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Desdemona: a narrativa

DESDÊMONA : A suspirar cantava a coitadinha à sombra do salgueiro.


Canto de dor coração lhe vinha: Oh salgueiro! salgueiro! Triste, ouvia-a o
regato todo o dia: Oh salgueiro! salgueiro! O pranto a pedra dura amolecia.
Deixa esse de lado. Oh salgueiro! salgueiro! Mais pressa, por favor; ele já
chega. De salgueiro farei minha coroa.
(SHAKESPEARE, W. Othello)

Não se assuste, rapaz. O que te irei contar é uma narrativa de amor e amizade que se
passa na Inglaterra do século XIII em um lugar não tão distante de onde estamos agora.
Esta história tem sido contada por gerações dentro do meu clã como um dos clássicos da
literatura Malkaviana e espero te entreter um pouco. O que está fazendo? Não adianta
chorar, homem. Tenha animo! Sei que você não está familiarizado com certos nomes
importantes dentro da nossa comunidade, mas a história que você vai ouvir poderá te
oferecer algum conforto. Você vai gostar da história, aposto que vai poder até se
identificar com as personagens principais! O que você está murmurando? Não. Não vou
te deixar ir embora. De agora em diante só existe trevas adiante de nós e mesmo se eu te
deixasse ir, você não iria gostar do que deixou para trás. “Deixai toda esperança ó vós
que entrais”, já dizia Dante ao descrever a entrada ao inferno e a ti reafirmo; deixai toda
esperança porque a ti só te resta sentar e ouvir a minha história. Anda logo, senta aí no
canto e pare de resistir. Acalme-se e ouça a história que vou te contar e talvez você
consiga parar de chorar um pouco.

Era noite quando Desdemona nasceu. Dentro de um feudo inglês, filha de um


importante soldado e uma simples, porém bela, camponesa, nasceu Desdemona em uma
noite gélida e escura. Brilhava naquela noite somente as luzes das estrelas e os sorrisos
dos novos pais. A garota nascera com saúde e já desde suas primeiras horas de vida já
encantava a todos que a conheciam. Seus familiares e seus servos não sabiam fazer
outra coisa além de admirar aquele bebê que tanto tinha sido esperado.

Graças a amizade de seu pai com o senhor feudal e a fidelidade e prontidão no serviço
prestado, Desdemona teve a oportunidade de levar uma vida confortável em termos
financeiros. Sempre dando seu melhor para sua família, seu pai se esforçava bastante no
seu trabalho a fim de ter condições de dar a sua primogênita tudo o que era necessário
para a educação de uma dama no século XIII e a sua esposa, uma vida descente. Sua
mãe, sempre orgulhosa de sua família e, particularmente, de seu marido por priorizar a
formação de sua filha, sempre o encheu de amor e afeto. E assim, eles formavam uma
bela família.

Sempre com seu pais preocupados com sua educação e bem-estar, Desdemona
aprendeu logo cedo, com as melhores governantas e tutoras disponíveis, a ser uma
verdadeira dama dentro da sociedade feudal. Seus talentos a tornaram uma criança
prodígio e seus cuidados com o jardim de sua casa a tornaram conhecida pela região
como uma criança valorosa e esforçada.

Aos seis anos de idade, Desdemona conheceu sua melhor amiga. Violet era filha de um
nobre cuja esposa havia falecido no parto. Sempre vivendo sozinha com seu pai, Violet
passava seus dias solitária por não ter a desejada companhia de sua mãe e precisava de
uma amiga, achando em Desdemona uma verdadeira companheira. Assim, por morar
muito perto de Desdemona, Violet conviveu com Desdemona por vários anos,
compartilhando hobbies, professoras, amigos, segredos e, inclusive, paixões infantis. A
vida parecia brilhar para as duas amigas que cresceram juntas, inseparáveis, e que
prometeram, aos dez anos de idade, sentadas em um banco do jardim nos fundos da casa
de Desdemona, que nunca iriam se separar.

O tempo se passou e a amizade das duas garotas só parecia aumentar. Juntas, as garotas
iam aos bailes da época, conheciam rapazes nobres e até uma viagem para Londres
fizeram juntas! A inocente amizade lhes parecia ser o laço mais forte que a sua condição
humana podia oferecer. E foi durante uma dessas idas as festas na corte que, aos quinze
anos, Desdemona conheceu o homem que iria mudar a sua vida, Cassio.

Cassio era um nobre local em procura de uma esposa e que parecia ter encontrado em
Desdemona uma mulher ideal. Ignorando o passado de camponês da família da mãe de
Desdemona, Cassio era cego pela beleza de jovem e faria o necessário para poder se
casar com a mulher cuja beleza, na sua opinião, se igualava a das mais belas rosas do
reino inglês. Parecia que o amor havia lhe batido na porta do peito e invadido os seus
pensamentos, afinal, Cassio nunca sentira o que Desdemona o fazia sentir antes.

Dessa forma, Desdemona foi pedida em matrimonio alguns meses após conhecer Cassio
e, apesar de insegura, recebeu tanta aprovação de Violet e de sua família que não podia
simplesmente negar a sua mão a um jovem tão admirado. Passou-se pouco tempo antes
que Desdemona ficasse cegamente apaixonada por Cassio, tanto que, por motivos de
primeiro amor, acabara esquecendo de sua melhor amiga que, diga-se de passagem, não
a visitava por alguns dias.

Alguns meses se passaram e ao planejar o seu casamento, Desdemona sentiu, pela


primeira vez, a ausência da presença de sua amiga. Foi então que Desdemona aprendeu
que, por motivos desconhecidos, Violet havia sido acometida por uma doença terrível
que a deixava sempre fraca e pálida, tão fraca que a impossibilitava de fazer-lhe visitas
frequentes como antigamente e tão pálida que a luz do sol lhe fazia mal. Triste com a
notícia, Desdemona procurou saber mais notícias da amiga, mas nada sabiam seus
conhecidos e empregados, e a ela lhe restava somente a notícia de que Violet não
poderia ir ao seu casamento pois a luz do dia lhe tornava extremamente indisposta.
Obviamente Desdemona a princípio considerou que talvez sua amiga estivesse com
inveja de sua felicidade ou talvez com raiva pelo fato de que ela, Desdemona, mesmo
tendo uma mãe camponesa e um pai soldado, tivesse encontrado um marido nobre e
forte, enquanto que Violet, mesmo com toda sua riqueza e beleza, ainda não havia
encontrado ninguém. Essa hipótese, porém, não durou muito na cabeça de Desdemona
que logo se mostrou preocupada com Violet. O seu maior problema agora era conseguir
reservar algum tempo para visitar a sua amiga neste momento tão delicado e tão
ocupado de sua vida.

Além disso, estranhas mudanças haviam tomado conta da mente da jovem.


Misteriosamente, Desdemona havia começado a desenvolver estranhas vontades pelo
seu futuro marido e não conseguia se aguentar de curiosidade para, de fato, conhecer
Cassio em sua plenitude. Esse sentimento, tão novo e tão caro a Desdemona a fazia se
sentir como se seu casamento deveria ser realizado o mais rápido possível, tamanha a
sua força nas entranhas da garota.

Apesar de não se entregar aos seus novos desejos e se restringir aos códigos morais da
sociedade inglesa, frequentemente Desdemona e Cassio se encontravam na calada da
noite e se perdiam em meio aos mais audaciosos beijos calorosos. O pudor por ser uma
dama e a sua obrigação de se manter intacta para a noite de núpcias a preocupavam
sempre, mas, ao passo que os beijos de Cassio a enchiam de vida, os seus abraços com
frequência lhe acendiam o fogo da carne. Assim, Desdemona começava a explorar a
paixão pelo proibido, pela voluptuosidade dos apertos másculos de seu pretendente e
pela curiosidade que lhe consumia o espírito. A cada beijo, Desdemona ficava mais
pronta para conhecer o homem que seria seu e um passo mais distante de sua
preocupação com Violet, caminhando rumo ao esquecimento de sua melhor amiga.

As noites de toques ardentes e beijos molhados


continuaram por muitas semanas até que, em um
desses secretos encontros, Cassio e Desdemona
decidiram finalmente consumar o ato final de
sua paixão. O casamento, Cassio havia dito, era
apenas um passo fútil, uma data marcada, e o seu
amor não poderia esperar para ser realizado.
Com o sangue fervendo com vontades,
Desdemona decidiu se entregar a Cassio. Juntos,
foram ao jardim dos fundos de sua casa,
justamente para um dos lugares onde Violet e ela
costumavam trocar segredos quando mais novas.
Em meio aos beijos de Cassio, Desdemona sentiu o seu espartilho laceando enquanto
que seu vestido levemente descia-lhe o busto, expondo ao ar livre os seus seios
recentemente crescidos. Aos sussurros e promessas de amor, Desdemona viu Cassio
abaixando as suas calças e prestes a iniciar o tão esperado ato que, na sua concepção,
seria o melhor momento de sua vida, quando sua visão ficou turva e seu corpo
desfaleceu. A partir disso não se lembrava mais do que havia acontecido. Seria esse o
sentimento que todos chamavam de amor? Um momento que o coração acelera, não
aguenta e desmaia?

Aos poucos a visão foi lhe voltando e lentamente percebeu a sua cabeça encharcada de
sangue. O cheiro de sangue lhe subiu as narinas. Ao seu lado, Cassio estava atirado,
rasgado, com cortes na região da barriga, coberto de sangue e lutando para sobreviver.
Triste e movida pela fome, Desdemona não sabia o que fazer. Chorava? Sim, chorava
como se fosse ela mesma quem estivesse morrendo. Era seu choro de amor? Sim, mas
as lágrimas também caiam por perceber que o corpo de Cassio lhe causava fome.
Movida pelo instinto, a garota atirou-se àquele pescoço, lhe bebendo a vida restante,
enquanto o pobre rapaz lhe suplicava por perdão e piedade.

Ao termino de uma hora, Desdemona ainda estava virgem, mas satisfeita. A fome lhe
havia passado e a única coisa que ficara no ar, além do cheiro de sangue, fora aquela
risada tão conhecida de outrora. Violet havia visto tudo, e, rindo, contou a Desdemona
que viera cumprir a promessa que haviam feito naquele mesmo lugar há dez anos atrás.
Foi então que Desdemona colocou os dedos sobre o seu pescoço e, vendo os furos por
onde lhe caiam gotas de sangue sobre o peito, percebeu que havia sido abraçada dentro
de uma nova espécie. Desdemona agora era vampira. Eternamente vampira.
Eternamente ligada a Violet, mas carregando o peso de nunca poder conhecer o prazer
que seu corpo humano poderia ter lhe proporcionado com o homem que ela havia
escolhido amar.

Amaldiçoada, Desdemona foi obrigada a explicar


como contraiu a mesma doença de Violet e a fingir
estar surpresa quando soube que Cassio aparecera
com o corpo estraçalhado por lobos em uma floresta
próxima. Amaldiçoada era como Desdemona se
sentia por ter que, semanas mais tarde, se casar com
o pai de Violet que, controlado pela própria filha, se
apaixonou por Desdemona, mesmo sabendo de sua
condição demoníaca. Além do mais, Desdemona era
ainda mais amaldiçoada por nunca conhecer o prazer
que procurava em Cassio e que, agora, a consumia
por dentro em forma de obsessão.
A loucura agora a agoniava por dentro todos os dias e a vontade de se entregar a Cassio
se tornava cada vez mais forte. Só que, agora Cassio já não estava mais vivo e nem
podia mais Desdemona sentir prazer algum senão àquele que ela se entregava ao se
alimentar de sangue. Desdemona agora vivia amaldiçoada por não poder ver a luz do
dia, por não conseguir mais amar nem se sentir amada quando tocada por um homem,
maldição esta que a levaria aos extremos na procura deste prazer que lhe foi negado.

Apesar disso tudo, Desdemona estaria agora sempre com Violet. Mesmo estando
amaldiçoada por ser um vampiro, Desdemona sempre teria sua amiga. Mas teria
mesmo? O que é certo é que ela seria eternamente um vampiro. Assim como você.

Desdemona’s Death Song


(Dante Gabriel Rossetti, 18280 1882)

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