânsia de poder). Não aceitou a previsão do psicanalista, excedendo-o no respeito aos
instintos, quando aquele admitiu que as forças guiadoras da reprodução e da destruição,
isto é, o instinto agressivo e o instinto sexual serão progressivamente refreados nos
milênios vindouros, perdendo a sua impulsividade em benefício do raciocínio e da
consciência.

“Podemos continuar a dizer com, razão que o intelecto humano é fraco comparado com os instintos.
Mas essa fraqueza é singular; a voz do intelecto é baixa, mas não cessa enquanto não se faz sentir.
Afinal, após inúmeros insucessos, acaba vencendo de qualquer maneira. É um dos raros pontos em que
se pode ser otimista quanto ao futuro da humanidade, mas isso, em si, já não significa pouca coisa. A
supremacia do intelecto encontra-se, sem duvida, numa região longínqua, mas provavelmente não
inacessível.”

São palavras de Freud, que desarticulam a filosofia dos instintos soberanos, de que se
agrada Silva Mello. Por isso as destrói prontamente, acusando o seu ídolo de
misticismo, substituindo a psicanálise, que falha neste particular, pela sua invenção — a
biopsicologia, que abre ao materialista

66
perspectivas sem limites. Nos comentários que faz em torno das palavras acima de
Freud, deixa transparecer uma doçura evangélica, atribuindo-as a “um sentimento muito
humano, muito compreensivo de um final de rota ou caminho», comparando-as a “uma
luzinha doce e amiga, embora fraca e vacilante”. Talvez caduquice de Freud.
Estribado no seu materialismo, ou melhor’, no seu biologismo, ou irracionalismo,
meteu-se a dar solução ao problema complexo da sexualidade, tomando por paradigma
os seres inferiores (macacos, cães, etc.) seguindo de perto a célebre escola de Bertrand
Russel e sua não menos desabusada esposa. A pretensão é a de resolver o problema da
felicidade, do amor, do congresso sexual, excluída qualquer parcela de espiritualidade
ou.qualquer respeito a Deus. Silva Mello aceita as premissas da esposa de Bertrand
Russel, logicamente deduzidas dos princípios da biopsicologia, que ambos defendem:

1) o ser humano não poderá alcançar felicidade completa, caso não consiga
contentar os impulsos do seu instinto sexual;
2) quando é o instinto que fala, que deseja, que pede e exige satisfação, então pode
ser facilmente auxiliado e contentado pelos recursos da inteligência, que se torna sua
serva dedicada, diligente, preciosa.

Quando, porém, aquela ilustríssima senhora põe a inteligência (que agora já serve
para alguma coisa), a serviço do instinto, para lhe asfaltar o caminho, o nosso
biopsicólogo patrício, diante da bestialidade do amor libérrimo, mesmo Para o
matrimônio monogâmico, o casamento de experiência de Lindsey, a solução para o
interesse mútuo entre as matronas e os adolescentes, sente o nosso colega que se lhe
revolta a sensibilidade moral e lembra que a receita deve ser devolvida aos seus autores
ou endereçada a temperamentos anormais do tipo de D. João ou de Messalina.
Silva Mello tenta resolver o problema aconselhando uma associação de animalismo e
de misticismo, isto é, do instinto e da razão, da sexualidade e do... amor. Aqui o autor se
transfigura e uma réstia de luz brilha tênuemente em suas páginas frigidíssimas. Embora
não se refira jamais ao verdadeiro amor, ao que Jesus Cristo nos ensinou e exemplificou
como condição única de felicidade neste mundo e no outro, desata-se em expressões
românticas:

67
“Quando corremos atrás do prazer é porque o amor não atravessou o nosso caminho. E somente o
amor é capaz de resolver a nossa vida e dar-nos a felicidade.”

Disse-o o poeta, quase que com as mesmas expressões:

“Amar e ser amado é neste mundo


A tarefa melhor da nossa espécie,
Tão cheia de outras que não valem nada. . .”

Se a receita da senhora Russel só pode ser aviada por Messalina e por D. João, o
elixir de Silva Mello não se encontra em qualquer1 farmácia.
Os feios, os aleijados, os doentes, os miseráveis, os viúvos, os sacerdotes virtuosos,
as beneméritas irmãs de caridade, os adolescentes e os velhos, todos, de acordo com
esta filosofia, não encontrariam jamais “solução para a sua vida”, nem entreveriam
jamais a felicidade...
Não, meu amigo, conquanto seja respeitável e abençoada por Deus as uniões em que
o sexo e o amor possibilitem a satisfação dos instintos, a procriação e o lar, fora dessas
situações felizes geme a multidão de solitários, que anseia por qualquer coisa que
somente o Cristo lhe pode dar. Para o espiritualista, a sublimação do sexo é a força que
faz os heróis e os santo*. “A razão capital de nossa existência», não se localiza em
nossas glândulas, como não se localiza no aparelho digestivo.
Eis a ameaça com que nos acena Silva Mello:
“Tenho a convicção de que uma melhor compreensão da vida humana favoreceria o
aparecimento de capacidades mais poderosas e espontâneas (tipo Hitler ou Mussolini),
mais de acordo com as nossas tendências instintivas.” Que Deus nos acuda.

Um fã digno do humor de Monteiro Lobato.

Desejou o panegirista, a que nos referimos linhas atrás, que o autor dos MISTÉRIOS
lhe dissesse algo sobre as suas próprias crenças. Parece-me que já lhe deferi o
requerimento. Mas não nos custa aduzir alguns informes mais a respeito do juízo de
Silva Mello relativamente às religiões. Tolerantemente, ele acha que “é tão natural ser
ateu, quanto ser crente convicto e praticante”. Depende de cair ou não em nosso jardim,
um meteorito, em que, aliás, não acreditava o grande Lavoisier. Mas a tolerância dura
pouco, pois ime-

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diatamente acrescenta que “ser’ religioso é manifestar complexo de superioridade.
Desejo de camaradagem com Deus ou com os santos, direito à imortalidade, ao pecado,
à imoralidade... Tudo se resgata pela confissão ou pelo arrependimento.”
Um S. Francisco de Assis, por exemplo, era um poço de presunção e de tola vaidade.
O orgulho de ombrear com Deus, de lhe falar de igual para igual foi que produziu
aquela manifestação típica do tal complexo. No ateísmo está a humildade, a
inteligência, a felicidade. Ciência, eficiência, proficiência, somente no mundo
germânico ou no mundo russo! Tudo mais é paisagem...
Misturando as tendências biológicas e instintivas com as necessidades místicas da
espécie humana, acha que a purgação ou catarse de Freud tem o seu equivalente ou o
seu sucedâneo no confessionário católico, “que pode agir como uma das melhores
terapêuticas psíquicas.” Prescrição médica... O seu critério para a escolha de uma
religião funda-se no componente artístico que a enriqueça. Isto, para uso alheio, porque
ele confia cegamente na ciência própria, na sua intuição e nos seus apurados instintos.
Indica o catolicismo por causa das pompas, das imponências, provindas, diz ele, “das
velhas religiões judaicas”. As outras seitas cristãs não prestam porque rebaixaram muito
“o elemento místico”. Não sei se devamos felicitar os nossos irmãos do catolicismo
pelos elogios incoerentes de um ateu que, sendo todo instintos, preconiza, para quem
necessitar, a religião que mais corresponda às nossas necessidades “místicas”.
Creio que o leitor já poderá fazer um juízo das crenças do Dr. Silva Mello. Espero
que o panegirista ateu se dê por contente. Se houver alguma dúvida, no transcurso
dessas páginas, poderá ser eliminada.

Conseqüências de sua biopsicologia.

Ao deísmo antropomórfico, que inventou um Criador à sua imagem e semelhança —


ingenuidade dos crentes num Deus pessoal e limitado dentro do Infinito — vigorante até
o ano de 1859, quando Darwin fixou o lugar exato do homem dentro da evolução,
cortando-lhe cerce as asas angelicais, ele contrapõe o humanismo animal, que tira até a
coroa do sapiens da cabeça do homo para pô-la sobre as orelhas dos irracionais. A moral
e a sabedoria vai buscá-las, como as

69
deliciosas fábulas de La Fontaine, na vida íntima e familiar dos bichos.
A biopsicologia de Silva Mello participa daquele caráter sintomático da liquidação
geral desse fim de século, prenhe de surpresas e de hecatombes — é simplesmente
atômica.
O positivismo comteano, que assinou a demissão de Deus e exilou a espiritualidade,
deteve-se, como bom tirano, no endeusamento da Humanidade, substituindo as imagens
inocentes dos altares cristãos pela figura simbólica e equívoca de Clotilde de Vaux: este
biopsicologismo da era atômica, que se arrogou a si mesmo a função de síndico da
massa falida de todas as filosofias e de todas as religiões, desprezou a “medida humana”
e caiu no padrão mais baixo da crise mundial de valores — síntese da ciência ateia
alemã aliada ao comunismo felicitado!- da Rússia — nivelando-se, ou melhor,
rebaixando-se à sabedoria e à moralidade dos instintos irracionais.
Nos seus MISTÉRIOS, Silva Mello desdenha as advertências da filosofia e da moral,
descle Confúcio (552 A. C.) até as lucubrações recentíssimas do Primeiro Congresso
Brasileiro de Filosofia (S. Paulo, março, 1950), quando este discreteou sobre a
“Formação da Psique Humana”. Há vinte e cinco séculos, Kung-fu-tse pronunciou as
seguintes palavras: o que diferencia os homens dos outros animais é muito pouco — e a
maior parte dos homens deita fora este pouco.”
Um filósofo dos nossos dias, bem brasileiro e bem nacional (Pontes de Miranda),
murmurou no dito Congresso: “O homem com preponderância animal nos atos ou no
pensamento, ou é um ser teratológico facilmente classificável, ou é um ser adoecido.”
Vamos terminar o perfil mental do nosso colega, que admiramos como um dos
luminares da arte médica brasileira mas cuja filosofia da vida abominamos,
apresentando uma faceta original (talvez fora melhor usar aqui o superlativo) desse ateu
dos quinze anos, ateu de convicção profunda, absoluta, fulminante, sem qualquer dúvida
ou vacilação.

Uma purgação fenomenal e... inútil.

O “carrasco de fantasmas”, conforme o apelido que lhe deu Menotti Del Picchia,
numa crônica recente da “A Gazeta”, confessa, nas páginas 401 e 402 do seu penúltimo
livro (“O Homem”, 1945) que tem medo de assombrações e de fantasmas: que não
pode dormir sozinho numa casa isolada

70
ou num quarto muito afastado de outros habitados; que já recorreu aos mais célebres
psicanalistas para se livrar da crença absurda. Tudo em vão!
Como ao leitor sensato estas afirmações podem parecer intenção de meter em
ridículo o nosso filósofo, vamos transcrever, literalmente, a sua confissão, a qual
confirma, pelo menos parcialmente, o que dele disse uma célebre vidente de Paris —
“pessoa de grande cultura intelectual, tendo crítica rápida, penetrante, muito objetiva;
que trabalhava em excesso, tendo muito interesse pela sua atividade e sendo sincera ao
extremo”.

“Confesso humildemente que tive sempre, tão longe quanto possa pensar, tremendo medo de
fantasmas, e assombrações, medo que continua a perdurar, apesar de ter deixado, há muitas dezenas de
anos, de neles acreditar. O fato é que ficou gravado definitivamente, tendo desafiado todos os esforços
da minha lógica e até o auxílio de célebres psicanalistas. Trata-se de um fantasma invisível, que não
aparece, que não faz ruído, que não tem nada de maléfico e, por isso, nem medo nem pavor deveria
causar. É noturno, só da escuridão. Deve manifestar-se por um leve sopro atrás da orelha ou da nuca,
um toque muito ligeiro, quase imperceptível, numa das faces, talvez na própria mão, sobretudo numa
perna deixada descoberta, por exemplo, ao descer do leito, no escuro. E seria só isso. Absolutamente
nada mais. Mas o medo é tão grande, tão intenso, que pode fazer arrepiar os cabelos, disparar o
coração, resultando daí uma imobilidade pétrea, pois qualquer movimento parece que será motivo para
o fantasma executar a ação que está sendo temida. Daí, a imobilidade, a falta de coragem para sair da
cama ou executar livremente, qualquer movimento. Por essa simples razão, nunca ousei nem talvez
nunca ousaria dormir sozinho numa casa isolada ou mesmo num quarto muito afastado de outros
habitados. Eis a situação em toda a sua ridícula simplicidade.”

Um depoimento em toda a sua franqueza, eloqüência e sinceridade Pois bem, foi este
materialista temeroso de assombrações, das quais não no livraram os psicanalistas, nem
a confissão pública e rasa, nem a purgação ou catarse do Freud, que acusou o espírito
luminoso de Richet e o temperamento equilibrado do grande sábio como causa da
aceitação de “coisas exdrúxulas e inacreditáveis”, depois de numerosas experiências,
rodeadas de todas as cautelas a que estava habituado o experimentador emérito, o
fisiologista arguto, o metapsiquista sem lacunas psíquicas.
Se o temperamento representa papel de capital importância “capaz de fazer
compreender muitos comportamentos

71
esdrúxulos e absurdos, particularmente por parte de homens de ciência”, que conclusão
tirar das “leituras” de um médico que, dentro do seu casarão confortável de Cosme
Velho, protegido de árvores amigas e ouvindo o cascatear das águas do fundo do
quintal, desmonta a biblioteca para tentar provar que não existe espírito, nem
espiritualismo, nem espiritualidade, nem Deus, mas que não se livrou até hoje do medo
de assombração? Merecerá fé o depoimento deste metapsiquista de gabinete, que ainda
não alcançou a maioridade espiritual? Assunto dessa magnitude, em que sábios sensatos
consumiram anos e anos de experiências, deve resolver-se pelo confronto e pela
contraposição de autores?
O desvendador dos MISTÉRIOS deixou claramente evidenciado que possui
escotomas psíquicos incomensuráveis, desde o ateísmo prematuro e subitâneo até a
fobia irredutível por fantasmas. . . que não existem. De acordo com o seu próprio
parecer, o seu temperamento não oferece garantia alguma para estudos metafísicos.
Falta-lhe isenção e. . . coragem.
Apesar da purgação heróica — o melhor significado da feitura dos MISTÉRIOS —
que o psicanalista a si mesmo se propinou, sobre-resta aquela psicologia contraditória
de um materialista que continua “sempre muito emotivo e preocupado com os
problemas do Além, muito impressionado com tudo que tem relação com a morte.”

A mediunidade de Silva Mello.

Parece-nos que a conclusão mais plausível com referência ao caso Silva Mello,
depois que nos inteiramos de suas confissões espontâneas e sinceras e as cotejamos com
as palavras que lhe dirigiram alguns videntes, embora não merecedores de muita
confiança, e que nos encontramos diante de um mediunismo larvado, frustrado ou
encruado.
Vejamos as razões em que assentamos o diagnóstico.
Conquanto nos tenha avisado com generosidade, na página 402 de “O Homem”, que
dentro em breve daria à luz conclusões desfavoráveis à doutrina espírita, depois de ter
estudado “profundamente metapsíquica e outros ramos de conhecimento a ela atinentes,
tendo lido vastíssima literatura (o que é verdade) e feito numerosas pesquisas (o que é
falso), visando trazer esclarecimentos àqueles que, como eu, se interessam por tais
problemas”, quando começamos a contar os protocolos das tais experiências,
surpreendemo-nos com a sua miséria

72
franciscana. Dos muitos médiuns, alguns nobilíssimos, uns já mortos e outros ainda
vivos e vivedouros, que enriqueceram a literatura espírita nacional de fatos
internacionalmente conhecidos, Silva Mello só se serviu do Pascoal, com quem
conversou uma vez, durante duas horas, em Belo-Horizonte, no ano de 1927. E este
mesmo lhe disse, em segredo, que era apenas um pobre morfético cuja mediunidade já
havia desaparecido.
Aqui neste país, tão cheio de charlatães e de práticas cabalísticas, para cuja repressão
pede, como nos países civilizados, entre os quais a Grande Alemanha de Hitler (que se
estreou com a extinção da “praga espírita”, para acabar-se como sabemos), a vigilância
do Código Penal, ele só se dignou de conversar com um médium que já não o era mais.
Depois, em Paris, mais algumas horas de conversas com três madames — Fraya, Detay
e Briffault. Homem tão taramela, tão exaustivo, como digno representante que é da
literatura alemã, não gastou senão oito horas nas suas pesquisas ou nas suas
experimentações.
E depois? Depois, Max Dessoir! Das quatro vezes que procurou novidades e
informações junto de videntes (conforme os qualificou), na metade se realizou a
“coincidência fortuita” de ser ele próprio descrito como portador de altas
potencialidades mediúnicas. Em quatro experiências, duas coincidências. Quem sabe se
não foi por isso que arrepiou carreira tão apressadamente?
O médium Pascoal insistiu nos seus achados, afirmando categoricamente, segundo o
depoimento do seu cliente:

“Dois espíritos de médicos ilustres influenciavam a minha atividade de clínico, facultando-me


soluções, cuja razão de ser eu próprio ignorava. Atribui-me poderosas qualidades de médium, até então
não reveladas por me ter conservado afastado desses problemas.”

Chegou mesmo, com grandes visos de verdade, a insinuar que “um espírito gaiato
inutilmente procurava influenciar-me para a dúvida e a negação.”
Madame Briffault, mistificando ou não, ficou siderada na presença do seu
consulente, atribuindo-lhe a posse de “lucidez e de vidência”.
Se confrontarmos as duas coincidências, não obstante os qualificativos que Silva
Mello deu a tais mediunidades, com o que nos contou, nas páginas de seus livros, o
próprio autor

73
dos MISTÉRIOS, as nossas desconfianças vão-se firmando progressivamente. Da
confissão que deixamos exposta linhas atrás, não saímos perfeitamente convencido de
que toda a fobia pelos fantasmas, de que ele é portador, seja “pura impressão.” Quer nos
parecer que o contato entre Silva Mello e o seu fantasma foi coisa mais realística, de
maior explicitude, foi algum toque verdadeiro, talvez na perna descoberta, porque
somente admitindo tal hipótese, poderemos compreender a incurabilidade de sua fobia.
O nosso raciocínio reluta em aceitar uma fobia gratuita, num sábio; preferimos tê-la
como justificada.
Silva Mello contou ao mundo inteiro que sofre de uma dispepsia crônica, apesar das
suas auto-análises e das suas auto-indicações de especialista afamado.
Ao lado da insônia e das cefaléias, a dispepsia (justamente a do tipo silvameliano),
rebelde aos melhores especialistas, é sinal corroborante da mediunidade, segundo os
melhores tratadistas...
Outro sintoma, quase patognomônico de mediunidade, Silva Mello no-lo revela
quando escreve sobre a subtaneidade fulminante do seu ateísmo, muito semelhante à
“súbita intuição, rápida qual relâmpago”, dentro da qual Descartes (portador de
mediunidade, para Léon Denis), concebeu a idéia da “Doute méthodique”, sistema
filosófico a que devemos a libertação do pensamento moderno.

“Descartes, diz Brierre de Boismont, ao cabo de longo repouso, era instado por invisível pessoa para
continuar as pesquisas da verdade.”

Outro médium de grandes proporções deste modo se analisa:

“Meus postulados filosóficos, conta-nos Schopenhauer, produziram-se em mim sem que eu nisso
interviesse, nos momentos em que tinha vontade, como que adormecida. . . Minha pessoa era também,
por assim dizer, estranha à obra.”

Para Léon Denis, “toda a filosofia da História se resume em duas palavras: a


comunhão do visível com o invisível, que se exprime pela alta inspiração. Os homens de
gênio, os grandes poetas, os sábios, os artistas, os inventores célebres, todos são, no
mundo, executores do plano divino, desse plano majestoso de evolução, que carrega a
alma para os pináculos da vida universal.”

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A soberania dos instintos.

Silva Mello coloca-se, como é natural, do outro lado, do lado dos instintos, e sustenta
a teoria de que os efeitos não guardam correspondência com as causas. O inseto tateia o
ambiente com as suas antenas; o cão investiga com o seu poderoso senso olfativo; o rato
“diante de uma trama de buracos, tem tal impulso para investigá-los, que chega a
afrontar repetidamente desagradáveis choques elétricos postos pelo investigador no
campo da exploração.” Não é, porém, com o raciocínio e a razão, posteriores aos
instintos, que a inteligência humana denuncia a sua presença. A inteligência atrapalha; o
instinto descobre. Quanto mais instintivo o cidadão, mais peixe.
Não podendo explicar o paradoxo, que ele muito bem assinala, das descobertas
súbitas, em contradição com as exigências da ciência materialista, que tudo atribui ao
trabalho das células cerebrais, registradoras dos reflexos condicionados, trabalho
moroso, longo, complicado, e não aceitando nenhuma origem extraterrena do que quer
que seja, concluiu que “muitas das descobertas mais geniais do homem não tem sido
feitas pelo seu trabalho de raciocínio, pela sua razão consciente, mas sim pela sua
intuição, pela sua percepção irracional”. (“Alimentação, Instinto e Cultura”, pág. 432).
Vejamos como a linguagem do sábio materialista apresenta similitudes desconcertais
com a do espiritualista Léon Denis, reforçando, ilustrando e documentando as
conclusões deste. Decota de suas funções específicas ao cérebro humano e aos reflexos
condicionados, substrato de todo o psiquismo normal, no parecer de sua biopsicologia, e
divaga, e tresvaria, e esgrime no ar. . . Sotopõe a inteligência à percepção irracional,
invertendo a ordem natural das coisas, numa fantasmagoria de devaneios indignos do
racionalismo. O vulgar, o sabido, o experimentado é produto da inteligência animal; o
inédito, o novo, o surpreendente, o que sai fora da “orbita dos fatos comuns e
conhecidos” dispensa o raciocínio e o uso das células cerebrais.
Resumindo:

“Foi assim com a descoberta do vapor, da eletricidade e agora, por último com as maravilhas do
radium, dos Raios X e da transmissão das ondas hertzianas. Tudo isso tem vindo inesperadamente, fora
de todas as previsões humanas, decorrendo de aquisições progressivas. Seguramente, pela sua
inteligência, seria o homem

75
incapaz de fantasiar uma fotografia através de um corpo opaco ou supor que sua voz, transmitida pelo
éter, pudesse ser ouvida de um a outro continente. Aliás, as próprias atividades superiores e as verdadeiras
criações geniais parecem depender principalmente de fatores inconscientes. O grande artista, o grande
matemático, o verdadeiro homem de gênio, é sempre um produto do inconsciente, quase um autômato,
que obedece e cumpre ordens, em geral até muito severas e imperativas. E, assim, muitas das mais
geniais descobertas do homem não têm sido feitas pelo seu trabalho e raciocínio, pela sua razão
consciente, mas sim pela sua intuição, pela sua percepção irracional. É o que parece ter acontecido com
Newton ao descobrir a gravidade; com Franklin, ao para-raios; com Berzelius, relativamente à catalise;
etc.”

Parece-nos que é a primeira vez que se define a intuição como percepção irracional.
Ninguém a quererá, nem lhe quererá mais: a literatura de Silva Mello a degradou. O
intuitismo, doutrina filosófica segundo a qual os princípios da moral constituem matéria
de intuição, ficará seriamente prejudicado nas suas pretensões.
Afinal de contas, para que servirá o cérebro humano? No momento em que mais
necessitamos do trabalho de suas células, sobrevém a falência, a impotência. A
percepção irracional cria e inventa, tal como um deus ex machina. O filósofo assimila,
dir-se-ia propositada, senão lamentavelmente, a solução que os animais inteligentes
procuram para as situações imprevistas, como o macaco de Koehler, que “uniu dois
pedaços de pau para alcançar o que não era possível somente com um deles”, às certezas
apriorísticas, às criações geniais que se realizam, não por intermédio do instinto ou da
inteligência, senão com a absoluta abstinência deles. Toda a sua filosofia compendia-se
neste postulado; se o homem imitasse a perspicácia murídea, se usasse puramente o
instinto, encontraria na vida o equivalente do buraco com mais rapidez e precisão do
que o rato. Ou como a sua cadelinha de estimação que, chamada por assobio reiterado,
num campo de tênis, acabou por encontrar a passagem que a levaria aos braços de seu
dono. Para conceber, filosoficamente, serve-se de Freud; para as necessidades
instintivas serve-se da sua cadelinha.

A ingratidão para com os mestres.

A doutrina dos espíritos pouco se lhe dá que os cavalos de Elberfeld (Hans,


Muhamed, Zarif, Berto, Hanschem) tenham sido, realmente, calculadores ou não,
capazes ou não,

76
conforme atestaram afirmativamente inúmeros sábios, entre os quais Haeckel, Edinger,
H. Kraemer, H. Ziegler, o Prof. Ostwald, Claparède, William Mackenzie de resolver
problemas de adição e subtração, de extrair raízes quadradas e cúbicas, etc.
Consideramo-los, apenas, como nossos parentes ainda atrasados na evolução, dignos da
nossa simpatia e da nossa generosidade, ao passo que Silva Mello os elegeu seus
mestres em tudo (filosofia, moral, religião), fê-los os melhores colaboradores da sua
biopsicologia. A inteligência surpreendente dos cavalos de Elberfeld, do cão Rolf, da
cadela Lola, dos quais Gabriel Delanne nos deu notícias minuciosas e exatas em um dos
seus livros espiritualistas, devia constituir dogma para o materialismo de Silva Mello. E
tanto assim é que foi o naturalista Haeckel quem mais calorosamente felicitou Krall,
escrevendo-lhe:

“Suas pesquisas cuidadosas e suas críticas mostram, de maneira convincente, a existência da razão no
animal o que, para mim, nunca foi motivo de dúvida.”

Seria mais fácil a Silva Mello provar que os animais acima citados,
convenientemente trabalhados e instruídos por von Osten e por Krall, seu continuador,
eram de fato inteligentíssimos, mais do que alguns bípedes implumes. Não sabemos
porque tomou a seu cargo a defesa da hipótese da fraude, que lhe deve doer mais e que
lhe é mais nociva a ele próprio do que a nós.
Devemos protestar, todavia, contra a infidelidade com que relatou os fatos,
adulterados no seu protocolo, alterando-lhes a ordem, para beneficiar a sua tese. Na sua
versão infidelíssima, o assunto morreu com o velho von Osten, oficial alemão
aposentado, com o parecer de uma Comissão científica e com as explicações de Pfungst:
os quadrúpedes reagiriam a sinais que lhes eram dados imperceptivelmente, sinais que
os assistentes mais categorizados não conseguiam surpreender, o que já denunciaria
uma grande superioridade dos prestidigitadores animais sobre a platéia de sábios.
Karl Krall, admirador e discípulo de von Osten que morreu desesperado, digamos, de
traumatismo moral, em 21 de junho de 1909, não se convenceu das explicações de
Pfungst. Tendo herdado Hans, estudou-o metodicamente e apresentou o resultado de
seus trabalhos em grosso volume, após a morte de von Osten, atraindo de novo a
atenção geral para a inteligência do cavalo. Krall provou que Hans é capaz de tra-

77
balhar em completa obscuridade, ainda quando lhe punham antolhos que o impediam de
ver os assistentes, respondendo a perguntas que lhe eram dirigidas por detrás, a quatro
metros e meio do seu corpo. Tais pormenores, de suma importância, Silva Mello os
omite, para dizer simplesmente, que “Krall procurou excluir as causas de erro,
sobretudo em relação aos sinais imperceptíveis.” De que modo excluiu as causas de
erro? Silva Mello não o explica convenientemente, deixando à imaginação do leitor a
solução do caso. Foi, no entanto, baseada na suposição da existência de sinais
convencionais; e não na impossibilidade do fato, que a célebre Comissão firmou o seu
veredicto.
Hans progrediu, acabou compreendendo a língua alemã e tornou-se capaz de
exprimir idéias por meio de um “alfabeto convencional”, batido com o casco. Krall
educou outros cavalos (Muhamed e Zarif), fê-los trabalhar na presença dos sábios acima
citados, entre os quais B. Haeckel. Maeterlinck, em seu livro “L’Hôte Inconnu”, conta-
nos que foi a Elberfeld, entrevistou Muhamed e Zarif, por meio de pequenos problemas,
dos quais ignorava a solução: as respostas foram exatas. O mesmo Maeterlinck que, na
versão de Silva Mello, compareceu logo após o relatório da comissão científica
destruidora do “limbo de glória que havia cercado o cavalo Hans”, para lamentar a sorte
de von Osten, retificou o seu juízo. Silva Mello termina a história com a citação do
parecer de Richet, para quem a objeção mais grave “que arrasta à negação” é a seguinte:

“Se a aptidão de cavalos para o cálculo fosse um fenômeno verdadeiro e não uma ilusão, poder-se-iam
criar centenas de cavalos calculadores”.

Lembremos que os matemáticos eram discípulos de um homem (von Osten ou Krall),


com aptidão, paciência e gosto para trabalhos de tal natureza. Cavalos calculadores
pedem a colaboração de educadores proficientes e especializados. Quanto a nós, não
concluímos nada. Ou melhor, concluímos que Silva Mello não soube defender os seus
mestres. . .
Afora os cavalos ensinados de Blberfeld, a percepção irracional ainda não fez jus a
condecoração alguma.
Não podendo explicar a intuição súbita que nos vem do Alto, que só pode provir de
uma Força mais lúcida e mais sábia, extraterrena e espiritual, o filósofo involui para o
estágio em que permanecem os insetos, os cães e os ratos e lá se lhe depara a gênese das
manifestações mais elevadas do

78
espírito humano. Dentro desse programa, obediente a esta hipótese de trabalho, Silva
Mello analisa, nas páginas confusionistas de suas obras, todos os fenômenos que são
objeto da ciência, da filosofia e da metapsíquica. Segui-lo-emos através do labirinto de
sua biopsicologia, mas, no momento, releva continuar a observação de seu caso clínico.

Ainda a mediunidade de Silva Mello.

Dentre as suas múltiplas confissões, destaca-se uma bastante útil ao nosso


diagnóstico:

“Muitas pessoas ao adormecer, em quarto escuro, vêem fisionomias, animais, árvores, paisagens, em
rápida fantasmagoria. É o que acontece, por exemplo, comigo próprio, havendo súbitas transformações,
sobretudo de fisionomias, de pessoas e animais que tomam formas grotescas, desproporcionadas, irreais.
Há indivíduos que não podem dormir no escuro devido à alucinação desse gênero, que não aparece,
havendo claridade.”

A alucinação desse tipo, independente de lesões cerebrais ou da ingestão de tóxicos,


é a que a metapsíquica apelida de “alucinação verídica”. O sensitivo divisa os fantasmas
com a visão interior ou perispirística, produzindo-se um fenômeno de transmissão
inversa: a imagem espiritual parte dos centros óticos e chega à retina por intermédio do
nervo correspondente, projeta-se no exterior assumindo a forma alucinatória, dando ao
sensitivo a ilusão de manifestações objetivas. E é fácil de compreender a razão pela qual
a luz perturba a vidência ainda estacionária. Na escuridão, como no silêncio, tanto as
vias óticas como as vias acústicas, através das quais, na transmissão inversa, a imagem
ou o som se exteriorizam, permanecem livres e desimpedidas para a realização do
fenômeno.
Para nós, Silva Mello é um médium inacabado. É pena que não se entre dessa
convicção, isolando-se num quarto escuro, em companhia de alguém de confiança,
protocolando, como o sabe fazer admiravelmente, todos os fenômenos que surgirem aos
seus olhos de vidente. Só a mediunidade (chame-se-lhe “dissociação dos processos
cerebrais em relação aos atos da consciência”, pouco importa), só a mediunidade
explica, satisfatoriamente, a contradição tremenda em que vive e contra a qual saíram
derrotadas a biopsicologia própria e a psicanálise alheia.
Há certamente, como já o suspeitava Richet na última carta que endereçou ao seu
amigo Ernesto Bozzano, “uma

79
Força oculta que nos guia e conduz aonde bem lhe pareça, por vias indiretas, tortuosas e
muitas vezes bizarras.”
Toda a “ciência em flor” do Braz Cubas, de Machado de Assis, salvou-se de desastre
iminente, permitindo-lhe as proezas posteriores, quando, depois de feito bacharel por
Coimbra, iniciava a viagem de volta, em demanda do porto de embarque para o Brasil,
graças à intervenção providencial de um almocreve, que se achava no lugar exato em
que a cavalgadura tentou disparar, “nem mais adiante, nem mais atrás”.
Silva Mello sobreviveu também a um naufrágio, quando a conflagração européia de
1914 o tangera para o Brasil, embora se lhe sumisse nas águas do mar do Norte a
bagagem preciosa. Uma Força o conduziu, desta vez por caminhos amplos, retos,
iluminados, à realização plena do ideal da mocidade. Fez-se notável artista da medicina.
A bizarrice e a tortuosidade das vias pelas quais lhe cumpre passar, parece que
começaram com a “A Alimentação, Instinto e Cultura”, “O Homem”, e, agora, com os
MISTÉRIOS.
Vemo-lo, nesta segunda etapa, transfigurado em instrumento de uma vontade
poderosa, que se serve muitas vezes de nós, como nós nos servimos dos objetos que nos
cercam.

Os críticos e a literatura de Silva Mello.

Até hoje, que o saibamos, as obras fundamentais de Silva Mello, a “Alimentação,


Instinto e Cultura”, “O Homem” e os “Mistérios e Realidades deste e do Outro Mundo”,
não foram examinadas atentamente, em mergulho profundo, com o alvo de se lhes
descobrir o significado filosófico.
Dificilmente se encontrará quem as tenha manuseado na totalidade de suas páginas,
não obstante a “magia do estilo claro, límpido, colorido” (Roquete Pinto), a “muita,
elegância”, apesar do volume (Roger Bastide), o “conteúdo altamente instrutivo e de
grande erudição” (Rolando Monteiro).
Houve quem o considerasse “claro, simples, humano”, pois “exprime-se como
criatura de hoje, sem a cabeleira e o gibão de Sá Miranda, dá às suas páginas um
encanto quase de romance realista.” (Agripino Griecco).
Estamos autorizado a declarar, pelo conhecimento que possuímos do autor, através
de amigos comuns, que tais lantejoulas com que o enfeitaram, embora habilmente
aproveita-

80
das para propaganda comercial dos livros, deviam tê-lo feito torcer o nariz, nariz de um
sábio tão recheado de idéias originalíssimas e de estupendas filosofias. A desatenção da
crítica inexperta para com estas devia doer-lhe muito. Pouco se lhe dá a forma literária,
pela qual o seu feitio positivo, frio, científico, realista, de homem que passou a melhor
parte de sua vida às voltas com as despoéticas funções digestivas de seus clientes, deve
ter e tem, seguramente, o maior desprezo. Ele não é dos que perdem tempo com a forma
aparente das coisas. O seu raciocínio mergulhador, capaz de descer a grandes
profundidades, fixa aos poetas e aos literatos em geral uma cotação muito baixa na
escala de sua admiração.
Não possui o genus irritabile dos homens de letras, portadores todos, para a sua
psicanálise, de “temperamento anal”. A sua espinha irritativa não são as exigências
filológicas e gramaticais, que ele despreza, mas as farinhas descorticadas, a rapadura, o
leite de cabra e a carne de bode, verdadeiras obsessões em que se lhe substancializa a
personalidade eminentemente anal das “minúcias” e das “exigências”, segundo os
dogmas da sua ciência digestiva.
O título de estilista, que lhe pespegaram, deve ser o de que menos se vanglorie. É
possível que o irrite... Se fez prosa aproveitável, foi à sua revelia, à moda de Monsieur
Jourdain... Tal como Anatole France na Academia Brasileira, quando Rui Barbosa, sem
diplomacia alguma, com aquela altivez com que se acostumara a falar aos grandes (às
vezes emudecendo-os), teceu ao glorioso autor de tantas teses sob a forma de romances,
todos impregnados da filosofia irreverente da moda e da sua época, se viu rebaixado a
um fazedor de frases bonitas e impecáveis. Rui Barbosa contestou, nas entrelinhas de
sua saudação, a filosofia de Anatole. Não litigou com ele, o que talvez lhe fosse mais
agradável, mas derramou-se — e o pior era que ele tinha autoridade bastante, mesmo
em língua estrangeira, para o fazer — em elogios às finuras literárias do prosador
francês:

“Je ne cherche pas en vous le moraliste ou le sociologue. Cest plutôt sur 1’art immortel que vous
régnez. Ce n’est pas à dire que vos speculations scientifiques jurent avec l’orde ou la morale. Tout
simplement celles-ci ne sent pas leur affaire. De la hauteur de votre oeuvre il y a des horisons sur tous les
problèmes qui intéressent intelligence humaine; et, si vous ne vous praposer pas les résoudre, ou si vos
solutions nous dépladsent, vos dénégations, vos heresies, vos reticences même sont de celles qui élèvent
le débat et sti-

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mulent la pensée. Mais, ce n’est pas lá, certes, la sphere de votre vocation. Une splendide, une radieuse
fleuraison d’art, un inéfable éponouissement de formes irréprochables, voilà ce qve c’est votre oeuvre
finement delicate.”

Eis como se depena em público um filósofo, conferindo-se-lhe um título secundário,


embora não desprezível, para o artista de verdade. É natural que para a crítica
puramente literária, a que examina o livro epidèrmicamente sem penetrar nos propósitos
do escritor, tais qualidades — clareza, simplicidade, humanidade — sejam suficientes
para a apresentação lisonjeira. Tudo está muito bem, sob o ponto de vista secundário da
indumentária, da técnica estilística, da maneira por que as idéias ou as imagens se
enfrascaram.
Houve quem lhe assinalasse nas obras os pequenos defeitos dos mestres da língua
alemã: “para ser exaustivo, o autor foi obrigado a repetições às vezes desnecessárias,
que tornam os livros demasiado extensos e, às vezes, de leitura demorada e monótona”.
(Leonídio Ribeiro). Talvez nesse “pequeno defeito” — o de provocar a exaustão do
leitor, pela repetição e monotonia, esteja implícita a explicação da incoerência de alguns
comentadores, os quais não se inteiraram devidamente da biopsicologia silvamelliana,
extraviada ou escondida na floresta virgem de sua produção lítero-científica.
Os que participam de sua maneira de encarar a vida, os que lhe são como pequenos
regatos caudatários a lhe engrossarem a corrente volumosa do materialismo, estes não
nos surpreendem com os conceitos elogiosos que derramaram, a propósito do “O
Homem”:

“Creio não errar prevendo a importância desse livro, à medida que as gerações futuras o forem lendo.
Só desejo que homens, mulheres e moços leiam esse trabalho para se convencerem do quanto estão
errados e, ao mesmo tempo, de como lhes está ao alcance das mãos o caminho da felicidade” (Anibal
Machado).

Outro tipo de panegirista é o que sacou das obras o que lhe conveio, o que lhe soube
muito bem ao paladar e, ignorando o restante delas, ou porque se detivesse diante do
vulto de suas páginas, ou porque possua o mau vezo das generalizações apressadas,
chega a pedir-lhe explicações a respeito de sua possível religiosidade!

“E c’est là son moindre défaut. Pois eu bem quisera saber o que pensa ou acredita tão agudo espírito
acerca de Deus, do diabo, dos santos, dos profetas, das virgens, dos mártires, do Nir-

82
dade, como poderia, fazê-lo, suas obras servem, muitas vezes para preparar-lhe as veredas e assegurar-lhe
o futuro”.

Realmente, fazia falta, contra nós, uma obra da corporatura dos MISTÉRIOS. Vai
haver curiosidade geral em torno da magnífica e consoladora doutrina, que se apóia na
ciência, no raciocínio lógico e no bom senso universal. O Espiritismo, no Brasil, está,
por conseguinte, de parabéns... Silva Mello dignou-se combatê-lo. Quando a Verdade
conquista um caluniador desse estofo, acobertado pela mistificação do in fide gradus, o
seu êxito está garantido.

83
CAPÍTULO SEGUNDO

SUMÁRIO

O quebra-cabeça Silva Mello. Precauções


contra as fraudes. A exatidão e o
conhecimento dos detalhes. Traduttore,
traditore. A omissão velhaca dos
pormenores. A incredulidade de Crookes. A
defesa de Crookes feita por Richet. Richet
ratifica as experiências de Crookes. A
“passagem” de Richet. Richet aceita a
sobrevivência. A idéia de Deus para
Monteiro Lobato. A convicção de Monteiro
Lobato.

“É evidente que esta teoria (a das fraudes) não pode explicar senão um número muito
pequeno de fatos observados.”
WILLIAM CROOKES.

“Se não é fraude, o que será, então?”


MAX DESSOIR.

“Devemos admitir que há certos fenômenos que, depois de atento exame, não podem
ser considerados como tal (meras imposturas e fraudes), e seria um processo arbitrário
e altamente anti-científico negar a interferência do mundo espiritual e invisível em tais
fenômenos. Dessa maneira, poderíamos tapar o caminho que nos leva à aquisição de
conhecimentos mais profundos a respeito de seres que estão ocultos à nossa vista, mas
que, na verdade, não são menos reais do que os agentes materiais e visíveis, cuja
existência e ação os nossos sentidos constantemente testificam.”
CARDEAL LÉPICIER.

“Esse homem (Crookes), de inteligência tão alta e de ciência tão vasta, que passou
sua vida a interrogar com vigor extremo os segredos mais árduos da Natureza, foi quem
submeteu a exame minucioso os fenômenos espíritas, sob a crítica severa da
experimentação moderna, assistido nessas pesquisas de dois outros físicos de valor,
William Huggins e Ed. W. Cox”.
DR. LAPPONI,
Médico dos Papas Leão XIII e Pio X.

84
CAPÍTULO II

O quebra-cabeça Silva Mello.

Nos períodos finais de nosso primeiro capítulo sobre MISTÉRIOS E REALIDADES


DESTE E DO OUTRO MUNDO, da lavra do Professor Silva Mello, intercalamos, em
transplante fidelíssimo, a confissão e a purgação, psicanaliticamente falando, com que o
autor, pessoa “sincera ao extremo”, procurou exonerar-se de um complexo que não sei
se deva classificar de superioridade ou de inferioridade. Porque ele participa de duas
naturezas. O medo de fantasma põe o nosso colega naquela situação crítica de
imobilidade, arrepio de cabelos, disparo de coração, perspectiva de um sopro atrás da
orelha, um toque no escuro, situação que ele próprio classifica de “ridícula em toda a
sua simplicidade”; por outro lado, a crença em qualquer coisa de essência metafísica
equivale, dentro da sua biopsicologia, a sintoma patognomônico de complexo de
superioridade. Baralham-se-nos os julgamentos. Esgotamo-nos na impossibilidade de
uma definição satisfatória do caso clínico.
Vemo-nos enredados em dificuldades maiores, quando ele nos obriga a associar o
medo incoercível de fantasmas a um ateísmo de geração espontânea “independente de
qualquer leitura ou troca de idéias”, que lhe caiu, “como uma pedra”, sobre a cabeça
jovem de quinze anos de idade. Então, o problema assume as proporções da quadratura
do círculo ou do moto-contínuo, problema que nenhum psicanalista, até hoje, resolveu
ou interpretou.
E este biologista sabe, melhor do que nós, com mais profundeza, extensão e
prolixidade do que qualquer um de nós, que um dos postulados fundamentais da
biologia, demonstrado pelo gênio de Pasteur, é que, nas condições telúricas atuais, não
ocorrerá jamais a possibilidade da geração espontânea, até mesmo para as formas mais
elementares da vida, a menos que se admita a teoria da panspermia, isto é, a que sugere
a interferência de poeiras cósmicas oriundas de outros

85
planetas como fatores iniciais da vida e da conseqüente evolução, subdividindo-se os
unicelulares diretamente, multiplicando-se mais tarde os pluricelulares por meio do
óvulo fecundado pelo espermatozóide, dos quais viria o ovo de que nasce a galinha e
nascemos nós. O ateísmo absoluto, conquanto possa reivindicar os seus direitos, que são
tão líquidos quanto, os das religiões orientais ou ocidentais, foi sempre uma convicção
de acesso difícil e penoso, exigindo estudo e meditação, principalmente para quem
partiu de “intensa religiosidade”:
Concluímos de tais confissões, afigura-se-nos que sensata, logicamente, não possuir
o autor dos MISTÉRIOS a maioridade espiritual necessária para penetrar as
experimentações metapsíquicas, nem o temperamento apropriado para tal ciência, como
os sábios William Crookes, Oliver Lodge, A. Russel Wallace, Charles Richet, etc. Se
não lhe falecem as qualidades de inteligência requeridas para a arte da experimentação
— espírito crítico, alguma imaginação, facilidade nas associações, senso das proporções
e das analogias, entre as qualidades de caráter faltou-lhe o “esquecimento das idéias
preconcebidas”, de acordo com os conselhos de um grande fisiologista patrício (Miguel
Osório), embora lhe sobrem a tenacidade e, sobretudo, a absoluta sinceridade.
Como se tivesse diante dos olhos aquelas páginas cerradas, ínvias, ensombradas,
onde vezes sem conto não se entremostra sequer a clareira de um parágrafo para o leitor
cansado se orientar e... respirar, como se lhe passasse pelas mãos aqueles volumes
aleijados de conclusões sofísticas, unilaterais e absurdas, que Silva Mello desova
periodicamente, o mestre Rui Barbosa nos preveniu paternalmente:

“O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se
geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, que passam, no espírito que os assimila.
Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições
digeridas”.

Na realidade, como o veremos posteriormente, o Professor Silva Mello não


experimentou nada. Leu muito. Comentou muito. Mas não assimilou, para uso próprio,
as palavras que Galileu escreveu a Kepler, palavras incorporadas nas páginas dos
MISTÉRIOS:

“Tu és o primeiro e quase o único que, mesmo sem ver, deste absoluto crédito às minhas informações.
Que dirás tu, porém, dos maiores professores do ginásio de Pádua, que não quiseram

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ver nem os planetas, nem a lua, nem o próprio telescópio que lhes procurei mostrar? Essa espécie de
gente (o grifo é nosso) acredita que a verdade não está no mundo ou na natureza, mas deve ser
procurada somente nos textos, comparativamente”.

Esta queixa de Galileu a Kepler, contra o eterno misoneísmo, aplica-se à maravilha


ao vultuoso livro de Silva Mello, a quem acusamos de ter procurado a verdade somente
nos textos, comparativamente. Em frase incisiva e sintética, com a qual concordamos
integralmente, propõe ele que, em assuntos tais, “precisamos começar pela prova e não
pela fé” (pág. 604). Somente lhe pediríamos, em nome da lógica, a seguinte adenda — e
não pela fé ou por um ateísmo semelhante ao albinismo, ao mongolismo, à hemofilia,
etc, o pior de todos os ateísmos, tão cego e tão absurdo quanto uma fé absurda e cega.

“Douter de tout ou tout croire, diz Poincaré, ce sont deux solutions également commodes, qui I’une et
I’autre nous dispensent de réflechir.”

Ao fazer a sua profissão de fé no ateísmo, aureolado com os adjetivos com que o


reforçou — precoce, profundo, absoluto, indubitável, imutável — já prefixara a
conclusão final, mesmo que o céu se dignasse de cumulá-lo das maravilhas vistas por
alguns experimentadores pacientes e perseverantes, como o foram Crookes e Oliver
Lodge na Inglaterra, Richet na Franca, Bozzano na Itália, Schreck-Notzing na
Alemanha. Nem estes, nem o próprio Allan Kardec, médico culto, pedagogo e poliglota,
dispensaram as provas de todo o gênero antes de concluírem pela realidade deste ou
daquele fenômeno supranormal, que puderam especificadamente observar.

Precauções contra as fraudes.

Quem ler as obras de Crookes e de Richet, para citarmos apenas dois dos
metapsiquistas mais conhecidos, verá que tanto o primeiro, médico dobrado de físico e
de químico, tresdobrado de astrônomo, “o mais eclético dos sábios ingleses”, assim
como o segundo, médico, fisiologista e psicólogo, professor da Universidade de Paris,
dotado de qualidades excepcionais que os seus numerosos livros nos revelam, admirar-
se-á das precauções, das exigências impostas aos médiuns, da multiplicidade de
testemunhos com que cercaram as suas expe-

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riências e com que relutância, obstinação e dificuldade atestaram, afinal, a “realidade
dos fatos.”
Os seus trabalhos de muitos e muitos anos, comparados com as excursões que Silva
Mello fez, umas duas ou três vezes, para ouvir médiuns mercenários e em decadência
confessa, completamente ignorante do determinismo que condiciona a fenomenologia
espírita, guardam entre si as mesmas colossais desproporções que se observam entre o
avião e o carro de bois, entre as misteriosas manobras atuais dos desintegradores da
energia atômica e as atividades físico-químicas de um fogueteiro de aldeia.
Silva Mello não se aproveitou da segurança, do silêncio, das garantias naturais de sua
biblioteca do Cosme Velho, onde goza o merecido prêmio de uma vida útil e laboriosa,
para realizar as suas investigações. Nos seus MISTÉRIOS descreve-nos as consultas
que o seu metapsquismo itinerante andou fazendo em Belo-Horizonte e em Paris, numa
perambulação aleatória, acidental, orientado por anúncios de jornais, propondo aos
médiuns (?) e aos videntes (?) questões ridículas (descobertas de chaves, etc.),
convencido, talvez, de que, em se tratando de sua pessoa, os espíritos dar-se-iam pressa
na revelação de suas presenças e de suas habilidades. Andou, deambulou, perambulou.
Não impôs o ambiente — medida de preliminar precaução para desmascaramento dos
prestidigitadores, não selecionou médiuns como quem seleciona aparelhos de
investigações físicas, químicas ou biológicas, não pediu a colaboração de olhos tão
sinceros, tão sagazes, tão amantes da verdade como os dele, confiando só e
exageradamente nos seus sentidos.
É o resultado disto, desse psiquismo intermitente, de conversas e consultas, que ele
quer contrapor aos monumentos erguidos por Crookes, Richet e tantos outros. Estes
dois experimentadores consagrados e consumados, embora não chegassem logo à
conclusão de que a hipótese espírita é a mais simples, a mais racional, a que abrange o
conjunto da fenomenologia supranormal, porque os entes que se manifestam de vários
modos, desde os raps até a materialização revelam personalidade, individualidade,
identidade, muito ao contrário da maçã de Newton, que caiu sem lhe dizer por que o
fazia, não titubearam, todavia, ao término de seus trabalhos, na afirmação, de que os
fatos são reais. Silva Mello não fez nada e nega tudo, através de autores.

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Com a substituição de alguns adjetivos, poderíamos insere ver o metapsiquista Silva
Mello dentro desse perfil, que Bozzano traçou de René Sudre:

“O talento de Sudre é indiscutível, mas ele nasceu sofista. Passa e torna a passar ao lado da verdade e
não a percebe; mexe e remexe em volta dela e, com cuidado, a evita; se com ela esbarra, por acaso,
afasta-a com asco. São esses os traços característicos que distinguem o “sofista de nascença” do “sofista
ocasional”.

Todos os homens de ciência, todos os pensadores têm no seu passivo sofismas e


paralogismos, mas ocasionalmente e dentro de uma justa medida; é um acidente
psicologicamente inevitável.
Mais além completa o seu pensamento:

“Para combater a hipótese espírita basta-lhe que um caso negativo qualquer lhe caia em mão e
aproveita-o imediatamente para os seus fins, sem se preocupar absolutamente dos numerosos casos
afirmativos que contradizem, neutralizam, anulam o incidente explorado com tão grande leviandade!”

Estamos em que Silva Mello não se renderá jamais à evidência dos fatos que brilham
nas obras insuspeitas e desapaixonadas de Crookes e de Richet, nem se haverá com os
dois sábios legítimos de maneira menos irreverente e estulta. Ambos, todavia,
utilizaram-se da ciência experimental e obedeceram aos preceitos estabelecidos por
Pasteur:

“Não nos devemos apressar nas conclusões; pelo contrário, cumpre-nos considerar-nos tenazes
adversários de nós mesmos, adversários que nos poderão apanhar facilmente em erro.”

Silva Mello não compreendeu que Crookes e Richet, nas suas afirmativas finais,
empenharam inteligência, experiência e caráter, tudo quanto possuíam de mais elevado
nas suas personalidades peregrinas.
Eis as teorias que Crookes enumera, sem tomar partido, para a explicação dos
fenômenos maravilhosos que teve a felicidade de ver e de provocar:

1) uma espécie de loucura ou de alucinação coletiva;


2) resultado da ação consciente ou inconsciente do cérebro;
3) associação do espírito do médium ao espírito de todas as pessoas presentes ou de uma somente;

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4) maus espíritos ou demônios que querem perder as almas dos homens e destruir o cristianismo;
5) seres semelhantes aos demônios (o que não significa que sejam necessariamente maus), da
mesma categoria dos gnomos, fadas, duendes, diabretes, anões;
6) força psíquica exclusiva do médium;
7) a teoria espiritual por excelência da intervenção dos mortos;
8) fraudes.

Crookes não se detém na análise destas teorias, não escolhe uma, não extraiu dos
fatos que registrou as ilações filosóficas que eles naturalmente contêm. Vê-se, por
conseguinte, que se achava em condições ideais de isenção para falar a respeito das
fraudes, a única teoria que ele, como experimentador e homem de ciência positiva,
precisava afastar definitivamente, para que se lhe não fugisse o respeito universal que o
cercava. Vejamos como se desobrigou desse dever imperioso. Transcrevamos na íntegra
as suas palavras, que merecem lidas e meditadas:

“Os fenômenos, são todos resultantes de fraudes, de hábeis disposições mecânicas ou de


prestidigitação; os médiuns são impostores e os assistentes são imbecis.
É evidente que esta teoria não pode explicar senão um muito pequeno número de fatos observados.
Admito de boa-vontade que, entre os médiuns, que têm aparecido diante do público, existam muitos
impostores consumados, que se aproveitam do gosto do público para as sessões espíritas, a fim de encher
a bolsa de dinheiro, ganho sem dificuldade; que haja outros que, não tendo para enganar nenhum interesse
pecuniário, sejam levados à fraude pelo único desejo, parece, de adquirir notoriedade. Achei-me em
presença de vários desses embustes: alguns eram muito engenhosos; os outros eram tão grosseiros, que
não há uma pessoa testemunha de fenômenos reaisi que se deixasse enganar.
Com um médium verdadeiro, acontece que os primeiros fenômenos, que se observam, parecem
geralmente provenientes de ligeiros movimentos da mesa, e de fracas pancadas sob os pés ou as mãos do
médium; esses efeitos, concordo, são muito fáceis de imitar pelo médium ou por qualquer pessoa sentada
à mesa. Se, como acontece algumas vezes, não se produz nada o observador céptico retira-se firmemente
convencido de que, já tendo com a sua penetração sem igual descoberto que o médium enganava, este tem
receio de praticar outras fraudes em sua presença. Escreverá, pois, aos jornais; explicará a fraude, e,
provavelmente, expandir-se-á em

90
sentimentos de comiseração à vista do triste espetáculo de pessoas que, inteligentes em aparência, se
deixam levar pelo erro que ele descobriu ao primeiro golpe de vista.
Há enorme diferença entre as sortes de um escamoteador de profissão que, auxiliado por certo número
de pessoas ocultas e de comparsas, iludem pela destreza e ligeireza de mãos, em seu próprio teatro, e os
fenômenos que se produzem em presença do Sr. Home, em plena luz, num aposento particular, que até ao
começo da sessão foi ocupado sem interrupção por mim e por meus amigos, que não somente teriam
dificultado a menor fraude, mas ainda observavam de parte tudo o que se passava.
Ainda mais: o Sr. Home foi muitas vezes examinado antes e depois das sessões, a seu próprio pedido.
Durante as manifestações mais notáveis segurava-lhe por vezes as mãos e colocava os meus pés sobre os
seus; não propus uma só vez modificar as disposições para tornar a fraude menos possível, que ele não
consentisse imediatamente, e, muitas vezes mesmo, chamou a atenção para os meios de exame que se
podiam empregar. Que se não esqueça que uma explicação, para ser admissível, deve satisfazer a todas as
condições do problema; não é lógico, pois, que uma pessoa, que talvez só tenha visto alguns fenômenos
inferiores, diga: “suponho que tudo isso é burla” ou mais: “tenho visto como essas sortes podem ser
executadas.”

A exatidão e o conhecimento dos detalhes.

Dificilmente se repetirá, no estudo e na experimentação científica, o conjunto de


oportunidades felizes que possibilitaram o testemunho de William Crookes, a respeito
da “Força-Psíquica”, nome sob cuja denominação publicou as conclusões dos seus
trabalhos, que constituem o pedestal mais sólido da filosofia e da ciência espíritas.
Sábio eclético e incrédulo, traçou, antecipadamente, um programa mínimo que
executou com o auxílio de “espiritualistas eminentes e de médiuns entre os mais dignos
de confiança da Inglaterra”, conforme seu próprio depoimento. Por meio de balanças
delicadamente equilibradas, ligadas a alavancas e com mecanismo de relojoaria,
fonautógrafos, controladores elétricos ideados e construídos por Varley, que o seu livro
reproduz em desenhos e gráficos, obteve os seguintes fatos:

1) Movimento de corpos pesados com contato, mas sem esforço mecânico;


2) Fenômenos de percussão e outros sons da mesma natureza;
3) Alteração do peso dos corpos;
4) Movimento de objetos pesados colocados a certa distância dos médiuns;

91
“Empreendi investigações sob tais condições de lugar, de pessoas, de luz, de posição e de observação
que o contato era materialmente impossível, ou, caso se verificasse, voluntária ou involuntariamente, não
poderia comprometer as experiências. Estas realizaram-se em minha própria casa: não se pode insinuar
que artifícios, previamente dispostos, poderiam auxiliar o médium.”

Suas réplicas são sempre esmagadoras:

“Em virtude de Fulano não ter visto nada digno de estudo, é impossível que qualquer outra pessoa
possa ser mais feliz. Se obedecermos a este raciocínio, a ciência progredirá muito lentamente. Quantos
exemplos sabemos de pesquisas abandonadas e depois retomadas por outro pesquisador que, mais
afortunado, graças a oportunidades que se lhe ofereceram, obteve, afinal, o êxito desejado.”

Indiferente às hipóteses do pensamento latente de William Hamilton, da ação reflexa


de Laycock, do princípio ideo-motor de Carpenter, afora a ação inconsciente do cérebro
e a ação muscular inconsciente (ninguém, que se respeitasse, lembrou a hipótese de
Silva Mello — a fraude), afirmou, corajosamente; que “as forcas que desconhecemos
seriam suficientes para criar o Universo!”
Acusado de não ter empregado os meios de controle que os homens de ciência têm o
direito de exigir, antes de dar-crédito à realidade de tais fenômenos, replica
serenamente:

“Toda a minha longa educação científica não foi senão uma lição de exatidão observadora, e desejo
que fique bem compreendido que esta firme convicção (a da realidade de certos fenômenos) é o resultado
das pesquisas mais minuciosas”.

Depois disso, a gente custa a se conter para não devolver a Faraday, a severa
admoestação: “os animais chegariam a conclusões mais lógicas.”
Perdoem-me os tradutores de Crookes a referência à omissão involuntária de três
quartas partes de sua obra, base solidíssima do Espiritismo científico. Perpetrando tão
dolorosa mutilação, transformaram-se, inconscientemente, em precursores do
historiador Silva Mello.

A omissão velhaca dos pormenores.

O bom senso mais rudimentar nos aconselha que não devemos acreditar no indivíduo
que nos conta, sem mais testemunhas idôneas, que viu, algures, um fantasma. Tal afir-

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mação rejeitam-na, igualmente, os crentes e os descrentes. Se estes, no geral, são muito
inteligentes e argutos, os crentes não são obrigatoriamente idiotas.
O biopsicólogo Silva Mello, mau grado seu, anda à espera de um fantasma, que o
traz escravizado, que se lhe vai manifestar de um momento para outro. Não acreditamos
neste, nem lhe temos medo: somos inteligentes. Mas admitimos os fantasmas, de um
modo geral, ocupados, às vezes, em funções dignas, outras vezes em funções indignas.
Aqui começa a nossa idiotice.
Durante três anos, em sessões quase diárias, as mais das vezes em sua biblioteca, em
companhia da esposa e de dois filhos, coadjuvado por cientistas incrédulos como ele,
com o auxílio de Florence Cook, mocinha de quinze anos no começo das observações,
Crookes, viu, apalpou, auscultou, conversou um fantasma, cortou-lhe pedaços do cabelo
e do vestido, ouviu diálogos entre ele e o médium.
Durante horas o fantasma brincava com os seus filhos e contava-lhes “episódios de
suas aventuras na Índia”; fotografou-o de vários ângulos, viu-o ao lado do médium,
notou-lhes a diferença na estatura, no tamanho do rosto, na cor dos cabelos, nos
pequenos sinais do rosto, nas pulsações (uma com 75 e outra com 90 por minuto), no
estado geral dos pulmões (grave bronquite na senhorita Cook, sanidade perfeita nos
pulmões de Katie).
E quem foi que auxiliou Crookes a provar, acrescentando qualquer coisa menos
impressionável ao testemunho controvertível dos sentidos, que a Srta. Cook estava no
interior do gabinete, durante o tempo em que Katie se apresentava diante dos
espectadores? Foi Cromwell Fleetwood Varley, engenheiro notabilíssimo, descobridor
do condensador elétrico, consultor da “Atlantic Telegraph Company” e da “Electric and
International Companv”, o técnico que estabeleceu as comunicações entre os dois
continentes por meio do cabo submarino. Foi Varley que “concebeu a idéia de fazer
atravessar o corpo da médium por uma fraca corrente elétrica, durante todo o tempo em
que a forma materializada estivesse visível, e de fiscalizar os resultados, assim obtidos,
por meio de um galvanômetro, colocado no mesmo aposento, fora do gabinete”.
Sem que nos detenhamos nestas minúcias, sem que atentemos nelas, a nossa razão de
simples leitores impugnaria tudo. Velhacamente, permita-se-nos a expressão
insubstituível, seme-

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lhantemente ao jogador que age com cartas marcadas, o Snr. Silva Mello, cuja
originalidade mais frisante como escritor é a mais derramada prolixidade (vejam-se os
alentados volumes de suas parturições), omite estes pormenores, sem cuja notícia o
leitor se acharia na situação cômica do juiz que houvesse de julgar um processo sem a
presença dos autos.

A incredulidade de Crookes.

Pode-se aquilatar do grau inicial de incredulidade de Crookes por estas palavras


devidas ao conselheiro russo Aksakoff, que Silva Mello define como “uma das
inteligências mais penetrantes que se tem ocupado das questões metapsíquicas” (pág.
313):

“Em 1873, já o Snr. Crookes tinha publicado os seus artigos sobre a força psíquica, porém não
acreditava ainda nas materializações e dizia que só acreditaria quando visse ao mesmo tempo o médium e
a forma materializada.”

E quando o conseguiu reiteradas vezes, rendeu-se à evidência dos fatos, admitindo


que se achava diante de duas pessoas distintas:

“Tenho a mais absoluta certeza de que a Srta. Cook e Katie são duas individualidades distintas, pelo
menos no que diz respeito aos corpos”.

Finalmente, Katie, escreveu cartas de despedida a alguns dos seus amigos,


assinando-se “Annie Owen Morgan», dando como rematada a sua penosa missão.
Ouçamos a palavra de um dos nossos escassos experimentadores, alvo da nossa
comum admiração, o Professor Miguel Osório:

“Quando os fatos contradizem formalmente a hipótese formulada, esta deve ser abandonada ou mais
ou menos profundamente alterada. Aqui está o ponto onde mais claramente são postas em evidência as
verdadeiras qualidades de caráter do experimentador”. (Tratado Elementar de Fisiologia, pág. 7).

Foi o caráter do experimentador que forçou um sábio como Crookes, sábio inglês
com todas as suas características de serenidade, prudência, previsão e sobriedade a
manifestar-se sem rebuços, depois de dez anos de estudo das mani-

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festações espiritistas, dentro de um verdadeiro laboratório, “cercado de aparelhos
elétricos que teriam tornado impossível ou mortal qualquer tentativa de fraude”
(Richet), dispondo de médiuns notáveis e da colaboração de outros colegas não menos
rigorosos no método, nem menos acostumados às pesquisas científicas.
O mais eclético dos sábios ingleses — físico, químico, astrônomo e médico — ao
fim de suas experiências com Katie King, julgou-se na obrigação de dar o seu
testemunho, “testemunho corroborado pelos sentidos de todas as pessoas presentes, que
não podem ser mentirosos visto que depõem contra minhas idéias preconcebidas”, diz
ele:

“Tendo-me assegurado de sua realidade, seria uma covardia moral negar-lhes (aos fatos espíritas) o
meu testemunho, só porque as minhas publicações precedentes foram ridicularizadas por críticos e
outras pessoas que nada conheciam do assunto.”

A defesa de Crookes feita por Richet.

Quem poderia desmentir um Crookes? Quem se atreveria a passar-lhe o atestado de


ingênuo, que não soube precaver-se de fraude, durante tantas experiências, vistas
simultaneamente por outros olhos não menos incrédulos e desejosos de que os fatos,
preferentemente, confirmassem as suas idéias preconcebidas ? Somente um Richet. Mas
este, ao contrário, reproduziu as célebres experiências dentro do mesmo rigoroso
determinismo a que estava acostumado na sua longa vida de estudioso da fisiologia e da
psicologia.
E ao cabo de 40 anos, deu-lhe confirmação cabal em obras mundialmente
conhecidas, embora não aceitando a hipótese espírita, facilmente. As expressões com
que defende a tese de William Crookes, “aussi grand par le courage que par la
pensée”, a quem dedicou o seu TRAITÉ DE METAPSYCHIQUE, associando-lhe ao
nome o de F. Myers, excedem em ardor, combatividade e sinceridade a tudo quanto
crentes, medíocres ou fanáticos tenham articulado em prol da veracidade dos fatos
espíritas:

“Quando o grande William Crookes relata ter visto, em seu laboratório, Katie King, fantasma capaz
de se mover, de respirar ao lado de seu médium, Florence Cook, o sabichão pode erguer os ombros e
dizer: “É impossível, o bom senso faz-me afirmar que Crookes foi vítima de uma ilusão, Crookes é um
imbecil.” Mas

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esse pobre sabichão não descobriu a matéria radiante, nem o tálio, nem as ampolas que transmitem a luz
elétrica. E pouco importa que, rebocados pelo sabichão, u’a multidão de jornalistas — que nada viram,
nada aprofundaram, nada estudaram — diga que a opinião de Crookes nada vale”.

E depois de arrolar os nomes de sábios da maior eminência que reproduziram e


confirmaram as experiências de Crookes, conclui que “o testemunho de um só destes
grandes nomes seria suficiente; mas quando se reúnem na mesma afirmação, irei eu dar
ouvidos às criticas infantis que se resumem nesta frase ingênua — “não é possível”?
A incredulidade dos homens de ciência é natural e é necessária. Diante de fenômenos
inabituais e de tamanha transcendência, cumpre-lhes redobrar a atenção, e esgotar as
provas e as contraprovas. Quando, porém, a muralha dos preconceitos é arrasada pela
força indômita dos fatos, a atitude mais prudente do curioso e do apedeuta, que não teve
a oportunidade de uma visão direta e pessoal da fenomenologia supranormal, não pode
ser a de negação apriorística — “absurdo!” nem a conclusão leviana — “tudo é fraude!
tem que ser fraude! não pode deixar de ser fraude!”
Na “Metapsíquica Humana”, o inolvidável pensador e filósofo espiritualista Ernesto
Bozzano mete o seu desastrado contendor René Sudre entre as pontas de uns tantos
dilemas, dos quais a hipótese espírita sai sempre vitoriosa, porque apoiada na análise
comparada dos fatos e na convergência das provas. E aconteceu, então, coisa muito
digna de assinalada: enquanto o materialista Sudre fantasiava ou poetava em torno dos
fatos, que considerou, todavia, com mais “caráter” do que Silva Mello, como reais, o
espiritualista Bozzano, pegando-o pela gola, fê-lo examinar o assunto dentro da ciência
e da lógica, as únicas autoridades que podem dirimir tais contendas.
Bozzano destrói, por meio de argumentação segura e convincente, todas as
supositícias invenções de René Sudre: a prosopopese — modificação brusca,
espontânea ou provocada da personalidade psicológica, as hipóteses alucinatória e
teleplástica, os manequins plásticos ou fantasmas plastificados, a comparação da música
transcendental com os ruídos das conchas marinhas, as confusões do Espiritismo com o
“personismo” e o “animismo”, ainda depois da classificação esclarecedora de Alexandre
Aksakoff.

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Cotejado com Silva Mello, René Sudre é adversário muito menos pesado, tomada a
palavra em todos os seus sentidos, porque não teve o atrevimento nem a coragem de se
despir em praga pública, negando as materializações impecáveis obtidas por Crookes.

“A aparição rara, mas real, de indivíduos teleplásticos, diz Sudre, tendo, embora, todas as aparências
de vida, como Katie King, não nos deve trazer ilusão. São fenômenos que nada têm de biológicos”.

O trabalho de Bozzano consistiu em provar ao seu adversário que um fantasma


teleplástico não poderia falar, andar, passear, respirar, questionar, recomendar, divergir
contar história,, escreve; cartas, dialogar com a própria médium, deixar-se fotografar ao
lado dela, revelando independência psíquica absoluta. Admitir que um só centro cortical
da inervação da palavra era acionado, simultaneamente, por duas personalidades
distintas equivaleria, isto sim, a uma “credulidade sem limites”, na expressão do
Professor Hyslop.

“Quem ousaria sustentar, pergunta Bozzano, que a personalidade subconsciente do médium,


exteriorizando-se e materializando-se, possa transformar-se, como por encanto, em uma personalidade
que completamente ignora pertencer a essa outra metade da “vida dela mesma” que está diante dela, e que
dentro dessa inconcebível ignorância, também partilhada fatalmente pela outra metade, possam as duas
infelizes secções da mesma alma, ambas deploravelmente iludidas, ser levadas a se imaginarem, não se
sabe bem por que recôndito mistério da prosopopese, na iminência de uma separação definitiva, ao ponto
de trocarem frases afetuosas e palavras comoventes de despedida?!”

Em metapsíquica, Silva Mello é um fóssil do tempo da pedra lascada. Empacou na


fase, de há muito superada, da negação sistemática, que somente não é párvoa, porque é
primária ou infantil. Nem mesmo as autoridades protestantes e cardinalícias, para se
forrarem ao dissabor do desmentido imediato pelos próprios fatos, deixam de
reconhecer mie é “arbitrário” e “anti-científico” o repúdio irracional de experiências
positivas, que se acumulam “assombrosamente”.
Com muito maior razão podemos aplicar-lhe aquelas palavras de Bozzano
endereçadas a Sudre, o qual já se achava, todavia. mais evoluído, pois a sua “fé
materialista” ‘ ascendera para “uma etapa teórica de transição”, a em que não

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se negam mais os fenômenos, mas se lhes dá interpretação pessoal à custa de muito
malabarismo beócio e de extremo ridículo.
Façamos nossa a advertência de Ernesto Bozzano:

“Poderiam objetar-me ser inútil a minha insistência em procurar convencer os que se obstinam em não
querer compreender, mas a minha insistência não visa convencer o meu competidor e tão somente levar a
tranqüilidade de espírito àqueles poucos que, por acaso, se tenham deixado perturbar pelas suas
insinuações sofísticas.”

Silva Mello evita todos os aborrecimentos de uma exegese inteligente dos fatos,
roubando-os simplesmente ao julgamento do leitor, inutilizando-os por meio de
supostas fraudes dos médiuns e da bobice dos sábios.
É um sofista canhestro, um fraudador consciente, capaz de arrasar o mundo para
fazer com que prevaleçam as suas idéias. E o confessa publicamente...
Não é “carrasco de fantasmas”: é ladrão deles. Por isso, o nosso trabalho não é de
polemista: é simplesmente de policial.

Richet ratifica as experiências de Crookes.

Atestando e abonando, com a autoridade insuperável de seu nome, a veracidade dos


fatos supranormais, antes e depois dele verificados e ratificados por outros cientistas,
isto é, a criptestesia (faculdade de conhecimento fora das vias sensoriais normais), a
telecinesia (ação mecânica à distância e sem contato, em condições determinadas, sobre
objetos e pessoas), a ectoplasmia (materializações), Richet, para maior benefício à
doutrina espírita, não perdeu o juízo, não se tornou fanático.
Estas seriam as expressões com que o mimoseariam os acadêmicos, se ele tivesse
perfilhado a hipótese espírita, desde o começo. Foi providencial que assim acontecesse.
A teoria espírita tiram-na de seus livros, deduzem-na de suas experimentações todos os
espiritualistas de quaisquer seitas, que se arriscarem a ler o “Tratado de Metapsíquica”
e, sobretudo, “A Grande Esperança”.
Todos os indivíduos dentro dos quais floriu ou brilhou uma parcela mínima de
espiritualidade, ainda mais, todos os materialistas e todos os ateístas (excluídos os do
tipo do Snr.

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Silva Mello) que acompanharem aqueles depoimentos em livros de ciência
experimental, lidos por todo o mundo, sem a aversão e o repúdio que impedem a
divulgação dos livros religiosos de Kardec, todos ficarão, ou fortalecidos na sua fé
dentro de suas Religiões (quantos milhões de vezes já aconteceu isto!), ou começarão a
procurar a luz, como o fizemos, agora menos dogmáticos e mais tolerantes.
O nosso Silva Mello aquiesce em que “continuamos cercados de mistérios e sabemos
que a sabedoria humana é diminuta, enquanto infinita a nossa ignorância.” Muito bem.
Prefere, todavia, a companhia de Lavoisier, isto é, prefere a negação ridícula à
afirmação precipitada. No seu entender, a primeira se justifica; a segunda, não. No céu
não havia pedras, para Lavoisier; mas os aerólitos desmentiam o sábio... Silva Mello
não acredita que os fantasmas dos mortos possam comprovar a sua existência,
presentemente, com exceção daquele impertinente que aguarda um descuido para lhe
soprar atrás da orelha ou para lhe agarrar, no escuro, uma perna descoberta.
Ao terminar o seu “Tratado de Metapsíquica”, de 822 páginas, monumento digno do
espírito de sua raça, mistura de clareza, elegância e lucidez, Richet, com a humildade do
verdadeiro sábio confessa que não esposou inteiramente nenhuma das três hipóteses
mais prováveis: a teoria espírita, a teoria dos anjos interventores, a teoria que tudo
atribui à inteligência humana encarnada (alma e corpo). Inclinou-se para a última, mas
com as seguintes restrições:

“Sinto quanto é frágil e ridícula, quase tão ridícula como as duas outras. Quanto a mim, adoto sem
reserva uma quarta proposição, que possui todas as probabilidades de ser verdadeira: não temos ainda
hipótese alguma séria para apresentar. Em resumo, creio na hipótese desconhecida, que será a do
futuro, hipótese que não posso formular, pois não a conheço”.

A “passagem” de Richet.

Espiritualistas podemos ler, comentar e analisar Richet, sem desobediência ao sábio


conselho de Voltaire, que permitia a polêmica somente entre pessoas que fossem da
mesma opinião. E foi por isto que entre Richet e Ernesto Bozzano, o estudioso mais
eficiente e mais lúcido dos fenômenos espíritas, que soube apresentar em síntese
magistral no seu livro “Animismo ou Espiritismo”, se tornou possível uma troca de

99
cartas durante muitos anos, cartas que as revistas especializadas publicaram.
Nas vésperas de sua morte (1935) o sábio francês endereçou a Bozzano, a respeito do
fatalismo, as seguintes palavras, publicadas na revista inglesa Psychic News (30 de
Maio de 1936):

“Sou inteiramente do seu parecer: não creio, com efeito, na explicação simplista segundo a qual os
acontecimentos da nossa existência e a direção da nossa vida são devidas exclusivamente ao acaso,
embora não seja possível apresentar prova nesse sentido. O Fado existe, o que equivale a dizer: uma
Força que nos guia e conduz aonde bem lhe pareça, por vias indiretas, tortuosas e muitas vezes bizarras.
E, também, fora da direção da vida, há coincidências tão estonteantes, que é bem difícil não se veja a obra
de uma intencionalidade. De quem? De que?”

Bozzano acrescenta que “em seguida a essas considerações, o Prof. Richet me referia
algumas surpreendentes “coincidências”, ocorridas com ele pessoalmente, mas que me
abstenho de relatar; em respeito à palavra “confidencial”, que as precedia.”
Ninguém traçou melhor do que o espírito de Humberto de Campos, através da
psicografia maravilhosa de Francisco Cândido Xavier1, o perfil do sábio Richet, assim
como as suas relações com o neo-espiritualismo. É uma página soberba, que recomendo
vivamente ao Snr. Silva Mello, para que ele se vá acostumando, desde já, com a
literatura do além-túmulo, de que há em nossa língua na opinião de críticos literários .
insuspeitos, muitas obras primas e imortais.
Na impossibilidade de transcrever toda a crônica intitulada A Passagem de Richet,
datada de 21 de Janeiro de 1936, ocupando, nas Crônicas de Além-Túmulo, o espaço
compreendido entre as páginas 102 a 108, vamos reeditar aqui os seus últimos períodos:

“No leito de morte, Richet tem as pálpebras cerradas e o corpo na posição derradeira, a caminho da
sepultura. Seu Espírito inquieto de investigador não dormiu o grande sono. Há ali, cercando-lhe os
despejos, uma multidão de fantasmas. Gabriel Delanne estende-lhe os braços de amigo. Denis e
Flammarion o contemplam com bondade e carinho. Personalidades eminentes da França

100
antiga, velhos colaboradores da “Revista dos Dois Mundos”, cooperadores devotados dos “Anais das
Ciências Psíquicas” ali estão para abraçarem o mestre no limiar do túmulo.
Richet abre os olhos para as realidades espirituais que lhe eram desconhecidas. Parece-lhe haver
retrocedido às materializações da Vila Carmem; mas, a seu lado repousam os seus despojos, cheios de
detalhes anatômicos. O eminente fisiologista reconhece-se no mundo dos verdadeiros vivos. Suas
percepções estão intensificadas, sua personalidade é a mesma e, no momento em que volve a atenção para
a atitude carinhosa aos que o rodeiam, ouve uma voz profunda, falando do Infinito:
— Richet — exclama o Senhor no tribunal de sua misericórdia — por que não afirmaste a
Imortalidade e por que desconheceste o meu nome no teu apostolado de missionário da ciência e do
labor? Abri todas as portas de ouro, que te poderia reservar lá no mundo. Perquiriste todos os livros.
Aprendeste e ensinaste, fundaste sistemas novos do pensamento, às bases das dúvidas dissolventes.
Oitenta e cinco anos se passaram, esperando eu que a tua honestidade me reconhecesse, sem que a fé
desabrochasse em teu coração. Todavia, decifraste com o teu esforço abençoado muitos enigmas
dolorosos da ciência do mundo, e todos os teus dias representaram uma sede grandiosa de
conhecimentos... Mas, eis, meu filho, onde a tua razão positiva é inferior à revelação divina da fé.
Experimentaste as torturas da morte com todos os teus livros e diante dela desapareceram os teus
compêndios, ricos de experimentações no campo das filosofias e das ciências. E agora, premiando os teus
labores, eu te concedo os tesouros da fé que te faltou, na dolorosa estrada do mundo!
Sobre o peito do abnegado apóstolo desce do Céu um punhal de luz opalina, como um venábulo
maravilhoso de luar indescritível.
Richet sente o coração tocado de luminosidade infinita e misericordiosa, que as ciências nunca lhe
haviam dado. Seus olhos são duas fontes abundantes de lágrimas de reconhecimento ao Senhor. Seus
lábios, como se voltassem a ser os lábios de um menino, recitam, o “Pai Nosso que estais no Céu...”
Formas luminosas e aéreas arrebatam-no pela estrada do éter da eternidade, e entre prantos de gratidão
e de alegria, o apóstolo da ciência caminhou da grande esperança para a certeza divina da Imortalidade.”

A descrição de Humberto de Campos coincide com as últimas palavras, que o grande


sábio endereçou ao seu amigo Bozzano, e responde às suas perguntas finais. “De quem?
De que?” A sua intuição divinatória já lhe havia revelado que há “uma Força que nos
guia e conduz aonde bem lhe pareça, por vias indiretas, tortuosas e muitas vezes
bizarras.”

101
Richet aceita a sobrevivência.

Em publicação posterior, o Professor Ernesto Bozzano quebra o segredo que lhe


confiou o seu amigo Richet, com o qual manteve, durante muitos anos, uma
correspondência ativa e terçou armas em polêmicas memoráveis, publicando a parte
final de sua última carta confidencial:

“...E, agora abro-me a você, de modo absolutamente confidencial. O que você supunha é
verdade. Aquilo que não alcançaram Myers, Hodgson, Hyslop, Sir Oliver Lodge, obteve-o você
por meio de suas magistrais monografias, que sempre li com religiosa atenção. Elas contrastam,
estranhamente, com as teorias obscuras que atravancam a nossa ciência.
Creia, peço-lhe, nos meus integrais sentimentos simpatia e de gratidão.
CHARLES RICHET.”

Aqui se nos apresenta um problema de caráter metapsíquico, que assume grande


interesse para o espiritualismo. Richet desencarnou em 1935, depois de Humberto de
Campos. Sua carta confidencial a Ernesto Bozzano somente foi publicada na Psychic
News em 30 de Maio de 1936.
A crônica de Humberto de Campos — “A Passagem de Richet” — é datada de 21 de
Janeiro de 1936. Como pôde Humberto de Campos, na situação de morto, mors omnia
solvit, inteirar-se do estado de espírito de Richet na hora da morte, a sua conversão à
sobrevivência, como transparece na carta a Bozzano?
Das últimas palavras de Richet se infere que somente a idéia de Deus não se lhe
desabrochara nem se lhe florira no coração. As perguntas que faz — De quem? De que?
— ao referir-se à “intencionalidade”, assim no-lo faz acreditar.
Dir-se-ia que Humberto de Campos, ao arquitetar a sua crônica, jogava com fatos
contemporâneos do seu conhecimento, tal como o fazia na terra, para delícia dos seus
leitores.

A idéia de Deus para Monteiro Lobato.

Também o nosso peregrino Monteiro Lobato, segundo o adjetivo que Rui Barbosa
preferiu, conhecedor do Espiritismo, sempre sinceramente interessado pela literatura e
pela

102
fenomenologia espírita, lidando com videntes e possuindo o seu dossier de observações
próprias, no prefácio com que enriqueceu o livro notável de Pedro Granja — “Afinal,
Quem Somos?”, atualmente em marcha para a quinta edição, detém-se diante da
definição de Deus, que atormentou o cérebro de Leibnitz — “Deus é a mônada
incriada”, de Espinosa — “Deus é a substância única”, de Hlartmann — “Deus é o
mecânico finalista do Universo”, de Xenófanes — “Deus é a eternidade imutável, e
diligencia por aplicar-lhe uma expressão pessoal, com o auxílio da ciência e da filosofia,
Repugna-lhe, com razão, associar à idéia de Deus qualquer atributo humano, até mesmo
a Bondade e a Misericórdia.

“Para alguém, propõe ele, Deus não passa de uma soma ou fusão das consciências dos nossos “eus”
desencarnados, que já tenham alcançado o mais alto grau da Evolução”.

E perpetra mais uma tentativa desesperada, entre bilhões de outras, semelhante a de


um verme que desejasse compreender e definir o homem. Todas as tentativas são dignas
— e cada cabeça possui a sua — mas a impossibilidade de decifrar o mistério divino
resulta da nossa situação especial em relação a ele.
Anibal Vaz de Mello, cujo nome, disse Monteiro Lobato, “vai ficar para mim como
sinônimo de deflagrador”, prometendo-se a si mesmo recorrer a ele, quando se sentisse
“muito parado por dentro”, revive, em página de “Sinais dos Tempos”, os pensamentos
de Diderot e de Dostoievsky, a respeito de Deus:

“E a ciência experimental acaba de demonstrar que o Deus que realmente existe não é esse da
concepção mórbida dos religiosos de várias seitas, um Deus antropomorfo, pessoal, cruel e vingativo,
concepção essa que levou Diderot a exclamar em face do deicídio do Calvário: “Deus matou Deus para
apaziguar a cólera de Deus”.

A idéia desse Deus nasceu do medo, do pavor e da infinita ignorância humana e a sua
história é tão grotesca que levou também Dostoievsky a exclamar: — “A meditação
sobre a morte do Cristo pode induzir uma pessoa a perder a fé”.
Misturando a Teologia com as matemáticas, Pascal desespera, nos seus
“Pensamentos”, chegando a duvidar da própria existência de Deus:

103
“Não sei quem me pôs no mundo, nem mesmo o que sou. Estou em ignorância terrível de todas as
coisas. Não sei o que é o meu corpo, nem o que são os meus sentidos, nem o que a minha alma, e até a
parte do meu ser que pensa o que digo, refletindo sobre tudo e sobre si próprio, não se conhece melhor do
que o resto. Tudo o que sei é que devo morrer breve”.

Figurando a imagem de Deus como essência de tudo, imanente no Universo todo, à


semelhança do Éter Cósmico, porque um Deus pessoal seria um Deus limitado e um
Deus limitado não poderia revestir-se de atributos infinitos, Svami Vivekananda coloca
a Divindade, como o quer Lobato, acima do Bem e do Mal. Ninguém até hoje se
aproximou tanto da concepção de Deus, capaz de suportar as provas do raciocínio
moderno, do que o Monismo vedantino. Esta teologia emudece os postulados da ciência
materialista, reconciliando as modernas investigações da Física, que demonstraram a
invisibilidade do real e a grosseria ilusória das aparências, com a necessidade da nossa
projeção espiritual nos planos mais altos do mundo astral:

“Uma generalização que termina num Deus pessoal, não poda ser universal, pois, antes de tudo, para
conceber um Deus pessoal, havemos de dizer que Ele é infinitamente clemente e sumamente bom. Porém,
este mundo é mistura de coisas boas e más. Escolhemos, dele o que queremos, e generalizamo-lo em um
Deus Pessoal! Assim como dizeis que um Deus Pessoal é isto e aquilo, haveis de dizer também que Ele
não é tal coisa. E achareis sempre que a ideia de um Deus Pessoal há de levar consigo a ideia de um diabo
pessoal. Assim se vê claramente que a ideia de um Deus Pessoal não é uma generalização verdadeira.
Temos que ir adiante, ao Impessoal. Neste, o universo existe, com todas as suas alegrias e misérias,
porque tudo o que nele existe, proveio do Impessoal. Que espécie de Deus pode ser Aquele a quem
atribuímos o mal e outras coisas? A idéia é, que tanto o bem como o mal, são diferentes aspectos ou
manifestações da mesma causa. A idéia que eles são duas entidades, foi desde o princípio errônea, e a
causa de grande parte da miséria deste nosso mundo, — essa idéia de que o bem e o mal são duas coisas
paralelas, independentes uma da outra, duas coisas eternamente separáveis e separadas.
Eu queria ver alguém que me pudesse mostrar algo que é bom por todo o tempo, e algo que por todo o
tempo é mau. Como se se pudesse definir algumas ocorrências em nossa vida como sempre e somente
boas, e outras como sempre e somente más. O que é bom hoje pode ser mau amanhã, e o que hoje é mau,
amanhã poderá ser bom. O que é bom para mim, pode ser mau para vós. Portanto, havemos de chegar à
conclusão de que, como em todas as coisas, também no bem e no mal há evolução. Há algo que em sua
evolução chamamos “bem”, e em outro grau, “mal”. A tempestade, que mata o meu amigo, chamo coisa
má; mas, ela, talvez, salvou

104
a vida de centenas de milhares de pessoas, matando os bacilos do ar. Aquelas pessoas chamam-lhe boa,
embora para mim tenha sido mal. Assim, pois, tanto o bem, como o mal, pertencem ao mundo relativo, ao
fenômeno. O Deus Impessoal, que propomos, não é um Deus relativo; por isso não se pode dizer que Ele
é bom ou mau, mas é algo além do bem e do mal, porque não é nem bom, nem mau. O bem, no entanto, é
manifestação que Lhe é mais próxima do que o mal”.

Pascal, sobre cuja vida Chateaubriand escreveu uma página muito citada, torturado
durante toda a sua vida pela mediunidade, oscilando entre a fé e a dúvida, em crises
agudas e desesperadas, concluiu que, com argumentos humanos, não podemos provar a
existência ou a inexistência de Deus. Sim, de um Deus Pessoal.

“Se quiserdes dizer que existe um Ser que criou este mundo por sua vontade, confirma Vivekananda,
que criou o mundo do nada não podeis prová-lo.”

Na sua Oração ao Sol, S. Francisco de Assis compara o astro a Deus:

“Um exemplo de Vós, Senhor.

Leva o sol o raio de sua luz a tudo e a todos, como bênção divina; Deus visita,
misericordiosamente, todos os corações, como carícia do sol. Quando o homem pensa
em Deus com as medidas de sua animalidade, conspurca-o sempre, porque lhe empresta
predicados que o humanizam. A grandeza de Deus é infinita para caber dentro da nossa
inteligência e da nossa razão.
A mediunidade seria a leitura do Impessoal, não com os nossos cinco sentidos
impotentes, que nos dão notícias somente do mundo material, porém com “algo mais”,
equivalente à posse de um “sentido elétrico”, o qual nos forneceria do mesmo Universo
uma idéia completamente diferente da que possuímos. Foi por isso que Monteiro Lobato
não compreendeu bem o “status de Deus”; mas da sobrevivência ele disse — “eu
compreendo o que é.”

A convicção de Monteiro Lobato.

Através das múltiplas atividades em que se subdividiu aquele espírito de escol, para
o qual o nosso planeta era muito pequenino, sempre naquele estilo que preferia mais
sugerir do que convencer, mais deleitar do que advogar, dei-

105
xou marcas indeléveis de sua alta espiritualidade, que era, como sempre o foi, a fonte
eterna do seu idealismo e da sua bondade.
Claro é que, para o conhecimento de suas crenças, devemos preferir as suas últimas
palavras, as finais, as definitivas sobretudo as que vazou em cartas íntimas, que se não
destinavam à publicidade, endereçadas ao seu amigo Godofredo Rangel, documentos
preciosos nos quais seriam supérfluas e inconcebíveis expressões que não respirassem
sinceridade e franqueza. Seria livre pensador? Quem não o é, se tem por hábito usar a
cabeça e guiar-se pelo raciocínio próprio?
A dificuldade exclusiva é separar as convicções íntimas de Lobato daquele seu estilo
inconfundível, através do qual a palavra tem mais propensão para brinquedos com as
crianças do que para conversas com adultos de caras ou doutrinas rebarbativas. Nas
cartas a Godofredo Rangel o homem definiu-se tal qual é, sem restrições mentais. O seu
espírito navega à vontade na “Barca de Gleyre”.
Uma vez, afirmou, categoricamente, na “Antevéspera”, página 205:

“O Espiritismo será a religião de amanhã, porque “prova” a sobrevivência.”

Ao discorrer sobre as idéias originais de Krishnamurti, com o qual não se costumam


ocupar os filósofos de auditu, do tipo do Sr. Léo Vaz, (que se comportou em relação ao
ateu Silva Mello como os tais fãs de que Lobato nos pintou alegre caricatura, pois lhe
pediu notícias de Deus, do diabo, dos santos, dos profetas, etc., custando-lhe a
curiosidade a maior tolice de sua pena), em artigo do “O Jornal”, do Rio, Lobato,
brincando ou não, afirma que, quando a gente morre, se converte em “paina psíquica”.
Prefaciando o livro de Urbano Pereira “Nós e o Universo”, escritor espiritualista e
espiritista bastante conhecido em nosso meio (e na escolha deste prefaciador já está
implícita alguma coisa), Monteiro Lobato, não somente lhe soube realçar os méritos, tal
qual praticou mais tarde com Pedro Granja (outra coincidência fortuita!), como achou
perfeita a Conclusão III do autor, assim resumida:

“Nossa individualidade não é função do corpo que nasce, cresce e morre. Sabemos da sobrevivência
do nosso eu após a desagre-

106
gação desse corpo e da continuidade das faculdades intelectuais e morais que o individualizam.
Ultrapassamos nossos sentidos corporais, mesmo quando imersos no mundo material e limitados por ele;
podemos apreender certos aspectos do universo completamente diversos dos fixados pelos nossos
sentidos normais.”

Noutro prefácio, o das “Bio-Perspectivas”, de Renato Kehl, usa um modo de falar


que nos lembra Bozzano nas primeiras páginas do seu livro “Animismo ou
Espiritismo”, quando discorre sobre as faculdades supranormais subconscientes:

“Se os sentidos foram surgindo até constituir o quinteto de hoje, seria absurdo fixarmos em cinco a
nossa potencialidade sensorial. Teremos um dia seis. Mais tarde sete. A seguir, vinte, cem. E cada sentido
novo que se desenvolve nos abre à percepção um mundo inédito. Antes de nos virem os olhos, não existia
(para nós) o mundo da luz. Antes de nos vir a audição, não existiam sons. Antes de nos vir o olfato, não
existiam perfumes. Evoluir é, talvez, na essência, adquirir sentidos novos. A observação revela entre os
homens de hoje o bruxoleio dum sexto sentido, que poderemos denominar “metapsíquico”. Essa coisa
incompreensível a que chamamos vulgarmente “mediunidade” e que em grau maior ou menor se revela
em certas criaturas: que poderá ser senão surto de um sentido novo, ainda tateante, ainda instável, mas
que se irá firmando e universalizando como sucedeu aos seus cinco irmãos mais velhos? E esse sexto
sentido claro que nos porá em contato com aspectos novos da natureza — novos para nós, como a
velhíssima luz é nova para o cego que de súbito adquire a visão.”

Na reportagem de Celestino Silveira, em que “Monteiro Lobato fala da Academia,


dele mesmo e de outros assuntos”, extraímos um trecho que deve figurar no florilégio
onde se guardam os pareceres de Agripino Grieco, Mário Mattos, Zeferino Brasil e
Humberto de Campos, a propósito da psicografia de Francisco Cândido Xavier:

“Por fim, relata o jornalista, até o caso palpitante de Chico Xavier, psicografando as obras de
Humberto de Campos, veio ao tabuleiro da discussão. Estamos vendo a fisionomia curiosa de quem nos
lê, indagando qual a opinião de Monteiro Lobato sobre as obras psicografadas. . . Aí vai. O escritor não
pertence à categoria dos que dão de ombros com indiferença, e não esconde o seu interesse pelo assunto,
antes o estuda, o examina, o disseca.
“Aqueles versos de Augusto dos Anjos são tudo quanto pode existir de mais Augusto dos Anjos... Se o
homem realmente produziu por conta (própria tudo o que vem no “Parnaso”, então ele pode estar em
qualquer Academia, ocupando quantas cadeiras quiser...”

107
Em vários passos da “Barca de Gleyre”, Monteiro Lobato, conversando intimamente
com o seu amigo, longe da bisbilhotice do mundo e desinteressado da opinião de
leitores prováveis, volta ao assunto reiteradas vezes, constituindo tal sintoma muito bom
indício das suas preocupações metapsíquicas. Eis como se manifesta, ao seu modo
brincalhão:

“Eu ando tão enjoado desta U.J.B. e desta terra, cujos dirigentes tanto me atrapalham no ferro e no
petróleo, que só aspiro a uma coisa: é passar para o estado gasoso e dar parabéns ao “gás Ricardo” (o seu
amigo morto) da sabedoria com que resolveu aos vinte e poucos anos o problema com que arcamos
ainda.”

Em outra oportunidade:

“Tenho medo de que, depois de morto, me ponha como o Humberto de Campos a escrever com a mão
de Chico Xavier. E só então mudarei de estilo. Parece que lá no Além há qualquer polícia que capa nas
manifestações tudo que é broto de roseira enfeitado com pulgõezinhos verdes. A censura astral não
admite pulgões verdes.”

Nessas brincadeiras com o Além (quem não as faz?), o panegirista de Silva Mello
ateu que lhe perguntou por Deus, vê, apenas, uma boa mina para pilhérias e torneios
humorísticos de frases, como o soube fazer Mário Mattos. Ainda dessa vez, o analista
literário tropeça na verdade e cai em novas lograções.
Há, na “Barca de Glevre”, dois documentos decisivos para a elucidação definitiva da
controvérsia. O primeiro, datado de 20-10-1916, a carta que Lobato escreveu a Rangel,
quando lhe morreu Ricardo, seu amigo de coração:

“Rangel
Ricardo matou-se. Que dizer depois disso? As palavras que me açodem são as mesmas que te
acudiriam, irmãos que somos e éramos dele. O mundo me parece mais apequenado, Rangel, e eu choro,
choro. Tudo está menor com a ausência de Ricardo. Tudo mais velho, mais odioso, mais ruim. Tenho o
retrato dele aqui defronte. Aquela expressão triste do olhar, tão premonitória do tiro! Cada vez que olho,
sinto uma bola na alma. Uma dor lá dentro. Ricardo, aquele nosso Ricardito maravilhoso, morto, coberto
de terra, apodrecendo. Morto! Extinto! Apagada para sempre aquela luz do olhar todo bondade e
inteligência extraterrena. Parado aquele coração, o maior que ainda houve no mundo. O cavalo que ele
beijou na rua Quinze, aquela noite...
Nós o que devíamos fazer era morrermos também, num suicídio em massa, o Cenáculo inteiro, como
protesto contra a estupidez da

108
Vida. Que tens dele aí? Vamos reunir tudo quanto ele produziu e enfeixar num livro lindo, que seja o
nosso livro de cabeceira. Que alma! Chego a crer na necessidade de haver céu — pois onde, fora do céu,
abrigar-se a imensidão da alma do Ricardo?
LOBATO.

Nessa carta transparece, apenas, a sensibilidade de um coração fraterno, que a morte


de pessoa querida surpreende e magoa, reconhecendo a necessidade do céu, para abrigá-
la convenientemente.
Ao lê-la, lembramo-nos de Xavier de Maistre, que tem, como Monteiro Lobato, o
mesmo hábito literário, o mesmo tipo de humor — o de misturar, às vezes no mesmo
período, a ironia e a piedade, o trágico e o cômico. Eis uma carta do humorista que
Machado de Assis lia com grande gula, escrita nas mesmas aperturas da saudade e da
mágoa, isto é, por ocasião da morte de um amigo querido:

“Não, o meu amigo não entrou no Nada; qualquer que seja a barreira que nos separe, hei de tornar a
vê-lo. Não é num silogismo que fundo a minha esperança. O vôo de um inseto que atravessa os ares basta
para me persuadir; e muitas vezes o aspecto do campo, o perfume dos ares, e não sei que encanto
derramado em torno de mim, levam de tal modo os meus pensamentos, que uma prova invencível da
imortalidade entra com violência na minha alma e a ocupa toda inteira.”

Quando, porém, lhe morreram os filhos, 27 anos depois, em 1943, já encanecido,


aclamado e torturado pela vida, o seu coração amante de pai extremosíssimo, alanceado
pela dor, recolheu o estilo faceto e os galhardetes, para chorar humanamente, como
todos os que passamos ou vamos passar pela porta do sofrimento. Assinalaremos as
passagens em que qualquer espírita percebe claramente as influências de sua
consoladora doutrina:

“Rangel:
Pois é. Perdi meu segundo filho, o Edgard, um menino de ouro, tal qual o Guilherme. Impossível
filhos melhores que os meus, e talvez por isso foram chamados tão cedo. Ele nunca se aqueceu da
primeira carta recebida pelo correio, uma tua.
Eu não me desespero com mortes porque tenho a morte como um alvará de soltura. Solta-nos deste
estúpido estado sólido para o gasoso — dá-nos invisibilidade e expansão, exatamente ao que acontece ao
bloco de gelo que se passa a vapor. Mas Purezinha não se conforma. Impossível maior desespero. E do
ponto de vista

109
humano, tem razão. Foram dois filhos perfeitos. Creia, Rangel, que não me lembro de nenhuma coisa má,
ou levemente má, que eles hajam feito em vida. Quantos pais podem dizer isto?
O Guilherme era caladão, metido consigo, como esses que vivem em eterno monólogo interior — e
morreu a mais linda das mortes. Passou em pleno sono. Dormiu e não mais acordou para este mundo. Já o
pobrezinho do Edgard sofreu muito — e com que estoicismo, Rangel! Com que filosofia de grande
filósofo!
E assim vamos também nós morrendo. Morrendo nos filhos, pedaços de nósi mes,mos, que seguem na
frente. Morrendo nas tremendas desilusões em que desfecham nossos sonhos. E morrendo
fisiològicamente no torpor das glândulas, no decair da vista, no desinteresse cada vez maior por coisas
que na mocidade nos eram de tremenda importância.
Se estamos aqui como numa escola de aperfeiçoamento, meus filhos acabaram o curso mais depressa
do que eu — prova de que eram, melhores alunos do que eu. E tive de assistir à morte dos dois e ficar no
maior desapontamento — “sobrando...”
LOBATO.

Com largo círculo de relações entre espíritas, tradutor de livros espíritas, prefaciador
procurado por escritores espíritas, manifestando-se categoricamente favorável à
sobrevivência espírita, consolando-se nas crises mais angustiosas da sua vida com as
expressões usuais da doutrina espírita, se é apenas um simpatizante do Espiritismo,
como o insinuou habilmente o Sr. Léo Vaz, também podemos negar que Silva Mello
seja o ateu integral, como a si mesmo se etiquetou, em letra de fôrma; que seja criatura
nascida, batizada, crismada, extrema-ungida no ateísmo, para este mundo e para o outro.
Onze dias antes do seu trespasse, que foi a 4 de Julho de 1948, Monteiro Lobato
dirigiu a última carta a Godofredo Rangel. Nela descreve o seu precário estado de saúde
física; dela irradia aquele humorismo imanente em sua personalidade de escritor e
transpiram a resignação e a paz, que somente o Espiritismo nos pode dar diante da
morte próxima e fatal:

“Véspera de S. João, 1948.

“Rangel:
Chegou afinal o dia de te escrever, e vai a lápis, porque a pena me sai mal. Ainda estou com uma
perturbação na vista. Uma perturbação que se vai deslocando no meu campo visual, e que num mês deve
estar desaparecida. Só então voltarei a ler correntemente.

110
Tenho estado, este tempo, privado da leitura — e que falta me faz! A civilização me fez um “animal que
lê”, como o porco é um animal que come — e dois meses já sem leitura me vem deixando estranhamente
faminto. Imagine Rabicó sem cascas de abóbora por 30 dias!
Tive a 21 de abril um “espasmo vascular”, perturbação no cérebro da qual a gente sai sempre
seriamente lesado de uma ou outra maneira. Depois de horas de inconsciência voltei a mim, mas lesado.
A principal lesão foi a da vista que no começo me impedia de ler sequer uma frase. As outras
perturbações ando eu agora a percebê-las: lerdeza mental, fraqueza de memória e outras “diminuições”.
Não sou o mesmo: desci uns pontos.
Não é impunemente que chegamos aos 66 anos de idade. O que eu tive foi uma demonstração
convincente de que estou próximo do fim — foi um aviso um preparativo. E de agora por diante o que
tenho a fazer é arrumar a quitanda para a “grande viagem”, coisa que para mim perdeu a importância
depois que aceitei a sobrevivência. Se morrer é apenas “passar” do estado vivo para o não-vivo, que
venha a morte, que será muito bem recebida. Estou com uma curiosidade imensa de mergulhar no Além!
Isto aqui, o corporal, já está mais do que sabido e já não me interessa. A morte me parece a maior das
maravilhas: isto mesmo que tenho aqui, mas sem corpo! Maravilha, sim. Não mais tosse, nem pigarros,
nem (ilegível), da coisa orgânica!
— E se não for assim? dirá você. E se em vez de continuação da vida a morte trouxer extinção total
do ser?
— Nesse caso, bis-ótimo! Entro já de cara no Nirvana, nas delícias do Não-ser! De modo que me
agrada muito o que vem aí: ou continuação da vida, mas sem estes órgãos já velhos e perros, cada dia
com pior funcionamento, ou o NADA!...
Você sempre lidou com doenças, a que prestava atenção. Porque isto de doenças só dói na gente.
Agora que também me tornei um doente, quero que contes o ponto em que está a tua saúde, e as belezas
patológicas que enriquecem o teu patrimônio. Como está o coração? Conheces a Digitalis? o Estrofanto?
Adeus, Rangel! Nossa viagem a dois está chegando ao fim. Continuaremos no Além. Tenho planos,
logo que lá chegar, de contratar o Chico Xavier para psicógrafo particular, só meu — e a primeira
comunicação vai ser dirigida justamente a você. Quero remover todas as tuas dúvidas.
Do
LOBATO.

Brincadeira tudo isso? Brincadeira com a morte dos filhos? Brincadeira com a sua
própria morte? Quem não percebe que Monteiro Lobato não possuía outra maneira de

111
externar o seu pensamento, senão nesta mistura do cômico com o patético, que se lhe
mudou em estilo definitivo?
Não valem as expressões aqui lembradas as conferências famosas nas quais Coelho
Neto e Viriato Correia relataram suas conversões ao Espiritismo?
Deste último lembraremos a seguinte passagem:

“Falta-me totalmente qualidades mediúnicas. Não ouço, não vejo, não escrevo, não sinto. Parece que
Deus me experimenta. Quer ver até onde vai a constância da minha fé, negando as provas materiais em
que possa alicerçá-la. Quer que eu creia no sol sem vê-lo, unicamente por lhe sentir a claridade.”

E Coelho Neto esclareceu a sua atitude diante do Espiritismo, exclamando:

“Não venho abjurar a essência da doutrina que me trouxe desde o berço até a velhice, porque nunca
me senti mais perto do Cristo do que agora.”

112
CAPÍTULO TERCEIRO

SUMÁRIO

Condições a que se devem sujeitar os


experimentadores. As leituras de Silva
Mello. O bom metapsiquista. A impotência
da ciência humana. Os médicos e os
prestidigitadores. As experiências de Silva
Mello. O prestidigitador Silva Mello em
ação. As dificuldades naturais da doutrina.
Silva Mello versus Silva Mello. Como se faz
um Presidente da República.
Cientismo anti-cientifico.

“Como será possível a tentativa, sempre ousada, de criar uma representação geral do mundo, se, antes
de tudo, não tivessem sida cuidadosamente estudados os elementos que nos fornecem, sobre esse mesmo
mundo, as investigações porfiadas da ciência?”
LOUIS DE BROGLIE.

“Certos sábios dos tempos modernos, vítimas de ingênuo realismo, adotaram, quase sem se darem
conta disso, metafísica de caráter materialista e mecanicista, e consideram-na como a expressão da
própria verdade científica.”
LOUIS DE BROGLIE.

“ . . .não sabeis que, no infinito da extensão sideral do Universo, o espaço é vã palavra e também não
tem medida; desconheceis tudo: princípios, causas, tudo vos escapa; átomos efêmeros sobre um átomo
que se move, não tendes a respeito do Universo nenhuma npreciação exata; e numa ignorância assim, em
tal obscuridade, pretendereis tudo julgar, tudo abranger, tudo aprender! Seria, porém, mais fácil encerrar o
Oceano em uma concha de noz do que fazer assimilar a lei dos destinos pelo vosso cérebro terrestre.”
FLAMMARION.

“A metapsíquica não tardará a se tornar o centro de todas as ciências c de todas as filosofias.”


HANS DRIESCH.

113
CAPÍTULO III

Condições a que se devem sujeitar os experimentadores.

A fenomenologia espírita inscreve-se no concerto das ciências positivas e


experimentais, semelhando os fatos, que lhe constituem o domínio privativo, aos que se
acham relacionados com as manifestações meteorológicas. Os fenômenos supranormais
do espiritualismo não dependem somente da vontade do experimentador, como os
fenômenos químicos, por exemplo. As chuvas, as tempestades, os ventos, as neves,
conquanto lhes conheçamos as condições necessárias, os fatores que as condicionam,
fogem ao domínio de nossa vontade. O experimentador, neste campo, deve imitar o
caçador que espera, pacientemente, a sua oportunidade. Com humildade e intenção
nobre. Os espíritos manifestam-se através de médiuns, cuja sensibilidade é variável,
cujo poder é oscilante, podendo mesmo desaparecer de uma hora para outra.
Estamos prevendo, com absoluta certeza, o sorriso dos materialistas, que interpretam
a necessidade de obedecer a tais condições como desculpas esfarrapadas de ilusionistas
e mistificadores, quando um acidente qualquer denuncia o seu trabalho de classe muito
inferior, indigno de platéias civilizadas.
O metapsiquismo não quer ser crido cegamente, nem cegamente repudiado. Nada o
irrita mais e o prejudica do que a fraude, do que a mistificação. Além disso, os
fenômenos anímicos (sugestão, hipnose, ação do subconsciente) e os espiritistas
propriamente ditos se misturam e se confundem, balburdiando as conclusões e as
sínteses finais de experimentadores desapercebidos da visão de conjunto.
Ninguém se aventure à prática da metapsíquica, sem ler primeiro, atentamente, as
obras de Bozzano, analista e psicólogo sagacíssimo, inteligência de suma lucidez,
experimentador frio e prudente, argumentador de primeira ordem, capaz de apreender os
aspectos menos visíveis e menos evidente das manifestações supranormais. Bozzano
afastou-se pouco

114
a pouco do positivismo e do materialismo, dos quais foi ardente defensor, à medida que
os fatos espiritistas lhe minavam a filosofia niilista. Trouxe consigo o experimentalismo
e o emprego de um raciocínio sempre alerta. Porque ele não se tornou ateu, e,
posteriormente, espiritualista, à maneira brusca, violenta do Snr. Silva Mello: “como
uma pedra que lhe caísse sobre a cabeça.”
O bom senso aconselha que, para o êxito de qualquer bandeirismo, urge não se
desprezem as pegadas dos primeiros desbravadores. Outra atitude incompreensível é a
de quem se aventura em empresas temerárias, inabituais, em busca da verdade,
fechando hermèticamente o raciocínio com antecipação e com alarde, como o fez um
metapsiquista de nosso conhecimento, ao que se lhe possa deparar no transcurso das
experiências a que se abalance.
Um ateísmo absoluto, irredutível, definitivo, etc., etc., é garantia segura de que o
“sábio” já prejulgou e preestabeleceu a conclusão final, quaisquer que sejam os
fenômenos que se lhe ofereçam; “já tendo colocado acima de toda discussão o
preconceito do vosso interesse ou deleite e, nesse caso, vos achais armados para repelir
a prova, qualquer que ela seja (Pietro Ubaldi).”
Crookes e Richet confessam que, ou os fatos são reais, ou abandonem-se para sempre
os testemunhos dos nossos sentidos, apoiados pela insugestibilidade das chapas
fotográficas, pelas balanças de precisão, pela vigilância dos dispositivos elétricos. O
depoimento destes sábios de verdade é tanto mais valioso, conforme já o salientamos,
quanto menos se apeguem à teoria espírita, porque tal isenção impressionará,
fulminantemente, quem quer que se ilumine interiormente com a mais bruxoleante luz
das mais escassa espiritualidade.
Para que os crentes de quaisquer religiões (todas elas, aliás, insinuam, como artigo de
fé, aquilo que o Espiritismo prova e comprova — a sobrevivência e a imortalidade)
aceitem como verídicos, como reais, como provados os fatos metapsíquicos, basta que
leiam os livros de Crookes e de Richet. Sem comentários. Confessemos que os
materialistas são mais exigentes. Muitos, porém, quando puderem reunir, em síntese
gloriosa, todos os fatos lidimamente espiritistas, isolados da ganga do animismo, hão-de
confessar, publicamente, a sua conversão.
O nosso Silva Mello, aventurando-se em águas traiçoeiras e perigosas, naufragou nas
costas do seu materialismo, che-

115
gando sozinho à praia. Segunda edição daquele naufrágio de que foi vítima durante a
primeira conflagração européia. Comparado com Cristóvão Colombo, realizou uma
expedição às avessas. Guiado pela bússola do seu ateísmo, o mais completo de que tem
notícia a memória humana, não descobriu a América, mas descobriu-se a si próprio.
Arrebentou as suas embarcações engalanadas no primeiro recife que se lhe interpôs
sobre as ondas, pois a sua fé era vacilante e nula a sua esperança.
Aliás, não teria jamais a coragem indômita do navegador genovês: não suportaria a
escuridão e o calor de uma sala hermèticamente fechada, para fenômenos de
materialização e de voz direta. Quem se diz medroso dos espíritos é ele mesmo.
Infelizmente, agem na escuridão, que o Snr. Silva Mello não suporta.

As leituras de Silva Mello.

É prodigiosamente confusionista a hermenêutica do biopsicólogo que se promoveu a


metapsiquista para averiguar a realidade ou a irrealidade dos fenômenos supranormais,
previamente julgados como absurdos, ridículos, irracionais pelo seu ateísmo infuso,
tudo através de vasta literatura alheia, “comparando textos”, preferindo os autores
anônimos que lhe são favoráveis e desprezando os grandes nomes da ciência que falam
por experiência própria.
Aceitando o testemunho dos seus sentidos, por ministério dos quais armazenou os
conhecimentos científicos que possui, elevando-se, progressivamente do A B C à mais
requintada biopsicologia, não admite o mesmo modo de agir para quem estudou e
relatou as conclusões finais de experiências metapsíquicas, que duraram quarenta anos,
empreendidas com intenção negativista.
O critério com que analisa e comenta as experiências alheias é de uma elasticidade
infinita. Os pesos e as medidas, que usa, não possuem a inalterabilidade necessária:
como as balanças dos negociantes desonestos, roubam escandalosamente.
Quando surpreende a fraude, a mistificação, o ilusionismo, tudo isto através de
autores (Max Dessoir, de que usa e abusa, Paul Ileuzé), encarece o achado e louva o
experimentador, de qualquer grau que seja o seu anonimato. O ateu alça a voz e de dedo
em riste desanca os farsantes, sangrando-se em saúde, como se as farsas, as
mistificações e as

116
fraudes não fossem igualmente condenadas, desprezadas e desmascaradas, talvez com
maior veemência e sinceridade, pelos que sentem dentro de si, mau grado a ojeriza dos
materialistas, as exigências e as intransigências de alto senso moral e espiritual, de uma
consciência vigilante “aquela centelha divina” que o cepticismo de um Heine acabou
por reconhecer.
Quando, porém, o mesmo experimentador ou o mesmo prestidigitador que denunciou
e comprovou as fraudes, atesta que, tomadas todas as precauções com o ambiente- e
com as pessoas, os fenômenos surgiram, os fatos verificaram-se, materializaram-se e
desmaterializaram-se fantasmas, o analista, o juiz infalível, que não pode acreditar no
vôo de um elefante, atitude de que se serve homoristicamente para negar os fatos
supranormais, volta-se-lhe a crítica e a ira para a ingenuidade dos sábios — tanto mais
ingênuos quanto mais sábios — ou para a credulidade de certos prestidigitadores.
O absurdo maior resulta da incoerência do julgador inexorável, que repudia o
testemunho dos sentidos alheios, quando tudo quanto ele conseguiu de ciência (afora o
ateísmo que lhe foi dado graciosamente), proveio do uso dos seus sentidos, apesar da
sua confessada miopia e das crises de irite recidivante que ele publicou.

O bom metapsiquista.

Enfim, a sua biopsicologia traça, dogmaticamente, o perfil do bom metapsiquista:


deve ser ateu, de preferência espontâneo; deve aceitar Freud como decifrador da alma
humana (com restrições, quando confia um pouco no intelecto, para o futuro); não deve
ser demasiadamente sábio, porque a sabedoria é ingênua; pode ser prestidigitador, a
menos que seja crédulo; deve ser médico medíocre, porque este soma em si um
conjunto de qualidades insuperáveis.
Quando se lhe diz em vão que o médium estava acorrentado, que as portas estavam
pregadas, que as materializações realizaram-se progressivamente, assim como a
desmaterializações, que a insugestibilidade das chapas fotográficas registraram as
imagens, que dispositivos elétricos controlaram os passos de todos, que o ambiente foi
imposto ao médium, que os experimentadores não acreditavam em nada e que a
confissão da realidade dos fenômenos, repetidos dezenas de vezes, lhe custaram os
maiores sacrifícios, ele replica, vitoriosamente, que todos os médiuns de qualquer sexo,
de qualquer idade ou de qualquer categoria social, passados, presentes ou

117
futuros, são como aquele prodigioso Houdini: livram-se, em segundos, de todos os
amarrilhos e de todos os cadeados. Não há garantias. Deve haver sempre uma entrada
para o suposto espírito — um alçadão. A engenhosidade, a habilidade incrível dos
prestidigitadores (todos os médiuns o são!), contrastando com a ingenuidade e a bobice
dos sábios, dão como resultado esta farsa tremenda, universal, pandêmica, que se repete
no mundo inteiro, exigindo um Silva Mello para esclarecer tudo.
Quando a ciência materialista e ateia defronta questões que não pode compreender
nem explicar, apela para uma palavra grega, uma fórmula, uma teoria (mais complicada
do que o próprio mistério), e com esta mistificação e este ilusionismo dá-se por contente
e vitoriosa.
Diante da assombrosa, da inacreditável materialização obtida por experimentadores
incrédulos da marca de Crookes ou de Richet, o dogmatismo científico, tão fanático
como o seu congênere religioso, surripia o fato deslavadamente e cita a palavra nova
com que foi batizado.
Conversando com um médico altamente ilustrado, envolvido nas fumaças filosóficas
do positivismo comteano, a respeito das experiências metapsíquicas que atestaram as
materializações, com o fim de encontrarmos juntos a explicação do “absurdo”, ele
acenou-me para que me calasse e ensinou-me:
— Richet explicou muito bem, é a ectoplasmia!
Eis o com que se contenta, muitas vezes, o racionalista, o realista que só usa as
pobres frinchas dos seus sentidos físicos e limitados. Escapa-se-lhe a essência dos
fenômenos, mas a nomenclatura avulta, cresce-lhe horizontalmente a ciência, a pobre
ciência humana — uma simples lição de coisas e de nomes que enchem as enciclopédias
e os dicionários. Os teóricos catedráticos perdem o tempo, na expressão de Bozzano, “a
cunhar neologismos e a apresentá-los como demonstrações.”
Silva Mello ainda se detém diante do “mistério de nossa consciência”, mas nos
promete uma solução para breve, “porque, em última análise, deve ser ela um fator
biológico, semelhante a muitos outros, possuindo a sua significação própria e muito
natural.”
Enquanto funda toda a sua convicção no “fator biológico”, como se esta expressão
não fosse uma das muitas fórmulas que ocultam a nossa crassa ignorância da essência
das coisas, aquele mesmo Richet, de que fez o mais deprecia-

118
tivo juízo nos seus célebres MISTÉRIOS, julga-se incapaz de compreender muitas
coisas, que a orgulhosa ciência materialista já admite como ultrapassada e superada.
Talvez esteja aqui a origem dos motivos que induziram os dois médicos, tão diferentes
em tudo, a tomarem caminhos opostos no estudo da vida e dos seus problemas.
Richet está convencido da impotência da ciência humana, impotência que ele
descreve muito bem numa das suas obras filosóficas; Silva Mello, ao contrário, acha
que todos os fenômenos possuem “a sua significação própria e muito natural.”

A impotência da ciência humana.

Sentindo-se rodeado de mistérios, Richet busca a essência das coisas, a ciência das
causas, daí a atitude desassombrada do metapsiquista, que consome dezenas de anos de
sua vida gloriosa para entrever uma luzinha qualquer, vinda dos espaços infinitos.
Silva Mello não somente considera esta atitude indigna de um sábio, mas aconselha o
homem a voltar os olhos exclusivamente para o “ser animal, para a escala zoológica”,
incitando-nos a imitar os animais, porque estes “conseguiram resolver os seus
problemas de maneira surpreendente” (Alimentação, Instinto e Cultura, pág. 481). A sua
biopsicologia, somada à psicanálise de Freud (quando não lhe contraria as conclusões),
pleiteia para si o direito de tudo explicar, de modo natural, suave, claro, objetivo. Nos
MISTÉRIOS a sua argúcia esclarece as questões mais transcendentes que inquietam a
alma humana.

“Suponhamos que um dia virá, diz Richet, em que a descrição do mundo estará acabada e
irrepreensível. Admitamos que, graças a um trabalho coletivo multiplicado, o homem tenha podido
catalogar e fotografar todas as estrelas visíveis aos mais possantes telescópios, que tenha podido
descrever e classificar os ossos, os músculos de todos os vertebrados, as escamias de todos os crustáceos,
os anéis de todos os moluscos, as folhas, os tecidos e os grãos de todas as árvores, todas as variedades de
bactérias, os sintomas de todas as moléstias, e coeficiente de dilatação de todos os gases, os pesos
atômicos de todos os corpos simples. Em que esse infeliz homem estará melhor informado sobre a
constituição do Universo? Não há ciência além do geral, dizia Aristóteles. Eu acrescentarei: não há
ciência além da ciência das causas.”

119
Positivamente, entre Silva Mello e Richet se interpõe uma incompatibilidade de
gênios tão evidente que dificilmente poderiam viver debaixo do mesmo teto.

Os médicos e os prestidigitadores.

Em certo capítulo do seu enxundioso livro (pág. 546), lembra, perfilhando Carrel,
que os melhores experimentadores para os fenômenos espiritistas devem ser os médicos,
porque “são possuidores de um profundo conhecimento do homem, da sua psicologia,
das suas neuroses, da sua aptidão para a mentira, da sua suscetibilidade à sugestão e da
sua habilidade em prestidigitação.”
Muito bem. Mas quem nos garantirá a idoneidade dos médicos, homens, também, se
não forem mulheres? E se o médico for, confessadamente, notoriamente, portador de
uma neurose, de duas, aliás, agnosticismo sine materia e medo incoercível de
fantasmas? Não comparece aqui “a sugestibilidade à sugestão”, com a agravante de ser
uma auto-sugestão (medo gratuito de um fantasma)? Neuroses, aptidão para a mentira,
sugestibilidade, habilidade em prestidigitação são grandes obstáculos que inutilizam os
médiuns e os seus comparsas. A gravidade, porém é maior, mais funestos os resultados,
quando o árbitro, o juiz, o órgão controlador se transforma, embora médico inteligente e
culto, numa espécie de balança grosseira e fraudulenta, demasiadamente imprecisa.
Não são apenas os médiuns que, para forçarem o aparecimento de fenômenos, os
quais não se submetem à vontade humana, tais como os fenômenos meteorológicos,
costumam usar fraudes, mistificações, ilusionismo. Os cientistas também o fazem,
quando escondem a sua ignorância através de nomenclaturas, de teorias abstrusas, mais
complicadas do que os próprios fatos, para a imporem os seus princípios filosóficos.
Que mais se parece com a fraude desmascarada por um experimentador consciencioso
do que a negação irracional de fenômenos verificados, comprovados, atestados pelo
depoimento de analistas, muitas vezes incrédulos?
A prestidigitação e o ilusionismo tanto podem meter um coelho dentro da manga da
casaca ou da cartola, como tirá-lo de lá... A simulação e a dissimulação são artes de
igual merecimento diante da platéia. Simular inacreditavelmente um fato, dissimular
com perfeição um outro, praticar

120
a fraude de comissão ou a fraude de omissão, tudo são obra e ofício de prestidigitadores.
Os adversários do neo-espiritualismo desvirtuam, consciente ou ingenuamente, as suas
finalidades e os seus propósitos, confundindo-o com o misticismo, o sobrenaturalismo,
o dogmatismo dos crentes, ao mesmo tempo que nos prometem soluções naturalísticas
para as teses do psiquismo, excluídos os milagres. É justamente isto que almeja, que
pede, que apóstola a doutrina dos espíritos. Primitivamente, basicamente, ela quer ser
tomada como ciência experimental, assente sobre fatos, os quais se acumulam e se
repetem em todos os meridianos e em todos os paralelos.

As “experiências” de Silva Mello.

Contrapondo às experiências concludentes de sábios as críticas levianas de apedeutas


que nada experimentaram, atritando autores contra autores, mas não tendo, ele próprio,
nada observado, ou somente investigado “por intermédio de uma terceira pessoa” (pág.
27), confissão plena de sua inocência e de sua ingenuidade, os seus arestos finais de
nada valem, mesmo que nos esquecêssemos dos seus escotomas psíquicos.
Querem um exemplo da argumentação capciosa do autor dos MISTÉRIOS? Para ele,
todos os médiuns são farsantes, ou fraudadores, ou venais.
Este axioma é o pedestal sobre que erigiu o monumento da sua metapsíquica, já que
não lhe foi possível atribuir a um Crookes ou a um Richet senão aquela ingenuidade
paradoxal dos sábios, correspondência lógica da esperteza que alerta e protege os
medíocres. Isto posto, como precisa desmoralizar a obra científica de Crookes, serve-se
de um médium — Dunglas Home — “que trabalhou para Crookes antes de Florence
Cook”, atribuindo-lhe comentários desairosos sobre acontecimentos que não presenciou.
Se a experimentação de Silva Mello se realizou do modo mais estapafúrdio que se
poderia imaginar, “comparando textos”, cotejando depoimentos, qual deveria ser, nestas
condições, o veredicto menos falível? O de tomar em respeito a palavra de Crookes ou
de Richet, sábios incrédulos, ou a palavra de um médium, sinônimo de farsante, na sua
filosofia?

121
Os seus MISTÉRIOS, nos capítulos que versam o Espiritismo na sua feição
experimental, são apenasmente histórias mal contadas e parcialíssimas, enleadas em
contradições incríveis e paralogismos comprometedores. As conclusões derradeiras
andam às testilhas com as premissas preliminares, às vezes na mesma página. Um dia
tracejaremos um quadro sinóptico para registro estatístico e recapitulação sumária das
incongruências escondidas na selva selvagem de sua literatura e de sua ciência. Sofre
descarrilamentos constantes, sobrecarregado da bagagem superabundante de vários
autores, notadamente de Max Dessoir, cujo Tratado sobre o ocultismo é o seu livro de
cabeceira.
Desviou-se daquele salutar preceito nascido da finura do nosso Machado de Assis,
segundo o qual a melhor ciência e a mais verdadeira “não é a que se incrusta para
ornato, mas a que se assimila para a nutrição.” Se assim não fosse, a única leitura
apetecível seria a dos dicionários ilustrados... Vejamos um exemplo tomado entre mil.
Como premissa dogmatiza que o bom experimentador deve ser médico, tudo
dependendo, porém, “do temperamento da pessoa, das suas tendências espiritualistas”
(pág. 589). Esquece, em primeiro lugar, que seu postulado tem dois gumes: pode ser
aplicado, à própria, ao seu agnosticismo, principalmente ao tipo irracional de seu
agnosticismo, em vilegiatura pelo mundo dos fantasmas.
Mas o inaudito é que enumera, comenta e desvirtua, omitindo pormenores que ele,
como homem habituado às ciências experimentais, sabe muito bem de que importância
decisiva se revestem, as numerosas demonstrações de médicos notabilíssimos (Crookes,
Richet, Schrenck-Notzing, Gustavo Geley, Cibier, Hans Driesch, E. Osty, Lombroso,
Morselli, Lapponi, e outros).
Pode-se mesmo afirmar que os trabalhos mais célebres e Minis universalmente
conhecidos são da lavra de médicos. Desde Larkin, em 1837. Eis o primeiro
desmentido.
O segundo é mais flagrante: “as tendências espiritualistas”, a que empresta valor
decisivo para o julgamento final, não podia embaraçá-los, porque, no geral, como nos
casos de Crookes e Richet, não somente eram inexistentes e nulas, no tempo das
experiências, como permaneceram tais, posteriormente. Só tardiamente Richet aceitou a
sobrevivência.

122
Para nós, espiritualistas, a atitude de cepticismo ou de negativismo em que viveram
aqueles dois sábios eminentes, até os seus últimos dias sobre a terra (ao revés do que
aconteceu com muitos outros), foi providencial e certamente prevista por uma Força
inteligente, a que se acham subordinados todos os homens. Sob o ponto de vista da
ciência experimental, abstração feita de qualquer finalidade filosófica ou religiosa, a
falta de conversão do experimentador diante dos fatos presenciados, por culpa e graça
do seu livre arbítrio, unge-os da mais patente veracidade.
Temperamentos negativistas, “sem tendências espiritualistas”, obstinados na
descrença que remanesce e sobrevive, cooperam, de maneira decisiva, para levar à
convicção grande massa de curiosos, abúlicos ou irreligiosos.
Vejamos um outro exemplo, este bem nosso e bem brasileiro, que Silva Mello não se
dignou de referir.
Em livro recente, escrito por um engenheiro civil, bastante conhecido pela cultura
científica e filosófica (Urbano Pereira — “Trabalhos Post-mortem do Padre Zabeu”,
1946), um distinto médico de Taubaté descreveu, com minúcias impressionantes, a
célebre operação de apendicite realizada em Pindamonhangaba, operação que assistiu
do começo ao fim, tendo sido incumbido de fazer as radiografias antes e depois da
intervenção mediúnica. Está claro que o valor deste testemunho sobe de cotação, para
todo o mundo, quando o colega, antes de relatar fiel e lealmente, o que observou, faz a
seguinte ressalva: “Nunca fui espírita, não sou e não pretendo ser.” Aonde se poderia ir
buscar juiz mais competente e mais insuspeito para o julgamento da última instância na
luta entre os que afirmam e os que negam?
Fora disso, condecoremo-nos todos nós, sem exceção alguma, com as insígnias da
mais acaçapante imbecilidade e abstenhamo-nos, de uma vez para sempre, de usar os
sentidos e o raciocínio para solucionar quaisquer problemas humanos.

O prestidigitador Silva Mello em ação.

Passemos a outra modalidade de prestidigitação do historiador Silva Mello. Na


versão preferida pelos MISTÉRIOS, o exegeta suspeitíssimo, além de contradizer o
parecer emitido por Crookes, com aquela simplicidade e sinceridade de um sábio
acostumado à experimentação, ajudou-se da opinião de zoilos que se não achavam
presentes aos trabalhos, fin-

123
gindo olvidar que conclusões experimentais positivas não se anulam nem sequer com
outras conclusões negativas, quanto mais com restrições de opinadores apressados.
Com aquele seu modo muito disfarçado de afirmar os princípios mais
abracadabrantes, eis como procura rebaixar Crookes ao nível dos imbecis:

“Tem-se como explanado que os seus erros e as suas impressões eram por demais compreensíveis,
porque Crookes, apesar de grande sábio, se apaixonou por Katie, escrevendo versos inflamados de amor
inspirados pela jovem donzela, cuja beleza julgou indescritível.” (pág. 479).

Mais depressa se apanha um sofista do que um coxo. Quem seria Katie se não era a
médium Florence Cook? Teria sido Crookes enganado durante três anos, na sua própria
casa, por uma aparição, por uma simulação, sem se dar conta da prestidigitação, da
mistificação, da fraude ou do que quer que fosse? Por que nenhum mágico ou ilusionista
se propôs, hoje, a falsificar a cena, submetendo-se às condições impostas aos médiuns?
Crookes apaixonou-se pelo fantasma, di-lo o historiador Silva Mello, quando o mais
natural seria que se apaixonasse pela médium, criatura de carne e osso. Que prova isto?
Que o fantasma, durante o longo tempo que conviveu, que conversou com o seu
admirador, se materializou com tamanha perfeição física que excedeu a tudo quanto se
pudesse desejar de mais real.
Um sábio inglês, e que sábio! na versão histórica do Snr. Silva Mello, apaixonou-se
por um fantasma! Ou este sábio era o mais cretino, o mais lunático, o mais ridículo dos
sábios que já viveram sobre a terra, ou o fantasma era de uma materialidade
assombrosa. Onde o prestidigitador Silva Mello quer esconder aquela senhorita, depois
de episódio tão romanesco? Não somente os médiuns fraudam e mistificam: os
experimentadores virgens, os apedeutas, os jejunos, quando nada podem oferecer de
substancial, parasitam os trabalhos alheios, desfigurando-os e desvirtuando-os.
Substituem as suas deficiências e as suas misérias experimentais pela glória da negação
insensata. Mas não convencem. O bom senso humano é muito mais generalizado do que
o julga este nosso contador de histórias.
Leiamos, finalmente, uma página dos MISTÉRIOS, onde o estilo da descrição dos
fatos, a argumentação admirativa,

124
as conclusões gratuitas e fantásticas, a que costuma chegar, dão-nos a chave apropriada,
o código secreto com o qual poderemos decifrar o Sr. Silva Mello.
Depois de impugnar as experiências de Crookes, a muitas léguas de distância no
tempo e no espaço, negando obstinadamente, sem nada apresentar de seu, volta-se para
Richet:

“Ainda mais grave foi o que se passou com Charles Richet relativamente à médium
Marthe Béraud, na casa do General Noël, na Algéria, onde se tornou ele vítima das mais
ridículas farsas. Apesar das afirmações solenes nesse sábio no seu “Tratado de
Metapsíquica”, parece bem demonstrado que aqueles acontecimentos não passaram de
simples mistificações. Na realidade, quando se toma conhecimento do ocorrido, fica-se
perplexo diante da boa-fé, da ingenuidade com que foi tudo aquilo aceito, saltando aos
olhos que não passava de burlas grosseiras, de verdadeiras, brincadeiras, que foram
tomadas muito a sério. Richet verificou a materialização de uma moça belíssima, que ria
às gargalhadas dentro da cabine e da qual conservou a mão quente e macia dentro da
sua, esperando que se desmaterializasse! Depois, conseguiu cortar-lhe da cabeça um
esplêndido cacho de cabelo loiro, que conservou como relíquia e que, examinando ao
microscópio, revelou-se como cabelo humano, autêntico, perfeito! A simples descrição
desses acontecimentos torna-os tão claros e evidentes que se fica sem compreender
como puderam ser considerados como verdadeiros pelo grande sábio e publicados sob a
sua responsabilidade. Em torno da questão houve muitas polêmicas, que, não raro,
deixaram o nome de Richet em situação desagradável. (pág. 480).
Aqui se repetem todos os passos de mágica desse exímio escamoteador. Escondem-
se os pormenores da experiência, aquilo que denominamos o protocolo. Um fantasma
surge dentro da cabine... Nec plus ultra. Nem sequer os nomes das pessoas presentes,
afora a citação obrigatória do General Noël, cuja casa foi repentinamente transformada
em palco burlesco para burlas e burlões, nem sequer uma referência à idoneidade moral
e intelectual dos assistentes. Quem acreditaria na história assim primorosamente
resumida (um fantasma surge dentro da cabine...) e romanceada pelo mais prolixo dos
metapsiqnistas amadores, principalmente quando relata e denuncia as fraudes supostas
ou reais?
Transparecem nesse trecho alguns dos truques em que é useiro e vezeiro: afirmação
dubitativa (“parece bem demonstrado”...), nas horas necessárias, fingindo isenção que
não possui. Parece... É possível... É provável... Talvez... Seu livro está cheio disto. Dá,
aprioristicamente, como demonstrado (fica-se perplexo... saltando aos olhos...

125
a simples descrição desses acontecimentos...”) a irrealidade do fenômeno, não porque
descobrisse quaisquer fraudes, mas pela impossibilidade dele, Silva Mello, de acreditar.
B é por meio de tais escapatórias que ele prova, facilmente, a irremediável
imbecilidade alheia e a sua inexcedível sagacidade.
Quem se encontra, digamo-lo à puridade, em “situação muito desagradável” não são
os sábios que publicaram o protocolo de suas experiências: é o sofista que tudo nega
com exclamações admirativas. Aplicando-se-lhe a sátira de Oscar Wilde, quando
observou irreverentemente que “os escritores que esgotam o assunto nos esgotam
também”, poderíamos concluir, parodiando: a abundância excessiva de materiais
dificulta as construções próprias e favorece as construções alheias. Quem precisar de
provas, a favor da hipótese espírita leia, com o lápis na mão, os MISTÉRIOS de Silva
Mello.

As dificuldades naturais da doutrina.

“O que torna muito difícil o estudo do Espiritismo, fala Delanne, é que, quase
sempre, o verdadeiro fenômeno espírita se assemelha a outro que dele não é mais do que
imitação.”
As imitações correm por conta do animismo ou das fraudes: ao lado das
materializações totais há as criações ideoplásticas de retratos; ao lado da psicografia
espírita, em que, na outra extremidade do fio está um desencarnado, há a psicografia
inter-vivos; ao lado das percepções sucessivas e coletivas de fantasmas, há a visão
individual, que pode ser uma simples alucinação; ao lado das premonições verdadeiras,
há a coincidência fortuita; ao lado dos ruídos inteligente (raps), ora espontâneos, ora
convencionados, há os ruídos acidentais; ao lado dos conhecimentos supranormais,
obtidos por intermédio da clarividência, há as noções ocultas e esquecidas do
subconsciente; ao lado do automatismo psicológico adquirido, produto do estudo e do
exercício, há o automatismo psicológico congênito (precocidade), que provém de
experiências passadas, milenárias; ao lado dos poliglotas, que dialogam em línguas
mortas ou desconhecidas, há os repetidores de palavras ou sentenças curtas de línguas
estranhas à sua, vistas ou ouvidas um dia, casualmente.
Em suma, os próprios espíritos nos ensinaram, muito antes de Janet, de Grasset ou de
Flournoy, a distinguir entre

126
a impulsão fluídica material, que somente exterioriza o que existir em estado latente
dentro do médium (conhecimentos subconscientes) e o verdadeiro afluxo espiritual, que
se manifesta através da mediunidade verdadeira, digna e de moral comprovada.
Ainda mais: ao lado da incorporação de espíritos desencarnados, que fornecem todas
as provas de identidade, há os desdobramentos patológicos da personalidade, que
apenas muda de temperamento; ao lado das obras originais, profundas, algumas de
entidades que não deixaram modelo na literatura (Patience Worth, Emmanuel, André
Luis) há os pastichos suados e trabalhados dos Barões de Ascurra; ao lado das fraudes
inconscientes, explicáveis pela psicologia, há as fraudes verdadeiras, sempre
descobertas, que são casos de polícia e de crendice dos experimentadores; ao lado da
mediunidade legítima, que capta tudo diretamente do Além, há a mediunidade suspeita
que precisa de estimulantes (bolas de cristal, etc.) ou de pretextos (pêndulos, cartas de
baralhos); ao lado da mediunidade doméstica, familiar, oculta, recatada, caridosa e
cristã, há a mediunidade, muitas vezes na péssima companhia de devassos e malandros,
através da qual falam espíritos da mesma categoria, empestando os lares mais santos
com os seus discursos de camelots ou de demagogos; ao lado da mensagem autêntica de
missionários de Jesus, perfumadas de fraternidade e de amor, há as arengas de
condutores de homens, repletos de egoísmo e de “brutalidade, que agitam o mundo com
as suas torpezas, apoiados sempre na ciência materialista.
Silva Mello, de formação mental germânica e freudiana, mas na realidade um
torturado nascido às margens do Paraibuna, em nossa Juiz de Fora, na construção do
edifício pouco sólido dos MISTÉRIOS, feita em língua nacional, para leitores
brasileiros, não foi sequer a Pedro Leopoldo, onde vive o maior médium da atualidade
— o Chico Xavier; esqueceu os fatos espíritas mais interessantes presenciados no
Brasil, como as materializações do Pará, incluídas em obra de Delanne, a operação de
Pindamonhangaba, atestada por médicos, somente se ocupando com a mediunidade de
Mirabelli, na qual viu motivos sobejos para troças e pontos de admiração, como se este
caso não fosse mais do que a reprodução do que se passou em outros países, registrados
pelos testemunhos mais altos que se podem desejar.

127
Com a sua teoria de que todos os médiuns são farsantes, simplesmente irrisória a esta
altura a que chegaram os experimentadores mais insuspeitos, é-lhe impossível conceber
a mediunidade como fenômeno biológico, natural, universal, sujeito a eclipses e a
desaparecimento total, independente, por isso mesmo, da crença e da moral do sujeito.
Um paralelo entre o metapsiquista Richet e o biopsicólogo Silva Mello nos dará a
chave dos MISTÉRIOS. O Professor Schoroder contou os fatos supranormais
registrados por Richet, somente no seu “Tratado de Metapsíquica”: foram duzentos ao
todo. Nos MISTÉRIOS, cuja gestação durou 30 anos, o autor, sobrecarregado de livros
e de revistas, somente se aproximou de quatro médiuns, não tendo durado mais do que 8
horas o seu contato com eles. A um convite de Alexandre Aksakoff, Richet respondeu
nos seguintes termos: “Para aprender e conhecer os fenômenos espíritas, irei até o fim
do mundo”.
Envolvido nas fraudes, como o porco-espinho nos seus alfinetes, o biopsicólogo
nacional não admite a visão indireta, isto é, a visão sem olhos, embora a anatomia e a
fisiologia nos ensinem que é o cérebro, em última instância, que vê. De todas as
experiências positivas, registradas por inúmeros psiquistas (Geley, Notzing, Maxwell,
Mvers, Richet), notadamente as que se realizaram através de um homem culto e
respeitável — o engenheiro Stéphane Ossowietski — destacaremos uma, pela
semelhança de seu envoltório com a incredulidade de Silva Mello. Quando esta se
fecha, como o avarento, dentro de sua “burra”, para ruminar convicções absurdas, não
há cataclismos, não há terremotos que a desaloje do seu lugar. Tem a palavra o mestre
Richet:

“Um papel é enfiado em tubo de chumbo, cujas paredes tinham três centímetros. Foi soldado. Dos
assistentes ninguém sabia o que estava escrito. Ossowietski descreve: — “Vejo um desenho, um homem
com grandes bigodes e grandes sobrancelhas. Sem nariz. Com roupas militares. Parece Pilzudski. Esse
homem não tem medo, parece um cavaleiro.”

Richet abre o tubo e apresenta o desenho. A descrição é fiel e perfeita. Debaixo dele
estava escrito — Le chevalier sans peur et sans reproche. Que se há de propor, além
disso, ao inacreditável Silva Mello?

128
Eis outra experiência que Silva Mello, ingenuamente, inclui no seu livro, supondo
que, lembrada por ele, perde todo o seu natural merecimento. Que o leitor se faça juiz,
longe das vistas do biopsicólogo. Silva Mello serve-se da palavra de Richet:

Édison vai a um quarto afastado daquele em que se encontrava Reese e escreve a seguinte questão:
Há alguma coisa de melhor do que o hidróxido de níquel para uma bateria de substâncias alcalinas? E
volta à sala onde estava Reese, que lhe diz imediatamente: Não, não há nada de melhor que o hidróxido
de níquel para uma bateria de substâncias alcalinas”.

Dois anos depois, anuncia-se a Édison a visita inesperada de Reese. O sábio escreve,
em caracteres microscópicos, a palavra Keno e põe o papel no bolso. “Que escrevi”?
pergunta a Reese, e este, sem hesitação, responde-lhe: Keno.
Citando tais fatos, Silva Mello fica na situação do peru, quando se lhe traça em torno
um círculo de carvão. Não há por onde fugir: ou o poder do clarividente ficou
demonstrado de modo cabal, ou o espertalhão Édison ensaiou a experiência com o
Reese.

Silva Mello versus Silva Mello.

Que o nosso bondoso confrade Pedro Granja nos empreste, por favor, aquelas
palavras excelentes de Jayme Balmes:

“A incredulidade dos ignorantes, quando se trata de coisas extraordinárias, é sumamente curiosa. Se


ouvem falar de um fenômeno pouco comum, logo aplicam seu soberano critério: No mundo há muitos
enganos; portanto não me farão acreditar nessa, loa. E sacodem a cabeça com ar de indizível satisfação.”

Conquanto se julgue sábio, e o é em funções digestivas, Silva Mello descarrila,


evidentemente, quando quer tirar conclusões e quer filosofar desapercebido de fatos
experimentais, que não armazenou e dos quais soube, “por ouvir dizer”.
Que é nula a sua experiência no assunto, o leitor1 mais complacente, logo o percebe,
ao virar a última página dos MISTÉRIOS. Do seu livro se deduz que ele nunca viu uma
experiência positiva afora a dos diagnósticos. Teria, quando muito, razões naturais para
duvidar, o que é comum nos igno-

129
rantes da sua espécie. Mas vai além, quer substituir a riqueza experimental dos outros
pela sua pobreza franciscana. Não há intriga de nossa parte: quem tudo isso confessa,
em outros termos, é ele próprio:

“Além disso, é hábito apelar para a posição científica dos autores, quase sempre personalidades de
elevada categoria social, homens de respeitabilidade, julgados incapazes de burlas ou explorações
conscientes, visando finalidades falsas ou fraudulentas. Na maioria dos casos, pode-se afirmar que eles
são sinceros, em suas observações e assertivas, acreditando-se de posse da verdade, seguramente da
verdade!”

Onde Silva Mello nos aponta outro caminho mais seguro para o estudo de qualquer
matéria? Sabedoria, respeitabilidade, experimentação devidamente protocolada, onde
assentar, com maior segurança, as conclusões finais? No seu próprio livro, que nos
deseja convencer da tese contrária, o que transparece não é um simples contrabando de
tudo aquilo? Pois não lhe falta experimentação, idoneidade espiritual, respeitabilidade,
já que se confessa de mãos vazias de fatos, pantofóbico de fantasmas e em
ambivalência, pautando-se pela norma imoral de “ter razões e acertar idéias”, à conta do
desvirtuamento de provas?
Continuemos a transcrevê-lo, que vale a pena:

“Pois bem, justamente esse material é o menos adequado para o julgamento, aquele
que se tem imposto como mais suspeito traiçoeiro.”

Vamos, por conseguinte, fazer as nossas experiências em outro planeta: a conclusão


lógica é que aqui ninguém se salva, menos ele. Vai o sábio exemplificar:

“Ainda agora, ao escrever este livro, acabo de reler capítulos das obras de Flammarion sobre casas
mal-assombradas e forças naturais desconhecidas, das de Bozzano sobre manifestações metapsíquicas em
animais, das de Maeterlink, Maxwel, Oliver Lodge e outros sobre assombrações e fenômenos do mesmo
gênero, e devo confessar que, sem um preparo prévio, estendido por dezenas de anos (acredite quem
quiser!), teria ficado perplexo e desorientado, propenso a acreditar na realidade de toda essa
fenomenologia, como aconteceu em tempos passados (antes ou depois do ataque de ateísmo?) quando a
abundância do material apresentado e as provas e os nomes que o corroboravam me pareciam suficientes
para autenticá-lo.”

130
Que foi que aconteceu a Silva Mello, depois de tudo isso?

“Hoje, depois do que tenho observado e experimentado, não me sobram senão dúvidas (?) e objeções,
quanto à realidade desses depoimentos, que, de forma alguma, tenho podido confirmar.”

Poderíamos lembrar-lhe, a bem da verdade, do pouquíssimo que observou, um fato,


de que dá o seu testemunho; deveria, pelo menos, suspender-lhe o julgamento. Viu (pág.
27 dos MISTÉRIOS) médiuns que agiam do seguinte modo:

“O poder de determinados médiuns era por vezes tão prodigioso que bastavam essas simples
informações (nome e residência) para que pudessem diagnosticar moléstias mesmo à distância, em
qualquer doente.”

Se este diagnosticador de profissão e de corpo presente desprezou o resultado dessa


experiência, que foi, por assim dizer, feita consigo próprio, em matéria que constitui a
sua razão de existir, onde iria a fenomenologia espírita encontrar um fato que lhe
bastasse?
Silva Mello renova, neste século, os processos da Inquisição, que levaram à fogueira
mais de um milhão de bruxas, depois de convenientemente examinadas por peritos
juramentados, em geral cirurgiões e barbeiros, que tinham sido acusados, mas
absolvidos. Encontravam os examinadores com muita habilidade os estigmas clássicos
do satanismo. Na dúvida, usavam um critério semelhante ao que Silva Mello emprega
hoje para diferençar os fatos espíritas verdadeiros dos fatos fraudulentos. Nenhum se
salva. Amarrava-se a pessoa incriminada com uma corda; depois, era atirada num rio ou
num lago. Se imergia e morria afogada, era inocente; se sobrenadava, tinha pacto com o
diabo — ia para a fogueira.
Para nós, na sua penúltima encarnação, Silva Mello foi inquisidor, provavelmente
espanhol, o mais eficiente de todos. Eis o resquício, sobrevivente ainda:

“O que se verifica quase sempre é que, não havendo truques (submersão voluntária
da bruxa), existem outras circunstâncias que explicam o fenômeno, embora
freqüentemente passem despercebidas (fogueira).”

Somente um médico, que sabe aquilatar o merecimento de um diagnóstico certo, o


alvo de todos os seus estudos,

131
passados, presentes e futuros, — a finalidade científica de sua nobre profissão — está
em condições de distribuir a experiências positivas deste tipo o seu valor extraordinário.
Houve um médico que verificou o fato com os seus próprios olhos, e este médico se
atreve, com grande risco pessoal, a desprezá-lo, “para acertar as suas idéias”. Como
qualificá-lo, sem ofendê-lo?

“Autant la science est inattacable, quand elle établit des faits, autant elle est misérablement sujette à
l’erreur, quand elle prétend établir des négations.” (Richet).

Uma ciência em três tempos:


Primeiro tempo: negação apriorística — “absurdo”!
Segundo tempo: experimentação — nenhuma!
Terceiro tempo: negação definitiva — “fraude”!
A necessidade de se aniquilar a fraude, conforme o conselho de todos os
experimentadores, implica no dever de se esmagar, sem piedade, o negador dos fatos
reais.

Como se faz um Presidente da República.

Silva Mello penetrou o mecanismo íntimo das premonições, donde nos trouxe a
explicação simples, racional, naturalística, que todos devemos acatar com o maior
respeito. Quando uma profecia qualquer se realiza, é porque o indivíduo que dela se
transformou em objeto faz muita força, estimulado pela auto-sugestão, somada à
sugestão que se lhe quis introduzir. O que se verifica, evidentemente, diz ele, d (pie os
sobre os quais se fez uma premonição, por mera brincadeira, ficam “dominados pelo
vaticínio, fazendo com fino os acontecimentos se adaptem à profecia”.
Se um dia, por exemplo, alguém se lembra de dizer, ao pequenino engraxate que se
esmera em dar lustre às suas belas, que, dentro de 35 anos ele será o Presidente da
República, com entonação de voz e trejeitos sugestivos, o garoto, daquele momento em
diante, passa a agir visando aquela finalidade e tudo se consumará conforme foi
previsto.
Aconselha-nos o uso e o abuso da sugestão, que porá o mundo nos seus eixos,
quando a geração atual alcançar a maioridade.
Se a outro se lhe adianta que um tijolo lhe quebrará a cabeça, quando alcançar os 20
anos, ao chegar à idade fatal,

132
passará a oferecer a cabeça para alvo, debaixo de todas as construções de que tiver
conhecimento.
Uma das coisas que Richet admitiu, no fim de sua vida de metapsiquista e de
psicólogo foi que o Fado existe, o que equivale a dizer, “uma Força que nos guia e
conduz aonde bem lhe pareça, por vias indiretas, tortuosas e muitas vezes bizarras.”
Vejamos como Silva Mello poderá aplicar a sua teoria, nunca aliás experimentada,
ao seguinte fato de que o mestíe nos deu conhecimento:

“Meu amigo Maurice Berteaux, em sua adolescência, interrogou, para divertir-se, uma
sonâmbula, na feira de Neully, e dela obteve essa informação extraordinária, a de que ele estaria
um dia à testa do exército e seria morto por um carro voador (un char volant).
Ora, isso foi em 1880. Maurice não tinha a menor relação com coisas militares; era simples
caixeiro de agência de câmbio e não sonhava com política nem com exército.
Em 1880, naturalmente, tratava-se tanto de carros voadores e de aviões, como duma viagem à
lua.
Os acasos da vida fazem com que Maurice Berteaux, dotado de admirável inteligência, se
tornasse agente de câmbio, que entrasse na política, que se fizesse eleger deputado de Seine-et-
Oise, que representasse na Câmara um papel importante e que fosse nomeado Ministro da Guerra.
Ora, em 1907, presidindo, como ministro da guerra, a uma revista militar, foi morto pela queda
brutal de um aeroplano que o piloto não sabia dirigir e que se precipitou sobre ele.”

Pela teoria de Silva Mello, foi o próprio Maurice Berteaux que deu provimento a
todos os preliminares necessários, para que um dia lhe caísse sobre a cabeça um char
volant. Como se vê, o biopsicólogo explica tudo, de modo sobremaneira simples. O
único obstáculo que impede a vitória total de suas teorias é justamente a simplicidade
excessiva delas...
Assim falou Silva Mello:

“Ele (o próprio indivíduo) pode ficar tão dominado e sugestionado pelas profecias do adivinho que
acabará por executá-las fielmente, não raro à custa de tremendos esforços (até a morte, no caso de
Maurice Berteaux!) e repetidas adaptações.”

Cientismo anti-científico.

Silva Mello reedita e requenta a insinuação capciosa de Leonídio Ribeiro, quando


este aponta Flammaríon (?) como testemunha de que o médium Daniel Dunglas Home,
outro

133
farsante para ambos, atestara a velhacaria de Florence Cook “que enganara o velho
sábio, a quem conseguira sugestionar.”
Eis Flammarion transformado em depoente a favor da tese das fraudes, quando, na
realidade, se referiu apenas a “uma opinião” de Home, que se supunha o melhor dos
médiuns vivos ou mortos — “et qu’en fait de medium il n’y avait que lui”,
acrescentando, em seguida, que tal opinião não tinha valor algum, para quem “conhece
e observou de perto as rivalidades dos médiuns, tão notadas como a dos médicos, dos
atores, dos músicos e das mulheres.”
Louvam-se os nossos metapsiquistas teóricos nos Les Morts vivent-ils? de Paul
Heuzé, que foi severamente condenado pela deturpação do pensamento de alguns
entrevistados e mereceu de René Sudre, autoridade insuspeita para os detratores do
Espiritismo, as seguintes corrigendas:

“Trata-se de um inquérito sobre o estado presente da ciência? Não, afirmamo-lo com tôda a franqueza.
Se houve imparcialidade na escolha dos entrevistados, ela não existiu no registro das respostas, visto que
provocaram retificações importantes; e ainda menos imparciais, foram os comentários expedidos.” (Revue
Métapsy chique, 1922).

Geley protestou (L’Opinion, 1-10-1921). Flammarion (Revue Spirite, 1921) teve que
desfazer o equívoco de Heuzé e o fez em um artigo — Une mise au point — onde usa as
expressões seguintes:

“O leão de Nemeia, caindo da lua não ficaria mais surpreendido do que ele, com as opiniões que o
entrevistador lhe prestara.”

Aqui, no caso de Paul Heuzé, ainda houve, pelo menos, um autor responsável pelas
confusões, desmentidas a tempo, porque as vítimas puderam tomar conhecimento delas.
E as balelas anônimas contra Home, Florence Cook, Eusápia Paladino e Martha
Béraud?
Nove anos após as experiências de Crookes, disseram ao Times que uma Sra. Corner,
dizendo chamar-se Florence Cook, fora apanhada em fraude. Tout court. Ninguém
apurou nada e deu-se tudo como provado. Uma fraude grosseira (pois o ilusionismo que
a tanto se abalance é simplesmente infantil) retroage sobre experiências rigorosíssimas,
realizadas sob controles elétricos, nove anos antes, pelo maior sábio de seu tempo.
Contra os testemunhos de Richet e do General Noel, em cuja casa se obtiveram as
materializações de Vila Carmen,

134
por intermédio de Martha Béraud (posteriormente reproduzidas por Mme. Bisson,
Schrenck-Notzing e Geley, preferiu-se a revelação do cocheiro Areski, ladrão de aveia e
de milho dos cavalos do General Noel e por este despedido do serviço. Mancomunou-se
o cavalariço com uma criada de cozinha, dando-se os dois como autores das
materializações. E os cientistas de hoje aceitam a hipótese do ladrão de aveia contra a
sagacidade, a prudência e a experiência de Richet, auxiliado pelo anfitrião, o General
Noel.
Geley comenta as sessões da Sorbonne, às quais compareceu o médium Jean Guzik,
deduzindo, do próprio relatório assinado por Langevin, Rabaud, Marcelin e Meyerson,
peritos que não ficaram sabendo como os poucos fenômenos se puderam realizar, mas
declararam que houve fraude. Geley (Frontière enchantée et Monde à 1’envers, Revue
Metapsychique, 1923) acusa o relatório como modelo de incoerências. Os seus
signatários têm impressões de muita coisa... “Nenhuma prova de fraude; fatos em
contradição com a hipótese de fraude: eis o que transparece das atas.”
As acusações levianas contra Home mereceram réplicas imediatas de homens como
Myers, Barrett e até de Russel Wallace (Miracles and Modern Spiritualism):

“A vida de Home, proclama Russel, foi pública, em grande escala; passou ele grande parte de seu
tempo como hóspede de pessoas de alta classe e de talento. Conta, entre seus amigos, eminentes
individualidades da ciência, da arte e da literatura, homens, certamente, de forma alguma inferiores em
poder de percepção e de razão àqueles que, sem assistir às manifestações, acham que não as houve.
Durante 20 anos, foi ele exposto a exagerado exame, e a suspeição jamais foi posta de lado por
inúmeros perquiridores: entretanto, nunca foi dada qualquer prova de embuste, nem nunca se descobriu
qualquer fragmentos de aparelhos ou de maquinaria.
As manifestações, aliás, foram tão assombrosas que, se fossem filhas da impostura, só poderiam ser
realizadas por engenhos da mais complicada, da mais variada e da mais embaraçosa natureza; elas
exigiriam a assistência de muitos ajudantes e cúmplices. A teoria de que tais manifestações não passaram
de ilusão é absolutamente insustentável, a menos que não haja meio nenhum de se distinguir a ilusão da
realidade.”

Será preciso apresentar Russel aos cientistas nacionais?


O Professor Morselli, de cuja alta companhia muito se agradam, e com justa razão,
os psiquiatras e os neurólogos, tanto religiosos, como ateus, logrou, como diversos
experimentadores, graças à mediunidade de Eusápia Paladino, apari-

135
ções semelhantes às obtidas por Crookes com Florence Cook e às de Richet com Martha
Béraud. A única diferença foi que, desta vez, o fantasma que surgiu entre os assistentes,
acendendo-se e apagando-se, à vista de todos, era do sexo oposto ao do médium:

“Discutia-se, ainda, sobre a figura que tinha aparecido, e a mesa tomava parte, com suas danças, na
conversa, quando uma segunda aparição se mostrou no ângulo do gabinete. Desta vez, era a figura de um
homem. As partes visíveis mostravam-se como na materialização precedente. Dir-se-ia um verdadeiro
gigante: cabeça volumosa, rosto largo, com fortes zigmas, nariz grosso, curto, chato, barba densa,
anelada; espáduas quadradas e robustas, pescoço musculoso, peito largo. Um véu do tecido mediúnico
habitual lhe cobria a cabeça e parte do rosto.
Como o segundo fantasma se mostrasse durante um minuto, poderíamos julgar de sua fisionomia e
mesmo discuti-la, se não se tratasse da figura tradicional de John King. Pareceu que ele nos saudava com
expressivos movimentos de cabeça; depois, apagou-se rapidamente; a princípio, os traços do rosto se
tornaram incertos; em seguida, os contornos se dissolveram até serem substituídos pelo fundo escuro da
janela. Eu me levantei, imediatamente, para verificar o estado da médium. Essa, como sempre, estava
estendida em condições de semi-letargia; ofegava e transpirava mas continuava solidamente ligada.
Entretanto, como se queixava de que os pulsos lhe causassem mal, por muito apertados, eu desfiz, não
sem dificuldade, os nós numerosos e complicados com que a atara; assim lhe tendo libertado as mãos,
deixei-a unicamente ligada pelos pés e pelo busto.”

Entre os dois grandíssimos metapsiquistas brasileiros — Silva Mello e Leonídio


Ribeiro — há divergências sérias atinentes ao alvo provável da paixão de Crookes: para
Silva Mello, o sábio apaixonou-se pelo fantasma, e por isso foi ludibriado; para
Leonídio Ribeiro, autoridade não menos suma, a paixão deseoncertante nasceu pela
médium.
Outro desacordo fundamental: Silva Mello resolve tudo pela fraude; Leonídio
Ribeiro, pela alucinação. Ouçamos o último:

“Richet, Morselli e outros pesquisadores, em condições regu-lures de observação, pensam ter


verificado fenômenos absolutamente inexplicáveis. As suas indicações, porém, não constituem uma prova
decisiva da realidade dos fenômenos físicos supranormais, pois os mesmos podem ser explicadas, já não
falando nas fraudes, pela alucinação susceptível de atingir às vezes os observadores.”

136
Eis, sinteticamente, num período de poucas linhas, como um cientista, servindo-se
apenas da caneta e da docilidade de uma folha em branco, dá, luminosamente, a
explicação de fatos que não observou, não entende, não compreenderá, por uma
fatalidade orgânica e congênita.
Silva Mello tem razão: os grandes sábios são ingênuos e cretinos. Somente as
imitações de sábios alcançam a verdade das coisas.
A alucinação! Que maravilha!
Crookes, Richet, Schrenck-Notzing, Morselli, Lombroso, universidades inteiras da
Alemanha e da França, a balança de Price, o galvanômetro de Deprez e D’Arsonval, o
biômetro de Baraduc, o magnetômetro de Joire, o dinamistografo de Mattla, o selenóide,
o eletrômetro de quadrante, a báscula, o cadeado, o electroscópio, os fios elétricos, os
filmes fotográficos, tudo alucinado! Que sábio!
A ingenuidade dos físicos, a fraudulência dos médiuns, a alucinaço geral e universal,
eis a mesinha de três pés sobre a qual a virgindade e o apedeutismo dos sábios nacionais
ostentam as conclusões finais dos seus pareceres.
Homens que devem a sua formação científica ao experimentalismo deviam saber que
ninguém, por maiores títulos eom que se engrandeça, a menos que um sadismo
paradoxal o esteja instigando a pedir pancada, tem o direito de desfazer na experiência
alheia com suposições ou hipóteses, máxime quando apoiado em invencionices
anônimas ou de ladrões de aveia.
Crookes e Richet viveram dezenas de anos após as suas experiências. Ambos
morreram velhinhos. Tomaram conhecimento das acusações que lhes foram feitas,
sempre pelos que não se achavam presentes às cenas de que foram testemunhas, assim
como das calúnias levantadas contra os seus médiuns que se sujeitaram a todas as
exigências controladoras.
Nenhum dos dois, até o último dia de vida, se retratou de coisa alguma. Em
Setembro de 1898, no Congresso da Associação Britânica, Crookes ratificou os seus
trabalhos experimentais, realizados nos domínios do Espiritismo, com as seguintes
declarações:

“Trinta anos se passaram desde que publiquei as atas da» experiências tendentes a mostrar que, fora
de nossos conhecimentos científicos, existe uma força posta em atividade por uma inteligência diferente
da inteligência comum a todos os mortais. Nada

137
tenho de que me retratar em relação a essas experiências, e mantenho as minhas verificações já
publicadas, podendo a elas acrescentar muita coisa.”

Richet, na conferência realizada na Faculdade de Medicina de Paris, a 24 de Junho


de 1925, dá um balanço de mias atividades metapsíquicas, para uso de seus alunos, ao
despedir-se definitivamente deles:

“É preciso, bem entendido, antes de admitir a realidade desses fatos inverossímeis, inabituais,
observar uma disciplina severa, ferozmente e implacavelmente severa. É preciso eliminar todas as
hipóteses, ainda as mais plausíveis, antes de concluir por um fenômeno metapsíquico.
Mas, enfim, quando o fato está aí, inexorável, dominador, desafiando todas as objeções, força é aceitá-
lo, sob pena de dar um ruidoso desmentido a todos os nossos princípios científicos, às leis imperiosas do
método experimental.
Notai-o bem, é o professor de Fisiologia quem vos fala. E ele não admite outro guia que não a
experiência. Fui discípulo de Claude Bernard, de Vulpian, de Marcy, de Berthelot, de Würtz e mo julgaria
cientificamente desonrado se não seguisse os exemplos e as lições desses mestres ilustres, e se não
aceitasse, constantemente, a experiência como soberana senhora de minhas opiniões.
Assim armado, posso desdenhar — e é este um preceito tanto de moral quanto de ciência — os
clamores da opinião pública. É preciso repetir que todas as conquistas da ciência foram, em sua origem
perseguidas, ridicularizadas, escarnecidas, arrastadas às gemônias.”

Como é fácil o entendimento, quando a gente conversa com sábios de verdade! Que
esforço tremendo de paciência, quando topa uns escribas que fogem das oportunidades
d.i ver alguma coisa de perto, pelo medo pânico de ler que deixar as suas preciosas
assinaturas nas atas, depois que esgotassem todas as condições impostas aos médiuns!
Uma ingenuidade que se recusou a aceitar argumentos semelhantes aos de Silva
Mello, uma ingenuidade tão teimosa e obstinada, que não se retrata ao fim de dezenas
de anos, uma ingenuidade que se justifica nos termos inequívocos de Crookes e de
Richet, já não estará fazendo jus a outro qualificativo menos delicado? Não teriam
caráter, escrúpulos morais, os fundadores da metapsíquica? Escolha o leitor a
companhia que achar mais digna...
Se tomarmos em consideração os seus interesses pessoais, as suas concepções
filosóficas da vida (Richet somente se converteu à sobrevivência nas vésperas de
morrer), os seus títulos oficiais, os conselhos de seus amigos, a péssima com-

138
panhia das patacoadas e das maluquices espíritas, teremos que anuir em que os dois
sábios sustentaram sempre as suas opiniões porque possuíam um dom que falta a muita
gente — caráter.
Excederam-se tanto os cientistas nas suas negativas, vizinhas da insensatez, que
acabaram por merecer a admoestação severa da própria Igreja, que ainda não
compreendeu, todavia, a função específica das mensagens do além-túmulo.
Do alto de sua dupla eminência — cardinalícia e moral — referendada pela bênção
apostólica de um Papa (Benedito XV), o Cardeal Alexis Lépicier, no Mundo Invisível
ou Uma Exposição da Teologia Católica Perante o Espiritismo Moderno, aplica aos
cientistas do estofo de Silva Mello a penalidade máxima que se comina a sábios
materialistas, apanhados em flagrante prevaricação:

“Devemos admitir a existência de certos fenômenos que, depois de atento exame, não podem ser
considerados como tal (fraude), e seria um processo arbitrário e altamente anti-científico negar a
interferência do mundo espiritual e invisível em tais fenômenos.”

E depois de nos lembrar a materialização sólida, palpável e resistente do anjo Rafael,


“que apareceu a Tobias sob a forma de um mancebo, passeando e conversando com ele
durante muitos dias”, aconselha-nos a que nos reportemos as obras de Crookes
(Researches in the Phenomena of Spiritualism, Londres, 1874), de Frank Podmore (The
Newer Spiritualism, Londres, 1910) e de Albert Philibert Franz Schrenck von Notzing
(Materializations Phaenomene. Ein Beitrag zur Erforschung der mediumistischen
Teleplastie, Munich, 1914).
Haja-se por límpida e pura a fonte a que o Cardeal foi colher subsídios para a sua
metapsíquica. Katie King e o anjo Rafael, se não possuem a mesma paternidade da boa
angelitude, argamassaram-se com elementos da mesma natureza espiritual.
Há limites para as negações. Quem os ultrapassa, «m nossa época de livre exame e
livre manifestação do pensamento, afunda-se no abismo do ridículo. Tal atitude
equivale a uma auto-degradação.

139
CAPÍTULO QUARTO

SUMÁRIO

Vocação irresistível para os truques.


Médicos e prestidigitadores servem e não
servem. A verdade atestada por sábios. O
escamoteador em ação pública. Richet, o
experimentador mais completo. A
“hipótese” espírita. Entre as várias
hipóteses, a de Silva Mello. Os convertidos.
O caso excepcional de Lombroso. O
médium Mirabelli.

“Não podeis negar o progresso. Até mesmo o materialismo, que vós torna céptico,
teve que pronunciar a palavra — evolução. Mesmo vós, que negais, possuídos vos
achais de um desejo ardente, de um frenesi de ascensão e não podeis negar que o
intelecto progride, nem que alguns homens há mais adiantados do que. outros. Logo
impossível não há de ser, para a razão e para a ciência, admitir que alguns dentre vós
tenham alcançado, por evolução, uma tal sensibilidade nervosa, que lhes possibilita
apanhar aquilo que não chegais a perceber: as ondas psíquicas que nós, Espíritos,
transmitimos. Tais sãos os médiuns espirituais, verdadeiros instrumentos receptores das
correntes e idéias que podemos transmitir; é este o mais alto grau de mediunidade (em
certos casos, consciente do todo) e, quando se podem estabelecer relações de sintonia,
deles nos servimos com o elevado de vos enviar o nosso pensamento.”

PIETRO UBALDI (A Grande Síntese)

“O valor teórico de cem experiências negativas fica literalmente anulado por uma só
experiência positiva, bem observada.”
W. CROOKES.

140
CAPÍTULO IV

Vocação irresistível para os truques.

Nos seus MISTÉRIOS, Silva Mello revelou-se prestidigitador inato, ilusionista


infuso, escamoteador de nascença. Confessa possuir alguns pendores que, devidamente
explorados ou educados, roubariam à medicina nacional uma das suas figuras mais
originais dos tempos que correm. Ao contrário do Esganarello de Molière, que teve de
ser médico à força,

“Mas digam por que motivo


Hei de eu ser facultativo
Sem sê-lo?”

ele se enriquece, por correspondência e voluntariamente, com as artes e as ciências


ocultas.
Maravilhado com a mágica da pena de pavão (pág. 559), encontrou a chave do êxito
na execução daquele princípio que prescreve o desvio “da atenção do espectador para
coisas acessórias a fim de que não perceba onde se encontra o truque da representação.»
(pág. 558).

“Eu próprio, diz ele, dei-me ao trabalho de exercitar-me nesse gênero de diversões e o pouco que
aprendi me tem servido imenso para orientação no difícil campo do ocultismo, sobretudo verificando
quanto somos aí pouco perspicazes, mesmo homens cultos e de ciência, comparativamente a pessoas
incultas e crianças. As mágicas que aprendi a fazer são de uma reles insignificância, mas muitas vezes
suficientes para deixar de boca aberta amigos e até colegas de profissão. Diante disso, julgo uma
temeridade sem nome meterem-se afoitamente grandes homens de ciência a querer resolver tão arriscada
empreitada. Se ela precisa ser resolvida, é necessário que, previamente, sejam conhecidos os seus perigos
a o gênero de aventura em que nos vamos meter.”

Concitamos o nosso colega a que se dedique com todo o fulgor de seu talento, com
todo o poder de sua força de vontade e da sua incomensurável confiança em si próprio,
a fim de aprender a simular os fenômenos espíritas para dês-

141
mascará-los, por que eles, afinal, “podem ser obtidos facilmente, sem haver necessidade
de se recorrer aos mortos ou ao sobrenatural.” (pág. 523).
Quando estiver completa a sua formação artística, entregue-se às provas decisivas e
definitivas, não na sua biblioteca ou nalgum teatro, mas no ambiente que os adversários
elegerem, tudo dentro daquele roteiro que Crookes nos traçou para impedir fraudes.
Aliás, a este dever ele se devia curvar, espontaneamente, para salvar a sua tese
ameaçada de reprovação por toda a banca examinadora. Onde procuramos as
observações pessoais, as conclusões indispensáveis, as proposições próprias e originais,
com que os bons tratadistas médicos coonestam e ratificam as insinuações e as
promessas do texto erudito e recheado de ciência alheia, depara-se-nos o vácuo, ou a
única convicção a que se pode logicamente chegar, depois da leitura do aranzel —
nenhum testemunho humano esclarece os fenômenos supranormais. Sansão sacudiu as
colunas do templo e morreu debaixo dos escombros. É a impressão final que nos deixa a
tese de Silva Mello.

Médicos e prestidigitadores servem e não servem.

Para Le Bon “os únicos observadores competentes seriam homens habituados a criar
ilusões, e, portanto, também a frustrá-las, isto é, os prestidigitadores.” Eis uma boa pista
que Silva Mello diligenciou por seguir. E as fraudes cresceram. Exultou. De repente (e
de tudo se acha minuciosa descrição no livro), surgem-lhe através das leituras, sempre
através delas, prestidigitadores que tiveram de confessar a impossibilidade de
simulação, nas condições exigidas pelos experimentadores.
Silva Mello, então, arrepiou caminho e inventou outro postulado, para escorar os dois
axiomas que preestabelecera — todos os sábios são ingênuos e todos os médiuns são
farsantes: os prestidigitadores só podem servir quando, ao contrário dele, Silva Mello
“não acreditem em espíritos e fantasmas.”
Porque, então, acontecerá o seguinte: não encontrando sinais ou indícios de fraude
alguma, desmoralizam-se, infamam-se, despem-se da dignidade humana e profissional,
e não articulam aquela pergunta do assessor Max Dessoir diante do inexplicável, isto é,
dos conhecimentos supranormais da médium Piper — “se não é fraude, o que há
então?”

142
(pág 544). Pergunta repleta de ingenuidade e de malícia, na boca de quem tanto se
aferrenha às explicações naturalísticas para tudo.
Daí a razão muito natural, muito simples e muito objetiva pela qual Will Goldston
“ilusionista muito conhecido na Inglaterra e que. foi presidente do Clube dos
Prestidigitadores” (pág. 585), chamado a fazer investigações metapsíquicas, acabou por
“descobrir fantasmas até na sua própria casa, que lhe sacudiam a cama até a tirarem do
lugar.”
A explicação naturalística que se impõe é muito clara:

“O próprio Goldston acabou por praticar inconscientemente tais atos, impressionado ou sugestionado
pela sua própria imaginação.” (pág. 586).

É a explicação de Silva Mello, através de C. Vesme. Arquive-se e empalhe-se este


prestidigitador, vítima da inconsciência e da sugestão.
Outro médium notável de materialização foi Frank Kluski, rico banqueiro, poeta
elegante e apaixonado das ciências naturais, em cuja família a mediunidade era
hereditária. A alegação de que ele poderia fraudar por interesse de qualquer espécie é
dessas suspeitas que conspurcam os que as articulam.
Margery, o célebre médium de Boston, foi examinado por Dingwall, pestidigitador
de renome, enviado especialmente àquela cidade pela “Society for Psychical Research”
para estudar as suas manifestações mediúnicas. Dingwall, que já havia desmascarado
muitos médiuns e confirmado em Munique os fenômenos apresentados por Willy
Schneider, relata ao Dr. Schrenck-Notzing o resultado das suas verificações:

“É (agora é Dingwall quem fala) o mais belo caso de telepatia e telequinesia que conheço. Pode-se
tocar livremente o telepasma. As mãos materializadas são ligadas por fios ao corpo do médium; elas
seguram objetos e os movem. As massas teleplásticas são visíveis e tangíveis sobre a mesa, sob boa luz
vermelha. O controle é perfeito, inatacável.” (pág. 520).

Não haverá aqui “algum interesse material disfarçado”, “um excesso de crença e
convicção”? pergunta o inquisidor Silva Mello. Eis a escapatória para explicar a
conclusão do prestidigitador de renome.

143
Já se impugnou o depoimento de Will Goldston (Presidente de um Clube de
Prestidigitadores), por excesso de credulidade; o de Dingwall, por suspeita de “algum
interesse material disfarçado!”
Busquemos a suma autoridade de Harry Price. Silva Mello no-lo apresenta como um
prestidigitador que “se tornou célebre desmascarando médiuns e impostores e que
adquiriu competência excepcional para julgar tais fenômenos, sobre os quais acumulou
uma biblioteca de milhares de volumes, tornado-se um dos melhores conhecedores dos
problemas em questão” (pág. 521).
A apresentação está feita. Mas Price não teve outro recurso senão confirmar as
observações a que chegaram os ingênuos Crookes, Richet e Schrenck-Notzing.

“É ele quem diz que Eusápia Paladino fraudava quando lhe era possível, mas que produzia igualmente
fenômenos mediúnicos verdadeiros.”

Concedamos a palavra a Silva Mello. Deste modo continua a reproduzir o


testemunho de Price:

“E cita Morselli que consegiu com ela, em Gênova, a levitação completa de uma mesa, registrada nas
condições mais rigorosas de experiência. Refere-se também à Comissão enviada pela Society of Psychical
Research a Nápoles para estudá-la e cujos membros verificaram manifestações extraordinárias, como a da
mão branca agitando uma campainha atrás da cabeça do médium. Ele acredita que isto devia ser verdade,
porque conhecia pessoalmente os membros da comissão, dois dos quais eram prestidigitadores
competentes e que não se deixariam enganar...”

Este mesmo Price mereceu-lhe a seguinte citação:

“Como se sabe, Harry Price chamou a atenção para os artifícios empregados, mostrando o perigo que
correm aqueles que se vão meter na chamada investigação espírita”. (pág 562)

Silva Mello não seguiu à risca o conselho de Dessoir, que lhe não pediu livros
grávidos de comentários desairosos às experiências alheias, comparando textos
exaustivamente, contrapondo a fatos experimentais uma incredulidade ad absurdum,
recheada de suspeitas, desconfianças e sofismas.

“Não devemos esperar, diz Max Dessoir, até que o acaso ou qualquer tendência pessoal nos levem a
investigar o problema doa médiuns; o que devemos fazer, ao invés disso, é procurar todas as

144
ocasiões que possam aparecer para estudá-los e desvendar os seus mistérios, fazendo a maior divulgação
possível de tais investigações. Na verdade, já chegou o tempo em que se tornou necessário lançar luz
dentro de tão densa escuridão.”

É destino fatal de Silva Mello desmesurar sempre os modelos mais audaciosos. A sua
psicanálise desfez a confiança de Freud no intelecto futuro; o seu evolucionismo
concluiu contrariamente à lei fatal do progresso material e espiritual. Ledor assíduo de
Max Dessoir, não precisa mais estudar a mediunidade e “desvendar os seus mistérios”,
nem aquiesce em lançar “luz dentro de tão densa escuridão.” O seu professor pede mais
provas, mais demonstrações, mais estudo. Ele dá tudo, aprioristicamente, como
resolvido. Por isso Goldston, Dingwall, Price, havidos como especialistas incomuns em
descobertas de fraudes, apresentados com adjetivos encomiásticos, são, depois,
sumariamente recusados sob o pretexto de credulidade, venalidade, exibicionismo,
exaltação da personalidade, ou “por motivos muito simples, talvez de ordem
econômica.” Lá se vão empalhados para o museu, onde encontrarão muitos sábios
iludidos, que só puderam demonstrar a sua própria ingenuidade.

“Na realidade, representa verdadeiro desacato à nossa inteligência, abuso de confiança à nossa
credulidade, querer impingir-nos essa mão que sai subitamente do nada, quando sabemos que, pura movê-
la, são necessários músculos e o complexo jogo do sistema nervoso e que, sem circulação, não poderá ela
receber calor. Tudo isso é tão inadmissível que não é de estranhar a opinião de Max Dessoir declarando
que se revoltará contra tal suposição, enquanto tiver capacidade para pensar.”

A verdade atestada por sábios.

Os conhecimentos de anatomia e fisiologia que Silva Mello, como médico, deve


possuir, são comuns a Richet, a Crookes, a Schrenk-Notzing, a Gibier, a todos os seus
colegas, a menos que prove serem os grandes médicos uns desmemoriados.
Diante daquela mão, diante do fenômeno muito mais complexo de materialização
total, visto e demonstrado por médicos que se acham muitos pontos acima de nossa
mediocridade, (fenômeno que o nosso colega nunca viu, nem poderá ver, enquanto não
se realizarem à luz do dia, por motivo bastante conhecido), um deles Richet, exclamou:

145
“Sim, é absurdo; mas pouco importa: é verdade”. O outro (Crookes), depôs: “Mas eu não disse que
esses fenômenos eram possíveis; o que disse e afirmo é que são verdadeiros.”

Os conhecimentos de anatomia e de fisiologia (Richet era professor desta matéria)


estão acrescidos aqui daquelas noções que Silva Mello exige a todos os
experimentadores, muitas vezes, insinua ele, “ignorantes dos fatos mais comezinhos da
mecânica e da física, e que nada sabem da psicologia e da psiquiatria.”
Sabemos que o nosso esforço para demover o colega Silva Mello da sua negação,
assim como da sua fobia pelos fantasmas, é trabalho inteiramente perdido. Esperamos,
todavia, que os ouvintes dessa conversa, para desempate e para julgamento, procurem
ler as obras clássicas de Richet e de Crookes. Se o livro de Silva Mello produzir esta
curiosidade natural terá prestado serviço insuperável à espiritualidade. Continuemos,
pois, a defesa de nossa tese.
O barão Schrenck-Notzing, médico muito rico, estudioso da neurologia, dedicou,
como Richet, nada menos de 8 lastros aos estudos metapsíquicos. Durante 4 anos
consecutivos obteve fenômenos de ectoplasmia com a médium Eva. Vejamos o critério
a que submetia as suas observações, pois a convicção da realidade dos fatos só pode
dimanar do conhecimento das minúcias registradas no seu protocolo. Nenhum juiz pode
decidir (se não foi testemunha do fato litigioso), senão após a leitura atenta dos autos,
dos quais não tenham sido surripados os documentos mais prestantes e mais probantes.

“Autocrítica muito severa (diz Notzing), desmascaramento sem perdão dos falsos médiuns,
honestidade absoluta, exatidão e objetividade quanto à verificação de novos fatos, moderação na. maneira
filosófica de tratar esse assunto e, além disso, combate impiedoso à superstição e ao tão florescente
diletantismo”.

Schrenck-Notzing ensejou oportunidade a mais de 60 observadores (entre os quais


Dingwall e Harry Price peritos-prestidigitadores), recenseando-se no meio deles 20
professores universitários, todos unânimes no reconhecimento da impossibilidade de
fraudes, em virtude dos métodos e da aparelhagem.
Richet descreve-nos as precauções a que Notzing espontaneamente se obrigava:

146
“Ele chegou a aplicar simultaneamente até sete aparelhos fotográficos sobre a médium. Por vezes eu
próprio achava exagerado o rigor do seu controle, e isso sem me referir aos agentes secretos que pagava
para observar o procedimento de Eva fora das sessões. Faço alusão ao exame ginecológico que ele
executava antes de cada sessão, e, sobretudo ao vômito que aplicou à pobre Eva, porque objeções ineptas
haviam falado de regurgitações.”

A vocação de Silva Mello é a de negacear e “comparar textos”. Malogrou-se-lhe a


expedição depredatória de metapsiquista canhestro, desapercebido de quaisquer
experimentações. Aos fatos acumulados por físicos (Crookes — físico, químico e
astrônomo), Oliver Lodge, William Barrett, Delane, G. B. Ermacora, Giuseppe Gerosa,
Varley); por químicos (Robert Hare, Humphry Davy, Boutlerow Mapes, Karl, Blaker);
por antropologistas (Ferri, Lombroso, Morselli); por naturalistas (Alfredo Russell
Walace, Barkas, Richardson, Karl Gruber); por neurologistas (Schrenck-Notzing —
hipnotizador afamado), Happich, Zahn, de (Baden-Baden); por astrônomos
(Flammarion, Schiaparelli, Zoellner); por fisiologistas (Richet — professor de
fisiologia) e autor de um Tratado sobre Psicologia), Henry Lews, opõe Silva Mello os
embargos de teorias pessoais, adredemente concebidas, inacreditavelmente externadas
— a ingenuidade de todos os sábios, a venalidade de todos os prestidigitadores, a
infidelidade de todos os médiuns. Lembramos acima somente os nomes de homens
universalmente conhecidos e acostumados à prática experimental do melhor quilate.
Silva Mello já os triturou com a sua mandíbula poderosa. Que destino daria ele a um
William dames, a um Hans Driesch, a um Bozzano, a Benjamim Franklin, a Lincoln, a
William Stead e quejandos teoristas da filosofia?

O escamoteador em ação pública.

Há, nos MISTÉRIOS, subentendida, a intenção predeterminada de ludibriar: o relato


capcioso das experiências, com mutilação do protocolo (escamoteação); os gestos de
simulada seriedade endereçados à credulidade dos beócios (braços nus ou elogios a
sábios e prestidigitadores) com o fim de captar e sugerir a confiança e para fingir
isenção — excelentes passes de mágica; o vitorioso sorriso final diante da admiração
boquiaberta, dando como provado o que não é senão muito bom ilusionismo.

147
Silva Mello despreza a sabedoria e a dignidade dos experimentadores, que tudo
impuseram aos médiuns (miseráveis criaturas!), desde as quatro paredes de suas
bibliotecas ou de seus gabinetes de física, o policiamento vigilante dos dispositivos
elétricos, as contraprovas fotográficas, a presença de colaboradores de absoluta
confiança, até a humilhação de exames ginecológicos e de vomitivos.
Eis o ao que compara Silva Mello et caterva um trabalho experimental desse jaez,
executado por homens que ele próprio classifica, num passe de mágica, “como dignos
sob todos os aspectos”, imitando aquele mesmo gesto do escamoteador de profissão,
quando arregaça as mangas da casaca e da camisa, para tirar das barbas do espectador
uma carta de baralho:

“Um mágico dos tempos passados (compara ele), que se tornou muito conhecido na Alemanha,
Johann Anton Barth, cortava o pescoço de uma galinha e, depois, colocando a cabeça no lugar, fazia-a
reviver. E também conseguia fazer voltar à vida um frango frito, sair de um ovo uma galinha, assim como
comia um pombo com as penas, pondo-o depois vivo pela boca, acendia luzes com a ponta da espada ou
por meio de tiros.” (pág. 562).

Richet, o experimentador mais completo.

A afirmativa de Geley ainda subsiste:

“A primeira coisa que nos cumpre manifestar é o fato de que, depois de qualquer estudo, por muito
pequeno que fosse, nem um só homem de ciência negou jamais a realidade dos fenômenos.”

Dale Owen, conhecedor dos processos de mágica e prevendo provavelmente um


Silva Mello no futuro, já havia assinalado a diferença flagrante entre esses processos e
os fatos metapsíquicos. Para nós, Richet foi o mais completo explorador da
fenomenologia supranormal.
Todos sabemos que, das ciências médicas, a que mais elucida o estudante e o inicia
no segredo das células e dos órgãos é a fisiologia, a qual pressupõe, obrigatoriamente, o
conhecimento da anatomia e da histologia. A função elementar das células vivas, o
trabalho de cooperação dos órgãos, a harmonia geral dos sistemas e aparelhos,
culminando, em síntese final, na maravilha prodigiosa do cérebro humano, a obra-prima
da filogenia, todas as noções básicas para

148
a compreensão da mecânica da vida animal quem no-las fornece é a ciência de Claude
Bernard e de Bichat.
Richet foi professor de fisiologia na Faculdade de Medicina de Paris, durante
dezenas de anos. Deve-se-lhe a descoberta da anafilaxia e da soroterapia, complemento
das pesquisas de Pasteur. Seu nome glorioso libra-se acima daqueles que parasitaram a
medicina, cujos conhecimentos adquiriram no mercado das universidades, para as
negociações futuras com os enfermos, enriquecendo-se e celebrizando-se na arte
médica: opulentou-a com noções originais e úteis, incorporadas ao patrimônio comum.
Não é devedor, mas credor da medicina.
Da fisiologia, em trânsito natural, passou-se Richet para a Psicologia, cuja
importância não precisa ser encarecida, cuja colaboração é indispensável a quem
pretenda compreender a alma humana. Mas Richet, como já o lembramos em outro
lugar, não viveu contente com a sua ciência: registrou-lhe as insuficiências e as falhas.
Não foi um sábio que se bastou a si mesmo, orgulhoso de suas teorias e ensinamesmado
nelas. Desceu ao fundo, ao âmago dos problemas, à essência e à causa das coisas, e não
encontrou a tranqüilidade, o epicurismo e o cepticismo risonho dos observadores
superficiais, que consomem os dias da vida mergulhados na fames e na libido.
Richet, todavia, jamais afirmou nas suas obra iniciais, como o não afirmou Crookes,
que a realidade dos fatos implicasse na aceitação da teoria espírita. Mas o que disse
Crookes, 24 anos depois, na Associação Britânica do Progresso da Ciência, não é
repúdio nem desprezo das suas memoráveis observações.

“Se eu tivesse de apresentar hoje, diz ele pela primeira vez, essas pesquisas ao mundo científico,
escolheria ponto de partida diferente daquele que escolhi em tempos passados.”

Dessas palavras não se infere que as pesquisas anteriores foram repudiadas. A


escolha de “um ponto de partida diferente” é atitude digna de um sábio, que busca a
convergência de provas positivas ou negativas, que analisa os mesmos fenômenos sob
vários aspectos, antes de uma conclusão definitiva.
Enfim, ao atribuir às “vibrações do éter” a causa e a origem das materializações que
obteve 24 anos antes, Crookes ratifica a realidade dos fatos, para cujo esclarecimento

149
aventa uma hipótese de trabalho. A sua hipótese de que “as vibrações do éter possuem
poderes e qualidades amplamente suficientes para explicar tudo”, foi admitida
posteriormente por Charles Richet, na conferência realizada na Faculdade de Medicina
de Paris, a 24 de Junho de 1925, e publicada em o número 51 de “La Presse Médicale”.
Como se vê, a questão não se destrinça com a leitura de opiniões alheias, Crookes e
Richet aceitaram a realidade dos fatos ditos espiritistas, fatos que converteriam o mundo
inteiro ao Espiritismo, se o mundo inteiro tivesse a oportunidade de presenciá-los...
excluídas as fraudes possíveis, mas não absolutamente inevitáveis e obrigatórias. O
próprio Silva Mello, com todo o seu ceptismo, se renderia à evidência palpável, se
pudesse entregar-se ao experimentalismo, a menos que “a vaidade, o amor-próprio, o
complexo de superioridade (palavras suas), fatores que podem explicar o fato,
conservando arraigada qualquer das nossas convicções, mesmo quando a sua irrealidade
já foi demonstrada por um excesso de provas”, a menos que tudo isto, que se
responsabilizou pela dedução contraditória de Richet durante muito tempo, atuasse
também sobre a sua mentalidade cristalizada de agnóstico.
Silva Mello estranha que Richet defenda as materializações vivas de órgãos e
pessoas humanas, negando a “possibilidade de sobrevivência do seu espírito.” Até a este
mesmo ponto chegaram às convicções de Crookes, que também não acompanhou os
outros sábios, que se espiritualizaram, tais como Wallace, o grande naturalista, êmulo de
Darwin na teoria da seleção natural, Frederico Myers, Olive, Lodge, Bozzano,
Flammarion, e uma infinidade de nomes ilustres nas ciências, na filosofia e nas artes.
Para a doutrina espírita, foi muito mais útil que os dois sábios se detivessem no
limiar da espiritualidade. Os apedeutas que tudo sabem, os materialistas que tudo
negam, os fanáticos que se aprisionaram na rede dos dogmas, os indiferentes que de
tudo zombam, os sectaristas de fé vacilante, os racionalistas que tudo querem explorar,
esta gente não desdenhará jamais a leitura das obras deles, nem se julgará ridícula ao
procurar a sua companhia. Suas obras imortais, seus depoimentos de uma isenção que
assombra os incrédulos e até os irrita, como vimos nas palavras acima do nosso Silva
Mello, servirão de chamariz para as ovelhas desgarradas e lançarão muita luz no seio
dos “espíritos fortes”.

150
É a grande massa humana, predestinada eternamente à dor e à morte ao tomar
conhecimento das provas e dos fatos, atestados por sábios incrédulos, pouco se lhe dará
que os experimentadores não houvessem chegado à convicção espiritualista. No oriente
e no ocidente, numerosos egressos das religiões, ou os que, dentro delas, só se iluminam
com a luz de uma fé bruxoleante e mortiça, regressarão aos braços carinhosos do Cristo,
como falange de filhos pródigos, agora racionalmente, cientificamente reintegrados na
espiritualidade e na obediência aos preceitos divinos.

A “hipótese” espírita.

Na linguagem comum dos espiritistas e na de seus detratores ou adversários, corre


uma expressão que, bem analisaria, ao invés de exprimir uma verdade ou uma
necessidade, apenas esconde o significado de um erro, que nos releva destruir.
A “hipótese” espírita e a “teoria” espírita são eufemismos para cuja maior
divulgação não devemos contribuir.
As hipóteses e as teorias são fantasias dos homens diante do desconhecido, ou são
postulados da ciência para a interpretação de fenômenos físicos, químicos, biológicos,
etc. Já lembramos uma vez que, quando Newton assistiu à queda da maçã, teve que
arquitetar a teoria da gravitação, para que o fenômeno se tornasse compreensível e
explicável. Porque a maçã nada lhe disse, nada lhe contou, nem de si mesma nem do
mundo. Os três reinos da natureza, que se nos mostram através dos sentidos, desde que
se adaptem e se acostumem às condições mesológicas — o reino mineral, o reino
vegetal e o reino animal, nós não os consideramos como hipóteses ou como teorias, que
requeiram explicação, a não ser na sua essência e na sua finalidade, porque isto pertence
a Deus.
A imaginação de Flammarion figurou, engenhosamente, a seguinte hipótese: se não
conhecêssemos, de experiência própria e multimilenar, o reino vegetal e alguém aqui
deste “pífio planeta”, aventasse a possibilidade de sua existência, contando-nos as
maravilhas inacreditáveis e os mistérios profundos que “se poderiam ocultar numa
semente”, negá-lo-íamos de pés juntos. Com aquela mesma indignação de Max Dessoir
e do nosso colega Silva Mello diante dos fatos espíritas, “enquanto tivéssemos
capacidade para pensar”.

151
Quando um espírito se materializa com aquele realismo descrito nas obras de
Crookes (a ponto do sábio se apaixonar pelo fantasma, segundo a versão romanceada de
Silva Mello), nas de Richet e de Schrenck-Notzing, a hipótese espírita passa a ser um
anacronismo dos tempos das suspeitas e das desconfianças de que devia haver alguma
coisa mais lá do outro lado da vida.
O fenômeno fala, demonstra possuir inteligência própria, personalidade definida,
consciência independente e vigilante. O seu nome anterior — “Annie Owen Morgan”.
Ao contrário da queda da maçã, que é absolutamente muda, o fenômeno espírita
(ectoplasmia) é inteligente, dispensa apresentação e dá de si mesmo todas as provas de
identidade.
Se são “vibrações do éter”, pouco importa, afinal, porque do éter nos veio tudo e
viemos nós. Equivaleria à afirmação de que não nascemos de nossos pais, mas do omne
vivum ex ovo.
O testemunho coletivo de todos os sentidos, corroborados por aparelhos físicos
insusceptíveis de alucinação, transforma a “lógica visual” do observador, o qual é capaz
de ver aquilo em que acredita, numa experiência material, objetiva, com todos os visos
de realidade. Goethe, o clarividente espírito de Goethe, que conhecia as limitações
naturais da observação e da compreensão humana, mostra-nos o caminho e dá-nos a
solução:

“Por que andarmos à procura da significação dos fenômenos, quando os fenômenos mesmos nos
ensinam a lição?”

Entre as várias hipóteses, a de Silva Mello.

Afinal de contas, ao voltarmos a última página dos MISTÉRIOS, remanesce em


nossa alma pequenina réstia de esperança, quanto ao futuro do cientismo materialista do
autor.
Encheu-se, é verdade, da convicção de que a hipótese espírita é a mais absurda para
explicar a corporificação de entidades metanóicas, apesar do “excesso de provas”. Non
credo quia non absurdum!
Os vários fenômenos, dos quais tomou conhecimento através de rica bibliografia, ele
não os enquadra na hipótese alucinatória, na hipótese das coincidências fortuitas (Vas-
chide), na hipótese da latência de Gurney e Myers, na hipó-

152
tese da desagregação psicológica ou formação de centros psíquicos adventícios, na
hipótese dos movimentos musculares inconscientes (Chevreul), na hipótese da
ruminação ou regurgitação — os objetos que aparecem nas sessões saem do estômago
ou de outras partes do aparelho digestivo do médium — afora as muitas outras
hipóteses: telérgica, teleplástica, telestésica... A que ele mais venera, compendiando
todas as outras, é a que sugere a infinita e universal imbecilidade humana... Não viu,
porém médium algum, até hoje, digno deste nome, nem experimentou patavina.

Os convertidos.

Ora, para Geley “ninguém tem o direito de combater, sem a prévia contra-
experimentação, as conclusões experimentais de Crookes, Wallace, Zöellner, Aksakoff,
Oliver Lodge, Lombroso, Richet, De Rochas e tantos outros não menos ilustres.”
Suponhamos que um dia a consciência lhe doa e reconheça que o livro produziu efeito
oposto ao colimado. Resolverá estudar a mediunidade e vê-la de perto, como lhe pediu
Max Dessoir. Repertir-se-á, então, o que a história do Espiritismo já registrou. Ouvir-se-
á uma voz, mais ou menos desse tom:

“Poucos sábios tem havido no mundo tão incrédulos como eu nas doutrinas chamadas espíritas. Para
se convencerem disso, basta consultar a minha obra “Os loucos e os normais” (Pazzi ed Anormali), bem
como os meus estudos “Sobre o Hipnotismo”, nos quais cheguei mesmo a insultar os espíritas... Mas
agora estou confundido e lamento ter combatido com tanta insistência os fatos chamados espíritas. E digo
os fatos, porque ainda continuo oposto à teoria...” (LOMBROSO).

Ou estas lamentações:

“Quando me lembro que em certa época admirava a coragem de William Crookes ao sustentar a
realidade dos fenômenos mediúnicos; e quando penso, sobretudo, que lia as suas obras com o sorriso
estúpido que iluminava o rosto dos seus colegas ao ouvir estas coisas, sinto uma grande vergonha por
mim e pelos outros. . .” (OCHOROWICZ).

Ou esta palinódia:

“Até o dia em que, pela primeira vez, presenciei os fatos do Espiritismo, eu era um materialista
refinado... Era um céptico, um materialista tão completo, que nem sequer podia conceber a existência
espiritual... Mas os fatos acabaram por me convencer. Obrigaram-me a aceitá-los como fatos, muito antes
de eu poder admitir a explicação espírita. Nessa altura, ainda não havia no meu pensamento lugar para
semelhante ordem de idéias. Mas, pouco a

153
pouco, a evidência dos fatos criou um lugar no meu pensamento...” (R. WALLACE).

Outra conquista preciosíssima feita pela doutrina foi a de Ernesto Bozzano, professor
da Universidade de Turim, que abjurou o materialismo, para se integrar nas hostes do
neo-espiritualismo, onde andou às testilhas com Richet.
Já nos havíamos deleitado com os arroubos poéticos de Léon Denis, as narrativas
transcendentais do astrônomo Flammarion, as sínteses-relâmpagos de Gustavo Geley, as
ponderações científicas de Gabriel Delanne, o bom senso genial de Allan Kardec, as
crônicas de Humberto de Campos redivivo, as teses do nosso Carlos Imbassahy,
merecedoras, pela rigorosa documentação bibliográfica e pela vernaculidade, das
melhores notas de qualquer Escola de Filosofia, usando e abusando do autodidatismo,
do je prends mon lien où je le trouve, quando começaram a cair em nossas mãos, pela
primeira vez, as obras de Bozzano — “A Crise da Morte”, “Xenoglossia”, “Os Enigmas
da Psicometria”...
Encontrávamos, nos domínios da filosofia espírita, um expositor sereno, claro,
lúcido, entrosando firme os elos de suas lucubrações, trabalhando à moda do pedreiro
— sempre com os olhos no fio a prumo, partindo do fato simples ou da teoria mais
compreensível para ir, gradativamente, sem desvio para a esquerda ou para a direita,
sem alcandorar-se nem vulgarizar-se, iluminando um roteiro novo para o nosso
pensamento, assim como quem tendo, de longe, fixado um alvo luminoso, caminhasse
em linha reta para a sua conquista.
Em que páginas já, nas leituras desordenadas da mocidade, lá pelos anos de 1913 e
1914, na Biblioteca Nacional do Rio, no período áureo que se seguiu à sua inauguração,
havíamos conversado com alguém que possuía as mesmas qualidades? Um filósofo
capaz de expor uma idéia sem cansar o leitor e sem se afastar do assunto, por maiores
que fossem os atrativos encontrados pelo caminho; o joalheiro da simplicidade e da
clareza, o mágico da argumentação bem concatenada, o ilusionista que nos torna mais
inteligentes do que o somos na realidade, porque nos sentimos donos do seu
pensamento...
A resposta, quem no-la deu, foi o mesmo Bozzano, quando iniciamos a leitura do seu
livro Animismo ou Espiritismo:

154
“Transformara-me em apóstolo do meu ídolo, o que significa que um tudo pensava e sentia como
Herbert Spencer e a concepção mediúnica positivista do universo era a minha profissão de fé.
Acrescente-se que, ao passo que admirava a suprema sabedoria do grande filósofo, que intencionalmente
se apartara do grosseiro materialismo imperante no seu tempo, dedicando a primeira parte de seus First
Principles à teoria do “Incognoscível” e afirmando com isso o próprio “agnosticismo” em presença do
enorme mistério do ser; ao passo — digo — que admirava a suprema sabedoria daquele que assim se
comportava, a síntese conclusiva das minhas concepções filosóficas gravitava decisivamente, nada
obstante, nas órbitas dos Büchner, dos Moleschott, dos Haeckel, que negavam a existência do um Ente
Supremo e a sobrevivência humana.
Nessa conformidade, defendia eu, nas revistas filosóficas, esse ponto de vista com apaixonado ardor,
correspondente, em tudo, ao que mais tarde viria a demonstrar em defesa de uma causa diametralmente
oposta porém infinitamente mais reconfortante. Pareceu-me oportuno começar lembrando esse período do
meu passado filosófico, porque o vigor com que agora defendo a causa espiritista a alguns se afigura
indício manifesto de uma firmeza das minhas convicções, longe de exprimir a síntese de profundas
pesquisas em turno dos fenômenos supranormais, é devida à invasão de um misticismo congênito,
perturbador de todo o juízo sereno”.

O caso excepcional de Lombroso.

O caso de Lombroso merece um pouco mais de atenção, não somente porque se trata
de um psiquiatra e de um antropologista de renome universal, senão porque o seu
interesse pelos fenômenos espíritas foi despertado de modo muito original.
Hercules Chiada, diretor da Revista Luce e Ombra, leu, um dia, algures, o seguinte
trecho de Lombroso:

“Talvez que os meus amigos e eu, que ríamos do Espiritismo, estejamos em erro e, a exemplo de
muitos alienados, nos encontremos longe da verdade, a rir dos que dela se aproximam.”

Chiada aproveitou a brecha na fortaleza e parlamentou com ela por meio de uma
carta, da qual transcrevemos alguns tópicos:

“Senhor Professor:
“ ... A doente é uma mulherzinha, de modestíssima condição social, com cerca de trinta anos, robusta,
iletrada e cujo passado, porque vulgaríssimo, não merece esquadrinhado; nada apresenta de notável, a não
ser as pupilas de fascinante brilho e essa potencialidade, que os modernos criminalistas diriam irresistível.
Quando o quiserdes, essa mulherzinha será capaz de, encerrada numa sala, divertir durante horas, por
meio de surpreendentes fenômenos, to-

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do um grupo de curiosos mais ou menos cépticos ou mais ou menos acomadatícios.
“Atada a uma cadeira e com as mãos imobilizadas, entre os braços dos espectadores, possui ela a
faculdade de atrair um dos móveis circunjacentes, dc o levantar, de o manter suspenso no ar, de fazê-lo
descer de novo com ondulações que parecem devidas à influência da vontade, de aumentar-lhe o peso, ou
de torná-lo mais leve, a seu bel-prazer. Ela faz ressoar pancadas e batimentos nas paredes, no teto, no
assoalho, com a cadência e o ritmo que lhe pedem. Desenha a lápis em papéis que lhe são apresentados,
ou nas paredes, ou alhures, caracteres, números, palavras, bastando para isso estender o braço, na direção
do ponto que se lhe indique. Logo aí aparecerão os desenhos e os escritos. Colocado num canto da sala
um vaso com argila mole, passados alguns instantes, lá está a marca ou de u’a mãozinha, ou de u’a mão
grande, às vezes um rosto, de frente ou de perfil, minuciosamente detalhado e do qual, no dia seguinte, se
podem tirar moldes em gesso. Desses moldes já possuo grande coleção, toda de tipo constante, mas em
atitudes diferentes. Eleva-se também no ar a mulherzinha, quer amarrada, quer tendo livres os membros,
em atitudes singulares, bizarras, contra todas as leis da estática e como que derrogando as da gravidade.
Faz que nos ares, acionados por mãos ou por bocas de gnomos invisíveis, toquem realejos, campainhas,
tambores e instrumentos de sopro.
“Direis: uma caso clássico de hipnose; um faquir que se diverte à vossa custa...” Perdão, Senhor, não
adultere a questão. Seria uma hipnose, se fosse momentânea a ilusão e se tudo, logo em seguida, se
desvanecesse. Se, porém, no dia imediato, ainda se encontrassem documentos e traços, comprovando a
realidade dos fenômenos, que diríeis?
“Permiti que eu continue. A mulher de quem falo, em dadas circunstâncias, tem a faculdade de
aumentar de algumas dezenas de centímetros a sua estatura, de transformar-se num boneco de borracha
que se alonga e encurta por si mesmo e, qual autômato de novo gênero, toma formas caprichosas. Quantas
pernas tem ela? Não o sabemos! Quantos braços? Tão-pouco. O que é certo é que, além das suas pernas,
presas sempre entre as de alguns dos assistentes, uma terceira surge que não tem o seu pé, nem o seu
sapato, e que deixa suspeitar da intervenção de um corcundinha misterioso. Peço que, por enquanto, não
vos ponhais a rir, Senhor Professor, pois que eu apenas disse: deixa suspeitar; nada afirmei. Aliás, depois
tereis tempo de sobra para rir.
“Quando ela se acha com cordéis como uma salsicha e, até, para maior segurança, sob selos, eis que
aparece um terceiro braço e se põe a fazer uma série de brincadeiras: tira os gorros, os relógios, as
moedas, os anéis, os grampos de cabelo e os repõe em seus lugares, com facilidade e rapidez com que o
faria a mão de uma camareira. Tira o paletó, o colete, os sapatos às pessoas presentes, penteia os cabelos
— a quem os possui, bem entendido — retorce bigodes, acaricia e, se lhe apraz, regala com um soco...
amistoso, porquanto, tem ela também os seus movimentos de mau-humor. É sempre mão vulgar (ao passo
que a da feiticeira de quem se trata é mãozinha muito apreciável), calosa, de unhas recurvas, umas vê-

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zes revelando calor natural, outras vezes com a frialdade de cadáver, dando ao tato a impressão de pele
arrepiada de frio. Ela se deixa pegar, apertar, observar, tanto quanto — entendamo-nos — o permita a
claridade existente na sala. Eleva-se, finalmente, no ar e aí se conserva suspensa, com o pulso para cima,
os dedos para baixo, como essas mãos que se vêem nos mostruários das luvarias; mas, podendo sempre
ser tocada.
“Eu próprio, de espírito sereno, fora do antro de Circe e livre da sua fascinação, juro que, as mais das
vezes, ao recordar as minhas impressões, acabo por não acreditar em mim mesmo, se bem que o
testemunho dos meus sentidos e a minha consciência persistam em me afirmar que não se trata de
embustes ou de ilusões, tanto mais que uma série de volumes de estimabilíssimos experimentadores
antigos e modernos, aí estão para atestar a seriedade dessa... paradoxal charlatanaria!
“Depois, sempre coisas novas, indo até a dar (mas muito raramente) um bom dia e um aperto de mão a
alguém que, vestido como nós, se apresenta para desvanecer-se, dentro de alguns instantes, qual sombra.
Apenas, estas manobras tão pouco naturais não podem ser exigidas da minha feiticeira, para que as repita
todas de uma vez: declara ela que está sempre pronta a tudo, mas acontece que, escrupulosamente vigiada
e examinada em sua pessoa, protentato sinu, conforme se praticava na corte de Tibério, de quando em
quando, ela deixa de cumprir suas promessas e não corresponde à expectativa impaciente dos
experimentadores, o que constitui outro mistério que nos leva a supor, refletindo bem, que a faculdade
exclusiva de determinar o maravilhoso fenômeno não está no arbítrio do indivíduo agente, porém, antes,
num coeficiente necessário, num certo poder, desconhecido, misterioso, numa graça sobrenatural.
“De tudo isso decorre a necessidade de aprofundarem-se essas maravilhosas velhacarias e a
necessidade de uma série de experiências que comprovem, pelo menos, uma boa parte delas e, assim,
confundam tolos, os doentes do misoneísmo, como bem dizeis, aos quais, é sabido, falta essa grande
qualidade dos cérebros equilibrados, dos espíritos sérios, que têm por suficiente um simples indício
provado à evidência para entreverem a possibilidade de forças latentes, na natureza, para deduzirem, da
queda de uma maçã ou do movimento de um pêndulo, as grandes leis que governam o Universo.
“Ora, o desafio que vos lanço é este: se aquela frase magistral não a escrevestes por escrever, se
alimentais, verdadeiro amor à ciência independente, se sois na realidade o primeiro alienista da Itália,
tende a bondade de vir ao campo da luta e ficai certo de que vos medireis com um campeão tão fraco
quanto probo.
“Quando dispuserdes de uma semana de repouso, para vos distrairdes dos estudos que vos são tão
caros, ao invés de empreenderdes, na próxima estação, uma vilegiatura, dignai-vos de marcar-me um
lugar de encontro, que poderá muito bem ser Nápoles ou Roma, ou, se o preferirdes, Turim e eu lá irei
apresentar-vos a minha feiticeira.
“Vós mesmo, Senhor Professor, escolhereis um compartimento, onde só entrarei quando houvermos
de dar começo às experiências.

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Colocareis, vós mesmo, nesse compartimento, os móveis que julgardes conveniente lá estejam, os
instrumentos que vos aprouver e, até, se quiserdes, um piano fechado à chave. Eu nada mais farei, senão
entregar-vos a mulherzinha em trajes adâmicos, a fim de que não se imagine que ela esconde sob suas
roupas os seus utensílios. Apresentarei nua, como Eva, essa outra Eva, capaz de tirar da serpente a sua
desforra e de a seduzir! Quatro cavalheiros assistirão ao ato, na qualidade de padrinhos, como é de uso em
toda contenda cavalheiresca: dois escolhidos por vós e os meus... também por vós designados, sendo que
a estes só desejo conhecê-los no momento do encontro. Nem mesmo os cavalheiros da Mesa Redonda vos
concederiam condições melhores!
“Estabeleço, porém, uma condição: se a experiência para que vos convido resultar completamente
nula, nenhuma contemplação será tida; peço que, então, me aponteis publicamente como um visionário,
que terá vindo espontaneamente à vossa procura para que o cureis da sua loucura; se, ao contrário, a
experiência, como prevejo, tiver bom êxito, haveis de proclamar, com toda a lealdade e sem rodeios, nem
reticências, nem subentendidos, a seriedade do maravilhoso fenômeno e prometer pesquisar-lhe as causas
misteriosas. É muito pouco o que peço; entretanto, esse pouco me basta!
“Por outro lado, se não aceitardes o encontro, dar-me-eis o direito de fazer-vos este formal reproche:
as idades podem muito bem não estar maduras para o vulgo, porém, não para homens da inteligência de
um Lombroso, ao qual, hoje, já não é lícito seguir o conselho de Dante:

Sempre a quel ver che ha faccia di menzogna


Dee l’uom chiuder le labbra quant’ei puote
Perocchè senza colpa fa vergogna.
(À verdade que tenha aspecto de mentira deve o homem fechar quanto possa a boca, pois que ela faz
vergonha, embora não haja culpa.)

“Com os meus melhores sentimentos...”

Todo o mundo sabe como terminou a história desse repto notável. Lombroso aceitou
as condições do adversário e impôs as suas. Nobremente, fez a seguinte confissão:

“Estou envergonhado e aflito por haver combatido, com grande tenacidade, a possibilidade dos fatos
chamados espíritas. Digo dos fatos, pois, quanto à teoria, continuo a ser-lhe contrário. Mas os fatos
existem e eu me glorifico de ser escravo dos fatos”.

Extraímos a carta de Chiada a Lombroso do livro “A Verdade Espiritualista”, de


Picone Chiodo, criminalista italiano, advogado junto da Corte de Apelação de Milão,
outro negativista e outro materialista que se converteu à espiritualidade através das
provas materiais, que somente a doutrina dos espíritos nos pode fornecer.

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Posteriormente, Lombroso teve que admitir, para certos casos, a intervenção dos
espíritos Não conseguiu explicar os fenômenos telepáticos de um hemisfério a outro da
terra pela teoria das vibrações porque, “a energia do movimento vibratório decresce
com o quadrado dás distâncias”; não encontrou um número suficiente de hemisférios
cerebrais para ligar a escrita mediúnica à atividade inconsciente, pois há médiuns que
escrevem, ao mesmo tempo, sobre assuntos diferentes, com cada uma das mãos,
conservando independente a consciência; os casos crônicos de fantasmas e de ruídos, na
ausência de médiuns, “falam a favor da ação dos trepassados.”
A obra póstuma de Lombroso — Fenomeni Ipnotici e Spiritici — “é também uma
obra-prima de sinceridade, de erudição, um monumento, como a definiu o valoroso
Marzorati, de síntese, que perdurará como o testamento científico não só de quem o
escreveu, como ainda de toda uma época que, partindo da negação, passou, de
descoberta em descoberta, experimentando todos os encantamentos da transformação,
tocou, perquirindo inquieta e obstinadamente a matéria, o limiar do mundo olvidado e
teve a intuição dos poderes misteriosos do Espírito.” São palavras de Picone Chiodo.
Entre a autoridade de Silva Mello, artista da medicina que se tornou célebre pelo faro
com que descobre as causas das perturbações digestivas, através da análise das fezes, e a
autoridade de Lombroso, acostumado a analisar o psiquismo do homem, é natural que o
leitor não fique indeciso por um só momento.
Lombroso desmente Silva Mello, a propósito de fraudes.
Na revista italiana Arena, em o número de Junho de 1907, conta-nos pormenores de
algumas experiências Eusápia Paladino:

“O leitor vai interpelar-me com ar de compaixão e perguntar-me: “Não se deixou simplesmente


ludibriar por farsantes vulgares?” O fato indiscutível é que com Eusápia tomaram-se medidas de
precaução absolutamente rigorosas contra a possibilidade de qualquer fraude, porque se lhe ligavam as
mãos e os pés, ficando uns e outros cercados por um fio elétrico que, ao menor movimento, punha em,
ação uma campainha. O médium Políti foi, na Sociedade de Psicologia de Milão, metido, nu em pêlo,
num saco; Mme. d’Es-pérance ficou imobilizada numa rede como um peixe, e, não obstante, os
fenômenos produziram-se.
Depois de tudo isso assisti ainda a sessões em que Eusápia, em transe, dava respostas exatas e muito
sensatas em línguas que ela não conhecia, como, por exemplo, o inglês.

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Juntando a esses fatos pessoais tudo o que soube das experiências de Crookes com Home e Florence
Cook, das do médium alemão que fazia às escuras as mais curiosas pinturas, adquiri a convicção de que
os fenômenos espíritas se explicam, pela maior parte, por forças inerentes aos médiuns, e também, por
outro lado, pela intervenção de seres supraterrestres, que dispõem de forças de que as propriedades do
rádium podem dar idéia, por analogia”.

Há cinqüenta e um anos, a 7 de Abril de 1899, quando Silva Mello, ainda de calças


curtas, empinava papagaios nas margens do Paraibuna, chamadas Bota-Nágua, bairro de
Juiz de Fora, já o reverendo J. Savage, pregador afamado, dava o seu testemunho
insuspeitíssimo, de nenhum modo inçado de “baixo Espiritismo”:

“Foram legião as supostas patacoadas que, dizem, vêm do outro mundo, ao mesmo tempo que existe
uma literatura moral completa das mais puras e de ensinos espiritualistas incomparáveis. Sei de um livro
(Ensinos Espiritualistas, de Stainton Moses), cujo autor, diplomado de Oxford, pastor da Igreja inglesa,
veio a ser espírita e médium. Esse livro foi escrito automaticamente. Às vezes, para desviar o pensamento
do trabalho que a mão executava, o autor lia Platão em grego e o seu livro, contrariamente ao que, em
geral, se admite para obras desse gênero, achava-se em oposição absoluta às próprias crenças religiosas
do autor, se bem que ele se tivesse convertido antes de o haver concluído. Essa obra contém
ensinamentos morais e espirituais dignos de qualquer das Bíblias que existem no mundo.”

Granadeiro de Offembach, eis o título que se lhe pode aplicar, sem remorso algum,
ao nosso prezado colega.
“Nada nos afronta, já o dizia o Padre Antônio Vieira, quem diz mal de nós
mentindo”...
Para Silva Mello, os fenômenos físicos da mediunidade são todos umas palhaçadas.
Muito bem. Não diremos também que sejam necessários, uma espécie de liturgia, para
amortecer o raciocínio e a vontade. Mas Silva Mello não desconfia de nada, quando
atesta que os fatos se repetem “operando-se em países mais cultos, sob controle de
pessoas de responsabilidade, não raro cercadas de todas as garantias que fornecem os
mais modernos recursos científicos (pág. 468)? Não há contradição entre o termo
pejorativo e as contradições descritas por ele próprio?
Eis uma coisa que ele deseja mais do que tudo na vida de atormentado, desejo
ilusório e vão, porque o contrário é o que está acontecendo:

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“...tem-se a impressão de que estamos marchando para o fim da era dos fantasmas, das aparições, dos
seres sobrenaturais, que por toda a parte tiveram o direito de existência...”

“ .. .engano d’alma ledo e cego


Que a Fortuna não deixa durar muito...”

O médium Mirabelli.

Silva Mello soube das maravilhas produzidas por Mirabelli, ao tempo em que sua
mediunidade estava no apogeu, dando aso a manifestações físicas presenciadas por
muita gente boa. Ele, que se interessa tanto pelo assunto, com o qual fez um livro muito
grosso, não ofereceu as suas luzes e a sua sagacidade para desmascarar o impostor.
Perdeu excelente oportunidade para ver um médium poderoso.
É provável que, agora, quando Mirabelli descambou para a decadência, talvez
merecida, ele o esteja procurando para provar que não há mediunidade, nunca houve —
tudo é mistificação ou fraude.
Também não se tem notícia de que o dito sábio tenha procurado ver como trabalha
Chico Xavier. Este metapsiquista é perito, de longe. Para doutrinar, ninguém o excede.
Experiência própria só com as madames francesas, de portas abertas. Eis como explica
Mirabelli, agora decadente e afastado da sua missão:

“Na época em que Mirabelli nos assombrava, já estava demonstrado que tudo aquilo não podia
passar de farsa e exploração, o que nos devia tornar mais cépticos e cuidadosos em benefício do nosso
próprio decoro.”

Como médico, não menosprezamos as luzes que Silva Mello possa emitir dentro da
nossa profissão, principalmente em coisas digestivas. Autoridade alguma, porém, lhe
reconhecemos em assunto metapsíquico: os MISTÉRIOS são um atestado suficiente da
sua inexperiência e da sua ingenuidade. Anda na rabadilha de escamoteadores.
Eis o que presenciou Carlos Imbassahy, em sua própria residência:

“Logo depois de haver chegado, Mirabelli pôs-se a discorrer num italiano detestável, mesclado de
palavras portuguesas e castelhanas, muitas com a acentuação errada; era um Espírito que falava. Do que o
Espírito disse, pouco se aproveitou; lugares comuns, um palanfrório inútil e dispensável. O interessante é
que esse Espírito se despediu dando o nome de Lombroso.
— Como se calunia um pobre morto! — pensávamos nós.

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Mirabelli, depois da retirada do criminalista, pareceu acordar, embora não se lhe notasse o menor sinal
de transe mediúnico. Perguntou o que dissera o “Espírito” e quem era. Repetimos a bobagem que o
médium pronunciara, quando falava por Lombroso, e ele, grave, sentencioso, depois de refletir um pouco:
— É o que eu penso! Lombroso pensa como eu!...
— Mas que grotesco charlatão, — dizíamos com os nossos botões e, se de um lado nos entristecia ver
que aquele homem era uma fonte perene de desprestígio para a doutrina espírita, por outro lado,
tranquilizou-nos a convicção de que os nossos pratos já não corriam iminente perigo, uma vez que a
mediunidade ali era uma burla.
Estávamos nesse solilóquio interno, quando o médium virou-se para o Daniel de Brito e disse que via
um parente dele, falecido. E começou a falar...
Ele falava e o Daniel se perturbava. É que o médium começara a revelar fatos íntimos, surpreendentes,
uns que já conhecíamos, outros apenas sabidos do Daniel. Em breve desvendou todo o passado do jovem,
como se fosse o parente morto que estivesse ali falando. Dir-se-ia que a infância e a mocidade do rapaz
não tinham segredos para ele e, entretanto, era a primeira vez que o via e que com ele tratava. Disso
ninguém tinha dúvida.
Nem se diga que o Daniel era pessoa conhecida e relacionada; pequeno e modesto industrial, mal
principiava a vencer as dificuldades da vida, espinhosas para ele até então, vida apagada, triste
trabalhosíssima. Tudo o Mirabelli desvendou, dizendo que os casos lhe eram relatados pelo pai de Daniel,
falecido há muitos anos, e que, de fato, deixara o filho, com outros irmãos, desprovido de recursos. E o
homem parecia que sabia tudo, que tinha conhecimento de tudo. Não lhe escapavam os pormenores.
Entramos a tremer de novo pela sorte dos pratos.
Como alguém viesse dizer que a doente estava muito nervosa e assustada, Mirabelli resolveu dar-lhe
água fluidificada. Para isso, mandou que arranjassem vasilhas.
Entrementes, continuou a dizer particularidades sobre a vida dos presentes e até dos que estavam no
quarto. Parecia que um sopro mágico lhe tinha atravessado o entendimento.
Posta a água numas garrafas, dirigimo-nos para a sala de jantar, que era contígua à sala da frente. Ia
fazer-se a concentração necessária.
As garrafas ficaram numa extremidade da mesa e o Brito, c Bernardino, o Mirabelli e nós assentamo-
nos junto à porta da sala da frente, a uns quatro ou cinco metros das garrafas, todos de mãos unidadas,
para estabelecer a corrente.
A sala em que nos assentamos estava perfeitamente iluminada por duas lâmpadas de cem velas,
colocadas no salão contíguo. O nosso fim, visava, apenas, tornar medicamentosa, pela ação dos espíritos,
a água das garrafas, ou fluidificá-la, como comumente se diz.
Acedemos ao convite de Mirabelli, aliás, sem grande entusiasmo.
Um de nós declarou que parecia haver espíritos na sala.

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— Pois que se manifestem nas garrafas, — gritou Mirabelli, com voz imperativa.
Imediatamente à vista de todos, uma das garrafas levantou-se a meia altura das outras e bateu nelas
com toda a força, repinicando por espaço de uns cinco a dez segundos, depois do que voltou a ocupar o
seu lugar.
Chegamos a pensar que elas se tivessem rachado.
O fato foi francamente visto, e ouvido, sem sombra de hesitação. Quem permanecia na sala de visitas
e no quarto também ouviu o tilintar dos vidros. A doente ficou enormemente alarmada.
Estávamos nós muito satisfeitos, por ter tido, enfim, a prova da mediunidade de Mirabelli, quando este
preveniu, espantado: — É preciso cuidado, agora; acaba de entrar uma falange de obsessores!...
O sangue fugiu-nos, de repente: era a louça, que voltava a perigar. Vieram-nos à mente, em tropel,
todos os relatos das depredações realizadas pelos espíritos inferiores com os fluidos daquele médium.
Víamos em estilhaços os nossos cristais; e, o que ainda era pior, sentíamo-nos ameaçados de levar com os
cacos pela cabeça.
A posição de Mirabelli era inquietante; pernas arqueadas, a torcer o pescoço de um para outro lado, o
dorso bombeado, parecia a figura de Triboulet. Mas em vez dos esgares do riso, tinha o terror pintado na
fisionomia.
— Estão ali, — dizia ele. — Querem quebrar... Vão quebrar!... Livrem o rosto!...
E ele, mesmo, punha as mãos diante da cabeça, como anteparo, fazia-se pequeno, para diminuir o alvo
e olhava de viés, para determinado ponto, onde deviam estar os invisíveis, maquinando as tropelias.
— Desta vez não escapa nada nesta casa, — pensávamos nós, já arrependido de ter acedido àquela
fluidificação, que prometia acabar mal.
À falta de melhor providência, fechamo-nos numa concentração profunda.
A esse tempo a doente saltava da cama e vinha pedir-nos “para que acabássemos com a sessão”.
Bernardino, pálido, já acostumado àquelas cenas, e pior ainda, aos estragos, fazia-nos mudos sinais
com os olhos, como a dizer-nos que o momento não era para graças.
Felizmente, o “ambiente” melhorou. Bernardino, Mirabelli e a senhora retiraram-se. Os de casa
ficaram combalidos. Quem piorou foi a doente.
O autor destas linhas sentou-se numa cadeira, suando, exausto, aniquilado. O louçame estava,
felizmente, intacto.

* * *

Restou-nos, como consolo, a certeza inabalável dos dons mediúnicos de Mirabelli.

163
Além da manifestação de ordem intelectual, houve a de ordem física — a das garrafas. Delas não se
aproximara o médium. A não ser a empregada, que as encheu e colocou em cima da mesa, ninguém lhes
tocou. Na sala, suficientemente iluminada, havia as já mencionadas pessoas, numa extremidade, longe
dos vidros, e de mãos presas uns nos outros.
O fenômeno se produziu, mal nos sentamos. O artifício seria impossível, em certo espaço de tempo;
mas, nem esse espaço de tempo houve. Um truque era absolutamente irrealizável.
Se Mirabelli fraudou algum dia, não o sabemos. É de supor que a sua mediunidade sofra eclipses; é de
crer, mesmo, que os seus operadores ocultos não sejam dos mais bem intencionados. Muitas conjeturas se
poderão fazer a seu respeito. O de que não nos resta dúvida, como não tem restado aos que já
presenciaram fenômenos como o a que assistimos, é que ele é um poderoso médium.
Possa, um dia, compreender a alta missão que lhe cabe, perceba o muito que se exige de um médium,
saiba as responsabilidades que lhe pesam sobre os ombros, medite nos sacrifícios que se deve impor, e
poderá prestar à Ciência e à Humanidade inestimáveis serviços.”

Eis um fenômeno biopsicológico que, ainda desta vez, escapará à argúcia de Silva
Mello. Foi-lhe distribuído, nesta caminhada, o papel necessário de contraditor, para
estimulante geral. Advogado do diabo...
Conquanto a mediunidade de Mirabelli, espontânea na brutalidade de sua força, haja
desaparecido, a descrição que dela nos faz Carlos Imbassahy serve à maravilha para nos
dar a compreensão do fenômeno. O médium não é farsante, não é mistificador. A
mediunidade é um dom precário, variável, que tanto pode surgir num indivíduo virtuoso
(que se tornará santo, facilmente), como num viciado (que se tornará até criminoso).
Depende da natureza dos espíritos que atrair com os seus sentimentos pessoais.
Depende, enfim, do emprego que dela se fizer.
No caso de Mirabelli, Imbassahy, cujos livros Silva Mello devia manusear para
aprender alguma coisa do Espiritismo, distingue a farsa, quando fala um suposto
Lombroso (farsa do médium ou de um farsante desencarnado) das manifestações físicas
insofismáveis, que somente podem negar os que não as vêem. Estes, sim, ficam em
condições muito

164
cômodas de negar, de interpretar a seu modo o que não viram. Será ciência isto?

“Mirabelli, insinua Silva Mello, manobrava com águas magnetizadas, mas é claro que (!) a sua
mágica podia ser executada por meio de um fio amarrado à mesa e de muitas outras maneiras, sobretudo
pelo auxílio de um parceiro qualquer que, no caso corrente, diversas pessoas perceberam ser a esposa do
médium.”

Não seria muito fácil a Silva Mello, se o quisesse, já que andava estudando os
fenômenos nos livros de Dessoir, promover uma sessão da qual fossem excluídos todos
os comparsas prováveis (a mulher inclusive), afastada a possibilidade de fios amarrados
à mesa, etc., vigilante e prevenida, mobilizada e severa, só por só, toda a sua habilidade
de prestidigitador de vocação, dentro de uma sala escolhida por ele e onde o médium
penetrasse somente na hora das mágicas?
Diante de tal mediunidade, um Richet, um Crookes, um Schrenck-Notzing, um
Morselli, um Lombroso, um Geley, médicos como Silva Mello, embora menos ilustres,
não teriam outro procedimento. Foi assim que fizeram sempre. Richet confessa que,
para aprender Espiritismo, iria ao fim do mundo. Silva Mello não se move do Cosme
Velho, escreve a mixórdia dos MISTÉRIOS, presumindo destruir alguma coisa. Destrói,
sim, a sua reputação de cientista e se põe à mercê de qualquer preta analfabeta que
possua um pouquinho de mediunidade...
Para edificação geral do clericalismo intolerante e do carolismo servil, assim como
para escarmento particular do cientismo pretensioso e ateu, enunciou o Cardeal Lépicier
(pelo que recebeu a bênção apostólica de um Papa), a seguinte verdade:

“Os fenômenos, demonstrando, como demonstram, a existência de um mundo espiritual, vêm, por
outro lado, confirmar a verdade filosófica e teológica, respeitante à imortalidade da alma, e dão assim o
golpe de misericórdia no materialismo.”

Se o neo-espiritualismo científico não tivesse a seu crédito senão esta prerrogativa —


reduzir e converter o materialismo universal — em cujas mãos se encontram, em grande
maioria, não há negá-lo, o poder temporal as cáte-

165
dras universitárias, as ciências e as artes, redundando do monopólio o estado caótico do
mundo atual, merecido lhe seria o alto conceito que lhe tributassem todas as religiões,
para cujas fileiras se poderiam endereçar os convertidos, levando consigo as prestadias
influências sociais de que são possuidores.
E, se o faz, é porque põe diante dos olhos de ver uma luz miraculosa — o fato
espírita, em torno do qual se hão-de dar as mãos, um dia, a religião, a moral e a ciência.
Porque Lamarck há de ter sempre razão:

“Tirante os fatos, tudo o mais não passa de opinião. Para o homem somente serão verdades positivas
os fatos que ele puder observar.”

166
CAPÍTULO QUINTO

SUMÁRIO

As materializações. As fraudes conscientes e


as fraudes inconscientes. A fraude, no
conceito de Silva Mello. A mediunidade e os
médiuns. As razões da fraude, na moral de
Silva Mello. Silva Mello depõe e contrapõe.
As conclusões de um pobre sofista. A
medicina e a metapsíquica. Convites de
Silva Mello. A vida de alguns médiuns, na
versão de Silva Mello. Uma confissão
imoralíssima. Opiniões sensatas de Bozzano
e de William James. William James e a Sra.
Piper. A mediunidade de Anton Johansen.
Materializações na Noruega. Generalizações
imprudentes do Professor Janet.
Retratações de Janet. O perispírito, modelo
imperecível.

“O fisiologista deve reconhecer que o mais inacreditável fenômeno precisa, de qualquer maneira,
basear-se numa lei da natureza, porque seu dever número um é ser inimigo declarado do milagre. Razão
para que os fisiologistas, se tivessem consciência da missão que lhes incumbe, fossem os mais assíduos
freqüentadores das sessões espíritas. Os fenômenos nela observados não podem ser milagres; logo devem
caber dentro de uma física que não conhecemos. Essas sessões, portanto, deviam interessá-los no mais
alto grau. Poderiam lá estudar enorme massa de fenômenos, com que enriqueceriam os seus
conhecimentos e ampliariam a sua visão científica. O fisiologista que se abstém de freqüentar essas
sessões empaca na entrada de um domínio que é seu.
Os fatos são tanto mais instrutivos quanto menos se enquadram nas nossas teorias. O Espiritismo não
se enquadra nelas; mais uma razão, pois, para estudá-lo. Temê-lo constitui erro grave.
Não é o sobrenatural o que lá acharemos; sim, apenas o transcendente; não se nos depararão milagres,
mas tão-sòmente causalidades desconhecidas. Nada de misticismo: somente o inexplorado. E ao invés,
mesmo, de metafísica, teremos metapsíquica.”
BARÃO CARL DU PREL.

“Il n’y a ici ni religion, ni rialisme qui tiennent... Cest philosophie, ni atheisme, ni mate-une question
de fait.”
PASTEUR.

167
CAPÍTULO V

As materializações.

De todos os fenômenos espíritas, o mais evidente é o da corporificação de entidades


metanóicas, o da ectoplasmia ou materialização fantasmática total. Porque se realiza,
então, a convergência de provas, a acumulação de garantias, de cujo somatório ressalta a
verdade em toda a sua realeza e flagrância.
Para as negas, as negativas e as negaças, diante desse “excesso de provas”, só mesmo
aquelas insuficiências atribuídas por Silva Mello a Richet que, aceitando os fatos como
verdadeiros, não desentranhou deles, imediatamente, a conclusão única possível — a da
sobrevivência da alma humana.
O experimentador avisado e idôneo fiscaliza e dirige a experiência dentro de um
domicílio que conhece de longa data — sua biblioteca ou seu gabinete de trabalho. O
médium, em transe, estado semelhante ao do sono hipnótico, jaz, manietado, num divã,
impossibilitado de intervir diretamente nas diversas fases da experiência. Estas duas
circunstâncias, por si sós, seriam bastantes para demonstrar a diferença entre as sessões
do mediunismo e as farsas dos prestidigitadores.
No “palco de um teatro, previamente preparado, tudo é passivo, menos o mágico e o
ilusionista, que fala destrameladamente, gesticula italianamente, move-se livremente em
todas as direções. A assistência fica à distância, inoperante e silenciosa, boquiaberta.
Na sessão mediúnica, excluída facilmente a presença de um comparsa que, não
sabemos, aliás, como poderia agir num ambiente em que todos os assistentes
permanecem, obrigatoriamente, imóveis e sentados, com exceção de um Crookes, ou de
um Richet, ou de um Noizing, o único farsante possível — a médium — depois de
convenientemente examinada (toques ginecológicos, vomitivos, troca da roupa por uma
camisa ou um pijama sem bolsos), dorme e ressona a sono solto. Ainda há mais e
melhor: os aparelhos físicos, os dis-

168
positivos elétricos, certa vez aos cuidados de um Varley, funcionam automaticamente,
impassivelmente.
Os documentos fotográficos, que por si sós nada valem, podendo sofrer as mais finas
e as mais grosseiras adulterações, conforme nos conta minuciosamente o sagacíssimo
Silva Mello, acordam, aqui, com o testemunho de numerosos olhos humanos, atentos
e... descrentes. Tudo isto já seria prodigiosamente conclusivo, se não ocorresse outro
pormenor: o fantasma não surge mudo, inconsciente, atoleimado, na atitude
estereotipada das poses fotográfica; — fala, anda, respira, dialoga com os assistentes e
com o próprio médium. O fato surge com a espontaneidade e a naturalidade que fizeram
dobrar a cerviz a um Crookes e a um Richet, que desmentem todos os Silva Mello
passados, presentes ou futuros.

As fraudes conscientes e as fraudes inconscientes.

“Em metapsíquica, disse aquele psiquista famoso que se chamou Gustavo Geley,
cujas credenciais para ingresso no estudo dos fenômenos espíritas foram “As Provas do
Transformismo” e os “Ensinamentos da Doutrina Evolucionista”, em metapsíquica a
grande regra de justiça, para muitos observadores, é esta: o “onus probandi” não
incumbe ao acusador, mas ao acusado.”
Silva Mello não sabe, ou finge ignorar, que os médiuns podem fraudar consciente e
inconscientemente. A fraude consciente elimina-se com aqueles cuidados referidos por
Crookes e Notzing: vigilância sobre os movimentos do prestidigitador possível ou
incubado, exame de sua roupa e de suas cavidades naturais. Evitem-se os compadrios e
os comparsas, selecionando-se rigorosamente os assistentes. É questão puramente
policial.
A fraude inconsciente é do domínio da psicologia. “É fruto do automatismo, que
constitui a fase primária e a própria condição da mediunidade” (Geley). Quando
Crookes se manifestou a respeito da “teoria da fraude”, já observara que os primeiros
movimentos do médium, antes que os trabalhos assumam certa intensidade, podem
parecer suspeitos aos críticos apressados:

“Com um médium verdadeiro, acontece que os primeiros fenômenos, que se observam, parecem
geralmente provenientes de ligeiros movimentos da mesa e de fracas pancadas sob os pés ou as mãos do
médium; esses efeitos, concordo, são muito fáceis de imitar pelo

169
médium ou por qualquer pessoa sentada à mesa. Se, como acontece algumas vezes, não se produz nada, o
observador céptico retira-se firmemente convencido de que, já tendo com a sua penetração sem igual
descoberto que o médium enganava, este tem receio de praticar outras fraudes em sua presença.
Escreverá, pois, aos jornais; explicará a fraude, e, provavelmente, expandir-se-á em sentimentos de
comiseração à vista do triste espetáculo de pessoas que, inteligentes em aparência, se deixam levar pelo
erro que ele descobriu ao primeiro golpe de vista.”

Crookes previu acontecimentos futuros, encarnados na pessoa de Silva Mello.


Ochorowicz fornece-nos vários exemplos de fraude inconsciente:

“Vi médiuns baterem com o punho na parede, em frente de testemunhas, pretendendo insinuar que era
o “espírito” quem batia. Um estudante de direito, médium insignificante, deu a si próprio bofetada, à vista
de toda a gente. Não estava em transe permanente e obstinava-se em convencer-nos que fora o espírito de
Xântipa, mulher de Sócrates, quem lhe infligira a admoestação.”

No primeiro estadio do transe, quando a consciência e a vontade começam a


decrescer para que se opere a descentralização, a dissociação necessária entre os
elementos mentais e materiais, entre o órgão e a sua função, isto é, entre o organismo
físico e o seu dinamismo, que vai exteriorizar-se para permitir a atividade de uma força
mental estranha, trabalho que requer a passividade, o consentimento e o esforço dos
centros nervosos do médium, pode surgir a fraude inconsciente — que não é fraude —
ou pela lei do menor esforço, ou pela influência da sugestão verbal ou mental dos
assistentes.
Caracterizam-se os médiuns pela receptividade às sugestões exteriores. Nisto está,
talvez, a essência da mediunidade. São sensitivos. Se alguém lhes der uma ordem
mental para fraudar, ou para executar algum movimento intempestivo, claro poderão
fazê-lo na primeira fase do transe.
Para evitar as fraudes inconscientes do automatismo, da sugestão, ou do menor
esforço, é mister que o médium seja colocado em condições de vigilância (mãos e pés
bem seguros) de tal ordem, que o impeçam de fazer quaisquer tentativas, por inúteis.
Durante o transe, cessa a responsabilidade do médium, um simples instrumento da
ciência e não um cientista ou um filósofo. Vê-se que é muito fácil a um experimentador
novato ou virgem tomar como fraude voluntária simples gesto de um autômato, de um
semiconsciente.

170
Às vezes, o médium executa movimentos reflexos ou associados, acompanhando os
deslocamentos de objetos que se agitam, sem contato. É a aparência de fraude.
Eis um exemplo clássico de fraude inconsciente, presenciado por Ochorowicz e
relembrado por Geley:

“Numa sessão de Kluski, em Varsória, produziu-se um dia o fato seguinte: uma lâmpada elétrica
vermelha estava acesa. Em regra, o primeiro fenômeno obtido era a extinção dessa luz, por ação
telecinética exercida no comutador. Nessa noite, o fenômeno demorava a produzir-se. Um
experimentador impaciente dirigiu-se à força e ordenou:
— Interrompe a lâmpada!
A lâmpada continuou acesa. Repetiu três vezes a mesma ordem, com crescente energia, e logo o
médium em transe se levantou, arrastando consigo os dois controladores, surpresos e interessados.
Dirigiu-se, sem hesitar, para a lâmpada, interrompeu o comutador. . . e voltou para o seu lugar, satisfeito
do dever cumprido!
Eis o tipo de “fraude” inconsciente, que ninguém de bom senso poderia censurar ao médium. Este
último tinha obedecido simplesmente à sugestão. Como o fenômeno esperado se não produzia pelos
meios anormais, produziu-o ele pelos meios normais. O médium estaria também inocente se, em
condições análogas, deslocasse um objeto com as mãos ou com os pés, erguesse a mesa, etc.”

A primeira fase da mediunidade é a do automatismo muscular ou psicológico


saibam-no os experimentadores novatos e os experimentadores de “leituras”. Uma
sessão que se inicia com a fraude inconsciente pode terminar por manifestações
extraordinárias, capazes de satisfazer o mais exigente dos críticos.
Foi o que se passou, provavelmente, com o maior número de médiuns, cuja
idoneidade já se achava suficientemente comprovada por experimentadores insuspeitos,
quando começaram a ser tomados por simuladores.
Quando Silva Mello abandonou as acusações sumárias e pretendeu descrever um
caso de fraude, para retificar as suas suspeitas, virou o feitiço contra o feiticeiro: ele é
que se nos apresenta como historiador fraudatório. Conta-nos, sempre com aquele partis
pris que o obsidia, que, certa vez, em Liverpool, Oliver Lodge conseguiu pegar uma das
mãos de Eusápia, libertada do controle.

“A médium, comenta ele, acusou-o, então, de manobras desleais! As sessões foram suspensas e
Eusápia reembarcada para o continente.”

171
Tratando-se de Oliver Lodge, um dos nomes mais gloriosos do espiritualismo, e de
Eusápia, médium de poderes extraordinários, o mais provável é que o mal entendido
surgira por se tomar uma fraude inconsciente — que não é fraude — em fraude
consciente, que é trampolinagem. Se todas as sessões que se interromperam por
trampolinas, o protocolo, mesmo quando a cargo de um Silva Mello, registrar atitudes
semelhantes, podemos concluir que nelas nunca houve trampolinices verdadeiras.

A fraude, no conceito de Silva Mello.

Sem que o quisesse, Silva Mello, o sagaz, nos dá um exemplo típico de fraude
inconsciente, praticada pela mesma Eusápia.

“Algum tempo depois, (volta à tona o náufrago), foi apanhada em flagrante de fraude, quando
movimentava objetos à distância, por meio dos pés.” (pág. 556).

Aqui está bem caracterizada a fraude inconsciente: é a fraude ingênua, infantil,


irrealizável, como as de que nos ofereceu exemplos Ochorowicz. Como movimentar
objetos à distância, por meio dos pés? O que se manifestou não teria sido, tão-somente,
o conhecido automatismo muscular? Se os objetos estavam à distância, como poderia a
médium tocá-los?
E que a nossa versão dos fatos é a verdadeira depreende-se, ainda, do que Eusápia
realizou no intervalo de tempo que medeou entre a pseudo fraude presenciada por
Oliver Lodge (libertação de uma das mãos) e a fraude que nasceu inviável, a de mover
com os pés objetos colocados à distância. Nesses momentos, gostamos que o próprio
autor dos MISTÉRIOS, tal qualmente o pecador diante do confessionário, se alivie das
suas maldades:

“Mas, depois disso, a agitação em torno do nome de Eusápia não diminuiu, pois, de novo, se afirmou
que ela conseguia realizar aquilo em que havia fracassado na Inglaterra. Diante disso, a própria “Society
for Psychical Research” resolveu enviar a Nápoles uma comissão composta de três membros,
especializados em truques de prestidigitação, para analisar os fenômenos. Desta vez, os resultados foram
brilhantes, pois apareceram sob o mais rigoroso controle e até sob boas condições de iluminação. Um dos
membros da comissão, Carrington, acompanhou a médium à América e prosseguiu obtendo resultados
fora de qualquer dúvida, para ele absolutamente indiscutíveis.”

172
Quaisquer comentários que articulássemos em torno das confissões de Silva Mello
seriam injuriosos à inteligência do leitor. Absolvamo-lo e fiquemos à espera de novas
faltas. Num momento fugaz de lucidez, ele tenta definir a fraude inconsciente e quase o
consegue, se não fora a substituição do automatismo muscular e psicológico (fator
essencial) por móveis subalternos e ilícitos — “satisfação de desejos e convicções”:

“Por tudo isso, não é para admirar que muitas fraudes sejam inconscientes, destituídas de qualquer
desonestidade, sendo os seus autores levados a praticá-las para conseguir as revelações que esperam e
estão de acordo com os seus desejos e convicções.”

As exigências desse historiador das experiências alheias, como são comuns a todos
nós, porque ninguém pode desejar outra coisa, a menos que seja francamente trapaceiro,
merecem aprovação geral:

“A experimentação é, em todo o caso, extremamente difícil, não se devendo acreditar senão naquilo
que ficar evidentemente provado.”

Ele conserva, para os casos difíceis, quando a convergência de provas o leva contra a
parede, tal como aconteceu com as experiências impecáveis de um vulto das proporções
de Crookes, o alçapão pelo qual (não fora exímio prestidigitador!) se escapa
sorrateiramente, evitando todos os aborrecimentos da pateada:

“O que se verifica quase sempre é que, não havendo truques, existem outras circunstâncias que
explicam o fenômeno, embora freqüentemente passem despercebidas.”

O homem está vincado do mesmo cepticismo patológico do Sr. Mabru, a respeito do


hipnotismo: “Não só a coisa não existe, mas também não pode existir.”
É tempo inteiramente perdido o que se empregue para convencer Silva Mello, para
quem, nesse “pífio planeta”, todos pautam o seu procedimento por uns tantos princípios
imoralíssimos, o de “tornar bons e aproveitáveis todos os argumentos”, ajustados à força
para darem razão a quem precise, da possibilidade e da existência, muitas vezes
comprovadas, da fraude inconsciente. Estudaram-na, definiram-na Crookes, Geley,
Ochorowicz, entre muitos outros. Silva Mello acredita no automatismo psicológico ao
qual atribui

173
poderes para transformar ama criança de três anos e meio (Arriola), ou de quatro
(Mozart), num pianista capaz de exceder, não somente os virtuoses, como os
compositores; todas as criancas-prodígios são meros produtos do automatismo
psicológico. Acredita nessa força, para não acreditar em causa muito mais racional, que
possibilita a crianças de tenra idade a realização de feitos extraordinários.
Diga-se-lhe, porém, que um médium, ao entrar em transe, sabendo se vigiado e
controlado, tendo na mão direita Lombroso e na esquerda Richet, médium que começou
a sentir os primeiros sintomas de sua prodigiosa sensibilidade aos 8 anos de idade
(patifaria precoce, dirá o “sábio”), ao sentir concentrada sobre a sua pessoa toda a
impaciência e todos os desejos de fraudes de uma assistência ávida de mistificações,
esboça um movimento impossível de se realizar — o de desprender mãos ou pés — para
fazer mover à distância um objeto qualquer, não pelo desejo de fraudar, que é
irrealizável, mas em virtude de um automatismo psico-fisiológico, então o grande
experimentador teórico brada aos céus, pedindo socorro contra tamanha indignidade.
Muito mais equânime e inteligente foi o seu colega Lapponi (médico de Papas), que
tinha, além das razões que Silva Mello julga possuir, a de não querer descontentar a sua
clientela, quando nos esclarece:

“Admitindo-se mesmo que ela (Paladino) o tivesse conseguido, tendo à sua disposição apenas uma
das mãos e um dos pés, é impossível, para produzir as coisas surpreendentes que produziu, que a
liberdade de uma das mãos e de um dos pés lhe fosse suficiente. Para produzir esses prodígios, por si só,
teria sido necessário que ela dispusesse dos cem braços de Briareu ou que, pelo menos, seus membros
pudessem, alternativamente, alongar-se e encolher-se, como os tentáculos do polvo.”

Ochorowicz, um observador incomparável, vindo lá das bandas da incredulidade por


onde anda agora o nosso Silva Mello, “reconhece que a médium (Paladino) é simples
espelho que reflete e dirige as idéias e as forças nervosas dos assistentes para um fim
ideoplástico; não se admire que a sugestão desempenhe aí papel importante. Com
fiscalizadores imbuídos da idéia de fraude, o médium ficará sob o domínio da sugestão
de fraude.”

“Desde o começo de nossas experiências, adverte Richet, (que se dirige de além-túmulo ao seu êmulo
Silva Mello), pensamos todos na possibilidade dessa fraude — libertação de uma das mãos. Ad-

174
mitir que durante um quarto de século, os cinqüenta eminentes observadores, que operaram cinqüenta
vezes com Eusápia, não se certificassem de que ambas as mãos estavam bem seguras, é verdadeiramente
uma asnice (ótimo!) incomensurável. E não creio que a tenhamos merecido.”

Vejamos o que Silva Mello fará com esse melão, que lhe damos de presente:

“Essa médium, conta-nos Richet, tinha pés, mãos e cabeça seguros, quando um grande melão de três
quilos, colocado a dois metros de distância, andou por cima de nossas cabeças e foi descansar na mesa...”

Quantos fios seriam necessários para manter o melão no ar e fazê-lo mover-se em


determinada direção? E ninguém descobriu um pedacinho deles, para presentear Silva
Mello?
Richet continua a dirigir-se a Silva Mello, piedosamente, para que a sua
metapsíquica recupere os cinqüenta anos de atraso em que vive:

“Os fenômenos produzidos por Eusápia Paladino foram afirmados e confirmados por toda uma série
de ilustres experimentadores: por Enrico Morselli, um dos mais sábios psiquiatras da Itália; por Felippo
Bottazzi, Foá, Herlitzka, professores de fisiologia nas Universidades italianas; pelo célebre César
Lombroso, por Oliver Lodge, por Ochorowicz, por Frederico Myers, por Camilo Flammarion, por
Schrenck-Notzing, por Alberto de Rochas. O testemunho de um só desses grandes homens seria
suficiente. Então, quando eles se reúnem na mesma afirmação, irei eu dar ouvido às críticas infantis que
se resumem quase todas nesta pequena frase ingênua: “Não é possível.”?

A propósito do falso médium Lazlo, que mereceu as honras de um livro do nosso


Schrenck-Notzing e que não era, afinal, como Silva Mello, senão um prestidigitdaor de
terceira categoria, o autor dos MISTÉRIOS desembucha outra confissão, pela qual lhes
somos sinceramente agradecidos. Ele confessa que, do lado de cá, graças a Deus, não há
a mesma teimosa incompreensão, o mesmo hábito malsão de ocultar a verdade ou de
torcê-la:

“Os jornais espíritas, que o haviam glorificado ao extremo, tiveram de calar-se e reconhecer o erro,
como tem acontecido em muitos casos semelhantes.”

Por que razão Silva Mello, que parece escrever para leitores ignorantes ou desejosos
de que seja verdade o que

175
ele diz, não nos imita o exemplo de criaturas normais e sensatas? Por que, por sua vez,
ele e os comparsas que lhe batem palmas, não se curvam diante do testemunho dos
sábios acima enumerados, que não fizeram mais, aliás, do que ratificar o que antes e
depois deles aconteceu nos domínios do Espiritismo?
Sob cuja proteção se há de colocar uma criatura de mediano bom senso, não
inutilizada pelo fanatismo religioso ou pelo fanatismo científico? Sob a palavra de Silva
Mello, da qual ele próprio não nos dá garantia alguma de imparcialidade, em virtude das
confissões com que se purga i cada momento, cada qual mais escabrosa, ou sob a égide
de sábios que, se tinham algum interesse pessoal na questão, era o de negar, negar
sempre?
Parece-nos que aquela afirmação indignada de Richet, quando se referiu aos médiuns
que fraudam — “malandros! miseráveis, os piores inimigos do Espiritismo” — porque
desacreditam a ectoplasmia e a telecinesia, para ele inequivocamente demonstradas,
deve corresponder a uma afirmação paralela endereçada aos que cobrem de ridículo os
experimentadores mais idôneos, mais desinteressados e mais dignos.
Os anais da metapsíquica estão cheios de aparências de fraudes, semelhante as que
Silva Mello atribuiu a Eusápia Paladino, e que são, pelos observadores superficiais ou
irreconciliáveis com o neo-espiritualismo, tidas e havidas por fraudes verdadeiras.
Dentro dos extremos em que se colocam os crédulos ou místicos e os incrédulos ou
realistas, os primeiros vendo em tudo manifestações supranormais e os segundos
recusando o testemunho dos próprios sentidos, as mais das vezes dos sentidos alheios,
como no caso de Silva Mello, deve haver um lugar reservado para observadores sem
fanatismo.

A mediunidade e os médiuns.

É natural a suspeita de fraude onde se imiscua o profissionalismo, com as suas


exibições teatrais. Os médiuns desse tipo podem misturar alguns dons mediúnicos com
a prestidigitação adquirida e forçar os fenômenos. O médium não é filósofo, nem
cientista; pode ostentar ou não escrúpulos morais; a mediunidade lhe pode sobrevir
como se lhe pode fugir de um momento para o outro. Não sabemos ainda a que
condições físicas e morais ela se subordina.

176
Os melhores fenômenos mediúnicos são os que nascem, espontâneos, em pessoas
que vivem discretamente nos ambientes familiares e que não se prestam, de modo
algum, a espetáculos públicos. Há-os no seio de todas as religiões. Quando a
mediunidade legítima irrompe num representante do clero, é para logo afastada do
contato com o público. Que dizer da mediunidade de Laura Edmonds, de Stainton
Moses, de William Stead, da mãe de Gabriel Delanne?
Quem já presenciou fenômenos de levitação e de tiptologia, em ambientes puramente
familiares, quando os próprios médiuns eventuais ficam sem poder entender o que se
passa consigo, não freqüentará mais sessões e exibições públicas, doutoura-se em
discernimento para julgar os fatos dessa natureza.
No livro do escritor espírita nacional Carlos Imbassahy, “O Espiritismo à Luz dos
Fatos”, obra com a qual deviam espanejar o raciocínio os escrevinhadores de coisas
metapsíquicas, para se informarem facilmente da abundância de fatos, de autores e de
experimentadores que desempeceram o caminho às verdades espiritualistas, há um
resumo, de que nos vamos servir, a respeito do assunto:

“Richet pensa que os médiuns podem ser mais ou menos nevropatas, tendo cefaléias, insônias,
dispepsias. Mas acrescenta: isso é pouco significativo. Por certo, dispepsia, insônias, cefaléias, todo o
mundo pode ter, e os médiuns são como todo o mundo, diz
ainda o professor Richet: “ils sont comme tout le monde.”

O que não se aceita como fator da mediunidade é a histeria. Nesse ponto, Richet está
com os estudiosos, quando afirma:

“Tem-se falado muitas vezes de histeria; parece-me, porém, que a histeria não é condição favorável, a
menos que procuremos dar desmedida extensão a essa forma mórbida”.

Também opina Maxwell:

“Parece-me que certa impressionabilidade ou instabilidade nervosa seja condição favorável ao surto
da mediunidade. Eu me sirvo do termo instabilidade nervosa, à falta de melhor expressão, mas não o
tomo em mau sentido. Os histéricos nem sempre dão fenômenos nítidos; minhas melhores experiências
foram feitas com pessoas de nenhuma forma histéricas. Os neurastênicos, em geral, não dão nenhum
resultado.”

177
Maxwell explica o que ele chama instabilidade nervosa:

“Não é nem histeria, nem a neurastenia, nem qualquer neurose. É um estado do sistema nervoso tal,
que parece estar em hipertensão. Uma viva impressionabilidade, uma susceptibilidade delicada, que os
aproximam de certos nervosos, mas dos quais se distinguem pela integridade de sua sensibilidade, de seus
reflexos, do seu campo visual. Têm, em regra, a inteligência viva, são susceptíveis de atenção e não lhes
falta a energia.
Eu tenho, mesmo, a impressão de que o sistema nervoso deles é superior ao da média comum.”

Já aconteceu muitas vezes que médiuns poderosos fiquem completamente ignorantes


das forças supranormais que os tomam e os acionam, à sua revelia; outros,
desempenhando, com exagero, o papel de simples instrumentos, negam em vigília os
fenômenos a que dão nascimento, quando inconscientes.

As razões de fraude, na moral de Silva Mello.

Silva Mello já nos deu a razões pelas quais, no seu entender, os médiuns fraudam:
para satisfação de “seus desejos e de suas convicções”. De outra feita exibiu a seguinte
máxima, de profundo senso imoral: “Isso é muito da natureza humana; para termos
razão e acertarmos as nossas idéias, todos os recursos e argumentos tornam-se bons e
aproveitáveis.”
Tudo isso ele considera muito natural e nada desonesto, induzindo-nos a acreditar
que o seu procedimento de metapsiquista teórico pode orientar-se pelos mesmos
princípios.
Vamos, a nosso turno, dar-lhe o troco, esclarecendo por que, diante das
demonstrações mais cabais, certos escritores, principalmente os que nunca privaram
com um médium honesto e verdadeiro (alguns já não discutem mais os fatos, mas
apenas as teorias que os explicam), rejeitam o testemunho, não, infelizmente, dos seus
próprios sentidos, os quais nada viram, mas dos sentidos alheios, de um Crookes ou de
um Richet.
Mais do que o “místico”, que ainda precisa de fenômenos para afervorar a sua
espiritualidade, o materialista e

178
o ateu à moda de Silva Mello requerem, urgentemente, o oxigênio da fraude, para não
morrerem asfixiados. Daí a luta desesperada pela sobrevivência de suas teorias; sem as
fraudes, muitas fraudes, abundantes, de toda a espécie e tamanho, pereceriam de
inanição. Daí aqueles conceitos infelizes, acoroçoantes e defensores de todos os
recursos e argumentos, porque todos se tornam bons e aproveitáveis, desde que
amparem as nossas idéias.
A fraude verdadeira é sempre de tamanha grosseria (salvo a prestidigitação
profissional, facilmente evitável), que qualquer tolo a identifica. Na materialização, por
exemplo, basta que se não permita, entre os assistentes, a possibilidade de um comparsa.
É um caso de polícia.
A fraude aparente, inconsciente, cuja causa e cujo mecanismo já foram devidamente
estudados, esta é que se transforma no cavalo de batalha dos metapsiquistas ateus,
irreligiosos ou materialistas (quando não se convertem imediatamente).
A tais cidadãos é que se lhes afigura mais fácil admitir “que um elefante possa voar
pelos ares ou uma vaca pôr um ovo de galinha” (são expressões de Silva Mello, para
sintetizar o seu pensamento) do que concordar na impossibilidade de um médium de
efeitos físicos poder levitar um objeto à distância de 3 ou 5 metros de suas mãos ou de
seus pés, por mais que os agitem, os estendam ou os contorçam...
Mexeu-se o sensitivo na cadeira? Fraude. Agitou um braço? Fraude. Esfregou o
calcanhar no chão? Fraude. Contorceu o corpo amarrado? Fraude...
E é por isso que se observam as contradições entre os depoimentos de
experimentadores, com relação a um mesmo médium. É típico o caso de Rudi
Schneider, que obteve os fenômenos mais demonstrativos de poderosa mediunidade,
para acabar ingloriamente, na abalizada opinião de Silva Mello, nas mãos de Harry
Price, de quem recebeu, anteriormente, os mais justificados, os mais calorosos elogios.
O que é mais provável é que o médium Schneider, não sendo absolutamente
prestidigitador, nem conhecendo as artes do ilusionismo, como o atestou Schrenck-
Notizing, haja, em dado momento, repetindo a cena de Eusápia, presenciada por Lodge,
esboçado algum gesto que, embora não pudesse alterar o resultado final da experiência,
fosse tomado por fraude verdadeira, pelo observador.

179
Além disso, a opinião de Harry Price sobre as fraudes e sobre os médiuns não tem
aquele caráter inquisitorial e agressivo de que se reveste a opinião de Silva Mello. Harry
Price era um técnico no assunto. Ele admitia, como quem quer que haja feito
experimentações (Crookes, Ochorowicz, Geley, etc.) que o mesmo médium que, em
dado momento pode cometer uma fraude, também pode produzir fenômenos
verdadeiros. Foi ele quem disse que Eusápia Paladino fraudava quando lhe era possível,
“mas que produzia igualmente fenômenos mediúnicos verdadeiros.”
Na sua fome canina por fraudes, de que precisa para ostentar a sua biopsicologia, que
já deu à luz três alentados volumes, Silva Mello concluiu logo que, quando Harry Price
se referiu a alguma fraude possível praticada por Rudi Schneider, no seu livro “An
account of some further experiments with Rudi Schneider”, invalidou todo os seus
trabalhos anteriores, realizados diante de experimentadores de primeira ordem. Que fez
Rudi Schneider com a sua mediunidade? Demos ao nosso leitor a oportunidade de
saborear algumas páginas de Silva Mello, às quais ele dá sempre, na opinião de um
grande crítico literário “um encanto quase do romance realista”:

Silva Mello depõe e contrapõe.

“Rudi Schneider foi, durante largo espaço de tempo, médium exclusivo do barão Schrenck-Notzing,
até a morte deste, em 1929. Notzing, como é sabido, foi um afamado médico alemão, especialista em
moléstias do sistema nervoso e possuidor de grande fortuna. Durante dezenas de anos, ele se ocupou
especialmente de problemas de metapsíquica, sobretudo debaixo do ponto da investigação científica.
Depois de sua morte, Rudi Schneider, tornado livre, prosseguiu como médium, sendo disputado por
diversas associações européias, entre as quais o “National Laboratory of Psychical Research” de Londres
e “Institut Métapsychique International” de Paris. Quando partiu para Londres, a fim de ser examinado
por especialistas ingleses, foi acompanhado pela viúva do Prof. Holub, de Viena, ex-assistente de Wagner
von Jauregge, depois, diretor de um Hospital para doenças mentais em Steinhof. Holub realizou
numerosas experiências com Rudi, que, em Londres, foi colocado sob a direção de Harry Price, então
diretor do “National Laboratory of Psychical Research”, um dos melhores conhecedores dos artifícios
empresados em prestidigitação, havendo reunido uma biblioteca de .milhares de volumes sobre o assunto.
Numa conferência feita em Paris, em 15 de Maio de 1930, Price expõe os resultados das experiências
realizadas em Londres, concluindo serem elas absolutamente demonstrativas. Nessa ocasião o
conferencista declarou: “Tendo, durante toda a minha vida, estudado os métodos de pres-

180
tidigitação, sei quais os aparelhos necessários para simular os mais simples fenômenos. Maskelyne, o
ilusionista inglês que, no Music Hall, fez a paródia dos fenômenos produzidos por Rudi Schneider tinha
necessidade de um gabinete especial, com entrada e saída dissimuladas, de um alçapão e de assistentes
para o fazerem funcionar e lhe passarem o material acessório. Para isso, afinal, eram-lhe precisas seis
pessoas inteiramente livres e ainda um gabinete mecânico para simular os fenômenos produzidos por
Rudi Schneider, esse moço que, durante as sessões, era imobilizado por duas pessoas e, ainda, controlado
eletricamente. O esforço de Maskelyne para diminuir o valor dessas sessões foi mais que ridículo, foi de
uma dolorosa imbecilidade. Também não ficarei nada admirado, se ele fugir à minha oferta de 1.000
libras esterlinas, caso consiga produzir os fenômenos que Rudi Schneider, nas condições por nós
estabelecidas, executa diante de nós.”

Silva Mello continua:

“E Price relata que as experiências foram realizadas dentro das mais severas condições de controle,
isto é, estando o médium imobilizado e cada um dos seus membros dentro de circuitos elétricos
separados, que fariam acender lâmpadas vermelhas quando houvesse qualquer tentativa de libertação. A
sala de experiência encontrava-se hermeticamente fechada e o médium cercado de pessoas garantidas,
fora de qualquer suspeita... Os fenômenos mais comumente observados foram: ventos frios que sopravam
dentro da sala, fazendo sair a temperatura do ambiente, e eram sentidos por todas as pessoas presentes;
levitação de uma pequena cesta; pancadas sobre móveis que estavam afastados do médium; toques de
uma campainha; vibrações de uma cítara; contatos operados sobre os assistentes e, finalmente, aparição
de mãos e braços materializados, através das cortinas de um pequeno gabinete colocado num canto da
sala. Tudo isso parece por demais insignificante, comparado às extraordinárias façanhas do nosso
espantoso Mirabelli. Mas, para os verdadeiros especialistas em metapsíquica, foram tais manifestações
consideradas maravilhosas, tão maravilhosas que chegaram a despertar suspeitas aos mais cépticos
exigentes. Os fenômenos apresentados por Rudi Schneider pareceram, contudo tão reais e bem
demonstrados, que uma comissão do “Laboratory of Psychical Research” não teve dúvida em fornecer ao
médium um documento, no qual certificava que “os fenômenos mediúnicos por ele produzidos naquele
laboratório eram absolutamente verdadeiros.” O Dr. Eugênio Osty declarou textualmente: “Não vejo
como Rudi poderia produzir esses fenômenos por meio de fraude, tendo os quatro membros sob controle
elétrico e estando imobilizado por pessoas que lhe impossibilitavam qualquer movimento.” O Professor
Pollard diz: “Como todos os que assistiram aos fenômenos produzidos por Rudi, não posso dar-me conta
de sua natureza, mas acho-os desconcertantes.” Georg Kaleta, de Salzburgo, que realizou experiências
com Schneider, declarou: “Os fenômenos que se obtêm com esse médium são autênticos, mas a sua
explicação não é fácil. Seria necessário voltar à terra em mil anos, quando, então se encontraria talvez a
explicação plausível para eles.” O Professor

181
Nils von Hopsten saiu “profundamente impressionado” e lord Charles Hope afirmou: “Eu creio
firmemente que os fenômenos produzidos por esse médium são verdadeiramente supranormais. O Dr.
William Brown, considerando-os impressionantes e difíceis de serem explicados pelas conhecidas leis da
física, acrescenta: “A minha opinião é que o médium se encontra verdadeiramente em estado de transe.”
Will Goldston, um prestidigitador de renome, garante que nenhum dos seus colegas seria capaz de
produzir tais fenômenos nas condições em que são realizados. O Prof. Osterreich, da Universidade de
Tuebingen, na Alemanha, falando desse mesmo médium, diz textualmente: “No ano passado mais de duas
dúzias de sábios da Universidade de Munique tiveram ocasião de assistir a sessões mediúnicas tão
favoráveis como até aí nunca haviam existido.” E conclui que o barão Schrenck-Notzing, médico que
descobriu o citado médium, conseguiu realizar com ele experiências que, logicamente, “não podem deixar
qualquer dúvida sobre a autenticidade dos fenômenos observados.” Depois disso, Rudi Schneider esteve
em observação no Instituto Metapsíquico de Paris, onde, de Outubro de 1930 a Dezembro de 1931, o seu
diretor, o Dr. Eugênio Osty, assistido pelo seu filho, o engenheiro Marcel, o submeteu a uma série de
experiências, cujos resultados foram apresentados em diversas conferências e numa publicação especial,
tendo por título: “Poderes Desconhecidos do Espírito sobre a Matéria”. As faculdades sobrenaturais de
Rudi foram aí confirmadas, parecendo que a metapsíquica, naquela ocasião, ia entrar por caminho seguro,
verdadeiramente científico.”

As melhores páginas desse nosso insignificante trabalho, as mais saborosas e


sugestivas, mais ricas de fatos e de documentos a favor da hipótese espírita, hão de ser
as que Silva Mello escreveu. Lendo-as, a impressão fortíssima que nos produzem, é a de
que foram escritas com a intenção inicial de defender o Espiritismo, mas que,
ulteriormente, em virtude de uma força superior à vontade do autor, se querem mudar,
baldadamente, em negação. Os fatos brigam com as conclusões e o pai dos
MISTÉRIOS se nos apresenta numa como que atitude de neutralidade e de expectação.

As conclusões de um pobre sofista.

Para destruir toda a documentação linhas acima magistralmente apresentadas e


concatenadas, Silva Mello pegou de um livro escrito pelo mesmo Price, o célebre
prestidigitador Harry Price, para quem, ao lado de fraudes — este foi o postulado que
sustentou durante toda a sua vida — ao lado de fraudes possíveis, eventuais,
inconscientes as mais das vezes, o mesmo médium realiza fenômenos mediúnicos verda-

182
deiros, e quer que o acompanhemos na conclusão insensata de que nunca jamais em
tempo algum Eusápia Paladino e Rudi Schneider produziram um só fenômeno
verdadeiro.
Pedimos ao leitor que nos acompanhou pacientemente até essas paragens que não se
esqueça de que, na sua quase totalidade, os grandes nomes que endossaram com o seu
depoimento a veracidade dos fenômenos produzidos por Rudi Schneider — simples
exemplo entre mil outros da mesma espécie — não eram sequer espiritualistas, quanto
mais crédulos ou místicos, condição sine qua non, para o autor dos MISTÉRIOS, com
que se deve candidatar, antes de tudo, o metapsiquista digno de crédito.
Nem tôdas as “teorias” poderão granjear tamanha messe de defensores gratuitos e
independentes fora do círculo dos seus profitentes, como as racionais e consoladoras
verdades do Espiritismo cristão.

A medicina e a metapsíquica.

Em que pese à biopsicologia de Silva Mello, excrescência do irracionalismo animal,


no qual se inspirou, e da intuição dos instintos, até onde desceu, a metapsíquica
encontrou sempre na Medicina e nos médicos os cultores mais dedicados.
Foi médico Léon-Hyppolite-Denizard Rivail — o Allan Kardec — codificador
paciente da doutrina, possuidor da mediunidade mais elevada, segundo S. Paulo — a
mediunidade do discernimento para julgar as manifestações dos espíritos; médico foi
William Crookes, o sábio mais eclético do seu tempo, descobridor do quarto estado da
matéria — o radiante, que ofereceu a base científica, a ponte necessária entre o que é
visível e o que é invisível; também era médico Richet, autor de numerosas contribuições
originais nos domínios da fisiologia, o escritor do “Tratado de Metapsíquica” e da “A
Grande Esperança”, obras com o auxílio das quais o cientismo é facilmente pescado e
convertido, apesar de se ter detido no limiar da filosofia dos fatos; médico foi Geley, “o
mais insigne sustentador da sobrevivência, cientificamente entendida”, na opinião de
Ernesto Bozzano, e cuja vida e cuja morte serviram de tema permanente para as mais
altas cogitações espiritualistas; ainda filho da medicina foi Maxwell, o contraditor
vitorioso de Janet, que reduziu o automatismo psicológico e o subconsciente às suas
proporções naturais e lógicas; médico foi o barão Schrenck-Notzing, que dedicou 40
anos de sua vida ao estudo e à divulgação da fenomeno-

183
cados no ouvido ou na cavidade de um dente, potencialidades mediúnicas com os
atributos da Divindade?
A resposta que nos dá a tais perguntas é a seguinte:

“É, de novo, um convite, já muitas vezes repetido (na “Alimentação, Instituto e Cultura” e no “O
Homem”) para descermos das altas esferas e virmos procurar cá em baixo, no pó da terra e na nossa
insignif1Cância, o caminho que mais nos convém, aquele que, afinal, deve ser nossa rota mais natural e
adequada.”

Não podemos obedecer às admoestações filosóficas desse Confúcio às avessas do


século XX, apesar das ótimas intenções que elas guardam no bojo: a nossa felicidade!
Deixemo-lo, sozinho onde se agrada de viver, refocilando-se no “pó da terra.”
Olhos e pensamentos para o Alto, agradeçamos a Força “que nos guia e conduz
aonde bem lhe pareça, por vias indiretas, tortuosas e muitas vezes bizarras”, da qual
teve a intuição o imortal Richet, nos últimos dias de sua vida, como o confessou
confidencialmente a Bozzano, a mercê de tê-la reconhecido a tempo apesar dos nossos
precários sentidos humanos.

A vida de alguns médiuns, na versão de Silva Mello.

“Quando penso nas precauções que tomamos todos, vinte, cem, mil vezes, é inadmissível que todos
nos tenhamos enganado vinte, cem e mil vezes.”
“Durante vinte anos, continua Richet, de 1888 a 1908, Eusápia foi submetida, pelos mais sábios
experimentadores da Europa e da América, às provas mais rigorosas e às mais perspicazes investigações.
E durante vinte anos, todos esses sábios, decididos a não se deixar enganar, puderam verificar que
objetos, mesmo pesados e volumosos, eram deslocados, sem que houvesse contato.”

Silva Mello amontoa, nas páginas promíscuas dos MISTÉRIOS, com requintes de
prestidigitador de vocação, as proezas fantásticas de seus colegas, profissionais do
engano e da batota. São numerosos contos do vigário, que ele descreve
circunstanciadamente, transparecendo-lhe na palavra o sadismo com que pensa estar
demolindo uma seita cristã que o incomoda vivamente, pois ela sustenta não ser
puramente impressão a sua proclamada e confessada fobia por um fantasma.
Não se tendo beneficiado com a catarse que a si mesmo se propinou, nem lhe tendo
dado alívio a psicanálise a que

184
recorreu em vão, volta-se-lhe a fúria contra a doutrina que sustenta a realidade dos
fantasmas. Ao relatar e desmascarar as experiências alheias, em que os truques de
profissionais mercenários induziram os de boa ou de má-fé a acreditarem em coisas
inverossímeis, semelha o medroso que, nos momentos mais agudos da crise, canta e
assobia no escuro, para se convencer de que tem coragem.
Distrai-nos, então, com as proezas de Reese, que “conseguia farta clientela para a sua
vidência e sabia fazer-se pagar muito bem”; com as de Kahn, “preso por falcatruas, na
América, onde tentou ganhar dinheiro fazendo predições em corridas de cavalo”; com
as de Slade, “sutil comediante”; com as de Hannussen, que “obteve contratos altamente
remunerados no “Scala” de Berlim e no “Empire” de Paris, apontando com o dedo “os
estratagemas executados por meio de parceiros” e as trocas de lousas “por outras
antecipadamente preparadas.”
Tôda a fenomenologia supranormal lhe parece um mal-entendido para o qual
colabora a ingenuidade humana e a esperteza dos ilusionistas. Há, no seu parecer, uma
rede de velhacaria universal, com filiais nos lugarejos mais obscuros do planeta, eom a
finalidade de iludir e de fraudar inexplicável e... gratuitamente.

Uma confissão imoralíssima.

Na página 200 do seu livro, cujo título devia ser “A Escamoteação Universal”, o
homem de “extrema sinceridade” dá-nos a explicação de como tais coisas se fazem:

“Isso é muito da natureza humana: para termos razão e acertarmos as nossas idéias, todos os recursos
e argumentos tornam-se bons e aproveitáveis.”

Aqui vai outra confissão:

“Basta o indivíduo ter um interesse especial por determinada questão, depositar nela as suas
esperanças ou os seus desejos, tê-la como objeto dos seus pensamentos e das suas preocupações, para que
logo tudo tome feição particular, segundo as suas tenções ou as suas ilusões”.

Este argumentador perde a cada momento o fio de seu raciocínio e arma a si próprio
ciladas em que se esparrama... Os fenômenos espíritas, quem melhor os estudou, os
regis-

185
trou e os publicou foram sábios materialistas do melhor quilate, que nunca fizeram
profissão de fé espírita.
Este fato, cuja presença tem a força emanante de um Pão de Açúcar ou de um
Corcovado, desmente tão categoricamente a afirmativa supra de Silva Mello, que
chegamos a ficar penalizado diante da pateada que vai receber o êmulo de Hannussen.
São os descrentes que, no geral, se preocupam com a parte experimental da doutrina
espírita. Os crentes verdadeiros abandonam logo os fenômenos para se imbuírem das
suas conclusões filosóficas e das suas conseqüências morais e religiosas.
A parte científica e experimental do Espiritismo sempre esteve nas mãos dos seus
estudantes (Crookes, Richet, Geley, Maxwell, Lombroso, Osty, etc), os quais, ao
contrário do que sugere o prestidigitador Silva Mello, “não tinham interesse especial”
pelo assunto, no qual “depositassem” as suas esperanças ou os seus desejos”; as suas
“tenções e as suas ilusões” eram diametralmente opostas à realidade dos fenômenos que
observaram. Muitos não abraçaram jamais a “hipótese espírita”.
Se o testemunho desses homens, se a defesa desses homens de nada servem para
possibilitarem o julgamento sereno e desapaixonado dos fatos, para quem apelarmos?
Para a suma autoridade, para o juiz supremo, para o critério papal de um Silva Mello?

Opiniões sensatas de Bozzano e de William James.

Fortaleçamo-nos com a palavra de um grande filósofo, nascido do positivismo,


amigo da clareza, adstrito sempre à lógica e ao bom senso, fortaleçamo-nos com o Prof.
Ernesto Bozzano:

“Se é verdade que o Espiritismo seja tomado num sentido religioso por uma multidão, aliás muito respeitável, de
almas simples, não quer isto dizer que ele seja religioso, mas tão somente que as conclusões rigorosamente
experimentais, e, portanto, científicas, a que conduzem as investigações medianímicas, têm a virtude de reconfortar
um grande número de almas atormentadas pela dúvida. Mas os opositores devem ter em mente que, culminando sobre
essa multidão, em que prevalece o sentimento, existe uma coorte numerosa de experimentadores exercitados nos
métodos científicos, também homens de ciência, em que prevalece a fria razão, e que estes examinaram os fatos com
o fim exclusivo de pela Verdade procurar a Verdade.”

186
Não estará, na realidade, o cientista Silva Mello “tomado por um espírito gaiato”,
que o influencia para “a dúvida e a negação”, conforme lho disse o pobre médium
Pascoal de Belo-Horizonte, em 1927, na primeira, na última e na única sessão espírita a
que assistiu?
Que os fenômenos supranormais, em virtude de sua própria natureza, “se prestem à
fraude”, ninguém o contesta; que um sábio ingênuo ou não possa ser ludibriado por um
ilusionista, já aconteceu; que um prestidigitador possa ser bigodeado por desconhecer o
truque inédito de um colega, é possível. Estes acontecimentos, porém, não invalidam os
fenômenos lidimamente espíritas, impossíveis de serem simulados, senão de modo
muito grosseiro e facilmente percebido.
Os comentários de William James a respeito da dupla Havey-Hodgson, amadores da
prestidigitação, de grande virtuosidade em escrita direta, e que deram espetáculos de
grande sucesso, invalidam apenas o testemunho ocular:

“A contribuição de Davey-Hodgson constitui provavelmente o documento mais grave jamais


produzido contra a prova baseada no testemunho ocular.”

Estimamos saber que Hodgson e William James são autoridades que Silva Mello se
digna de citar em abono de sua tese.
Qual é, no entanto, o depoimento do mesmo Hodgson, a respeito da notabilíssima
sensitiva Piper?

“Presentemente, não tenho a menor dúvida de que os principais comunicantes de que tratei em
páginas anteriores, são verdadeiramente as personagens que dizem ser, que sobreviveram à mudança a
que chamamos morte, e que se comunicaram conosco, que nos denominamos vivos, por intermédio do
organismo da Sra. Piper, em transe.”

Depois de tanta cera gasta inutilmente com falsos médiuns, falsos videntes,
mercenários e profissionais, eis que o historiador Silva Mello topa, nas suas leituras,
com alguma coisa digna realmente de registro, de minúcias e de comentários. Não nos
sobra outro recurso senão a transcrição in extenso das páginas em que se retrata com
fidelidade o prodigioso poder mediúnico da Sra. Piper, permanecendo o historiador do
lado de fora, sem se atrever a um comentário desairoso, a uma insinuação maledicente,
qual se lhe quebrassem na boca todos os dentes.

187
William James e a Sra. Piper.

O caso da senhora Piper, médium americano, é talvez o mais célebre que tem existido nesse sentido,
pois foi bastante estudado, sobretudo experimentalmente, por sábios de renome universal, como William
James, Hodgson, Newbold, ao lado de Oliver Lodge e outros. Os fenômenos que se passavam com esse
médium eram os seguintes: quando Piper caía em estado hipnótico, era o seu corpo usado por espíritos,
que se serviam da sua voz para falar e da sua mão para escrever. Nas sessões, esses espíritos
apresentavam-se como parentes ou amigos mortos das pessoas presentes, às quais comunicavam fatos
desconhecidos ou já esquecidos, passados entre eles, já mortos, e as pessoas que assistiam à sessão, ainda
vivas. William James, professor da Universidade de Harvard e um dos mais célebres psicólogos
modernos, conta como foi bater à porta de Piper, interessando-se pelos problemas em questão que, já
então, não gozavam de boa reputação, Isso aconteceu, como é quase sempre o caso, por interferência de
parentes e amigos, que lhe contaram maravilhas sobre a médium. A sogra do psicólogo, que fora vê-la por
simples curiosidade, voltou assombrada com os resultados, principalmente em relação a nomes e
prenomes de membros da sua família. Em seguida, é uma cunhada que vai procurar a vidente, levando-lhe
uma carta escrita em italiano, cujo autor não era conhecido senão por duas pessoas em toda a América.
Piper colocou a carta sobre a testa e descreveu rigorosamente as condições em que vivia a pessoa que a
escrevera. William James, interessado por esses fatos, resolveu examinar a vidente pessoalmente,
procurando-a sob falso nome, a fim de não lhe fornecer qualquer material para orientação. Mas, mesmo
assim, tudo ocorreu como fora anunciado, pois também as informações que recebeu foram
extraordinárias, fora de todas as suposições. Por essa razão, decidiu entregar-se à investigação do caso,
chegando a conclusões positivas, não quanto à existência de espíritos, mas sim quanto ao fato da senhora
Piper possuir faculdades supranormais. Ela conseguia dar-se conta de coisas e fatos fora do alcance
normal dos sentidos; diagnosticava doenças de maneira incompreensível; descrevia pessoas, servindo-se
apenas de objetos que, no presente ou no passado, lhes haviam pertencido; finalmente, dava informações
quanto a acontecimentos da vida de parentes e amigos dos que a consultavam. De uma vez, William
James havia procurado em vão por um livro desaparecido, mas Piper descreveu tão bem o lugar em que
ele se achava, que pôde ser logo encontrado. E James relata que isso se repetiu diversas vezes com ele
próprio, em relação a coisas que ignorava. Baseado em sua observação, conclui que Piper, no estado de
transe, tem conhecimento de fatos, dos quais, de forma alguma, poderia dar-se conta ou ter ouvido
quando acordada. Ele se exprime nos seguintes termos: “Para mim, o raio caiu! e não somente se
enfraqueceram as presunções em favor da crença ortodoxa, mas a própria verdade dessa crença foi
posta por terra de uma maneira decisiva. Para empregar a linguagem dos profissionais da lógica, direi
que uma proposição universal pode tornar-se falsa por um só exemplo particular. Se vos afirmarem que
todos os corvos são pretos,

188
e quereis destruir esse preconceito, bastar-vos-á apresentar um único corvo branco. Meu único corvo
branco é a senhora Piper. Quando esse médium se encontra em estado de transe, não posso furtar-me à
convicção de que revela conhecimentos que não pode ter adquirido normalmente pelo uso habitual dos
seus olhos, dos seus ouvidos ou da sua razão. Ignoro a origem desses conhecimentos e não encontro para
eles qualquer laivo de explicação, embora, de forma alguma, possa recusar admiti-los como fato. . .
Sábios e os que não o são, vivemos todos sobre qualquer plano inclinado de credulidade, que para uns
pende para um lado, enquanto para outros para lado diferente; que aquele, cujo plano não se inclina
para lado algum, nos atire a primeira pedra! De fato: os fenômenos de transes, dos quais tenho falado,
destruíram em meu espírito as fronteiras da ordem natural admitida. Eu desejaria que a ciência lhes
desse um lugar definitivo. Dessa maneira, satisfaria uma das minhas mais urgentes necessidades
intelectuais. A ciência, como a vida, nutre-se das suas próprias ruínas. Os fatos novos quebram as velhas
regras e as concepções recentemente consagradas vêm reconciliar então, numa mesma lei, as teorias
passadas com as presentes”.

Agora Silva Mello retoma a palavra:

“A convicção de James parece inabalável, pois julga necessário confessar estarmos diante de uma
maravilha, que precisamos decidir se é de ordem física ou moral. “Do lado físico, o problema consiste
em, saber se é possível obter conhecimentos do gênero indicado sem fazer uso dos olhos e dos ouvidos.
Do lado moral, a ma-mvilha consistiria em uma espécie de fraude, tão perversa e bem sucedida, que não
poderia haver nada de semelhante.”

É possível, porém, que o dilema estabelecido por James não seja inteiramente exato
em nenhuma das suas proposições. Acrescente-se que os fatos referidos pelo psicólogo
americano tornaram-se de conhecimento geral, recebendo confirmação de outros
homens de ciência.

Oliver Lodge e a Sra. Piper.

Oliver Lodge, o célebre físico inglês, que também experimentou com Piper,
enviando-lhe pessoas sob falsos nomes, diz estar convencido de que ela, no estado de
transe, consegue conhecimentos que não podem ser obtidos pelos recursos habituais;
Lodge acrescenta, porém, que os fatos então referidos eram, em geral, do conhecimento
de alguma pessoa presente à sessão, embora, não raro, já completamente esquecidos.
Em outros casos, havia revelações confirmadas posteriormente e que pareciam
totalmente desconhecidas das pessoas que assistiam às sessões.

189
Mais tarde, Oliver Lodge, em suas “Recordações”, conta que, depois das
experiências com Piper, ficou “completamente convencido não só da sobrevivência
humana, mas também da faculdade que têm os desencarnados de poderem comunicar-
se com as pessoas que ficam sobre a terra.”
A sua convicção foi de tal ordem, que passou a falar dos mortos em tom de afetuosa
camaradagem, como se estivessem ainda vivos. É nesse mesmo livro que diz:

“Finalmente, veio a guerra. Meu filho Raymond alistou-se. No fim de um ano, Myers, que já havia
morrido, enviou-me uma mensagem por intermédio da Sra. Piper, anunciado-me uma desgraça, mas que
iria tomar medidas para torná-la menos cruel. Pouco tempo depois, veio o doloroso telegrama com a
notícia da morte do meu filho. Eu me pus em relação com outros médiuns. Raymond entrou em contato
comigo e disse-me que Myers havia sido a primeira pessoa que encontrara no outro mundo e que o havia
adotado, até que nós nos pudéssemos reunir. Não foi este o último proveito dos muitos que obtive de
minha amizade com esse homem notável. Foi ele o primeiro a quebrar o meu cepticismo e que me
demonstrou quanto a hipótese da sobrevivência era razoável. Foi ele quem me tornou essa doutrina
evidente, embora já estivesse eu convicto da sua realidade. Além disso, depois que não vive mais na terra,
tem-se ainda preocupado em me guiar em muitas circunstâncias. Ele me tem dado sinais indubitáveis da
sua persistente afeição e, aqui, desejo apresentar-lhe o meu sincero reconhecimento.”

Permita-se-nos um comentário: como se há de rir intimamente o sábio Silva Mello


diante desta linguagem cheia de consoladora convicção!
Continuemos a história da médium Piper, através da versão fidedigna do mesmo
escamoteador, completamente subjugado e tolhido nos seus gestos habituais:

“O Professor W. R. Newbold, da Universidade de Filadélfia, que também investigou pessoalmente o


problema, chegou a idênticas conclusões, admitindo que os conhecimentos de Piper não eram alcançados
por meio de recursos normais, nem havia qualquer fraude em suas revelações. Wiliam James disse
textualmente: “O que eu quero atestar imediatamente é a presença de um conhecimento verdadeiramente
sobrenatural, isto é. de um conhecimento cuja origem não poderia ser atribuída às fontes ordinárias de
informação, isto é, aos nossos sentidos.”

Falando da clarividência de Piper, Richet externa-se nos seguintes termos:

“Se, para afirmar esse poder misterioso da nossa inteligência, não tivéssemos senão as experiências
realizadas com esse médium, seria isso largamente suficiente. A prova está dada, e de maneira definitiva.”

190
Finalmente, retomemos nós a palavra, foi a propósito da mediunidade sem jaça da
Sra. Piper, isenta de truques, de exibicionismo teatral, de comércio ou de indústria, que
Max Dessoir, o mentor, o assessor, o ninho maternal em que Silva Mello se emplumou,
a fonte em que se abeberou dos conhecimentos teóricos do assunto, expediu aquela
exclamação, equivalente a um grito desesperado de socorro: “SE NAO HÁ FRAUDE,
O QUE HÁ, ENTÃO?”
Obsidiado com a idéia fixa de fraude, confunde fios fluídicos com fios de cabelo, nas
críticas que faz às experimentações de Ochorowicz com Stanislawa, onde o truque “era
evidentemente executado por meio de um fio, que por vezes aparecia até nas
fotografias.” E insiste, lamentavelmente, na negação dos “fios etéreos”, apesar da
confirmação de Richet de que não se tratava de mistificação, de fio de cabelo ou de
cobre, mas de autêntico “fio fluídico”, semelhante às emanações do corpo de Marthe
Béraud.

A mediunidade de Anton Johansen.

Sem atinar que está navegando em águas alheias, renova, com relação à mediunidade
de Anton Johansen, o mesmo erro que cometeu contra a sua tese, que somente se
mantém à custa de fraudes e de falsos sensitivos, quando avocou à sua pena a história
verídica da Sra. Piper.

“É aqui, diz ele, o lugar para recordar o caso de Anton Johansen, um vidente escandinavo, cujas
profecias tiveram imensa repercussão, tendo sido divulgadas em folheto, numa edição de 100.000
exemplares. Johansen foi um homem sério e digno, que nunca bebeu nem fumou e se conservou afastado
do contacto sexual até a velhice. Por diversas vezes, previu a morte de pessoas, sobretudo em acidentes
no mar. O principal, porém, é que profetizou a guerra de 1914 com 7 anos de antecedência e, poucos
meses antes do seu início, procurou os ministros da guerra da Noruega e da Suécia para lhes anunciar esse
acontecimento, que estava iminente. Deus lhe disse que avisasse também ao imperador da Alemanha,
tarefa que ele não conseguiu realizar. Pouco tempo depois estourou o conflito, cujo fim igualmente previu
com meses de antecedência. Max Dessoir, que conversou longamente com o vidente, teve a impressão de
que ele se considerava um eleito de Deus, servindo de intermediário aos homens para avisá-los dos males
que os ameaçavam e que podiam ser evitados por meio da religião. O vidente Johansen era
profundamente religioso, nunca se separando da Bíblia.”

Como se vê, depara-se-nos a mediunidade verdadeira, a única que impressiona os


crentes no intercâmbio entre os

191
dois mundos: mistura de religiosidade com a pureza, a moralidade, a discrição, o desejo
de fazer o bem. Esta mesma não será infalível na sua clarividência e nas suas
premonições. A infalibilidade pertence somente a Deus.
Tal como aconteceu, quando trouxe à baila a médium Piper, o historiador nos
surpreende com a ausência da sua malignidade para com Johansen.
Mas por que citou o caso, que não abona de modo algum a sua tese? Já se viu por
acaso, advogado mais desastrado?

“Citamos o seu caso porque, além das profecias mencionadas, fez ele muitas outras, que se deviam
realizar tempos depois. Entre outras predições, anunciou uma guerra entre a França e a Espanha, dentro
de 10 a 15 anos, outra entre a França e a Rússia de um lado, e a Suécia e a Noruega do outro, no ano de
1953.”

Ao invés de aguardar os acontecimentos, a única atitude sensata de quem não possui


igual dom de profecia, pelo menos já provado, Silva Mello faz uma profecia contraia,
do seguinte modo:

“Como é fácil verificar, os acontecimentos processaram-se de maneira diferente e o mundo sofreu tal
transformação, que as condições para a realização de muitas das suas profecias se tornaram impossíveis.”

Apesar das ponderações proféticas de Silva Mello, estamos em que o leitor, dados os
precedentes de Johansen, ainda joguem neste.

Materialização na Noruega.

Certa vez, em Cristiânia, na Noruega, um grupo de professores obteve, por


intermédio da Sra. d’Esperance, algumas materializações das mais realísticas de que se
tem memória. Nepenthes, espírito feminino de grande beleza, mostrava-se em plena luz,
juntamente com a médium. Materializava-se à vista dos assistentes, no meio do círculo
por eles formado. Deixou-se fotografar e examinar à vontade. Escreveu mensagens em
grego antigo, desconhecido de todos os espectadores.
Na Universidade de Reykjavik, na Islândia, obtiveram-se materializações
semelhantes. O Professor Hannesson, desconfiando de fraudes, levou a médium para a
sua própria casa. Selecionou a assistência: sábios e cépticos. Escolheu o ambiente: “No
meu quarto eu sei como tudo se passa.”

192
Vigilância, selos, fitas fosforescentes. Procurou imitar o que presenciara, inutilmente.
“Em certas ocasiões, via os objetos andarem de um lado para o outro, em plena
claridade. Nenhuma dúvida, absolutamente nenhuma.” E chegou, como Crookes e
Richet, à conclusão de que os fenômenos eram incompreensíveis, mas reais.

Generalizações imprudentes do Professor Janet.

Se o investigador fosse o incorrigível Silva Mello, a conclusão seria forçosamente a


seguinte:

“O médium, em rigor, pode fraudar. Não está demonstrado que não fraudou. Portanto, fraudou.”
(Geley).

Que nos adiantaria lembrar a este recalcitrante que “os grandes fenômenos da
ectoplasmia trazem consigo o seu controle, porque só poderiam ser imitados pela ação
dum comparsa e nada é mais fácil do que prevenir esta fraude?”
As generalizações são incompatíveis com a imparcialidade das práticas
experimentais, cuja aspiração única é a verdade. São perigosas, anticientíficas e baldas
de lógica. As generalizações de Silva Mello, concernentes aos médiuns e aos sábios,
todos falidos, fraudulenta ou ingenuamente, assemelham-se às generalizações de alguns
espíritas, que inscrevem todos os fenômenos supranormais na sua doutrina, imitando os
seus adversários — Janet, Grasset, Plournoy — para os quais “as misérias psicológicas”
da neuropatia, da degenerescência e do histerismo são o substrato dos fenômenos
espiritóides, observados em todos os médiuns.
O neuropatologista Prof. Janet, de observações e de experiências sobre doentes
hospitalizados, neuropatas e histéricos, nos quais, ao seu parecer, registrou fenômenos
ditos espiritóides, extraiu a sua teoria, que se tornou célebre e adotada no mundo inteiro.
A conclusão que lhe pareceu indubitavelmente lógica era a seguinte: se os histéricos e
os automatistas, que se achavam sob os seus cuidados médicos, apresentavam sintomas
de desequilíbrio nervoso semelhantes aos que se contavam dos médiuns, é porque a
semelhança não era real — o que devia existir era uma identidade de causa, perfeita e
acabada.

193
Digamos a tempo que, atualmente, depois que todo o equívoco se desfez, graças aos
contraditares de Janet, estudiosos dos fenômenos paranormais, mas não espíritas, como
J. Maxwell, médico e jurista de grande nomeada, autor de “Les Phénoménes
Psychiques”, a preocupação dos metapsiquistas bem intencionados é afastar da sua
experimentação a presença de instrumentos ou de médiuns, nos quais suspeitem a
neuropatia ou o histerismo. Porque estas duas enfermidades, das quais o médium, como
qualquer outra pessoa, pode padecer, prejudicam e inutilizam as experiências, falseiam
os seus resultados e agravam a enfermidade em seus portadores. A histeria, como a
sífilis, é a grande simuladora.

“O histérico, diz Maxwell, que simular automaticamente um ébrio, um general, uma criança, dá-nos
um espetáculo muito diferente do oferecido por um médium que, pela sua clarividência observar,
telepaticamente, um acontecimento longínquo, ou tiver a premonição dum acontecimento futuro, ou
revelar fatos desconhecidos dele, médium, e dos assistentes.”

E exemplifica:

“O médium por mim observado, que vê num espelho, com antecipação de 24 horas, fatos que se
realizaram completamente, no dia seguinte, tem uma importância considerável, indicando que o tempo e o
espaço sendo função da consciência normal, não tem a mínima significação para a consciência
supranormal.”

Os fenômenos vulgares do sonambulismo e da histeria, conquanto semelhantes aos


de clarividência, quanto ao mecanismo psicológico, diversificam na causa motora ou
sensorial. Entre o sono fisiológico, o sono hipnótico, o sono provocado pelos
anestésicos gerais, o estado de coma, há muita semelhança nas aparências, mas os
fatores, as causas são de natureza completamente diferente. Quem desconhecer a causa
de cada um deles, em observação superficial e ligeira, há de cometer o erro fatal de ligá-
los pelo mesmo fio.
Janet e seus partidários, da psicopatologia de neuropatas e de histéricos, partiram
para uma generalização audaciosa, com o auxílio da qual pretenderam esclarecer os
fenômenos metapsíquicos (anímicos e espíritas) misturando tudo com o biomagnetismo,
com o hipnotismo e a sugestão, estradando as dificuldades prováveis da sua teoria com
a admissão da fraude e da alucinação patológica, para remover os

194
obstáculos das ectoplasmias, das bilocações, da telequinesia, em suma, da variedade
estonteante de fenômenos espíritas que desconhecia, e que se obstinavam em
permanecer fora das asas protetoras do seu materialismo.
Ninguém melhor do que os estudiosos dos fenômenos espíritas se acha na
predisposição natural para aceitar a dissociação da personalidade, o automatismo
psicológico e o subconsciente. A este respeito, possuímos noções, teorias, hipóteses que,
não somente confirmam as descobertas da ciência materialista, senão, pelo hábito da
experiência e do estudo do psiquismo humano, vão muito além do que se admite neste
terreno, limítrofe com o metapsiquismo, a psicologia normal e patológica e a psiquiatria
propriamente dita.

Retratações de Janet.

Façamos, antes, uma retificação necessária, a pedido do Prof. Janet. Estudando


melhor o assunto e tomando em respeito as considerações dos seus contraditores, o
autor de “L’Autormtisme Psychologique”, o introdutor do subconsciente na
fisiopsicologia, moderou o entusiasmo da mocidade, expressando-se do seguinte modo:

“Depois da época em que eu empregava o termo de subconsciente num sentido clínico, e um pouco
terra-a-terra, reconheço que outros autores têm empregado o mesmo termo num sentido infinitamente
mais elevado. Tem-se designado por subconsciente atividades maravilhosas que parecem existir dentro de
nós, sem que suspeitássemos de sua existência. Esse termo tem servido para explicar entusiasmos súbitos
e predições de gênio. Abstenho-me de discutir teorias tão consoladoras e que são, talvez, verdadeiras.”

Janet, como Freud, quando abriu um pequeno crédito ao “intelecto” futuro,


contrariando a ortodoxia de Silva Mello, vai incorrer, certamente, no desagrado do
metapsiquista nacional, que diagnosticará uma senectude ou uma caduquice para
explicar o deslize.

O perispírito, modelo imperecível.

Toda a fenomenologia espírita, desde a mais simples até a mais complexa, assenta na
existência do corpo astral ou etéreo, intermediário entre o espírito e o corpo físico, ao
qual não está preso mas do qual irradia, na aura. Este

195
corpo astral é o perispírito. É o modelo imperecível do ser, é a súmula das experiências
passadas, é o arcabouço que orienta a formação das células e dos órgãos, é a
quintessência individual alcançada pelo trabalho da evolução. Resume o passado, fixa o
presente e possibilita o futuro, assegurando a imortalidade, desde a monera até o
homem.
Entre o espírito e o corpo, que se constituiu dos elementos existentes no planeta e se
adaptou às suas condições, medeia o perispírito, traço de união que torna possíveis as
relações de uma centelha divina com as substâncias próprias dos ambientes planetários.
Gravadas nele estão todas as experiências do ser. Sem ele, os embriões resultantes das
fecundações não se organizariam, nem se orientariam dentro de um determinismo
inteligente e sábio, mas degenerariam em tumores informes ou em monstros disformes.
O perispírito modela, mantém e defende o ser físico, conserva-lhe a unidade e a
individualidade no meio de intensas mutações orgânicas, guarda-lhe a memória, sendo,
sob o ponto de vista funcional, qual seiva ou corrente nervosa em duplo sentido,
ascendente e descendente, atuando através do sistema nervoso.
Em sua essência, o perispírito seria a “idéia diretriz”, o “desenho vital”, a “condição
invisível” de Claude Bernard, «o mediador plástico” de Cudworth, tão necessário para
explicar o mistério da célula viva, como para derramar luzes sobre o psiquismo dos
animais e do homem.

“O que caracteriza a máquina viva, diz ele, não é a natureza de suas propriedades físico-químicas, é a
criação dessa máquina junto a uma idéia definida... Esse agrupamento se faz em virtude de leis que regem
as propriedades físico-químicas da matéria; mas o que é essencialmente do domínio da vida, o que não
pertence nem à física, nem à química é a idéia diretriz dessa evolução vital. Há um desenho vital que
traça o plano de cada ser, de cada órgão, de sorte que, considerado isoladamente, cada fenômeno do
organismo é tributário das forças gerais da natureza; tomados em sua sucessão e em seu conjunto,
parecem revelar um liame especial; dir-se-iam dirigidos por alguma condição invisível, na rota que
seguem, na ordem que os encadeia.”

Ao se referir, em A GRANDE SÍNTESE, às bases psíquicas do fenômeno biológico,


o Professor Pietro Ubaldi deste modo se expressa:

“Há em toda forma um quid psíquico, um motor: é a substância da vida; é a vontade de viver que a
mantém, uma tensão que

196
plasma e guia, um poder que governa e arrasta a vida. Suprimi aquele princípio e esta imediatamente
cairá. Aponto-vos, além da aparência da forma, aquela substância que lhe é causa; desloco e aprofundo o
conceito da evolução darwiniana. Com esta, vós firmais na realidade exterior, na evolução das formas, no
último efeito estampado na materia. Eu penetro na realidade, indo da conca-tenação evolutiva dos efeitos
à concatenação evolutiva das causas. Para mim, não é substancial observar as formas que evolvem, senão
para acompanhar as causas que evolvem. Passo do conceito de evolução das formas biológicas ao de
evolução das forças que a determinam. Passo do estudo da evolução dos tipos orgânicos mortos ao da
evolução dos tipos psíquicos, vivos e em ação. O conceito darwiniano se completa assim pela “série de
organismos”, em sucessão lógica de unidades dinâmicas.”

É natural que diante dessa linguagem nova, a ciência materialista, cuja fé e cuja
credulídade somente têm em respeito o que lhes penetra pela porta dos sentidos físicos,
sorria com superioridade, resignando voluntariamente quaisquer experiências que se
orientem pelo “método de intuição.”
Deixemos que Pietro Ubaldi a fecunde com os seus conceitos de “olímpica
sabedoria”, conforme os qualificou, maravilhado, o grande Ernesto Bozzano:

“Como haveis podido crer que um organismo perfeito e complexo, qual o corpo humano, possa reger-
se e funcionar sem um psiquismo central regulador? Não basta dizer qual a química da respiração, da
assimilação e da circulação; não basta comprovar a perfeita conjugação de todas as engrenagens que
presidem a essas três funções fundamentais. Nas profundezas do metabolismo celular, há a presciência do
instinto, que age por si, sem a intervenção da ciência, coisa que esta, algumas vezes, custa, até, a
perceber. Há não só um maravilhoso ritmo de equilíbrios, como também uma resistência destes a
qualquer desvio; há uma auto-defesa orgânica, feita de sapiência imersa nas profundezas dos
subconsciente; há uma medicina mais profunda do que a humana, porque sabe vencer, sem embargo,
freqüentemente, os assaltos desta última. A elevação térmica do processo febril, a fagocitose, o equilíbrio
bacteriológico mantido entre amigos e inimigos, num ambiente saturado de micróbios patogênicos, a
contínua reconstrução química dos tecidos e mil outros fenômenos fazem pensar numa vontade sábia, que
ordena, conhece e quer tudo isso.”

A tudo isso acresce o paradoxo supremo — uma inteligência que conclui contra si
própria, uma consciência que abdica a favor das células cerebrais, uma razão livre que
se escraviza ao determinismo das equações orgânicas.

197
Sem o auxílio da intuição, a ciência humana é uma toupeira. Não tendo alcançado a
causa mais próxima de si mesma, ignora a origem ou a lei fundamental de todos os
fenômenos que a rodeiam.
Claude Bernard (e era um Claude Bernard), ao falar sobre a síntese da matéria
orgânica, deu como assentada a base definitiva da química nos corpos simples, de
acordo com Lavoisier: “Desde que Lavoisier fundou a química sobre a lose definitiva
dos corpos simples.
A ciência materialista imita, hoje, a atitude humilde de uma bola de ar na qual se
fizesse pequenino furo com a ponta de um alfinete: esvaziou-se de seu conteúdo.

198
CAPÍTULO SEXTO

SUMÁRIO

A vida nos organismos elementares. Para a


compreensão do mistério da vida. A matéria
espiritualizou-se. As ginásticas do
misoneísmo. Crookes chegou ao limiar da
espiritualidade. A explicação espiritualista
dos casos estranhos de Crookes e de Richet.
Silva Mello interpreta a negação diante do
“excesso de provas”. Hipóteses tão
burlescas, quanto eruditas. Idéias,
perispíritos, pianistas. A sabedoria dos
desencarnados. A existência do
subconsciente nos foi revelada pelos
espíritos. As experiências telepáticas.
Diferenças entre descobertas científicas e
fatos espíritas.

“Confessemos que, em regra geral, os homens são incapazes de atenção muito demorada e que, no
conjunto da espécie terrícola, a indiferença pelo conhecimento da verdade é mais ou menos universal.
Essa indiferença perpetua a pasmosa ignorância, que qualquer observador advertido pode apreender em
todos os domínios históricos e científicos. Depois de tantos séculos de progresso, de tantas descobertas,
essa ignorância universal é verdadeiramente fantástica! Não Se ama a instrução. Os habitantes do mundo
vivem sem saber onde estão e mesmo sem a curiosidade de o saberem.
As colunas dos jornais andam abarrotadas de atividades esportivas de todo o gênero: campeonatos e
disputas de velocidade, de musculatura, de natação. Jogos, diversões, jantares, cinemas, paradas, crimes
estúpidos, tragédias passionais, anúncios de drogas, inócuas e venenosas, dissertações políticas, etc.
Quanto a progressos científicos e a educação geral do povo, o absenteísmo é completo.”

FLAMMARION.

“Dê suas lições sensatamente, na escola da vida, enquanto o livro das provas repousa em suas mãos.
Aprender é uma bênção e há milhares de irmãos, não longe de você, aguardando uma bolsa de estudos da
reencarnação.”
ANDRÉ LUÍS.

199
CAPÍTULO VI

A vida nos organismos elementares.

Os seus segredos a célula — organismo elementar de Brücke — existente no corpo


humano na quantidade de 100.000.000.000.000.000 (1017) os guarda e os defende contra
a curiosidade dos investigadores. Os fisiologistas nada sabem da essência da vida ou da
natureza de sua organização. Os mais prudentes são simplesmente organistas, abstendo-
se de opinar entre o vitalismo e o mecanismo. Dos vírus conhecem apenas as
propriedades biológicas e as doenças que produzem. Qualquer que seja a teoria que
tente fixar a estrutura do citoplasma por meio de agentes da técnica histo-lógica (ácidos
fortes ou fracos, sais de mercúrio, álcool), para evidenciar o seu aspecto reticular
(Carnoy), alveolar (Bütschli), ganular (Altmann), não o consegue. E somente o
protoplasma morto e alterado é colorido pelos materiais próprios, os corantes chamados
vitais. Estes não se fixam no citoplasma vivo: atravessam-no e acumulam-se nos
vacúolos ou tingem as formações mortas dos plastídeos.
A natureza do citoplasma, a sua constituição físico-química foi estabelecida por
Dujardin, em 1935, ao fazer a descrição do sarcódio: caracteriza-se pela
homogeneidade, a elasticidade, a contractibilidade, a diafaneidade! refratando a luz
menos do que o óleo e mais do que a água.
Nele não se divisam traços de organização, nem fibras, nem membranas. Examinado
ao ultra microscópio (Becquerel, Mayer, Lapieque, Bottazzi) revelou-se òpticamente
vazio. Viram-se algumas granulações dotadas de movimentos brownianos, mas não se
conseguiu saber se pertencem ao citoplasma, ou se são apenas inclusões.
É uma substância em estado coloidal, com um sistema físico-químico complexo,
heterogêneo, em atitude de equilíbrio instável, que se mantém pela uniformidade das
condições exteriores e pela regularidade das ações internas.
Ignoram-se as causas dos movimentos protoplasmáticos, das agitações dos cílios dos
flagelados, as funções dos vacúolos

200
e dos condriomas, que somente se deixam tingir pelos corantes vitais, no estado
denominado subletal.
Do paramécio se sabe um pouco mais: que não cai em senescência e que parece
imortal, desde que se lhe renove o líquido alimentar e se lhe modifique a temperatura
ambiente, evitando-se-lhe a degeneração pela conjugação ou união de dois indivíduos.
Também se sabe um pouco mais com relação aos fragmentos de coração de embrião de
galinha, que foram cultivados em série permanente por Carrel, mergulhados no plasma
sangüíneo coagulado.
A primeira manifestação de vitalidade, que se observou no primeiro conglomerado
de elementos da primeira célula — a irritabilidade — não poderia ser jamais um efeito,
senão uma causa. O nosso instrumento de percepção, o nosso cérebro, deve o raciocínio
lógico com que, tal um espelho consciente de si, reflete e analisa o mundo físico e
espiritual à lei absoluta — todo efeito pressupõe a existência de uma causa, variando na
razão direta da essência e da intensidade dela.
Se nos figurarmos na presença do momento inicial da Criação, excluídas as hipóteses
bíblicas de Adão e Eva, mas aceito o simbolismo inteligente imanente nelas, mais fácil
nos seria admitir (já que deveríamos opinar por uma versão), que a causa do
aparecimento da irritabilidade devia ser da sua mesma essência e natureza, isto é,
imaterial.
Assim como é mais racional a admissão de que Eva teria sido tirada de uma costela
de Adão, do que a hipótese precária — foi de uma costela qualquer que Deus fabricou o
primeiro homem, assim o círculo menor do substrato material deve, necessariamente,
estar contido no círculo maior da Força que o pôs em movimento. Em primeiro lugar a
idéia, depois a sua concretização. Primeiro o esboço ou a planta, depois a construção. A
idéia diretriz preexistiu e preexistirá sempre dentro do racionalismo lógico; desde que
encarnou no ser1 elementar ou celular, iniciou-se a evolução de uma partícula
infinitesimal de vida, que somente poderia provir da Vida infinita e eterna.
Ainda que o primeiro protoplasma que surgiu em nosso planeta recém-nascido nos
tivesse alcançado com a emigração de poeiras cósmicas, a idéia diretriz dele, o seu
desenho ideal implicaria na existência de um Ideador qualquer.
Depois de exercitar convenientemente a irritabilidade, o mediador plástico somou
experiências para subir à sensação promíscua dos celenterados, nos quais as células que
se

201
especializaram na percepção eram, ao mesmo tempo, sensitivas e motoras.
Nos pólipos, a célula que se adestrou na captação do estímulo exterior, já emitiu um
prolongamento que vai excitar ao longe a célula motora.
O trabalho foi-se complicando. A mesma idéia diretriz esboça um órgão
intermediário — células nervosas de associação ou de conexão, intercaladas entre a
célula sensitiva e a célula motora.
Depois, os gânglios nervosos, o anel nervoso da Hidromedusa; em seguida, nos
Vermes, a disposição desses mesmos gânglios em fileiras paralelas, ao longo de seus
corpos, religados entre si por feixes e fibras, aparecendo o gânglio cerebróide.
Na Sarcophaga Carnaria, os gânglios já se fundiram em massas nervosas. Daí por
diante, o processo se acelera, se complica, se apura, se estende, mantendo sempre a
unidade do ser dentro da maior complexidade, a ordem dentro da mais prodigiosa
atividade, a identidade dentro da sucessão ininterrupta das células, dir-se-ia que
consciente da sua finalidade - a evolução.
Correm parelhas as experiências das quais saem perfeitamente autenticados os fatos
espíritas, graças a sábios incrédulos, com as pesquisas modernas realizadas em meios
universitários, em que as manifestações anímicas da parapsicologia testificam a
percepção extrasensorial ou a existência do extrafísico na personalidade humana.
J. B. van Helmont, em 1621, já nos falava de faculdades supranormais, de virtudes
que podem ser estimuladas e desenvolvidas pela prece, imanentes na alma humana, e
não privativas do demônio.
Médicos e físicos (Heymans, Brugmans, Mc Dougall, Estabrooks), nas universidades
de Gromingen (Holanda} é de Harvard (Estados Unidos), excluídas todas as
possibilidades de fraudes e todas as coincidências, segundo os cálculos de
probabilidades, sem que se utilizassem de médiuns ou sensitivos propriamente ditos,
tornaram indiscutível a presença na alma dos vivos de uma percepção extrassensorial.
Na “American Society of Research”, de Nova Iorque, o Dr. G. H. Hyslop, em
colaboração com psicólogos, cientistas e médicos, dá-se ao estudo de problemas
metafísicos e metapsíquicos. Suas conclusões são favoráveis ao supranormal ou
parapsicológico, equivalente, para nós, ao animismo.

202
Na “Duke University”, de Durham, Carolina do Norte, há cerca de 20 anos, J. B.
Rhine acumulou e selecionou dados sobre os quais assenta os seguintes postulados: a
possibilidade da telepatia ou ação mento-mental, inter vivos; a clarividência ou
conhecimento extrasensorial; a interferência da psique humana sobre as leis físicas.
Que a ciência oficial ou acadêmica desconheça ou negue tais conquistas, pouco
importa: sua função clássica é justamente a de colaborar com o misoneísmo. Investe-se,
na sua senectude mental, da senhoria do mundo fenomênico, anquilosada na
unilateralidade de suas concepções.
Ignora que o universo é infinito e que a sua razão “não é a medida das coisas.”

“Os grandes saltos para a frente nunca os deu o homem experimentalmente, nem racionalmente; fê-lo
por intuição, o verdadeiro, o grande sistema de pesquisa do porvir.”

São palavras que nos vem de outros planos mais altos, através do espírito missionário
que ditou A GRANDE SÍNTESE.
Eis mais um exemplo com que ilustra a nossa “inconsciência”, a limitação natural de
nossas percepções, sobre as quais juramos e erigimos castelos na areia:

“Não percebeis, nem concebeis a essência, mas, apenas, as mutações das coisas, tomando por base o
contraste, condição indispensável. Assim é que não percebeis de estardes correndo, com tudo o que vos
circunda na superfície da terra, a uma velocidade de quase meio quilômetro por segundo, o que equivale a
cerca de 1.800 quilômetros por hora. Duas forças constantemente equilibradas sobre a mesma massa vos
são como se não existissem. A parada, o equilíbrio nenhuma percepção vos facultam, só a mutação vos é
perceptível.”

Para a compreensão do mistério da vida.

A célula viva, desde o zoófito, é constituída pelo entrosamente de três unidades: a


unidade física do protoplasma (estrutura e composição química), a unidade vital, (os
atributos iniciais da sensibilidade, da capacidade para a assimilação e da reprodução) e a
unidade intermediária, participante da natureza das duas primeiras, a “idéia diretriz” ou
o “desenho ideal”, que Claude Bernard houve por necessário para que se tornasse
compreensível o mistério da “vida”.

203
Pela multiplicação e pela evolução, a unidade física se amplia no soma, a unidade
vital, nas complexas manifestações dos diversos órgãos, entre os quais o trabalho
soberano do cérebro; o desenho ideal, avultando em escalas mais vastas, adquire as
propriedades totais do perispírito. Este, com a maior propriedade de linguagem, pode
ser comparado à planta que possibilita as construções, em qualquer época.
A hipótese do perispírito, o qual se intromete entre o órgão e a sua função, é
riquíssima de conseqüências, é uma equivalência, na série animal e, sobretudo, no
homem da “idéia diretriz” de Claude Bernard, na vida celular. E como idéia há de ser
essencialmente espiritual e imortal, ao contrário do corpo físico, que é perecível e
mudável, como tudo que se constrói do material planetário. Através dele, incorporada
nele, a alma vagueia no espaço sob a forma de espírito, como um engenheiro que
possuísse sempre consigo os seus desenhos orientadores de novas construções, se novas
oportunidades o exigissem.
É evidente que o apelo a tais analogias, muito grosseiras para expressarem com
fidelidade as operações mentais, servem para fixar o pensamento investigador nas
dificuldades metafísicas do assunto.
Outra comparação clássica é a que distribui ao piano ou ao harmônio o papel
anatômico dos centros cerebrais e ao pinaista a missão inteligente do espírito encarnado.
Eis como Léon Denis apresenta e desenvolve a analogia:

“O cérebro é um simples instrumento que serve ao Espírito para registrar as suas sensações. É
comparável a um harmônio, em que cada tecla representasse um’ gênero especial de sensações. Quando o
instrumento está perfeitamente afinado, as teclas dão, sob a ação da vontade, o som peculiar a cada uma
delas e reina a harmonia nas nossas idéias e nos nossos atos; se as teclas estiverem estragadas, ou
desfalcadas, o som que se produzir não será o que deve ser, a harmonia será incompleta. Resultará daí
uma desafinação, por mais esforços que faça a inteligência do artista, ao qual será impossível tirar do
instrumento defeituoso uma combinação de manifestações regulares. Assim se explicam as doenças
mentais, as neuroses, a idiotia, a perua temporária da palavra ou da memória, a loucura, etc, sem que, por
isso, a existência da alma fique comprometida. Em todos os casos, o Espírito subsiste, mas as suas
manifestações são contrariadas e, às vezes, até aniquilidas por falta de correlação com o seu organismo.”

Piano e pianista pressupõem-se mutuamente. Mas o pianista aqui é imortal. Em cada


encarnação, enquanto necessárias, apura a virtuosidade. Quando alcança o zênite

204
da perfeição, dispensa o velho instrumento para sempre ou modela outro, de acordo com
as suas crescentes necessidades de expressão, num planeta que lhe forneça matéria-
prima de melhor quilate e sutileza maior’.
Quanto mais atentarmos nessa analogia, riquíssima de corolários, mais nos
capacitamos de sua função esclarecedora.
Anatomicamente, todos os cérebros, como todos os pianos, são, mais ou menos,
semelhantes. Nas peças essenciais, todos se igualam.
Assim como a harmonia psíquica depende, não somente da alma do habitante, como
da perfeição do cérebro, a melodia musical depende da virtuosidade do pianista e da
integridade do piano. Assim como não há pianista capaz de tirar sons perfeitos de um
piano desafinado, deteriorável e precário, carunchado, de cordas enferrujadas e martelos
gastos, teclado sem dentes de marfim, não há alma capaz de se revelar integralmente,
quando lhe coube um cérebro meioprágico. A recíproca também é verdadeira. O
pianista suburbano continua a sê-lo, mesmo quando martela um piano de cauda do
melhor fabricante.
Se penetrarmos nos domínios da psiquiatria, da psicocirurgia, da eletroencefalografia
e da cibernética, ao invés da analogia se desvanescer, acentua-se com maior evidência.
Quando o Professor Wiener, de Boston, com a sua cibernética, “timonea” o motor
cerebral, em caso de esgotamento nervoso, por meio de luzes faiscantes ou sons
irritantes, age tal qual o mecânico diante da pane de qualquer mecanismo: regula as
válvulas, desentope o carburador, lubrifica e engraxa as superfícies atritantes, na
expectativa de que a máquina recupere por si mesma a sua atividade.
A eletroencefalografia de Hans Berger mede as ondas Alfa, curtas e rítmicas, da
freqüência de 10 por segundo, as ondas Delta, longas, das crianças e dos adultos
inconscientes por traumatismo ou doenças (epilepsia), e as ondas Theta de Grey Walter,
em pessoas coléricas. Imita o diapasão associado à acuidade auditiva do afinador, que
registra a intensidade e a tonalidade do som de cada corda, antes de tocar nas suas
cravelhas. E assim como o afinador desmonta o piano, quando necessário, para afastar
as causas que lhe estão perturbando a sonoridade, o psicocirurgião, com as suas
leucotomias nos lobos frontais, remove muitos sintomas de desarmonias mentais.

205
As complicações intra-cranianas, como as complicações intra-orgânicas do piano,
uma vez sanadas, permitem, correspondentemente, à alma e ao pianista, que retirem de
seus instrumentos os melhores efeitos de que sejam capazes.
Se tal analogia prima nas coincidências, excele, outrossim, nos contrastes. O piano
remanesce, quando o pianista morre; o cérebro entra em decomposição, quando a alma
se desprende. Quando o pianista se ausenta, o piano emudece; quando a alma
desencarna, o cérebro se torna inútil. Não se concebe a utilidade do piano sem a
virtuosidade do pianista; não se concebe a existência do cérebro, sem a atividade da
alma.
Na legitima obsessão espiritóide, sem lesões orgânicas, no chamado delírio espírita
episódico, há dois pianistas que disputam o mesmo piano e por isso suas mãos se
alternam no mesmo teclado, até que o dono ou o intruso senhoreie, com exclusividade,
o terreno, cobrando consciência de si mesmo.
Onde quer que adquira um piano ou o peça por empréstimo, o pianista demonstra
sempre o seu valor pessoal. Pianos tê-los-á quantos lhe sejam necessários. Com a alma
acontece a mesma coisa.
Para o neo-espiritualismo, a evolução sempre se fez e sempre se fará nos dois
sentidos — o morfológico e o espiritual. Através do perispírito, mutuam-se estímulos e
transcorre a corrente ascendente e a descendente, das sensações e das ordens. “No
vértice da evolução, a alma é um princípio consciente e livre.” (Geley).
Os materialistas perderam o contato com a realidade, pois a matéria evaporou-se,
espiritualizou-se. Hoje, tudo se reduz a movimentos redemoinhosos do éter. Para G. Le
Bon, a lei da conservação da matéria de Lavoisier e a lei da conservação da energia de
Meyer tiveram as suas disposições revogadas pela doutrina eletrônica.
Para Haeckel, nenhuma dúvida existe de que as células cerebrais são os órgãos
únicos e verdadeiros da alma e que da integridade das primeiras depende a integridade
da última: “o germe material contém o ser complexo, físico e mental.”
Mas os espiritualistas replicam que a função é que cria o órgão; que há uma
correlação de qualidade entre os dois; que a matéria não pode gerar dons que não
possui; que uma função que tem consciência de si própria não pode depender de um
ajuntamento casual de células; que da matéria não pode provir a razão, o gênio, o
heroísmo e a bondade. Uma simples célula inerte, o conglomerado casual de alguns ele-

206
mentos químicos, que extraísse de si mesmo a vida, seria proeza tão absurda, como a do
Barão de Munchausen, que se salvou de submersão, num pântano, com a sua montaria,
puxando-se energicamente pelos cabelos.

A matéria espiritualizou-se.

Os átomos de Haeckel, de Büchner e de Huxley, partículas indivisíveis, eternas, em


constante e perpétuo movimento, teriam sido eles que inventaram as leis que os regem e
formaram o mundo, desde que se permitiram uma fixação mútua pelos seus ângulos; os
mais grosseiros criariam as massas, os mais sutis, a alma humana, segundo Epícuro.
Mas o atomismo desapareceu diante da teoria eletrônica. Admite-se, hoje, que os corpos
brutos e pesados sejam dotados de uma energia descomunal.

“A matéria e a força, que pareciam, tempos atrás, constituir dois mundos separados, aparecem hoje
como formas diferentes duma mesma coisa. A matéria que era considerada como um elemento inerte,
imagem do repouso, só subsiste devido à imensa rapidez do movimento em turbilhão dos átomos que a
compõem. A matéria é velocidade, e não repouso. Sob a sua aparente imobilidade, a matéria mais estável,
um bloco de mármore, por exemplo, possui vida intensa e impressionabilidade extrema, facilmente
reveladas por certos instrumentos, tais como o balômetro”. (Pietro Ubaldi).

Se um minúsculo fragmento de metal contém quantidade imensa de energia atômica,


esta força nunca se manifestou dotada de inteligência. A “idéia diretriz” da célula
caminhou até a consciência humana, a força quintessenciada, que possui a inteligência
inaudita de se conhecer a si mesma.
Quando se alega a noção do Bem, que orienta o homem no mundo e denuncia a sua
origem divina; quando se lembra que o intelecto é o instrumento com o qual o próprio
mundo adquire realidade; quando se afirma que, jamais, as letras do alfabeto, atiradas a
esmo, compuseram uma simples frase e muito menos obras-primas como a Divina
Comédia, o D. Quixote ou os Lusíadas, a ciência, a superciliosa ciência, retrocede de
atavismo em atavismo, de herança em herança, através dos seres vivos, dos seus órgãos
e das suas células, para nos apontar na pequena e limitada massa de protoplasma,
emergente do fundo do mar, a origem donde ela mesmo promanou.

207
As ginásticas do misoneísmo.

É simplesmente tragicômica a ginástica mental em que se descomedem os partidistas


das explicações assentes no naturalismo, quando se extenuam na luta inglória e vã de
afastar a “idéia diretriz”, o perispírito, a espiritualidade e até o próprio Deus dos
problemas biológicos, filosóficos, morais e metapsíquicos, que os atormentam. Surgem
e ressurgem, então, para substituir as hipóteses mais simples e mais racionais, que
abraçam todos os fenômenos, algumas já comprovadas por fatos inumeráveis, graças à
experimentação positiva de sábios descrentes, como a existência do perispírito —
revelação direta dos Espíritos, espontânea, impessoal, ecumênica — as extravagâncias
maiores, os malabarismos mai incríveis em que se perde o raciocínio humano.
A gênese dos fenômenos, dada a teimosia do misoneísmo em que se emperram,
excetuados um Myers, um Kussel, um William James, um Lodge, um Hans Driesch, um
Delanne, um Gelev, um Flammarion/etc, para citarmos somente alguns representantes
da ciência experimental, ora peca por excesso de imaginação, ora por absurdidade, ora
por visão lacunosa.
Com muita razão nos esclarece Ernesto Bozzano, firmado em boa experiência, a
melhor de todas, a experiência própria:

“Reconheço que os processos da análise comparada aplicados às convicções humanas ensinam que o
meio em que vive o homem e os conhecimentos que assimilou em longos anos de estudos dominam tal
ponto a orientação do pensamento, que os fatos mais evidentes não bastam para converter aquele que
esteja em erro. Que é, então, que se faz preciso para debelar o misoneísmo humano? Isto: pelo que
concerne às manifestações assombrosas, direi que uma coisa é ler-lhes as descrições, outra coisa observá-
las. Se aquele que lê tem uma mentalidade obscurecida por preconceitos de escola sentir-se-á em dúvida
por um instante, para depois tudo esquecer prontamente e tornar-se mais negador do que atites... Se,
porém o mesmo indivíduo assistisse a uma manifestação de tal natureza, já não mais duvidaria, porquanto
uma experiência dessa ordem põe por terra qualquer preconceito de escola.”

E deste modo termina a lição, que endereçamos a quem precisar:

“Entendamo-nos: reconheço que se pode adquirir uma convicção científica da sobrevivência, fundada
exclusiva e sòlidamente nas experiências de outrem, o que se consegue colecionando e classificando bom
número de manifestações supranormais de toda a espécie, para em seguida lhes aplicar os métodos de
pesquisas científicas, os da análise comparada e da convergência das provas, tra-

208
balho que já então eu realizara, donde o já possuir uma convicção racional e científica, no sentido
indicado. Muitíssimo diversa, porém, ela se me revelou, em confronto com uma fria aquisição do
intelecto, que ainda não penetrara os recessos da personalidade integral subconsciente, onde amadurecem
as convicções e se tornam inderrocáveis., por efeito do elemento emocional que as vitaliza.”

É por isso que nós outros, pobres mortais e pobres em ciência, que dispomos apenas
da inteligência mínima da espécie, más que mantemos viva a receptividade, podemos
realizar o conselho de Steckel, isto é, entregarmo-nos a um “anarquismo psicológico”
completo, rejeitando todos os tabus, todas as autoridades e todos os fanatismos, tanto
religiosos, como científicos, fazendo passar pelo crivo do nosso raciocínio, numa
revisão total, todas as teorias e todos os postulados.
A hipótese das vibrações do éter cósmico (Crookes e Richet) explica demais as
materializações, porque o éter é o fundamento fluídico e material de todo o Universo,
apresentando-se, ora como massa sensível, ora como meio vibratório, enchendo ainda a
espaciosidade interplanetária. Se não é o verdadeiro Deus, pelos seus atributos de
imponderabilidade, compressibilidade, transparência, continuidade, onipresença na
força expansiva de cujas ondulações há a velocidade da luz, deve ser, talvez (e aqui vai
mais uma hipótese), o perispírito de Deus, o Akasa do induísmo védico, o fluido vital
ou Jiva-Prana, do qual se embebem todos os seres e todas as coisas, o veículo do
pensamento da Alma Universal para os brâmanes, o Telesma ou força única do
Hermetismo, que criou tudo o que existe, o Prótilo de Bacon, o Arqueu para os
espagiristas, “forma de transição entre matéria e espírito”
Remontar a tais alturas, a tais abismos (Aether, abismo do céu), ao envoltório áurico
do próprio Júpiter, para explicar as corporificações metanóicas, não será arremedar às
demasias de um biólogo que, para interpretar a luz de um piri-lampo, necessitasse de
roubar ao Sol a sua “auréola de nume”?
É que Richet e Crookes, como Laplace, não precisavam da “hipótese de Deus”.
Richet, céptico e incrédulo a princípio, apesar de tudo que lhe foi facultado para chegar
à convicção espiritualista, afirmou que “não sentia a necessidade do Além”. Quem lhe
conhece a vida, quem lhe acompanhou os passos dentro da metapsíquica, quem possui
partícula mínima de espiritualidade não pode deixar de aplaudir aquela crônica
maravilhosa, em que a verdade e a fantasia se misturam

209
em efeito de prodigiosa sugestão mental, devida ao espírito de Humberto de Campos,
através da psicografia de Francisco Cândido Xavier.
As descobertas de Crookes nos domínios das ciências físico-químicas,
principalmente a da matéria radiante, assim como as experiências realizadas com os
médiuns Dunglas Home, Florence Cook e Kate Fox, forneceram aos espiritualistas os
melhores argumentos a favor de sua causa.
Descobriu o electroscópio, o espectroscópio, o fotômetro de polarização, o
radiômetro, o microspectroscópio; solucionou problemas relacionados com o
mecanismo, a natureza e a velocidade da luz; remodelou as ciências físico-químicas;
descobriu os raios catódicos, constituídos por descargas de eletronios, grãos ou
corpúsculos de essência ou natureza elétrica, animados de velocidade de 1/10 a 3/10 da
ordem da luz (300.000 quilômetros por segundo); demonstrou que os eletrônios são
homogêneos e da mesma natureza em todos os elementos químicos, diversificando-se
no seu número, na sua velocidade e na orientação do seu movimento orbitário, em cada
corpo.
As conseqüências de suas descobertas repercutiram, profundamente, na ciência, na
filosofia e no Espiritualismo: os três estados da matéria enriqueceram-se com mais um,
o da matéria radiante. Da homogeneidade dos eletronios deduziu-se a unidade da
matéria e a radiotividade geral, embora variável, alcançando a sua maior força no urânio
e no tório; a descoberta dos raios catódicos possibilitou a dos Raios X, por Roentgen, de
uso corrente na medicina.
A descoberta e a presença dos raios catódicos modificaram o conceito antigo a
respeito da energia e da matéria, desaparecendo a dualidade, considerando-se a última
como condensação etérica e a primeira como eletronios desintegrados. As energias da
eletricidade, da luz, todas as energias, não são mais qualidades ou atributos imateriais,
porém substâncias, que uma técnica aprimorada dos laboratórios físico-químicos pode
medir ou pesar.
Entre os monumentos mais notáveis da literatura espiritualista alteia-se “A
GRANDE SÍNTESE”, obra psicográfica do grande médium Pietro Ubaldi, traduzida
para o vernáculo por Guillon Ribeiro, asseiada e elegantemente. É um desmentido
formal aos caluniadores da inteligência dos desencarnados; é uma resultante magnífica
da ciência aliada à componente espiritualidade, isto é, a sabedoria. O filósofo Ernesto
Bozzano distribuiú-lhe o lugar conveniente, no seguinte parecer:

210
“A onda de inspiração supranormal lhe ditou a mais extraordinária, concreta e grandiosa mensagem
mediúnica, de ordem científica, que se conhece em metapsíquica.”

A vibração turbilhonar de moléculas e de átomos, redemoinhando no éter espacial, é,


nos dias presentes, a última definição da matéria. Vejamos como Pietro captou do Alto a
mensagem científica de linhas adiante:

“A solidez é apenas a soma de movimentos velosíssimos. Nem vos iluda a constância das sensações,
pois que é devida, tão-só, à constância dos íntimos processos fenomênicos, no âmbito da Lei eterna. Aos
vossos sentidos falta a capacidade para perceberem sensações distintas, que se sucedem com extrema
rapidez. A matéria é pura energia. Na sua íntima estrutura atômica, é um edifício de forças. Matéria, no
sentido de corpo sólido, compacto, impenetrável, não existe. Trata-se apenas de resistências, de reações e,
no a que chamais solidez, somente há a sensação que vos dá constantemente aquela força que se opõe ao
impulso e ao tato. É a velocidade que enche as imensas extensões de espaços vazios em que se agitam as
unidades mínimas. É a velocidade que forma a massa, a estabilidade, a coesão da matéria. Observai que
os movimentos rotatórios ultra-rápidos, enquanto duram, conferem ao giroscópio um equilíbrio
autônomo, estável. Velocidade é a força que se opõe a que as partículas da matéria se destaquem e que as
mantêm unidas, enquanto não prepondere uma força contrária. Mesmo quando decompondes a matéria
naquilo que vos parece ser os seus últimos elementos, nunca deparais com uma partícula sólida,
compacta, indivisível. O átomo é um vórtice, como vórtice são o eletrônio e o núcleo; também são
vórtices os centros e satélites contidos no núcleo e, assim, ao infinito. Se imaginardes, animada de
velocidade, uma partícula mínima, não tendes aí um corpo, no sentido comum, qual o figurastes, mas,
como sempre, um vórtice imaterial de velocidade.
E a decomposição dos vórtices, em que giram menores unidades vorticosas, se estende ao infinito. De
sorte que, na substância, não há matéria, no sentido que dais a esse vocábulo; apenas há movimento. E a
diferença entre matéria e energia apenas decorre da diversidade de direção do movimento: rotatório,
fechado em si mesmo, na matéria; ondulatório, em ciclo aberto e lançado no espaço, na energia. No
princípio, havia o movimento e o movimento se concentrou na matéria; da matéria nasceu a energia, da
energia emergirá o espírito.”

Desde a condensação das nebulosas e a formação dos sistemas planetários, entre os


quais o nosso sol e o nosso planeta, até a passagem do inorgânico para o orgânico, o
aparecimento da primeira forma viva, da irritabilidade, da sensação, da percepção, do
automatismo, do instinto da consciência e da intuição, os movimentos espiralóides da

211
evolução se sucedem com rapidez e com intensidade cada vez maiores. Sua última etapa
— a superconsciência recem-nata no mundo em que a energia alcançou o seu zênite e a
matérip envelheceu e começa a desagregar-se.
Para a ciência oficial, a evolução cessou. Para nós, há outras distâncias
incomensuráveis a percorrer, maiores do que as que se interpunham entre o éter e o
cérebro humano. O nosso retorno à Divindade já possui o seu instrumento próprio. Os
movimentos vorticosos continuam o seu trabalho de ascensão, agindo, agora, dentro da
espiritualidade.
Negar a possibilidade da realização desse novo ideal dentro da sucessão dos tempos
eqüivaleria à insanidade de negar que o mundo atual, no seu tríplice aspecto — matéria,
energia e espírito - esgotou todas as suas potencialidades de perfeição, que o estádio em
que nos observamos atualmente, não é, a seu turno, produto de uma evolução
imemorial.
O último turbilhão envolve, agora, o nosso espírito, como envolveu outrora os
núcleos dos quais provieram as formas e a vida, para a “realização biológica do Reino
de Deus.”

Crookes chegou ao limiar da espiritualidade.

Crookes foi, também, o pioneiro da experimentação científica do Espiritismo.


Durante quatro anos, de 1870 a 1874, em colaboração com outros sábios ingleses,
inventando e adaptando vários aparelhos registradores, obteve fenômenos anímicos e
espíritas, que abalaram o mundo.
Como se vê pelo exemplo de Crookes, o caminho da espiritualidade não depende
somente daquela condição apontada por Ernesto Bozzano, quando se refere à
necessidade das experiências próprias. Crookes teve-as em suas próprias mãos, diante
dos seus próprios olhos, registradas em seus aparelhos, ratificadas pelo testemunho dos
seus próprios colegas. Deve haver qualquer coisa imponderável, talvez uma
predestinação do Alto, daquela Força (De quem? De que? pergunta Richet) “que nos
guia e conduz aonde bem lhe pareça, por vias indiretas, tortuosas e muitas vezes
bizarras.”
Não se poderia exceder o capricho com que aquela Força (chamemo-la assim) criou,
alimentou e utilizou um cérebro como o de Crookes. Dir-se-ia que a sua intenção era
fabricar o instrumento através do qual a humanidade A reconhecesse; dir-se-ia que um
sábio com tamanhos dotes intelectuais devia ser uma espécie de médium de Deus. Mas
não

212
foi. Por que? Deixando de lado as observações de Léon Denis com relação ao orgulho, à
afetação e ao pedantismo da ciência humana, principalmente dal obras de psicologia,
obscuras, complexas “eriçadas de expressões barocas, que chegam ao ridículo”, vamos
buscar alhures a significação do fenômeno.
Os sábios materialistas são apenas utensílios de que se utiliza a Força desprezada por
êles para, dentro das regalias de um livre arbítrio condicionado, realizar o seu programa
ou materializar a sua obra, sem se incomodar jamais com as injunções do tempo ou com
o determinismo do espaço. Se a ciência é, tão somente, na opinião de um deles, “uma
série de erros e aproximações” (Richet), se a sua moral visa a seleção dos fortes e o
desaparecimento dos fracos (Darwin), não é de se esperar que o Supremo Bem, que nos
atrai para Si como ímã, através da eternidade dos tempos, prefira, quando pretenda
manifestar-se, a mediunidade contida na sabedoria dos crentes, dos humildes e dos
puros.
Por isso, na opinião de um sábio espiritualista, cujo nome “será inscrito no livro de
ouro dos grandes iniciádores, a par dos de Copémico e de Darwin, para completar a
tríade dos gênios que mais profundamente revolucionaram as noções científicas na
ordem da Cosmologia, da Biologia e da Psicologia”, por isso F. W. Myers, tão fielmente
retratado nas linhas acima pelo Professor Flournov, da Universidade de Genebra, nos
preveniu contra os enganos possíveis de nosso raciocínio, afirmando que o Cristianismo
foi “a primeira mensagem autêntica do Além.”

A explicação espiritualista dos casos estranhos de Crookes e de Richet.

A explicação espiritualista dos casos Crookes e Richet encontramo-la naquela


mensagem psicográfica, obtida por médium inglesa, quando ocorreu a morte trágica de
Geley, “o mais insigne sustentador da sobrevivência”, abatido pelo Destino, em pleno
vigor da varonilidade, ao voltar de avião da Polônia, sobraçando os protocolos de
experiências e de provas inéditas.

“Provavelmente, a atividade do grande sábio espiritualista foi de súbito interrompida pela morte,
porque, em virtude de sua obra, se teria percorrido com demasiada rapidez a senda que conduz à
demonstração científica da sobrevivência, determinando, em conseqüência, gravíssima crise para vigentes
instituições religiosas e uma perturbação geral à coletividade civil, ainda não madura para

213
acolher uma Verdade a que é preciso se chegue gradativamente, por lenta evolução através do século
vinte. Assim sendo, ele terá sido chamado à existência espiritual, o que, do vosso ponto de vista,
circunscrito e errôneo, parecerá um Mal infligido a uma vítima inocente quando, na realidade, é um Bem
e um galardão deferido a quem cumprira todo o seu dever na terra. A existência terrena é um
insignificante parêntese, diante da existência espiritual.”

As obras de Crookes e de Richet, se estes dois vultos se tivessem transformado em


discípulos de Allan Kardec, recenseando-se entre as “tolices espíritas”, não gozariam da
condescendência dos cientistas cujos subconscientes estão inteiramente ocupados pelo
ateísmo absoluto, como o do tipo Silva Mello, nem seriam lidas pelos tíbios, pelos
indiferentes, pelos oportunistas que seguem as filosofias da moda. E quem quer que as
leia,’ com os olhos e com o raciocínio, sentirá repontar dentro de si uma pequena
fagulha de espi ritualidade, que pode ser o começo de grande incêndio.

Silva Mello interpreta a negação diante do “excesso de provas.”

A versão abonada por Silva Mello, que explica a “incongruência, o erro de lógica e
de crença” de Richet, quando defende as materializações vivas de órgãos e pessoas
humanas, negando a possibilidade de sobrevivência do seu espírito”, nós já a
intercalamos nestas páginas, mas merece reproduzida, porque contém muita coisa
aproveitável:

“A vaidade, o amor próprio, o complexo de superioridade, são fatores que podem explicar o fato,
conservando arraiqada qualquer das nossas convicções, mesmo quando a sua irrealidade já foi
demonstrada com um excesso de provas.”

A tais quizílias entre sábios, o nosso papel de espectadores é o de emudecer e


aguaraar os resultados finais, na esperança de que os complexos de superioridade se
mudem para os de inferioridade que, na opinião deles, ainda são piores...
As reações individuais diante do sofrimento e da morte, percalços inerentes à vida
humana, variam ao infinito. As mesmas causas produzem efeitos opostos. Uma
enfermidade grave, um perigo de vida ultrapassado, é pretexto, para os que não possuem
a visão interior da espiritualidade, de maiores violações das leis morais. S. Francisco de
Assis, acometido, na mocidade, de grave enfermidade que o imobilizou

214
no leito durante muito tempo, enamorou-se do Sol, que o acariciava alegremente através
da janela do seu quarto, para depois se enamorar de Deus e viver os exemplos de Cristo
na terra.
Na presença infalível da morte, o covarde treme, injuria e blasfema. Sócrates filosofa
inteligentemente e, quando a mulher lhe diz que os juizes o haviam condenado à morte,
replica, serenamente, que eles também o tinham sido, pela natureza.
A impressão diária e vulgar do desaparecimento de vidas estranhas aos nossos afetos
deixa-nos naquela atitude, que o homorismo de Xavier de Maistre nos reproduziu, nas
seguintes expressões:

“Pois eu hei de morrer um dia? O que, hei de morrer? eu que falo, eu que me sinto e que me palpo, eu
posso morrer? Custa-me alguma coisa acreditá-lo; porque, enfim, que os outros morram, não há nada
mais natural: é uma coisa que se está vendo todos os dias, a gente os vê passar, habitua-se a isso; mas
morrermos nós também! morrermos em pessoa! é um pouco forte. E vós, meus senhores, que estais
tomando estas reflexões como disparates, ficai sabendo que é êsse o modo de pensar de toda a gente e o
vosso também.”

Já o grande rei Yudisthira comentara que a maior surpresa da nossa vida era a
inconsciência irracional com que presenciamos o desaparecimento dos nossos
semelhantes, julgando-nos imortais.

Hipóteses tão burlescas, quanto eruditas.

Outras teorias, indemonstráveis e ultrametafísicas, apegam-se ao “eterno presente”, à


telepatia onisciente, que capta o passado e o futuro, combinada com a quarta dimensão,
são substituições de dificuldades removíveis por extravagâncias fenomenais. O deus-
subconsciente de Janet e a sua mais notável inspiração, o “polígono cerebral” de
Grasset, fundado nos esquemas cerebrais de Wundt e Charcot, são criações
fantasmáticas de pouca consistência, são palavras, são moedas de novo cunho, mas
clandestinas e falsas. Léon Denis aplicou-lhes as expressões merecidas:

“É divertido apreciar a que esforços de imaginação, a que ginástica intelectual, homens como o Prof.
Flournoy e o Dr. Grasset, se dão para edificar teorias tão burlescas, quanto eruditas.”
“Um médium ledor de pensamentos, diz o mesmo apreciado publicista, inspirando-se, se fosse
possível, nas opiniões dos assistentes, tiraria daí, não noções precisas acerca de um princípio qualquer
filosófico, mas os dados mais confusos e contraditórios.”

215
As hipóteses simplistas de Silva Mello — a da fraude universal e fatal e a outra, a
melhor, a da irremediável imbecilidade humana — podem ser perfilhadas por todo o
mundo, devolvendo-se a metapsíquica para o seu marco inicial ou marco zero. Com
uma condição: é que dentro dessa imbecilidade universal se inscreva também, e em
primeiro lugar, o autor dos MISTÉRIOS.
Em Silva Mello ocorre, a nosso ver, o seguinte paradoxo: um filósofo, não podemos
qualificar como de forrião mental materialista, senão de ,tetamo explosivo, a darmos
crédito à sua palavra, às voltas com as fobias, as visões e as intuições que lhe sobrevêm
através do caminho da mediuni-dade. Falece-lhe a coragem de um Stainton Moses,
pastor protestante, homem de piedade rara e de elevada moralidade, que publicou os
fenômenos passados consigo próprio, não obstante os riscos que corria; não quer imitar
o grande jornalista e grande médium psicógrafo William Stead, cuja atividade
profissional esteve tão ligada aos triunfos de Rui Barbosa em Haia. Procura,
inutilmente, misturar o Espiritismo com os cavalos de Elberfeld, a grafologia, a
astrologia, os horoscópios, os adivinhos, a quiromancia, etc, aquilo que ele chama “a
metapsíquica e os outros ramos de conhecimento a ela atinentes”. Tenta transformar
uma doutrina a que muitos sábios forneceram os dados mais seguros do
experimentalismo científico, as religiões antisras as concordâncias mais eloqüentes da
sobrevivência e da imortalidade, a mensagem do Cristianismo o selo da divindade,
numa sofisticaria, numa fraudacão, numa loucura universal.
Estamos com vontade de lhe aplicar aquelas palavras que endereçou a todos os que
procuramos uma causa digna das maravilhas que acariciam os nossos sentidos físicos,
assim como daquela consciência incorruptível que preside aos nossos atos:

“Não é compreensível e até evidente que o orgulho, a vaidade, o amor próprio, o desejo de ser mais
esperto do que os outros, de se fazer valer, sobressair, representam em toda essa comédia papel de
importância fundamental?”

Diante de uma simples célula viva, ou de uma célula recém-falecida, o biólogo, o


fisiologista, o naturalista, o antro-pologista, o psiquiatra, o psicólogo e o metapsiquista
emnde-íem Como Pasteur, diante da noção do Infinito “il n’y a qu’à se prosterner.”

216
Idéias, perispíritos, pianistas...

Que coisa mais semelhante ao perispírito do que uma idéia?

“A vida é uma idéia, continua Claude Bernard; é a idéia do resultado comum, ae qual estão associados
e disciplinados todos os elementos anatômicos; é a idéia da harmonia que resulta do seu concerto, da
ordem que reina em suas ações.”

Somente emudeceremos, a nosso turno, no dia em que os materialistas elaborarem


uma célula viva, com todos os caracteres da vitalidade — sensibilidade, nutrição,
reprodução...
A unidade geral do ser vivo, a soma das idéias diretrizes de todas as células é
condensada no sistema nervoso, uma espécie de piano que pressupõe a existência
necessária do pianista. A personalidade imutável, a memória ancestral, as tendências
inatas, as vocações irresistíveis, a consciência, enfim, a virtuosidade, tudo é apanágio do
pianista.
Anatomicamente, os cérebros humanos são como os pianos do mesmo fabricante;
mas a cada um deles se acosta um pianista diferente. Dísse-o em outros termos Ernesto
Bozzano:

“A existência de um instrumento que use energia, ao funcionar, não é inconciliável com, a do


trabalhador que o faça funcionar.”

Se “a vida mental ultrapassa a vida cerebral”, segundo Bergson, é porque além da


estrutura e da composição química dos órgãos do pensamento há qualquer coisa
invisível e necessária, como o eletrônio, e cuja existência não se pode negar.
Para Alexis Carrel, “as relações da consciência e das células cerebrais são ainda um
mistério. Ignoramos, mesmo, a fisiologia destas últimas. Dizer que as células cerebrais
são a sede de processos mentais é uma afirmação sem valor, porque não existe meio de
observar a presença de um processo mental no interior das células cerebrais.”
Lembra-nos Andry Bourgeois que Bergson, William James e Geley demonstraram
que o mental não está contido no cerebral; entre êles o paralelismo não é absoluto, nem
permanente; “a sobrevivência da alma não está, portanto, invalidada pela Fisiologia.”

217
Richet nos interpela com a vivacidade e a graça muito gaulesas, das quais reveste a
sua palavra, amenizando todos os assuntos que versa:

“Como as células, saquinhos cheios de substância meio líquida, ávida de oxigênio, podem ser capazes
de pensar, de se moverem fora da esfera material? Como essa minúscula massa pastosa poderá guardar a
“lembrança” de ligeira emoção que a impressionou há trinta anos? A lembrança! Que mundo
incompreensível! Como essa humilde célula pode imaginar construções ousadas, onde o Universo está
representado? Conceber coisas abstratas como a justiça, o espaço, a verdade? Como essa coisa que é
móvel, frágil, instável, pode atingir a idéia do que não é móvel, nem frágil, nem instável? São ainda
coisas que não compreendo.”

Recomendo à exaltação do biopsicologismo do nosso colega Silva Mello, cuja


clarividência não tem par nos domínios da razão e da ciência, o livro “L’Homme
Impuissant” de Richet, o sábio que podia despregar os olhos lúcidos das coisas materiais
da terra, onde deixou um rastro luminoso, para procurar mais Além a explicação dos
mistérios tremendos em que se debatia.
O perispírito é a “sede da memória integral e das faculdades sensorials
supranormais” (Bozzano). Não armazena, tão somente, as impressões aleatórias, que
submergem no subconsciente, nem é simples registro de conhecimentos que afloram a
cada momento em nossa consciência. Guarda segredos imemoriais, que se acumularam
através do tempo, verdadeiro arquivo da alma “que teve o seu nascimento em um meio
espiritual ou meta-etéreo, e que, ainda mesmo encarnada em um corpo, fica em
comunicação com êsse meio e a ele volta depois da morte corporal (F. Myers).
Vimos que a intuição prodigoisa de um fisiologista revolucionário — Claude
Bernard — sugeriu a necessidade de qualquer coisa (idéia diretriz, desenho vital,
condição invisível), que se interpusesse nos fenômenos biológicos, para servir1 de elo
entre a materialidade morfológíca e química da célula e o seu dinamismo ou a sua vida.
O sábio não podia compreender, e o confessou honestamente, como um efeito de
essência invisível, impalpável, mas de realidade evidente, pudesse provir, diretamente,
daquela “minúscula massa pastosa”, “daquele saquinho cheio de substância meio
líquido”, cuja morfologia e cuja composição já se tinham tornado conhecidas.
A nossa hipótese de trabalho — o perispírito, já fora, por conseguinte, pressentida e
entrevista pelo homem que

218
mais se preocupou, dentro da fisiologia, com a Definição da Vida.

A sabedoria dos desencarnados.

Se os mortos, desde que houveram por bem comunicar-se conosco, não nos tivessem
ensinado senão a existência do perispírito, já teriam replicado com vantagem aos que só
lhes vêem nas comunicações “banalidades”, “futilidades”, generalidades, nunca uma
fórmula química, uma equação algébrica, qualquer coisa semelhante à erudição de Silva
Mello, quando discorre ex-catedra sobre a alimentação dos paramécios, o hábito de
comer terra e sua difusão, o emprego das fezes e da urina na alimentação e na medicina,
a pla-centofagia, a inteligência do nosso ventre, as farinhas descorticadas e o açúcar
refinado, etc. etc.

“As informações do outro mundo, diz ele, nunca passam de bagatelas e infantilidades, que qualquer
indivíduo mediano saberia fantasiar. Max Dessoir (!) diz que a impressão que se tem das conversações
mediúnicas é aproximadamente a de se estar ouvindo, num vagão de estrada de ferro, dois parentes
conversando, dos quais fosse um imbecil e o outro quase surdo.”

Mais uma generalização: as comunicações mediúnicas são sempre sem interesse,


semelham-se às conversas entre encarnados. Que haja semelhança é argumento
favorável à existência real delas, pois os espíritos nunca se disseram deuses ou sábios,
nem possuidores dos segredos pelos quais nos consumimos em cogitações e hipóteses:
são eles mesmos que nos previnem contra essas presunções, porque Lá, como Aqui, o
que é usual e mais comum, é a imbecilidade, a imoralidade, a vaidade, o orgulho e até,
pasme o ateu Silva Mello/o ateísmo... Incrível, não!
Assim como na terra são raros os espíritos superiores em sabedoria e moral, do outro
lado, para onde emigram continuamente, o ambiente é mais ou menos o mesmo. Por
isso, entre os dois mundos há uma troca contínua de influências malsãs, para cuja
interrupção vem lutando divinamente a palavra eterna que ressoou no Sermão da
Montanha.
Aceitamos o subconsciente, sub conditione: que não seja transformado num deus que
tudo sabe, tudo explica, tudo vê, tudo prevê, tudo responde... tal como no-lo pintam os
que se supõem o seu inventor. Pondo-se na mão de um indivíduo qualquer, por mais
obtuso que seja, uma hipótese

219
dessa elasticidade, é claro que ele ficará apto para resolver todos os fenômenos
supranormais que se lhe apresentarem. Então, ver-se-á o seguinte: a materializarão de
Katie King, obtida por Crookes: será para Flournoy, uma coisa muito simples — uma
personagem subconsciente da Srta. Cook, um tipo ideal que ela cria e exterioriza,
transfigurando o seu duplo; quando Georges Pelham dá a todos os seus parentes e a
todos os seus amigos as provas mais cabais de sua identidade, comparece o
subconsciente para tornar tudo muito compreensível.
Vejamos a história, resumida por Richet na conferência realizada na Faculdade de
Medicina de Paris, a 24 de Junho de 1925: “Havia morrido um certo Georges Pelham, e
a Sra. Piper, que mal o conhecera, diz, repentinamente, num dos seus transes: — Eu sou
Georges Pelham; tragam meu pai e minha mãe. Depois foi a vez da noiva de Pelham,
depois, a de seus professores, depois a de diversos parentes, depois a de seus camaradas.
Durante seis meses, Georges Pelham, isto é, a Sra. Piper, conversava com todos aqueles
que conheceram Pelham, absolutamente tal como se ela fosse Pelham; repetia as
conversas secretas que tiveram uns e outros com Pelham, ao tempo em que Pelham era
vivo.” Onde se escondia tudo isso? No subconsciente da Sra. Piper...
Um dia o juiz Edmonds, presidente do Senado e membro da Suprema Corte de
Justiça de Nova York, surpreende sua filha, “católica fervorosa, praticante e piedosa”,
que falava exclusivamente o inglês e sabia um pouco do francês, conversando em grego
moderno com o Sr. Evangelides, fazendo-o chorar com a notícia da morte de um filho,
que ocorrera naquele meio tempo na Grécia, incorporando um tal Botzari, irmão do seu
interlocutor. Como haveria de interpretar o fato aquele pobre juiz, acostumado a usar o
raciocínio e a lógica no Senado e no Tribunal? Ouçamo-lo:

“Acresce, diz ele, que tudo se passou na presença de oito ou dez pessoas cultas o inteligentes.
Nenhuma delas vira jamais o Sr. Evangelides, que me fora apresentado por um amigo naquela mesma
noite. Como, pois, há podido Laura participar-lhe a morte do filho? Como se explica que haja falado e
compreendido o grego moderno, língua que nunca ouvira falar?”

Ora, é muito simples, o subconsciente é poliglota e capta tudo com a sua antena... Se
fôssemos enumerar todos os fatos devidamente registrados pelos observadores mais
impar-

220
ciais, alguns revestidos daquela armadura de incredulidade de que se gaba Silva Mello,
acabaríamos escrevendo um volume, diante do qual os MISTÉRIOS ficariam
humilhados da sua estatura.

“A falar verdade, diz Gabriel Delanne, parece que os melhores críticos, ao tratarem das manifestações
espíritas, — (com o devido respeito) — perdem a tramontana.”

Geley, Diretor do Instituto Metapsiquico de Paris, que foi objeto de memorável


vaticínio da sensitiva-clarmdente Madame Pevroutet (a sua morte num desastre de
avião, ao voltar de Varsóvia), “o mais insigne sustentador da sobrevivência,
cientificamente entendida”: como o qualificou Ernesto Bozzano, fez uma pergunta
célebre, que encaminho, por minha vez, ao autor dos MISTÉRIOS:

“O chamado subconsciente se diz a personalidade de um morto. Esta complicação é verdadeiramente


desconcertante e pouco verossímil. Pois que! O subconsciente é capaz das maravilhosas capacidades que
acabamos de expor. Ele pode tudo e sabe tudo. Ma? num ponto ele se engana e nos engana: sobre a sua
verdadeira natureza. POR QUE ESSA MISTIFICAÇÃO GROSSEIRA E CONSTANTE? POR QUE
ESSA MENTIRA INEXPLICÁVEL?”

Dentro dos limites naturais em que o subconsciente pode •agir, como arquivo de
coisas vistas, ouvidas, cheiradas, palpadas, das quais o próprio indivíduo não se
lembrava mais, não constituindo tudo isso senão problemas pertencentes ao estudo do
mecanismo da memória propriamente dita, dentro das suas potencialidades limitadas,
nada há que se lhe opor. Admití-lo, porém, como a desagregação ou separação
permanente duma parte da personalidade, por meio da qual os fenômenos espíritas se
realizariam nas “personalidades segundas”, atribuir-lhe a onisciência e a onipresença,
para torná-lo capaz de tudo, é uma pretensão a que nenhum raciocínio equilibrado pode
aquiescer.

Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu.

A existência do subconsciente nos foi revelada pelos espíritos.

Vamos transcrever a apreciada página de “A Margem do Espiritismo”, livro da lavra


de Antônio Freire, ilustre

221
médico português, autor de vários trabalhos de feição espiritualista:

“Allan Kardec, o venerando patriarca do Espiritismo, na sua obra “O Livro dos Médiuns”, cuja 1ª
edição foi publicada em 1857, expõe as modalidades, mecanismo e causas determinantes da psicologia
automática. Mas, fato muito mais interessante e elucidativo, os próprios espíritos, vindos das regiões
supraterrestres, através das suas comunicações por escrita automática (psicografia) e por incorporação,
também desde o início do Espiritismo (1848) punham de sobreaviso os experimentadores espíritas
relativamente aos diversos mecanismos dessas mensagens mediúnicas. Neste sentido transcrevemos
alguns trechos duma comunicação espírita publicada em La Revue Spirite, de 1865, pág. 154:
“É de absoluta necessidade não atribuir a espíritos elevados essas mensagens mediúnicas, sem fundo
nem forma, reunindo o ridículo à banalidade, vindo assinadas por nomes ilustres de homens falecidos. A
mediunidade verdadeira e digna só se pode exercer em cérebros providos duma instrução suficiente, ou,
pelo menos, de valor moral comprovado. Só os melhores médiuns recebem o aflu-xo espiritual; os outros
recebem simplesmente a impulsão fluídica material que arrasta as suas mãos sem fazer produzir à sua
inteligência outra coisa além do que ela contenha no estado latente.”

Eis a definição do subconsciente (conhecimentos em estado latente) e a diferenciação


entre um fenômeno anímico (impulsão fluídica material) e um fenômeno espírita (os
que recebem o afluxo espiritual).
Continuemos a transcrição da mensagem, citada por Antônio Freire:

“A ciência tem falsos sábios; a mediunidade tem falsos médiuns no ponto de vista espiritual. Ensaio
estabelecer aqui a diferença que existe entre os médiuns inspirados pelos fluidos espirituais e aqueles que
só agem sob a influência fluídica corporal, cuja ressonância física apenas determina a produção confusa e
inconsciente das suas próprias idéias ou idéias vulgares sem alcance.”

Segue-se na mesma Revista o comentário de Allan Kardec:

“Ainda que o estudo desta parte integrante do Espiritismo — a mediunidade — esteja longe de estar
completo, estamos já distantes do tempo em que se acreditava que seria suficiente receber uma impulsão
mecânica para se rotular de médium, julgando-se apto a receber comunicações dos espíritos. O progresso
da ciência espírita, enriquecendo-se dia a dia de novas observações, mostra-nos a quantas causas
diferentes e a influências delicadas, de que se não suspeitava, são submetidas as relações mentais com o
mundo espiritual.”

222
E assim remata o nosso colega português:

“As teorias do Prof. Janet são de 1889; as observações de A. Kardec e dos espíritos desincamados
comunicantes são de 1865, sendo transparente o conceito do automatismo psicológico e do
subconsciente.”

Neste terreno, nada temos que aprender com os sabidos da terra. Ainda são
completamente analfabetos.

As experiências telepáticas.

Assim como, para o estudo da vida, em sua essência, despreza-se a complexidade do


indivíduo para se atentar somente na unidade celular, onde o fenômeno pode ser
apreendido mais facilmente, deve-se tomar, para o estudo e para a análise da alma
humana, os fatos aparentemente mais simples, tais como o da sugestão e da hipnose,
que podem ser provocados à vontade, em sessões experimentais
Para Silva Mello, as duas últimas manifestações “já saíram do terreno metapsíquico,
tendo adquirido direito de cidade na ciência positiva”. Estendeu-se longamente sobre a
parte fisiológica, que acompanha de perto os processos psicológicos. Gostamos,
sinceramente, da sua modéstia, quando confessa:

“Aliás, se a sugestão, por si, chega para explicar o desenrolar de muitas manifestações apresentadas,
permanece ainda o seu mecanismo íntimo de ação longe de qualquer interpretação segura, garantida (o
grifo é nosso)”.

As mesmas restrições poderiam ser articuladas com relação às maravilhas da


hipnose. Considera a telepatia “uma simples hipótese de trabalho”, extremamente grave,
“porque implica na existência de elementos fora do corpo, que devem entrar em relação
com as células cerebrais, sem participação dos nossos sentidos!”
Para Myers, Gibier e Bret as experiências telepáticas deram resultados satisfatórios,
desde 1885.
Para invalidar as experiências positivas obtidas nos domínios da metapsíquica, (é
sestro doentio do historiador Silva Mello) ele invoca o seu próprio testemunho de
metapsiquista manquitola, de caçador azarado e azanrazado. As suas minguadas
observações são todas incompletas, falhas, incongruentes: devem sê-lo, também, as que
autores da maior reputação-cientiífica deixaram registradas nos anais da metapsíquica.

223
As campainhas que ele ouve tocar à noite são coincidentes com fatos naturais: os
ruídos, as pancadas, os estalos, o ranger de portas e janelas, são artes de ratazanas e
gambás de que se acha habitada a sua velha residência; os videntes que conversou, se
possuíam fumaças de mediunidade, apagaram-na com o profissionalismo; em suma, in
spiritualibus, tudo lhe saiu às avessas. O homem estava predestinado à negação. Entre a
opinião equânime do Professor Branly, que não negava a telepatia, mas que,
pessoalmente, não tinha conhecimento de nenhum fato capaz de comprová-la, e as
opiniões de Le Bon e do Dr. Maxwell, que recusavam, respectivamente, a levitação e a
premonição, porque não possuíam conhecimento pessoal delas, ele se apega às ultimas,
como um náufrago.
Esperemos mais um pouco, porém, e o sábio que deseja “um só fato devidamente
comprovado”, nos enriquecerá com o produto de suas leituras. Isto aconteceu muitas
vezes nos MISTÉRIOS: a falta de vigilância do fiscal alfandegário, na azáfama de sua
aduana improvisada, não percebe a entrada escandalosa dos contrabandos.
Ouçamo-lo mais uma vez:

“Quando, há mais de 60 anos, foi fundada em Londres a “Society for Psychical Research”, o que se
tencionava primeiramente fazer era estudar fatos referentes à telepatia espontânea e à transmissão
experimental do pensamento, cuja existência se admitia demonstrada fora de qualquer dúvida, a julgar por
inquéritos e investigações, que pareciam absolutamente concludentes. Oliver Lodge relata que essa
Sociedade foi criada pelo fato de um trabalho do Professor Barret, lido na Assembléia da “British
Association”, em Glascow, em 1873 ter sido recebido com desprezo e excluído do boletim anual dessa
associação. Foi diante disso que Barret, Gurney e Myers fundaram a Society for Psychical Research, com
a finalidade de estudar os fenômenos em questão, cuja existência era considerada pela ciência oficial
como irreal a ilusória. Logo depois de fundada, organizou a Sociedade um inquérito na Inglaterra, a fim
de obter casosi de telepatia possíveis de rigorosa comprovação. Das 5705 respostas recebidas, foram
submetidas à verificação algumas das mais impressionantes e bem fundamentadas (os grifos são sempre
nossos). Tudo foi feito, como se tratossse de verdadeiros casos policiais, cujo processo de instrução devia
ser perfeito, completo. O resultado final foi publicado sob a forma de livro por Myers, Gurney e
Pomodore, membros daquela Sociedade. A conclusão foi favorável à existência da telepatia, admitindo
que a “inteligência humana pode adquirir conhecimentos por outras vias além dos cinco sentidos e por
outros recursos fora da razão.”

224
Silva Mello realizou trabalho semelhante, para desfazer as burlas, as explorações
conscientes contidas neste inquérito, diante do qual teria “ficado perplexo”, se não
estivesse vacinado por “um preparo prévio, estendido por dezenas de anos”? A esta
observação maciça, policial, cometida por sábios, e que sábios! abrangendo milhares de
casos, ele antepõe as misérias de suas observações negativas, de que todo o mundo
possui alguns exemplos. Este negativista ferrenho, porém, se nos revela, ao mesmo
tempo, de credulidade fací-lima. Quer seja para efeito de passes de mágica, em que é
perito, quer o diga com aquela sinceridade incrível que lhe diagnosticou Madame Fraya,
assim se enuncia a respeito do toque de campainha (vide páginas 196-198), que ouviu,
altas horas da noite, em Berlim, quando pensionista de uma família judia:

“O fato que, afinal, era destituído de qualquer significação, poderia ter tido para mim conseqüências
incalculáveis talvez decisivas em relação a certos problemas espirituais, capazes de dar direção a qualquer
existência.”

Ele confunde lendas, lendas semelhantes à que se criava numa velha fazenda em que
viveu, quando menino, desfeitas pela coragem de sua mãe “avessa à crença em
assombrações e almas do outro mundo”, com os fenômenos, alguns observados
pessoalmente por homens não menos corajosos e dotados dos requisitos necessários aos
bons observadores.
Pouco importa que o observador seja avesso ou não: o que a metapsíquica demonstra
é que, a par das visões patológicas de fantasmas inexistentes, há visões verídicas de
fantasmas de vivos, denominadas visões telepáticas; o que ela propugna é que, a par das
alucinações visuais, auditivas, cenestésicas, conseqüentes a enfermidades ou ao uso de
tóxicos, há as verídicas, coletivas, determinadas por transmissão de pensamento, e que
não podem ser equiparadas, de modo algum, como o assinalam o fisiologista Richet e o
psiquiatra Morselli, às alucinações coletivas por sugestões verbais.

Diferenças entre descobertas científicas e fatos espíritas.

O metapsiquismo dos fenômenos não deve adulterar o raciocínio lógico do bom


senso mais rudimentar: a existência de fatos inverídicos não impede o aparecimento de
fatos verdadeiros. Quando a coincidência se repete muitas vezes, já a observação clínica
de Hipócrates, que data de 24 séculos,

225
nos aconselhava o registro e a consideração dos fatos, porque “o desconhecido deve ser
conquistado pelo conhecido, e urge aceitar os ensinos dos homens mais simples, quando
se nos afiguram na posse da chave de qualquer assunto.”
Lavoisier aceitaria hoje, de bom grado, a existência das pedras no céu; Lord Rayleigh
se utilizaria de telefone transcontinental, quando mal podia admitir, ao tempo da
descoberta de Bell, a possibilidade de comunicação entre dois andares de uma casa;
Primerose estenderia a mão a Harvey, desdizendo-se e confirmando que, em Veneza, se
ouve também o coração bater no peito; Réaumur não impediria a publicação da tese de
Peysonel, que incluía os polipos entre os animais; o espírito dos membros de todas as
Academias que, vinte anos após as descobertas de Pasteur, não acreditava no papel dos
micróbios, retira hoje de suas descobertas, as suas melhores fontes de renda; os
opugnadores de Franklin, de Zeppelin, de Semmelweiss, de Finlay emudeceram com o
tempo e hoje gozam das suas descobertas, completamente esquecidos dos apodos, das
restrições e dos ridículos com que premiaram as suas vítimas.
Quando o irrascível Bouillaud, em plena Academia de Ciências de Paris, na sessão
de 11 de Março de 1878, agarrou pelo pescoço o pobre Moncel e lhe deu os epítetos de
ventríloquo e miserável impostor, por causa de um fonógrafo que reproduzia pela
primeira vez a voz humana, segundo nos relata Flammarion, apenas repetiu em grande e
espalhafatoso estilo, a mesma atitude de todos os críticos de obras feitas.
Silva Mello procura inutilizar tais citações, que a doutrina espírita costuma alegar
como prova das reviravoltas da ciência, aduzindo-lhes um comentário próprio, como
sempre eivado de sofisticaria:

“O que, em geral, não é acrescentado, envenena ele, é que e próprio Bouillaud, diante de novas
demonstrações, deve ter-se logo convencido da realidade, tendo se transformado em ardente entusiasta da
descoberta, como é fácil pressupor.”

Aceitar ou não uma descoberta científica de qualquer natureza, que venha embelezar
ou melhorar o mundo, não implica, a menos que o sábio contraditor haja escrito alguma
obra recente, de, suponhamos, 609 páginas, como os MISTÉRIOS, na reforma interior,
nem na mudança de crenças, quer as do fanatismo religioso, quer as do fanatismo
materialista, pois os dois se eqüivalem.

226
Em geral, são os profissionais do mesmo ofício que relutam durante algum tempo,
diante de uma descoberta que coube a outrem. Os sábios das outras províncias
científicas, a grande massa dos indiferentes ao assunto para logo se resolvem a
concordar com o fato novo e, mais cedo ou mais tarde, conforme a descoberta seja ou
não de fácil conhecimento, todos aplaudem o inventor, geralmente depois que a morte já
o imobilizou e o inutilizou para a struggle for life.
A admissão da doutrina espírita, porém, encontra, as maiores dificuldades, porque
importa numa reforma integral, substancial, absoluta da conduta, da moral, das
convicções mais íntimas e atuantes, eqüivalendo, sob o ponto de vista espiritual, a um
renascimento.
A nós pouco nos importa, por exemplo, que a desintegração atômica redunde neste
ou naquele progresso, que seja ou não fator para a comunicação interplanetária. Se o
fôr, tanto melhor.
Mas o biopsicologismo, a última descoberta do nosso ilustre colega Silva Mello, com
as suas pretensões de reduzir o homem a discípulo dos brutos, as religiões a complexos,
a doutrina dos espíritos a fraudes somadas à ingenuidade universal, isto, que almeja
subverter o mundo da espiritualidade e reduzido à ditadura dos instintos, isto, cremos
em Deus, não será jamais aplaudido por quem tenha adquirido a mamridade espiritual.
A doutrina espírita — imortalidade da alma, pluralidade das existências e
comunicação dos mortos — nasceu com o primado da razão humana por isto mergulha
profundamente as suas raízes na noite imemorial da antigüidade, ascendendo aos Vcdas
multimilenários, aos Egípcios, aos Iranianos, aos Celtas, aos Druidas, aos Hebreus,
constituindo os seus “mistérios” a substância que vitalizou o Bramanismo, o Budismo e
o Cristianismo.
Não é produto individual, artificial ou sintético, de algum cérebro filosofante, mas
uma concepção universal contemporânea do advento da razão humana.

227
CAPÍTULO SÉTIMO

SUMÁRIO

As qualidades dos experimentadores e as


variedades dos fenômenos. A mediunidade e
os seus instrumentos. As paupérrimas
experiências de Silva Mello. Um repto. Por
que Silva Mello se dedicou ao estudo dos
problemas metapsíquicos. Confusões
propositadas de prestidigitador.
Diagnosticador de corpo presente e
diagnosticador à distância. Uma cena de
teatro de variedades. Diagnóstico e curas
supranormais. A argúcia clínica de Silva
Mello. Médicos confirmam as curas
supranormais. Exigências, contradições e
conclusões absurdas. Uma esperança e uma
promessa.

“Lembrai-vos de que a vida desse mundo é como o mergulho da ave que deixa por um .momento o ar
livre do céu pelo oceano; a ave mergulha no mar para conseguir o alimento de que necessita. Igualmente,
cada um de nós, nascido no céu e não na terra, mergulha na vida terrestre, e depois leva para morada
celeste a experiência que adquiriu neste mundo.”
ANNIE BESANT.

“Aqueles que têm medo da morte são tolos, porque o corpo morre todos os dias e se renova.”
GIORDANO BRUNO.

“A vossa concepção de um Deus que cria fora e além de si, acrescendo-se a si mesmo, é absurda
concepção antropomórfica, é querer reduzir o absoluto ao relativo.”
PIETRO UBALDI.
“A Divindade é um princípio que ultrapassa os vossos limites conceptuais, mas que espera: espera a
vossa maturação, para se vos revelar.”
PIETRO UBALDI.

228
CAPÍTULO VII

As qualidades dos experimentadores e as variedades dos fenômenos.

Qualquer que seja o credo filosófico do experimentador honesto, quer seja crente,
quer agnóstico, quer viva dentro do monodeísmo da matéria ou do espírito, antes de
defrontar a fenomenologia supranormal, nas suas múltiplas modalidades, cumpre-lhe
tomar conhecimento apropriado da mediunidade, estudando-a sob todos os seus
aspectos, a fim de, antes de tudo, excluí-la ou não das psicopatias.
Os conhecimentos médicos (fisiologia, psicologia, hipno-tismo, psiquiatria),
associados aos conhecimentos de física (mecânfca, eletricidade), que por acaso possua o
experimentador (e alguns, como Crookes, Richet, Sotzing os possuíam
catedraticamente), não os eximem nem os isentam da observação direta e do estudo
pontilhoso da mediunidade propriamente dita.
Os raps ou ruídos anormais; a levitação ou elevação de corpos pesados no espaço; a
tiptologia ou mensagem transcendental obtida por meio de pancadas; a criptestesia ou
clarividencia ou dupla vista; a pneumatografia ou criptografia ou escrita mecânica e
semimecânica; a monição e a premonição, ou conhecimento antecipado dos fatos; a
ectoplasmia ou materializações fantasmáticas; a psicometria ou reconstituição dos fatos
pelo contato com objetos; o apport ou passagem da matéria através da matéria; a música
transcendental ou metacromática; a xenoglossiá ou manejo de língua não aprendida; a
transfiguração ou endometaplasia; e, por último, os diversos graus de obsessões
espiritóides; assunto que devia interessar vivamente à psiquiatria oficial, em seu próprio
benefício, para evitar os inúmeros quinaus que tem recebido de hospitais espíritas (e há
vários em S. Paulo, otimamente instalados, para tratamento gratuito), onde centenas de
pseudos insanos recuperaram a saúde, sem choques elétricos, insulínicos ou
cardiazólicos, tudo está associado ao médium e dependente dele, o portador do sexto
sen-

229
tido, o intermediário entre os espíritos e o mundo, o “sensitivo” de Richet, o “sujeito
metapsiquico”, o automatic dos materialistas.
F. Wachsmann, em “Pela Vitória do Espírito”, traçou-nos interessante paralelo entre
a evolução mecânica na terra e o desenvolvimento das faculdades supranormais,
lembrando-nos as seguintes correspondências: para a telegrafia sem fio possuímos a
telepatia; a telefonia tem o seu sucedâneo na voz direta; a televisão substitui a
bilocação do corpo etéreo; a aeromecânica semelha a telecinesia; os raios X são o
estado radiante da matéria; a telefotografia da chapa fotográfica por substâncias
radiotivas eqüivale ao pensamento fotografado ou escotografia.
Sem o conhecimento da mediunidade em todos os seus aspectos, sem a convivência e
o estudo dos médiuns, o metapsiquista, por muito que se tenha abarrotado de “leituras”
e por mais vastos lhe sejam os conhecimentos científicos, quando conclui, conclui como
charlatão, ou, mais suave e cristãmente, como diletante ou amador.
Se o compararmos com os charlatães da medicina, veremos que o símile é perfeito.
Estes, em geral, inteligentes e observadores, quando enganam por muito tempo, colhem
os seus dados por toda a parte, vendo e ouvindo doentes, lendo os manuais alopáticos ou
homeopáticos de medicina popular, decorando as bulas, como o fazem hoje os
entregadores de amostras, imitando, enfim, os esculápios daqueles tempos obscuros,
antes de Pasteur, quando a medicina, na sátira de Rabelais, era uma farsa desempenhada
por três autores: o médico, o paciente e a moléstia. Fingem-se médicos e, na realidade,
curam muita gente, porque, ou não há doença, ou há e é curável por si mesma, ou
sugestionam os pacientes, ou, finalmente, acertam com a droga, o que pode acontecer a
todo o mundo.
Os charlatães agem, mas, prudentemente, não falam nem escrevem. Quando se
descuidam, são facilmente desmascarados. Desconhecendo as ciências básicas da
medicina, não firmam diagnóstico, nem os explicam. Divagam aereamente,
deseonexamente, com impropriedade palmar de linguagem tal qual o metapsiquista
afoito, aue não estudou profunda mente “os mistérios da mediunidade.” O declive mais
inclinado, que nos leva às conclusões simplistas e falsas, é o da ignorância presunçosa e
opiniática.
Somente quem não conviveu com médiuns, não os observou atentamente, não
aprendeu a distinguir-lhes as aptidões

230
poderia externar a opinião disparatada de que a mediunidade é fraude generalizada, é
mistificação infalível, é farsa universal. Antes a interpretação da catolicidade (aliás
muito aproximada da interpretação espiritóide), de que tudo é obra exclusiva do
demônio.
Convém à metapsíquica de Silva Mello que a fraude seja onipresente, seja um
axioma muito seu, sem o qual se lhe desfaria nas mãos a construção materialista erigida
nas páginas dos MISTÉRIOS. Por isso, ele a busca avidamente nos autores de sua
predileção, tão jejuadores e tão abstinentes como ele, na experimentação e na
observação direta dos fatos.

A mediunidade e os seus instrumentos.

Se os médiuns são os instrumentos do metapsicmista prático, urge não confundi-los


com balanças, microscópios, telescópios, etc. São seres vivos, conscientes, dotados de
livre arbítrio, seres através dos quais outros seres não menos vivos, não menos
conscientes e não menos caprichosos podem manifestar-se de mil maneiras. Querem-se,
não-sòmente dotados de verdadeira mediunidade, senão também credores de confiança
e portadores daquela moral mínima da espécie. Não é obrigatório, infelizmente, que a
mediunidade implique a moralidade. Criaturas humanas, podem ser imperfeitas,
falíveis, mercenárias...
A definição clássica de Gustavo Geley completa-se com os comentários de Myers e
W. Barrett:

“O médium é um ser cujos elementos constitutivos (mentais, dinâmicos, materiais) são susceptíveis de
descentralização momentânea.” (Geley).
“Ele não compreende o fenômeno melhor que o experimentador, diz Barret, talvez menos ainda,
porque não sabe o que se passa em transe.”

Justamente porque as manifestações espíritas contrariam as idéias preconcebidas de


todos nós, principalmente dos médicos, e assumem caráter de extrema espontaneidade e
de absoluta naturalidade, é que merecem o estudo e a atenção da ciência experimental.
São fenômenos naturais, espontâneos, imprevistos, universais. Admitir uma
comparsaria ecumênica, para que os homens se enganassem a si mesmos, é juízo de
muita infantilidade.

231
“Esse caráter de inesperado, diz Myers, constitui uma séria indicação para que os ditos fenômenos
tenham sua origem fora do espírito, incapaz de representar, por antecipação, fenômenos desse gênero.”

São as especiais condições psicofisiológicas dos médiuns que lhes permitem, sem
esforço indutivo ou dedutivo, sem raciocínio, sem pesquisa, sem vontade, a execução
daquele papel puramente passivo de intermediários e de aparelhos, isentos, por
conseguinte, de quaisquer responsabilidades.
A mediunidade é capítulo da História Natural, e não das Religiões e da Metafísica. O
seu precioso caráter de universalidade mereceu de César de Vesme o seguinte
comentário:

“A descrição de casos isolados não tem o poder de nos impressionar muito e de nos convencer. O que
nos empolga, o que nos arrasta é a enumeração de uma quantidade considerável de acontecimentos, que
se assemelham todos, que se repetem em todos os tempos e em todos os lugares, que foram certificados
por uma verdadeira multidão, e que, racionalmente, não se pode acusar de alucinação e impostura.”

Margel Mangin lembra aos críticos apressados:

“Poderei desejar, durante vinte anos, com todas as forças de «linha alma, adquirir esses dons
maravilhosos, sem que ao cabo do vigésimo ano perceba em mim o mais insignificante indício de tais
dons.”

Muitas vezes hereditária e precoce, a mediunidade surge no seio de famílias da maior


respeitabilidade, ora perfeitamente definida e identificada, ora confundida com
manifestações de um misticismo exaltado, ora vitimada pela ignorância da psiquiatria
oficial, que a interna nos manicômios. A sugestibilidade, a hipersensibilidade, a
instabilidade de gênio,, o caráter1 caprichoso, constituem, segundo a observação dé
Geley, as características psicofisiológicas dos sensitivos.
Pessoas de psiquismo absolutamente normal (dentro daquela normalidade variável e
oscilante que a psiquiatria nos consigna a todos nós), ignorantes do Espiritismo ou
detestando-o cordialmente porque filiadas a seitas que o não estudaram e
compreenderam, virtuosas, de alto senso moral, às vezes crianças de tenra idade, de um
momento para outro, revelam-se possuidoras do “sexto sentido”, uma função fisiológica
sem órgão conhecido pela anatomia. E os fenômenos estranhos começam a surgir, sem
que o socorro

232
da sugestão, ou da hipnose, ou do subconsciente, ou do automatismo psicológico
esclareça devidamente o caso clínico.
As faculdades supranormais, como o deixou claramente demonstrado Ernesto
Bozzano, excluem-se das influências da teoria evolucionista, isto é, das duas leis
indissolúveis e conjugadas — a das variações espontâneas e a da seleção natural: não
são resíduos de faculdades atávicas, tornadas inúteis à evolução biológica da espécie;
não são rudimentos abortivos de sentidos; não são germes de sentidos novos destinados
a evolver nos séculos. Faltam relações de causa e efeito entre os fatores da evolução
biológica (reação contínua e complexa contra os estímulos exteriores) e as faculdades
supranormais subconscientes, cuja gênese se deve procurar, não no mundo material,
onde a evolução elaborou os nossos cinco sentidos, relacionados diretamente com o
meio físico, mas no mundo espiritual.

“Parece indubitável, conclui Bozzano, que a única solução racio. nal dos formidáveis enigmas
enunciados consiste em reconhecer-se que as faculdades subconscientes não se destinam a exercitar-se em
ambiente terreno, por serem faculdades de sentido da existência espiritual, aguardando para emergir e
exercitar-se, o ambiente espiritual, que sucede à crise da morte.”

E dá-nos um exemplo elucidativo:

“Quando um indivíduo vê com os olhos do corpo, isso significa que um objeto qualquer reflete a sua
imagem na retina dos próprios olhos e que a imagem aí impressa por intermédio do nervo ótico, é
transmitida aos centros cerebrais correspondentes, em virtude dos quais a impressão se transforma em
visão. Ora, precisamente o oposto se dá no que concerne à visão supranormal, em que o sensitivo percebe
fantasmas ou cenas do passado, do presente e do futuro, não com os olhos do corpo, mas com a interior
visão espiritual. E, como o espírito se acha em relação com o cérebro, produz-se um fenômeno pelo qual a
imagem espiritual, vinda dos centros óticos, por intermédio do nervo ótico, chega a retina, donde é
projetada no exterior em forma alucinatória, produzindo no sensitivo a ilusão de estar assistindo a uma
manifestação objetiva.”

E mais adiante aplica à mediunidade o princípio claramente exposto:

“Daí decorre que, tendo por base ambas as conclusões alcançadas, deverá inferir-se que, se as
faculdade psico-sensoriais subconscientes se exteriorizam de modo inverso ou espiritual e nunca de modo
direto ou fisiológico e só se exteriorizam sob a condição de que as faculdades psico-sensoriais conscientes
estejam temporariamente abolidas ou apagadas, fica cientificamente demonstrado que as aludidas
faculda-

233
des pertencem a um plano fundamentalmente diverso e. em absoluto ‘independente do em que atuam os
fatores da evolução biológica.”

A ancianidade e a universalidade das manifestações supranormais, encontradas no


seio de todos os povos, nas primeiras narrativas da antigüidade clássica, na antigüidade
bíblica, egípcia e babilônica, nas crônicas sacras do oriente, nas raças atrasadas e
selvagens, entre os faquir es, ora com o caráter demoníaco, ora com o caráter angélico,
tanto aparecendo no homem ignorante, como nos sábios e intelectuais (Sócrates, Pascal,
Descartes, Schopenhauer, Pope, Musset, etc), provam que este sentido não é nem será
provavelmente o “sexto” de Richet, mas uma percepção usual e própria do mundo
espiritual, que, em determinadas condições, ainda não bem estabelecidas, dá sinais de
sua existência no mundo físico, através da medhmidade.
O metapsiquismo de Silva Mello está com dezenas de anos de atraso. Ele pretende,
anacrônicamente, desmentir os fatos. E estes foram atestados pelos experimentados
mais insuspeitos, porque se mantiveram, até o último dia da existência, adstritos
exclusivamente às conclusões positivas do experimentalismo, sem extrair delas novos
postulados para a filosofia e para a religião.
O último recurso dos negadores sistemáticos, como nos lembra Bozzano, é o de
porem em dúvida “a existência mesma dos fatos, dúvida que não me demorarei em
refutar, porque, hodiernamente, se ainda se discute a autenticidade de algumas
categorias de fenômenos físicos do mediunismo. já não se discute a existência de
faculdades supranormais subconscientes, existência que todos reconhecem, o que,
sobretudo, se deve à obra admirá.vel de dois pesquisadores geniais: o Professor Richet e
o doutor Osty”.
Justamente porque a mediunidade é o ministério através do qual se estabelece o
intercâmbio entre dois mundos, é que se lhe devem exigir os mesmos juramentos e as
mesmas provas que se impõem aos intérpretes atuantes nas conferências internacionais.
Um escroque mundial, por muitas línguas que conheça (e todos eles as sabem muito
bem, na ironia de Eca de Queiroz), estaria obviamente inutilizado para o mister’.
Um médium imoral e viciado, não-sòmente atrai a imoralidade e o vício, como se
muda muitas vezes em veículo de mistificações e de obsessões. Conquanto aos
psiquistas materialistas a exigência da moralidade lhes possa parecer absur-

234
da à primeira vista, bem ponderadas as nossas razões, hão de achá-las, afinal, de suma
naturalidade. A lei é a seguinte: entre dois médiuns, rejeite-se um, se malandro; ou os
dois, se não houver outro recurso. A advertência denota a máxima isenção. Ninguém se
queixe de fraudes, se não as quis evitar.
Outra particularidade a respeito da qual é muito penosa a nossa conversa com os
materialistas, sempre a cavaleiro dessas insignificâncias do “misticismo”, é a atmosfera
moral em que lhe cumpre ao médium viver, para que os seus dons naturais possam dar
de si todos os frutos. O físico, o fisiologista, o químico, o biólogo esmeram-se por que
as suas balanças, os seus termômetros, as suas estufas, as suas pilhas elétricas sejam da
melhor qualidade e se apresentem “sempre” em perfeita forma. O metapsiquista que
desprezar as qualidades morais dos médiuns, encarando-os como simples instrumentos
físicos através dos quais os fenômenos se manifestariam de qualquer modo, violam uma
lei soberana, produto de experimentação de um século – não há mediunidade perfeita e
garantida sem um senso moral de igual teor.

“Em matéria de experimentação psíquica, adverte Leon Dénis, além da ciência e do método,
elementos indispensáveis, prodigiosa é a importância dos surtos generosos da Alma por meio de prece.
Êles constituem o ímã, a corrente fluídica que atraem as potências ben-fazejas e afastam as influências
funestas, como o demonstra sobejamente a vida inteira de Joana d’Arc.”

Se os dons mediúnicos fossem sempre utilizados na colaboração da obra divina,


assim como todos os dons intelectuais e artísticos, o sábio emprego do livre arbítrio, de
que a criatura humana aufere a sua dignidade no planeta, aceleraria a marcha para os
altos destinos espirituais a que Deus nos convida. Aceleraria apenas, porque esta
marcha evolutiva se realizará de qualquer maneira.

As paupérrimas experiências de Silva Mello.

Em que companhias andou o metapsiquista nacional, antes de escrever os


MISTÉRIOS? Antes de mais nada, misturou tudo: bolas de cristal, borras de café, clara
de ovo, chumbo derretido, horóscopos, quiromantes, cavalos ensinados de Elberfeld e
videntes... Termina o capítulo primeiro com uma chave de ouro: a cadela Nora e o
chimpanzé Basso.
Para refutá-lo, bastaria que déssemos a palavra aos cavalos de Elberfeld, ou ao
filósofo Le Gandre, que presen-

235
ciou e descreveu os fatos. O dito filósofo, citado por Silva Mello “conclui que o cavalo
era guiado por sinais, por gestos e pela voz do dono, acrescentando que o extraordinário
é que esses sinais fossem imperceptíveis, passando despercebidos à assistência, eram
compreendidos pelos cavalos.” Logo os cavalos eram mais inteligentes do que a
assistência...
Tanta palavra inútil para uma conclusão que nada tem de metafísica: os animais são
nossos irmãos inferiores, que merecem a nossa estima e o nosso trabalho educativo;
possuem inteligência e sentimento da mesma natureza que se observam na espécie
humana. Apenas em grau menor. Não os consideramos, todavia, nossos guias, nossos
mentores, nossos modelos, como defende a biopsicologia do autor dos MISTÉRIOS.
Começa, furtivamente, a convivência com a mediunidade, depois de ter1 “estudado
avultado número de livros” (pág. 13), fixando a sua atenção no “temperamento do
pesquisador, que, de antemão, pode levá-lo por caminhos falsos, quer pelo excesso de
misticismo c credulidade, quer pelo de negação e cepticismo.” Nas palavras grifadas
reflete-se, nitidamente, a imagem de Silva Mello. Cita e comenta experiências que
considerou negativas, mas não lhe foi possível esconder o seguinte:

“O que é indiscutível, fora de qualquer dúvida, é o fato de alguns quiromantes, videntes e adivinhos
conseguirem dizer coisas extraordinárias ao consulente, não raro com pormenores impressionantes” (pág.
26).

Ele não nos diz, no entanto, em que proporções foram os erros e os desacertos.
Clarividência não é sinônimo de infalibilidade.
Externando-se com admiração a respeito de Piper, Richet, depois de afirmar que a
prova definitiva da clarividência “esse poder misterioso de nossa inteligência”, já nos
fora dada através daquela médium, conclui de maneira que Silva Mello não considera
muito lógica:

“Mesmo se admitirmos — o que é bastante absurdo — que três quartos dos fatos apresentados são
errôneos, não há duvida que sobra uma série de constatações que desafia qualquer crítica e que demonstra
de maneira absoluta essa estranha faculdade do homem, de possuir conhecimentos que não lhe são
trazidos pelos sentidos normais.”

Posto em torniquete, Silva Mello insinua, sem dizer onde, como e por quem:

236
“Pois bem, depois disso, o quarto dos fatos que Richet acreditou poder servir de base à sua convicção
também não teve confirmação científica”

Foi com relação à clarividéncia de Piper que Max Dessoir desembuchou a seguinte
pergunta, um clamor de náufrago: “Se não há fraude, o que há, então?”
A interpretação de Richet é lógica; a de Silva Mello um sofisma grosseiro. Para
negar a clarividência, Silva Mello a fortalece com um atributo gracioso — a
infalibilidade. Suponhamos que um pescador atire o anzol vinte vezes em águas pouco
piscosas; peixes, ele só os obtém em cinco tentativas. Para Silva Mello a pescaria tôda é
uma burla. Os peixes apanhados são fraudes...
O homem viu coisas extraordinárias, “com pormenores impressionantes.” Mas as
guarda para si, avaramente, só relatando, com minúcias, os insucessos. Outra confissão
desassombrada, ao cabo de experiência ou de consultas “por intermédio de uma terceira
pessoa” (pág. 27):

“O poder de determinados médiuns era por vezes tão prodigioso que bastavam essas simples
informações (nome das pessoas e moradia), para que pudessem diagnosticar moléstias mesmo à distância,
em qualquer doente.”

Eis o depoimento de um grande diagnosticador de corpo presente. Um dos truques de


que mais abusa este maravilhoso ilusionista consiste em dizer as coisas mais
interessantes e mais probantes para a tese oposta à sua, pensando que, destarte, não vira
o feitiço contra o feiticeiro. Com a sua vocação confessada pela prestidigitação, com os
seus vastíssimos conhecimentos médicos, por que Silva Mello não realiza a experiência
do diagnóstico à distância, competindo com um médium de verdade? Para ele, os
médiuns são como os animais ensinados: respondem às perguntas pelas informações
prestadas pelos próprios consulentes. O autor chegou a tal conclusão, de tamanha
responsabilidade, interposita persona.

Um repto.

Concorrem na personalidade paradoxal de Silva Mello atributos negativos,


incondicentes com a experimentação metapsíquica; o péssimo deles é o contraste
violento entre a coragem heróica de negar a espiritualidade e o pavor con-

237
fessado pelos fantasmas. Daí o sen hábito de julgar tudo... de longe!
Seria judiação pedir-lhe a permanência, durante horas, em salas escuras! à espera de
materializacões ou de quaisquer outras atividades físicas dos desencarnados. Nessas
emergências, costumam os assistentes entrar em contato com as entidades recém-
nascidas, que os tocam, os apalpam, os acariciam, os beliscam, fazem-lhes cócegas,
desmancham-lhe o penteado e o laço da gravata.
Tais incidentes, imprevisíveis, entre Silva Mello e um espírito barulhento ou
galhofeiro, poderiam exarcebar-lhe, desconcertar-lhe de vez a doença psíquica,
ampliando-lhe as lacunas ou os escotomas, que tomariam todo o campo visual do seu
psiquismo, impropriando-o de modo insanável para o exercício de sua biopsicologia, a
qual teima, igualando-se nesse particular ao dogmatismo religioso, em não ver na
mediunidade fenômeno puramente humano, biológico, naturalístico, que aparece e
desaparece com a mesma incon-trolável manifestação das variações meteorológicas.
Porque, afinal de contas, a existência dos fatos independe da atitude que assumam os
seus negadores ou interprptadores.
É-lhe impossível, evidentemente, dar-se ao estudo da fenc menologia supranormal,
obediente ao lema de Richet, para quem “na metapsíquica importa não recuar, mesmo
diante do que nos pareça insensato.” Concordemos que não seria exigência desarrazoada
a proposta para uma experiência muito simples, compatível com o seu psiquismo
meioprágico e com as faculdades cultivadas da sua vocação pela medicina.
Figuremos a cena: dentro de uma sala completamente isolada do mundo e bem
policiada, paredes desguarnecidas igualmente de santos e de mapas anatômicos,
iluminação compatível com a miopia e as fobias de Silva Mello, estão sentados junto de
duas mesinhas, mas distantes um do outro (para evitar a cola), um médium cristão —
virtuoso, caridoso, humilde e de pouquíssimas letras — e o grande diagnosticado com
todo o seu riquíssimo Subconsciente recheado das melhores reminiscências
propedêuticas e médicas.
No preto de uma lousa, 10 nomes e 10 endereços, a giz e boa caligrafia, sorteados
dentre mil cartas recebidas de todos os Estados do Brasil. O teste metapsíquico pode
durar 50 minutos, 5 para a “observação” de cada paciente. Ao recolhermos as provas,
cremo-lo firmemente, encontraríamos uma folha em branco (nota zero) e outra com 10
diagnósticos a serem confirmados pelo exame direto dos doentes,

238
trazidos de onde quer que vivam, por um grupo de representantes da medicina de corpo
presente, escolhidos sob qualquer critério.
Aqui fica lançado o repto.

Por que Silva Mello se dedicou ao estudo dos problemas metapsíquicos.

Quando premeditou o crime dos MISTÉRIOS, crime contra as verdades


metapsíquicas que ele jamais poderá compreender, por inaptidão congênita, na
elaboração das páginas 401 e 402 de O HOMEM, páginas imoredouras, porque são o
exemplo mais extraordinário da sinceridade de um filósofo-cientista, imaginou uma
prestidigitação de grande estilo, com a qual supunha conquistar, e o conquistou de fato,
fama descomunal.
Depois que compartilhou da opinião de Xenófanes, isto é, de que o seu e todos os
outros deuses tinham sido criados à imagem do próprio homem, depois que o ateísmo
lhe caiu, aos quinze ou dezesseis anos como um raio, sobre o crânio resolveu-se a tomar
a seguinte deliberação: “estudei profundamente metapsíquica e outros ramos de
conhecimento a ela atinentes”. Antecipa-nos as suas conclusões:

“Por enquanto, quero apenas assinalar que, por todas estas investigações, fui invariavelmente levado à
convicção de que os fastasmas não existem e que, portanto, não me devem amedrontar. Mas, apesar
disso, continuo a ter medo deles, talvez agora menos intensamente, depois que numerosos anos se foram
passando.

De tudo isto, a única verdade que se salva, é aquele medo, talvez menos intenso,
dando-nos o advérbio de dúvida, aquí muito bem empregado, o direito de supor que o
medo talvez tenha aumentado.
O que ele estudou profundamente não foi a metapsíquica, mas “os outros ramos de
conhecimneto a ela atinentes”, tais como, a grafologia, a radiestesia, etc, conforme se
depreende do grande número de páginas a elas dedicadas nos MISTÉRIOS.
Quanto ao Espiritismo, apesar de considerar “a questão de tal modo importante, sob
o ponto de vista humano, que não vejo nenhuma outra, de cuja exata significação
precisamos estar mais seguramente informados”, não tendo tido opinião “preconcebida
sobre qualquer dos assuntos ali tratados”, a conclusão contraditória a que chegou foi que
embora o

239
desconhecido esteja ainda cheio de mistérios e incompreensões, “mais clara se foi
tornando a sua essência real e também mais simplória, quase imperdoável a nossa
tremenda ignorância”.
Assegura, mas não o prova no seu livro, que estudou as “tais questões sob o ponto de
vista objetivo.”

Confusões propositadas de prestidigitador.

Propositadamente, num passe de mágica, misturou os cavalos de Elberfled, citando


Claparède, Karl Krall, W. von Osten, a radiestesia dos padres Mermet e Bault, a
grafologia de Schermann, a cadela Nora e o chimpanzé Basso, os adivinhos (bolas de
cristal, borra de café, clara d’ovo, chumbo derretido) gastando com tudo isto 30 páginas,
ou sejam 1.050 linhas do Capítulo Primeiro, para chegar à conclusão de que não há a
mínima parcela de verdade em tudo aquilo. No meio de tudo ele intercalou alguns
médiuns, médiuns que tomou como tais, sem mais exames, e que, apesar de luta tão
desigual, de companhias tão desabonadoras, da má-von-tade evidente do alquimista,
saíram-se vitoriosos da provação.
Quem o disse? O autor dos MISTÉRIOS, mas em 11 linhas somente, às pressas, de
afogadilho, sinteticamente, porque as 1.039 restantes deviam ser empregadas na
desmoralização total dos concorrentes:

“O poder de terminados médiuns era por vezes, tão prodigioso que bastavam essas simples
informações (nome das pessoas e sua moradia) para que pudessem diagnosticar moléstias mesmo à
distância, em qualquer doente. Nesse sentido, são freqüentes anúncios em jornais por meio dos quais é
encaminhado grande número de doentes e outras pessoas para esse gênero de consultas, em geral dadas
gratuitamente ou contra disfarçadas remunerações, cujos pormenores teremos ainda de analisar. Em
nossas próprias observações, o que nos causou maior surpresa foram informações quanto às condições
físicas e sociais dos consulentes, não raro atingindo alto grau de precisão.”

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Gostaríamos que o Professor Silva Mello,
habilíssimo diagnosticador, que consumiu muitos anos no estudo da Medicina, de que é,
atualmente, um dos luminares, não fosse, neste ponto, tão sintético, tão resumido, tão
sibilino, tão reticente, ele que, em outras oportunidades que lhe foram favoráveis, não
fez economia de palavras.
Conte-nos lá, meu amigo, com minúcias, como foi que a história se passou. Que filão
maravilhoso para inspirar o

240
exímio contador de histórias fantásticas! Isto! A mediunidade verdadeira não faz
perguntas e... não recebe dinheiro. Temos que reconhecer, embora nos doa, que é
superior à nossa ciência. Age tal qual o amigo nos revela: basta o nome da pessoa e a
moradia. Mas como se chamavam os doentes (ao menos as iniciais!), como se
chamavam os médiuns (a concorrência não no alcança mais), de que moléstias se
tratava, em que proporções o diagnóstico acertado?

Diagnosticador de corpo presente e diagnosticador à distância.

Concordamos com as suas observações a respeito dos outros ramos de conhecimento


atinentes à metapsíquica: os movimentos dos lábios, imperceptíveis e rápidos, as
pequeninas alterações fisionômicas, que os cavalos ensinados descobrem (que temos
nós com eles?), a ventriloquia, a orientação do vidente pelo consulente, etc, etc, todas as
descobertas da sua argúcia ou esperteza de outrem. Demos tudo isto como possível.
E o resto? E o que o Professor embrulhou em tudo aquilo? Como se explica o
diagnóstico à distância? O diagnóstico, aquilo pelo qual vive e morre há quase 40 anos?
Fale, meu amigo, fale muito, eruditamente, como sabe falar, quando lhe dá na veneta,
explicando-nos o “mecanismo” dos fatos. Por que silencia e desconversa?
Estamos a vê-lo desesperado, sobrecenho carregado, indeciso no diagnóstico:
— Que será que nos veio desta moradia e deste nome? Hemorróidas ou tumor
cerebral? Tuberculose ou sapinho? Sarna ou osteomielite? Cálculo renal ou desvio do
septo? Atrofia do nervo ótico ou apendicite? Por onde se orientaria o sábio?
Será que o Professor Silva Mello se arriscaria, assim de longe, a tentar um
diagnóstico, imitando um pobre médium semi-analfabeto?
O médium diagnosticador, de nossa confiança, é o que ordena a sua vida particular e
pública pelas palavras contidas nos Evangelhos, ou melhor, pelos exemplos deixados
por Jesus Cristo. A gradação da força mediúnica, assim como a escala de moralidade, é
que condicionam a sua clarividéncia, a sua possibilidade de ver, claramente visto, sem
os sentidos do corpo físico. Os graus máximos da perfeição mediúnica somente são
encontradiços nos Santos (e a vida de todos

241
eles se acha repleta de fenômenos supranormais), porque estes, além de tudo, pelo
recolhimento em que vivem, pela meditação contínua e pela força poderosa da prece,
pelas condições especialíssimas que se criam, desenvolvem os seus dons até o máximo
de suas possibilidades.
Não é justo confundi-la com pêndulos diagnosticadores, com cartas de baralhos, com
bolas de cristal... O modo de agir da mediunidade é puramente espiritual, é direto, não
precisando de pretexto algum, de nenhum objeto de qualquer natureza, para demonstrar
as suas potencialidades.

Uma cena de teatro de variedades.

No Capítulo Primeiro do seu livro, Silva Mello agiu à maneira de um ilusionista de


profissão. Não encontramos comparação menos ofensiva. Diante da ribalta do
proscênio, tomou uma cesta de vime e pediu gentilmente aos espectadores que lhe
emprestassem quaisquer objetos. Encheu-a de relógios, anéis, grampos, lenços,
cigarreiras, batons, etc. Colocada a cesta sobre a mesinha do centro do palco, virou-se
para o povo, gesticulou com o braço direito erguido acima dos ombros, e apareceu-lhe
um Ôvo no côncavo da mão. Sorriu para a platéia e pediu-lhe permissão para colocá-lo
também no meio de tudo aquilo. Fê-lo com ligeireza e elegância. Desceu a tampa da
cesta. Selou-a. Num átimo, postou-se na frente dela, desfraldando uma cortina preta
com os braços em asa. Conta: um, dois, três... Que teria acontecido? A cesta estava
cheia de ovos, para quem o quisesse verificar. Palmas.
Foi de maneira semelhante que Silva Mello pretendeu que tomássemos por
mediunidade todas aquelas coisas abstru-sas de que encheu o Capítulo Primeiro de seus
MISTÉRIOS.

Diagnóstico e curas supranormais.

É destino peculiar ao Espiritismo a conquista espontânea de defensores saídos das


fileiras materialistas. O fato devia angariar a atenção do criticismo rebelde que nada
experimenta e tudo reprova; cumpria-lhe meditar seriamente no paradoxo. As
materializações tiveram como experimentadores e endossantes nada menos que as
autoridades supremas de Crookes e de Richet; as ridicularias do subconsciente, uma
espécie de sátrapa coroado por Janet e o polígono de Grasset

242
foram destronados por J. Maxwell, médico e jurista notável (Les Phénomènes
Psychiques), que escoimou os médiuns da pecha de neuropatas e histéricos.
Foi ele quem relembrou o pensamento de Kant: “o verbalismo das escolas superiores
é por vezes um expediente para se furtarem a dificuldades, porque ali é defeso
empregar-se a inteligente e honesta expressão — não sabemos.”
Hewat Mackensie atestou a faculdade mediúnica diagnosticados de Sloan; para o Dr.
Koreff e para Aubin Gauthier os sonâmbulos são menos expostos ao erro que os mais
hábeis médicos. Na defesa da mediunidade diagnosticadora destaca-se Eugênio Osty,
neurologista e ex-Diretor do Instituto de Metapsíquica, mas avesso à idéia espírita, com
a sua obra “Le Diagnostic des maladies par les sujets doués de connaissances
paranormales”, produto de mais de 30 anos de observações cuidadosas.

“É evidente, diz ele, que o diagnóstico paranormal, ainda que fragmentário e falível, chega, por vezes,
a dizer a seu modo a verdade sobre tal ou qual moléstia, na qual o médica se engana.”

O fenômeno aqui é apenas mascarado sob denominações diferentes, que mal


disfarçam as suas características espiritóides: apelida-se o extranormal, o extra-sensivel,
o inconsciente, o paranormal, o subconsciente... Pois que se chame isto ou aquilo; pouco
nos importa a nomenclatura. O que se não nega é que os médiuns diagnosticam, “dizem
a verdade sobre tal ou qual moléstia, na qual o médico se engana.” (Osty).
Através da Sra. Aguellana, Maxwell resristrou as observações do espírito de um
médico, falecido havia muitos anos, que se externava em linguagem arcaica e cujos
diagnósticos eram geralmente exatos.
Em que proporções acertam nos diagnósticos e realizam as curas os médicos da terra
e os seus colegas do espaço? Suponhamos que o número de atestados de óbitos,
firmados pelas entidades vivas e pelas entidades desencarnadas alcance no gráfico as
mesmas alturas. Já não seria uma vantagem sensível em prol dos espíritos, dada a
simplicidade (nome e residência), como o comprovou e atestou, embora sintètica-
mente, o rebeldíssimo Siíva Mello, e, sobretudo o preço — gratuidade absoluta?

243
A fragilidade das coisas humanas (e os espíritos dos planos vizinhos da terra
pertencem ainda à humanidade e não levam sobre os seus colegas encarnados senão as
vantagens inerentes ao seu novo estado - uma percepção que dispensa o laboratório e os
Raios X), impede que alcancemos, no que quer que seja, a perfeição absoluta, apanágio
dos planos mais altos, onde vibram os santos, canonizados ou não.
Lembremos, a propósito, a classificação do líder católico Amoroso Lima, que
defende a dicotomia do mundo espiritual em duas falanges — a angelical e a
demoníaca. Se é dogma, calemo-nos; se é apelo à razão, raciocinemos. Se os fatores das
manifestações supranormais são, em essência, da mesma natureza fluídica ou espiritual,
se o anjo e o demônio são seres vivos individualizados e extraterrestres, por que razão,
em nome de que princípio entre um extremo e outro não se deve interpor algum tipo
intermediário, em obediência à lei universal da evolução? Os espíritos encarnados, os
homens, extremam-se nas duas modalidades estanques, a dos sábios e a dos ignorantes,
a dos santos e a dos criminosos?
As possibilidades do diagnóstico certo e da cura conseqüente, quando a moléstia é
curável, já que a nossa hipótese de trabalho assim se formulou, depende das qualidades
do médium (grau de percepção supranormal e moralidade) e dos conhecimentos e das
qualidades do diagnosticador (ciência e consciência). Apelemos para o bom senso: as
generalizações e os extremos brigam sempre com ele. Silva Mello, estamos resignado,
não dará crédito algum a este misticismo simplesmente idiota. Põe-se, voluntariamente,
dentro do dilema: ou não há espíritos, ou, se os há, devem ser semelhantes a deuses, no
mínimo tão eficientes como os da mitologia grega.
Não nos incomodemos com as ironias de Afrânio Peixoto, para quem, dentre os
médicos, só a esquerda da classe — os charlatães — é consciente, isto é, “sabe que
engana”, enquanto que os outros “sofrem a sorte comum dos doentes? são enganados;”
nem com as suas expressões brejeiras: “a gente não se cura, mas fica bem informada de
que morreu.”
O “lastro de ignorância necessária e permanente” dos mais sábios, mais sagazes e
mais finos, acarreta erros, segundo o Professo; Francisco de Castro, na proporção de
vinte por cento. Há grandes médicos que firmam diagnóstico e pres-

244
crevem terapêutica, curando facilmente os oitenta por cento, mas não se curam a si
mesmos. Há um exemplo clássico na literatura médica nacional, cuja lembrança não
constitui quebra de segredo profissional, porque foi dado à publicidade pelo maior
interessado no assunto. O nosso colega Silva Mello, que tem restabelecido a função
digestiva de meio mundo, não se livrou, conforme confissão que houve por conveniente
fazer nos MISTÉRIOS de um sintoma vulgar e muito incomodo de órgão de sua
especialidade, a hipercloridria...
Como médico que somos, excluída a pretensão de igualdade entre mim e o Professor
Silva Mello, bastar-nos-ia a elaboração ou a feitura do diagnóstico certo à distância,
para que dispensássemos a mediunilade de quaisquer outros ônus. Já seria maravilha
sobeja, porque, como profissionais, conhecemos as dificuldades tremendas da arte
médica, mesmo quando temos o doente à nossa disposição nas enfermarias, recebendo,
diariamente, as perguntas formuladas pelos nossos cinco sentidos. Os estrategistas de
profissão, os homens da militança, ao lerem, nas páginas verídicas da história, os feitos
gloriosos de Joana d’Arc, por muito escassa lhes seja a espiritualidade, como aconteceu
com Anatole Prance, hão de sentir os arrepios da admiração mais justificada.
Segundo Oscar Clark, “muitos professores de Terapêutica acreditavam tanto na ação
dos remédios como os ateus na existência de Deus.” Mas a verdade é que os médicos
curam. Muitas vezes acertam com os remédios. Às vezes, o conselho é bem simples,
mas não deixa de implicar na existência do tino clínico e da experiência.

A argúcia clínica de Silva Mello.

Um amigo nosso, ao transpor os cinqüenta anos, idade humoristicamente apresentada


por Mário Mattos como a da cataplasma, do mingau e do Espiritismo, começou a sentir
umas perturbações digestivas que o alarmavam, porque se julgava candidato a úlceras e
a cancros. Tentou alguns eupépticos, sem resultado. A neurastenia começava a
senhoreá-lo.
A meu conselho, procurou o Dr. Silva Mello que, há 25 anos, já havia conquistado
renome nas doenças do aparelho digestivo. O paciente nunca se sentiu tão
maravilhosamente esmiuçado. Múltiplos pedidos de laboratório:

245
sangue, urina, fezes (pesquisa de sangue e parasitas), radioscopia, radiografia. A luta
durou uns cinco dias e uns trezentos mil réis, como diria Machado de Assis se fora o
consulente.
De posse de todos aqueles recursos, o grande clínico o aprazou para o veredicto final.
Todos os exames resultaram negativos. O mineiro estava rijo e de cerne sem caruncho.
O Professor apurou a sua argúcia e pediu mais pormenores, mais coincidências. O
cliente, no diálogo final entabulado com o seu examinador, perguntou-lhe se a laranja
lhe poderia fazer mal.
— Absolutamente, a laranja é uma fruta saudabilíssima, cujo sumo se mistura até
com o leite, nas mamadeiras de criancinhas de peito...
— É que, o Dr. me desculpe, mas eu lhe devo dizer que passo mal, principalmente
quando chupo laranjas. Pioro no tempo delas, quando vou à minha fazenda em Minas...
— Impossível, meu amigo... Mas escuta: quantas laranjas chupa de cada vez?
— Para falar verdade, doutor, eu mesmo não sei. Chupo até não poder mais...
— Pois não chupará mais do que duas ou três de cada vez, fora das refeições.
E o mineiro sarou da úlcera cancerosa, sem ingerir uma gota de remédio.

Médicos confirmam as curas supranormais.

As curas por processos supranormais foram endossadas e testemunhadas por


Lombroso: “citemos os médiuns curadores, diz ele, de ordinário ignorantes em
Medicina e que obtêm curas notáveis”; por Lapponi, por sinal que médico dos papas
Leão XIII e Pio X, forte defensor das experiências de Crookes; por Myers, Geley,
Maxwell, Richet. Eugênio Osty afirma:

“Há curas, mesmo em casos que resistem aos esforços de um ou muitos médicos e até de alguns
altamente titulados.”

Richet disserta longamente sobre as curas observadas por Duchâtel, Warcollier e


Magnin, para concluir:

“A história do sonambulismo e do Espiritismo mostra-nos, dolorosamente, quanto a ciência oficial foi


mal inspirada, rejeitando a

246
priori, sem exame, fatos que mais tarde foi obrigada a reconhecer, fazendo uma retirada honrosa.”

Se fôssemos carrear para nossas páginas, com minúcias e comentários admirativos,


como o fez Silva Mello, quando descreveu as fraudes que leu alhures, todos os fatos
registrados na literatura espírita, concernentes às curas obtidas através de médiuns ou de
magnetizadores, o nosso livro ganharia do de Silva Mello em concurso de robustez e de
gordura.
Depois de tudo isto, apesar de tudo isto, lá nos vem ele com as suas insinuações de
desmemoriado, de obstinado, esquecendo-se de que o leitor possui a dose de bom senso
necessária — quantum satis — para pegá-lo em contradição.

Exigências, contradições e conclusões absurdas.

Soterrando debaixo de sua pesadíssima ciência germânica, muito minuciosa e


erudita, mas extremamente cansativa « inconsistente, as obras impecáveis de inúmeros
sábios que se converteram ao espiritualismo (Russel, Myers, Lodge, Boz-zano, etc.),
menospreza, outrossim, os nomes de Crookes, Richet, Maxwell, Lombroso, Osty, e
pede, e reclama, e dogmatiza, com incrível desmemória O auto desmente-se a si
próprio, quando se esquece de que os MISTÉRIOS, em resumo, são uma tentativa falha
para impugnar o trabalho experimental de sábios de verdade E expende as seguintes
razões, pelas quais lhe é impossível por a sua chancela sobre o protocolo deles, para que
mereçam crédito e acatamento:

“Por tudo isso, deve insistir-se em, que os observadores sejatn yessoag de capacidade, à altura dos
problemas que vão investigar. É uma exigência que parece bem natural e justificada, embora na prática
seja quase o contrário que tem acontecido.”

Que os manes de Crookes e Richet perdoem ao nosso Silva Mello esta desalentadora
cincada!
Para desfazer nos fenômenos de natureza supranormal, principalmente nas curas
aparentemente milagrosas, sempre dentro da habitualidade de negação pura, tritura-os
com a sua mandíbula poderosa, pulverizando-os, como o praticou com os sábios
ingênuos, os médiuns fraudadores, o discernimento e o testemunho humanos,
absolutamente imprestáveis, como se deduz das suas palavras:

247
“O testemunho, como método de estudo dos fenômenos maravilhosos, deve ser rejeitado
completamente e, pela mesma razão, não tem valor a observação individual. Em matéria dessa natureza, a
sugestão é um fator constante, que age sobretudo quando o observador, já influenciado por qualquer
espectativa acredita haver percebido um sinal do fenômeno.”

Passa a sua rasoura sobre os fenômenos e os seus observadores, apenas se


excetuando a si mesmo, sem modéstia alguma.
Esquece-se de que é médico, ajuda-se da sugestão, que assume distintivos divinos,
iguais aos que conferiu ao subconsciente. É capaz de sustentar que a ação purgativa do
óleo de rícino, a única noção certa em Medicina, no parecer do grande clínico londrino
William Gull, é puramente sugestiva...
“Seremos bastante humildes, interroga ele, para nos vermos como realmente
somos?” A mesma pergunta se pode fazer a um materialista, quando defronta um fato
que contradiz as suas convicções.

Uma esperança e uma promessa.

Louis de Broglie, membro do Instituto de França, Professor da Faculdade de


Ciências de Paris, laureado com o “Prêmio Nobel”, discorrendo sobre o futuro da Física,
que já penetrou no domínio misterioso da partícula outrora indivisível, a esfera elástica
da teoria cinética dos gases, lembra-nos que “os físicos querem agora ir mais longe e
investigar-os mistérios que se ocultam no interior do núcleo do átomo.”
A partir do momento em que Rutherford conseguiu romper artificialmente núcleos de
átomos, “bombardeando-os”, nasceu uma ramificação da ciência — nasceu a Física
Nuclear, que se apoia na Química. O progresso dessa ciência nascente vai ser uma fonte
de riqueza para a filosofia natural. Até a transmutação dos elementos, sonho frustrado
dos alquimistas, poderá realizar-se em dias vindouros.
Se os operadores, ao criarem tensões elétricas capazes de pulverizar a matéria, com
aparelhos feitos de matéria, não voarem pelos ares em alguma experiência mais
audaciosa, o mundo físico e o mundo espiritual sofrerão um impulso incomensurável,
acelerando-se, vertiginosamente, a evolução futura da civilização humana.

248
Penetrando, veladamente, nos domínios do Espiritismo, assim se enuncia o grande
físico:

“Falou-se muito, como ainda se fala, da possivel existência de fenômenos ainda mal conhecidos e que,
para muitos, estariam situados no limite da Biologia e da Física. ‘Penso, ao escrever estas linhas, nos
fenômenos que teriam interferência nas artes das varinhas mágicas, nas pesquisas “metapsíquicas” ou
ainda em radiações mal definidas, cuja emissão, segundo certas afirmativas, estaria ligada ao
funcionamento dos organismos vivos. Embora corra o risco de contrariar muitas pessoas de boa fé, devo
dizer que a existência da maior parte desses fenômenos não me parece hoje estabelecida cientificamente e
de maneira séria.”

Se o grande físico reconhece que nem tudo está isento da pecha de charlatanismo, de
ilusões e de auto-sugestões, mas que sobra alguma coisa da maior parte desses
fenômenos, seja-nos permitido lembrar-lhe a propósito aquela profunda advertência de
Pasteur, que nos traça o procedimento diante de fatos:

“II n’y a id ni religion, ni philosophie, ni atheisme, ni materialisme qui tiennent... C’est une question
de fait.”

E Pasteur foi, na opinião de Pierre Devaux, que todos subscrevemos, o gênio puro,
“o espírito admirável, porque possuía igualmente a vigilância e a subtileza de
observação, a imaginação, a intuição metagnômica, a mais surpreendente fecundidade
na concepção das experiências e renovamento das hipóteses, o ascetismo intelectual e a
vontade de praticar o bem.”
Está nas mãos do grande físico moderno, se ainda não transpôs os limites do mundo
invisível, tomar em suas mãos os fatos, por insignificantes que sejam e dar-lhes a
interpretação e o realce que merecem pela sua transcendência. Como não se acha eivado
dos fanatismos científicos que, na sua opinião, “adotaram metafísica de caráter
materialista e meca-nicista, e consideram-na como a expressão da própria verdade
científica”, assim como se coloca a cavaleiro do fanatismo religioso, chamando-se um
dos “servidores do Espírito”, sua personalidade possui todas as qualidades necessárias
para o estudo conscience do problema.
Ouçamos, ainda, a sua voz:

“De todas estas investigações, levadas a cabo em condições insuficientes de rigor, por indivíduos
umas vezes incautos (William

249
Crookes? Richet?) e outras vezes pouco escrupulosos, não me parece que se possa deduzir qualquer coisa
de definitivo e firme. Isto, porém, não quer dizer que não possam surgir um dia descobertas solidamente
confirmadas que nos dêem a conhecer, nestes domínios, certos fenômenos que ainda são para nós
desconhecidos; mas, atualmente, não me parece poder fazer-se tal afirmativa.”

Excelente plataforma de candidato à imortalidade. Que se retome o fio das


experiências dos grandes físicos do passado — Crookes, Oliver Lodge, Barret, Varley,
Tyndall, Gabriel Delanne — desprezando-se ou não as contribuições dos fisiologistas,
dos antropologistas, dos naturalistas, dos astrônomos, dos químicos, todos já
desencarnados, e que a Física Nuclear nos dê as soluções dos enigmas da Matéria e do
Espírito, ao mesmo tempo. Vamos admitir com Louis Broglie que “existe uma verdade
última para a qual, sob forma que não podemos prever, hão-de convergir um dia os
esforços dos apaixonados da Ciência e os dot servidores do Espírito.”
Enquanto, porém, não se realize o “fiat” da ciência (que se mantém, teimosamente,
orgulhosa e cega), para iluminar os fatos que possuímos, não é justo que uma criatura
sensata despreze o que se acha detido seguramente nas suas mãos, por mínimo que seja,
pelo que voeja no espaço do fanatismo religioso ou do fanatismo científico.

250
CAPÍTULO OITAVO

SUMÁRIO

A sugestão e a hipnose. A sugestão viola as


leis naturais. Os fenômenos são absurdos,
mas são reais e universais. Não compreende
nada, mas explica tudo. O ectôplasma ou
éter vitalizado. O mecanismo íntimo da
sugestão. Uma experiência de Felicia
Scatcherd ou proezas do ectoplasma.
Fotografias transcendentais. Se isto
acontecesse a Silva Mello. A psicologia de
Richet explica. Outros poderes do
ectôplasma. As oito horas de experiência de
Silva Mello. Silva Mello conversa com
madames Fraya, Detay e Briffault Um
caçador de esmeraldas maluco. Silva Mello
entrevista o médium Pascoal. Confronto de
protocolos. A mediunidade legítima.
Sócrates. Joana d’Arc. A mediunidade de
Santa Teresa.

“Não se escravize às opiniões da leviandade ou da ignorância. Incitatus, o cavalo de Calígula, podia


comer num balde enfeitado de pérolas, mas não deixava, por isso, de ser um cavalo.”

ANDRÉ LUÍS

“Nossos amigos encarnados, muitas vezes, acreditam que somos meros adivinhos e, pelo simples fato
de nos conservarmos fora da carne, admitem que já somos senhores de sublimes dons divinatórios,
esquecidos de que o esforço próprio, com o trabalho legítimo, é um:i lei para todos os planos evolutivos.”

ANDRÉ LUÍS

“ . . . Os companheiros de ideal, corporificados na Crosta da Terra, vão compreendendo agora que o


fenômeno em si é tão rebelde quanto o rio encachoeirado que rola a esmo, sem comportas, sem
disciplina.”

ANDRÉ LUÍS

“O hipnotirmo é tão velho quanto o mundo e é recurso empregado pelos bons e pelos maus, tomando-
se por base, acima de tudo, os elementos plásticos do perispírito.”

ANDRÉ LUÍS

251
CAPÍTULO VIII

A sugestão e a hipnose.

O mal-entendido dos sábios materialistas, dos que, como Silva Mello, não se julgam
com “o direito de transformar a nossa ignorância em sobrenatural”, mas se arrogam o
direito mais absurdo de transformar o psíquico em secreção do material, começa quando
aplicam a inteligência ao estudo das coisas que os cercam, analisando, comparando,
induzindo, deduzindo, sobretudo cunhando neologismos, completamente alheios ao
instrumento misterioso — a razão — de que são péssimos e indignos usufrutuários.
Do de que menos se lembram é do cogito, ergo sum. As miseráveis frinchas dos seus
sentidos limitados e imperfeitos não captam quase nada das forças desconhecidas que os
envolvem de todos os lados. Um simples galvanômetro a mais já registra a presença de
elementos elétricos e magnéticos, que vibravam fortemente em torno deles, sem que os
percebessem.
Eseapam-se-lhes ao entendimento as causas iniciais e profundas de todos os
fenômenos, dos quais são simples e neutras testemunhas. Um corpo pesado, metálico,
inorgânico, — o ímã — emite, na sua obtusidade, uma força invisível aos seus sentidos,
força que já se nos afigura dotada de iniciativa. Ao defrontarem um dos muitos milagres
que os assoberbam — a célula viva — nas mesmas proporções em que emergiu do
fundo das águas oceânicas, quedam-se mudos e boquiabertos.
Nem sequer o segredo de um zoófito se lhes torna familiar; mas sobra-lhes a
pretensão estulta de explicar as complicações crescentes dos organismos pluricelulares,
através dos estágios sucessivos da evolução, para terminarem na complexidade máxima
da consciência humana. Cabe-lhes o papel secundário de simples máquinas
registradoras de fenômenos: nivelam-se ao gato que vive dentro de uma biblioteca, na
figura idealizada pelo espiritualista William James, ou à borboleta, que se introduziu por
descuido no cenário de um teatro, na comparação de um materialista em trânsito
acelerado para a espiritualidade, isto é, de Richet.

252
Presenciam as evoluções da fantasmagoria planetária, mas não podem explicá-las.
Surpreendem, por exemplo, o feto humano, naquele período em que “não se distingue
Laplace de uma tartaruga”, mas não sabem por que uns grãozinhos fecundados se vão
transformar “ora em carvalho, ora em elefante, ora em Miguel Ângelo.”
A incompreensão justifica-se, mas o que se recusa é a mistificação da ignorância
presunçosa que discorre magistralmente sobre o que não pode penetrar. Na realidade,
não conhecem o mecanismo de coisa alguma e rejeitam todas as hipóteses
espiritualistas. Ignoram o mecanismo da vida, da memória, do sono, do subconsciente,
das precocidades, do sonambuíismo, da hipnose e da sugestão.
As palavras que são forçados a usar, nos seus arrazoados metapsíquicos, a alma, os
fatores psíquicos, etc, são meros sons articulados, são funções que comparam à bile
secretada pelo fígado (Carl Vogt), mas das quais não nos forneceram a composição
química ou a estrutura.
Não desvendaram ainda os mistérios do animismo e arrojam-se a construções
ultrametafísicas, atribuindo sempre a preeminência ao corporal, ao material, ao
somático... Começam a admitir hoje, que o psíquico sobrepuja o somático, que a alma
domina as funções orgânicas, que uma sugestão forte anula todas as relações existentes
entre um órgão e a sua função.
Continuam, todavia, a pregar que “a ciência tem outras exigências e, antes de tudo,
não se pode deixar levar por ilusões.” Ao fim da longa evolução da vida no planeta,
observam os fenômenos mais probatórios da prioridade do psíquico sobre o somático. E
obstinam-se na crença de que uma célula bruta gerou de si mesma o seu fluido vital.
Se o mistério existe na simplicidade da célula, na complexidade do cérebro humano
assume as proporções de um enigma gigantesco. Se tudo é matéria, se o protoplasma é
que condiciona a vida celular, se o psiquismo é o produto do soma, cujos componentes
orgânicos e inorgânicos podem ser medidos ou pesados, se o espírito é efeito, é
secundário, é resultado, dependendo diretamente da função de órgãos e de glândulas,
como se pode inverter a corrente multimilenar por meio da sugestão e do hipnotismo,
recursos terapêuticos, medicamentos de que ninguém conhece as fórmulas químicas?
Das conclusões otimistas de Silva Mello se deduz que a sugestão cura tudo,
intromete-se em tudo, é capaz de tudo. Como? Por quê? Por que mecanismo? Onde a
prioridade dos órgãos físicos, se uma força (?) invisível pode dobrá-los,

253
inutilizá-los, transtorná-los, pela simples interferência da vontade (?), sem contato e à
distância? Qual é o substrato orgânico onde este poder se oculta?
Silva Mello confessa, neste ponto, lealmente, a sua ignorância; pena é que desta não
extraia sempre o corolário natural:

“Aliás, diz ele, se a sugestão, por si só chega a explicar o desenrolar de muitas manifestações
apresentadas, permanece ainda o seu mecanismo íntimo de ação lovve de qualquer interpretação segura
e garantida.”

Muito bem. Da hipnose, do subconsciente, do desdobramento da personalidade, da


telepatia, da clarividéncia, etc., igualmente, não conhecem os materialistas o mecanismo
íntimo.
Para penetrarmos a intimidade da vida e todas as suas manifestações normais e
supranormais, habituais e inabituais, temos que, como Prometeu, filho do Titã Japeto e
irmão de Atlas, roubar o fogo aos céus para animar o limo da terra, isto é, roubar aos
céus uma substância semi-espiritual, que na célula se chama idéia diretriz e no homem
se chapa perispírito.
Sem essa hipótese de trabalho, tão necessária como a do éter cósmico que enche os
espaços interplanetários, ou como a lei da gravitação de Newton, nosso frágil
entendimento não penetrará nada, apenas se distrairá com a variedade de formas e de
cores; eleger-se-á arquivista e dispensará grande atenção somente aos seus fichários.
Quem não decifra o mecanismo íntimo de um fenômeno fica na situação da criança
ou do selvagem diante das máquinas que não pode compreender; copia o basbaque que
atribui o andar do trem de ferro ao giro das rodas, mas desconhece a força expansiva do
vapor que gera e desencadeia o movimento dos cilindros.
Ao epitomar as grandes possibilidades da sugestão no tratamento de várias
enfermidades, Silva Mello tomou-se de tais amores por ela que quase se desquita da
Medicina.

“A parte essencial do tratamento, ensina ele, parece depender da capacidade do médico em fazer a
sugestão e a receptividade do médico em recebê-la.”

Comparada com os agentes terapêuticos usuais, as mais das vezes inoperantes ou


inócuos, a sugestão realiza milagres inacreditáveis, apropriados a satisfazer a ânsia de
sobrena-

254
turalidade de que vive cheio o homem. Principalmente nas moléstias da pele, devido,
talvez, ao fato de, embriologicamente, pele e sistema nervoso serem irmãos. As
verrugas, segundo Lick, por intermédio de ação puramente psíquica, perdem as suas
correlações com a substância matriz; desnutridas pela atrofia dos vasos sangüíneos,
desaparecem sem deixar vestígios. Bonjour e Bloch curaram centenas de casos, por
meio de pincelagens “com qualquer coisa”, ou com a simples trepidação do pantostato,
sem passagem da corrente. A Policitemia mieloblástica, a tuberculose óssea e articular
beneficiaram-se com a hipnoterapia. Todos os órgãos da economia, coração, pulmões,
fígado, estômago, intestinos, genitalia, tudo depende diretamente do psiquismo do
indivíduo, oferecendo excelente campo de ação para os tratamentos psicoterápicos.
Goldscheider e o Professor During, de Viena, preferem a psicoterapia na terapêutica
da hipertensão arterial. Fowler registrou alguns “tumores neuróticos” da mama,
condenados à cirurgia, que se curaram psicoterapicamente. Sob a ação exclusiva do
hipnotismo, partos e operações se realizaram sem dores, nas mãos do Dr. Jules Cloquet.
Esdaile executou, sob analgesia obtida por passes magnéticos, mais de 600 grandes
intervenções cirúrgicas. Sob anestesia hipnótica, extirparam-se apêndices.
Silva Mello testificou, em sua clínica particular, o trabalho de uma magnetizadora,
que procedeu “como se estivesse na fase primitiva do magnetismo animal, valendo por1
uma autêntica contemporânea de Mesmer.” Julgava-se possuidora de forças estranhas,
por meio das quais influenciava o doente, passando fluidos do seu corpo para o dele. No
caso, os resultados foram imediatos e decisivos Ele inclui a última observação nos
domínios da sugestão e apela para o “componente psíquico”, que realiza a cura das
doenças.
Acompanhamos pessoalmente a atividade de um magnetizador, junto de doentes
pertencentes a famílias de médicos, zombeteiros, descrentes, mas que se tiveram de
render à evidencia, quando se livraram de dores cancerosas para as quais os
entorpecentes se tornavam progressivamente inoperantes. O magnetismo curador nada
tem de comum com a sugestão, a menos que o doente queira sugestionar-se.

“O próprio câncer, continua Silva Mello, pode retroceder por sugestão, como tivemos ocasião de
observar pessoalmente, durante tratamento realizados por A. Osório de Almeida, quando, para ourá-lo,
empregou oxigênio em alta pressão.”

255
Por meio da sugestão ou dos fatores psíquicos, alteram-se a secreção do leite pela
mama, as funções renais e intestinais, o ciclo menstrual, o próprio metabolismo basal;
pela hipnose, o paciente não ouve barulhos violentos, sente o cheiro intenso da amônia
como se fosse um perfume delicioso, ou tolera, sem qualquer reação à dor, descargas
elétricas, cuja voltagem desencadeia, normalmente, sofrimentos intoleráveis.

A sugestão de beber grande quantidade de líquido, em hipnose profunda,


acompanha-se de diurese abundante/correspondente ao volume fictício de líquido
ingerido. A sugestão hipnótica dá nascimento a furúnculos, eczemas, úlceras, segundo
Brünnemann. Markus e Sahlgren conseguem moderar, pela hipnose, a ação de certos
medicamentos, como a adrenalina, a pilocarpine e a atropina, cujos efeitos sobre o
organismo são bem conhecidos e fáceis de verificar. A sugestão de que se vai fazer a
aplicação de um ferro candente, provocou sinais de queimadura, deixando até cicatriz
(Jendrassik). Como se vê, não era tão absurdo Agrippa Nettesheim, para quem o
homem, pela sua simples força de vontade; poderia “criar chifres, quando se preocupava
por demais com uma corrida de touros.” Sob a ação do hipnotismo, cessam as atividades
orgânicas e salientam-se as sensações sugeridas.

“O indivíduo cavalgará uma cadeira como se fosse um cavalo; andará de quatro pelo chão, latindo
como um cão; encher-se-á de pavor, vendo por alucinação, uma serpente, um urso, qualquer outro animal
feroz.”

A sugestão viola as leis naturais.

Eis os fatos. Que provam êles? Que há paralelismo constante, absoluto, entre o
pensamento e a função de um determinado cérebro? Não. Que a lei da correlação entre o
órgão e sua função não possui exceções? Não. Que uma função pressupõe sempre a
existência de um órgão material? Não. Que os fenômenos fisiológicos se processam
sempre dentro de um determinismo imutável? Não. Que o espírito vive prisioneiro do
corpo, o qual lhe impõe o seu metabolismo, as diferenciações dos seus tecidos e as
atividades de suas células? Não.
Bem analisado o paciente sob a sugestão hipnótica, veremos que a influenciação não
se faz diretamente sobre os órgãos ou sobre as células, isto é, sobre o corpo físico. A
sugestão desata, por alguns momentos, os laços naturais entre

256
este e o seu perispírito, conivente na experiência. Pela sua natureza e pela sua função
normal de intermediário entre o espírito e o corpo, ele pode receber a sugestão e simular
atos, tomar atitudes, realizar ações que, de outro modo, se tornam incompreensíveis,
porque o corpo físico, em seu conjunto e nas suas unidades celulares não é dotado da
mesma maleabilidade e está escravizado a leis naturais que governam as suas
atividades.
O perispírito é mais livre, é mais independente, é mais capaz. Se não concordarmos
em que a sugestão não atua diretamente sobre as células, mas sobre as idéias diretrizes,
não poderemos dar as razões pelas quais, sob a ação da hipnose, tudo acontece somo se
as leis da fisiologia estivessem inteiramente revogadas. Não se pode admitir que uma
célula trabalhe, ao mesmo tempo, para si própria e para outrem, não-somente
executando tarefa dobrada, senão discordante ou contrária à sua tarefa específica.
Em virtude de sua função normal o perispírito foi chamado por Cudworth de
mediador plástico. E essa plasticidade é sensível à sugestão e à hipnose. Segundo os
fisiologistas, aos seres vivos se aplicam as mesmas leis da Mecânica, da Física e da
Química, porque, nos seus recessos, se passam fenômenos da mesma naíureza. Vejamos
alguns exemplos:

A lei da conservação da matéria, de Lavoisier, traduz-se aqui na biologia pela


equivalência (dose e peso) entre as substâncias eventualmente ingeridas e as eliminadas:
a sugestão, obrigando, psiquicamente, o indivíduo urinar o que não ingeriu, viola
evidentemente essa lei — há um saldo no balanço a favor do urinol.
Pela lei da conservação da energia, o seu estado potencial se muda em energia
cinética, havendo uma equivalência entre o trabalho mecânico e o calor; é constante,
invariável, a quantidade de energia contida num sistema de corpos, em suma, é
impossível o motu continuum: a sugestão e a hipnose são energias acrescentadas ao
sistema, são energias que lhe são estranhas e que, não obstante, atuam dentro dele,
desencadeando energias induzidas (trabalho muscular, sudorese, calor),
desequilibrando, por conseguinte, um dos termos da equação. Hirn, Chaveau, Rubner
Laulanie, Atwater, todos os que se deram ao trabalho de investigação (calorimetria, etc),
tomando como pedestal a presença dessa lei da conservação da energia, ficariam com as
suas tabelas completamente anarquizadas.

257
A fisiologia nos ensina que as sensações são resultantes da percepção de estímulos
externos pelos centros nervosos.
Os excitantes podem ser mecânicos, físicos ou químicos. A corrente nervosa ou o
influxo nervoso obedece às leis da condução isolada (cada fibra conduz o seu influxo,
que não se propaga): condu-lo em duplo sentido, para a periferia e para os centros — lei
da condução em duplo sentido — com velocidade que Helmholtz determinou,
extinguindo-se nas zonas anestesiadas por um narcótico (condução com decremento),
recuperando a intensidade ao alcançar a zona normal. A sugestão e a hipnose
prescindem dos excitantes, criam algias e anestesias, ao gosto do experimentador. Dir-
se-ia que ignoram a existência dos atos reflexos, igualando na mesma inutilidade os
reflexos êxtero-ceptivos (exteriores), os intero-ceptivos ou endógenos e os próprio-
ceptivos, ou reflexos de reflexos, originados de contrações musculares.
Na base do psiquismo superior, estão os reflexos condicionados de Palow, aos quais
se devem a mobilidade e a maleabilidade dos centros nervosos. Aqui, não-sòmente o
fisiologista, senão também o psicólogo, assiste a subversão das conclusões de infinitas
experiências do passado, como se as células nervosas perdessem, por algum tempo,
todas as lembranças acumuladas, para se curvarem diante de um influxo nervoso
estrangeiro, que as obriga a atitudes, a sensações, a representações tea rais, dramáticas
ou burlescas. O indivíduo despersonahza-se, transfigura-se, como se um espírito alheio
inteiramente ao seu o habitasse em passageira obsessão.
A filosofia materialista, a do paralelismo absoluto entre o órgão e a função (Carl
Vogt, Haeckel, Büchner, Moleschott, etc), não podendo conceber um pensamento ou
uma idéia sem o trabalho correspondente das células cerebrais, não percebe, digamos a
palavra justa, no seu fanatismo, que a fenomenologia da sugestão e da hipnose, se não é
propriamente espiritóide, porque esta se apresenta com caracteres próprios e específicos,
destacando-se o da espontaneidade e o da inteligência individualizada ou
personalidade, revogam, desmentem, destroem, arrasam as suas teorias e as suas
hipóteses de trabalho.
Vimos que a sugestão e a hipnose baralham, contrariam, anulam as leis fisiológicas
que regulam o metabolismo celular e a especificidade funcional dos órgãos. O
fisiologista e o biólogo, diante de tamanhos absurdos deve ficar naquela atitude
desesperada da galinha (para alguma coisa

258
nos serve a biopsicologia de Silva Mello), quando vê os patinhos mal saídos dos seus
ovos, dos ovos que chocou amorosamente, atirarem-se à superfície das águas mais
próximas.
As forças miraculosas da sugestão e da hipnose engendram enfermidades e as
desmancham. Quais? Todas, desde as verrugas até o câncer. Provocam dores e as
anestesiam, forçam um órgão a trabalho ou o inibem. Fazem aparecer cicatrizes na pele,
com a simples imaginação de um ferrío em brasa. Põem o cidadão mais erecto e mais
respeitável na postura humilhantíssima de um quadrúpede.

Os fenômenos são absurdos, mas são reais e universais.

Comparem-se todos estes “milagres”, todas estas “extravagâncias”, todos estes


“absurdos” com a hipótese figurada por Silva Mello, a de que “um elefante possa voar
pelos ares ou uma vaca pôr um ôvo de galinha” e ver-se-á que o desejo do sábio não
tarda a realizar-se. Colhamos a sua fantasia com as expressões pitorescas com que foi
enunciada:

“Ninguém acredita que um elefante possa voar pelos ares ou uma vaca pôr um ôvo de galinha, caso
não seja por qualquer ato de mágica ou astúcia ou quando nos tornamos vítima de alucinações. É aí que se
encontra o ponto central da questão, do qual não podemos fugir.”

Os sábios que presenciaram os absurdos da sugestão e da hipnose, contrários às leis


que descobriram, e que constituem o alicerce de suas filosofias, não atinam em que,
dessa vez, não-sòmente faliu o paralelismo constante e absoluto quê decretaram para as
manifestações psicofisiológicas, as atividades invisíveis, transcendentais e
metapsíquicas, senão também que se quebraram rudemente, corretamente,
objetivamente, as imposições absolutistas do paralelismo sômato-fisiológico, do
automatismo fisiológico da vida vegetativa (circulação, digestão, etc), independente da
nossa vontade e da nossa consciência!
Imagine-se a atitude mental do grande Newton se, depois de haver sustentado a lei da
gravitação, tomasse conhecimento de um tipo de maçã que caísse “para cima”!
O perispírito, graças à sua natureza (matéria quintessenciada) e à sua função
(mediador plástico), está acostumado a receber e a transmitir sugestões entre o imaterial
(alma) e o material (corpo físico). Sob a ação da sugestão e da hipnose, ele aquiesce na
execução das ordens recebidas e pode

259
fazê-lo, porque é também um corpo, um modelo etéreo ou fluídico, uma cópia do corpo
material.
Na bilocação ele se afasta do corpo físico, que permanece inerte e o substitui
integralmente. Na materialização, ele é a idéia diretriz, o modelo ideal, que se serve do
ectoplasma para realizar as suas criações.
A sugestão e a hipnose revelam fatos maravilhosos, que advogam a presença em
nosso ser de alguma coisa mais, além do metabolismo celular.
Se o automatismo psicológico (Janet, Grasset, Flournoy) oferece aos nossos
adversários o apoio para desprezarem um agente supraterreno, na gênese dos fenômenos
verdadeiramente espíritas, a sugestão e a hipnose lhes roubam — o que é mais grave
para a sua ciência — a base sobre a qual se processam os fenômenos biológicos e
fisiológicos: o automatismo orgânico. Os órgãos entram em conflito, desobedecem ao
sistema nervoso que perdeu a consciência de si mesmo, entrechocam-se em confusão,
oferecendo-nos um espetáculo semelhante ao que se observaria nos espaços infinitos, se
as leis de Kepler falhassem por um momento.
Na escala dos absurdos aparentes, convenhamos, se os fenômenos metapsíquicos,
que Silva Mello resume nos seguintes períodos, não ombreiam com as exceções
fantásticas que a sugestão e a hipnose intrometem no paralelismo organofisiológico,
devem ocupar um lugar bem mais inferior:

“William Crookes viveu meses vendo um espírito que se materializava e desmaterializava todos ôs
dias: Charles Richet viu um guerreiro de capacete nascer espontaneamente do corpo de uma moça;
Botazzi, um dos mais eminentes sábios italianos, viu surgir do corpo de um médium pernas, mãos e até
cabeças materializadas, que executavam movimentos, tocavam instrumentos de música, transportavam
objetos, etc. E diversos sábios italianos de renome, como Lombroso, Morselli, Venzano e outros
confirmaram tais observações e não tiveram dúvidas em assinar documentos comprovantes da sua
autenticidade. Lombroso, que fora cético e incrédulo, viu materializar-se a sua mãe morta, com que pôde
conversar; d’Arsonval, o ilustre sábio francês, verificou que um médium podia fazer variar à vontade o
peso de determinados objetos; o guerreiro fantasma de Richet, coberto de seu capacete, respirava como
qualquer homem normal, como foi verificado pelo emprego da água de barita; tanto êsse fantasma quanto
a famosa Katie King, de Crookes, possuíam órgãos humanos normais, o coração que pulava, o pulso que
se sentia bater, o sopro da respiração, o calor da pele, os movimentos dos membros e tudo aparecia
subitamente, sob os olhos do espectador, como materializações de um espírito.”

260
Não compreende nada, mas explica tudo.

As exclamações que Silva Mello solta ao ar, nas derradeiras páginas dos seus
MISTÉRIOS, tanto se aplicam aos fenômenos supranormais do Espiritismo cristão,
como aos desmentidos formais que a sugestão e a hipnose opõem às leis inflexíveis da
fisiologia materialista, realizando, na presença de todos, os “milagres” mais
estapafúrdios.
Os fatos que se passam inter-vivos são fenômenos anímicos, que somente se tornam
explicáveis com a adoção da hipótese do perispírito, como a queda da maçã se esclarece
com a hipótese da gravitação e a presença de efeitos eletromagnéticos com a existência
do éter cósmico, que também jamais foi visto, pesado ou captado pelos instrumentos
mais engenhosos da técnica científica. Nenhum dos fenômenos sugestivos ou hipnóticos
jamais disse, espontaneamente, que falava em nome de um espírito desencarnado: são
todos mudos e, quando falaram, repetem sugestões do hipnotizador, semelhando apenas
o que se observa no sonambulismo espírita, em que o médium encarnado cede o seu
instrumento físico a um desencarnado.
A falência da teoria do paralelismo psicofisiológico diante dos fatos da
fenomenologia espírita e a anulação do paralelismo sômato-fisiológico pelo poder da
sugestão e da hipnose, dão, como resultado final, maior amplidão à teoria do perispírito,
de que Claude Bernard teve a intuição, quando propôs a idéia diretriz ou o modelo ideal,
para esclarecer um pouco mais o fenômeno da vida celular, e de que nos deram os
espíritos algumas provas materiais, espontânea e universalmente.
A sugestão e à hipnose só lhes resta a inscrição de seus fenômenos anímicos na
hipótese da existência do perispírito, que se lhes torna tão necessária e tão útil, como a
do éter cósmico para os físicos e os astrônomos. Então animismo e Espiritismo, como
duas forças da mesma natureza, mas de origem diferente, somar-se-ão numa só
resultante.

“Tem-se dito, insinua Silva Mello, se eles (os fatos registrados por Crookes, Richet, Bottazzi,
Lombroso D’Arsonval) não forem vítimas de fraudes (daí a fúria com que Silva Mello se lhes agarra),
então assistiram a milagres como só existiram nos pri-, meiros dias da criação, quando Deus tirou Eva da
costela de Adão.”

Já sabemos que a palavra Deus eqüivale, para ele, a simples figura de retórica. Silva
Mello não acredita na

261
costela de Adão, ao contrário daqueles fanáticos que impugnaram as dissecções de
André Vesálio (1514-1564), porque este não pôde confirmar a fábula da criação de Eva,
afirmando que o número de costelas é o mesmo de cada lado, no tórax humano
masculino ou feminino, sendo obrigado a fugir para não cair nas garras de seus
perseguidores.
Nós também não acreditamos na versão bíblica, tomada ao pé da letra; mas que o
mundo é obra de um Deus, ou que um Deus é imanente nele, é hipótese que a maioria
dos sábios ainda prefere. Na vida planetária tudo é maravilha, tudo é assombroso, tudo é
transcendental; a única divisão que se pode estabelecer entre os “milagres” é que uns
são habituais, já não nos excitam a imaginação, outros são inabi-tuais, por enquanto,
como as manifestações espíritas, que a ciência um dia reconhecerá, unanimemente.
Com o seu gênio utilitarista de médico que, acima de tudo, quer curar os seus
clientes, para deles extrair a gratidão, a admiração e o... dinheiro, com que se compram
os melões e tudo o mais, aqui neste “pífio planeta”, aconselha-nos, veementemente, que
nos apoderemos da sugestão e da hipnose, antes que os charlatães o façam. Para ele, a
alma (?) e os componentes psíquicos (?) têm as suas funções, algumas bastante úteis:

“A medicina psico-somática dos nossos dias, que sempre existiu para os grandes médicos de todas as
épocas, tem posto em relevo tal problema, mostrando quão poderosamente, é o corpo influenciado pela
alma.”

Que alma seja essa ele não o sabe. Antes de tudo, é um grande curador, por isso
confessa, sempre com aquela proverbial sinceridade:

“No final, o que se quer é curar o doente e, para isso, todos os recursos são bons e aceitáveis, desde
que possam conduzir ao fim almejado.”

Eis o a que reduz todos os trabalhos da metapsíquica, a que alguns sábios de verdade
dedicaram dezenas de anos, até a data em que se dignou estudá-los. Constituiu-se,
ungiu-se, elegeu-se, proclamou-se o marco inicial da nova era. Daqui por diante se
grifará, a citação de qualquer obra do gênero com as iniciais A. S. M. ou P. S. M. —
ante Silva Mello e post Silva Mello.

262
O ectoplasma ou éter vitalizado.

O fator real da convicção espírita, ao contrário das atoar-das dos que, na fase de
evolução por que estão passando, não podem alcançar os primeiros degraus da
espiritualidade, não é o misticismo enfermiço e aéreo, muletas para caminhar na vida
planetária com menor sofrimento e maior resignação, mas o estudo e a observação do
espírito humano, sob a dupla modalidade do animismo e do Espiritismo, cuja existência
e cuja força se nos revelam de mil maneiras.
Se os seus postulados científicos coincidem, em grande parte, com o esiritualismo
multissecular das religiões que sempre defenderam a imortalidade e a sobrevivência,
isto prova, somente, que a intuição dos iniciados caminha adiante da observação e da
experiência, como a luz do farol que ilumina, à distância, o caminho futuro da
locomotiva.
Não se trata de uma construção filosófica arquitetada nas nuvens, aprioristicamente,
sem fundamento e sem objetividade. A proclamação da existência de uma substância
ectoplásmica, o mysterium magnum de Paracelso, que possui todas as propriedades do
éter cósmico, ao qual o Criador misturou o quantum satis de sua substância divina,
tornando-a vitalizada, substância que, como já o advinhara Taine, existe em nosso corpo
— um polipeiro de células — sob a forma perispiritual de um polipeiro de imagens,
explica como e por que, sob as nossas vistas, se repete, a cada momento, em todos os
seres vivos e dentro de nós mesmos, o milagre contínuo da Criação.
Enchendo o espaço infinito, onipresente, livre da lei da gravitação, tudo penetrando e
sem opor resistência ao movimento dos astros, há o éter cósmico, origem e fim de todas
as Formas. Em dado momento, este éter imanente na matéria inorgânica tornou-se
vitalizado, adquiriu propriedades novas, que só lhe podiam ser concedidas por um Ente
que as possuísse e fez-se o modelo ideal, a idéia diretriz, dotada de plasticidade e de
capacidade de auto-organização, regulando a origem das espécies vegetais e animais.
Entre as nebulosas mediúnicas do éter vitalizado ou ectoplasma e as nebulosas
astronômicas do éter cósmico, Paulo Le Cour descobriu analogias surpreendentes nas
formas esfe-roidais e espiraloidais, confirmando a tese sustentada por Carl Du Prel, por
Myers e Gustavo Geley.

263
É o ectôplasma produto da desmaterialização da matéria, é “matéria protopláamiea
mais evolvida e sutil, modelada pelo psiquismo”, é “construção nova, antecipação na
evolução, não possuindo, naturalmente, a resistência das formas que se estabilizaram
por efeito de uma longa vida e se mostra pronta a desfazer-se.” (Pietro Ubaldi).
Do nosso corpo transuda uma substância dócil, que cede à nossa vontade
organizadora, executa as idéias formuladas verbal ou mentalmente pelos circunstantes
ou pelo próprio médium. É vaporosa, alvíssima, luminescente, ao mesmo tempo viva e
amôrfa, sensível, dotada de movimentos coleantes como o dos reptis. Organiza-se e
exterioriza-se dentro do maior polimorfismo, aparecendo e desaparecendo, como
relâmpago. Possui instinto de conservação semelhante ao dos invertebrados. Temente
aos contatos, está sempre pronta a ocultar-se e a reabsorver-se; oferece certa resistência
ao tato, comparável à clara de ovo; sua temperatura é inferior à do ambiente; tem
vocação irresistível para se organizar rapidamente em formas vivas. É o ectôplasma de
Richet, é a matéria-prima viva e exteriorizável, capaz de ser plasmada pelo poder da
Idéia e do Pensamento, cujos segredos estão nas mãos de Deus.
Quando usava os raios ultra-violetas, para se garantir contra fraudes, Osty
surpreendeu o ectôplasma na sua fase inicial, ainda invisível ao olhar humano;
Schrenck-Notzing conseguiu fazer-lhe a análise química, em sessões com Marta
Béraud.
Na versão simplesmente ridícula de Silva Mello, o ectôplasma, tão cabalmente
estudado e analisado por alguns experimentadores, é a mistificação de um tecido
finíssimo, quase impalpável, que cabe, em grande quantidade, na cárie de um dente, nó
conduto auditivo externo, quando não é regurgitado, na hora conveniente, pelo
médium...

“Há no ser vivo, diz Geley, um dínamo-psiquismo que constitui a essência do “eu”, e que não se pode
ligar ao funcionamento dos centros nervosos. Esse dínamo-psiquismo essencial não é condicionado pelo
organismo, mas, muito pelo contrário, tudo se passa como se organismo e funcionamento cerebral fossem
por ele condicionado.”

Um conjunto harmônico de provas e de investigações, realizadas tanto por adeptos


como por adversários da hipótese espírita, tem confirmado sempre a existência da “idéia
diretriz”, entrevista por Claude Bernard e colocada por ele na base do seu sistema
fisiológico.

264
A “idéia diretriz” de Claude Bernard é mais do que a entidade metafísico-biológica: é
uma força centralizadora e diretora, que preside às reações químicas do meio orgânico,
ao desenvolvimento embrionário e pos-embrionário, mantém a personalidade e promove
as reparações orgânicas; é um organismo oculto que a dissecção anatômica não
identifica, “é o forro do organismo vivo”, na expressão de Durand de Gros, “se o forro
não é ele próprio”.
Sob a ação da nossa vontade consciente, sob o poder do nosso pensamento criador,
aqui na vida planetária e, mais ainda, na erraticidade, a idéia diretriz evoluída para o
perispírito se objetiva na sugestão hipnótica com tamanho realismo que, segundo Binet
e Fere, se vai submeter ao império de todas as leis físicas.
Quando, por exemplo, ordenamos a um hipnotizado, que acompanhe o vôo de um
pássaro que ora se afasta e ora se aproxima, as pupilas se lhe dilatam até o dobro do
diâmetro normal; o objeto imaginado é visto exatamente como se estivesse presente e
daí a acomodação da pupila, de acordo com as leis que regulam a visão de um objeto
real. Se utilizarmos um binóculo, a imagem alueinatória aproxima-se ou afasta-se,
quando se coloca diante dos olhos do paciente a ocular ou a objetiva. Dando-se-lhe um
espelho, tudo se passa como se a imagem fosse real.
O Dr. Parinaud, chefe da clínica oftalmológica das enfermidades nervosas, na
Salpetrière, afirmou que “a alucinação de uma côr pode desenvolver fenômenos de
contraste cromático, de natureza idêntica e mesmo mais intensa do que os produzidos na
percepção real da mesma côr.”
As maravilhas da sugestão e da hipnose, a ideoplastia, a materialização, a fotografia
das imagens mentais (escotografia), obtida por Darget, Albert de Rochas, Felicia
Scatcherd, James Coates e outros, são fenômenos que se tornam incompreensíveis se
excluirmos as possibilidades organizadoras e plásticas do pensamento, que se
materializa e se objetiva em imagens visuais, auditivas, táteis, olfativas, gustativas, por
intermédio do ectoplasma e do perispírito.

O mecanismo íntimo da sugestão.

Silva Mello enumera as prodigiosas façanhas da sugestão, mas não se dignou de nos
dar a explicação do seu mecanismo íntimo. Admitido o poder ideoplástico do
pensamento humano, que atue sobre o éter vitalizado ou ecto-

265
plasma, que todos nós possuímos, podemos compreender por que razão se realizam
constantemente “milagres como só existiram, diz Silva Mello contrariadíssimo, nos
primeiros dias da criação, quando Deus tirou Eva de uma costela de Adão.”
Gustavo Geley, no seu livro famoso “Do Inconsciente ao Consciente” satisfaz o
nosso desejo de ver além das formas materiais das coisas:

“Os fenômenos de estigmatização, de modificações tróficas cutâneas por sugestão, não passam de
fenômenos elementares de ideoplastia, infinitamente mais simples, posto que da mesma ordem, que os
fenômenos de materialização.”

As curas ditas miraculosas são fruto da mesma ideoplastia, orientada por sugestão ou
auto-sugestão, num sentido favorável às reparações orgânicas e concentrando em tempo
dado, nesse sentido, toda a potencialidade do dinamismo vital.
É preciso notar aue a força ideoplástica subconsciente, reparadora, é muito mais ativa
nos animais inferiores do que no homem, e isto indubitavelmente porque, neste último,
a função cerebral avassala e desvia, a seu Proveito, a maior parte da força vital.
Não há nenhum milagre no retorno acidental à organização humana, de ações
dinâmicas e ideoplásticas, que constituem regra na base da escala animal. Os fenômenos
ãe mimetismo tão uniformemente freqüentes nos animais, quanto misteriosos no seu
mecanismo, também se podem explicar pela ideoplastia subconsciente.
Eis até onde pode chegar a ciência espiritualista, na mesma ocasião em que os
“sábios” materialista, na presença incômoda de tais mistérios, reúnem-se em concílios,
multiplicam as hipóteses que agravam o enigma e acabam, vitoriosamente, inventado
uma nova palavra extraída do grego para acobertar a sua ignorância.

Uma experiência de Felicia Scatcherd, ou proezas do ectôplasma.

Felicia Scatcherd, citada por Bozzano, “investigadora pertinaz que praticou a


radiografia, a fotografia transcendental e a escotografia (fotografia do pensamento)
durante uns 40 anos”, presenciou as seguintes manifestações

266
do eetoplasma (Light, 1921, págs. 809-810), por intermédio da sensitiva Eva Carrière:

“... Ainda estávamos conversando, quando, de repente, vimos aparecer no assoalho abundante massa
de substância, cerca de 18 polegadas distante e à esquerda da cadeira da médium. Substância era, essa, de
alvura extraordinária e ligeiramente luminosa. De mim para mim, pensei: “como se pode produzir
semelhante coisa? Quem sabe se essa substância está ligada à médium? E o controle da médium logo
respondeu à minha pergunta mental, dizendo: — Não háligações quaisquer; pode passar a mão entre a
substância e o corpo da médium.” Assim o fiz, sem inconvenientes.
Depois, coloquei um lenço branco, perfeitamente limpo, ao lado da substância, a fim de lhe avaliar a
alvura e verifiqueei que o lenço me parecia antes cinzento, comparado à substância misteriosa. Coloquei-
me à feição de poder tocar a substância sem ser vista, mas, quando estava a pique de o fazer, todo o corpo
da médium se contor-eeu em convulsivo espasmo, e o controle exclamou: — Não me toque, não me toque
porque me mataria!” Arrependida da tentativa inconsiderada, humildemente procurei desculpar-me.
Todavia, mais tarde, espontaneamente, me autorizaram êsse toque, e assim constatei que essa substância
oferece certa resistência ao tato, comparável à clara de ôvo. E quanto à sua temperatura, pareceu-me um
pouco inferior à do ambiente em que nos encontrávamos.
Seria interessante pesar essa substância, disse eu à Snra. Brisson, mas compreendo, ao mesmo tempo,
que se nos torna impossível fazê-lo, de vez que o seu manuseio pode prejudicar o médium.
Sorriu-se a Snra. Brisson e, dirigindo-se à filha, pediu-lhe fosso à cozinha buscar uma balança. Nesse
ínterim, a mágica substância alongou-se, tomm a forma de um réptil, dc onde concluo houvesse
compreendido o que dela pretendíamos. Chegada a balança, foi-me dado experimentar uma das mais
fortes emoções da minha vida. É que a substância, qual serpente que se levantasse sobre a cauda, viera
colocar-se num dos pratos da balança, que estava sobre um pedestal, na altura de 10 polegadas do
assoalho. E ali permaneceu todo o tempo necessário à verificação do seu peso, por mim julgado
levíssimo, em relação ao volume. Serpeando depois para trás, deixou o prato e baixou ao assoalho, para
retomar o primitivo aspecto informe. Enquanto eu a observava, sumiu-se. Não se retraiu, não se
dissolveu: simplesmente — desapareceu.”

Fotografias transcendentais.

É a atuação do poder ideoplástico do pensamento, tanto do homem de carne como do


espirito livre, sobre o éter vitalizado ou eetoplasma, que se condensa, se organiza e se
estrutura. Existente em todos os seres vivos, capaz de se exteriorizar nos sensitivos,
explica a objetividade das formas-pensamentos, improvisadas ou duradouras, fotogra-
fáveis (fotografia transcendental), observadas pelos videntes, ora simplesmente plásticas
e inanimadas (retratos de pe-

267
soas ou de objetos), ora se realizando verdadeiro renascimento ou ressurreição, como,
por exemplo, no caso de Esteia Livermore. Nessas alturas vertiginosas, só apelando para
o célebre verso de Boileau:

“Le vrai peut quelquefois n’etre pas vraisemblable...”

Se isto acontecesse a Silva Mello.

Se um fato espírita, “se uma só experiência positiva, bem observada”, fosse


suficiente para o negativismo irracional de Silva Mello, fechado hermeticamente dentro
de um ateísmo ímpar, eivado até a medula dos ossos do pã-sexualismo de Freud, a
“escolástica da pornografia”, na qualificação revoltada dos Goncourt, tiranizado pelos
dogmas baixíssimos da biopsicologia dos brutos, sempre na má companhia de Bertrand
Russel e sua digníssima esposa, impróprios ambos para menores de 70 anos, jurando
diariamente sobre as conclusões do historiador falacioso Max Dessoir, nós lhe
lembraríamos, já que a literatura espírita nacional não o conquistou ainda, a situação do
banqueiro Charles Livermore, durante 388 sessões, em que recebeu 200 mensagens e
em que teve diante dos próprios olhos a figura de sua esposa Esteia, física, moral e
intelectualmente ressuscitada.
Ocorreu, não há negá-lo, um “excesso de provas” nessa manifestação estupenda da
imortalidade, que deveria emudecer para sempre a fraseologia vã dos sabichões de
nomes das coisas, dos sábios em gafanhotos.
Diga-nos o sábio nacional Silva Mello: que atitude tomaria na vida, se tal coisa lhe
acontecesse a mais, afora a presença daquela mão misteriosa que o agarrará de uma hora
para outra, numa das noites em que lhe falte a luz no dormitório? Já se garantiu
bastantemente contra tal eventualidade?
Na “Metapsychique Humaine”, o mestre mais credenciado da doutrina, o sacerdos
magnus da ciência e da filosofia espíritas, relata-nos o fato e o comenta com aquela
serenidade olímpica de quem aprendeu a argumentar com Herbert Spencer, de quem
alcançou a verdade para si e coroou-se com a glória raríssima de convencer o seu
contendor de polêmicas memoráveis, o criador’ da Metaps’quica — o espírito
providencial de Charles Richet, predestinado a chamar a atenção da ciência acadêmica
para a fenomenologia supranormal:

268
“A personalidade mediúnica, considerada aqui, disse Bozzano, conseguiu demonstrar a sua
identidade, recorrendo às provas de que pode dispor um defunto; mostrou-se durante muitas horas sob a
mesma aparência, a que tinha em vida; escreveu centenas de mensagens com a identidade de escrita;
exprimia-se na linguagem que lhe era familiar em vida, língua que a médium ignorava; revestia suas
idéias de forma nitidamente pessoal; apresentava provas supranumerá-rias como a materialização de um
gorro bordado que ela usara durante a doença que a levou ao túmulo; enfim, reforçava as provas pela
produção de fenômenos prodigiosos, destinados a tomar patente a intervenção de outras personalidades
espirituais”.

A psicologia de Richet explica.

Sem dispensar as exigências de Annie Besant — um coração puro, uma inteligência


ativa e uma vida limpa — para a compreensão da verdade espiritualista, pecamos ainda
a Richet, tão grande fisiologista quanto psicólogo, de empréstimo, aquelas palavras que
apôs em prefácio a uma das obras de Ochorowicz:
“Sei demasiadamente bem (por minha própria experiência), quanto é difícil crer
naquilo que se viu, quando o que foi visto não está de acordo com as idéias gerais,
vulgares, que formam o fundo dos nossos conhecimentos. Há quinze dias vi tal fato
espantoso, que me convenceu. Hoje meneio a cabeça, e começo a pô-lo em dúvida.
Daqui a seis meses, ele se desvanecerá por completo da minha crença. Está nisso uma
curiosa anomalia de nossa inteligência. Não basta em definitivo, para produzir a
convicção, que um fato seja logicamente e experimentalmente provado: é preciso que
lhe tomemos, por assim dizer, o hábito intelectual. Se ele vai de encontro à nossa rotina,
é repelido e desdenhado.
Eis o que se chama ordinariamente o bom senso. É o bom senso que faz rejeitar todas
as idéias inesperadas, novas; é o bom senso que regula a nossa conduta e dirige as
nossas opiniões. De fato! êsse bom senso de aue o mundo se orgulha tanto, não é mais
do que uma rotina da inteligência. O bom senso de hoje não é o bom senso de há
duzentos anos, nem o bom senso de há dois mil anos. O bom senso, há dois mil anos,
era crer que o sol andava em volta da terra e-se deitava todas as tardes no Oceano.”

Outros poderes do ectoplasma.

É o eetoplasma que, sob a ação da vontade subconsciente do médium, organiza-se na


“alavanca fluídica” de Crawford, que do corpo do médium desce até o solo para, em
braço vertical, tocar o fundo da mesa e levantá-la, do que se obteve prova fotográfica; é
o ectoplasma que, nas experiências da Snra. Brisson e de Schrenck-Notzing, compôs os
retratos ideoplásticos do presidente Wilson, do presidente

269
Poincaré, etc, retratos que surgem em poses sucessivas, ora de olhos cerrados, ora de
olhos arregalados.

“Este fato, esclarece Bozzano, é de considerável valor teórico; primeiro porque chegamos assim a
surpreender em função o traba-artístico da força plástica, e segundo porque o fato é de si mesmo
suficiente para demolir todas as insulsas presunções de fraude, fundadas nos autênticos retratos expostos
pela médium.”

Aparições de fantasmas inertes e sem vida são materializações plásticas e


inanimadas, são objetivações de formas fluídicas do pensamento de alguém, vivo ou
morto, formas-pensamento que tanto podem ser de um médium, como de um
desencarnado, denunciando-se pela propriedade actínica de impressionar chapas
fotográficas.
Cada um de nós não é mais do que materialização estável e permanente. As criações
de Deus, a ciência no-lo ensina agora pela teoria da evolução, nunca se realizaram
abruptamente, num fiat: no laboratório da natureza as idéias diretrizes, os modelos
ideais, os desenhos perispirituais, infinitos, como a Sabedoria de onde promanam,
materializam-se à custa do éter vitalizado, agora e sempre, pois “a Evolução, segundo
Lecomte du Noüy, no seu conjunto, do eletrônio ao homem, é a história dos fenômenos
sucessivos que tornaram possível o desabrochar do pensamento e da consciência. O alvo
final a atingir era, desde o começo, não a forma humana, mas a Consciência, o
Espírito”.
Esta é a linguagem da ciência espiritualista, colabora-dora da evolução, que é
vontade divina em permanente realização. Não arrasta os indivíduos e os povos à
regressão brutal do direito do mais forte, do mais cínico e do mais depravado, como o
tentou, duas vezes nesse século, com desrespeito da dignidade humana, o povo alemão,
“digno de estima, na frase de Goethe, em’ particular, mas de grande baixeza
considerado em conjunto”.
O diagnóstico está certo; as crises periódicas do doente o confirmaram.

As oito horas de experiência de Silva Mello.

O capítulo segundo começa fornecendo um atestado de cretinice aos sábios,


observadores muito inferiores aos animais (cavalos e cachorros) porque “estes possuem
extraordinária perspicácia, percebendo gestos e movimentos que escapam mesmo a
investigadores habituados ao trabalho científico.”

270
(pág. 41). Os nossos colegas veterinários nunca poderiam imaginar um argumento mais
científico para exigir a equiparação de carreiras. Tirem-se todas as conseqüências
próximas e remotas deste postulado de Silva Mello, e passemos adiante.
Até aqui os médiuns, de que usou, não eram batizados. Agora surge “um caboclo de
tez morena, 35 anos, morador num dos subúrbios da Central.” Exigiu o “pagamento de
soma relativamente elevada”, para ir à residência do metapsiquista. “Pediu-me um copo
d’água, dentro do qual colocou algumas conchas marinhas e outras bugigangas
esquisitas.” E realizou-se ótima pantomina, digna do médium e do experimentador...
O autor que foi tão sintético, quando obteve “coisas extraordinárias”, “pormenores
impressionantes”, conforme referimos linhas atrás, consome muitas páginas dos
MISTÉRIOS para descrever com todas as minúcias, uma “observação que impressiona
pela sua horrorosa vulgaridade.” (pág. 46). Veja-se a habilidade do expositor:
surpreende um conglomerado de coisas ignóbeis, que todo o mundo repudia com a
maior veemência, com indignação igual à sua, porém com menor perda de tempo e de
palavras, e vai apresentá-lo como caso típico de mediunismo, já cientificamente
provado por sábios dignos do maior respeito.
Imagine-se o resultado a que nos levaria uma argumentação desse tomo: 1) há
curandeirismo de uma grosseria inacreditável — exemplos...; 2) há curandeiros de uma
ignorância pasmosa — exemplos... ; logo, todos os médicos são curandeiros e a
medicina é uma farsa.
O experimentador de profissão, quando descobre a interferência de qualquer fator
imprevisto e que lhe prejudique a hipótese de trabalho — uma balança viciada, uma
pilha que se esgotou, um reativo enfraquecido, um filtro que se rachou, uma lente
defeituosa, não se dá pressa na publicidade escusada das causas evidentes de erro,
entrevistas e evitadas a tempo. Renova as experiências em circunstâncias mais perfeitas
e, sobretudo, se possui o mínimo de “caráter”, tomada a expressão no significado que
lhe empresta Miguel Osório, não infere jamais conclusão alguma de premissas mal
estabelecidas.
Silva Mello usou e abusou do critério oposto: as surpresas, as maravilhas, “os
pormenores impressionantes” que observou e comprovou, são registrados na enunciação
simples destas palavras; os erros, as fraudes, as mistificações,

271
da mediunidade falsa, decadente ou esgotada merecem páginas maciças dos
MISTÉRIOS.

Silva Mello conversa com Madames Fraya, Detay e Briffault.

Da conversação única com o farsante suburbano Silva Mello se transporta a Paris,


onde é apresentado, a pedido, pelo Dr. Eugênio Osty, diretor do Instituto Metapsiquico,
à Madame Fraya.

“Naquela época, em 1929, faziam parte de sua direção, homens de grandes responsabilidades, tais
como Charles Richet, Oliver Lodge, J. Maxwell, Ernesto Bozzano, Hans Driesch, Leclainche, Cuneo,
Jean Charles Roux e outros, na sua maioria membros do Instituto de França e da Universidade de Paris,
ou de associações equivalentes, no estrangeiro.”

Silva Mello estava no bom caminho. Mas, ao invés de procurar assistir às sessões do
Instituto, onde poderia colher numerosas observações de vários tipos ou padrões,
orientado por alguns daqueles cientistas de fama mundial, preferiu conversar sozinho
com Madame Fraya. Pelo que nos conta, minuciosamente, a vidente não lhe forneceu
resposta satisfatória aos testes propostos.
Foi, aliás, Madame Fraya quem, baseada numa carta escrita naquela manhã, deste
modo lhe traçou o perfil mental: “pessoa de grande cultura intelectual, tendo crítica
rápida, penetrante, muito objetiva; que trabalhava em excesso, tendo muito interesse
pela sua atividade e sendo sincera ao extremo; que possuía grande bom senso, vontade
poderosa, visão clara das coisas e excelente coração; caráter perfeito, sendo a família
digna e de excelentes princípios.”
Experiência negativa, conclui o consulente. Concordamos com muita mágua, porque,
apesar das generalidades (muito arriscadas diante de uma carta, que poderia ter sido
escrita por um dos dois bilhões de seres humanos vivos naquela época, afora os mortos)
Silva Mello está dentro daquele perfil, principalmente na parte grifada.
Suponhamos, todavia, que a experiência redundasse positiva. O experimentador teria
abjurado a sua crença na matéria, nos seus cinco sentidos, na sabedoria e no bom senso
insuperável dos animais?
Estamos em que atribuiria tudo a “coincidências fortuitas”, ou, o que é mais possível,
diria somente (nestas

272
oportunidades o homem loquaz se torna quase mudo), que uma vidente de Paris, de cujo
nome não se lembrava mais, lhe havia dito, certa vez, coisas “maravilhosas”,
“impressionantes”, que guardaria a sete chaves. Se não aceita o dom de clarividência
que acerte na quarta parte das questões propostas, o que seria suficiente para o
temperamento “ilógico” e “crédulo” de Richet, com muito mais facilidade e
desembaraço se livraria de uma só experiência positiva.
Releva, para ele, que a clarividéncia seja absoluta, divinatória em cem por cento, que
possua, enfim, os mesmos atributos da Divindade — onisciência e onipresença.
Madame Pray a, segundo Stowski, “transformou-se em vidente para ganhar a vida,
depois de o marido ter pendido o uso da razão”. Há aqui um jogo ilícito de palavras, que
precisa ser desmascarado: ninguém se transforma em vidente; a vidência foi que se
desviou para o comércio, prejudicando-se seriamente, como é regra geral.
Insta o autor dos MISTÉRIOS por que opinemos entre a sua visita de vilegiaturista e
a longa observação de Eugênio Osty. Temos que concordar com o autor de “Lucidité et
Intuition”, quando se refere à Madame Praya, nos seguintes termos:

“Madame Fraya lê na escrita não somente a psicologia circunstanciada do autor, mas também certos
acontecimentos da sua vida passada, os que o preocupam na vida atual e alguns da vida futura. Ela
encontra aí os característicos das pessoas, dos lugares, das cenas e, assim, surgem muitas vezes das linhas
escritas, membro por membro, tôda a família do autor.”

Silva Mello é um tipo sui generis de investigador. Não-sòmente despreza o protocolo


das experiências alheias, como se houve com as de Crookes, senão modifica as
condições de suas próprias experiências pessoais, para conseguir os resultados que
deseja.
Uma vidente (Madame Fraya), descreveu-lhe a personalidade de modo
“surpreendentemente acertado”, na opinião, di-lo ele próprio, “de pessoa de minhas
íntimas relações.” Mas aconteceu que um senhor estrangeiro, “horripilante, burríssimo,
mesquinho, de mau caráter”, havia, contemporâneamente, consultado um célebre
“taumaturgo”, na Holanda, que lhe debuxara um retrato moral de que se achava
envaidecido, retrato muito parecido com o que Madame Fraya tracejara para Silva
Mello. Sabedor disso, concluiu, somando as duas experiências:

273
“Eu já duvidava das qualidades que Madame Fraya me havia atribuído, mas, desta vez, caí das
nuvens, perdendo o resto das minhas ilusões”.

Em conclusão, se Madame Fraya não acertou, também não acertou o taumaturgo; e


Silva Mello não se lembra de que houve mudança de médium e de consulente... As duas
experiências não se somam: repelem-se.
De Madame Detay conta-nos o seguinte:

“Fez-me perguntas com freqüência: se estava no bom caminho, se o que me dizia interessava, se
convinha prosseguir na mesma direção, etc.”.

Como se vê, entre os dois, o clarividente parecia ser o visitante. Natural a hipótese de
“uma indústria muito rendosa.”
O Espiritismo cristão nada tem de comum com os quiromantes, os adivinhos e os
grafólogos profissionais, que Silva Mello nos apresentou. Esta manobra é simples
truque ou passe de mágica de prestidigitador: a mistura propositada de coisas
verdadeiras e de coisas falsas para, da falsidade evidente das últimas deduzir a falsidade
provável das primeiras.
Interessantíssimo, sob todos os aspectos, foi o contato do autor dos MISTÉRIOS
com Madame Briffault. (págs. 74-75). Confessou-se “nervosa, emocionada, inquieta e
dizia sentir emanações estranhas, irradiações esquisitas, que partiam do meu corpo e que
a perturbavam e desorientavam.” Recusou receber os honorários habituais. “Disse-me
que eu era médium, possuidor de lucidez e de vidência.” E Silva Mello termina o
pequenino episódio, efusivamente: “Separamo-nos afetuosamente, quase como velhos
amigos.”
Madame Fraya traçou o perfil moral de Silva Mello, apesar das muitas inverdades
que lhe disse; Madame Briffault revelou-lhe a posse de mediunidade. Concordamos
inteiramente com ambas. Aquele medo incoercível de fantasmas não deve ser hipotético
e sem fundamento: aliás, já se teria desvanecido, tratando-se de um cidadão tão bem
dotado intelectual, moral e... biopsicologicamente. Não é questão de impressão: é de
sensação que, de vez em quando, se repete. Silva Mello já a teve mais de uma vez,
provavelmente. Por isso, o “complexo” continua, apesar da psicanálise. Os dois
médiuns não se separaram como “velhos

274
amigos.” A afinidade era flagrante. Despediram-se afetuosamente, como velhos
colegas...

Um caçador de esmeraldas maluco.

A aventurosa expedição de Cristóvão Colombo redundaria em desastre fatal, se a não


alentassem a convicção inabalável e o desejo firme de testemunhar a verdade.
Ninguém emprega os seus melhores esforços no estudo e na pesquisa de fatos que já
prejulgou como irracionais e como absurdos.
Ao nosso colega Silva Mello envolve-o uma crosta impenetrável de ateísmo,
ultrapassando tudo quanto se possa imaginar de negativismo pretensiosamente
científico. Não somente rejeita a companhia da espiritualidade, de qualquer tipo que
seja, senão timbra em imitar os animais, que sobrepõe aos homens. Quem quiser sentir
todo o horror da sua biopsicologia, que leia alguns capítulos de “Alimentação, Instinto e
Cultura” e de “O Homem.”
A panacéia do “complexo de superioridade”, que induz, na sua opinião, o pobre ser
humano a procurar a companhia dos anjos, contrapõe o “complexo de inferioridade”
que se compraz no convívio dos nossos irmãos inferiores, cujos instintos são, para ele, a
quintessência da sabedoria e do bom senso.
O improvisado caçador de esmeraldas não admite a existência de esmeraldas
verdadeiras; as que viu ou que vê nas mãos de outrem devem ser falsas, são
necessariamente falsas... A que perigos, a que trabalhos, a que canseiras não se furtará
essa contravenção acabada de Fernão Dias Paes, se um dia, por simples revolta diante
da convicção dos que acreditam em esmeraldas legítimas, ele se dignasse a partir para
os sertões em busca da verdade!
Ao maneiar as suas batéias, este faiscador insensato vai procurar, preferentemente, os
falsos vieiros, as catas e as aluviões estéreis, as lavras esgotadas. No momento exato da
lida afanosa, seus sentidos e sua inteligência não se aplicam no trabalho, mas perdem-se
em divagações inoportunas sobre assuntos secundários, atrapalhando os companheiros
mais dedicados e mais ativos, ou procurando a companhia da tropa de animais
auxiliares.
Ao acabo da empresa, malograda antes do início, o minerador de pechisheque, ao
voltar aos seus penates, não oferecerá na palma da mão nada que brilhe ou que des-

275
lumbre, ao contrário... Apliquemos o conto ao faiscador Silva Mello.

Silva Mello entrevista o médium Pascoal.

A fase culminante da atividade metapsíquica de Silva Mello, a observação mais


completa que lhe serviu de pedestal para erguer o monumento dos MISTÉRIOS, na
parte referente ao Espiritismo, foram as duas horas que conversou, na presença de uma
terceira pessoa, com o médium Pascoal de Belo-Horizonte, em Fevereiro de 1927.
Estende-se a observação por 19 páginas, em tipo miúdo, parágrafos raríssimos,
misturando-se e confundindo-se os acontecimentos com as sínteses filosóficas do
comentarista veemente e apaixonado.

“O fracasso da sessão foi absoluto e apenas o hábito do método científico levou-me a protocolar os
seus resultados.”

E graças a este protocolo, qualquer curioso dos fenômenos supranormais poderá, em


exame retrospectivo, reconstituir a cena e tirar também as suas conclusões. Eis a
decisiva contribuição dos protocolos, sobre cujas minúcias Silva Mello guardou
absoluto segredo, quando comentou os trabalhos monumentais de Schrenck-Notzing, de
Richet e de Crookes, não obstante saber, por experiência própria, que nas minudências,
nos pormenores, no registro das precauções tomadas, na presença dos aparelhos físicos
confirmadores das impressões visuais, achava-se contido todo o merecimento do
experimentalismo. Qual seria o número desta “observação”, em que o metapsiquista
registrou tudo? O homem da “sinceridade extrema” confessa tudo com a mais cândida
naturalidade.

“Era a primeira vez que assistia a uma reunião desse gênero, nunca tendo estado presente a sessões
espíritas.”

Nem antes, nem depois... A sua pretensão mínima era obter, naquelas duas horas, ao
lado de um médium que via pela primeira vez, “uma prova concreta desse mistério, que
me atormentava e me parecia tão obscuro e impenetrável.” Estamos quase nos filiando
àquela sua teoria, ou melhor, ao axioma da ingenuidade infalível dos sábios...
Quanto ao seu estado de espírito, ele o descreve como muito predisposto na
aquiescência de coisas absurdas, por-

276
um médium que lhe confessou a perda da mediunidade e lhe pediu um remédio para a
sua doença, Silva Mello, quixotescamente, quer neutralizar, as conclusões não de
espíritas, para os quais ele reserva os piores adjetivos do seu vocabulário, mas de sábios
incrédulos, seus colegas, que se expuseram, serenos e heróicos, à ironia dos ignorantes e
dos fanáticos, tanto religiosos, como materialistas.

A mediunidade legítima.

As manifestações mediúnicas, excluídas as inegáveis deturpações da ignorância e da


imoralidade, são a base racional, o fundamento lógico da espiritualidade. Somente por
intermédio delas, neste século e nos séculos vindouros o racio-nalismo sabido, céptico e
vigilante conseguirá, pelo menos nos seus momentos de desespero e de dor, quando o
não favoreça a intuição das coisas divinas, levantar os olhos para o Alto, em busca de
inspiração e de paz.
No agiológio cristão elas revelam os sinais inequívocos de sua presença, batizadas
com o nome de manifestações angélicas. A Igreja aceita-as, quando as identifica nos
seus santos, confessemos que sob a forma mais elevada e mais pura, contrastando com a
mediunidade do vulgus ou do pecus, eivada de explorações, de venalismo e de
imoralidade, que não negamos, desde que se não generalize. Mas o fenômeno é o
mesmo, em sua essência. Quando a mediunidade se alia à virtude, como o vemos
comumente na vida dos santos, há como que uma simbiose entre dois fatores, um
círculo virtuoso, dentro do qual a percepção por via supranormal cimenta a fé em bases
sólidas, transformando-a em convicção; e esta, atuando sobre as qualidades morais do
médium ou da médium, confere-lhes uma sublimidade maior, que, por seu turno,
fortalece e intensifica o poder de penetração nos altos planos da espiritualidade.
Foi este círculo virtuoso que amparou, progressivamente, Santa Teresa e Santo
Agostinho, nas suas tremendas batalhas pela posse da espiritualidade perfeita. Suas
vidas estão cheias de exemplos de mediunismo, colaborando ativamente na ascensão
para Deus. Ambos, ou eram doidos varridos (e esta hipótese é desmentida pelas obras-
primas de suas “confissões”) que todo o mundo lê ainda hoje com a maior enlevo e que
nenhum psicanalista seria capaz de escrever, ou eram médiuns dotados de exaltada
sensibilidade moral. S. Paulo mesmo, não viu e ouviu o Cristo, somente

277
pelo efeito de uma graça divina. Isto lhe foi possível porque ele era um “sensitivo”
excepcional.
O caso de Joana d’Arc, se lhe tirarmos a substância do mediunismo, transforma-se
em quebra-cabeça capaz de endoidecer o mais equilibrado racionalista.
Tudo podemos fiar da mediunidade prodigiosa de Francisco Cândido Xavier, porque
assenta no desprendimento, na humildade e na moralidade. Os que não aceitam a causa
e a finalidade de sua psicografia exuberante, não meditaram suficientemente naquela
observação sagaz do poeta gaúcho Zeferino Brasil:

“Eu não creio, nem ninguém também o acreditará, que haja alguém no mundo capaz de produzir os
mais belos e empolgantes poemas e renegue a glória e a imortalidade, atribuindo-os “charlatanescamente”
à autoria de grandes poetas mortos, aos quais apenas serviu de médium.”

Este argumento é simplesmente atômico...


As explicações naturalísticas dos fenômenos supranormais rednndam, sempre, num
despautério sesquipedal, mais complicado e mais incrível, muitas vezes mais, do que os
próprios fenômenos. E quem renega a realidade das materializações fantasmáticas,
apoiando-se em duas generalizações imprudentes e impudêntes — todos os médiuns
fraudam e todos os sábios são ingênuos — claro não encontrará o menor obstáculo para
explicar os delicados fenômenos subjetivos, facilmente confundíveis com a histeria, o
automatismo psicológico e o subconsciente.
Quem não se rende à presença de fatos físicos, objetivos, palpáveis, mensuráveis,
falantes, escreventes, respirá-veis, que se desenvolvem, de dado momento em diante,
quando o médium cai em completa passividade e quando o experi-mentador é todo
olhos e ouvidos, de maneira completamente autônoma e entregue à vigilância dos
nossos sentidos e dos aparelhos controladores, nada mais se pode esperar desse
negativismo desassisado.

Sócrates.

Se a mediunidade é facilmente identificável na vida dos santos, não o é menos na


vida de muitos filósofos. Citemos somente o caso de Sócrates. Se “ouvir vozes é um
sinal freqüente de loucura, como é muito sabido pelos próprios leigos” (pág. 575),
loucos varridos foram os melhores tipos humanos que viveram neste “pífio planeta.”

278
O pai espiritual de Platão, o mártir da filosofia, diante do tribunal do qual dependia a
sua vida ou a sua morte, assim se refere ao seu daimon ou gênio familiar:

“Esta voz profética do demônio, que nunca deixou de fazer-se ouvir durante todo o curso de minha
existência, que jamais deixou, até nas circunstâncias mais comezinhas, de me desviar de tudo que pudera
causar dano, eis que esse deus se cala, agora que me sucedem coisas que poderiam ser encaradas como o
pior dos males. Por que isto? É que muito verossimilmente, o que ora acontece é um bem para mim. Sem
dúvida, nos enganamos, supondo ser a morte uma desgraça.”

Joana d’Arc.

Joana d’Arc, a virgem da Lorena, “ideal da mediunidade”, segundo Leon Dénis, foi
“a maior glória do gênero humano”, na expressão entusiástica de Southey.
O poema imortal vivido por Joana d’Arc somente obteve da sovinice de Silva Mello
o vintém de uma esmolinha contido na apreciação seguinte: “As visões da Pucela de
Orleães apareceram quando dormia ela sob um gigantesco carvalho.” Lampejos de
pirilampo, diante do brilho de uma estrela...
Nunca uma criatura humana se abalançou à empresa tão desproporcionada às suas
forças, tão acima de seus conhecimentos, tão contrária às suas vocações. Uma donzela
de extrema pureza na promiscuidade dos brutos. Um ânimo adoçado pelo bucolismo dos
campos, acostumado à companhia dos pais e dos animais domésticos, cheio de carinho
para os peregrinos que batiam à porta de sua choupana, intrometido na brutalidade das
cargas de cavalaria, salpicando-se do sangue dos combatentes feridos, cujos sofrimentos
lhe despertavam o desespero de mãe. Uma virgindade de corpo e de coração na
convivência de homens embrutecidos pela guerra e pela sensualidade. Uma convicção
firme na vitória, inspirada diretamente do Alto, em luta com a debandada geral de
soldados desmoralizados e mercenários. Uma analfabeta em discussão com doutores,
com militares ou com clérigos, para se defender, para defender as “suas vozes” e as suas
visões, para persuadir, para congregar forças dispersas e enfraquecidas por derrotas
intermináveis. Uma intermediária do Alto obrigada a converter os demônios da terra,
defendendo-se, defendendo a França e defendendo o próprio Deus. Para Henri Martin
“nada de semelhante ainda se produziu na História do mundo”.

279
Em aldeia ignorada e pequenina — Domremy — no ano de 1412, nasceu uma
criança do sexo feminino, filha de lavradores muito pobres. Ocupou-se, durante a
meninice e a adolescência, ou em tecer a lã, junto de sua mãe, ou em guardar o rebanho
nas várzeas do Mosa, ou no acompanhar o pai na charrua. Não aprendeu a ler, nem a
escrever. Caridosa, fedia a cama aos peregrinos velhos e cansados, passando a noite
sobre um feixe de palha. Sua divisa é a de sua família: “Viva o trabalho!” O seu maior
enlevo — o toque dos sinos. Vozes estranhas lhe falam aos ouvidos e ao coração,
dirigindo-lhe todos os passos. Pura como o lírio dos campos. Só conhece o amor dos
seus pais e da natureza que a cerca. “É preciso que vás em socorro do Delfim, para que,
por teu intermédio, ele recobre o reino”. Ou, então: “Pilha de Deus, tu conduzirás o
Delfim a Ileims a fim de que receba aí a sua digna sagração.” “Sou uma pobre rapariga,
responde ela, que não sabe cavalgar, nem guerrear!”
Aos dezessete anos, parte sozinha, para dirigir batalhas contra os ingleses invasores
de sua Pátria, numa época de barbárie em que os soldados eram bandidos, gafados de
todos os vícios, prontos sempre a debandar. Teve que transformados em criaturas
tementes a Deus, em combatentes dispostos a sacrifícios pela Pátria, mergulhada no
caos, na desordem, nas traições e na venalidade. Suas predições numerosas começam a
realizar-se. Infundem confiança nos adversários e removem as dificuldades iniciais.
Doutores, chefes dos exércitos desunidos, casuístas, são vencidos pela analfabeta, pela
pastorinha pacífica, pelas réplicas luminosas e emudecedoras. Donde lhe vem a
sabedoria e as luzes? “Há nos livros de Nosso Senhor muito mais do que nos vossos.”

“Há nas suas palavras, diz o seu biógrafo Leon Dénis, tal acento de verdade e de convicção, que
ninguém, mesmo dentre os seus detratores mais ardentes, ousou acusá-la de impostura.”

Anatole France, que, certo, não a poupa, escreve:

“O que sobretudo ressalta dos textos é que ela foi uma santa. Foi uma santa com todos os atributos da
santidade do século XV. Teve visões e estas visões não foram nem fingidas, nem forçadas”.

Não era neurótica, nem histérica. Gozava de saúde perfeita; era sóbria, infatigável,
destemida, sempre cons-

280
ciente e senhora de si, como o demonstrou nos lances mais dolorosos e mais trágicos de
sua vida. G. Dumas, Professor da Sorbona, declara não ter conseguido pelos
testemunhos descobrir em Joana qualquer dos estigmas clássicos da histeria. Todas as
suas premonições se realizaram: o levantamento do cerco de Órleãs, a tomada da cidade
fortificada de Troyes, a marcha vitoriosa sobre Reims, a sagração de Carlos VII. Dos
seus protetores espirituais ela afinava: “Eles aqui estão, sem que os vejais.”
Impassível e indiferente diante da glória, o seu pensamento estava sempre nas suas
ocupações campestres e no seio da família distante. Nas ruas, no meio das aclamações
populares, acolhia com modéstia os humildes e os mendigos. “Nada temo, senão a
traição.”
Encontrou também o seu Judas na pessoa de João de Luxemburgo, que a vendeu aos
ingleses por 10.000 libras em ouro. “O martírio era necessário, diz Léon Dénis, para dar
àquela santa figura toda a sublime radiosidade”, como foi necessário a Jesus Cristo. Ela
também soube perdoar: “tirei da minha fé a coragem para perdoar os meus algozes.”
Automatismo psicológico! Auto-sugestão! Alucinação! E por que tudo isto não se
manifestou num dos capitães que ela dirigiu para a vitória? Num La Tremoille ou num
Regnault de Chartres, seus comandados e seus rivais? Quem acreditaria na vida de
Joana d’Arc, se não estivesse gravada em páginas imperecíveis da história e no
testemunho irrevocável dos seus próprios inimigos?
A superfetação incrível de contrastes entre a sua figura humana e os acidentes de sua
vida de santa e de mártir culmina na contradição final: a guerreira invencível, diante de
cujo estandarte fugiam espavoridos os inimigos de sua Pátria, depois de ter feito coroar
o seu Rei e transformado a França bem-amada numa nação, é vendida aos ingleses, para
ser julgada e queimada “como feiticeira”.
A única explicação, “a racional”, “a naturalística” — tomemos aos nossos
adversários os seus adjetivos prediletos — está encerrada naquelas palavras do médium
Léon Dénis:

“Se Deus, aquilatando da fraqueza dos fortes e da prudência dos avisados, preferiu salvar a França por
intermédio de uma mulher, de uma menina, quase uma criança, foi, sobretudo, para que, comparando a
fragilidade do instrumento com a grandeza do resultado, o homem não mais duvidasse; foi para que visse
claramente, nessa obra de salvação, o efeito de uma vontade superior, a intervenção da potência eterna.”

281
Joana d’Arc, que a Igreja repudiou, para depois canonizar, é a protetora da
meaiunidade que se não desvia para as coisas vãs do mundo, mas põe a sua mira em
Deus e em Jesus Cristo. Em torno dela, como ao redor e sob a proteção de S. Francisco
de Assis, todas as seitas cristãs se fundirão, um dia, unanimando-se na mesma
espiritualidade compreensiva, tolerante e fraterna.

A mediunidade de Santa Teresa.

A vida de Santa Teresa de Jesus, (1515-1582) escrita por ela própria, fielmente
traduzida por Rachel de Queiroz, é o relato magistral das vicissitudes de uma
sensibilidade mediúnica prodigiosa, que demorou a produzir os seus frutos, porque os
confessores de que se servia para se esclarecer e para buscar auxílio, viviam, então,
como vivem muitos até hoje, emparedados entre o angélico e o demoníaco.
Os conselhos que lhe davam para afugentar as visões (fazer figas!), as penitências
absurdas que lhe prescreviam (proibiam-lhe as orações!), as intenções ocultas que lhe
atribuíam (dar-lhes lições), chegando a tirania a que a submeteram a merecer a
condenação do Alto:

“Quando me tiraram a oração, pareceu-me enfadado o Senhor. Disse-me que lhes dissesse que aquilo
era tirania.”

Confunde as vozes dos bons espíritos com a voz do próprio Deus, como se engana
também a médium Joana d’Arc; igualmente, tudo de mau que sente ou que ouve, é
atribuído, exclusivamente, ao diabo.
Há, nesta “harpa viva”, a floração de todas as mediu-nidades! Quem lê a vida de S.
Teresa, sem a chave do Espiritismo, não a entende ou, como os “sábios” materialistas,
explicam tudo pelo histerismo. O espírita acredita mais nos prodígios da santidade do
que os próprios católicos: se lhes falece a crença, a graça do Espírito Santo, sobra-lhes o
conhecimento real de como as coisas se passam, firmam-se em base muito sólida,
insusceptível de variações, conforme a vida se lhes decorra suavemente ou não. Não
têm crenças, mas têm convicções, Os fatos supranormais ocorridos nas vidas dos santos
enchem os anais da metapsíquica. Podemos explicá-los, incluí-los entre os fenômenos
naturais, deixando de lado tanto a teoria extrema das “graças” gratuitas, como a

282
das desgraças patológicas (histerismo, etc). Estamos justamente no meio, e com a
verdade.
Na vida de S. Teresa assiste-se, através da sua mediunidade, que torna possível o
acontecimento, a luta entre as sugestões dos espíritos maus, invejosos, que lhe querem
impedir a ascensão gloriosa que, afinal, alcançou, e as bênçãos, as consolações e os
conselhos das boas visões, provindo, dal espíritos iluminados...
Sua religiosidade sadia preferia o Deus de bondade ao Deus vingativo:

“Há almas que aproveitam mais com a crença segura de que tratam com Deus do que com’ todos’ os
temores que se lhe possam infundir; a alma que de si é amorosa e agradecida mais a volta para Deus a
memória da mercê que lhe fez do que os castigos do inferno que lhe representem; ao menos com a minha,
embora tão má, iss’, acontecia.”

Santa Teresa tinha a concepção democrática da graça: sustentava que a perfeição é


alcançável por quem quer que verdadeiramente lute por obtê-la.
O auxílio do Alto ela o pressente nas seguintes palavras:

“Quando o Senhor dá espírito, tudo se faz com facilidade e melhor; parece que se tem um modelo
adiante, do qual se copia o lavor; mas se o espírito falta não se concerta a linguagem, é como se fosse a
bem dizer uma’ algaravia, ainda que se tenham empregado muitos anos em oração.”

Aprendeu a discernir o merecimento das inspirações:

“Sofri muito e perdi muito tempo por não saber o que fazer. Muito dó me causam as almas que se
vêem sós, quando chegam a êste ponto; tenho lido muitos livros espirituais e vejo que embora toquem no
que importa, bem pouco o explicam.”

Confunde, todavia, o que era naturalíssimo naqueles tempos, os favores dos bons
espíritos com a presença impossível do próprio Deus:

“Deixar de crer que Ele estava ali, não o podia, por me parecer certo que me havia apercebido de sua
presença real. Os que não tinham letras me diziam que Ele só estava presente pela graça. Eu não o podia
crer porque, como digo, me parecia real a sua presença, e assim muito me afligia. Um grande letrado, da
ordem do glorioso S. Domingos, tirou-me desta dúvida e me ensinou como o Senhor está presente e como
se comunica conosco, o que me consolou muitíssimo.”

283
Contra a sua vontade, a sua humildade e a sua modéstia, é objeto de levitação, que
ingenuamente atribui também ao Senhor:

“Como agora exerço o ofício de priora, determinei às monjas que nada dissessem. Mas em outras
vezes, quando começava a ver que o Senhor ia fazer o mesmo, estendia-me no chão; as irmãs rodeavam-
me, chegavam a segurar-me o corpo, e contudo o arroubo era bem visível.”

Mais além acrescenta:

“Supliquei muito ao Senhor que consentisse em não me conceder mais mercês que tivessem
manifestações exteriores...”

E descreve:

“Ao querer resistir, parecia-me que debaixo dos pés me levantavam forças tão grandes que não sei
como as comparar... Confesso até que grande temor me causou — grandíssimo ao princípio. Ver-se assim
levantar-se um corpo da terra! Muitas vezes pars-cia-me que me deixavam o corpo tão leve, que todo o
seu peso abandonava.”

Sofreu, amargamente, a conseqüência da ignorância dos seus confessores:

“... dá lastima o que se padece com os confessores sem experiência, segundo o direi depois.”
“Grande é, não há dúvida, a aflição que se passa e é mister tento, em especial com mulheres, porque é
muita a nossa fraqueza; há risco de se lhes fazer grande mal, dizendo-lhes com clareza que aquilo é obra
do demônio.”
“Dei, pois, ao cavaleiro santo o livro e uma relação dos meus pecados o melhor que os pude pôr em
conjunto; não era confissão por ser ele secular, mas dei bem a entender, quão ruim era. Veio a mim todo
aflito o cavaleiro e disse-me que no parecer de ambos andava ali o demônio.”
“E estando num oratório muito aflita, já sem saber o que seria feito de mim, li num livro que parece
ter sido o Senhor que me pôs nas mãos, estes dizeres de S. Paulo: “Que é Deus muito fiel, e que nunca
aos que o amaram consentiu serem pelo demônio enganados.”

Consegue, depois de dolorosíssima experiência, discernir, por si própria, os bons e os


maus espíritos:

“Quisera eu declarar os enganos que aqui pode haver, embora me pareça que serão poucos ou nenhuns
os enganos para quem tiver muita experiência; mas é mister que seja essa experiência de-

284
veras grande. Enorme é a diferença quando o espírito é bom ou quando é mau; e pode tudo ser também
apreensão do próprio entendimento (que isso sói suceder), ou a fala do dito espírito a si mesmo (isso não
sei se pode ser, mas ainda hoje assim me pareceu). Quando o espírito é de Deus, tenho tido provas ao se
realizarem muitas coisas que me foram ditas 2 ou 3 anos antes; todas se cumpriram e até agora nenhuma
resultou em mentira.”

Entra, afinal, em comunicação pacífica com um espírito afim e iluminado, quando a


mediunidade depurada deixa de ser uma porta aberta, para se transformar num filtro:

“Parece-me que quem quiser enganar os outros dizendo ser de Deus o que é de si, que pouco lhe custa
afirmar que ouve com os ouvidos corporais; e é certo que jamais pensei que haveria outra maneira de
ouvir nem de entender; até que por mim mesma o testemunhei; e, como disse, custou-me muita aflição.
Depois, tem sido o Senhor servido que eu trate mais com esse santo varão do que durante a sua vida,
recebendo-lhe os conselhos em muitas coisas. Várias vezes o vi com imensa glória. Na primeira vez em
que me apareceu disse-me que bem aventurada era a penitência que tanto prêmio merecia, e muitas outras
coisas. Um ano antes de morrer apareceu-me estando ausente; eu soube que a sua morte estava próxima e
o avisei, estando ele a algumas léguas daqui. Quando expirou, apareceu-me e disse que ia para o seu
descanso. Eu não o acreditei e contei o caso a algumas pessoas; 8 dias depois veio a notícia de que estava
morto — ou para melhor dizer, que começara a viver para sempre.”

Nós, espiritualistas, sabemos que, no depoimento histórico de uma santa, filiada à


igreja de nossos maiores (poderia pertencer a quaisquer outras religiões) não há exagero
algum. Nem se admitiria que, tendo alcançado o completo domínio de seus sentidos
físicos e a mais alta espiritualidade, através da mediunidade, que lhe entreabriu o
conhecimento de outros planos, fosse, afinal, inventar ou mentir, fantasiando histórias
para gáudio e alimento dos Silva Mello do futuro.
Na vida de todos os santos, — não é essa a oportunidade para desenvolvimento
maior de nossa tese — encontramos sempre fenômenos lidimamente mediúnicos. Sem a
mediunidade, não seriam santos, porque não se estabeleceria o “círculo virtuoso».
Recomendo a vida de S. Teresa aos que quiserem tomar conhecimento da melhor
experiência mediúnica que se conhece dentro dos quadros dos nossos detratores — os
nossos irmãos do catolicismo.
A “Revista de Metapsicologia” de Lisboa (Junho, 1950) transcreve as observações
do Padre Thurston, publicadas na

285
revista dos jesuítas da Inglaterra — “The Month”. Este reverendo salientou muitas
semelhanças entre os fatos registrados nos “Anais das Ciências Psíquicas” e algumas
cenas eneontradiças nas vidas dos santos: São João de Cupertino e Daniel Dunglas
Home foram médiuns de levitações; Stainton Moses e as Santas Catarina de Ricci e
Verônica Giuliam eram capazes de perceber perfumes; as bilocações estudadas por
Gurney e Myers em “Os Fantasmas dos Vivos” foram registradas nas biografias de
Santo Afonso Liguori e São Francisco Xavier; auréolas (Santa Catarina de Sienne, Cura
d’Ars) eqüivalem às radiações luminosas em Home e Bgliton; os desenhos de Santa
Cresceneia Hoess comparam-se aos desenhos espíritas de E. L. Thompson e Heron
Maxwell.
Há perfeito paralelismo entre os fenômenos da mediunidade laica e os que a Igreja
festeja nos seus santos. Um dia, quando a Deus lhe aprouver, havemos de nos entender
às mil maravilhas.
Eis a função insubstituível do Espiritismo: explicar os fenômenos da
supranormalidade que, de outro modo, serão sumariamente recusados; reconciliar a
ciência, soberana nos seus domínios físicos, com a espiritualidade, que não a deve, nem
a pode contrariar, mas guiá-la na evolução do espírito humano, na sua caminhada para
Deus.
Com os sentidos físicos apenas alcançamos a realidade física: o microscópio nos
revela os infinitamente pequenos; o telescópio, os infinitamente grandes. A
mediunidade é o instrumento das coisas espirituais, é a souda que penetra no mundo
invisível.

286
CAPÍTULO NONO

SUMÁRIO

O uso do cachimbo faz a boca torta. Contra a


medicina alopática e homeopática. Como explica
as crianças-prodígios. Contra as escolas, a
matemática e os poetas. Prestidigitador
contumaz. Confusão de animismo com
Espiritismo. O espaço e o hiperes-paço. A
convicção promana do conjunto dos fatos
pesquisados. O retorno à mitologia grega. Como
deviam ser os espíritos na opinião dos “sábios”.
Os médiuns glossólogos e psicógrafos.
Identificação completa de Oscar Wilde. A
literatura de além-túmulo convenceu Vitor Hugo.
Silva Mello omite Chico Xavier. A história de
Chico Xavier. As condições sob as quais trabalha.
Os defensores do Espiritismo. A convergência de
provas. Pasticho, modalidade de fraude
consciente. As exigências crescentes dos
incrédulos. Chico Xavier e os críticos literários.
Casos semelhantes na literatura espírita
estrangeira. As “banalidades” das comunicações
mediúnicas. A Grande Síntese.

“Para vencer a intolerância, compreendei o Amor Divino como uma luz branca que
se pode manifestar na terra somente através das suas muitas cores prismáticas; cada cor,
quando é pura e não contaminada, tem seu lugar no coração da pura luz branca, pois a
luz branca não seria completa, se faltasse um dos raios de cores que a compõem.”

(Mensagem Rosacruciana)

“As condições necessárias para o discípulo são pureza, desejo real de conhecimento e
perseverança. Nenhuma alma impura pode ser realmente religiosa. A pureza em
pensamentos, palavras e atos é absolutamente necessária para a religião.”

SWAMI VIVEKANANDA.

287
CAPÍTULO IX

O uso do cachimbo faz a boca torta.

A vocação irresistível para demolidor, Silva Mello a deixou transparecer no seu


primeiro livro, “Problemas do Ensino Médico e de Educação”, prefaciado por Gilberto
Freyre, onde, ao lado de conceitos e de críticas construtivas, em que o médico, o seu
amor pela medicina, o conhecimento dos seus métodos de ensino, em suma, da arte
médica, em que ele é exímio, deu nascimento a uma obra consistente e útil, já sobressai,
todavia, a força destruidora do seu camaríelo. Propugnando pela refonna do ensino
médico, para livrá-lo da literatura e da oratória, das apostilas e das sebentas, das
perorações de fins de aula, a pedirem palmas e vivas, excedeu-se nas referências a
velhos professores, que tratou desapiedadamente.
Nesse livro brilha uma carta em que duas qualidades dominantes de sua
personalidade proeminam vitoriosamente. O mocinho, ainda imberbe, ou quase, apenas
iniciado nas ciências médicas, revela uma percepção supranormal, nas suas referências
acertadas ao Instituto de Manguinhos e ao Hospício Nacional, onde “uma floração de
trabalhadores afanosos principia de investigar com tenacidade e suas conquistas
penetram triunfantes no mundo médico.” Se este fenômeno do clarividência não foi
enxertado na carta íntima e confidencial posteriormente, (Silva Mello nos ensinou muito
a respeito das espertezas humanas), denunciava claramente o futuro médico, na
preeocidade incrível de seu discernimento.

“A escola de Medicina é hoje um aleijão do ensine superior, é um monstro horrendo e disforme, a


principiar no ladrilho dos anfiteatros e terminando nos cérebros moles e anêmicos dos lentes. Estes são
uns sábios opilados, com cabeça de palha e cérebro ao cortiça. São pançudos e alimentam-se de fumo, e
talvez, às escondidas, de feno ou de capim.”

O cataclismo de sua crítica, o vendaval de suas objurga-tórias desencadeou-se contra


os velhos mestres daquela Escola,

288
de onde, apesar de tudo, desentranharam-se Torres Homem, Francisco de Castro,
Misruel Couto, Austregésilo, Carlos Chagas, Osvaldo Cruz, Juliano Moreira, Afrânio
Peixoto, Cardoso Fontes, os irmãos Osório, etc, etc, o que se pode traduzir na
possibilidade daquela Escola não impedir, pelo menos, o desabrochar do talento das
verdadeiras vocações.
Palavras da moeidade a velhice, no geral, não gosta de reproduzir. Os anos e a
experiência reformaram e retificaram julgamentos estouvados. É bem possível que Silva
Mello, ao caminhar para os setenta, não subscreva mais aquele martirológio de que foi
cúmplice. Lembrando-o, aqui, queremos apenas sahentar que o nosso colega foi sempre
um temperamento desabusado, um anarquista mental perigoso, incapaz de se deter um
segundo, para tirar o chapéu a qualquer tabu.
Estreando-se nas letras com tamanha fúria demolidora, não admira que, ao lhe
tresdobrarem os anos, a ciência e a experiência, se propusesse a nos dar a todos nós “o
caminho da felicidade”, na expressão de um ardente admirador, por ministério da sua
descoberta — a biopsicologia, que define como “o estudo das condições psíquicas dos
seres vivos, descendo aos animais inferiores e mesmo às plantas”.
Quem quer que mergulhe na profundidade oceânica dos MISTÉRIOS, emergirá de lá
com uma carapuça, ou antes com um túnica — a de Nessus. Tudo se pulveriza ao seu
contacto, como a vegetação rasteira sob o peso das patas do cavalo de Átila. Quando se
lhe encasqueta na cabeça uma hipótese, passa a rasoura nos fatos e redu-los todos à
craveira desejada: os pequeninos se agigantam, os grandes se ana-nicam. A
espiritualidade muda-se em complexos, ou de superioridade ou de inferioridade, à
escolha; os instintos animais ascendem à direção suprema do homem. A sua
hermenêutica preferida, muito sua e muito original, consiste em desmoralizar os
obstáculos que se antepõem ao seu agnostieismo e ao seu irracionalismo, caricaturando-
os maldosamente, tornando-os irreconhecíveis e ridículos. Os dois postulados que
estabeleceu para abalar a convicção dos que acreditam nos fenômenos supranormais —
a pandemia das fraudes e da ingenuidade dos sábios — são um exemplo do seu estilo.
Não se pense que, dos MISTÉRIOS, apenas o Espiritismo saiu mal-ferido.

289
Contra a medicina alopática e homeopática.

A sua própria amada, a Medicina, recebe acutiladas tremendas, quando coteja o que a
sugestão obra por si mesmo - quase tudo — e o que os médicos alopatas, de que é um
espécime dos mais completos, são incapazes de fazer.
Alguns trechos sintomáticos serão suficientes para que o leitor possa compreender o
esforço que ele despende na conciliação entre a Medicina, ciência positiva, e a
espiritualidade, em que é absolutamente jejuni,. O bom médL não deve ter vergonha de
aceitar a “colaboração de Lourdes ou de qualquer taumaturgo”; em geral, despreza-se
“por demais as forças espirituais”, delas se servindo o médico somente “de maneira fria,
acanhada, mesmo quando emprega processos da psicoterapia.” Investe contra os
médicos” a Medicina, os hormônios, as vitaminas, os extratos de órgãos, as vacinas e
produtos químicos, tudo isso não passando de uma psicoterapia armada, superficial
“muito semelhante à dos curan-deiros e espíritas, com os seus remédios secretos ou
revelados, embora talvez menos digna, porque mais dispendiosa.” Obrigado!
As receitas de vitaminas equivalem a aguinhas e bebe-ragens. Uniformidade: “parece
que a ignorância é muito semelhante e que, no final, quase nenhum deles sabe o que está
fazendo.” Os médicos só se distinguem dos charlatães e dos espíritas, porque se
pavoneiam com a terminologia científica, “embora, não raro, agindo de maneira
horrorosamente charlatanesca.”
Tudo isso lhe ocorreu, porque viu que a sugestão, com simplicidade extrema, cura
tudo: “é um processo natural e fisiológico, que pode ser encontrado dentro das mais
variadas manifestações da vida normal.”
Diante dessa exposição de motivos assinada por um dos representantes mais
graduados da Medicina, só nos falta a complementação de um Decreto que ordene o
fechamento imediato de todas as escolas médicas e de todos os laboratórios, para que a
sugestão os possa substituir com as maiores vantagens, principalmente para a grande
massa de doentes. B lá se foi a alopatia,
Salvar-se-á a homeopatia, eminentemente sugestiva? Salvar-se-á, contanto que mude
de nome e de processos, pondo a água pura no lugar das dinamizações, porque estas,
aliás, ao alcançarem a trigésima centesimal ‘não contêm mais

290
nenhum dos elementos conhecidos da matéria em solução.” Todo o fundamento da
homeopatia está na sugestão. E pergunta? “Por que não se pensou na sugestão, que está
tão à mão e é capaz de tantas maravilhas?”
Os homeopatas poderiam responder-lhe que, não pensaram nela, porque os seus
doentes curados já tinham experimentado as sugestões mil vezes mais sugestivas do
arsenal de guerra dos seus confrades alopatas.

“Antes de tudo, continua o rábula do materialismo, é preciso considerar que nos encontramos aí diante
do ser humano, cujas doenças e funções orgânicas podem ser influenciadas por tôda a sorte de sugestão.”

Eis a panacéia para curas maravilhosas: “nunca negar a existência da doença, rnas
afirmar que ela se vai curar pela ação de forças sobreumanas.” E todos nós passaremos a
morrer de velhice. A exploração das forças sobreumanas, por quem não acredita nos
prefixos sobre, supra, ultra, etc, é uma apropriação indébita do patrimônio alheio.
Conclusão de um ateu para o qual “no pó da terra” está a nossa esperança de melhores
dias:

“Quando se diz que é a “fé que salva”, emprega-se uma expressão rigorosamente científica.”

Muito bem! Mas, se é a fé que salva, se é a fé que cura doenças materiais, todas elas,
desde o câncer até as verrugas, conforme já o resumimos em páginas anteriores, se é a
fé que anula o determinismo dos órgãos e as correlações das funções, a que fica
reduzido o materialismo, que só admite o que lhe entra pelos sentidos? Para onde
mandaremos a medicina alopática e a homeopática? Ninguém se ria, porque a carapuça
para cada um está bem talhada nas páginas dos MISTÉRIOS.
Sendo-lhe necessária a sugestão para explicar os supostos “milagres” de modo
simples, terra-à-terra, naturalismo, elevou-a a grandes e vertiginosas alturas. Aí encontra
a medicina charlatanesea, e a desanca; topa a homeopatia e a extingue na última
dinamização.

Como explica as crianças-prodígios.

As crianças-prodígios ele as explica como produtos de “processos mentais, operando


automaticamente, fora da alçada

291
da consciência.” Quem poderá destrinçar o enigma, que se tornou agora mais
complicado ainda?
O automatismo, tanto psicológico, como fisiológico, pressupõe, naturalmente, a
experiência anterior, o conhecimento prévio do assunto. Os nossos órgãos trabalham
dentro do automatismo fisiológico, porque para isso se prepararam, desde o começo de
sua existência e são dotados de uma como consciência de sua especificidade, de um
instinto dela. O fígado segrega a bile independente da nossa vontade, segre-ga-a sempre
do mesmo modo e nas mesmas proporções. Todos os fígados humanos, dentro do seu
automatismo, são iguais, anatômica e fisiologicamente. Há correlação absoluta entre o
órgão e a sua finalidade. Automática. Se um fígado se excedesse a si mesmo,
produzindo, por processos físicos, não somente a bile, mas outro produto qíalquer,
como á adrenalina, sairia fora da alçada de sua consciência normal. Seria um fígado-
prodígio, inexplicável, porque se excetuaria ao seu automatismo fisiológico.
Quem diz que a precocidade na música, no desenho, na pintura, nas matemáticas, etc,
é produto de um processo mental, operando automaticamente, fora da alçada da
consciência, não explica absolutamente o mecanismo dos fatos, apenas traduz em
palavras o prodígio observado.
Precocidade é igual a uma atividade inconsciente e automática... Por que razão o
cérebro que, normalmente, orgânicamente, fisiològicamente, só realiza tais maravilhas
depois do trabalho insano de aprendizagem, pode fazê-lo sem o ter exercitado, pode ser
a sede de uma atividade excedente às suas potencialidades? Em virtude do
automatismo... Automatismo de que? Quando nos desincumbimos de qualquer ação
automaticamente, só o conseguimos, depois de termos adquirido a virtuosidade
necessária Automaticamente, a criança, ao levantar-se, vai fazer a sua higiene
costumeira... depois que os pais lhe incutiram o hábito.
Somente depois que aprendeu as figuras musicais da semibreve, mínima, semínima,
colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa; somente depois que se lhe desenvolveu por
meio de exercício continuados e progressivos a coordenação sensitivo-motora e o
automatismo de vários movimentos musculares, processo psico-fisiológico complexo e
laborioso, porque “sem o exercício, sem a imitação, todas as nossas funções psíquicas
permaneceriam em estado, embrionário” (Claparède); sem que aprenda a conhecer o
colorido musical do rallentando, schersando, ritornello, ad libitum, os tempos musicais
do

292
adágio, andante, presto, prestissimo, as dificuldades do dedilhado e da harmonia,
enquanto não incorporou tudo no automatismo psico-fisiológico, o pianista comum é
apenas promessa que, as mais das vezes, não se realiza.
Tocar e compor peças ao piano, como Mozart, aos 4 anos de idade, ou como Pepito
Arriola, aos 3 anos e meio; falar três línguas, aos dois anos de idade, como Henri
Heinecken; dirigir uma orquestra, aos 4 anos e meio, como Ferreros; morrer aos 11 anos
de idade e deixar 350 quadros, como Van de Kerkhove, de Bruges; descobrir as 32
primeiras proposições de Euclides e publicar um Tratado sobre secções cônicas, aos 13
anos, como Pascal; compor, na mesma idade, versos gregos e latinos, como Pierre de
Lemoignon; estudar hebraico, aos 3 anos, ser considerado o primeiro matemático de seu
tempo, aos 8 anos, falar 12 línguas aos 13, como William Hamilton; discutir em latim,
grego, hebraico e árabe, qualquer assunto, como o escocês Jaqúes Chrichton, o “gênio
monstruoso”, aos 15 anos, eis algumas das muitas maravilhas “automática;-...
Se o psiquismo humano chegou a tais alturas, sem se utilizar quase do trabalho de
suas células cerebrais, não sobraram elas, evidentemente, dentro daquelas cabeças?
Poderíamos aceitar, sim, para a explicação de tais precocidades, a teoria do
automatismo psicológico, desde que este, a seu turno, aceitasse a da reincarnação.
Então, os fenômenos se torna: riam compreensíveis: o automatismo atual ajuda-se,
apóia-se em experiências seculares, em estudos processados em épocas longínquas, em
investigações reiteradas de passados remotos, que deixaram a sua assinatura gravada,
em marcas indeléveis, no modelo perispiritual.

Contra as escolas, a matemática e os poetas.

Na sua agitação de braços, muito semelhante às fraudes inconscientes que viu em


todos os médiuns, Silva Mello chega a insinuar (nestes momentos ele não trepida!) —
“a nossa educação e a nossa vida social inibem, extraordinariamente, as nossas
faculdades intelectuais, motivo pelo qual demos razão ao filósofo, quando afirmou que
as crianças entram para a escola como pequenos gênios, para dela saírem como
verdadeiros imbecis.” O homem tanto leu, que tresleu.
Já, fechamos as Escolas de Medicina, tanto alopáticas, como homeopáticas; agora
vamos cerrar as portas a todas

293
as escolas primárias e secundárias, para que os homens e as mulheres não se
imbecilizem mais...
É realmente muito difícil alcançar este colega, no brinquedo do pegapega. Ele
desafia a precocidade nas artes a que lhe venha dar quinaus na Medicina, porque nesta
se torna insubstituível a aprendizagem lenta e progressiva, excluindo-se qualquer
oportunidade para os precoces, isto é, para os indivíduos que sabem sem ter aprendido.
Mesmo na engenharia e na medicina já houve precoces: Georges Steuler obteve, aos 13
anos, o diploma de engenheiro; Willie Gewin, uma criança de 5 anos de idade, teria
recebido o diploma de médico pela Universidade de Nova Órleãs. Joan Maude, de 5
anos, filho do autor inglês Maude, publicou, em Londres, sua primeira produção
literária — “Atrás das Trevas da Noite”.
Em relação à arte médica, cuja finalidade maior é o diagnóstico, porque a cura quem
a dá ou não é a Força “que nos guia e conduz, aonde bem lhe pareça”, poderíamos
lembrar-lhe que certos médiuns o fazem, “com alto grau de precisão”, segundo o seu
próprio testemunho, sem diplomas e à distância. Contentar-se-ia Silva Mello com uma
precocidade diagnosticadora? Se todos os precoces fossem desse tipo, ele diria que os
conhecimentos médicos estão nos livros de fácil alcance, que o subconsciente,
misturado com o automatismo psicológico, elabora, nas camadas mais profundas do
psiquismo... etc., etc. Para ele, gênios legítimos só a Medicina pode fornecer ao mundo.
Entre os matemáticos, os músicos, os pintores e os poetas costumam vicejar a obtusi-
dade, a mediocridade e a imbecilidade: são as causas prováveis das estranhas
precocidades. Citemo-lo, para que não se pense em fraude de nossa parte:

“Se muitos calculadores mentais são pouco inteligentes, medíocres ou mesmo imbecis, como se tem
verificado igulmente em relação à música, à pintura, à própria poesia, podem essas mesmas faculdades
(ainda bem!) ser encontradas em indivíduos, verdadeiramente geniais.”

Sintetizando algumas considerações sobre o ato de pensar, sobre a memória e as


idéias latentes, conclui que “o nosso cérebro guarda todas as impressões recebidas, mas
num momento dado, a memória não se serve senão daquelas que são necessárias ou
justificadas.” Essa linguagem é compreensível; o que traduz é verdadeiro, destoando,
porém, do automatismo psicológico. Que o nosso cérebro seja um arqui-

294
vo, que contenha acontecimentos de que não nos lembremos, senão num dado momento
necessário, eis uma verdade que se aceita sem relutância; que se percam fichas antigas,
também é notório. Se é um repositório de impressões recebidas, e já seria muito, como
pode apresentar fichas verdadeiras de aptidões não exercitadas?

Prestidigitador contumaz.

Usando aquele truque que já denunciamos mais de uma vez — o de relatar fielmente
os fatos espíritas para angariar e iludir a opinião do leitor e sugestionádo a seu favor,
Silva Mello assim nos descreve um dos casos impressionantes de psicografia, em
virtude dos nomes respeitáveis das pessoas que lhe são personagens:

“Gabriel Delanne, um dos representantes mais respeitáveis do Espiritismo na Europa, depois de dizer
que a escrita automática não pode ser explicada senão pela intervenção dos mortos, relata que a sua
própria mãe possui em alto grau êsse dom da chamada psicografia, podendo escrever coisas diferentes ao
mesmo tempo com as duas mãos, por vezes até em línguas que desconhece e prosseguindo, durante a
execução desse ato, na conversa com as pessoas presentes. Delanne descreve o fenômeno nos seguintes
termos:
O médium, mesmo sem estar adormecido, escreve diretamente, às vezes com as duas mãos ao mesmo
tempo, mensagens diferentes, sustentando ainda conversação sobre outros assuntos. As respostas são
absolutamente claras, verificáveis e, muitas vezes, redigidas em idioma que ele não conhece. Isto
demonstra, portanto, que as suas duas mãos devem obedecer a uma inteligência que não a sua. Eu vi
minha mãe, que é um excelente médium, dar, assim, a um russo, uma resposta em russo, com a escrita
exata da mãe desse estrangeiro, falecida há muito tempo; para um italiano, ela escreveu uma mensagem
num dialeto dos arrabaldes de Turim, ditada pelo espírito da progenitora do interlocutor.”

Sendo-lhe impossível a arguição de fraude ou de falsidade na narrativa, apenas se


apega ao automatismo psicológico, que, a seu ver, torna tudo muito natural, dispensando
a presença dos espíritos:

“É claro que nessas condições, quando o mecanismo do auto-matismo psicológico


não era ainda conhecido, tornava-se natural pensar em forças sobrenaturais e até na
presença de espíritos.”

E cita fatos e mais fatos da mesma natureza, até que esbarre nalguma experiência
pouco concludente, defeituosa, de autor pouco conhecido, para tirar a desforra.
Por que razão tem a coragem inaudita de pôr aos olhos do leitor, abonando-os com a
sua autoridade de historiador, referendando-lhe a veracidade, os fatos espíritas de maior

295
efeito e da maior força probante, contrários à sua tese ? Parodiando Max Dessoir,
poderíamos perguntar: se não é truque, o que é, então? Ditas por ele, todas as verdades
do Espiritismo devem transformar-se em mentiras deslavadas... Quer introduzir no
subconsciente do seu leitor o seguinte álibi:
— Ora, fatos como esses que me conta, o Silva Mello os possui às dúzias nos seus
MISTÉRIOS. A simples citação de Silva Mello os invalida para o resto da vida.

Confusão do animismo com Espiritismo.

Para explicar o que não cabe, evidentemente, dentro da sua pequenina biopsicologia,
vai buscar na hipno e - manifestação anímica em que, ao lado do hipnotizador deve
haver o hipnotizado adormecido, agindo como autômato, sem espon-tanentade e sem
inteligência, a prova de que não há espíritos.
Compara a operária que Luys adormeceu, fez subir ao estrado para realizar uma
conferência, repetindo palavra por palavra “uma esplêndida preleção que o doutor Luys
havia feito precedentemente, na presença de Charcot, “minutando a voz e o gesto do
ilustre professor”, com os fatos da mesma essência (transmissão do pensamento e das
palavras de um espírito através do médium), imprevistos, espontâneos, reveladores de
conhecimentos que nem os assistentes, nem o médium, possuem.
Se a improvisação, a espontaneidade, a denunciação de conhecimentos literários,
científicos, históricos, de línguas estrangeiras, através de um só indivíduo vivo, não
difere, substancialmente, da hipnose a dois, ensaiada e contracenada, ou da sugestão
provocada no momento, então, não poderemos jamais distinguir, em nossa vida social,
os fatos autênticos que nos ocorrem na vida real, das cenas teatrais a cujas
representações estivermos presentes. O real e o ilusório são tudo a mesma coisa. Não
somos, nunca fomos, instrumentos de percepção: somos, apenas, mentecaptos.
A técnica de Silva Mello é sempre a mesma. Assim como teve a coragem de
comparai as materializacões obtidas por Crookes e Richet ao ilusionismo de um mágico
alemão, que fazia um frango frito ressuscitar, não se teme de comparar a psicografia
com o hipnotismo, dois fenômenos de natureza supranormal, um quase sempre anímico,
outro quase sempre espírita, parecidos, sim, como o verdadeiro pode parecer com o
fabuloso, e vice-versa.

296
Pelas experiências descritas por William Stead, ficamos cientes de que existem
“comunicações mediúnicas entre seres vivos”, facilmente contraprovadas, por
intermédio da psicografia. Realizaram-se verdadeiras conversações entre duas
personalidades subconscientes, à distância. O célebre jornalista foi notabilíssimo
psicógrafo, tal como é, assombrosamente, o nosso humilde funcionário público de
Pedro Leopoldo, o autor de 40 obras imortais, o Francisco Cândido Xavier, que soma
em si a sabedoria e a arte literária dos 40 imortais da Academia Brasileira de Letras.
Mediúnicamente, Stead conversou com personalidades vivas, obtendo delas
informações que, por outras vias mais diretas não teriam sido feitas, nem mesmo
confidencialmente. Tais experiências lhe foram sugeridas pela personalidade
extraterrena de “Júlia”.
Eis como os fatos se deram:

“Um dia, escreveu “Júlia”: “‘Por que te surpreende que eu possa servir-me de tua mão para me
corresponder com minha amiga” Qualquer um pode fazê-lo” — Perguntei-lhe: “Que queres dizer com
esse “qualquer um”? — Respondeu: “Qualquer um, isto é, qualquer pessoa pode escrever com a tua
mão.” — “Perguntei mais: “Queres dizer qualquer pessoa viva?” — Ela replicou: “Qualquer amigo teu
pode escrever com a tua mão.” — Ao que observei: “Queres dizer que se eu pusesse a minha mão à
disposição dos meus amigos distantes, eles poderiam servir-se dela do mesmo modopor-que o fazes?” —
Sim; experimenta e verás.” — Pareceu-me que ia tomar sobre mim uma árdua tarefa; mas, decidi tentar a
experiência. Os resultados foram imediatos e espantosos...”
“Coloquei, pois, minha mão às ordens de amigos que residiam em diversos lugares distantes e
verifiquei que eles, em sua maioria, estavam em condições de comunicar-se, embora variasse muito a
capacidade, que tinham, de fazê-lo. Alguns escreviam de súbito e correntemente, com as suas
características de estilo, de forma, de caligrafia, às primeiras palavras transmitidas, para depois
prosseguirem com intermitências, como se escrevessem normalmente uma carta. Confiavam-me seus
pensamentos, informavam-me que tinham a intenção de me vir consultar, ou me contavam como haviam
empregado o dia. O que, porém, mais me surpreendia nessas conversações, já de si mesmas
surpreendentes, era a inconcebível franqueza com que vários de meus amigos, que eu, estava certo, tão
bem lhes conhecia a sensibilidade, a moderação e a reserva, jamais me teriam confiado alguns de seus
segredos pessoais, ou alguns de seus embraços econômicos, me declaravam com a maior franqueza achar-
se em dificuldades financeiras, ou me falavam sem reservas de outros vários reveses íntimos.
Essa circunstância me pareceu tão séria, do ponto de vista social que, um dia, pedi a respeito
explicações a “Júlia”, nestes termos: “Preocupam-me seriamente os resultados que tenho obtido neste
novo campo de pesquisas, por se me afigurar que se os ou-

297
tros fizessem como eu, não haveria mais segredos neste mundo.” — Ela respondeu: “Oh! não. Tu
exageras.” — Ao que lhe retruquei: “Então, como se explica que pela minha mão um amigo me revele
segredos pessoais que, normalmente, teria o cuidado de me não revelar?”
“Foi-me dada uma explicação, que não apresento como definitiva, mas unicamente como a explicação
de “Júlia”, escrita com a minha mão, e que, sem dúvida, não é produto de minha subconsciência, visto
que ela nunca me passou pela mente. Disse “Júlia”: “A vossa personalidade real, ou espiritual, jamais
confiará a ninguém, por via mediúnica, coisas que se considere no dever de guardar em segredo e, se às
vezes confia incidentes mais ou menos íntimos, fá-lo com plena consciência do que faz. A diferença está
em que a vossa personalidade real ou espiritual, pensa e julga de um fato pelo seu valor intrínseco, muito
diversamente do modo por que procede a vossa personalidade normal.” — Perguntei: “Que é que
entendes por personalidade real, ou espiritual?” — Respondeu: “A vossa personalidade real, ou espiritual,
isso a que chamais o vosso “Eu”, vigia e governa tanto a vossa mentalidade consciente, quanto a
subconsciente, usando de uma e de outra, à sua vontade. A vossa mentalidade consciente se serve das
faculdades sensoriais para comunicar-se com os seus semelhantes, quando estes se acham ao alcance
daquelas faculdades que, contudo, são muito rudimentares na sua potencialidade.
“ O mesmo já oão se dá com relação às faculdades sensorials da mentalidade subconsciente, que são
um instrumento de comunicação muito mais sutil, apurado e eficiente, porque se conservam sempre a
serviço da vossa personalidade espiritual que, quando deseja comunicar-se com alguma pessoa distante,
se serve da mentalidade subconsciente, que, entretanto, nunca se presta ao fim absurdo de revelar a outros
aqueilo que, verdadeiramente, deva conservar-se em segredo, da mesma maneira que não revelaria
normalmente com a língua. Em suma, a vossa personalidade real, ou espiritual, é senhora absoluta dos
seus instrumentos de comunicação.
“Perguntei ainda: “De que modo se realizam tais comunicações?” — Resposta: — “Como? Não o
compreendes? Os espíritos de todo o universo se acham em contato uns com os outros, de sorte que,
podes falar com a personalidade espiritual de qualquer pessoa no mundo, sem limites de distância, com a
única condição de que a tenhas conhecido pessoalmente. Se podes falar a uma pessoa que encontres,
porque já a conheces, também podes conversar com ela, em qualquer parte do mundo onde esteja,
convidando-a a escrever com a tua mão.
“...Talvez por se achar ainda imperfeitamente desenvolvida a minha mediunidade, o fato é que não
consigo entrar em relação com todos os meus amigos e que noto grande diferença no valor intrínseco das
suas comunicações. Assim, por exemplo, alguns ha que me comunicam coisas de caráter pessoal com
extraordinário cuidado, de maneira que, em cem afirmações suas, não surge uma só inexata. Em
compensação, outros há que aparentemente se manifestam com suas características pessoais e assinam
com seus nomes as comunicações, mas que transmitem informações completamente falsas. Nada
obstante, a maioria deles demonstra o maior cuidado em transmitir suas notícias; mesmo, porém, nessas
circuns-

298
tâncias, ressalta um fato curioso e é que, se peço — figuremos um caso — a um amigo de Glasgow
notícias da sua “inflamação facial”, ele me responde com escrupulosa exatidão, ou que vai piorando, ou
que seus furúnculos se abriram e que tem o rosto coberto com um cataplasma, subescrevendo as
mensagens com sua firma. Entretanto, quando me encontro com o amigo em carne e osso, e lhe apresento
o seu escrito, ele absolutamente não se recorda de haver conversado comigo.
Pedi a “Júlia” que me elucidasse a êsse respeito, formulando nestes termos a minha pergunta: “Como
se explica que, quando perguntei ao meu amigo como estava da sua “inflamação facial”, ele me informou
do seu estado e não se recorda de se haver comunicado comigo? Desde que a nossa personalidade
espiritual nunca transmite informações sem ter plena consciência do que faz, como se explica que os
amigos me forneçam informações e depois ignoram que mas deram?” Ela respondeu: — “Quando te
diriges mediunicamente a um amigo teu, a sua personalidade espiritual responde por meio das faculdades
mentais subconscientes, não mais por meio das faculdades conscientes ou cerebrais, e naturalmente, não
cuida de dar a saber à sua mentalidade consciente ou cerebral que ela transmitiu uma informação a quem
lha pedira, servindo-se das faculdades mentais subconscientes, uma vez que não é necessário que o faça.
Se, porém, julgasse conveniente fazê-lo, então o teu amigo se recordaria.” (Light, 1893, págs. 134-143).

Quer se chame ao autor dessas comunicações anímicas subconsciente ou perispírito,


é qualquer coisa imaterial, não pode deixar de sê-lo, que irradia de uma personalidade
viva e é captada por outra personalidade viva. Subconscientemen-te, de um lado;
psicogràficamente, do outro, desde que haja a intonização de vibrações específicas entre
a estação emissora e a receptora, expandindo-se as outras vibrações para o éter infinito.

O espaço e o hiperespaço.

Os seres vivos movemo-nos num espaço de três dimensões, que são também as
dimensões do nosso corpo. Mas o nosso espírito lança-se, no momento que deseja, pelos
espaços infinitos, vivendo, por conseguinte, dentro da quarta dimensão, que podemos
compreender facilmente, desde que compreenda: mos primeiro o espaço sem dimensão
alguma, que seria o infinito.
No mundo físico, ou no espaço, vive o tipo de três dimensões; o hipertipo ou espírito
vive no hiperespaço, participando de sua transaltura. Depois da morte, dá se a cada um o
que lhe pertence: o corpo físico permanece no espaço de três

299
dimensões; o espírito recupera a sua liberdade e vai para a quarta dimensão, nos espaços
infinitos.

“O corpo material que possuímos não passa de simples intersecção entre o hiperespaço e o espaço
euclidiano; os fenômenos de nascimento, desenvolvimento e morte, são fases diversas da passagem do
nosso “eu” para o hiperespaço. Logo após a morte, a matéria que constitui o corpo permanece no espaço
inferior, enquanto a ai-ma é transportada ao espaço superior. Admitida a alma cor. hipertipo, todos os
chamados fenômenos espíritas estariam racionalmente explicados. O Espiritismo seria a vida na
transaltura do espaço.” (C. H. Hinton).

A convicção promana do conjunto dos fatos pesquisados.


Eis as conclusões a que chegou Ernesto Bozzano, no “Animismo ou Espiritismo?”,
livro que precisa de ser lido, como todas as teses desse extraordinário filósofo
espiritualista, pelos que andem, de fato, à procura da interpretação dos fenômenos
supranormais:

“No capítulo sobre casos de “comunicações mediúnicas entre vivos”, comecei por explicar que,
produzindo-se processos idênticos àqueles pelos quais se produzem as comunicações mediúnicas dos
defuntos, aquelas outras ofereciam a possibilidade de aprender-se melhor a gênese destas últimas,
lançando luz nova sobre as causas dos erros, das interferências, das mistificações subconscientes que
nelas se deparam e, sobretudo, contribuindo a provar com rara eficácia a realidade das comunicações
mediúnicas com os defuntos, pe la consideração de que, nas comunicações entre vivos, se pode verificar a
realidade integral do fenômeno, interrogando as pessoas colocadas “nas duas extremidades do fio” e
comprovando que os fatos se desenrolam conforme o diálogo supranormal o fazia supor.
Daí a sugestiva dedução de que, quando “na outra extremidade do fio” se acha uma personalidade
mediúnica que afirma ser um “espírito de defunto” e o prova dando informações biográficas que todos os
presentes ignoram, racionalmente se deve concluir que “do outro lado do fio” está o espírito do defunto
que se declara presente, do mesmo modo que nas comunicações entre vivos é positivamente certo que “no
outro extremo do fio” está o vivo que se manifesta mediünicamente.”

Não nos devemos admirar que Silva Mello, cujas obras têm tido sempre como
principal leit motiv um apelo veemente “ao instinto que fala, que opina, que fornece
ordens e determinações” (Alimentação, Instinto e Cultura”, pág. 287), com preterição
injusta da inteligência, quando nem mesmo Geley, o espiritualista e espiritualizado
Geley, “o genial propugnador de um Espiritismo cientificamente compreendido”,
negava

300
razões aos metapsiquistas, segundo os quais qualquer fenômeno pode explicar-se por
meio das faculdades supranormais da subconsciência, o que redundaria na
impossibilidade de se provar a sobrevivência.
Ocorreu-lhe aqui aquela estranha incapacidade, já assinalada por Stanley De Brath e
por Ernesto Bozzano — a de não firmar convicções ou opugnações sobre o conjunto
dos fatos pesquisados, “tendo-se presentes sempre ao critério da razão todos os dados
constitutivos da questão a resolver-se, dados perfeitamente conhecidos daquele que os
olvida.”
Efeitos de uma causa única — o espírito humano, encarnado ou desencarnado — os
fenômenos anímicos e os fenômenos espiríticos facilmente se confundem.

“Decorre daí, conclui Bozzano, um importante ensinamento: que os fenômenos metapsíquicos


considerados em conjunto, a começar pela modestíssima tiptologia do trípode mediúnico e pelos estalidos
no âmago da madeira, para terminar nas aparições dos vivos e nas materializações de fantasmas
vitalizados e inteligentes podem ser fenômenos “animicos” ou “espíritas”, conforme as circunstâncias. É
racional, com efeito, supor-se que o que um espírito “desencarnado” pode realizar também deve podê-lo
— embora menos bem — um espírito “encarnado”, sob a condição, porém, de que se ache em fase
transitória de diminuição vital, fase que correspondesse a um processo incipiente de desencarnação do
espírito (soro fisiológico, sono sonambúlico, sono mediúnico, êxtase, delíquio, narcose, coma).
Segue-se que, em metapsíquica, se é obrigado constantemente a analisar, caso a caso, os fenômenos
supranormais, antes de concluir acerca da gênese anímica ou espírita de cada um, o que eqüivale a
reconhecer que o erro mais grave em que pode cair um pesquisador é o de apressar-se a generalizar,
estendendo a todo um grupo de fenômenos supranormais as conclusões legitimamente aplicáveis a um só
episódio. E é esse o erro em que muito amiúde incorrem tanto os animistas totalitários, como os
espiritistas. Nos primeiros, porém, semelhante erro constitui regra sistemática, pois se assim não fosse,
êles não seriam animistas totalitários.”

Enquanto só possuíamos o testemunho dos defuntos, através da mediunidade, era


natural que os observadores de visão deformada e unilateral da metapsíquica, e até
mesmo alguns espiritualistas, não se dessem por satisfeitos, mesmo quando os defuntos
eram seus e lhes confidenciavam segredos íntimos. Sempre ficava margem para a
criptestesia onisciente, embora revestida de um atributo roubado à Divindade.
Quando, porém, se chega à conclusão de que os vivos confirmam os mortos, de que o
animismo confirma o Espiritismo, de que, ao lado das comunicações dos desencarnados

301
que deram todas as provas usuais de identidade sobre as quais nos orientamos,
confiantemente, na vida social — caligrafia, estilo, conhecimentos gerais on
especializados, confidencias familiares, excentricidades, etc, uma vez on outra ‘a
materialização (como no caso de Raquel Figner), completando-se tais indícios com as
provas provadas das comunicações inter vivos, que podem ser perfeitamente controladas
e postas ao alcance do misoneísmo mais irredutível, desde que se estabeleçam entre êles
a sintonização necessária, então só nos resta deixar que as águas corram debaixo das
pontes. Porque a verdade, como o sol, se às vezes se oculta, para intrigar os homens,
acaba por brilhar e resplandecer de modo a espancar todas as trevas e todos os erros.
Até mesmo as inteligências padecentes de lacunas psíquicas tamanhas, como o nosso
Silva Mello, até mesmo os refratários incapazes de assimilar as verdades colocadas fora
de suas “zonas lúcidas”, como os qualificou Paul Gibier, esses mesmos, os que “não
possuem uma zona lúcida orientada, para a compreensão da nova “Ciência da Alma”, e
vivem na ilusão de possuir discernimento íntegro em todas as direções e, por
conseguinte, lançam aos outros a pecha de serem vítimas de preconceitos místicos”
(Bozzano), com o perpassar do tempo, nesta encarnação ou na futura, acabarão como
Bouillaud, que quase esganou Moncel, na Academia de Ciências de Paris, na primeira
apresentação do fonógrafo de Édison, por aceitar os fatos em tôda a sua plenitude.

O retorno à mitologia grega.

Com o horror da natureza pelo vácuo corre parelha a fúria insensata da biopsicologia
de Silva Mello pelo espiritual, que classifica de sobrenatural e de milagreiro. A energia
é, no entanto, a única realidade, no mundo físico, assim como o espírito é a única
entidade viva existente no hiperespaço; é uma substância ao mesmo tempo estável e
evolutiva, não sendo tudo o mais que nos fere os sentidos físicos, segundo a moderna
teoria eletrônica, do que uma condensação variável dela.
A energia perceptível no ímã e a imanente na partícula mínima de todos os corpos
brutos, a matéria irradiante de Crookes, já nos permitem entrever a natureza da força
espiritual que nos seres vivos traça o “modelo ideal” de todas as células, desde o do
zoófito até o da célula cerebral do homem. Para negar este postulado científico,
equivalente ao mono-

302
teísmo, substituto do politeísmo dos nossos antepassados, a biopsicologia, que desceu
ao irracionalismo e até ao reino vegetal, numa regressão denunciadora da sua
inferioridade de vista, precisa de inventar as hipóteses mais estapafúrdias, acabando a
sua metapsíquica no seio imaginoso das mitologias.
Personificou em Pã, com os seus chifres e pés de cabra, a epidemia universal de
fraudes e a psicopatia de imbecilidade dos sábios; o Júpiter, o vencedor dos Titãs e do
próprio pai Saturno, que deu a Netuno o mar, a Plutão os infernos, guardando ainda para
si nada mais do que o céu e a terra, o Júpiter Tonante, o Júpiter Ferétrio, chama-se agora
Subconsciente. Com as suas filhas, as nove musas, distribui as graças do Automatismo:
a música para Euterpe, a poesia lírica para Polímia, a eloqüência e a poesia heróica para
Catíope, etc... Sobram ainda semideuses e heróis para a sugestão e o hipnotismo, para a
memória, a consciência, a bondade, a moral, havendo de servir um dia, tôda essa
história fabulosa, de subsídios para o estudo da ciência materialista, como as verdades
mitológicas ilustram hoje a história das religiões.

Como deviam ser os espíritos, na opinião dos “sábios”.

Quando, por absurdo, alguns “sábios” concordam com a existência dos espíritos, não
os aceitam tal como êles próprios se definiram — uma humanidade sem corpos físicos
— procedem como os fanáticos e os jacobinos franceses, os quais facilitaram a Dreyfus
a oportunidade de conquistar os galões de sua farda e as medalhas condecorativas, para,
diante de um pretexto, da hipótese de um documento subtraído a uma legação
estrangeira, levá-lo à cena horripilante da degradação pública, a toque de caixa.
Para Silva Mello, da convivência com os desencarnados não nos veio até agora
nenhum conhecimento útil, nada perfeito e e exato, senão “falhas e imprecisões,
demasiadamente naturais”, banalidades de grosso calibre, “não tendo surgido até hoje
qualquer descoberta que tivesse sido realizada por meio de recursos chamados
erroneamente de supranormais.”
Quem conhece as “descobertas” de Silva Mello, o seu ideal de ciência registrado na
“Alimentação, Instinto e Cultura” e no “O Homem” — tudo que se relacione — com o
anabolismo e o catabolismo — tem de anuir em que os espíritos, a não ser os
galhofeiros e vadios, não se interessam

303
mais pelo “pó da terra”, em que se transformaram os seus corpos de carne.
Se é natural que nas comunicações dos espíritos encontremos parcelas de verdade e
de conhecimento que podem existir também “nalgum cérebro vivo ou num livro
existente sobre a terra”, muitas vezes tais comunicações contêm ensinamentos,
principalmente da natureza com que os espíritos se devem preocupar — morais e
espirituais, filosóficos e religiosos — que transcendem as noções dos terrícolas
prisioneiros na brutalidade da carne.

Os médiuns glossólogos e psicógrafos.

Do valor das obras mediúnicas literárias e filosóficas só possuem credenciais para


falar os literatos e os filósofos. Vamos ouvir o que êles disseram, abstração feita da
existência dos espíritos.
A primeira característica maravilhosa do fenômeno consiste na desproporção entre os
conhecimentos dos médiuns e as suas exteriorizações artísticas. A mãe de Gabriel
Delanne escrevia, ao mesmo tempo, com as duas mãos em línguas estrangeiras, que não
conhecia; Laura Edmonds, dialogava em várias línguas, que nunca aprendera; Augustin
Lesage, trabalhador de minas e descendente de mineiros “tornou-se subitamente
extraordinário pintor de decorações, tendo obedecido a uma voz que parecia vir do
exterior e que, enquanto ele mourejava nas galerias da mina, lhe dizia: “Tu serás
pintor!”; Georges Aubert, mesmo quando impossibilitado de ouvir as suas
improvizações ao piano, graças ao ruído ensurdecedor de dois fonógrafos nas
proximidades de seus tímpanos, não se perturbava nas suas “inspirações”; a
Magdeleine, de Schrenk-Notzing, senhora respeitável, dançava de improviso qualquer
música, com gestos e movimentos de quem estava sob a atuação direta de Terpsícore;
Andrew Johnson Davis, o maior fenômeno psicológico dos tempos modernos, na
opinião de Aksakoff, filho de sapateiro, com sete meses de freqüência na escola
primária, ditou, diante de testemunhas dignas e de responsabilidade, 157 preleções (Os
princípios da natureza, suas revelações divinas e uma mensagem à humanidade), onde
abundavam conhecimentos de Cosmogonia, Astronomia, Geologia, Arqueologia,
Mitologia, Teologia, Psicologia, etc. Todas essas manifestações de intelectualidade se
não ultrapassam a inteligência humana ainda encarnada e não nos fornecem a solução
de todos os problemas que nos

304
torturam (derrogando a lei da evolução, prescrita por Deus), para serem “explicadas”
pelo materialismo, forçam-no à regressão aos tempos áureos da mitologia.
Ao lado da mediunidade verdadeira aparece, mais comumente, assim como a meia
ciência e a ignorância são mais encontradiças, produtos de fancaria, acabados
contrabandos, cuja paterniáade é a elaboração onírico-subconsciente, que concorre com
as tolices e banalidades de espíritos comunican-tes, sem ciência e, o que é pior, sem
moral ou de moral simulada, para obsidiar os incautos.
A autora da “Cabana de Pai Tomaz”, Sra. Beecher-Stowe, cujo marido, o Professor
Stowe, era médium vidente, não podendo, muitas vezes, distinguir os espíritos
encarnados dos desencarnados, já septuagenária, esclareceu que não fora a autora de seu
livro: “Deus o escreveu. Foi ele quem mo ditou.” Quando, no enredo, Evangelina
morreu, a autora confessou que, ignorando o acidente romanesco, chorou, como se
tivesse perdido uma pessoa de sua família.
O médium T. P. James, sem cultura literária de espécie alguma, simples operário
mecânico, concluiu o livro de Charles Dickens — Edwin Drood — que ficara
inacabado. A narração é retomada no ponto interrompido. Conan Doyle, analisando o
caso, observou que, se a união do médium James com o Dickens, não integralmente
verdadeiro, poderia influir sobre a ação dos personagens, sob o ponto de vista literário,
pondo-se, lado a lado duas passagens descritivas do mesmo gênero, uma do ditado
mediúnico, outra da parte autêntica do romance, os críticos profissionais ficariam com a
cara de quem acabou de ser vítima de um conto do vigário.
O mesmo processo analítico usou Miguel Timponi, na obra digna do grande jurista
que é — “O Caso Humberto de Campos” — misturando os trechos da lavra do escritor
vivo e do escritor morto, para concluir que, se há vantagens maiores entre uns e outros,
devem ser creditadas ao defunto. Tudo isso a ciência e o naturalismo decifram de
maneira muito simples: todas essas maravilhas provêm do “reservatório cósmico de
memórias visuais”, versão moderna da primeira mulher formada por Vulcano, cumulada
de graças por Minerva e presenteada por Júpiter com uma “caixinha” — a prodigiosa
Pandora...

305
Identificação completa de Oscar Wilde.

Através da médium Esther Dowen, Oscar Wilde, célebre por suas obras literárias e
celebrizado por suas façanhas humanas, ressuscita com o temperamento irritável, chora-
mingador, brilhante, paradoxal e... cínico. As variedades de seu caráter, a complexidade
do seu tipo moral, a originalidade, a identidade da caligrafia e a identidade do estilo,
provas que seriam suficientes a um avarento para entregar as chaves do seu cofre a um
mascarado, tudo redunda em provas cumulativas a favor da autenticidade do caso.
Vale a pena transcrever aqui as condições espirituais do comunicante:

“Meu papel atual não é muito melhor do que o que me impunham na prisão, onde
cardava lã. Afinal de contas, lá o meu espírito podia afastar-se do corpo e vagamundear
à vontade; aqui já não tenho um corpo que eu possa deixar e, nessas condições,
impossível me é o entregar-me a uma das minhas mais agradáveis distrações terrenas...
Aqui conhecemos, e até demais, os mais ocultos pensamentos de cada um. Dá-se,
porém, que as idéias dos outros acabam por não mais nos interessar e o tédio nos invade
a existência. Podemos reciprocamente perceber os nossos pensamentos, do mesmo
modo que podeis ver as manchas que haja nas vossas roupas. Como já te disse, em torno
de mim só há nevoeiro e este é o ambiente reservado aos que foram vítimas das
convenções sociais, que me reduziram a uma condição nada favorável à minha elevação
espiritual. A minha mentalidade é hoje comparável a uma fechadura enferrujada, em
que a chave dificilmente gira, a estalar. A idéia já não me salta ágil e alada, como
outrora. Sinto-me estiolado neste perpétuo crepúsculo, msd verifico que também eu, um
dia me elevarei até ao fastígio do êxtase espiritual. Este pensamento de esperança nos é
dado como um auxílio, para que suportemos o nosso estado. . . O destino do espírito
humano é conhecer o bem e o mal, até às profundezas mais escondidas, sem o que ele
jamais alcançará a perfeição. Sofro neste meio de trevas, porque para mim a meta está
ainda muito afastada. Possuo, entretanto, a faculdade do conhecimento, a que não pode
chegar a justiça humana que há sempre torturado a pobre humanidade desde que ela
existe. Em todo o caso, o estado em que me vejo não é, como julgais, uma “punição”,
mas um episódio indispensável à minha experiência; estou, presentemente, oprimido por
um véu de trevas que, todavia concorrem a me orientar, também a mim, para os cumes
da perfeição espiritual.”

A literatura do além-túmulo convenceu Vitor Hugo.

Quando um escritor como Vitor Hugo se converte ao Espiritismo por intermédio de


provas literárias, fornecidas

306
pelos médiuns, qualquer juízo depreciativo sobre o valor delas esbarra num obstáculo
intransponível.
Falando pela mesinha trípode, o espírito de Byron assim respondeu à invocação de
Charles, que nada sabia do inglês, estando ausente o seu pai, o velho Hugo:

“Vex not the bard, his lyre is broken,


His last song sung, his last wor spoken.”
(Não importune o bardo; está quebrada a sua lira, está canta, da a sua última canção, está falada a sua
última palavra.)

Em quadras perfeitas, na forma e no fundo, Esquilo comunica-se:

“Non, l’homme ne sera jamais libre sur terre:


C’est le triste captif du bien, du mal, du beau,
Il ne peut devenir — c’est la loi du mystère —
Libre qu’en devenant prisioner du tombeau.”

Poderíamos encher milhares de páginas com narrativas desse gênero.


Em nossa língua, para leitores brasileiros — são os espíritas os maiores compradores
dos MISTÉRIOS — Silva Mello perpetrou a mentira mais calva, e que pode ser detida
por milhões de leitores das 40 obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier: a
literatura mediúnica é “uma série de imbeeilidades que já se tornaram conhecidas, mas
que êles (os espíritas), que perderam todo o sentimento de ridículo, consideram,
respeitosamente, revelações dos desencarnados.”
Quem não possui, absolutamente, o mais rudimentar sentimento de ridículo é este
artista da Medicina, que se não devia descuidar jamais da palpação dos doentes, para
usar as mãos, acostumadas a sentir sob os seus dedos os relevos do grosso intestino ou
da alça sigmóide, na elaboração de obras em que malbarata a admiração e o respeito
conquistados em 35 anos de exercício afanoso da clínica médica, expondo-se,
levianamente, a ser contraditado por quem quer que haja lido um só dos livros de
Francisco Cândido Xavier.

Silva Mello omite Chico Xavier.

Nas 609 páginas dos seus MISTÉRIOS, o nome desse grande médium brasileiro, que
inunda todo o nosso país de obras-primas, quarenta ao todo, versando assuntos para
todos

307
os paladares — científicos, sociológicos, históricos, religiosos, etc. não comparece, não
colabora, não opina, não exemplifica, naturalmente porque Silva Mello não o encontrou
no Tratado de Max Dessoir. Fingindo ignorá-lo, omitindo-o acintosamente, rende-lhe a
maior homenagem: a múltipla mediunidade do Chico Xavier, o psicógrafo-polígrafo
que, posto num dos pratos da balança, exigiria do outro lado todo o peso da Academia
Brasileira de Letras, a múltipla mediunidade de Chico Xavier não caberia dentro do
massudo e do suporífero livro do historiador fraudulento da metapsíquica.
A omissão voluntária denuncia o grau de isenção com que o autor prometeu estudar
o assunto para, ao cabo de 30 anos de árduas leituras desovar aquele mostrengo que
somente os espíritas estão comprando, corajosamente, para consolidar as suas
convicções.
Até 1927, isto é, até os 17 anos de idade, Chico Xavier viveu, como toda a sua
família, dentro do catolicismo. Devemos, talvez, à psiquiatria patrícia, mais esta, entre
milhafes de outras, deserção do seio da Santa Madre Igreja, dos nossos maiores, para o
ajuntamento ilícito e demoníaco da crença espírita. Depois que o mestre Henrique Roxo
inventou o “Delírio Espírita Episódico”, do qual somente se salva o último adjetivo,
pois se há, delírio muito se assemelha ao delírio dos santos, conforme se aprende nas
suas “confissões” e nas suas “vidas”, quando lutavam denodadamente contra os
espíritos inferiores, do que S. Agostinho e Santa Teresa nos contaram todas as minúcias
em obras imortais. Estranho delírio que, ao cabo, eleva as almas à santidade e à
beatitude perfeita, possibilitando aos delirantes a elaboração de obras-primas,
semelhantes às quais a psiquiatria de juízo são nunca produziu. E quanto a ser espírita,
ele o acaba sendo, na realidade, depois que os obsedados, tendo sofrido todas as
penalidades da sugestão, desde as levíssimas da homeopatia, até as tremendas dos
choques elétricos, insulíni-cos, etc, afora os choques das contas de cada fim de mês,
curados nalgum centro bem dirigido ou nalgum hospital espírita, onde tudo é gratuito,
bandearam-se para a nova crença, arrastando toda a parentela, do que já possuímos
muitas observações em nossas mãos. Os nossos votos são para que a psiquiatria oficial
nos continue a enviar os melhores propagandistas, os mais agradecidos e os mais
entusiastas: os

308
egressos dos seus hospitais, depois de perderem a esperança e o dinheiro.
O Professor Leopoldo Machado é espírita de tempo integral, é trabalhador pertinaz
da seara que não se recusa à tarefa alguma: carpe, ara, aduba e rega, combate as pragas
daninhas, informa-se com os agrônomos das últimas aquisições científicas e espalha
entre os vizinhos os conhecimentos adquiridos e os frutos sazonados de suas colheitas.
Os seus livros revelam curiosidade insaciável e coragem apostolical. Não é um titular do
Espiritismo: é espírita por dentro e por fora.
De uma de suas últimas obras — “Cientismo e Espiritismo” — colhemos a seguinte
anedota, tão semelhante ao que temos presenciado, que se lhe pode aplicar o dito —
bene trovato...

“Uma sumidade médica de certo manicômio, enormes óculos de tartaruga no nariz, apresenta ali, a
outros médicos, um doente de delírio espírita episódico, dizendo, mais ou menos: Aqui está uma criatura
com todas as características de pessoa normal, normalíssima! Fala bem e raciocina ainda melhor. A
fisiologia de seus órgãos, o cérebro inclusive, perfeitíssima! Contudo, é um doente de delírio espírita
episódico.
Vê fantasmas à sua frente, a cada passo. Volta-se, agora, para o doente, posta-se firme diante dele, e
pergunta-lhe:
— Que está vendo à sua frente?
— Estou vendo um burro de óculos...”

A história de Chico Xavier.

Deixemos que o Chico Xavier nos conte a sua história:

“Até 1927, todos nós não admitíamos outras verdades além das proclamadas pelo catolicismo; mas eis
que uma das minhas irmãs, em maio do ano referido, foi acometida de terrível obsessão; a medicina foi
impotente para conceder-lhe uma pequenina melhora, se quer. Vários dias consecutivos foram para nossa
casa horas de amargos padecimentos morais. Foi quando decidimos solicitar o auxílio de um distinto
amigo, espírita convicto, o Sr. José Herminio Perácio, que caridosamente protificou-se a ajudar-nos com a
sua boa-vcntade e o seu esforço. Verdadeiro discípulo do Evangelho, ofereceu-nos até à sua residência,
bem distante da nossa, junto à sua família, onde, então, num ambiente totalmente modificado, poderia ela
estudar as bases da doutrina espírita, orientando-se quanto aos seus deveres, desenvolvendo,
simultaneamente, as suas faculdades mediúnicas.
Ali, sob os seus caridosos cuidados e da sua exma. esposa D. Carmen Pena Perácio, médium dotado
de raras faculdades, minha irmã hauria, para nosso benefício, os ensinamentos sublimes dos

309
mensageiros divinos; foi nesse ambiente onde imperavam os sentimentos critãos de dois corações
profundamente generosos, como o são os daqueles confrades a que me referi, que a minha mãe, que
regressara ao Além em 1915, deixando-nos mergulhados em imorredoura saudade, começou a ditar-nos
os seus conselhos salutares, por intermédio da esposa de nosso amigo, entrando em pormenores de nossa
vida íntima, que essa senhora desconhecia. Até a grafia era absolutamente igual à que nossa progenitora
usava, quando na Terra Sobre esses fatos e essas provas irrefutáveis solidificamos a nossa fé, que se
tornou inabalável. Em breve minha irmã regressada ao nosso lar cheia de saúde e feliz, integrada no
conhecimento da luz que deveria daí por diante nortear os nossos passos na vida.”

Trabalhando, diariamente, numa fábrica de tecidos, das quinze horas às duas da


manhã, depois como caixeiro em casa comercial, apenas pôde concluir o curso primário,
vivendo sempre em ambiente de “pobreza, de desconforto e de penosos deveres,
sobrecarregado de trabalhos para angariar o pão cotidiano.”
Mais tarde se elevou à categoria de modesto funcionário da Secretaria de Agricultura
de Minas Gerais. No ano de 1944, inscrevendo-se num concurso aberto pelo DASP,
onde as provas exigidas eram das mais elementares, foi sumariamente “inabilitado”.
Durante o dia, o trabalho; nas horas de folga, a caridade. Seus vencimentos mal lhe
permitem amparar os seus irmãos. Não há verbas para a compra de livros.
Em 20 anos escreveu 40 obras notabilíssimas, que andam nas palmas de todo o
mundo, esgotando-se as edições rapidamente. Estabeleceu, em torno de si próprio, um
inexpugnável cordão de isolamento, contra donativos, presentes, gratificações, tudo
quanto lhe queira premiar o trabalho espiritual, cujo merecimento atribui aos seus guias
e protetores do Além!
Qual o modus faciendi dessa psicografia inesgotável? Ouçamo-lo:

“A sensação de que me senti aos escrevê-las (as poesias), era a de que uma vigorosa mão
impulsionava a minha. Doutras vezes, parecia-me ter em frente um volume imaterial, onde eu as lia e
copiava; e doutras, que alguém mas ditava aos ouvidos experimentando sempre no braço, ao psicografá-
las, a sensação de fluidos elétricos que o envolvessem, acontecendo o mesmo com o cérebro, que se me
afigurava invadido por incalculável número de vibrações indefiniveis. Certas vezes, esse estado atingiu o
auge e o interessante é que parecia-me haver ficado sem o corpo, não sentindo, por momentos, as
menores impressões físicas.”

Mais adiante acrescenta:

310
“Passaram-se às vezes mais de dez dias sem que se produzisse escrito algum e dia houve que se
receberam mais de três produções literárias de uma só vez.”

As condições sob as quais trabalha.

Roubado à mediunidade e às experiências mediúnicas o seu protocolo, isto é, o


relatório circunstanciado de suas atividades, como o fez Silva Mello com os trabalhos
monumentais de Crookes e de Richet, apenas se referindo a fantasmas que gargalham
por detrás de biombos, ou que provocam paixão, ocultando os pormenores da
experimentação, assim como todas as cautelas tomadas contra as fraudes, fica-lhes, ipso
facto, diminuído e embotado o poder de conquistar a convicção do leitor.
Chico Xavier improvisa crônicas e sonetos, diante dos olhos de todos que o cercam,
desde que lhe ponham nas mãos um lápis e lhe dêem algumas laudas de papel. O modo
por que trabalha merece encarecimento e quem no-lo vai descrever é a pena insuspeita
de Agripino Grieco, apesar do seu livro “São Francisco de Assis e a Poesia Cristã”, com
o qual, aliás, não entra em discordância a doutrina espírita, que admira profunda e
sinceramente a vida e a obra do autor do “Cântico do Irmão Sol”:

“Sê louvado, Senhor meu, com todas as tuas criaturas,


E mais que todos pelo Senhor Irmão Sol
Que o dia produz e a luz nos dá
Ele é belo, radioso, e cheio de esplendor:
Um exemplo de Ti, Senhor.”

Apesar dos seus “sentimentos de catolicidade”, do muito que lhe merecem “os
grandes autores da Igreja”, o certo é que, diz ele, “como crítico literário, não pude
deixar de impressionar-me com o que realmente existe do pensamento e da forma
daqueles dois autores patrícios, nos versos de um (Augusto dos Anjos) e na prosa do
outro (Humberto de Campos).”
Presente a uma sessão em que o Chico Xavier forneceu pequeninas amostras de suas
faculdades mediúnicas, Agripino Grieco, habitualmente sarcástico e depilatório, escreve
ainda como que siderado pelo “fenômeno” que acabara de observar:

“Nisto o orientador dos trabalhos pediu-me que rubricasse vinte folhas de papel destinadas à escrita do
médium; tratava-se de

311
afastar qualquer suspeita de substituição de texto. Rubriquei-as e Chico Xavier, com uma celeridade
vertiginosa, deixando correr o lápis com uma agilidade que não teria o mais desenvólto dos rasistas de
cartório, foi enchendo tudo aquilo. Á proporção que uma folha se completava, sempre em grafia bem
legível, ia eu verificando o que ali fixara o lápis do Chico.”

Eis uma experiência a que compareceu casualmente “um entusiasta dos gênios e
heróis que tanto prestígio asseguram à religião que produziu um Santo Antônio de
Pádua e um Bossuet”, e a que se forrou o metapsiquista profissional, que não dedica
entusiasmo a nada disso, e que, naquelas mesmas horas de convivência entre o erudito
literato Agripino Grieco e a mediunidade assombrosa do humilde Chico Xavier, devia
estar, através dos livros, conversando com os cavalos de Elberfeld, com a cadela Nora e
com o chimpanzé Basso, os inspiradores e os guias da sua famosa biopsicologia, â única
invenção de que, até hoje, se pode gabar.

Os defensores do Espiritismo.

A doutrina dos espíritos sempre se alimentou, preferentemente, do testemunho dos


sábios, dos eruditos, dos filósofos que não se inscreveram no seu quadro, que se amplia
cada vez mais: Crookes, Richet, Maxwell, Osty, Lapponi... A história deste último
servirá para consolar o nosso patrício Agripino Grieco, estimadíssimo escritor e crítico
literário, filiado à catolicidade, “graças à educação recebida na infância, mesmo sem ir a
extremos de clericalismo radical.”
No seu livro “Hipnotismo e Espiritismo” (Roma, 1906), o Dr. José Lapponi, clínico
de nomeada, escritor e antropologista, que cumulou ainda as funções de médico
assistente de dois papas — Leão XIII e Pio X — faz o recenseamento de fatos espíritas
numerosos, de fenômenos de xenoglossia, bilocação, telecinesia, incorporação,
aduzindo os testemunhos de Monsenhor Berardi Pasquaí (bispo de Ruvo), do arcebispo
Júlio Vaccaro (de Bari), do arcediago Vallareli, e até do Pontífice Inocêncio X.
Foi o caso que Denza (Domingos Denza) — di costumi integerrimi — depois de ter
sonhado com a marquesa Laura Poppoli Astalle, viu-se na presença dela, presença que
não se podia interpretar como alucinação, pois o fantasma, que possuía um defeito no
dedo mínimo, deixou-o impresso, como se fora marca de fogo, na coberta da cama,
onde tôda a mão aparecia com nitidez em todos os detalhes. Entre as

312
testemunhas que autenticaram o fato supranormal incluem-se a rainha da Suécia e o
Sumo Pontífice:

“Ma da niuno com maggiori sensi di pietà e religione que delia real maestà delia
regina di Svezia e dalla Santità stessa del Sommo Pontefice.”

Como acabamos de evidenciar, não há de que se penitencie o autor apreciadíssimo de


“S. Francisco de Assis e a Poesia Cristã”, pelo fato de ter assistido a maravilhas da
mediunidade legítima. Acha-se em seleta companhia, das melhores que poderia exigir a
sua catolieidade. Hoje, aliás, neste Ano Santo de 1950, ninguém se teme de proclamar
suas convicções (alguns abusam mesmo desse direito, como Silva Mello no seu apelo ao
irracionalismo), embora não pertença à raça anglo-saxônica que, segundo um escritor
católico (Joseph Ageorges) “não tem o sentido nem o medo do ridículo, o que lhe dá
uma força particular.”

“Para apreciar, com equilíbrio, continua o mesmo autor da “Lu Métapsychique et la Preconnaissar.ee
de 1’Avenír” (Paris, 1923) as questões da Metapsíquica, conviria, sem dúvida, não ser nem
excessivamente inglês, nem bastante francês (por causa da exigência lógica, que diminui a capacidade de
crer), e não ter medo de averiguar fenômenos fisiológicos esquisitos e de não nos recearmos, por
pusilanimidade, de buscar para o espiritualismo bases mais sólidas que os passes de ilusionistas. Nosso
ponto de vista está de acordo a norma católica. Ela não nos impede de admitir que as ciências psíquicas
podem, trazer certo concurso às ciências religiosas, nas pesquisas de detalhe.”

Joseph Ageorges foi o primeiro signatário daquele atestado onde se contam 34


assinaturas, dentre as quais as de grandes vultos da intelectualidade parisiense, que, no
Instituto Metapsiquico Internacional, presenciaram e autenticaram os fenômenos
psíquicos realizados com o médium Guzik. Assim reza o final do documento, depois de
descrever a fiscalização exercida sobre o médium e os espectadores, os métodos usados
para que se excluíssem quaisquer fraudes, a vigilância e a assistência de peritos, a
inspeção rigorosa da sala das experiências:

“Afirmamos, simplesmente, a nossa convicção de que os fenômenos obtidos com Jean Guzik não são
explicáveis, quer por ilusões ou alucinações individuais, ou coletivas, quer por um embuste.”

O ideal próximo do Espiritismo cristão é justamente o que foi nas linhas acima
assinalado por um escritor católico:

313
buscar bases mais sólidas para o espiritwalismo em geral, e reduzir, e converter os
gentios do materialismo.

A convergência de provas.

A admiração de Agripino Grieco tornar-se-ia escaldadiça se lhe fosse dado apertar a


mão de Katie King, na biblioteca de um Crookes, ou presenciar o encontro patético
entre o casal Figner e a sua filha Raquel, nas materializações do Pará, ou concordar,
como Lombroso, na presença real de uma pessoa querida já desanearnada, ou sentir em
si, como Stainton Moses, a erupção de uma psicografia que zombou da sua religiosidade
protestante, ou ouvir, como o Juiz Edmonds, uma filha conversar em grego moderno
com um tal Evangel lides, ou servir de telégrafo sem fio, como o jornalista William
Stead, entre o seu subconsciente (perispírito, para nós) e o subconsciente dos seus
amigos, etc., etc.
A convicção espírita resulta de uma convergência formidável de provas e contra-
provas de todo o gênero. Somente para Silva Mello, bastaria que o toque de campainha,
que ouviu, certa vez, em Berlim, numa pensão de judeus, coincidisse com a morte
eventual de algum parente aqui no Brasil.

“O fato que, afinal, era destituído de qualquer significação, comenta Silva Mello, poderia ter tido para
mim conseqüências incalculáveis, talvez decisivas em relação a certos problemas espirituais capazes de
dar direção a qualquer existência.”

Tudo por causa da “coincidência fortuita” de um toque de campainha com a morte de


um parente!
Outro parecer que isenta de qualquer culpa a atitude leal de Agripino Grieco é o que
se externa nas seguintes palavras do chamado líder católico, obediente à sua igreja:

“As manifestações de ordem sobrenatural (!) podem ser explicadas ou como mannifestações angélicas
ou como manifestações demoníacas, através de meios humanos.”

Consoante a ciência divinatória dos mais reputados doutores em angelologia, os


espíritos puros ou anjos, conquanto dotados de intuição maravilhosa — “relâmpago que
brilha instantaneamente no céu” — e que lhes faculta a sabedoria imediata de tudo, são
ainda sábios de nascença, perfeitos de sua natureza. Não há entre êles, todavia, “dois
anjos exatamente iguais”, em poder de compreensão.

314
Privilegiados, não necessitando de esforços extranumerários, ao contrário de nós
outros aqui da terra, pelo critério humano — não temos outro, por enquanto — o seu
merecimento deveria ser muito inferior ao nosso, inversamente proporcional ao nosso
penosíssimo trabalho de ascensão, fazendo jus, muitas vezes, ao compelle intrare... A
lenda da queda deles, a luta desesperada que se travou entre êles, muito bem
romanceada e metrificada no “Paraíso Perdido” de Milton, contrapõem os homens de
limo, a teoria da evolução, que nos trouxe pela mão até aqui, e que nos levará muito
longe ainda.
Deu-nos um cérebro, instrumento de percepção com que nos identificamos
espiritualmente, assim como, fisicamente, percebemos a nossa feia imagem, muito
próxima do macaco, quando nos miramos ao espelho.
Se entre anjos, criaturas perfeitas, há uma hierarquia interminável, que não se desfez
com os milênios de vida comum, apesar da possibilidade que tem cada um deles de
aprender o que lhe falece, pelo só emprego da intuição por que de em meio à
espiritualidade humana desencarnada e comunicante, não deve sair, igualmente, uma
escala infinita de valores?
Se a ciência angélica não admite “mudanças substanciais” porque contrariam “não só
a teologia católica, mas também toda a sã filosofia”, a ciência humana, na sua quase
totalidade, aceitou a evolução das espécies, senão como fato que se possa provar por a +
b, ao menos como a teoria que pede menor número de premissas apoiadas no vácuo.
Se o dogmatismo não transige com a ciência, repudiando-lhe as conclusões, a que
chegou laboriosamente, por intermédio natural do raciocínio livre, acúmulo e seleção de
experiências, ela, a seu turno, não podendo abrir mão do que observou, recusa-se a
aceitar hipóteses indemonstráveis, criando-se, destarte, o divórcio definitivo, para
prejuízo de todos nós. Entre as duas forças, igualmente poderosas, coloca-se,
corajosamente, o Espiritismo: por isso apanha, com muita honra, à direita e à esquerda.
Os médiuns católicos (e todos os santos o foram), inclusive Teresa Neuman e o
maior médium de todos os tempos — Joana d’Arc — implicam na existência dos
médiuns espíritas, os demoníacos. Mas entre os dois extremos da série há lugar para
muita coisa. Teorias, aceitam-se ou recusam-se. Os fatos reais querem-se aceitos, não
em benefício deles, nem de qualquer seita, mas dos seus comentadores... A nega-

315
ção torna-se ridícula, quando excede certos limites permitidos pelo bom senso universal.

Pasticho, modalidade de fraude consciente.

Com relação à mediunidade de Francisco Cândido Xavier, a interpretação mais do


agrado de Silva Mello seria a de fraude, de simples pasticho, pois no seu livro já se
informara de que “não há muitos anos apareceu entre nós, sob o pseudônimo Barão de
Ascurra, um pequeno volume intitulado — A Nova Maneyra de Falar — quase todo
escrito em português arcaico por Saul Borges Carneiro, que não chegou a ser conhecido
no mundo literário, apesar de ter sido um dos maiores conhecedores do nosso velho
idioma, que cultivou apenas por puro desfastio e interesse cultural. Imaginamos o que
teria acontecido, caso se tivesse tornado médium, entrando despercebidamente no
terreno da mediunidade!”
Causa dó a pobreza de imaginação desse argumentador chicaneiro. Se ele se tivera
feito rábula, estaria, a estas horas, estendendo a mão à caridade pública, na porta de
alguma igreja. Comparar um pasticho suado, trabalhado, insone, premeditado,
preconcebido, especializado, à imprimi sação, à vertiginosidade, à variedade de gêneros
literários, na presença de todo o mundo, a mensagens especiais, redigidas no momento,
e endereçadas a pessoas casualmente presentes...
Outro pasticho conhecido é o de Pedro Rabelo, que conseguiu imitar a forma de
estilo de Machado de Assis, em meia dúzia de páginas.
As paródias de Albert Sorel, Paul Redoux e Charles Muller provam, apenas, que se
pode imitar o estilo. Mas como ? Escrevendo da maneira por que o faz Francisco
Cândido Xavier, passando de Humberto de Campos para Antero de Quental, de Bilac
para Augusto dos Anjos, de Guerra Junqueiro para Belmiro Braga, e produzindo ainda,
sob a direção de Emmanuel e André Luis, as obras mais célebres, os romances cujos
diálogos se mantêm sempre na maior elevação espiritual e na mais bem enredada
imaginação? Como plagiar, parodiar, caricaturar ou pastichar escritores como
Emmanuel e André Luis, que não deixaram modelo na literatura? Por que razão
responde, em inglês, perguntas feitas, em inglês, un, pastiehador que não sabe inglês?
Grieco vê nas páginas de Humberto de Campos, a ele endereçadas, a imagem viva de
seu amigo falecido:

316
“Íntimos, num contato cordial e literário constante, ambos críticos, ambos homens de letras, era
natural que entre mim e Humberto existisse uma amizade intensa e mútua. Agora, anos após sua morte,
eis que me é dado encontrar-lhe as ideias e o estilo, e da maneira extraordinária por que o foi.”

Ninguém melhor do que Grieco, crítico literário, diz ele, “que há mais de trinta anos
estuda a mecânica do estilo”, poderá excluir a hipótese simplista do pasticho e afirmar
que se achava diante de “um manuscrito inédito retirado do espólio do memoralista
glorioso.” B Grieco, com receio de que o tomem por espírita, depois de nos fornecer
gratuitamente o seu parecer de jurisconsulto’ das letras, para a defesa de nossa causa,
adverte: “Com isso, não afirmo coisa alguma.” Para a nossa tese, não há necessidade de
tais violências. Contentamo-nos com o testemunho de quem presenciou o fato e soube
descrevê-lo.
O Professor Mello Teixeira, que realizou o “curso completo de Chico Xavier”, na
opinião de Djalma de Andrade, pois já o freqüentou muitas vezes, excluí,
inteligentemente; a hipótese de pasticho ou do à la manière de, que seria, na espécie,
equivalente a uma fraude monumental, que daria para alimentar a biopsicologia
silvamelliana por muitos anos.
Lembra que, no caso presente, “não há prévia e diuturna leitura dos autores a imitar”;
“não há retoques nem policiamento da produção conseguida”, que demandaria tempo; a
elaboração e a redação se fazem de improviso e instantâneas, “sem segundos sequer de
meditação para coordenar idéias, passando em sucessão ininterrupta da prosa ao verso,
da página de ficção para a de filosofia ou moral; transladando a composição para o
papel em escrita manual vertiginosa, que qualquer não consegue em trabalho de cópia
ou quando reproduz um assunto que tenha de cor; não se improvisa cultura, erudição,
citações, certas e adequadas, datas e fatos históricos, conceitos filosóficos, científicos,
literários, etc”. Em suma, as condições em que trabalha o médium, criatura humilde,
bondosa, puritana, cujo lar está permanentemente aberto para todo o mundo, foge e
refoge de todo o mecanismo normal psicológico:

“Fronte amparada na mão esquerda, descreve Mello Teixeira, em ponto de apoio sobre a mesa, a mão
direita célere deslizava no papel, em movimento puramente automático, mecânico, enquanto ele, Chico
Xavier, em lucidez perfeita, podia responder a uma ou outra interpretação acidental sem interromper a
redação do que elaborava.”

317
As exigências crescentes dos incrédulos.

Que faltaria a esta mediunidade? Faltaria o “milagre”, isto é, que escrevendo com
uma velocidade de datilografo, pudesse, ainda assim, reproduzir fielmente a caligrafia e
a assinatura dos autores, o que somente é possível na escrita direta, quando o
comunicante não faz uso do aparelho neuromuscular do médium. Então se teria,
também, aquilo que Bozzano chama “a prova memorável da identidade da escrita”,
como no caso das comunicações de Oscar Wilde, universalmente conhecidas, através da
Snra. Travers Smith.
Nem sempre os mortos perdem a sua caligrafia, a “fotografia do temperamento e da
mentalidade do escritor”, que se não modifica, ainda nos ambidestros. Há numerosos
exemplos devidamente comprovados na bibliografa espírita.
Saiba Silva Mello, tão cheio de si porque os seus MISTÉRIOS, dos quais tirou 1.000
exemplares em sua primeira edição, vai entrar novamente no prelo, que o Departamen-
to-Editorial da benemérita Federação Espírita Brasileira deu à publicidade, ultimamente,
no lapso de doze meses, a 391.900 exemplares de obras doutrinárias totalizando em
122.800 os pertencentes à psicografia do Chico Xavier.
Mário Mattos revive e vitaliza a “hipótese” desmoralizada do diabo, e aproveita-se
do assunto para traçar uma página de fino humorismo, à moda de Machado de Assis,
humorismo puramente cerebral e literário, porque, no íntimo, ele está convencido de
outra coisa. Apenas não quis perder a oportunidade de jogar com frases de grande efeito
estético, que nos fazem, até mesmo contra a nossa vontade, emitir um sorriso superior,
que consideramos semelhante ao de Voltaire. Procurando conciliar a vertiginosidade da
escrita de Chico Xavier, a sua atenção bipartida entre o seu trabalho e as perguntas que
lhe são feitas, sem se atrapalhar, ou se interromper, com a prosa legitima de Humberto
de Campos, Mário Mattos assim resolve o enigma:

“Aqui há um fenômeno estranho. Mas eu resolvo a complicação cá ao meu modo. Os espíritas o


solucionam pelo deles. Para eles, é o Humberto quem está ditando as idéias. Para mim, é o Diaoo. Sempre
o Diabo as arma. Sua finalidade diabólica é a de confundir e apoquentar os homens. Para ele se disfarçar
em Humberto, em Vitor Hugo ou em Antero de Quental, é coisa facílima. E como nunca realiza obra
perfeita, a maior parte das imitações é inferior à sobras dos autores imitados, já conhecidas por nós. É por
isso que

318
faz Junqueiro escrever versos de pés quebrados e estropia de vez em quando sonetos de Quental. Este é o
sinal de suas obras. É decalquista de sua própria natureza.”

Dar-se-ia por contente e convencido o grande escritor mineiro se, após haver
assinalado o “estilo linear, com todas as regras da sintaxe, cheio das mil e uma maneiras
técnicas de Humberto”, encontrasse também a “prova memorável” da caligrafia, que
reclama? Foi ele, o ensaísta do “O Último Bandeirante” e de “Machado de Assis”, que
opinou de modo original, a respeito das obras mediúnicas do maior cronista brasileiro:
“Não sei se foi porque li as “Crônicas” astrais em hora propícia, mas verdade que
achei o estilo do Humberto morto muito mais vivo. Entretanto, similaridade de estilo, de
cultura e de erudição não é prova específica de identidade, de autenticidade. Mas
impressiona, de fato.”
Cabe-lhe, ainda, o reparo, que a doutrina abona:

“Os espíritos psicografados são iguais a si mesmos, como eram no mundo, essencialmente terrenos
nos defeitos e qualidades, senão até inferiorizados nuns e noutros. São todos precários. Concluímos então
que lá é como aqui mesmo, o que encerra deplorável decepção.”

Se o fato decepciona, reveste-se, por isso mesmo, de uma nota a mais de identidade,
que é o que se procura provar. Se, no caso de Humberto de Campos, como no de Oscar
Wilde, por exemplo, ocorresse o fato memorável da semelhança caligráfica, contentar-
se-iam os incrédulos diante do “excesso de provas”. Creio que não. Nesse gênero de
sabedoria, parece que cada uma já vem predestinado a determinada cota.
Não acordam entre si os descontentes: enquanto que uns pedem a semelhança da
caligrafia, como prova eficientíssima, outros, como René Sudre, desfazem na
coincidência, afirmando que “a letra não é mais do que um fenômeno psico-motor.”
O pasticho é um parto laborioso, que somente se resolve em feto a termo, depois que
o útero se intoxicou, durante a gestação demoraáa, das características técnicas de uma
paternidade qualquer. As mais das vezes, é um simples aborto...

Chico Xavier e os críticos literários.

Apraz-nos, agora, rememorar algumas das opiniões favoráveis às belezas literárias


das obras de Francisco Cândido

319
Xavier, para reforçar os panegíricos de Agripino Grieco e de Mário Mattos.
Comecemos pelo próprio Humberto de Campos, quando ainda na terra:

“Eu faltaria, entretanto, ao dever que me é imposto pela consciência, se não confessasse que, fazendo
versos pela pena do Sr. Francisco Cândido Xavier, os poetas de que ele é intérprete apresentam as
mesmas características de inspiração e de expressão que os identificavam neste planeta. Os temas
abordados são os que os preocuparam em vida. O gosto é o mesmo e o verso obedece, ordinariamente, à
mesma pauta musical. Frouxo e ingênuo em Casimiro, largo e sonoro em Castro Alves, sarcástico e
variado em Junqueiro, fúnebre e grave em Antero, filosófico e profundo em Augusto dos Anjos.”

O gramático João Ribeiro, que era um espírito arejado, um sabedor da língua e um


escritor de bom gosto, sintetizou, em meia dúzia de palavras, a sua opinião, quando
afirmou que o médium “não atraiçoara poeta algum”. Ombreou-se, por conseguinte,
com todos êles. Se não são êles que poetam, Chico Xavier, somando-os em si, vale tôda
a literatura brasileira. Não há por onde se escape a teimosia dos incréus.
Zeferino Brasil soube salientar o merecimento incomum da obra do médium mineiro,
nas seguintes palavras:

“Seja como fôr, o que é certo é que — ou as poesias em apreço são de fato dos autores citados e foram
realmente transmitidas do Além ao médium que as psicografou, ou o Sr. Francisco Xavier c um poeta
extraordinário, genial mesmo, capaz de produzir e imitar, assombrosamente, os maiores gênios da poesia
universal. Por que ninguém, que conheça a arte poética e haja lido assiduamente Antero de Quental,
Antônio Nobre, Guerra Junqueiro, João de Deus, Olavo Bilac, Castro Alves, Casimiro de Abreu e os
demais poetas que enchem as 398 páginas do “Parnaso de Além-Túmulo”, deixará de os reconhecer
integralmente nas poesias psicografadas. Em todas elas se encontram patentes as belezas, o estilo, os
arrojes, as imagens próprias, os defeitos, o “selo pessoal”, enfim, dos nomes gloriosos que as assinam e
vivem imortais na história literária do Brasil e Portugal.”

O advogado e escritor Anibal Vaz de Mello analisa o caso com muita lucidez e
proficiência, destacando, no setor da fenomenologia mediúnica atribuída a Chico
Xavier, um acontecimento impressionante:

“Paulo e Estêvão é um monumento de beleza literária e a mais notável biografia que já li, entre as
muitas, sobre a vida do grande convertido da estrada de Damasco. Mesmo a obra de Renan e de Ma-

320
ritain é bem inferior à psicografada pelo médium humilde e simples de Pedro Leopoldo.”

O brilhante cronista Edmundo Lys põe em realce certas particularidades, que a crítica
deve ponderar:

“Citemos, por exemplo, o caso de Belmiro Braga, o grande poeta juizdeforense. Belmiro foi,
sobretudo, um lírico e um satírico de estilo singelo e notável espontaneidade. Tratou, sobretudo, a
redondilha, e muitas de suas quadrinhas se incorporaram ao repertório da poesia popular. Entretanto,
ninguém que conheça a obra de Belmiro confunde com as suas as redondilhas de Adelmar Tavares, outro
de nossos troveiros de sabor popular, nem as de Djalma de Andrade, que, também mineiro, como
Belmiro, junta, ainda, como ele, aos mais doces acentos do lirismo a ferinidade da sátira Se quisemos
imitar Belmiro, seria justo versejar na sua forma habitual. Ora, no “Parnaso de Além Túmulo”, o poema
de Belmiro Braga é em sextilhas e, entretanto, se identifica como inspiração como estilo, até como forma,
com a obra do poeta das “Rosas” muito mais do que todas as quadras que conhecemos, compreendidas as
de Djalma que, pelo fato de ser mineiro, de ter o mesmo clima espiritual do troveiro de Juiz de Fora e de
ser, também, um mestre da redondilha deve se parecer muito com ele”.

Manoel Quintão, o batalhador incansável de mais de quarenta anos de luta em prol da


espiritualidade espírita, que foi o organizador e o prefaciador do “Parnaso”, adianta-nos
pormenores interessantes a respeito de alguns versos psicografados:

“Assim, por exemplo, os sonetos À Maria, de Bittencourt Sampaio, Oração ao Cruzeiro, de Pedro de
Alcântara e Homem da Terra, de Augusto dos Anjos, foram escritos de jacto e de improviso, em menos
de 5 minutos, sob nossas vistas, e, o que mais é, após uma longuíssima mensagem de Pedro Richard,
repleta de episódios particulares, muito íntimos e absolutamente desconhecidos do médium quanto de nós
esquecidos, por assaz remotos.”

Páginas além, outro exemplo:

“Também o belo soneto Ajuda e Passa, de Alberto de Oliveira, aflorou em nosso ambiente doméstico,
quando o médium ofegante mal pousava a sua mala, após trinta e duas horas de exaustiva viagem”:

“Estende a mão fraterna ao que ri e ao que chora:


O palácio e a choupana, o ninho e a sepultura,
Tudo o que vibra espera a luz que resplendora,
Na eterna lei de amor que consagra a criatura.

321
Planta a bênção da paz, como raios de aurora,
Nas trevas do ladrão, na dor da alma perjura,
Irradia o perdão e atende, mundo afora
Onde clame a revolta e onde exista a amargura.

Agora, hoje, amanhã, compreende, ajuda e passa;


Esclarece a alegria e consola a desgraça,
Guarda o anseio de bem que é lume peregrino...

Não troques mal por mal, foge à sombra e à vingança,


Não te aflija a miséria, arrima-te à esperança,
Seja a bênção de amor a luz do teu destino.”

“A União”, órgão oficial do Estado da Paraíba, em 19 de Agosto de 1944, a


propósito da mediunidade de Francisco Xavier, publicou um artigo notabilíssimo do
Desembargador J. Flósculo da Nóbrega, sobre “Espiritismo e Ciência”, uma síntese
perfeita da doutrina vitoriosa que, dentro de 50 anos, espiritualizará o Brasil.

Casos semelhantes na literatura espírita estrangeira.

A psicografia de Francisco Cândido Xavier, conquanto seja a mais perfeita e a mais


completa que apareceu até hoje em língua portuguesa, é, apenas, mais um dos muitos
fatos que valorizam a literatura espírita. Em língua inglesa já se observou maravilha
semelhante, senão superior, sob alguns de novos aspectos. Na “Literatura d’Além-
Túmulo”, uma das teses de Ernesto Bozzano que abalaram o espírito do seu amigo
Charles Richet, encontramos o caso da personalidade mediúnica de “Patience Worth”,
por intermédio da Snra. Pearl Lenore Curran, de Saint Louis, magistralmente examinado
pelo Dr. Walter Franklin Prince em “The Case of Patience Worth”. Ao contrário de
Humberto de Campos, este nome era completamente desconhecido na literatura inglesa
e a si mesmo se anunciou:

“Muitas luas passaram desde que vivi na Terra. Eis-me ds volta ao vosso mundo. Meu nome é
Patience Worth.”

Nasceu no condado de Dorsetshire (Inglaterra), no século XVII, emigrando depois


para a América, onde foi vítima de uma incursão armada dos índios. Descrevia
fielmente nos seus romances e nos seus versos a terra de seu nascimento, onde a
médium nunca estivera. As inclinações naturais da Snra. Curran eram para a arte
musical: jamais manifestou a menor aptidão literária. Patience Worth, em flagrante

322
contraste com a médium, demonstrava a posse de grande cultura histórica, literária e
filológica.
Para provar a sua independência espiritual da personalidade da médium, escreveu,
propositadamente, em dialeto de há três séculos, um dos seus romances em versos livres
— Telka — que nas suas 70.000 palavras contém 90% delas de pura origem anglo-
saxônica e nenhuma da língua inglesa posterior a 1600. A médium ouvia a sua
inspiradora e repetia em voz alta a narrativa para um secretário, que a punha em
escritura, permanecendo completamente livre em seus movimentos, interrompendo e
continuando o trabalho, à sua vontade.
Perdeu-se, certa vez, o primeiro capítulo de um romance: Patience Worth o ditou
novamente. Encontrado o documento primitivo, verificou-se que o segundo ditado era a
reprodução literal do primeiro. O Dr. Walter Prince, embora considere Maeterlinck um
grande artista, tem-no na conta de inferior a Patienee Worth, pois os seus personagens
“manifestam traços característicos que lhe são próprios e que os diferenciam de todos os
outros.”
A língua arcaica empregada no poema mereceu de Gaspar Yost os seguintes
comentários:

“Telka é única na pureza de sua língua anglo-saxônica, na combinação das diversas formas dialetais
de localidades e épocas diversas, em algumas de suas formas gramaticais particulares, nos desvios, e nas
extensões conferidas à significação de certas palavras... À maneira de Shakespeare, ela emprega por vezes
um advérbio como se fosse um verbo ou um adjetivo. Isto se explica pelo estado transitório em que se
achava a língua inglesa nessa época; mas essa observação constitui uma prova suplementar em favor do
fato de que “-Patience Worth” está plenamente de acordo com o seu tempo, mesmo nas anomalias
gramaticais. Nenhuma dúvida pode existir sobre isto: que a linguagem de “Patience Worth” deve ser
considerada como sendo absolutamente espontânea nela, o que está demonstrado pela circunstância de
que e a não a emprega exclusivamente em uma de suas obras mas que dela se serve constantemente nas
suas conversas, com as pessoas presentes.”

Outra obra — The Sorry Tale — que se desenvolve na Palestina, ao tempo de Cristo,
tal como o — Há Dois Mil Anos — de Emmanuel, reproduz, geográfica e
historicamente, o drama do Gólgota, a que assistimos em todo o seu doloroso realismo.
E, o que mais estranho, diante da médium, desenrolava-se uma visão panorâmica de
todos os acontecimentos, no momento exato em que se fazia o ditado mediúnico.

323
“A médium, refere o Dr. Prince, percebia cães que atravessavam o caminho correndo; via carros
construídos de modo estranho e cujas rodas eram feitas de caniços enrolados, curvados em círculos. Estes
carros eram puxados por bois, cujos arreios eram mais estranhos ainda do que os carros. Ela assistia à
feira dos judeus, assim como às disputas que havia entre negociantes barbudos e seus clientes; ouvia as
lamentações das mulheres que trocavam utensílios por comestíveis; observava os Grãos Sacerdotes que
passavam com suas vestes faustosas e via a Arca Santa e o Templo, tais como tinham sido, realmente,
reedificados, nessa época; contemplava as paisagens de Belém e de Nazaré e assitia à passagem de Jesus
cercado pela multidão.”

Além dos nove romances, um drama, uma coleção de provérbios e de aforismos,


inúmeras composições poéticas de tôda espécie, geniais na inspiração e na forma; Telka
e Merry Tale, em dialeto do século XVII, os outros trabalhos, na língua inglesa
moderna. Os poemas, na maior parte, são improvisos feitos sobre temas sugeridos na
ocasião pelos experimen-tadores e igualam-se aos de Keats.
A sua missão e o modo por que a cumpre, com a maior agilidade técnico-mental,
estão descritos nos períodos abaixo:

“Farei com as palavras o que se faz com sonoras castanholas. Fá-las-ei brilhar com luz nova,
empalidecer, gemer, desfalecer. Fá-la-ei arder no fogo de todas as paixões; serão vingadoras, embra.
vecidas, coléricas, torcidas, mordazes. O que me seguir se julgará grosseiro em face das prodigiosas
cabriolas às quais submeterei as palavras. Estas mãos saberão tecer a linguagem humana, de modo a
maravilhar o mundo.”

O prodígio avulta, quando Patience escreve quatro romances, ao mesmo tempo,


ditando, sucessivamente, a passagem de cada um, ora em dialeto arcaico, ora em
linguagem moderna, sem solução de continuidade.

“Em dado momento — uma noz para ser quebrada pelos psicologistas — ela toma dois personagens
de dois romances diferentes e faz que um palestre com o outro, de maneira que o personagem de um
romance parecia responder ao outro e discutir com ele. Quando as passagens dos dois romances foram
desenredadas e colocadas nos seus textos respectivos, verificou-se que cada uma delas se adaptava
perfeitamente à parte que devia ocupar no texto.

Os que tentaram explicar tais maravilhas com exclusão da “hipótese” espírita, como
sempre, tresvariaram na lógica da psicologia ortodoxa.

“O Professor Cory, conclui Bozzano, não se preocupa, de modo algum, em explicar de que maneira
uma fração da personalidade

324
reverente assombro. É uma obra que fará época na história das revelações mediúnicas, tanto mais quanto
é esta a primeira vez que à humanidade se faz a doação de um grande TRATADO de ordem verdadeira e
rigorosamente científica.”

Obtido por via mediúnica, é, todavia, um monumento de boa ciência; deve merecer
as honras de figurar na biblioteca de Silva Mello, escondida naqueles recantos
paradisíacos do Cosme Velho.
Barkas, membro da Sociedade de Geologia de Newcastle (vide Animisme et
Spiritisme, de Aksakof), publicou no Light, de Londres, 1885, as respostas dadas por
um médium de instrução primária a respeito do modo pelo qual a percepção do som
atinge a nossa consciência e do motivo da neutralidade de dois sons de igual intensidade
vibratória. Descreveu, rigorosa e minuciosamente, a anatomia do globo ocular.
Assim como depreciou as obras puramente literárias, contrariando o parecer de
críticos profissionais e fazendo jus a advertência — não suba o sapateiro, etc. — Silva
Mello alegará que, nas enciclopédias, existentes em todas as línguas, qualquer um
encontrará a ciência que desejar. Quer algo nuevo, assim como a sua biopsicololgia ou a
psicanálise de Freud.
Antes de saciar a sua gula de incrédulo inveterado, vamos por aqui um trecho em que
Silva Mello fala catedraticamente de coisas que nunca presenciou na sua vida de
especialista de moléstias do aparelho digestivo:

“Quando o médium fala línguas estrangeiras sem as conhecer, podemos estar certos de que os seus
conhecimentos são muito limitados e que lhe faltará a pronunciação exata, visto ser necessána longa
aprendizagem para poder adquirí-la. (Os grifos são nossos). O mesmo acontece em relação à escrita
automática, comumente confusa e de difícil leitura, sendo as maravilhas que lhe são atribuídas antes
produto da engenhosidade dos seus interpretadores. O que aparece com evidência em todas essas
manifestações é a sua significação medíocre insignificante, muito em desacordo com o que devemos
esperar de visões verdadeiramente sobrenaturais.”

Deixemos Silva Mello entregue aos críticos profissionais, peritos insuspeitos, que
por castigo lhe darão muitas páginas psicografadas, em línguas vivas e mortas, para
copiar centenas de vezes.
Emmanuel, o autor de obras que se vendem aos milheiros por este Brasil, obras
saborosas, nutritivas e edificantes, que nos incompatibilizam para sempre com o Silva
Mello, não

325
lhe pode satisfazer o desejo de visões verdadeiramente sobrenaturais, porque
humildemente confessa que ainda não as possui:

“Os desencarnados da minha esfera não se acham indenes, por enquanto, do socorro das hipóteses. A
única certeza obtida é a da imortalidade da vida e, como não é possível observar a essência da sabedoria,
sem iniciativas individuais e sem ardorosos trabalhos, discutimos e estudamos as nobres questões que, na
Terra, preocupavam o nosso pensamento.”

O que a doutrina esclarece é que, no primeiro plano a que chegaremos, após a


passagem, apenas nos faltará o corpo físico: não possuiremos mais naáa além do que já
tivermos aprendido na penitenciária do mundo. A ciência e a consciência terrestres
serão a ciência e a consciência astrais. Se este é o princípio, se esta é a lei, aceitem-na
ou neguem-na os comentadores. Não é honesto vestir um indivíduo de santo para despi-
lo em praça pública.
Silva Mello, por conseguinte, vai adquirir a certeza da imortalidade, a única, quando
lá chegar, mas poderá continuar ateu, se assim o entender.
Se lhe aprouver permanecer aconselhando o uso do açúcar preto, da rapadura, do
soro do leito na preparação de pratos deliciosos, oí desaconselhando o arroz e a farinha
descorti-cados, será identificado e lido com muito prazer...
Lembra-nos Léon Dénis que, mais de uma vez, conquanto não seja esta a finalidade
do intercâmbio entre os dois mundos, os espíritos fizeram revelações de caráter
científico, posteriormente sancionadas pela experiência de terrícolas. Na Revista
Espírita de 1860, pág. 81, registrou-se a mensagem do doutor Vignal, declarando que os
corpos irradiam luz obscura. Ainda não se conhecia a radioatividade. Teórica e
praticamente ensinaram-nos, desde 1850, que havia entre nós forças imponderáveis,
rejeitadas, então, pela ciência. Coube justamente a Crookes a verificação da realidade
dessas forças, cuja importância e variedade ninguém desconhece hoje, graças às
descobertas de Roentgen, Hertz, Becquerel, Curie, G. le Bon, etc. Mais tarde, Lorentz
(“Teoria dos eletronios”, Leipzig, 1916), Lord Kelvin, Becker, etc., provaram que a
materia I simples condensação de energia, animada de movimentos rotatórios.
Em a Gênese, em 1867, Allan Kardec escreveu o seguinte:

326
“Quern conhece a constituição íntima da matéria tangível? Talvez ela só seja compacta em relação aos
sentidos e o Que disso poderia ser prova é a facilidade com que é atravessada pelos fluidos espirituais e
pelos espíritos, aos quais não opõe mais obstáculo do que os corpos transparentes aos raios da luz.
Tendo a matéria tangível como elemento primitivo o fluido cósmico etéreo, deve poder,
desagregando-se, voltar ao estado de eterização, assim como o diamante, o mais duro dos coroos. pode
volati-aar-sé em gás impalpável. A solidificação da matéria não é, na realidade, mais do que um estado
transitório do fluido universal, que pode voltar ao estado primitivo, quando as condições da coesão
deixam de existir.”

Quem quiser poderá objetar-me que, Allan Kardec, quando pronunciou tais palalvras,
ainda não era espírito. Verdade. Mas foram os espíritos que, atravessando com
facilidade a matéria compacta, deram-lhe a chave do mistério, que somente mais tarde,
muito mais tarde, obteve a consagração na teoria eletrônica, que está revolucionando o
mundo.
Foram os fenômenos espíritas que, por analogia, transformaram a telepatia e a
sugestão mental, fenômenos aními-cos, em provas demonstrativas de ações mento-
mentais, sem o auxílio de órgãos.
O engenheiro Giuseppe Costa, no seu livro — Di là dalla Vita. La Realtà della
Morte — para provar que a inteligência interferente não é a do médium, relata:

“Em 1865, Paulo Pantasso soube, por via mediúnica, da existência de um 5º satélite de Júpiter e
comunicou-a ao Professor Scarpa, de Turim. O descobrimento foi, em seguida, confirmado pela
Astronomia.”

O espírito de Spencer Stafford revelou a possibilidade do telefone à Sra.


d’Esperance, completamente ignorante de física, nada menos de 30 anos antes de sua
invenção.
Do livro de Miguel Timponi, se não me engano filho também de Juiz de Fora, onde o
conheci, quando a sua brilhante inteligência começava a dar mostras do que seria mais
tarde — O CASO DE HUMBERTO DE CAMPOS — extraímos as páginas que se
seguem, defensoras eloqüentes da tese por que nos batemos:

“Sem dúvida, não têm por missão os espíritos antecipar-se ostensivamente aos homens na pesquisa da
Verdade, cujo conhecimento deve ser para estes o prêmio do esforço e um elemento de pro-

327
gresso, limitando-se em geral a assisti-los com suas inspirações ocultas. Casos há, todavia, em que,
segundo um critério de utilidade que ao arbítrio humano escapará, mas não deve ser estranho ao plano
providencial a que todas as coisas obedecem, a revelação de uma verdade ignorada é transmitida, vindo a
ser mais tarde confirmada, como sucedeu com o major-general Drayson, cujo depoimento é o seguinte
(Aksakof, ob. cit., pags. 341 a 343) :
“Tendo recebido do sr. George Stock uma carta em que me perguntava se eu poderia citar um
exemplo que fosse de ter um espírito, ou pretenso espírito, resolvido, em sessão, um desses problemas
científicos que têm feito a preocupação dos sábios no século passado, tenho a honra de vos comunicar (a
narrativa era, como o dissemos, dirigida ao Light, de Londres) o seguinte fato, de que fui testemunha
pessoal.
Em 1781, William Herschel descobriu o planeta Urano e seus satélites. Observou que esses satélites,
contrariamente a todos os outros do sistema solar, percorriam suas órbitas de oriente a ocidente. Diz J. F.
Herschel em seus “Esboços Astronômicos”: “As órbitas desses satélites apresentam particularidades
inteiramente inesperadas e excepcionais, contrárias às leis gerais que regem os corpos do sistema solar.
Os planos de suas órbitas são quase perpendiculares à eclíptica, formando um ângulo de 70° 58’, e eles as
percorrem com um movimento retrógrado, o que quer dizer que a revolução que efetuam em torno do
centro de seu planeta é de leste a oeste, em vez de seguir a direção inversa!”
Desde que Laplace emitiu a teoria de que o Sol e todos os planetas se formaram a expensas de uma só
matéria nebulosa, esses satélites eram um enigma para ele.
O almirante Smith menciona em seu “Ciclo Celeste” que o movimento de tais satélites, com
estupefação de todos os astrônomos, é retrogrado, contrariamente ao de todos os outros corpos até então
observados.
Na “Gallery of Nature” igualmente se diz que os satélites de Urano descrevem sua órbita de este a
oeste, singular anomalia que constitui exceção no sistema solar.
“Todas as obras de astronomia, publicadas antes de 1860, contêm o mesmo raciocínio acerca dos
satélites de Urano. Por minha parte, não encontrava explicação alguma para essa particularidade; era
mistério para mim, como para os mencionados escritores.
Em 1858 hospedei em minha casa uma senhora, que era médium e com quem organizei cotidianas.
Uma noite me disse ela estar vendo ao meu lado uma pessoa que pretendia ter sido, em sua existência
terrestre, um astrônomo.
Perguntei a essa personagem se era atualmente mais sábia que na Terra. — “Muito mais” —
respondeu ela.
Tive então a idéia de submeter a esse pretenso espírito uma questão, a fim de pôr à nrova os seus
conhecimentos. “Pode dizer-me — perguntei-lhe — por que os satélites de Urano fazem sua revolução de
leste a oeste e não de oeste a leste?”
Recebi imediatamente a seguinte resposta:
— “Os satélites de Urano não percorrem sua órbita do oriente ao ocidente; giram em torno de seu
planêta do ocidente a oriente, no mesmo sentido em que a Lua gira ao redor da Terra. O erro proveio de
estar o polo sul de Urano voltado para a Terra na oca-

328
sião da descoberta desse planeta; assim como o sol, visto do hemisfério austral, parece efetuar seu
percurso quotidiano da direita para a esquerda e não da esquerda para a direita, os satélites de Urano se
moviam da esquerda para a direita, o que não quer dizer que percorressem sua órbita de oriente a o
ocidente.”
Em resposta a outra questão que propus, acrescentou o meu interlocutor:
—“Enquanto se achava o polo sul de Urano voltado para a terra, para um observador terrestre os
satélites parecia se deslocarem da esquerda para a direita, e dai se concluiu, erradamente, que se
encaminhavam do oriente para o ocidente. Esse estado de coisas durou cerca de quarenta e dois anos.
Quando o polo norte de Urano se acha voltado para a terra, os seus satélites percorrem seu trajeto da
esquerda para a direita e sempre de ocidente a oriente.”
Perguntei então como é que aquele erro não fora reconhecido até quarenta e dois anos depois da
descoberta do planeta Urano por W. Herschel, ao que me foi dada esta resposta:
—“É porque, em regra, os homens não fazem mais que repetir o que disseram as autoridades que os
precederam; deslumbrados pelos resultados obtidos por seus predecessores, não se dão ao trabalho de
refletir.”
Guiado por esse ensino, apliquei-me a resolver o problema geometricamente, e verifiquei que a
explicação era exatíssima e a solução bem simples. Em consequência, escrevi sobre o assunto um tratado
que foi inserto nas Memórias do Instituto real de artilharia, em 1859.
Dei, em 1862, essa mesma explicação do pretenso enigma em uma pequena obra sobre astronomia,
“Common Sights in the Heavens” (Vista d’olhos nos céus) ; mas a influência da opinião “autorizada” é
tão funesta que somente agora os escritores que se ocupam de astronomia começam a reconhecer que o
mistério dos satélites de Urano deve ser provavelmente atribuído à posição do eixo desse planeta.
Na primavera de 1859 tive, uma vez mais, ocasião de conversar, pelo mesmo médium, com a
personalidade que dizia ser o mesmo espírito e perguntei se me poderia esclarecer sobre algum outro fato
astronômico ainda ignorado. Possuía eu então um telescópio com uma objetiva de 4 polegadas e de uma
distância focal de 5 pés. Fui informado de que o planeta Marte tinha dois satélites, que ainda ninguém
tinha visto e que eu poderia descobrir, em favoráveis condições. Aproveitei a primeira ocasião, que se me
ofereceu, para fazer observações em tal sentido, mas não descobri coisa alguma.
Dei ciência dessa comunicação a três ou quatro amigos com quem fazia experiências espiritas. e ficou
decidido que guardaríamos segredo a tal respeito, pois que nenhuma prova possuíamos em apoio das
afirmações do meu interlocutor -e ficaríamos expostos à risota geral.
Durante a minha estada nas Índias, falei dessas revelações ao Sr. Sinnet ; em que época não o posso
dizer exatamente.
Dezoito anos mais tarde, em 1877, esses satélites foram descobertos por um astrônomo em
Washington.”

Silva Mello, que lança mão de todos os testemunhos, mesmo dos mais desprezíveis,
quando quer “ter razão”, dirá

329
que tais réplicas não o atingem, nem lhe modificam o curso da vida, porque a sua
ciência paira muito alto. A Grande Síntese.
Instaríamos com Silva Mello por que lesse A GRANDE SÍNTESE, se não lhe fôra
inveterado o mau hábito ae conversar exclusivamente com Max Dessoir. Se é certo que
“continua sempre muito emotivo, preocupado com os problemas do Além”, busque
inspiração e remédio noutras fontes, muito dignas da sua ciência livresca.
A GRANDE SÍNTESE fala a todos, poíque “a todos quer abalar e unir por uma fé
mais alta e por uma verdade mais profunda. Fala num tom apaixonado para as almas
solertes e ardentes; num tom de sapiência, para os que se encontram aptos a
corresponder1 às vibrações intelectivas”.
Silva Mello, ao folhear aquelas páginas ditadas por uma consciência cósmica
suprahumana, que nos fala da evolução das formas e da origem das fôrças de dentro da
estrutura de motos vorticosos — orgânico, elétrico, nervoso, cerebral, psíquico, abstrato
— sentirá um grande remorso de ter caluniado a literatura espírita e as mensagens dos
espíritos. Aconselho que a leitura se faça junto de assessores que o ajudarão a
compreender e a penetrar fundo na ciência das causas, contribuindo para a vulgarização
daqueles conceitos traduzidos para tôdas as línguas vivas.
A GRANDE SÍNTESE é uma coordenação entre a fé e a ciência paia salvar o mundo
da desagregação; é uma biologia de substância, que não se atém! à aparência dos sêres,
mas possui o conceito diretor do fenômeno e o centro gerador do psiquismo. Fala-nos
da autonomia da vida, semelhante à autonomia da luz estelar de um astro que se
extinguiu há milênios; entremostra-nos o parentesco entre as várias formas de vida, pela
gênese e pelos caracteres, lembrando-nos a afinidade, pela comunidade de origem das
formas químicas e das formas dinâmicas; discreteia sôbre a substância-mãe, a semente e
o germe da matéria — o éter — composto somente de núcleos sem eletrônios, e do qual
provêm, pela agregação de átomos, todos os elementos, desde o mais simples, o
hidrogênio, até o mais pesado, o urâ,nio. Encontrará ali a definição da intuição, o
sentido do futuro, de que a vida dos gênios nos fornece exemplos, “a consciência latente
que está para

330
a consciência manifesta como as ondas elétricas para as ondas acústicas”; ensina-nos
que o universo se nos afigura caótico, confuso, inexplicável, porque vivemos no mundo
dos efeitos, mas que é perfeição desde todos os tempos, independente de nossos
conhecimentos, que nada criam, nem alteram, senão a nossa própria posição; enfim,
convence-nos de que “a maior descoberta científica” é a da realidade do Espírito, que se
seguirá à descoberta da desintegração do átomo, inexhaurível fonte de energia, capaz de
proceder à transmutação das individualidades químicas.
Vejamos, para exemplificar, algumas sínteses parciais contidas dentro de A
GRANDE SÍNTESE:
Sobre religiões:

“As religiões (erro imperdoável) todas em luta entre si, exclusivistas quanto à posse da Verdade, e
isso em nome do próprio Deus, aplicadas não em procurar, como deviam, a ponte que as ligue mas em
cavar o abismo que as separe; cada uma presa da ânsia de invadir sozinha o mundo todo, ao invés de
coordenar-se com as demais, colocando-se no nível que lhe corresponda pela profundidade da revelação
recebida, mais não têm feito do que recobrir de humanismo a originária Centelha Divina.”

Sobre a fundação de cada um de nós na Vida:

“Agora, pensai nisto, apenas: que sois, não só membros da vossa família, da vossa nação, da vossa
humanidade, mas também cidadãos deste grande universo. Somente os limites da vossa consciência atual
é que não vos permitem reconhecer-vos, “sentir-vos” uma roda da imensa engrenagem, uma célula eterna,
indestrutível que concorre com o seu labor para o funcionamento do grande organismo. Esta a
extraordinária realização que a evolução para superiores formas de consciência vos está preparando.
Quando lá houverdes chegado, olhareis com piedade e desprezo para as vossas ferozes e inúteis fadigas
atuais.”

Sobre a natureza da Divindade:

“Não meçais a Divindade como vos medis a vós mesmos; não tenteis defini-la e muito menos por
meios apropriados unicamente a vos definirdes, por multiplicação e expansão do que vos é concebível. Se
quiserdes, somai ao infinito os vossos superlativos: Isto ainda não é Deus.”
“A luz se torna mais ititensa, à medida que o olhar se aguça. O mistério subsiste, porém, transportado
sempre para confins mais distantes. Por mais que o horizonte se amplie, haverá sempre, mais distante, um
horizonte desconhecido, que tereis de alcançar.”
“Não sei individuar-TE, mas em direção a TI, centro do universo, gravito, como gravitam todas as
coisas.”

331
“Não empresteis a Deus corpo, nem hálito. Compreendei que naquelas palavras mais não pode haver
do que a humanização simbólica de uma realidade mais profunda.”

Sobre a nossa alma e as suas inquietações:

“Alma! Alma! centelha divina, que nenhuma das vossas loucuras jamais poderá matar, pronta sempre
a ressurgir mais bela de cada dor! Potencialidade nunca farta de ser e de criar! Só tu verdadeiramente
vives! Nenhuma conquista do pensamento, nenhuma afirmação humana será capaz, nunca, de extinguir a
tua sede de infinito.”
“Não se satisfaz a alma com o embalar o corpo em comodidadas supérfluas e custosas, com o oferecer
caridosamente ao olhar uma fulguração toda exterior. Na satisfação dos sentidos, alguma coisa
igualmente sofre no íntimo e agoniza em viva angústia. Um vácuo enorme permanece dentro de ti, onde
uma voz única, perdida e desconsolada se eleva, inquieta, a perguntar: e depois?”

Um conselho para todos:

“Uma coisa simples e tremenda tem o homem de hoje que fazer, na encruzilhada dos milênios: pôr
nua a alma diante de Deus e examinar-se a si mesmo, com grande sinceridade e coragem.”

Em A GRANDE SÍNTESE o nosso Silva Mello encontrará muita ciência


espiritualista, isto é, muita Sabedoria, que lhe dará a unidade de tudo em Deus, sem
precisar de abjurar os seus conhecimentos das aparências das coisas. Sua visão
alcançará a acuidade e a penetração de quem, colocando-se nos bastidores de um teatro
de “marionettes”, possa ver e compreender tudo, ao mesmo tempo: a assistência, os
bonecos, os fios que os movem e a Vontade que lhes dá vida.
Não acreditamos aue lhe agradem os conceitos acima transcritos, porque estão
contaminados de uma espiritualidade que não sabe muito bem ao seu paladar pervertido.
Destaquemos alguns trechos em que assuntos prediletos de Silva Mello receberam
muitas luzes.
Sobre o subconsciente, o instinto e a razão:

“O subconsciente é exatamente a zona dos instintos, das idéias inatas, das qualidades obtidas; é
passado transposto, mferior, mas adquirido (misoneísmo). Aí se depositam todos os produtos substanciais
da vida; nessa zona encontrais de novo o que fostes e o que fizestes, o caminho seguido na construção de
vós mesmos, assim como nas estratificações geológicas se vos depara a vida que o planêta viveu. A
transmissão ao subconsciente se dá por meio da repetição constante. Dizeis, então, que o hábito
transforma um ato consciente em ato inconsciente e dêle forma uma segunda na

332
de confiança e de bondade substitutes por um de depressão e malevolência, então, ao invés de saúde,
produzir-se-á enfermidade; ao invés de desenvolvimento, regressão; ao invés de nutrição, intoxicação; ao
invés de vida, morte.”

Que o biopsicólogo procure ler A GRANDE SÍNTESE, com o mesmo interesse com
que os espiritistas andam, nas livrarias, em busca dos MISTÉRIOS. Proemina neles,
sobre os seus adversários, a grande vantagem de lerem muito, de lerem tudo que se
escreve a favor ou contra a sua doutrina, na ânsia muito humana de compreender e de
discernir.
Se não encontrar a tradução portuguesa, atualmente esgotada, valendo o volume de
355 páginas nada menos de mil cruzeiros, o seu poliglotismo lhe tornará possível fazer a
mesma leitura na língua que preferir.
Leia e retrate-se, se tiver “caráter”.
Na sua superconsciência, na sua intuição divinatória, Pietro Ubaldi, Professor da
Universidade de Peruggia, autor de oito obras da mais pura espiritualidade, que serão
brevemente traduzidas para a nossa língua, não somente antecipa e prevê certas
conquistas da ciência humana, como nos dá a chave que abre à inteligência a porta dos
tesouros de Deus. Predisse, muitos anos antes que a física nuclear o realizasse, a
desagregação da energia contida no reservatório imenso da matéria:
“A energia atômica que procurais existe e haveis de achá-la.”
Em 1932, na revista Ali del Pensiero, com antecedência de 18 anos sobre Einstein
(teoria generalizada da gravitação e teoria do campo unificado), sem cultura
matemática ou científica correspondente, apenas com o auxílio da intuição, “que está
para o raciocínio na mesma proporção de que a luz para o som”, afirmou que a
gravitação é a protoforma do universo dinâmico; que é energia radiante; que se
transmite por ondas; que possui velocidade própria como a luz e o som; que não há
transmissão instantânea para a energia gravífica, como não há para todas as
modalidades de força.
Nas 3.000 páginas dos seus sete volumes já publicados, elaborou-se uma concepção
do Universo, uma solução para os problemas do espírito que ombreia com as últimas
teorias físico-matemáticas, quer se atribua o fenômeno prodigioso à mediunidade, à
inspiração, ou à teofania.
Se as suas previsões e as suas conclusões são assombrosas e ratificadas
posteriormente pela melhor ciência do século — a ciência espiritualista de um Einstein
— os seus conselhos

333
deviam ser assimilados e respeitadas as suas normas de trabalho intelectual.
Quais são estas e quais são aqueles?

“A vossa ciência corre o risco de não concluir nunca e o “igno-rabimus”, quer dizer — falência. A
tarefa para a vossa ciência, não pode consistir só em multiplicar as comodidades. Não abafeis, não
apagueis a luz do vosso espírito, única alegria e centelha da vida, ao ponto de fazerdes da ciência nascida
do vosso intelecto uma fábrica de comodidades. Isso é prostituir o espírito, é vender, vos
oprobriosamente à matéria.”

Páginas além, sanea-nos com o mais puro ozona dos planos em que vive, ensinando-
nos as mesmas praxes pelas quais um Copérnico, um Newton, um Pasteur, um Einstein
mergulharam as mãos puras nos tesouros de Deus e trouxeram de lá as suas descobertas
geniais:

“Qual cientista pensou jamais que, para compreender um fenômeno, fosse necessária a sua própria
purificação moral? Partindo da negação e da dúvida, a ciência ergueu de antemão uma barreira
intransponível entre o espírito do observador e do fenômeno; o Eu que observa se mantém, intimamente,
estranho sempre ao nômeno, em que mal toca pfla senda angusta dos sentidos. Jamais o cientista abriu sua
alma, para que o mistério olhasse de frente o mistério e se comunicassem e compreendessem. Jamais
pensou que lhe fosse preciso amar o fenômeno, tornar-se o fenômeno oferecido a sua observação, vivê-lo;
que precisasse transportar o próprio Eu, com a sua sensibilidade, para o centro do fenômeno, não apenas
estabelecendo com elê uma comunhão, mas uma transfusão d’alma.”

A cada um de nós assiste o livre arbítrio de endereçar o seu pensamento para onde
pôs o seu coração e a sua alma. Cada um elege o plano de vibração que afine com o seu
espírito.
Quem somente vibra com os instintos animais, com as funções digestivas, com a
sexomania freudiana, com a justiça biológica e quejandas bagatelas, só se enriquecera
de novidades naquelas escumalhas.
Arrasta-se por aí em gestação, em incubação ou em hibernação, para novas
monstruosidades, a ciência das causas mínimas e desprezíveis do nosso infeliz irmão
Silva Mello.
Não lhe importam muito os problemas do espírito e da espiritualidade ; aguça-lhe o
raciocínio a causa de nomes dados a papeis de baixíssima serventia.
Ex ungue leonem.

334
CAPÍTULO DÉCIMO

SUMÁRIO:

Acredite quem quiser... Uma página de Rui


Barbosa. Richet e Bozzano. Advertência
necessária: CONCLUSÕES: O homem. A obra.

“Muitos médiuns ouvem, mediante um novo sentido, o da audição psíquica, não mais. acústica; êles
nos sentem com o cérebro. Sintonia quer dizer capacidade de resonância. Espiritualmente, sintonia se
chama simpatia, isto é, capacidade de ouvir em uníssono. Quer acústica, quer elétrica ou espiritualmente,
é o mesmo o princípio vibratório de correspondência, porque a lei é uma só em todos os tempos.”
PIETRO UBALDI

“Se somos espíritos do outro lado da morte, também o somos deste lado. Se a nossa natureza espiritual
pode passar de um mundo para outro, também pode abandonar este mundo para ir estudar o outro, ficando
capaz de voltar ao mundo atual. É este o método que seguiram no passado os grandes. Instrutores. É o
método que as religiões antigas, e modernas reconhecem ter sido empregado pelos seus próprios
Instrutores, pelos, grandes Seres que vieram ensinar aos homens a religião.”
ANNIE BESANT.

“O sexo é a mais “psicossomática” das funções humanas; não há outra em que o corpo e a alma, finite
e infinito, estejam tão intimamente ligados. Quando o sexo liga os dois polos, o resultado é paz e
satisfação; quando carne e espírito estão divorciados, e o sexo está sozinho, o resultado é a frustração e o
tédio. O grande problema é manter a relação certa entre corpo e alma.”
FULTON J. SCHEEN.

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CAPÍTULO X

Acredite quem quiser...

Os MISTÉRIOS decretaram, revogadas todas as disposições em contrário, a


imbecilidade dos sábios, tanto mais ingênuos quanto mais habituados às
experimentações científicas, tornando-os inaptos e ineptos para a verificação e o estudo
dos fenômenos metapsíquicos ou parapsicológicos. Dentre o enxame de absurdidades,
de pretensiosas infalibilidades científicas e de evidentes velhacarias (omissão,
deturpação e roubo de protocolos) brilha esta última de modo invulgar.
Somente um sofista de quatro costados possui a coragem insana de defender e de
proclamar que dois sábios, ou, muito melhor, dois experimentadores consumados, dois
fieis representantes da ciência experimental, habituados, durante dezenas de anos, a
observar, a pesquisar, a registrar os mais delicados fenômenos físicos, químicos,
biológicos e psicológicos, munidos de máquinas fotográficas, de balanças de precisão,
de termômetros, de controladores elétricos, de iluminação especial, capazes dê
denunciar a mais leve, a mais ínfima, a mínima alteração de peso, temperatura,
movimento e forma da matéria no transcurso de uma experiência, tivessem sido
bobeados por1 mocinhas de quinze anos, durante numerosas sessões em que as
materializações e as desmaterializações se realizaram.
Antes de admitir uma eventualidade desse jaez, não ficaria mal ao sabichão o
requerimento de um exame de sanidade mental.
Outra hipótese, Snr. Mello. Sirva-se do diabo. É muito mais inteligente, embora não
seja original...
Fechados nos seus gabinetes ou nos seus laboratórios com um determinado número
de observadores fidelíssimos e descrentes, cinco, por1 exemplo, deixaram que uma
sexta pessoa surgisse ao lado deles, de repente, desaparecesse, desfazendo-se-lhes aos
olhos, tornasse a surgir, executase todos os atos de uma pessoa viva, durante três anos,
sem que atinassem com a fraude, evidente para Silva Mello, que foge, no entanto, dos
médiuns verdadeiros como o diabo da cruz.
Introduziu-se na experiência, não um miligramo de peso, não um décimo de
temperatura, não a fração de milímetro de algum movimento superveniente, mas o
corpo inteiro de

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um ser materializado. E os sábios presentes e prevenidos não puderam admitir nenhum
truque. E Silva Mello, à distância de espaço e de tempo, sabe de tudo o que se passou.
Se qualquer criatura percebe que a materialização é, de todos os fenômenos espíritas
o mais difícil de ser falsificado, desde que se numerem preliminarmente as pessoas
presentes e se fechem hermeticamente as portas e as janelas, quem se convencerá de que
Crookes e Richet, dois observadores incrédulos, se deixaram ludibriar de maneira tão
simples e tão ridícula? Por que razão o nosso metapsiquista nacional não se propõe a
fazer o papel facílimo da formosa Katie King numa sessão experimental, em casa
alheia? Não lhe seria possível, com todos os seus títulos universitários aos quais se
apega ultimamente para ser acreditado, proporcionar aos seus pares da Academia ou da
Faculdade uma sessãozinha em que representasse com graça e perfeição a mesmíssima
cena com que Florence Cook, aos quinze anos de idade, sozinha, desmoralizou para
sempre, dezenas de vezes, o velho, o ingênuo, o apaixonado experimentador William
Crookes?
O engano dos fanáticos das duas fés — a materialista e a religiosa — consiste na
suposição falsa de que a fenomenologia espírita não é naturalística, humana, biológica.
Por isso negam os fatos acumulados no mundo inteiro, ridicularizam os que se curvam
diante deles. Isto, desde as primeiras observações do Dr. Larkin precursor e mártir do
movimento espiritualista, quando relatou, em 1837, suas experiências (raps) com a
sonâmbula Mary Jane, atraindo sobre si perseguições civis e religiosas tão implacáveis
— conta-nos Bozzano — “que provocaram a sua ruÍna profissional e civil.”
Hoje, graças a Deus, ninguém se teme desse tipo de perseguição: o neo-
espiritualismo, científica, social e moralmente possui força intrínseca bastante e amparo
nas leis para enfrentar os seus caluniadores.

Uma página de Rui Barbosa.

Para delinear, na “Oração aos Moços”, obra prima, filha legítima de sua alta
espiritualidade, linda página que transcrevemos neste livro, página da qual se infere a
sua convicção no intercâmbio possível entre vivos e mortos, desde que se estabeleça a
sintonização afetiva, sem a necessidade da interferência demoníaca, Rui Barbosa foi às
livrarias e colheu as obras neo-espiritualistas de maior renome.
Para escrever uma só página, leu os autores mais reputados e mais sérios, que
enumeraremos linhas abaixo. Leu-os

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no original. Anotou-os. Grifou com tinta vermelha algumas passagens mais
interessantes, como lhe era habitual.
Da obra original de Crookes, que Silva Mello e o seu parceiro Leonídio Ribeiro
(pêsames à ciência experimental!) citaram falseando ou citaram através de falsários, de
que foram vítimas — Les Nouvelles Experiences sur la Force Psychique — possuía Rui
Barbosa nada menos de duas edições, das quais o fichário nos deu os seguintes
informes: G, 10-1, 28 Nº 1 (sem data) e B -10,3,29 (de 1897).
Obra fundamental da ciência espírita, ninguém, que se preze, deixará de lê-la no
original, antes de intentar quaisquer refutações. Sobretudo em se tratando de sábios
em... gafanhotos, metidos a metapsiquistas. Os espécimes nacionais, ou não a leram
jamais, ou (deixamos ao leitor o adjetivo apropriado) fizeram o que um deles aconselha
— tornar sempre aproveitáveis todos os argumentos — isto é, deturparam-na
conscientemente.
Entre os tratadistas compulsados por Rui Barbosa, figura Richet (Traité de
Metapsychique, edição de 1922, G - l,f,16), onde encontramos suas pegadas até a página
401 e nas Conclusões (págs. 757-793).
Tendo falecido a 1 de Março de 1923, podemos deduzir que o livro de Richet foi um
dos últimos que o grande Mestre saboreou na sua vida de ledor impenitente.
Que mais autores leu Rui Barbosa para escrever uma página sobre o assunto? Leu as
maiores autoridades, homens de ciência e consciência, diante de cujos testemunhos, a
obra do historiador faccioso Max Dessoir (Der Physikalische Mediumismus), sobre a
qual Silva Mello trejura como os crentes sobre os Evangelhos de Cristo, e que lhe
forneceu material para 609 páginas compactas, reveste-se de insignificancia alarmante,
num cotejo de autoridades.
Teria o autor dos MISTÉRIOS comparado o depoimento de Dessoir com o das obras
originais de Sábios com S maiúsculo, já que comparece ao pretório com as mãos vazias
de experimentação pessoal, afora o medo pelos fantasmas... (que não existem) com o
depoimento espontâneo, coincidente, unânime, insuspeito dos autores que ocupam
lugares de honra na biblioteca de Rui Barbosa? Na investigação apressada de uma
visita, depararam-se-nos, excluídos os não estritamente espíritas (Annie Besant, William
James, e outros) :
Oliver Lodge: Raymond or Life and Death (B - 2,5,17); Survival of Man (B- 2,4,23);
The Proofs of life after death

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(L- 8,4,27); La Vie et la Matière, trad, por J. Maxwell (L -5,2,6).
Aksakoff: Animisme et Spiritisme, trad, por1 Bertbould Sandow (B-2,3,21).
Ernesto Bozzano: Les phénomènes de hantises, trad, por C. Vesme (E- 10,h,42).
Myers: Les hallucinations telépathiques (B-2,3,20).
Conan Doyle: The New Revelation (L-9,3,31).
Léon Denis: Les problème de 1’être et la destinée (B-7,2,7).
Alfred Russel Wallace: La place de l’homme dans 1’uni-vers (L-8,5,22).
Flammarion: Dieu dans la Nature, L’homme et les pro-blèmes psychiques, La Mort
et son Mistère, Recits de 1’Infini, Uranie, Autour de la Mort.
Encontramos assinalados, com tinta vermelha, os seguintes trechos de “Autour de la
Mort” (1-4,1,25) : “Tous ces faits sont constates aujour-d’hui avec une certitude
irrecusable” (Les doubles de vivants, pg. 41). Mais além, na página 55, quando fala
Mme. Milman, a respeito das bilocações: “Je suis affligée d’une autre moi-même qu’on
rencontre ou je ne suis pas.”
Demos, entre parêntesis, as indicações do fichário para os leitores que, por
infelicidade, afinem com a mentalidade de Silva Mello, estupendamente descrente da
verdade em boca alheia.
A religiosidade de Rui Barbosa, que iluminou tôda a sua vida de lutador pelo Direito
e a Liberdade, foi a mola que o impulsionou para o alto, para a Justiça, da qual se fez o
defensor mais estrênuo, desde que se descobriu a si mesmo, tanto no âmbito nacional,
como no palco mundial.
Em Haia encarnou e viveu, gloriosamente, os momentos culminantes da história de
sua Pátria, quando defendeu a igualdade jurídica de todas as nações, ideal pelo qual se
batem e morrem hoje os povos que não desfitaram os olhos do exemplo eterno do
Cristo.
Ao contrário do que insinuou o Professor Sousa da Silveira, em prefácio da Edição
Nacional da Oração aos Moços (Casa de Rui Barbosa, 1949), a “privilegiada
inteligência”, que nasceu, por engano, cem anos antes, ou viveu, antecipadamente, o
futuro, incompreendido até hoje pelos seus concidadãos, nunca esteve “transviada de
Deus.” É afirmação leviana de um admirador, que Rui Barbosa fulminaria com tôda a
veemência, e a que certamente, não se atreveriam nem

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os seus mais ousados caluniadores, se ainda lhe fosse possível a réplica imediata.
Porque não se transvia de Deus quem se revolta contra a deturpação da vera
espiritualidade e o prova com fatos dos quais não se pode jamais desvencilhar ou
esvasiar da substância real com que se objetivaram. Ninguém se retrata de fatos
apresentados.
Quem se arrancou do pó da terra e conseguiu elevar o seu pensamento até Deus,
qualquer que tenha sido o caminho percorrido dentro dos Evangelhos, não
menosprezará os fenômenos naturais e biológicos que o ajudarão a firmar a confiança
na Suprema Justiça e no Supremo Bem.
O equívoco dos “religiosos” e as negaças dos materialistas se fundirão um dia na
unanimidade do reconhecimento de que Deus é Pai e de que todos nós somos seus
filhos.

Richet e Bozzano.

Richet e Bozzano mutuaram-se influências e estímulos durante mais de 40 anos. Na


“Revue Spirite” (Fev. de 1939) o filósofo italiano confessou que foi através dos
“Annales des Sciences Psychiques”, dos quais Richet foi o orientador e Darieux o
diretor que travou conhecimento com a fenome-nologia supranormal. ‘Leu os artigos
iniciais de Richet e leu a refutação de Rosembach, na “Revue Philosophique” do Prof.
Ribot. Foram justamente os argumentos insubsistentes e fragílimos de Rosembach que
lhe despertaram o interesse pelo assunto, levando-o à convicção contrária à do opositor
de Richet. Tal qual tem acontecido com os MISTÉRIOS, quando o leitor atenta na
eloqüência dos fatos e dá de mão às hipóteses raquíticas de Silva Mello...
Dai partiu em busca da convergência das provas, “critério decisivo em qualquer1
pesquisa científica”, iniciando as suas leituras (Robert Dale Owen, Spes Sargent, Mrs.
de Morgan, Doctor Wolfe).
Eis o que aconselha aos que procuram, com sinceridade, a luz:

“Quem quer que, ao invés de se esgotar em ousadas discussões, empreenda pesquisas sistemáticas
sôbre os fenômenos psíquicos, nelas perseverando durante muitos anos, acumulando material imenso de
fatos para os submeter em seguida aos métodos de investigação científica, acabará, certamente, por se
convencer de que os fenômenos supranormais constituem admirável complexo de provas animistas e
espiritistas convergindo todas para a demonstração rigorosamente científica da existência e da
sobrevivência da alma humana.”

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Ao término do estudo e da experimentação, desfez-se-lhe a síntese filosófica
negativa, laboriosamente conquistada através de Büchner1, Molescbott, Vogt,
Feuerbach, Morselli, Sergi, Ardigo, Haeckel, Huxley, Comíe, Taine, Guyau, Le DantS e
o seu ídolo maior — Spencer.
Foi Richet quem iniciou Bozzano nos estudos metapsíqui-cos. Enfrentaram-se, mais
tarde, em polêmicas serenas e elevadas. E foi Bozzano que colheu a confissão final e
confidencial de Richet, poucos meses antes de sua morte. Na revista inglesa “Psychic
News”, de 30-5-1936, há uma carta de Richet que é digno epílogo de uma vida dedicada
quase que na sua totalidade ao estudo dos fenômenos espíritas.
O imortal criador da metapsíquica evoluiu, mau grado seu, da negação para a
curiosidade, desta para a experimentação, da experimentação para a recusa inicial da
hipótese espírita, sem aventar, no entanto, explicação alguma. Tendo enriquecido o seu
Tratado com um repositório imenso de fatos supranormais, não se inclinou por uma
causa específica:

“En définitive, je crois à l’hypothèse inconnue, qui sera celle de l’avenir, l’hipothèse que je ne puis
formuler, CAR JE NE LA CONN AIS PAS.”

Com autoridade e insuspeição incomparáveis, atestou a veracidade dos fatos. Não


precisaria mais para merecer a eterna admiração dos que sabem filiar tais fatos às
revelações dos iluminados de todos os tempos, principalmente à mensagem integral e
autêntica do Cristianismo. Casou, indissoluvelmente, a Ciência com a Religião.
A sua esperança de levar a convicção ao espírito endurecido do cientismo ateu
formulou-se do seguinte modo:

“Un savant génial, un médium puissant, un hasard heureux, en voilà assez pour que surgisse aussitôt
toute une série de vérités nouvelles d’ou sortiront non seulement des solutions nouvelles, mais aussi des
problèmes nouveaux, problèmes dont n’avons pas la moindre idée à 1’heure actuelle.”

Impossível transcrever todos os passos da sua imensa obra em que defende os autores
espíritas e aduz argumentos favoráveis à hipótese a que, afinal, se submeteu. Vejamos
alguns:

“Onde encontrareis uma experiência que prove que uma forma humana não possa aparecer?”
“A negação destes fatos não foi dada pela ciência, e, realmente, ela não pode ser dada.”
“Pretextar que esses homens experimentaram mal e que êles não eram sábios, não se dar ao trabalho
de inquerir seus métodos e seus resultados, é, a meu ver, uma insigne inépcia.”

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“Sem dúvida, pode-se admitir que julgar retamente o Espiritismo é coisa mais difícil do que aprender
a língua árabe. Pois bem, é crível que se possa aprender a língua árabe numa lição?”

De onde tirou o título para a sua obra “A Grande Esperança”?

“E a conclusão, ei-la aqui! é que confundido com o nosso mundo habitual, existe um mundo
misterioso que nos rodeia, fantasmas, casas assombradas, telepatias, premonições, monições, transportes,
de sorte que nos movimentamos numa obscuridade profunda.
Existirá esse novo mundo? Tentarei provar que ele existe e que por conseguinte a esperança de uma
transformação mental completa pode ser apresentada. Felizmente! porque o nosso estado social e a nossa
mentalidade individual são muito miseráveis para que aspiremos a uma sorte melhor, a uma grande
esperança.”

Quando afirmou, depois de defender denodadamente o Espiritismo, “por minha parte


— sem pretender que essas coisas sejam verdadeiras ou falsas, o que necessitaria uma
discussão que não convém aqui — eu somente digo que essas coisas são possíveis”,
estava sem o querer, em divergência com Crookes, quando este obtemperou: “eu não
disse que esses fenômenos eram possíveis; o que disse e afirmo é que são verdadeiros.”
Possíveis para Richet, verdadeiros para Crookes, os fenômenos não precisam de
hipótese que os justifique, porque são da natureza daqueles que, na opinião de Goethe,
se explicam por si mesmos. Falam.
O fenômeno espírita fala, ao contrário da maçã de Newton, que caiu silenciosamente,
sem lhe dar as razões da sua queda.
O nome insigne de Richet servia sempre de eixo iman-tado, em torno do qual girava
a opinião contraditória dos psiquistas de maior ou menor tomo: “Richet disse, Richet
não disse”; “Richet afiraiou, Richet negou”; “Richet protestou, Richet confessou...”
Certo, ele não caminhou, durante os quarenta anos de observação indormida, em
movimento vertical, senão no ritmo sob o qual se processam todas as conquistas seguras
da evolução — na ascensão progressiva das espirais. Às vezes, como por ocasião da
resposta que enviou à revista francesa “Comcedia” (1927), o seu estado de espírito era
de dubie-dade, o que é profundamente humano e psicologicamente normal, diante da
interpretação decisiva e árdua dos desccn-certantes fatos metapsíquicos.

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Somente os Silva Mello vencem tais crises de maneira meteórica, porque não usam o
raciocínio.

“Je vais vous répondre, diz ele, en absolute franchise-Tantôt j’y crois. Tantôt (plus
souvent peut-être) je n’y crois pas. Comment un physiologiste peut-il supposer qu’il y a
une survie de la conscience sans cerveau? D’autre part, comment nier les faits dits
spiritiques qui component par I’hypothese une explication plus simples que toute
autre?”

(Respondo-vos com absoluta franqueza. Às vezes, creio. Às vezes (mais comumente), não creio.
Como pode um fisiologista supor que haja sobrevivência da consciência sem o cérebro? Igualmente,
como negar os fatos chamados espíritas e a hipótese explicativa mais simples do que qualquer outra?)

De outra feita, em carta a Bozzano, a quem tributava a mais acendrada e firme


admiração, expressou-se em linguagem de insofismável convicção, excluída a
advertência “les formules enfantines de Allan Kardec ou de Conan Doyle”.
Tais “fórmulas infantis”, resultantes da aceitação da sobrevivência não devem ser
debitadas aos seus codificadores. Se há infantilidades nelas, a culpa é do espírito
humano, que não ascende, automaticamente, à sabedoria, ao perder o corpo físico. O
contrário, aliás, é que seria absurdo.

“Malgré mon vieil âge je travaille encore, et je prepare un livre sur les idées qui
nous sont chères: à vous comme à moi. Le titre de mon livre — LA GRANDE
ESPÉRANCE — indique assez nettement que peu à peu je me rapproche de vos idées...
Toutefois je ne crois pas au spiritisme suivant les formules enfantines d’Allan Kardec
ou de Conan Doyle...”

(Não obstante minha idade avançada, trabalho ainda e preparo um livro sobre as idéias que nos são
caras a nós ambos. O título do meu livro — A GRANDE ESPERANÇA — indica, com bastante nitidez
que, pouco a pouco, eu me aproximo de vossas idéias... Todavia, não creio no Espiritismo segundo as
fórmulas infantis de Allan Kardec ou de Conan Doyle...)

Afinal, convencido, mas desejando que a sua “fraqueza” permanecesse em sigilo


(porque sabia, por experiência muito amarga, até que atos de desatinos podem chegar os
facciosismos, quando desmascarados) externou a síntese derradeira, o conceito
definitivo, que há-de merecer o respeito da ciência materialista, se esta souber respeitar-
se a si própria na

343
344
pessoa de lídimo e credenciado luminar do melhor experimentalismo universal.
A revista londrina “PSYCHIC NEWS”, de 30 de Maio de 1936, publicou dois
documentos de suma importância para a causa espiritualista: uma carta de Bozzano a
Miss E. Maud Bubb e outra de Richet a seu amigo Bozzano.
A primeira é do seguinte teor:
“Estimada Miss Bubb:
Fiquei satisfeito ao saber que enviastes a “Psychic News” um extrato de minha carta, na qual dizia
que, nos últimos momentos de sua existência, o Prof. Richet me confessou a sua crença no Espiritismo.
Com o maior prazer vos envio copia da carta em que ele me dá a grata notícia.
Eis o que se passou:
Como demonstração de apreço, ofereceu-me seu livro “Au Secours”, com a seguinte dedicatória: “A
man savant et vaillant ami E. Bozzano, en toute sympathie croissante.” (A meu sábio e valente amigo E.
Bzzano, com tôda crescente simpatia).
Como a palavra “crescente” estivesse grifada, fiquei surpreendido e satisfeito, pois tive a intuição de
que a expressão dada a êsse vocábulo tinha mais importância teórica do que apreciação pessoal. Não pude
Não pude subtrair-me ao desejo de o mencionar ao Prof. Richet, expressando-lhe, com certa timidez, a
esperança que tal palavra despertara em meu coração. Pela segunda vez, respondeu-me com uma carta ao
alto da qual se lia a palavra “Confidencial”. Eis aqui a cópia da carta: (De Richet a Bozzano).
“Meu caro e eminente colega e amigo:
Sou inteiramente do seu parecer: não creio, com efeito, na explicação simplista segundo a qual os
acontecimentos da nossa existência e a direção da nossa vida são provocados exclusivamente pelo acaso,
embora não seja possível apresentar prova nesse sentido. O Fado existe, o que equivale a dizer: uma
Força que nos guia e conduz aonde bem lhe pareça, por vias indiretas, tortuosas e muitas vezes bizarras.
E, também fora da direção da vida, há coincidências tão estonteantes, que é bem difícil não se veja a
obra de uma intencionalidade. (De quem? De que...?)
E, agora, abro-me a você, de modo absolutamente confidencial. O que você supunha é verdade.
Aquilo que não alcançaram Myers, Hodgson, Hyslop e Sir Oliver Logde, obteve-o você por meio de suas
magistrais monografias, que sempre li com religiosa atenção. Elas contrastam, estranhamente, com as
teorias obscuras que atravancam a nossa ciência.
Creia, peço-lhe, nos meus integrais sentimentos de simpatia e de gratidão.
CHARLES RICHET.

345
Advertência necessária.

A aceitação do mediunismo, de nossa parte, não implica no reconhecimento de que


tudo que se obtém por seu intermédio nos há-de merecer o maior respeito. Nem que
concordemos com a invigilância, a irresponssabilidade e os vícios dos espíritas
“titulares”, que se utilizem dos fenômenos somente como remédios para uso tópico ou
externo, evitando a ingestão necessária para a cura interior. As forças naturais que se
manifestam, variáveis ao infinito, em moralidade e sabedoria, são dotadas de livre
arbítrio, como o somos nós. O reinado da liberdade e da responsabilidade é absoluto, em
todos os planos. Se assim não fora, a virtude e o crime seriam duas palavras sem
sentido.
Há verdade manifesta, real, “no fundo’ dos fenômenos gerais do Espiritismo”.
Reconhece-o Ramacháraca, lembrando-nos, todavia, as práticas fraudulentas, os perigos
da curiosidade malsã, do entretenimento fútil e da exibição mercenária.
Tirante os casos especiais em que as comunicações se realizem entre pessoas unidas
por vínculos de amor e de amizade, e as relações telepáticas independentes da
aproximação física, que as almas dos planos astrais superiores estabelecem com os
encarnados de sua amizade, para conselhos de uns e alegrias de outros, releva não
esquecer de que, no COSMOS, não há “alto”, nem “baixo”; de que muitos velhacos
habitam os sub-planos astrais inferiores, para cujo vazadouro se atira a escória humana
desencarnada, havendo o risco de nos associarmos, através do mediunismo
“invigilante”, com gente que, em vida, não deixaríamos jamais penetrar em nosso lar.
O conselho é salutar. Saibamos utilizá-lo, mesmo quando as práticas a que nos
abalançarmos tenham finalidades nobres: cura de obsessões e diagnósticos para os casos
em que a medicina materialista, sempre mais acessível aos ricos, tenha naufragado, ou
descido ao mercantilismo.
Se o médium é um instrumento, não é, aliás, um simples instrumento. Se a sua vida
não se estremar pelas normas de Cristo, mas pelos seus caprichos, pelos seus vícios,
desobedecendo aos conselhos que, de todos os lados o procuram orientar, somente
atrairá espíritos semelhantes, que se rebaixarão ainda mais na companhia indesejável.
Meterá dentro de lares desprevenidos, senão o diabo dos católicos, coisa, talvez, muito
pior e mais difícil de se erradicar.
Annie Besant, conquanto reconheça, nobremente, que o Espiritismo tem resistido ao
ridículo, às perseguições da polícia, para demonstrar a sobrevivência da personalidade
humana, “levando assim, no mundo inteiro, muitos sábios a admitirem

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o que eles haviam negado durante tantos anos”, substituindo-se vitoriosamente às
religiões, para reduzir o materialismo endurecido, “tipo que não pode ser convencido
senão pelo testemunho dos sentidos”, adverte-nos sobre a possibilidade do mediunismo
tresandar os desencarnados, cujas paixões e cujos desejos inferiores forem trazidos
novamente à vida terrestre, por sentimentos isólogos de médiuns viciados.
Liberalizam-se estímulos deletérios o instrumento e o comunicante desencarnado,
com prejuízo para ambos e para infelicidade dos meios ignorantes em que se rodearam
de admiradores famulatícios e fanáticos, que os acoroçoam e protegem.
Deixemos que os nossos irmãos livres da carne se elevem, progressivamente, aos
planos mais altos da espiritualidade, onde poderemos visitá-los, sem necessidade da
presença física e de palavras — pela silenciosa vibração espiritual.
Quando Deus o permite, êles nos visitam e nos consolam. Não se deve lembrar a uma
criança, que está crescendo, as condições antigas do seu estado pre-natal; não se “deve,
ensina-nos ainda Ramacháraca, “desenterrar todos os dias uma planta para ver se as suas
raízes estão germinando.”
Não se vê, muitas vezes, na prática do Espiritismo, como era para se desejar e para se
exigir, a preocupação de se proteger o intercâmbio entre os dois mundos com as
virtudes cristãs da caridade como a definiu S. Paulo na Primeira epístola aos Coríntios,
capítulo 13, e, sobretudo, com a pureza, porque a força sexual sublimada - neste
particular acordam o esoterismo, as religiões orientais, ocidentais e a ciência —
centupliea no cérebro humano o seu vigor intelectual, a sua sanidade moral, a
clarividéncia e a cla-riaudiência, não somente quanto à intensidade senão também
quanto à espiritualidade das manifestações.
Pela porta da licenciosidade e da impureza ninguém penetrou jamais o Reino de
Deus: penetrou, sim, facilmente, quaisquer que sejam as suas “crenças” a porta das
obsessões, dos manicômios e das penitenciárias.
O mal entendido que se interpõe entre a mediunidade dos santos e a mediunidade
secular, uma cheia de angelitude e a outra de demonismo, ambas igualmente
fraudulentas e histéricas para a ciência oficial, provém, a nosso juízo, do modo por que
se exercitam: esta, livremente, até pelos que S. Paulo juntou nos versículos 9 e 10 do
capítulo 6 da Primeira aos Coríntios (fornicadores, idolatras, adúlteros, efe-minados,
sodomitas, ladrões, avarentos, bêbedos, maldizentes), aquela, em condições de limpeza
moral que vai ascendendo progressivamente, à medida que obtém respostas e avisos do
Alto, estabelecendo-se o círculo virtuoso da santidade.

347
Nem anjos, nem demônios: tudo produto do espírito humano encarnado ou
desencarnado, na sua imensa capacidade para o Bem ou para o Mal, graças ao seu livre
arbítrio, que lhe confere o prêmio ou o castigo.
A presença dos espíritos em torno de nós não somente se denuncia de maneira
palpável, como se resolve muitas vezes, mercê de nossa ignorância, de nossa boa fé ou
de nossa inferioridade moral, em sofrimentos atrozes, em realidades dolorosas, quando
não selecionamos a mediunidade ou negligenciamos os cuidados de que, no mundo da
carne, cercamos as nossas relações familiares.
Os nossos lares poderão ser conspurcados por autênticos canalhas, tanto maiores
quanto mais se escondam, como os da terra, sob a linguagem melíflua e literária de
fingida espiritualidade. Eqüivalem aos falsos representantes de Cristo, quando afivelam
ao rosto a máscara sob a qual fermentam as paixões mais torpes.
Nem é por outra razão que a filosofia védica, com a sua experiência multimilenar, e o
esoterismo, com a sua clarividéncia direta dos fatos, nos aconselham muita prudência
neste intercâmbio. A nossa experiência lhes dá razão.
Os fenômenos espíritas nós os estudamos e os dissecamos. Não ficaremos neles,
assim como o estudante de Medicina não se detém na Anatomia, que apenas lhe fornece
o substrato para estudos complementares, cuja finalidade geral transcende aos
conhecimentos limitados de uma ciência básica, indispensável subsídio para uma
religiosidade mais perfeita. Dos médiuns católicos (santos) assimilaremos as condições
insubstituíveis no exercício de qualquer intercâmbio útil com os desencarnados, isto é,
as virtudes cristãs; do esoterismo, do teosofismo, do rosacrucianismo, da filosofia
védica incorporaremos a preferência pela mediunidade consciente da clarividência e da
clariaudiência, ao invés de uma submissão servil e cega a forças capazes de tudo. Não
andamos em busca de ismos de espécie alguma. Todo ismo é uma limitação. Ansiamos
pela espiritualidade, que deve pairar em alturas aonde cada um de nós só chegará pelos
caminhos compatíveis com as suas forças e com os seus veículos de locomoção.
Os produtos individuais das filosofias e os exclusivismos das religiões mais não têm
feito do que “recobrir de humanismo a originária Centelha Divina.» Nas páginas de A
GRANDE SÍNTESE, de Pietro Ubaldi, os espiritualistas saídos de onde quer que
tenham nascido encontrarão o roteiro do futuro.

348
CONCLUSÕES

O Homem:

Falta-lhe a Silva Mello o sentido apropriado para as coisas espirituais. É ateu


irremediável e perdido, ateu malgré lui.
Não se lhe fale, ao pobre cego de nascença, do colorido das flores, nem do
deslumbramento dos nossos céus nas noites estreladas. Para um surdo congênito, não
existem melodias: não lhe é possível acreditar no canto dos pássaros, louvando o
Senhor, nem nas vozes dos instrumentos musicais inventados pelo homem, nem nos
acordes eletrizantes das grandes orquestras sinfônicas ou do passaredo no renascer de
cada manhã.
O espetáculo soberbo da maestrina Giannella, a menina-prodígio que dirigia turmas
de professores musicistas, vivendo entre nós como bênção da misericórdia divina
egressa dos espaços estelares, serfa para os seus ouvidos moucos apenas mímica,
gesticulação de insanos mentais, conchavados para ridicularizá-lo. Aceitar um cego
como condutor de homens, um surdo como julgador de Chopin ou de Mozart, um
paralítico de pernas atrofiadas como corredor de maratonas?
Não podendo, de sua impotente natureza, testemunhar nada, recusa o testemunho
alheio, que lhe contrarie as teorias. Quer ter razão e acertar as suas idéias, a seu modo,
usando todos os recursos. Quem se enganar com ele não será por não se achar
convenientemente prevenido.
Ao experimentalismo severo de 40 anos de Richet ou de Schrenck-Notzing,
contrapõe muitas leituras de um tal Max Dessoir e minguadas oito horas de convivência
com médiuns, todos de portas abertas. Nada sabe da essência da mediunidade, nem da
natureza dos espíritos.
A sua teoria da universalidade e onipresença da fraude denuncia o seu fnfantilismo
espiritual. Rara é a família brasileira que, nessa aproximação de tempos decisivos para o
cristianismo, não possua, dentro dos seus quadros, pelo menos um espécime de
sensitivo, espontâneo e gratuito, que não põe interesse algum na fraude. Arrisca-se o
“sábio”,

349
assim de flancos e retaguarda desguarnecidos, a receber cutiladas de milhões de
ineientes que já não ignoram o que ele ainda não sabe.
Fala prolixamente para provar a existência de fraudes, esquecendo-se, de caso
pensado, de que Schrenck-Notzing se ocupou particularmente; num livro inteiro, com as
“Fraudes do médium Lazlo”; e Richet, o metapsiquista que aceitou, afinal, a
sobrevivência, sobreexcedeu-se, até, em linguagem contra eles: “...esses malandros que
são os piores inimigos do Espiritismo; o interesse de todos nós, que acreditamos na
eetoplasmia e na telecinesia, é de aniquilar esses miseráveis.” Não crê em nada que se
banhe nas luzes da espiritualidade; mas crê piamente em tudo que chafurde na lama.
Ultrapassou Freud, depois de ingeri-lo e digeri-lo na totalidade de sua psicanálise
sexomaníaca e sacrílega, generalização impudente para indivíduos sãos e normais das
doidices de pervertidos.
Mergulhou, no barril cheio do corrosivo mortal de sua famigerada biopsicologia,
Deus, a espiritualidade, a moral, a justiça, a razão humana, a consciência usurpadora dos
instintos, as medicinas alopática e homeopática, as escolas primárias, o bom senso
universal, em suma, a Verdade.
Vive em dolorosa ambivalência, entre Eros e Tânatos, que lhe amarfanham a alma,
intrometida entre dois ramos poderosos de uma tenaz.
A sua ciência prescreve-lhe que busque a causa de tudo, para ser sábio; desce até à
causa dos nomes com que os comerciantes registram os papeis higiênicos oferecidos ao
consumo, mas é incapaz de subir um pouco a qualquer causa que se relacione com os
mais nobres anseios da alma humana. É pó, nasceu pó, deseja voltar ao pó. Requiescat
in pace!
Pede médicos para as experimentações com o supranormal e rejeita os médicos
Crookes, Richet, Schrenck-Notzing, Lombroso, Geley, Osty, Maxwell...; requer
prestidigitadores, capazes, por ofício, de desmascarar as fraudes, ma slogo impugna as
suas conclusões, quando foram obrigados a confessar, em nome da mais rudimentar
dignidade, que, sob determinadas condições, a fraude era impossível.
Finge que procura a verdade, sem idéia preconcebida, porém já se julga de posse dela
desde a fedelhice dos quinze anos de idade, quando o ateísmo lhe caiu sobre a cabeça.
Nem mesmo a sua ilustre tia (que ele meteu no assunto!) se se dignasse de voltar e lhe
desse todas as provas exigidas da

350
sobrevivência, como Esteia Livermore ou como Raquel Figner, conseguiria desviar o
curso de sua privilegiada incredulidade. Por que razão? Richet no-lo explica. Ouçamo-
lo ainda uma vez:

“Sei demasiadamente bem (por minha própria experiência), quanto é difícil crer naquilo qua se viu,
quando o que foi visto não está de acordo com as idéias gerais, vulgares, que formam o fundo dos nossos
conhecimentos.”

O ateu convencido do Nada desperdiçou 30 anos para acumular tolices, falsidades,


sofismas, incoerências, descoordena-das em 609 páginas dos seus MISTÉRIOS,
confessando, porém, antecipadamente, duas grandes verdades, que inutilizam todas as
suas pretensões de filósofo “orientador da mocidade.”
Basta enunciá-las para que o Corcovado e o Pão de Açúcar comecem a mover-se em
sua direção, para soterrá-lo: o homem tem medo incoercível de fantasmas e, o que é
pior, para “ter razão” e “acertar as suas teorias”, confessa, cân-didamente, que
transforma tudo em bons e aproveitáveis
Serve-se de Richet com a maior liberdade, ora aceitando-lhe as restrições, ora
contradizendo-lhe as afirmações, mas esconde o melhor, a sua opinião final — a
definitiva e valedia — exai-ada poucos dias antes da morte, na carta a Ernesto Bozzano.
Imagine-se o “sucesso” que causaria um historiador atrabiliário que, da vida de
Napoleão, ocultasse Waterloo e Santa Helena.
Entrevê todos os problemas humanos à luz da biopsicologia animalesca: é o homem
com “predominância animal”, de Pontes Miranda.
O desmedido astigmatismo mental, de que é portador, acarreta-lhe,
mdefectivelmente, a visão deformada da reali dade: parece-lhe torto o que está direito, e
vice-versa, quando conclui.
O equilíbrio, no seu raciocínio, é como a “linha reta nos movimentos da serpente”.
Sua paixão derradeira é pelos nordestinos, acerca dos quais está envidando articular
originalidades que não ocorreram a Euclides da Cunha. Aquele produto oriundo do
cruzamento de raças primitivas, realizado no meio agreste e despertador de resistências
humanas — fenômeno biológico que se repetiu milhões de vezes, no transcurso da
evolução seletiva — estoico e outrora fanaticamente religioso

351
— Há de ser o que Deus quiser! é imposto como padrão, padrão em tudo! para os
brasileiros de todos os Estados.
Mal-fazem os governos que empreitam, impatriótica e absurdamente, a extinção
daquele nascedouro de homens integrais, quando os ameaçam com a água e a
eletricidade, as quais lhes irão dessorar as energias físicas, a inteligência ímpar, a
coragem indômita, todas as superioridades raciais.
O ideal seria estender o flagelo das secas a todo o país... O mal do brasileiro é a
superalimentação...
O mineiro, por exemplo, “talvez o habitante mais bem nutrido do Brasil”, é alto, de
boa compleição física, mas as dentaduras são “das piores que podem existir”; é um tipo
“lerdo de gesto, de andar lento, linguajar monótono, excessivamente vagaroso”. Os
mineiros são “calmos e morosos”, por isso vegetam, “apagados”. Falta-lhes rendimento
ao trabalho, beleza real, intelectualidade e brilho. Como animais, estão reprovados por
Silva Mello, o veterinário...
Ouçamos o pontífice:

“E quase o mesmo pode ser repetido (Revista Brasileira de Medicina, Junho, 1950, pág. 401),
mormente do lado intelectual, quanto às populações bem nutridas de S. Paulo, assim como aos gaúchos
carnívoros e outros sulinos, que dispõem de grandes e variadas reservas de alimentos.”

Eis a sociologia estudada, exclusivamente, através da paralisia periódica das funções


digestivas, mercê da fome e das secas. Vamos vê-la, agora, na fonte inspiradora e viva,
que lhe propicia todos os Ingredientes e todos os temperos, isto é, entre os animais:

“No confronto que acaba de ser estabelecido, é sempre o nordestino que leva vantagem quanto às
qualidades físicas e intelectuais, embora sendo de talhe pequeno, cabeça redonda comumente feio, de
acordo com o que estamos habituados a chamar de bonito, principalmente segundo os padrões de
Hollywood. O galgo é, sem dúvida alguma, o mais belo dos cães, dadas a elegância de porte e Unhas do
seu corpo. No entanto, é o mais destituído de qualidades afetivas. O buldogue, o pequinez e muitos
outros, não raro horríveis pelo aspecto, feios, antipáticos, pequenos, deformados, podem sobressair pelos
seus atributos de inteligência, de caráter e de coração. Aliás, tôda essa parte puramente física não passa de
uma convenção, quase de uma moda, que varia com o tempo e os países.”

352
Escolha o leitor, à vontade, entre o galgo e o buldogue e cumprimente, com toda a
efusão d’alma, o metabologista revolucionário.
E continua, na defesa de sua tese, com os olhos súplices voltados agora para o mundo
feminino, como a pedir-lhe concordância e aplausos:

“A magreza feminina, o tipo masculino de mulher, imperou de maneira quase absoluta logo depois da
primeira guerra, exte-riorizando-se até nas modificações de sua indumentária, no corte do cabelo, nos,
gestos e nas atitudes, no uso do fumo e das bebidas alcoólicas, etc. Mas, de algum tempo para cá, estamos
voltando de novo às formas arredondadas, às carnacões mais cheias, coxas e braços roliços, como se vê
em toda a parte, nos jornais, nos cinemas, principalmente em concursos de beleza, onde as mulheres estão
apresentando seios avantajados, em corpos quase gordos.”

Assim é o homem. Quando esposa uma idéia que julga prenhe de conseqüências
jamais entrevistas nela indigencia mental de seus semelhantes, arrasa, antecipadamente,
todas as objeções do bom senso: o nordestino é, por conseguinte, física, intelectual,
moral e espiritualmente a suprema perfeição do homo sapiens. Silva Mello o decretou,
do alto dos tamancos de sua impotável biopsicologia.
Recebeu de suas próprias mãos a investidura de uma autoridade intolerante e
exigente, que tudo quer extorquir dos outros na proporção de cem por cento e nada
oferece de si mesma.
As “confissões” com que nos maravilha e nos deleita, em todas as suas obras, desde
o teste do “fogareiro de álcool”, até o velho teiró nelos fantasmas, concorrem para que o
comentarista mais caridoso o exclua para logo de qualquer láurea.
De todos os testes a que voluntariamente se submeteu saiu irremediavelmente
reprovado. Confissões espontâneas de que se exonerou muitas vezes aos seus leitores.
Exemplo: especialista em funções digestivas, não conseguiu até hoje debelar, em si
próprio, uma simples hipercloridria; matador valente de fantasmas, pelo que tem sido
muito felicitado, anda sempre temeroso da possibilidade de ser agarrado por uma perna,
no escuro.
O teste do “fogareiro de álcool” (“Alimentação Humana e Realidade Brasileira”,
págs. 11-14) merece a leitura atenta dos iniciados na ciência de Spearman, Stanford,
Terman, Binet, Simon, Henri Pieron, Claparère, etc., porque prima

353
por espantosa originalidade: um futuro médico, isto é, um futuro artista da medicina,
obtém por si mesmo o seu quo-ciente intelectual e narra naquele estilo em que a
ingenuidade e a astúcia se mesclam em partes iguais, dissimulando, sob o verde da
vegetação, a presença de alguns petardos, como se livrou de morrer carbonizado, graças
à intervenção tempestiva de um aprendiz de bombeiro.
Impossível resumir o conto delicioso sem lhe alterar a fina urdidura; não se deve
apagar o mínimo entalhe com que o burilou o autor, escritor realista do melhor quilate,
sobretudo quando romanceia as suas calmadas.
Tomamos apenas a liberdade de grifar os acidentes mais fortes e sugestivos da
descrição por meio da qual o homem de “sinceridade extrema” debuxou o seu próprio
perfil mental de metapsiquista suicida. Era uma vez

“um fogareiro comum, de metal amarelo, tendo a parte inferior bojuda, para depósito de álcool e que,
para cima, alongava-se como em pescoço, terminando-se em uma parte arredondada, mais larga. Esta
parte possuía múltiplos orifícios, por onde escapava o álcool, que se inflamava quando se lhe aproximava
um fósforo aceso. Fogareiro estúpido, malvado, perigoso! Em geral, era preciso sacudi-lo, agitá-lo
violentamente, pois, do contrário, o álcool não pegava fogo, deixando de aparecer nos orifícios pelos
quais devia escapar. Mas, o resultado final era fazerem as sacudidelas transbordar o líquido, que molhava
por fora todo o aparelho. Nessas condições, quando se lhe chegava o fósforo aceso operava-se um
verdadeiro incêndio, que envolvia o fogareiro, não raro pegando fogo no papel que cobria a mesa, com
ameaça de queimar tudo em derredor. É claro que a operação era feita de longe, a cara virada para o
lado, o braço destendido. Havia perigo de explosão, de ir tudo aquilo pelos ares, de pegar fogo no quarto,
de o proprietário do fogareiro sofrer queimaduras e ferimentos. Ele sabia muito bem disso, pois era o que
acontecia quase todos os dias como mostravam frequentes notícias de jornais. Dessa maneira, era natural
que o medo viesse fazer parte das primeiras tentativas culinárias do futuro nutricionista, que iniciava tão
desajeitadamente a sua aprendizagem nessa grande arte. Era naquele fogareiro que ele fazia o seu café,
que preparava chá, que estrelava ovos, que fritava o seu bife. E, assim, correndo perigo de vida, o coração
em sobressalto, foi vivendo dias, semanas, meses seguidos, sempre fiel àquele aparelho sinistro,
antipático tão necessário à sua subsistência, tão de acordo com as suas parcas possibilidades materiais.
Mas, um dia, surgiu o milagre, o inesperado, a libertação. No momento em que ia acender o fogareiro,
quando lhe aproximou o fósforo e ele se inflamou com grandes labaredas, entrou no quarto um moço que
habitava no subsolo e que era aprendiz de bombeiro. O rapaz ficou perplexo diante da cena e explicou-me
os perigos em que estava correndo, caso houvesse uma explosão súbita. Depois, humildemente, com uma
naturalidade muito espontânea,

354
perguntou-me por que não me servia da tomada de gás que estava na parede e que me permita uma
extensão por meio de um simples tubo de borracha, ao qual seria adaptado um bico de gás. Era simples e
genial! O problema podia ser resolvido definitivamente, até com economia para vítima de tantas lutas e
reveses. Nesse dia tive uma grande decepção comigo próprio, quanto à minha inteligência, à minha
perspicácia, à minha visão das coisas da vida. Estudava medicina, preparava-me para uma carreira de
responsabilidade, que exigia grande capacidade intelectual e agora ali, diante da realidade, em face de um
fato simples, reles, insignificante, cuja solução exigia, um mínimo de inteligência, passava semanas e
meses como o mais estúpido dos indivíduos, incapaz de perceber a situação, de fazer um raciocínio, de
encontrar um recurso para resolvê-la. É nessa emergência que surge inesperadamente um rapaz talvez
mais moço do que eu, modesto, ignorante, quiçá analfabeto e que em segundos dá-se conta da situação,
resolve o meu problema, liberta-me daquele sofrimento, daquela angústia que se repetia todos os dias,
diversas vezes por dia, atravessando semanas e meses seguidos. Sai vencido e humilhado: devia ser um
dos indivíduos mais estúpidos que habitava a Capital e que se encontrava atacado da grave presunção de
querer estudar medicina! Pensei seriamente em abandonar essa carreira e parece-me que o teste do
fogareiro, bem deveria justificar esàa resolução. Ainda não estávamos, porém, na época dos testes e a
coisa passou-se sem, outras conseqüências.”

Se quiséssemos, maldosamente, tomar o partido de Silva Mello contra si próprio,


exclamaríamos: que pena não estivéssemos na época dos testes! O fato Silva Mello,
porém, ninguém o pode negar: o homem provou que soube estudar medicina e tirar da
profissão o maior proveito pessoal. Negá-lo seria também “anti-científico” e
“arbitrário”.
O aprendiz de bombeiro, cremo-lo piamente, não conseguiria tanto. Como conciliar,
no entanto, o teste exemplar do “fogareiro de álcool” com o desmentido que Silva Mello
lhe deu brilhantemente, ao cabo de alguns anos? Na realidade, estava predestinado a ser
médico, e médico de prol.
Semelhantemente ao salmão, na premência da desova, nadou contra a corrente,
franqueou cataratas, procurou a nascente alta do rio, vencendo todos os óbices, para
alcançar o lugar apropriado e inacessível aos estudantes pobres, a então famosa
Universidade de Berlim, como que impulsionado pela força animal de um instinto
poderoso.
Depois de suas vitórias no artesanato médico, promoveu-se a filósofo, a reformador
social, a “orientador da mocidade” e a metapsiquista.
Por infelicidade, entre os amigos e os colegas, não lhe surgiu a tempo e
providencialmente o equivalente do “apren-

355
diz de bombeiro”, que o salvasse do desastre fatal. Meteu-se pelo terreno da
metapsíquica, com a mesma fúria com que sacudia e agitava “estupidamente”, o
fogareiro de álcool. Consumou-se a explosão...
Mas, a teoria dos testes não ficou desmoralizada. Luzuriaga já havia estabelecido que
“a verdadeira seleção é a que se fará na vida, depois da escola”.
A experiência, que parecia negativa, coroou-se do melhor êxito — o êxito final. Os
MISTÉRIOS nada mais são do que um fogareiro de álcool com 609 orifícios
ameaçadores.
Nivelando os mais colendos representantes da ciência experimental (Crookes e
Richet) e os médiuns mais íntegros (Laura Edmonds, William Stead, a mãe de Delaime,
Chico Xavier, Sra. Piper) aos farsantes e aos prestidigitadores de teatro ou de feira,
capazes de “ressuscitar um frango frito”, fez jus à ferula e às palmatoadas de altos
dignatários da Igreja (Cardeal Lepicier, etc), revoltados contra procedimento tão
arbitrário e anti-científico.
Acredita que o bom senso do leitor o acompanhe no julgamento da mediunidade sem
jaça da Sra. Piper, viva ainda, em Boston, com a idade de 91 anos. Mediunidade que se
lhe revelou a ela casualmente, indo a sua natural ignorância e inocência ao ponto de não
saber o que se passava realmente consigo e tudo atribuindo à telepatia.
Todos os observadores que se lhe aproximaram, em Boston e em Londres, e estes se
chamaram William James, Richard Hodgson, Sir Oliver Lodge, acabaram convencidos
da sobrevivência da alma, tais e tantas foram as provas acumuladas, sem que uma vez
sequer se levantasse qualquer suspeita de mistificação, durante quarenta anos de
atividade.
Condensado de “The American Mercury” (Murray Teigh Bloom), as Seleções de
Agosto de 1950 inserem um resumo da mediunidade que não forneceu somente “um
fato devidamente comprovado”, como o pediu Silva Mello nas páginas dos
MISTÉRIOS, porém centenas de manifestações supranormais, anímicas e espíritas, das
quais se tiraram todas as provas.
Quando um falso fantasma (se os há!), um pedaço de gaze pintado com tinta
fosforescente enganou o crédulo e desprevenido Conan Doyle e acabou, como sempre,
na Delegacia de Polícia, devemos anuir, em que Katie King, por exemplo, despistou
facilmente o incrédulo William Crookes e os

356
seus colaboradores, afora os aparelhos defensivos de que se premuniu?
Crookes, durante três anos, conversou, apalpou, auscultou, pesou, mediu a um
pedaço de gaze pintado com tinta fosforescente ou a uma linda moça que Florence Cook
lhe introduzia no lar, debaixo de suas saias? Admitir tamanha imbecilidade, à custa da
glória de Crookes só é possível por quem, apesar1 de ser médico, não lhe manuseou a
obra original nem conhece a fé de ofício do grande experimentador inglês.
Escolha Silva Mello entre os dois títulos o que mais lhe agrade — o de leviano ou o
de caluniador. Ou releia o seu conto do fogareiro de álcool, que lhe dará explicação de
muita coisa ocorrida nos MISTÉRIOS: ausência total de capacidade mínima de
observação, cegueira diante da evidência dos fatos, reincidência no erro durante muito
tempo, ambivalência entre a necessidade e o medo, acusações pueris desviadas do alvo
natural (Fogareiro estúpido, malvado, perigoso!), obnubilação completa do raciocínio
lógico, queimaduras generalizadas...

A Obra:

E a sua obra, o que será? O produto legítimo de tudo isso.


Gaba-se o autor da aceitação obtida pelos MISTÉRIOS, cuja primeira edição se
esgotou em poucos meses. Foram os espíritas, que lêem muito, que lêem tudo, tanto o
que lhes é favorável, como, sobretudo, o que lhes é adverso, que enriqueceram as suas
bibliotecas com a preciosidade.
Não se pode agastar contra os que, nas suas críticas, visaram também, em legítima
reciprocidade, o psiquismo doentio do homem, confessado por ele próprio: pois não
reclamou, para o bom êxito de tais estudos, um temperamento especial, que negou ao
“ingênuo” Richet e ao “apaixonado” Crookes?
Sim, o seu livro está cumprindo a sua missão. Cada um de nós é instrumento de
alguma coisa. Até Judas o foi. Por isso, a espiritualidade pura de S. Francisco de Assis
distribuía a tudo e a todos o doce nome de “irmão”...
Derrogando todos os fatos com o argumento de que não os viu (nem os quis ver),
fatos autenticados por experimentadores que apresentavam todas as credenciais,
inclusive a de partirem da negação e da incredulidade, pede mais fatos aos que o
contradisseram. Supondo-se obreiro de um formidável livro de ciência e alegando os
seus títulos univer-

357
sitários e acadêmicos, felicita-se, paradoxalmente, pelo aplauso do “grande público, sem
duvida, o mais significativo.”
Recusa competência a quem quer que o contrarie, mesmo que seja um médico, desde
que não se adorne com títulos ou publicações científicas, que poderiam ser semelhantes
às suas fanfreluches isto é, relativas às espiritualíssimas funções digestivas...
O argumentador que desfez, impiedosa e atrevidamente, no testemunho e na palavra
de grandes sábios (Crookes, Russel, Lodge, Richet, Lombroso, etc. etc), pavonea-se,
agora, com o “apoio de médicos universitários, cientistas e da maioria de intelectuais”,
que lhe hipotecaram solidariedade platônica e vazia de qualquer conteúdo experimental,
dispondo-os, estrategicamente, num “quadrado”, para sua defesa, pela simples e
ponderosa razão de lhe terem dado crédito gratuita e ingenuamente.
A contradição é brutalmente escandalosa para passar despercebida.
E não se queixe de irreverência quem tomou a seu cargo, para se purga?, desmentir
os experimentadores mais capazes, mais honestos e mais insuspeitos.
Recusou e ridicularizou Crookes — médico, físico, químico e astrônomo; recusou e
ridicularizou Richet — médico, fisiologista e psicólogo; recysou e ridicularizou
Lombroso -médico, psiquiatra e antropólogo. Agora corteja alguns espécimes da ciência
indígena, em luta contra a obseuridade e tão mendigos como ele do psiquismo
experimental.
Se o “argumento de autoridade” não vale nada, claro que valerá menos quando a
autoridade é de auto-investidura.
O Espiritismo firma o seu embasamento numa rocha viva que por si só vale todas as
autoridades — o fato. Mas poderá, se quiser opulentar-se com nomes gloriosos e
universais, nas letras e nas ciências (assim como Silva Mello se embeleca, hoje, com
berloques “acadêmicos e universitários” ou meda-lhinhas de “algumas autoridades
eclesiásticas”, (que não sabiam, certamente, do seu ateísmo e do seu freudismo),
lembrar, entre muitos, os de Goethe, Vitor Hugo, Lamartine, Teo-filo Gautier, Victorien
Sardou, George Sand, Eugênio Sue, Lincoln, Gladstone, Annie Besant, etc, afora sábios
de verdade — Wallace, Oliver Lodge, d’Arsonval, Delanne, Édison, Marconi,
Lombroso, Geley, Varley, Carl Du Prel, E. Bozzano e Richet... Se William Crookes não
é inteiramente nosso, deve-se-lhe, todavia, a comprovação da veracidade e das rea-

358
lidades dos fenômenos espíritas, que observou e registrou com a maior isenção que se
poderia exigir de um experimentador desse gênero, a isenção da incredulidade
inconquis-tável, que continuou incrédula.
Este é o tipo de testemunho que mais apreciamos; diante dêle só não meditará quem
se desacostumou, desde a penu-gem da puberdade, de usar a razão para resolver as suas
dúvidas filosóficas, aqui na terra.
Crookes, como vimos em outro passo deste livro, não pendeu para a hipótese
espírita. Filiou os fenômenos maravilhosos que presenciou às “vibrações do éter”,
hipótese realmente muito plausível, pois a ciência moderna nos ensina que tudo quanto
existe na terra e nos espaços infinitos teve a sua origem naquelas vibrações. Numa
sucessão contínua de causas e efeitos, através da evolução onipotente e onipresente —
atributos de Deus — continuaremos a nossa trajetória infinita até mergulharmos no
Oceano da Suprema Sabedoria e da Suprema Perfeição.
Em última análise, todos nós somos “vibrações do éter”. Antes “vibrações do éter”
do que aquilo a que Silva Mello e Freud nos quiseram reduzir.
Entre as forças estimuladoras e frenadoras da emoção--pensamento-ação da alma
humana (sexualidade ou princípio de prazer, de Freud; vontade de poder, de Adler;
imperativos da maldade, de Steckel) sobressai, para C. G. Jung, a necessidade espiritual
e a religiosidade congênita.
Se a sexualidade é, inegavelmente, um instinto poderoso, não o é menos o instinto de
conservação, não o é menos a vontade de poder, não o é menos a religiosidade
congênita.
A complexidade do psiquismo só se explica pela multiplicidade de estímulos que o
condicionam, em virtude da correlação obrigatória entre os efeitos e as causas. Somem-
se os teoristas e as teorias, e teremos, então, a explicação mais racional da nossa
natureza. A vida orgânica e a vida psíquica resultam do equilíbrio entre forças
contrárias: umas estimulam, outras inibem. Se a sexualidade, a vontade de poder e a
maldade não tivessem para refreá-las e regularizá-las uma força oposta, não menos
natural e imperativa — o senso moral — que nasce e se desenvolve com a razão, o livre
arbítrio e a religiosidade, traduzindo-se no temor ou no amor por uma Força
extraterrena, mas vigilante, todos os

359
homens adultos morreriam nas penitenciárias ou nos manicômios, se nos fosse possível
esboçar sequer uma sociedade. A biopsicologia está errada: é visão unilateral e
“irracional” dos problemas humanos.
“Somos diamantes brutos, revestidos pelo duro cascalho de nossas milenárias
imperfeições, localizados pela magnanimidade do Senhor na ouriversária da Terra”. Eis
a definição do homem, que se nos faz André Luis, o espírito em ascensão gloriosa para
os planos superiores.
A rotundidade anormal do livro de Silva Mello é simplesmente caso de pseudo-ciese
(falsa gravidez ou gravidez imaginária), resultante da ruminação de um desejo muito
intenso de dar à luz qualquer coisa de notável, ou, então, de uma ideoplastia que se
traduziu por linguagem visceral. O estranho caso clínico chegou mesmo a iludir
obstetras inexperientes (Menotti del Picchia, Leo Vaz, alguns “homens de alta cultura e
sacerdotes de elevada categoria”). Mas os Raios X, chamados a esclarecer o mistério,
desmascararam a parturiente histérica: não havia feto, nem macho, nem fêmea, nada de
substancial, tudo imaginação psicopática...
Perdoai-nos, Senhor, se na defesa de nossa causa, a causa geral da espiritualidade,
olvidamo-nos, alguma vez, de que o “nosso irmão” Silva Mello, apesar de tudo, é mero
instrumento de vossos desígnios, nm personagem secundário do romance cósmico que
fazeis falar e agir de acordo com as tendências do livre arbítrio, que Vós nos destes.
Pecamos a desculpa e a justificação à palavra do nume tutelar da nossa nacionalidade:

“Quando um braveja contra o bem, que não entende, ou que o contraria, é ódio
iroso ou ira odienta. Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é
agrestia rude, mas exaltação virtuosa, não é soberba que explode, mas indignação
que ilumina; não é raiva desaçaimada, mas correção fraterna.”
(RUI BARBOSA)

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Endereço do autor:

DR. SÉRGIO VALLE

Rua Monte Alegre, 291 — Tel. 51-9249

SÃO PAULO

361
LAKE

ESTE LIVRO FOI COMPOSTO E IMPRESSO


NAS OFICINAS DA EMPRESA GRÁFICA DA
“REVISTA DOS TRIBUNAIS” LTDA., A RUA
CONDE DE SARZEDAS, 38, SÃO PAULO, PARA
A EDITORA LAKE, SÃO PAULO.

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