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Nem o centro, nem a periferia

Subcomandante Marcos

Participações de Immanuel Wallerstein, Carlos Antonio Aguirre Rojas e do


Subcomandante Insurgente Marcos na conferência coletiva do dia 13 de
dezembro às 9:00 da manhã, correspondente ao “Primeiro Colóquio
Internacional In Memórian Andrés Aubry”.

1. Acima, pensar o branco – a geografia e o calendário da teoria


“O problema com a realidade,
é que não entende nada de teoria”
(Dom Durito da Lacandona)

Elias Contreras, Comissão de Investigação do EZLN, dizia que a luta, a nossa luta pelo
menos, podia ser explicada como uma luta de geografias e calendários. Ignoro se este
companheiro, mais um dos mortos que por si só1, imaginou que suas teorias (“seus
pensamentos”, dizia ele) seriam representadas ao lado de tantos renomados intelectuais
como os que agora confluem ao sudeste estado mexicano de Chiapas. Tampouco sei se
foi autorizado que eu, um subcomandante qualquer, tomasse alguns desses
pensamentos e os expusesse publicamente.
Porém, tendo consciência da evidência de nosso baixo “rating”[1] midiático e teórico,
creio que posso permitir-me expor as bases rudimentares desta teoria, tão diferente que
é prática.
Não vou aborrecê-los contando-lhes a complicação sentimental de Elias Contreras que,
como tod@s zapatistas, escolheu amar com desafio. Como se a ponte afetiva que se
estende até o outr@, já não fosse por si só completo e complicado, Elias Contreras,
contudo, somou às distâncias e muros que separam os calendários e as geografias, além
do conhecimento, quer dizer, a respeito da existência do outro. Como se dessa forma ele
(e com ele, o coletivo que somos) decidisse fazer todo o possível para que um ato tão
antigo, comum e cotidiano como a existência do ser humano, se converta em algo
extraordinário, terrível, maravilhoso.
Em vez de contar-lhes sobre a complicada e inquebrável ponte de amor de Elias Contreras
por Magdalena (que não era nem homem e nem mulher, o que já é por si um desafio na
luta de gênero), pensei então em trazer-lhes algo da música que toca nas comunidades
zapatistas. Por exemplo, só ontem à noite escutei uma música que o “mestre de
cerimônia” classificou como ritmo “corrido-cumbia-ranchera-norteña”. Que tal? Ritimo
corrido-cumbia-ranchera-norteña.... se isso não é um desafio teórico, então não sei o que
é. E não me perguntem como se toca ou se dança isso, porque eu não toco nem uma

1
O "rating" no mercado financeiro é uma opinião sobre a capacidade de um país ou uma empresa saldar
seus compromissos financeiros. A avaliação é feita por empresas especializadas, as agências de
classificação de risco, que emitem notas.
porta e, além disso, com a minha idade avançada, no baile tenho a graça de um elefante
com unha encravada.
Faz mais de dois anos, nestas montanhas do sudeste mexicano, em ocasião das reuniões
preparatórias do que depois se chamaria “A Outra Campanha”, uma mulher jovem disse,
palavras mais, palavras menos, “se tua revolução não sabe dançar, não me convide à tua
revolução”. Tempos depois, mas então nas montanhas do noroeste do México, voltei a
escutas essas mesmas palavras da boca de um chefe indígena que se esforça por manter
vivos os bailes e toda a cultura de nossos ancestrais.
Ao escutar ela e ao outro, em tempos distintos, eu voltei a olhar a uma das comandantas
e lhe disse: A Comandanta não deixou de olhar fazendo , mas em voz baixa disse: “Urr
Sup... Puta madre, veja que me dão pistas e lhes deixo o chão liso”.
Eu não lhes estarei mentirando. A verdade é que pensei que poderia trazer-lhes algumas
histórias de Sombra o guerreiro, de Elias Contreras e a Magdalena, das mulheres
zapatistas, das meninas e meninos que crescem em uma realidade diferente (olhe, não
melhor, não pior, apenas diferente) à de seus pais, marcada por outra resistência, e até
lhes contaria um conto da menina chamada “Dezembro” que, como seu nome indica,
nasceu em Novembro. E pensei também por algumas musicas (sem irritar às presentes),
mas é de todos conhecida a seriedade com a que os zapatistas abordam os temas
teóricos, assim que só direi que vou encontrar alguma forma de ligar a teoria com o amor,
a música e a dança. Talvez, conforme a teoria, não conseguiria explicar nada que valesse
a pena, mas seria mais humano, porque a seriedade e o endurecimento não garantem o
rigor científico.
Porém, bem, já estou indo de novo por outro lado. Dizia-lhes que Elias Contreras,
Comissão de Investigação do EZLN, ele dizia que nossa luta podia ser entendida e
explicada como uma luta de geografias e calendários. Em nossa participação como
“teloneros”2 dos pensamentos que nestes dias se congregam neste lugar e nestas datas,
serão a geografia e o calendário... ou melhor, uma grande trança que entre ambos se
amarra, um dos referenciais da nossa palavra.
Dizem nossos mais velhos que os primeiros deuses, os que fizeram o mundo, foram sete;
que sete são as cores: o branco, o amarelo, o vermelho, o verde, o azul, o café e o preto;
que são sete os pontos cardeais: acima, abaixo, adiante e atrás, um lado e o outro lado,
e o centro; que sete são também os sentidos: olhar, degustar, tocar, ver, ouvir, pensar e
sentir.

Sete serão então os fios desta grande trança, sempre incompleta, do pensamento
zapatista.

Falemos, pois, da Geografia e o Calendário da Teoria. Para isto pensemos na cor branca
lá em acima.
<><><>
Não temos a informação exata, mas no complexo calendário do pensamento teórico de
cima, de suas ciências, técnicas e ferramentas, assim como de suas análises das

2
Bandas menores que abrem os shows. (N.T.)
realidades, houve um momento em que as pautas se definiam de um centro geográfico,
e daí se estendiam até a periferia, como uma pedra arremessada no centro de um tanque
cheio de água.
A pedra conceitual tocava a superfície da teoria e produzia uma série de ondas que
afetavam e modificavam as distintas ocupações científicas e técnicas adjacentes. A
consistência do pensamento analítico e reflexivo fazia, e faz, com que essas ondas se
mantenham definidas... até que uma nova pedra conceitual caia e uma nova série de
ondas mude a produção teórica. A mesma densidade da produção teórica talvez poderia
explicar o por que as ondas, na maioria das vezes, não conseguem chegar à borda, quer
dizer, à realidade.
“Paradigmas científicos” é assim que alguns chamam estes conceitos capazes de
modificar, renovar e revolucionar o pensamento teórico.
Nesta concepção da ocupação teórica, nesta meta-teoria, se insiste não só na irrelevância
da realidade, mas também, e, sobretudo, se alardeia que se tem prescindido
completamente dela, num esforço de isolamento e higiene que, dizem, merece ser
aplaudido.
A imagem do laboratório asséptico não só se limitou às chamadas “ciências naturais” ou
as “ciências exatas”, não. Nos últimos saltos do sistema mundial capitalista, esta obsessão
pela higiene anti-realidade alcançou às chamadas “ciências sociais”. Na comunidade
científica mundial começou então a ganhar força a tese de “si a realidade não se
comporta como indica a teoria, pior para a realidade”.
Mas voltemos ao tranqüilo tanque cheio de água da produção teórica e à pedra que tem
alterado sua forma e conteúdo.
O reconhecimento desta aparente fragilidade do arcabouço conceitual científico
significou aceitar que a produção teórica se renovava continuamente, inclusive dentro de
seu pretenso isolamento da realidade. O laboratório (termo agora muito usado pelos
chamados cientistas sociais para se referir às lutas dentro das sociedades) não poderia
nunca reunir as condições ideais, por mais asséptico e esterilizado que esteja, para
garantir a perpetuação que toda lei científica reclama. Daí que em sua própria ocupação,
invade, uma ou outra vez, novos conceitos.
Nestas concepções, a idéia (o conceito, neste caso) precede à matéria e se atribui assim
à ciência e à tecnologia a responsabilidade das grandes transformações da humanidade.
E a idéia tem, segundo o caso, um produtor ou um enunciante: o indivíduo, o cientista
neste caso.
Desde a ociosa reflexão de Descartes, a teoria de cima insiste na primazia da idéia sobre
a matéria. O “penso, logo existo” definia também um centro, o eu individual, e o outro
como uma periferia que se via afetada ou não pela percepção desse eu: afeto, ódio,
medo, simpatia, atração, repulsa. O que estava fora do alcance da percepção do eu era,
e é, inexistente.
Assim, o nascimento deste crime mundial chamado capitalismo é produto da máquina de
vapor e não do despojo. E a etapa capitalista de globalização neoliberal começa com o
surgimento da informática, da internet, do telefone celular, do mall, da sopa instantânea,
do fast food; e não com o início de uma nova guerra de conquista em todo o planeta, a
IV Guerra Mundial3.
No campo da tecnologia se repete o mesmo padrão. E se agrega que, como o conceito
científico, a técnica nasce “inocente”, “livre de toda culpa”, “inspirada no bem da
humanidade”. Einstein não é responsável pela bomba atômica, nem o senhor Graham
Bell o é pelas fraudes via celular do homem mais rico do mundo, Carlos Slim. O coronel
Sanders não é responsável pelas indigestões provocadas pelo Kentucky Fried Chiken, nem
o senhor MacDonald pelos hambúrgueres de plástico reciclado.
Isto, que alguns desenvolveram e definiram como “objetividade científica”, criou a
imagem do cientista que permeia ainda o imaginário popular: um homem, ou uma
mulher, despenteado(a), com óculos, guarda-pó branco, com desalinho corporal e
espacial, concentrados frente às provetas e matrazes4 borbulhantes.
O autodenominado “cientista social” “comprou” esta mesma imagem, com algumas
mudanças: no lugar de laboratório, um cubículo; no lugar de matrazes e provetas, livros
e cadernos; no lugar de um guarda-pó branco, uma bata de cor escura; o mesmo
desalinho; mas somado ao tabaco, café, brandy ou conhaque (também na ciência existe
níveis, meu bem) e música de fundo, impensáveis num laboratório.
Contudo, uns e outros, concentrados como estavam em sua objetividade e assepsia, não
advertiram a aparição e crescimento dos “comissários da ciência”, quer dizer, dos
filósofos. Estes “juizes” do conhecimento, tão objetivos e neutros como seus vigiados,
expropriaram o critério de cientificidade. Como a realidade não era o referencial para
determinar a verdade ou a falsidade de uma teoria, então a filosofia passou a cumprir
esse papel. Apareceu assim a “filosofia da ciência”, quer dizer, a teoria da teoria, a meta-
teoria.
Mas a chamada “ciência social”, a filha bastarda do conhecimento, encontrou os filósofos
com sobrecarga de trabalho ou com exigências difíceis de cumprir (do tipo “Se A é igual
a B e B é igual a C, então A é igual a C”), assim, cada vez mais, os intelectuais da academia
padecem como censores e comissários.
...
Mmm... creio que já demonstrei que posso ser tão obscuro e incompreensível como
qualquer teórico que se respeite, mas estou seguro de que há uma forma mais simples
de seguir com isto.
Assim aqui vou eu, no mais façam um ladinho, que .
Em resumo, a conseqüência deste calendário e desta geografia é que lá acima a produção
teórica não é mais que uma moda que se pensa, vê, cheira, gosta, toca, escuta e sente
nos espaços da academia, nos laboratórios e institutos especializados.

3
Ou a guerra que o neo-liberalismo lançou a todo o mundo nesta etapa do capitalismo. Após a III Guerra
Mundial, a Guerra Fria, o neo-liberalismo ataca seletivamente, escolhendo quais seres devem ou não
viver, é uma guerra de conquista de todos os espaços do planeta pelo mercado mundial. Ver texto A
Quarta Guerra Mundial já começou em FELICE, Massimo di e MUÑOZ, Cristobal (org). A Revolução
Invencível.** Subcomandante Marcos e Exército Zapatista de Libertação Nacional. Cartas e
Comunicados. São Paulo: Boitempo, 1998.
4
Recipiente usado em laboratórios com boca estreita e corpo largo.
Ou seja, a teoria é uma moda que tem nas teses (de pós-graduação, meu bem, também
na academia há níveis), as conferências, as revistas especializadas e os livros, os
substitutos das revistas de moda. Os colóquios suprem o lugar das exibições de moda, e
aí os palestrantes do colóquio fazem o mesmo que as modelos na passarela, quer dizer,
exibem sua anorexia, neste caso, sua magreza intelectual.
Pegue cada momento do surgimento de um desses paradigmas e encontrará um centro
intelectual que disputa a descoberta. As universidades européias e os institutos
tecnológicos da América do Norte repetem a listagem da moda: Paris, Roma, Londres,
Nova York (lamento se rompo alguma ilusão, mas não aparecem o Tec de Monterry5, nem
a Ibero6, nem a UDLA7).
Com isto quero dizer que o mundo científico construiu uma torre de cristal (mas
chumbada) com suas próprias leis e adornada com vitrais churriguerescos que elaboram
os intelectuais ad hoc.
Para esse mundo, essa torre e suas pent-houses, não se poderá acessar a realidade até
que credite estudos de pós-graduação e um currículum, prestem atenção, tão gordos
quanto à carteira.
Assim se apresenta à maioria das pessoas, e assim se auto-representa à comunidade
científica. Mas uma observação atenta e crítica, uma dessas tão escassas agora, permitiria
ver o que acontece na realidade.
Se o novo paradigma é o mercado e a imagem idílica da modernidade é o ______ ou o
centro comercial, imaginemos, então, uma sucessão de estantes cheias de idéias, ou
melhor, ainda, uma loja de departamento com teorias para cada ocasião. Não será difícil
então imaginar o grande capitalista ou o governante da vez recorrendo ao corredor,
pesquisando preços e qualidades dos distintos pensamentos, e adquirindo aqueles que
se adaptam melhor a suas necessidades.
Lá acima, toda teoria que se respeite deve cumprir uma dupla função: por um lado
desprezar a responsabilidade de um fato com uma argumentação, que não é por ser
elaborada que é menos ridícula; e, pelo outro, ocultar a realidade (quer dizer, garantir a
impunidade).
Na explicação da desgraça aparecem exemplos:
O senhor Calderón8 (que alguns desorientados consideram o presidente do México),
disfarçado de militar, encontra na teoria lunática a explicação das catástrofes que
assolaram Tabasco e Chiapas (como antes assolaram Sonora e Sinaloa) e ordena a suas
tropas que lhe proporcionem uma capacidade de convencimento impossível de construir
sobre este castelo de cartas adulteradas que foi a eleição presidencial de 2006. Seu
fracasso, tão pouco informado nos meios de comunicação, era previsível: consegue mais

5
Empresário mexicano de telecomunicações, eleito em 2007 o homem mais rico do mundo. O espanto é
que desta vez o homem cifras é um cidadão de um país subdesenvolvido, de um país do terceiro mundo.
(N.T.)
6
Universidade Iberoamericana, cidade do México. (N.T.)
7
Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey (ITSM), multi-campus, México. Este é um
centro educacional tecnológico que oferecem cursos de tecnologia (como os CEFET’s no Brasil). (N.T.)
8
Referência a disputa entre Calderón (PAN) e Lópes Obrador do Partido da Revolução Democrática
(PRD) em 2006 que concedeu uma vitória muito apertada ao primeiro. Obrador contestou a vitória e
acusou o PAN de fraudar as eleições. (N.T.)
no Teleton9 que no Estado Maior presidencial. Deslocando a responsabilidade para a lua
(que, diga-se de passagem, é rancorosa, como conta a lenda da origem da Sombra, o
guerreiro – mas isto ficará, se é que vai ficar, para outro dia), Calderón oculta sua
responsabilidade e a daqueles que o antecederam. Resultado: se cria uma comissão para
investigar... astronomia, e dar-lhe, alem da pobreza das armas, alguma base legítima para
este culto a Huerta segundo confissão própria, dos jogos cibernéticos militares.
Seguramente, se a lua se nega a aceitar sua culpabilidade, o titular do IV Reich lhe dirá,
com olhar duro e decidido: ¡bájate o mando por ti!”.
O senhor Héctor Aguilar Camín10, o protótipo do intelectual não de cima (é o que ele mais
quer), e sim acimista, reescreve o “Livro Branco” com o qual a PGR zedilista quis explicar,
sem êxito algum, a matança de Acteal11 (que neste 22 de dezembro completa 10 anos
sem verdade nem justiça). Fiel ao patrão atual, Aguilar Camín busca, inutilmente, desviar
a indignação que novamente se levanta, ocultando um crime de Estado e deslocando a
responsabilidade aos assassinados... aos mortos.
Felipe Calderón e Héctor Aguilar Camín, um vestido comicamente de militar e outro
pateticamente disfarçado de intelectual. O primeiro maldizendo a quem o recomendou
comprar a teoria da lua, e o segundo recorrendo aos escritórios governamentais e
quartéis militares colocando a venda seu inútil detergente para limpar manchas de
sangue.
É esta, a teoria branca e imaculada de cima, a que domina no decadente mundo
científico. Frente a cada um de seus estalos teóricos, também chamados pomposamente
de “revoluções científicas”, o pensamento progressista em geral se vê obrigado a remar
contra a corrente. Com o par de remos da crítica e da honestidade, os pensadores (ou
teóricos, ainda que seja comum usar este termo como depreciativo) de esquerda devem
questionar a avalanche de evidências que, com a fantasia da cientificidade, sepultam a
realidade.
O referencial desta tarefa crítica é a ciência social. Mas se esta se limita a expressar
desejos, juízos, condenações e receitas (como agora fazem alguns teóricos de esquerda
no México), invés de tratar de entender para tratar de explicar, sua produção teórica não
é só incapaz, mas na maioria das vezes, patética.
É, então, quando a distância entre teoria e realidade não só se converte num abismo,
mas também se apresenta no triste espetáculo de autodenominados científicos sociais
jogando-se com singular alegria ao vazio conceitual.
Talvez algum@, dos que nos escutam ou lêem, conheçam esses comerciais que anunciam
produtos para emagrecer sem fazer exercícios e se entupindo de garnachas12 e comida
rica em “hidrocarbonetos”. Sei que é pouco provável que alguém daqui conheça isto, pois
estou seguro que se encontram imersos em questões realmente importantes da teoria,

9
Referência a disputa entre Calderón (PAN) e Lópes Obrador do Partido da Revolução Democrática
(PRD) em 2006 que concedeu uma vitória muito apertada ao primeiro. Obrador contestou a vitória e
acusou o PAN de fraudar as eleições. (N.T.)
10
Jornalista, escritor, empresário e historiador mexicano, graduado na Universidad Iberoamericana, com
doutorado em história no Colégio de México
11
Chacina de 45 indígenas tzotziles provocada por paramilitares (supostamente os Máscara Roja) em 22
de dezembro de 1997 na localidade de Acteal em Chiapas.
12
Provavelmente uma variedade de uva bem doce.
assim permitam-me dar-lhes um exemplo: há um anuncio de uma bolacha de comer, e
elas podem lhes dar o corpo de Angelina Jolie (suspiro), ou podem chegar a ter o corpo
atlético do Sup-Marcos (arrrrrroz com leite!)... um momento! Eu escrevi isto que acabo
de dizer? Mmh... não, não creio, minha modéstia é lendária, assim apaguem esta parte
de seus apontamentos. Onde estava? Ah sim, na bolacha que vos dará um corpo
espetacular e isso sem fazer mais exercícios que o de levar o produto à boca e mastigá-
lo.
Da mesma forma, nos últimos anos ganhou forças, no meio intelectual progressista do
México, a idéia na qual se pode transformar as relações sociais sem lutar e sem mexer
nos privilégios de que desfrutam os poderosos. Só é necessário assinar a cédula eleitoral
e zaz!, o país se transforma, proliferam-se as pistas de patinação no gelo e as praias
artificiais, as corridas de automóveis em Reforma, as periferias com segundo piso incluído
e as construções do bicentenário (você tem notado que não se fala do centenário?). Veja,
nem sequer é necessário vigiar a eleição para que não se converta em uma fraude e em
um filme que a documente.
A submissão com que isto foi adquirido, digerido e difundido por boa parte da
intelectualidade progressista do México não deveria estranhar, sobretudo, se levado em
conta que o outro, o pensar, o analisar, o debater e o criticar, custa mais, quer dizer, é
mais caro.
O que surpreende é a virulência e ruindade com que atacaram, e atacam, a quem não
engole essa bolacha dietética, perdão, essa roda de moinho.
Dou-lhes outro exemplo:
Na Cidade do México tem-se realizado um despojo impecável e obtido apoio e/ou o
silencio cúmplice dessa intelectualidade. Um governo de “esquerda moderna” conseguiu
o que a direita não podia: despojar a cidade e ao país do Zócalo.
Sem necessidade de leis reguladoras de caminhadas e comícios, sem necessidade das
assinaturas que os panistas13 tiveram que falsificar, o governo de Marcelo Ebrad toma o
Zócalo, o entrega a empresas comerciais (por aí lemos que era de se louvar que não
houvera custado nada ao governo do Distrito Federal e que tudo tinha sido custeado por
empresas privadas que, por certo, incluem uma das emissoras de TV “vetadas” pelo
lopezobradorismo), constrói uma pista de patinação no gelo e zaz!, durante dois meses,
nada de comícios ou manifestações nesta praça que o movimento estudantil de 1968
arrancou às celebrações oficiais.
Sem mais CND-lópezobradorista14, Sem mais invasões de multidões à catedral, nada de
gritos que não sejam aqueles dos que caem, nada de comícios nem marchas, sem mais
gritos, faixas, indignação.
Para os 10 meses restantes do ano, o “esquedoso” Ebrard já pensou novos projetos que
façam os capitalistas sentir que estão em alguma outra metrópole muito “chic”.

13
Partidários do PAN.
14
Convención Nacional Democrática. Organização política inicialmente convocada pelo EZLN e
sociedade civil e posteriormente tomada pelas forças da esquerda institucional, momento em que os
zapatistas se retiram. Posteriormente a CND fica nas mãos do Partido da Revolução Democrática (PRD)
de Lopez Obrador.
Faz apenas alguns dias, o chamado Frente Nacional Contra a Repressão descobriu que a
caminhada que havia convocado para o Zócalo não poderia se realizar lá porque a pista
de patinação estava ocupada.
Não protestaram contra este despojo, simplesmente trocaram de lugar. Depois de tudo,
não havia por que interferir do espírito novayorkino que agora se respira no Distrito
Federal... nem nas vendas de patins de gelo nos grandes centros comerciais.
Não só não se impediu o despojo, não só não se criticou, além disto se aplaudiu e
celebrou com fotos coloridas na primeira página, crônicas e entrevistas, este evento
“histórico” que poupou os defeños[27]''' das longas filas para obter o visto
norteamericano e o custo do transporte e da hospedagem em Nova York dos filmes que
vêem Marcelo Ebrard e sua aspirante à Cristina Kirchner autóctona.
Se isto recorda o método de “pão e circo” tão caro aos governos priístas, é esquece que
continua faltando o alimento, pois o único PAN que existe é o partido que agora se
aproveita da queda de Calderón Hinojosa, com quem toda classe política se relaciona em
privado e se desentende em público.
Tudo isso se passa e se celebra porque o senhor Ebrard não saiu publicamente em foto
com Felipe Calderón e porque disse que é de esquerda... ainda que governe como a
direita, com desocupação e roubos disfarçados de espetáculo e ordem.
E estes intelectuais de esquerda?
Bom, aplausos para a desocupação dos bairros (com acusação de narcotráfico que nunca
foram provadas), mais aplausos para a desocupação do comércio ambulante no centro
histórico (para acabar de entregá-lo à iniciativa privada), mais aplausos às garotas
propaganda nas corridas de automóveis na avenida Reforma...
|O que mudou, meu bem, das barracas “Que de por si somos” de plantão contra a fraude,
ao glamour da velocidade num esporte tão de massa, tão popular e tão sem patrocínio
como é o das corridas de automóveis; do “grito dos livres” contra o espúrioà aspiração
de ser subsede da olimpíada de inverno; não, meu bem, não importa se isso não é de
esquerda, mas que'''
Ahí le hablan jovena!; olhe, estes patins eu os tenho em várias combinações: tricolores
para os nostálgicos, azuis para os benzidos, e amarelo com negro para os ingênuos; há
também com as cores para a criançada, digo, do perdido que aparece, não crê? Agora
que a patinação sobre gelo é para gente esbelta, de modo que incluo estas bolachas que
lhes deixam mais magro que um apertão no metrô em hora de pico. O que? Você é
''skater@? Não lhe disse? Por isto este país não progride, onde quer abundar essa gente
suja, feia, mal e, para acabar de amolar, carente. Ora, ao menos o dê o seguro
desemprego e eu não o digo nada...|'''
Frente à desocupação de famílias no bairro valente de Tepito, o silêncio ou a justificativa
frívola e servil: “está se combatendo a delinquência”, assinalou um intelectual e aspirante
fracassado à reitoria da UNAM, e uma foto em primeira página mostrava uma menina
sentada sobre os poucos móveis que sua família resgatou de uma das desocupações. A
filosofia de Rudolph Giulianni, importada de Nova York (como a pista de patinação) por
López Obrador com a justificativa de “primeiro os pobres”, agora produz uma
argumentação intelectual: essa menina era uma narcotraficante em potencial... agora é...
nada.
Já não se quer ocultar que a chamada esquerda institucional não é de esquerda, agora se
apresenta como uma virtude, da mesma forma que se anuncia um café descafeinado com
a virtude de que não. É esta esquerda a qual alguns intelectuais progressistas (seja como
for aí os homens são maioria) apresentam como o único referencial aceitável, maduro,
responsável e possível para a transformação social.
Contudo, e felizmente, nem todo o pensamento progressista é “bem comportado”.
Alguns homens e mulheres têm feito do pensamento analítico e reflexivo, palavra
incômoda e a contrapelo. Nestes dias poderemos escutar alguns dessas pensador@s.
Não estão todos os que o são, nem são todos os que estão, mas o saber de seu navegar
rio acima no leito do conhecimento é um alívio para aqueles que às vezes imaginam que
não estamos sós.
Por isto saúdo nesta primeira rodada a Immanuel Wallerstein e Carlos Aguirre Rojas.
Refletindo sobre algo do trabalho teórico deles, apresentamos...
ALGUMAS TESES SOBRE A LUTA ANTI-SISTÊMICA.
UM – Não se pode entender e explicar o sistema capitalista sem o conceito de guerra.
Sua sobrevivência e seu crescimento dependem primordialmente da guerra e de tudo o
que ela se associa e implica. Por meio dela e nela, o capitalismo despoja, explora, reprime
e discrimina. Na etapa de globalização neoliberal, o capitalismo faz guerra à humanidade
inteira.
DOIS – Para aumentar seu lucro, os capitalistas não só recorrem à redução dos custos de
produção ou ao aumento de preços de venda das mercadorias. Isto é correto, porém
incompleto. Há pelo menos mais três outras formas: uma é o aumento da produtividade;
outra é a produção de novas mercadorias; uma outra é a abertura de novos mercados.
TRÊS – A produção de novas mercadorias e a abertura de novos mercados é conseguida
agora com a conquista e reconquista de territórios e espaços sociais que antes não
tinham interesses para o capital. Conhecimentos ancestrais e códigos genéticos, além de
recursos naturais como a água, os bosques e o ar são agora mercadorias com mercados
abertos ou por abrir. Quem se encontra nos espaços e territórios com estas e outras
mercadorias, são, querendo ou não, inimigos do capital.
QUATRO – O capitalismo não tem como destino inevitável sua autodestruição, a menos
que inclua o mundo inteiro. As versões apocalípticas sobre o colapso do sistema por si
mesmo são erradas. Como indígenas, levamos vários séculos escutando profecias neste
sentido.
CINCO – A destruição do sistema capitalista só se realizará se um ou muitos movimentos
o enfrentem e o derrotem em seu núcleo central, quer dizer, na propriedade privada dos
meios de produção e de troca.
SEIS – As transformações reais de uma sociedade, quer dizer, das relações sócias em um
momento histórico, como bem assinala Wallerstein em alguns de seus textos, são as que
vão dirigidas ao sistema em seu conjunto. Atualmente não são possíveis os remendos ou
as reformas. Em troca são possíveis e necessários os movimentos anti-sistêmicos.
SETE – As grandes transformações não começam acima nem como fatos monumentais e
épicos, e sim com movimentos pequenos em sua forma e que aparecem como
irrelevantes para o político e analista de cima. A história não se transforma a partir de
praças cheias ou multidões indignadas, e sim, como assinala Carlos Aguirre Rojas, a partir
da consciência organizada de grupos e coletivos que se conhecem e se reconhecem
mutuamente, abaixo e à esquerda, e constituem outra política.
Acreditamos que temos que desalambar a teoria, e fazê-la com a prática. Mas isto talvez
possa explicar melhor Daniel Viglietti esta noite, quando assume parte da culpa que tem
que eu esteja por trás desta máscara, em vez de estar atrás de um violão tentando o
ritmo corrido-cumbi-hanchera-nortña.
Assim são as coisas, creio que sempre assim. Daniel Viglietti cantará esta noite, assim
haverá música e dança.
Talvez cheguem também, nestes dias, Elias Contreras e Magdalena, Sombra, Dezembro
e as mulheres zapatistas.
E talvez Andrés Aubry sorria vendo e escutando tudo, contente de não estar nesta mesa
onde nunca acabava de dizer o que tinha para dizer-nos, porque vivia à vida agradecendo
e, invariavelmente, na metade de sua comunicação lhe passavam o papelzinho de
“tempo”.
De modo que, antes de o passem a mim, gracias, nos vemos na tarde.

Subcomandante Insurgente Marcos.


San Cristobal de Las Casas, Chiapas, México.
13 de dezembro de 2007.

Referências:

1. O "rating" no mercado financeiro é uma opinião sobre a capacidade de


um país ou uma empresa saldar seus compromissos financeiros. A
avaliação é feita por empresas especializadas, as agências de classificação
de risco, que emitem notas.
2. Escutar o amarelo - a geografia e o calendário da diferença
“O perigo d@s diferentes está
em logo parecerem-se muito entre si.”
Dom Durito da Lacondona

A luta das mulheres, do centro à periferia? Se antes falamos que no pensamento de cima
existia um abismo entre teoria e realidade e da concomitante bulimia[1] teórica que virou
moda em uma parte da intelectualidade progressista, agora queremos nos deter nesse
ponto da geografia pretensamente científica que é o centro onde a pedra conceitual,
quer dizer, a moda intelectual, cai e se iniciam as ondas que afetam a periferia.
Acontece que essas teorias e práticas surgidas no centro, se estendem até a periferia não
só afetando os pensamentos e práticas nesses lugares, mas também, e, sobretudo,
impondo-se como verdade e modelo a seguir.
Já se falou do surgimento de novos atores ou sujeitos sociais, e se mencionou as
mulheres, jovens e outros amores. Pois bem, sobre estes “novos” protagonistas da
história cotidiana, surgem novas elaborações teóricas que, sempre no centro emissor, se
traduzem em práticas políticas e organizativas.
No caso da luta de gênero, ou mais especificamente, no feminismo, sucede o mesmo. Em
uma das metrópoles surge uma concepção do que é, de seu caráter, de seu objetivo, de
suas formas, de seu destino. Daí se exporta a pontos da periferia, que por sua vez, são
centros de outras periferias.
Este translado não se dá sem os problemas e “engarrafamentos” próprios das distintas
geografias.
Tampouco se dá, paradoxalmente, em termos de equidade. E digo “paradoxalmente”
porque um dos riscos essenciais das lutas é sua demanda de equidade, de equidade de
gênero.
Espero que as companheiras e companheiros que levantam esta luta, e que estão me
escutando ou lendo, desculpem o reducionismo e simplismo com que estou tocando este
ponto. Não que eu queira salvar meu machismo, tão natural e espontâneo, na verdade,
é porque não estamos pensando, na hora em que tratamos disto, nos esforços que levam
adiante. Não dizemos que seus projetos não sejam questionáveis.
O são e em mais de um aspecto, mas estamos falando de outra luta de gênero, de outro
feminismo: o que vem de cima, do centro à periferia.
Nos próximos dias, as mulheres zapatistas celebrarão um encontro onde sua experiência
e palavra terão um espaço exclusivo, assim não me aprofundarei mais neste tema.
Contudo, quero contar-lhes a breve história de um desencontro.
Nos primeiros meses posteriores ao início de nosso levante, um grupo de feministas
(assim se autodenominaram) chegaram a algumas das comunidades zapatistas.
Não, não chegaram a perguntar, a escutar, a conhecer, a respeitar. Chegaram falando o
que as mulheres zapatistas deviam fazer, chegaram a libertá-las da opressão dos machos
zapatistas (começando, evidentemente, por libertá-las do Sup), a dizê-las quais eram seis
direitos, a mandar portanto.
Cortejaram quem consideravam as chefas (por certo, com métodos muito masculinos,
diga-se de passagem). Através delas tentaram impor, de fora, na forma e conteúdo, uma
luta de gênero que sequer se detiveram em averiguar se existia ou não e em que grau
nas comunidades indígenas zapatistas.
Nem sequer pararam para ver se as haviam escutado e entendido. Não, sua missão
“libertadora” estava cumprida. Voltaram a suas metrópoles, escreveram artigos para
periódicos e revistas, publicaram livros, viajaram com despesas pagas ao estrangeiro
dando conferências, tiveram cargos governamentais, etc.
Não vamos questionar isto, cada um consegue suas férias como pode. Só queremos
recordar que não fizeram coisa alguma nas comunidades nem trouxeram benefícios
algum às mulheres.
Este desencontro inicial marcou a relação posterior entre as mulheres zapatistas e as
feministas, e levou a uma confrontação dissimulada que, claramente, as feministas
imputaram ao machismo vertical e militarista do EZLN. Isto chegou até o ponto em que
um grupo de Comandantas se negou a um projeto sobre direitos da mulher. Acontece
que queriam dar uns cursos, planejados por cidadãs, ministrados por cidadãs e avaliados
por cidadãs. As companheiras se opuseram, queriam ser elas quem decidissem os
conteúdos, quem ministrassem o curso, quem avaliassem os resultados e o que seguia.
O resultado vocês poderão conhecer ao assistir ao Caracol da Garrucha[2] e escutarem,
dos próprios lábios das zapatistas, essas e outras histórias. Talvez lhes ajudassem a
entender melhor, levar a disposição e o ânimo de compreender. Talvez, como Sylvia
Marcos[3] no Israel das beduínas, entenderiam que as zapatistas, como muitas mulheres
em muitos cantos do mundo, transgridem as regras sem descartar sua cultura, se
rebelam como mulheres, mas sem deixar de ser indígenas e também, não há como
esquecer, sem deixar de ser zapatistas.
Faz uns anos, uma jornalista me contou que havia encontrado na estrada uma senhora
zapatista e lhe havia dado “aventón”[4] até o povoado. “Andava com uniforme ou calça
ou botas?”, lhe perguntei preocupado. O jornalista me esclareceu: “Não, carregava água,
camisa bordada e estava descalça. Ainda levava seu filho carregado no rebuço”. “Como
supôs então que era zapatista?”, lhe insisti. O jornalista me respondeu com naturalidade:
“é fácil, as zapatistas param diferente, caminham diferente, olham diferente”. “Como?”,
reiterei. “Pois como zapatistas”, disse o jornalista e sacou sua gravadora para perguntar-
me sobre a proposta de diálogo do governo, as próximas eleições, os livros que tenho
lido e outras coisas igualmente absurdas.
Contudo é necessário assinalar que esta distância tem diminuído graças ao trabalho e
compreensão de nossas companheiras feministas da Outra Campanha[5], particularmente
e de maneira destacada, nossas companheiras da Outra Jovel[6].
Segundo minha visão machista, em ambos os lugares tem se entendido a diferença entre
umas e outras e, por tanto, tem iniciado um reconhecimento mutuo que acabará em algo
muito diferente, que seguramente poderá abalar não só o sistema patriarcal em seu
conjunto, mas também quem apenas está entendendo a força e o poder dessa diferença,
e que nos leva a repetir, ainda que com outro sentido, o “Vive le difference”, viva a
diferença!
Dessa tensão que, paulatinamente, se converte em liga e ponte, resultará um novo
calendário em uma nova geografia. Um e uma onde a mulher, em sua igualdade e em sua
diferença, tenha o lugar que conquiste nessa sua luta, a mais pesada, a mais completa e
a mais contínua de todas as lutas anti-sistêmica.
Nossos maiores sábios contam que os primeiros deuses, os que fizeram o mundo, fizeram
a cor amarelo a partir do riso das meninas e dos meninos. Recordando isto, decidimos
contar-lhes um conto para menores de idade, mas que os maiores terão de escutar
porque... porque... bem, porque seria muito ruim que estes saíssem antes que
terminasse esta sessão do colóquio.
Agora, se forem sair, eu peço que não sejam baixos e o façam com discrição para que os
organizadores não se constranjam. Bem, para os que ficam, aqui está o conto...
Anteriormente contei isto, assim somente repetirei brevemente a história de Dezembro.
Ela era uma menina, assim, pequenina. Nasceu no mês de novembro e, como seus pais
só falavam língua indígena, fizeram uma confusão quando foram registrá-la. O tabelião
perguntava atropeladamente onde nasceu, quando nasceu, em que mês estamos (é que
andava meio complicado) e coisas assim. Sua mãe estava apenas para responder o mês
em que estávamos, quando o do registro civil voltou a perguntar como iam chamá-la.
“Dezembro”, escutou o tabelião e, se pois a escangalhar Roma, porque quando se deram
conta já era complicado trocar os papéis. Assim que “Dezembro” se passou a chamar esta
menina que nasceu em novembro. Segundo os usos e costumes dos adultos, quando
brigam com uma menina ou menino, não se lembram de seus nomes, e começam a dizer
vários nomes até que acertam. No caso de Dezembro, as brigas eram menos rigorosas,
porque a mãe começava por Janeiro, e quando chegava a Dezembro já havia esquecido
por que estava a brigar com a menina.
Em outra história, agora já mais velha, Dezembro conheceu uma coruja e se faz amiga
dela. Então, resolveu o desafio da flauta de brinquedo e não me lembro que outras
travessuras a mais fizeram.
Pois bem, aqui vai...
Dezembro e a história do livro sem mãos
Uma tarde, quase noite, como esta que anuncia chuva de luzes,
andava Dezembro caminhando normalmente. Por acaso estava pensando em nada, só
caminhava pegando pedrinhas e raminhos, e pendurava as pedrinhas em uma árvore, e
amontoava as raminhas em um lado do caminho, e lhes colocavam nomes: esse era uma
“árvore de pedras” e aquele era uma “montanha de ramas”. Ou seja, como quem
diz, Dezembro não só mexia com seus pensamentos, mas também mexia com o mundo.
Tinha, além disso, uns lápis de cor que não sabia quem a havia presenteado. Assim,
quando não estava pendurando pedras e amontoando ramas, Dezembro sacava os lápis
de sua morraleta e começava a pintar com as cores que estivessem em sua mão. Bem,
pois acontece que assim andava Dezembro, cantando uma canção ao ritmo de corrido-
cumbia-ranchera-norteña, quando zaz!, ali estava parado, no meio do caminho, um livro.
Dezembro se pôs contente. Sacou suas cores e foi muito decidida a agarrar o livro para
enchê-lo de raions, bolinhas, palitos e até um garrancho que se supõe, seria o retrato
falado da Panfililla, que assim chamava sua cadelinha que era muito mais sua mulinha
(sem ofender as presentes).
Dezembro já se cercava do livro que estava no meio do caminho, já imaginava que a Junta
de Bom Governo lhe dava permissão para pintar um mural na parede da escola
autônoma, já se via pedindo a uma senhora sociedade civil que lhe tomara a foto dela
com a Panfililla, paradas junto ao mural, e já pensava que se por acaso não se parecesse
com a Panfililla a pintura do mural, aí mesmo pintava as correções. Não na parede da
escola, mas no corpo da Panfililla, obviamente.
Tudo isto ia pensando Dezembro quando, ao acercar-se de tomar o livro com suas mãos,
zas!, o livro abriu suas capa e começou a voar. “Ora!”, disse Dezembro com um tom que
não deixava dúvida de sua origem plebéia, “este livro voa”. O livro flutuou uns metros e
pousou mais adiante, no meio do caminho. Dezembro correu para agarrar o livro, mas
antes de chagar, ele voltou a voar.
Dezembro pensou então que o livro queria jogar e também se pôs a jogar. Assim andava
a menina correndo de um lado ao outro com o livro voador e, entretanto, a Panfililla já
havia engolido meia dezena de pedras e duas dezenas de ramas, e havia feito uma
tiragem, fazendo a digestão e, além disso, movendo as orelhas de um lado ao outro,
segundo corria a Dezembro atrás do livro.
Aí tardaram, mas chegou o momento em que Dezembro se cansou e parou muito
esgotada, estirada ao lado de Panfililla. “E agora o que fazemos Panfililla?”,
perguntou Dezembro.
E a Panfililla, além disso, moveu a orelha, porque, todavia, estava tratando de digerir uma
pedra de âmbar e não podia resmungar. “Já tenho uma idéia”, disse Dezembro, “vou
buscar o senhor Coruja e vou perguntar a ele”.
A Panfililla moveu as orelhas como se estivesse dizendo “vá, eu te espero aqui”, enquanto
isso olhava que, contudo, lhe faltava a metade do montinho de ramas para devorar.
Assim Dezembro foi visitar seu amigo Coruja. O encontrou sentado em cima de sua
árvore, vendo uma revista com garotas nuas. Aqui o Coruja interrompe o conto e
esclarece ao respeitável público:
“Não acreditem no Sup, não era uma revista de garotas nuas, era um folheto de lingerie,
de Victoria Secrets, diga-se de passagem. Não é o mesmo”.
Bem, pois o Coruja estava vendo uma revista de garotas semi-nuas quando
chegou Dezembro e aí no mais, sem anestesia e sem dizer água vá, soltou:
“Oi senhor Coruja, por que existem livros que vuam”.[7]
“Se diz ‘''voam'’ e não ‘vuam’'''”, corrigiu o senhor Coruja, e continuou: “E não, os livros
não voam. Os livros estão nas livrarias, nas bibliotecas, nos gabinetes dos cientistas,
quando não são comprados nas mesas fora dos colóquios”.
“Existe um que voa”, contestou Dezembro, e em seguida lhe contou o que havia passado
antes com o livro voador. O senhor Coruja fechou seu folheto de garotas em roupas de
baixo, claro, não sem antes marcar a página em que havia fechado, e disse muito
decidido:“Muito bem, vamos investigar, no mais me aguarde um momento porque tenho
que por uma roupa adequada”.
“Bom”, disse Dezembro e enquanto esperava o senhor Coruja, se pôs a colocar nas ramas
das árvores algumas pedras que conseguiu resgatar da gula da Panfililla.
O senhor Coruja, enquanto isso, abriu um gigantesco baú e começou a procurar,
murmurando: “mmh... chicote, não... cinta-liga, tão pouco...narguilé, menos... mmh...
aqui está!”, exclamou prontamente o senhor Coruja e sacou uma máscara negra.
A vestiu e, tomando um cachimbo, se dirigiu a Dezembro e a perguntou: “Bem, o que te
parece meu disfarce?”
Dezembro olhou estranhada e, depois de um momento, disse: “de que está disfarçado?”
“Como de que? Pois de subcomandante! Se o livro me ver como coruja, não irá me deixar
aproximar sequer, porque as corujas gostam de muitos livros, já os subcomandantes não
os usam nem para nivelar mesas”.
Aqui o Sup interrompe para esclarecer ao respeitável: “Não acreditem no senhor Coruja,
os subcomandantes usam os livros, as vezes, quando a lenha não pega...” Ejem, ejem.
Bom, pois lhes dizia que Dezembro e o senhor Coruja disfarçado de subcomandante,
desceram da árvore e se dirigiram aonde a menina havia deixado a Panfililla esperando-
lhe.
Quando chegaram onde estava a cachorrinha, a encontraram tratando,
simultaneamente, de roer a metade de um chinelo e de digerir a outra metade.
“Minhas pantufas totalmente Palácio!”, exclamou escandalizado o senhor Coruja e
começou a lutar com a Panfililla, tratando de pegar a metade da pantufa que, ainda, era
a metade de adiante, ou seja, que, contudo, podia passar como uma pantufa versão
minimalista.
Dezembro o ajudou, e algo lhe disse ao ouvido, bem... à orelha de Panfililla que esta
imediatamente soltou a metade dianteira da pantufa do senhor Coruja.
“Uff!”, suspirou aliviado o senhor Coruja e, enquanto fazia a análise dos danos, perguntou
a Dezembro:
“O que disseste para que ela soltasse?”
Dezembro contestou sem alterar-se: “Que ia dar a metade da outra pantufa”.
“Que?”, gritou o senhor Coruja. “Minhas pantufas, meu bem nobre, meu prestígio, meu
status intelectual...!” Nisso, zas!, Dezembro descobriu, próximo de onde estava, o livro
voador.
“Aí está”, gritou Dezembro ao senhor Coruja.
O Senhor Coruja se acomodou como pode na máscara, acendeu o cachimbo e disse a
Dezembro:
“Tu me esperes aqui, vou investigar”.
Chegou o senhor Coruja até onde estava o livro voador, que não o reconhecia por seu
disfarce de subcomandante.
Como é sabido, os livros contam aos subcomandantes até o que não vem escrito neles,
assim que começaram a conversar
Dezembro já estava quase dormindo quando o senhor Coruja regressou e disse:
“Lá está. O mistério está resolvido”.
“Que passou?”, perguntou Dezembro bocejando.
“Elementar, minha queria Dezembro. Se trata, simples e simplesmente, de um caso
extremo de ‘livro sem mãos’”, disse o senhor Coruja.
“Livro sem mãos? O que é isso?”, perguntou Dezembro.
“Pois é um livro que não quer estar em uma estante de livraria ou biblioteca, ou em um
gabinete, ou arrumado em um canto, ou nivelando uma mesa. É um livro que quer estar
nas mãos de alguém. Que o leia, que o escreva, que o pinte, que o queira”, explicou o
senhor Coruja.
“Eu!”, disse Dezembro alegremente.
“Estás segura? Um livro não é qualquer coisa, não é como um dinossauro come-pantufas”,
disse o senhor Coruja enquanto olhava com rancor para Panfililla, que já estava
mordiscando o cachimbo do disfarce de Sup do senhor Coruja.
“Não é dinossauro, é dinossaura, e sim, eu estou segura”, respondeu decidida Dezembro.
“Bom, prova para ver se convence a ele”, disse o senhor Coruja enquanto tratava de
arrebatar o cachimbo de Panfililla.
“E como faço?”, perguntou Dezembro.
“Muito simples, aproxime-te, mas não muito e estende tuas mãozinhas. Se te aceita,
então ele irá até você”, lhe indicou o senhor Coruja.
“Sai”, disse a Panfililla, perdão, a Dezembro. Limpou as mãos na água porque se recordou
que não as havia lavado, se aproximou pouco a pouco do livro voador e, quando acreditou
estar suficientemente perto para que o livro viesse sem se espantar, estendeu suas
mãozinhas. O livro abriu então suas capas, como para voltar a voar, mas duvidou.
Dezembro estendeu mais suas mãozinhas e disse:
“Vem, vem, vem”
O livro começou então a voar, mas no lugar de afastar-se, foi pousar nas mãozinhas
de Dezembro.
A menina se pôs toda contente e abraçou o livro contra seu peito, tanto que o livro soltou
um peidinho: prttt.
O senhor Coruja aplaudiu satisfeito e a Panfililla não latiu, mas arrotou com aroma de
pantufa mal digerida.
O senhor Coruja foi então continuar vendo as garotas... perdão, a ler e estudar muito.
Dezembro se pôs a colorir o livro com seus lápis e não viveram muito felizes porque, por
um descuido, a Pandililla rasgou a contracapa, o índice, os anexos e sete pés de página.
Tan- tan.
Moral: não deixem nada ao alcance das cachorrinhas, podem ser dinossauras disfarçadas.
E já, espero que Daniel Viglietti se faça ouvir esta comunicação tão pouco séria, e que as
meninas recordem... para sempre jamais. Gracias.

Participações de Sylvia Marcos, de Gustavo Esteva


e do Subcomandante Insurgente Marcos
Conferência coletiva do dia 13 de dezembro à 7:00
Primeiro Colóquio Internacional in memorian Andrés Aubry
San Critóbal de Las Casas, Chiapas, México.

Referências:
Sensação constante de fome.

1. Referência ao encontro realizado no final de dezembro voltado para as mulheres Zapatistas


em Caracol da Garrucha, Município Autônomo Rebelde Zapatista de Francisco Gómez, Zona Selva-Tzeltal.
2. Antropóloga, escreve sobre a história da psiquiatria, medicina e da mulher na cultura popular pré-
hispânico e contemporânea do México.Tem como preocupação a recuperação das práticas tradicionais de
saúde das mulheres indígenas mexicanas. Foi diretora do Centro de Investigação Psychoethnological de
Cuernavaca, México. (N.T.)
3. Carona
4. Outra Campanha é o nome de uma iniciativa política de independentes e partidários da
participação popular impulsionada pelo EZLN e o movimento Zapatista dentro do México.
5. Algo como a Outra Campanha dentro do território de Chiapas.
6. No original trata-se propositadamente de um erro na conjugação ou pronuncia do verbo voar. Em
original o termo é “volan”.
3. Tocar o verde - a geografia e o calendário da destruição

“Não basta enterrar o capitalismo,


é preciso sepultá-lo virado de barriga pra baixo.
Para que, caso queira sair, se enterre mais ainda”
Don Durito de A Laconda

Várias vezes têm se dito aqui que o poderio norte americano está liquidado, inclusive se
tem adiantado as saudações pelo óbito do capitalismo como sistema mundial. Na seção
de anúncios fúnebres e lugares na lista de espera para a funerária da história, tem se
incluído: o socialismo, a economia política, o regime político no México e a capacidade
militar do opressor mundial, nacional e local. Convidam-nos a deixar de nos
preocuparmos com o que nos explora, despoja, reprime, deprecia. Exortam-nos a discutir
e acordar com o que vem depois deste pesadelo.

Enfim, os letreiros de “ENCERRADO” e “EM PROCESSO DE DEMOLIÇÃO” têm se colocado


nos edifícios que, permitam-nos a desconfiança cultivada com esmero ao longo de 515
anos, a nós, zapatistas, nos parecem, não só sólidos, mas em plenas funções e tranqüilos.
A presunção pode ser má conselheira em questões práticas e teóricas. Foi ela quem
alimentou aquilo de “não tiraram nenhuma pena do meu galo”, “as pesquisas me
favorecem por 10 pontos”, “sorria, vamos ganhar”, “Oaxaca não será Atenco”.

Não será uma presunção parecida como essa que nos dará ânimo e nos fará sentar e ver
o cadáver do inimigo passar. Mais adiante, em outra destas sessões, assinalaremos o
tema guerra. Agora queremos nos focar mais detidamente em assinalar algumas
destruições que vêm operando e que, diferente das mencionadas acima, podem ser
constatadas “in situ” (Ora! Latim! Agora sim me vi muito acadêmico).

Mais que uma descrição ou uma relação em lista, queremos nos deter em um aspecto
que é muito maior que essas outras destruições. Falo das destruições da natureza, seja
via desflorestamento, contaminação, desequilíbrio ecológico, etc., assim como as
malditas “catástrofes naturais”. E digo malditas[1], porque cada vez é mais evidente que
a sangrenta mão do capital acompanha estas desgraças. Já em outras ocasiões temos
assinalado que o capitalismo, como tendência dominante nas relações sociais, tudo
converte em mercadoria; em sua produção, circulação e consumo, o lucro é o eixo
articulador de sua lógica; e a vontade de lucro busca também a “aparição” de novas
mercadorias, a criação ou apropriação de novos mercados.

Talvez nos rotulem de demasiado “ortodoxos” ou “clássicos” (algo de que, como tem sido
evidente nestes 14 anos, seguramente se pode acusar o neozapatismo), se insistimos
nisto de que ao capital interessam os lucros, por qualquer meio e de qualquer forma,
todo o calendário e em toda a geografia. Os entendemos.

Mas pedimos a quem vem de cima que, pelo menos por um momento, deixem de lado
suas leituras de “Vuelta”, “Letras Libres”, “Nexos”, “TV y Notas” e as conferências
magistrais de Al Gore; deixe descansar uns minutos seus fantasmas do Gulag e do Muro
de Berlim; apaguem um momento as velas acendidas ao candidato “menos mal”;
coloquem em “stand by” suas análises que não sabem diferenciar uma mobilização de
um movimento; e aceitem que, talvez, seja provável, seja um supositório[2], pode ser que,
por efeito, o capital pretenda converter tudo em mercadoria e esta no lucro.

Revisem agora, detalhadamente, cada uma das distintas destruições que o planeta
padece e concluirão como aparece o capital usufruindo destas. Primeiro nas causas da
desgraça, e depois em suas conseqüências.

Tabasco e Chiapas. As geografias e os calendário da destruição


Há várias semanas que o Rio Grijalva e o Rio Carrizales transbordaram, colocando setenta
por cento do território do sudeste do estado mexicano de Tabasco debaixo de água,
parece que se abriu aí uma nova etapa: a da reconstrução e das justificativas inaceitáveis.
O saldo é arrepiante: um milhão de afetados e, ao menos, oitenta mil residências
destruídas, além do perigo latente de um novo transbordamento.

No governo do panista[3] Felipe Calderón evitou-se uma discussão séria sobre o que
motivou a inundação – através do argumento de “não politizar a situação”. Em 8 de
novembro passado, o secretário de Governo declarou que: “a emergência é a emergência
e tem que ser resolvida, não encontrar culpados”.

Claro que não se pode encontrar culpados se não se faz uma avaliação séria do
acontecido. A realidade é que, conforme a população se sente mais segura no que
concerne a sua integridade física, a discussão sobre o que passou é o tema central das
conversas, não podemos dizer que são conversas de bar] porque não há bares, somente
nos refúgios, nas ruas e nos campos.

Da mesma forma, nas esferas das diversas correntes políticas do país o tema começa a
se manifestar, nem sempre de maneira desinteressada. Deste então, é um absurdo pedir
que não se politize o que sucedeu, quando por trás de tudo existe uma série de políticas
públicas que têm permitido, em paralelo às causas naturais, a situação que hoje se vive
em Tabasco.

Felipe Calderón, ao grito de “vi o documentário de Al Gore”, esconde-se em uma


explicação muito na moda em nossos dias: a mudança climática: “não nos equivoquemos,
a origem da catástrofe está na enorme alteração climática”.

Assim não é necessário buscar ou localizar uma responsabilidade concreta. Parece que,
para o autodenominado presidente, a mudança climática é uma tragédia quase divina,
não tem nada a ver com o modelo de desenvolvimento aplicado e que se continua
aplicando. É muito provável que esta inundação tenha ligação com essa mudança
climática, o que seria importante elucidar são as razões disso.

Cecília Vargas, jornalista de A Verdade do Sudeste, nos disse: “uma das causas da
inundação é a venda de terras e a construção de casas e lojas comerciais nas zonas
pantanosas, que são terraplanadas, tapando assim os lençóis reguladores da cidade e
impedindo a circulação e absorção de água. Em zonas aterradas (ou aterros) se
constróem centros comerciais como Wal Mart, Sam’s, Chedrahui, Fábricas de Francia,
Cinépolis (construídos durante os governos de Roberto Madrazo e Manuel Andrade)”.

Ou, como assinala os habitantes indígenas da zona rural: “dizem os nossos vozinhos que
antes chovia mais ou igual, mas não havia inundação, por que agora inunda? Dizem que
é por causa das novas construções que tapam os caminhos da água”.

Posteriormente, o senhor Calderón responsabilizou, no cúmulo da estupidez, a lua pelas


tremendas marés que provocou.

No entanto, Maria Esther, habitante da cidade de Villahermosa e companheira da Outra


Campanha, utiliza o senso comum – tão alheio aos “espertos” –, e assinala um sucesso
estranho: “a Laguna de las Ilusiones, que se encontra em plena Villahermosa, nunca
transbordou, e subiu apenas no seu nível, a diferença de outros anos. Se a origem
fundamental da catástrofe tivesse sido as chuvas, essa lagoa teria transbordado e isso
não ocorreu”.

E concordam a jornalista Cecília Vargas e María Esther: “as inundações foram um crime,
porque houve a abertura das comportas da represa Peñitas quando já não dava mais, e
foi esta água que inundou Villahermosa”. Adiante, citam um documento do Comitê
Nacional de Energia, de 30 de outubro, onde se assinala que “a represa Peñitas está à
beira do colapso porque só usa a água para geração de eletricidade nas noites, enquanto
a base da geração elétrica é por meio de gás enviado pelas indústrias privadas”. Por trás
disto está a Repsol, a multinacional espanhola que “aonde pisa não volta a crescer ervas”.
No documento, como sempre, é advertido que “é necessário abrir as comportas, porque
os limites da represa estão no máximo” e exigido da Secretaria de Energia a geração
permanente de energia por meio das hidroelétricas.

O fato concreto é que andando em Villahermosa constata-se que a zona hoteleira, a


colônia Tabasco 2000 e outras zonas “ricas” da cidade não foram afetadas, graças às
obras que, em anos passados, aí fizeram para prevenir inundações (a borda de contenção
do Rio Carrizal). Em meio às catástrofes se mede a estatura dos políticos... e dos analistas.
Esta ocasião não tem sido exceção. No meio da tragédia querem que os três principais
partidos do México compartilhem a responsabilidade do que ocorreu.

Tanto a presidência da república nas mãos do direitista PAN, como o governo do estado
nas mãos de um militante do corrupto Partido Revolucionário Institucional, como as
prefeituras municipais, majoritariamente nas mãos do supostamente esquerdista Partido
da Revolução Democrática, têm evidenciado seu profundo desapego da sociedade.

O exemplo mais claro desta situação se viu em 31 de outubro, quando o autodenominado


presidente do México, Felipe Calderón, chegou a Tabasco para fazer uma visita para
avaliar a situação. Vendo que havia pessoas que estavam colocando sacos com areia nas
bordas do rio para criar um dique, decidiu ajudar e durante 15 minutos se pôs a trabalhar,
junto com sua esposa e alguns membros de seu gabinete. Esse tipo de atitude, tão
próxima do que era a forma de governar do PRI, teria forte impacto social e midiático,
mas somente provocou indignação e raiva.
Pior foi que ao ver que havia muita gente apenas olhando e perante os “soluços”, do
governador, Felipe Calderón ganhou coragem e ameaçou aos que somente olhavam:
“Coloquem-se a ajudar ou mando por vocês!”, e imediatamente ordenou aos militares
que estavam lá para ajudar os trabalhadores a encher os sacos de areia. As pessoas se
alteraram, e o olhar adquiriu um sentido de depreciação, os soldados tampouco se
moveram, entendendo que aquela ordem era atear gasolina ao fogo; a conseqüência
disto foi que o presidente se retirou do lugar e deu por terminado seu trabalho de
reconstrução. Seus quinze minutos de trabalho não se converteram em quinze minutos
de glória. Mas pelo contrário, de vergonha. Um dos que estavam olhando comentou
depois, levantando a voz sem nenhum temor: “é fácil vir aqui 15 minutos e tirar uma foto,
para que os grandes noticiários de televisão gravem. Tomar um banho de povo e logo ir
para sua casa, jantar e dormir comodamente com sua família”.

Há várias semanas do início da tragédia de Tabasco, o que chama atenção dos habitantes
desse lugar é a grande solidariedade que sua situação tem despertado entre o povo do
México. A maior parte dos alimentos, bebidas e medicamentos que lhes têm chegado são
recolhidos entre a sociedade civil mexicana.

Enquanto os carregamentos com ajuda provenientes de diferentes governos, seja o


federal, os estaduais ou os municipais, são invariavelmente etiquetadas com os logotipos
que identificam partidos políticos, a ajuda cidadã tem como característica o anonimato.
Em nada semelhante com as desavenças entre o governo federal e o distrito federal, nem
Felipe Calderón e Marcelo Ebrard se importam com a situação dos atingidos, a única coisa
que lhes interessa é tirar fotos: um enchendo sacos de areia com a habilidade de um
advogado egresso de uma universidade privada, e o outro dando bandeirada de saída,
com cara de bobo, rodeado de fotógrafos e jornalistas.

Mas, houve outra ajuda presente desde os primeiros dias nas comunidades mais pobres
de Tabasco, as que fazem fronteira com o estado de Chiapas: a ajuda que se fez de
povoado pobre a povoado pobre. Nos narra um habitante desta região: “Houve um
interesse por parte dos companheiros zapatistas de saber como estávamos, em que
condições estava cada um. Nos disseram que se necessitássemos sair poderíamos contar
com os municípios autônomos zapatistas como albergues seguros.
Eram dias difíceis; não havia comunicação, cortaram as linhas de telefone, as estradas, e
a água potável. Inclusive em muitos lados não havia luz, escasseavam os alimentos e a
água para consumo, mas em meio a tudo isso, tínhamos a certeza de saber que
contávamos com teto e comida segura nos municípios autônomos.

Não foi fácil a comunicação entre nós, mais ou menos sabíamos onde havia inundado pela
localização de cada um, sabíamos que estavam com vida, ainda que padecendo das
dificuldades deste desastre.

Então, as respostas foram ao estilo zapatista: rápidas, efetivas e seguras. Os


companheiros das bases de apoio convocaram em Tila, Chiapas, e nos municípios
autônomos a solidariedade conosco. Pode-se dizer que os três caminhões de
carregamentos que vieram de Tila, no dia 3 de novembro, foram uma das primeiras ajudas
que o estado recebeu, quando não tínhamos comunicação telefônica e nem passagem
nas estradas salvo para veículos pesados.

Sabíamos que, junto com a ajuda da sociedade civil e da paróquia de Tila, vinha o apoio
das bases zapatistas da zona norte. Sabíamos que os companheiros trabalharam dia e
noite para promover a provisão. E a ajuda foi não só oportuna, mas maravilhosa. Quando
não havia como cozinhar nas casas, só em alguns albergues, chegaram três caminhões
cheios de pozol (bebida típica dos indígenas tanto de Chiapas como de Tabasco), torradas,
e todos nossos alimentos tradicionais ao contrário dos governos que nos davam horríveis
sopas instantâneas. Efetivamente foram os primeiros a chegar e todo mundo se admirava
e agradecia este apoio tão oportuno e além disso tão de baixo, tão conhecedor de nossos
alimentos, o pozolito, a tortilha. Logo, dois dias depois, outros três caminhões e assim
várias viagens”.

E logo cheio de emoção o habitante narra: “A região de Tacotalpa estava sem


comunicação, não entravam nem caminhões pesados. Os companheiros das bases de
apoio zapatista nos disseram que não ficássemos tristes, pois ia chegar apoio especial
para eles e foi assim que, em meio da serrania de Tacotalpa, ante o olhar assombrado dos
povoados vizinhos, se viu desceu da montanha uma fila larga de mais de 50 homens, 30
mulheres e muitas crianças, mera base de apoio zapatistas, que em dois dias desceram,
carregando em seus ombros por várias horas, sacos com milho, feijão, torradas, pozol,
pinol, açúcar, laranjas, tangerinas, limões, abóbora, iúca, maçal e água engarrafada ou
fervida dos riachos da montanha, para os companheiros e companheiras tasbaqueñas...
Isto através do Município Autônomo El Campesino, mas sabemos que houve apoio de
outros municípios que de bom coração deram o que tinham e como sempre o que tinham
era muito grande, muito valioso, capaz romper qualquer dificuldade por maior que
pareça.

Para os que presenciaram, foi algo maravilhoso ver homens, crianças, mulheres, anciãos
da cor da terra trazer o sustento que necessitamos aos companheiros de cá deste lado da
zona de baixo. Depois chegaram outras camionetes com ajudas similares. Mas não só
vinham nos dar ajuda, também vinham escutar nossa dor, que dissemos o que estava
passando, como estávamos, o que realmente provocou tudo isto, como é que vamos
abaixo após o desastre. Eles provaram a nossa dor, para começar a curá-la.

Não há palavras com as quais possamos agradecer a todos e a cada um dos companheiros
da base de apoio zapatista, que com bom coração e com verdadeiro humanismo
compartilharam seu pão, sua água e sua luta para construir um mundo onde caibam
muito mundos.”

Desde logo, nada dispo apareceu nos grandes meio de comunicação mexicanos. Além
das pistas de patinação, o que insistentemente se diz nestes meios é que toda classe
política se acusa entre si por lucrar com a tragédia. Assim, por exemplo, o ministro do
Trabalho se confrontou com o Chefe de Governo da Cidade do México, o primeiro
chamou de ruim o segundo, e este o respondeu chamando-lhe de tonto. O interessante
é que ambos tinham razão.
Aqui vocês observam uma diferença fundamental e irreconciliável entre o que nós
buscamos, no movimento que se chama A Outra Campanha, e os que se aglutinam em
torno ao lopezobradorismo[4].

Eles querem um mundo com pistas de gelo para patinação, praias artificiais, segundos
pisos, e o glamour do primeiro mundo. Nós queremos um mundo como esse que desce
da montanha zapatista para ajudar o necessitado, um outro mundo.

Algo de Geografia e Calendário básicos


Existe no Caribe, estendida ao sol como um verde jacaré, uma alargada ilha. “Cuba” é
como se chama o território, “Cubano” é como se chama o povo que aí vive e luta. Sua
história, como a de todos os povos da América, é uma longa trança de dor e dignidade.
Mas há algo que faz esse solo brilhar. Se diz, não sem verdade, que é o primeiro território
livre da América.

Durante quase meio século, esse povo tem sustentado um desafio descomunal: construir
um destino próprio como Nação. “Socialismo” tem chamado este povo o seu caminho e
motor. Existe, é real, se pode medir em estatísticas, pontos percentuais, índices de vida,
acesso à saúde, à educação, à moradia, à alimentação, desenvolvimento científico e
tecnológico. Quer dizer, que se pode ver, ouvir, olhar, degustar, tocar, pensar e sentir.

Sua impertinente rebeldia lhe tem custado o bloqueio econômico, as invasões militares,
as sabotagens industriais e climáticas, as tentativas de assassinatos contra seus líderes,
as calúnias, as mentiras e a mais gigantesca campanha midiática de desprestígio. Todos
estes ataques provêm de um centro: o poder norteamericano.

A resistência deste povo, o cubano, não só exige conhecimento e análise, mas também
respeito e apoio. Agora que tanto se fala em defuntos, é bom recordar que há 40 anos
tentam enterrar Che Guevara; que Fidel Castro já foi declarado morto várias vezes; e que
a Revolução Cubana já teve inutilmente marcada várias datas de extinção. Dezenas de
calendários de extinção; que nas geografias onde se traçam as estratégias atuais do
capitalismo selvagem, Cuba não aparece, por mais que se empenhem.

Com a ajuda efetiva, com o sinal de reconhecimento, de respeito e de admiração, as


comunidades indígenas zapatistas têm enviado um pouco de milho não transgênico e um
pouco de gasolina. Para nós, têm sido nossa forma de fazer este povo saber que
entendemos as mais pesadas das suas dificuldades que padecem e que têm como centro
emissor: o governo dos Estados Unidos da América.

Como zapatistas pensamos que devemos estender o olhar, o ouvido e o coração a este
povo. Não vai ser, como nós, que se dirá que o movimento é muito importante e
essencial, e blá, blá, blá; e quando, como agora, somos agredidos, não há nenhuma linha,
nenhum pronunciamento, nenhum um sinal de protesto.

Cuba é algo mais que o estendido e verde jacaré do Caribe. É um referencial, cuja
experiência será vital para os povos que lutam, sobretudo, nos tempos de obscurantismo
que agora se vive e se alargaram já há algum tempo. Ao contrário dos calendários e
geografias da destruição, em Cuba há um calendário e uma geografia da esperança.

Por isto agora dizemos, sem afetação, não como ordem, mas com sentimento: Que viva
Cuba!

Muito agradecido. Subcomandante Insurgente Marcos. San Cristóbal de Lãs Casas,


Chiapas, México. Dezembro de 2007.

Sombra, o levantador de Luas.


Obs.: Que confirma que a Lua é rancorosa e conta a lenda da origem de Sombra, o
guerreiro:
Conto a vocês como me contaram. Faz muito tempo, não há calendário que o localize. O
lugar em que ocorreu não tem geografia que assinale. Sombra, o guerreiro, todavia não
era guerreiro nem era ainda Sombra. Cavalgava a montanha quando lhe deram notícia.

“Onde?” perguntou.
“Ali, onde é a fenda da montanha” - foi a vaga referência que lhe deram.
Sombra cavalgou, contudo ainda não era Sombra. A notícia percorria as canhadas de
extremo a extremo:
“A Lua caiu, assim do nada. Como que desmaiou e veio a cair. Devagarzinho veio, como
se não quisesse, como não a olhassem, como não dessem conta. Mas bem que a olhamos.
Como que parou sobre a colina e logo foi rodando até o fundo do barranco. Claro que
vimos. Era luz, pois. Era a Lua.”
Chegou Sombra à borda do barranco, se apeou do cavalo. Devagar desceu ao fundo e
encontrou à Lua. Com o laço rodeou. Sobre suas costas a carregou. Subiram Lua e Sombra
montanha acima. Sombra sobre o caminho, Lua sobre Sombra. Chegaram até a ponta
mais alta da colina, para lançá-la daí de novo ao céu. Para que de novo andasse a Lua
novamente nos caminhos da noite. Não quero, disse Lua. Aqui quero ficar, contigo. Tíbia
será minha luz para ti, na noite fria. Fresca no ardente dia. Tu me trará espelhos que
multipliquem meu brilho.
Contigo ficarei, aqui. Sombra disse não, o mundo, seus homens e mulheres, suas plantas
e animais, seus rios e montanhas, da Lua necessitam para melhor ver seus passos na
obscuridade, para não perder-se, para não duvidar quem são, de onde vêm, e aonde vão.
Discutiram. Tardaram ali. Os murmúrios eram luzes morenas, sombras luminosas. Muitas
outras coisas disseram. Tardaram. De madrugada se ergueu Sombra e com a correia
lançou A Lua de novo ao céu. A Lua enojada ia, incomodada. No alto, no lugar que os
primeiros deuses lhe deram, ficou a Lua. Desde aí a Lua maldisse a Sombra. Assim disse:
“De agora em diante Sombra serás. Luzes verás, mas não serás. Sombra caminharás.
Guerreiro serás. Não haverá para ti rosto, nem casa, nem repouso. Só caminho e luta
terá. Vencerás. Encontrará, sim, a quem amar. Teu coração falará em tua boca quando
‘te quero’ dizer. Mas Sombra seguirás e nunca encontrarás quem te ame. Buscarás, sim,
mas não encontrarás os lábios que sabem dizer ‘tu’. Assim serás, Sombra, o guerreiro,
até que já não sejas”.
Desde então, Sombra é quem agora é: Sombra, o guerreiro.
A saber quando e onde foi e será.
Todavia falta fazer esse calendário, todavia falta inventar essa geografia.
Todavia falta aprender a dizer “Tu”.
Todavia falta o que falta...

Referências:
1. Até amanhã.
2. Mal llamadas no original.
3. Um trocadilho com a palavra suposição
4. Partidário do PAN, Partido da Ação Nacional, o mesmo que elegeu Vicente Fox
(2000) e Felipe Calderón Hinojosa (2006). (Nota do Tradutor)
5. Referente ao político mexicano Andrés Manuel López Obrador derrotado nas
eleições presidências de 2006 por meio ponto percentual, a qual acusa de terem sido
fraudulentas.
4. Degustar o café - a geografia e o calendário da terra
“À terra, o indígena a vê como mãe.
O capitalista, como alguém que não possui uma”.
Dom Durito de A Lacandona.

Algumas anedotas pouco científicas.


No dia de ontem, meditando ao Sol, chegou com sua banda o Daniel Viglietti que, como
todos sabem, é um cidadão da América Latina de baixo que viaja com um passaporte
uruguaio e um violão subversivo. Houve música e palavras. Com ele mandamos
comprimento a Mario Benedetti, outro dos culpados de frustrar minha carreira como
músico de ritmos desconcertantes. O Viglietti nos contou que o recolhedor das chuvas
da memória de baixo, Eduardo Galeano, esteve enfermo, mas que já estava melhor. Lhe
mandamos parabéns Don Eduardo e a oferta de que, em caso de uma recaída, os
atenderemos na Clínica de Oventik, onde não se abunda a medicina, mas sim a morena
alegria zapatista, que não cura, mas alivia.
Não é por presunção, mas o Viglietti e eu compusemos, juntos, alguns versos para uma
de suas canções e, além disso, nós tiramos um dueto, quer dizer, ele cantou e eu
sustentava o caderno com as anotações. A tenienta insurgenta nos acompanhou nos
coros e eu sabia todas as canções sem necessidade do caderno. Agora é hora das
confissões inconfessáveis, supôs ele que eu na realidade era, por estas travessuras da
geografia de baixo, um uruguaio nascido em Chiapas. Estiveram também Raúl Sendic e
meu general Artigas, mas não estou autorizado a revelá-lo. E o Che se manifestou muito
ligeiramente, incorporado e brincalhão sobre uns versos de sonhos e madrugada.
Quando chegamos ao momento de “A Desalambar”, Daniel nos explicou que, quando
cantou pela primeira vez a seu pai, ele lhe advertiu das conseqüências de cantá-la no
campo. “Sim, ao tirar o alambrado você acaba por fazer um desgarriate, Daniel, porque
o que ganhou vai sair e ir a quem sabe onde, ou vai mexer”, lhe disse, mais ou menos
assim.
Foi então que eu lhe contei uma pequena parte do que agora lhes conto mais
extensamente:
Pelas bandas do Caracol de La Garrucha, na região da selva tzeltal (que, certamente, é
onde será celebrado o Encontro das Mulheres Zapatistas com as Mulheres do Mundo,
nos últimos dias deste mês de dezembro), antes do levante existiam várias propriedades,
que é assim como os companheiros chamam as fazendas.
Localizadas nos melhores terrenos dos vales da selva lacandona, com água abundante,
solos planos e férteis, estradas próximas, pistas de pouso privadas, estas fazendas
concentravam milhares de hectares e se dedicavam quase exclusivamente à pecuária
extensiva.
As grandes árvores: as ceibas, os huápacs, os cedros, os magnos, os acotes, os
homiguillos, os bayalté, as nogueiras; caíram para dar passo aos bovinos que davam
lucros para as associações pecuaristas, os frigoríficos de carne, os comerciantes e os
governos de todos os níveis.
Os indígenas (zapatistas, não zapatistas e anti-zapatistas) haviam sido deixados de lado
nas encostas de serras e nos altos das colinas, em terrenos pedregosos, sempre em
inclinações anunciadas. Aí deviam fazer seus cafezais em pequenos clarões que a
montanha, generosa com seus guardiões, abria de tanto em tanto em suas irregulares
chateações. Os pés de milho cresciam entre pedras e espinhos, agarrando-se como
podiam nas inclinadas costas que caíam do despenhadeiro, como se a montanha tivesse
se cansado de estar de pé e prontamente se deixara cair, e no mais, para se assentar nas
terras onde o mandão mandava e aquela de “senhor de forca e navalha” não era uma
imagem literária.
Nos pequenos cafezais trabalhava toda a família. Gente de idade, homens, mulheres,
meninas e meninos podavam, limpavam, secavam, alinhavam e empacotavam o café em
grandes costais chamados pergamino. Para comercializa-lo, os mesmos anciões, homens,
mulheres e crianças deviam carregá-lo, se tinham um pouco de dinheiro, em seus animais
de carga. Mas como a pequenez também era de animais, ancião, homens, mulheres e
crianças eram os animais de carga que, sobre seus ombros, levavam 30, 40 kilos de café
pergamino. 2 ou 3 jornadas de 8 a 10 horas de caminho cada uma. Chegavam a margem
da estrada e esperavam um carro (que é assim como se chamam os caminhões de três
toneladas), que lhes cobravam o equivalente a 10 ou 15 kilos de café que haviam levado
no lombo.
Ao chegar nas sedes do município, os coiotes (assim os companheiros chamam aos
intermediários) cercavam os veículos e praticamente assaltavam os indígenas, mentindo
sobre o peso e o preço do café, aproveitando que a castilla era pouca ou nula nestes
indígenas. A constatação de que eram enganados fracassava contra o argumento do
coiote: “se não queres, volte”. O pouco pago era gasto em comida e nos bordéis, que
tinham na época de colheita do café sua melhor “temporada”.
De colheita em colheita de café, os indígenas, homens, mulheres e crianças, deviam
trabalhar em seus milharais de montanha, e empregar-se como peões nas grandes
fazendas que se faziam donas dos grandes vales que os rios Jataté e Perlas abriam por
entre essas montanhas do sudeste mexicano.
Os finqueros[1], que é como os companheiros chamam os fazendeiros, seguiam um
mesmo padrão para a instalação de suas possessões. A Casa Grande, quer dizer, a casa
onde o finqueiro habitava os dias que estavam em suas possessões, era feita de material
de construção, ampla e com grandes corredores rodeando-a. Do lado tinha a cozinha.
Depois havia um amplo espaço cercado por arames farpados. Fora da cerca que
demarcava os limites do espaço do “senhor”, viviam os peões com suas famílias, em casas
de adobe[2], madeira e teto de palha. Ao espaço da “Casa Grande”, quer dizer, dentro da
cerca de arame farpado, só podiam passar o mayoral ou capataz, e as mulheres que se
encarregavam da cozinha e da limpeza da casa e das costas do senhor. Também
acostumavam entrar, de noite quando a senhora do “senhor” não estava, as noivas sobre
as quais o finquero exercia o chamado “direito de pernada” (que consistia no direito que
o fazendeiro tinha de desvirginar a mulher antes de ser desposada).
|Eu sei que parece que estou contando uma novela de Bruno Traven ou que estou
tomando um texto do final do século XIX, mas o calendário em que ocorria isto que acabo
de contar marcava dezembro do ano de 1993, faz apenas 14 anos.
Os peões indígenas não só haviam colocado a cerca que os separavam do “senhor”,
também cercavam os grandes pastos em que pastavam os gados que depois seriam
suculentos filés e complicados guisos[3] nas mesas dos ricos de San Cristóbal de Lãs Casas,
de Tuxtla Gutiérrez, de Comitán, da Cidade do México.
A cerca de arame farpado não era só para controlar o ganho do finquero. Era também, e,
sobretudo, um sinal de status, uma linha geográfica que separava dois mundos: os do
caxlán ou rico branco, e o do indígena.
Com métodos que dariam pena à Border Patrol e ao Minutteman, os fazendeiros criaram
e aplicaram sua própria leu aduaneira: se um animal, dos poucos que tinham nos
povoados, cruzasse para o lado do terreno do finquero, passava a ser de sua propriedade
e o “senhor” podia fazer o que quisesse com ele: sacrifica-lo e deixa-lo aos abutres,
sacrifica-lo e lava-lo à sua mesa, ferra-lo com sua marca, ou presenteá-lo ao capataz para
que, por sua vez, fizesse o que quiser. Se, pelo contrário, algum animal do “senhor”
cruzasse para o lado do povoado, este devia devolvê-lo ao terreno do finquero, e se
sofresse algum acidente, o povoado devia pagá-lo e, além disso, devolver o animal ferido
ou morto à fazenda.
Eu sei que estou me estendendo muito para assinar algo muito simples: a propriedade
da terra pertencia, antes do levante, aos fazendeiros ou finqueros que, certamente, são
o setor mais retrógrado dos poderosos. Se alguém quer conhecer como pensa e atua a
ultra-direita reacionária, bata um papo com um finquero chiapaneco. E lhes passo um
nome de um deles que, até pouco tempo, era aliado de Andrés Manuel López Obrador
em Chiapas e, junto com o Croquetas Albores e o PRD, levou ao poder Juan Sabines (o
que expulsou, primeiro de um bordel desmantelado e logo depois de uma bodega de
café, as famílias zapatistas desalojadas faz uns meses de Montes Azules – certamente,
sem que os intelectuais progressistas dissessem nenhuma palavra de protesto). O nome
do finquero é Constantino Kanter, e foi o autor daquela famosa frase, dita quando o
calendário marcava o mês de maio do ano de 1993: “Em Chiapas mais vale um frango
que a vida de um indígena”. Mas no insistamos nele, pois é sabido que a memória de
cima é seletiva e recorda ou esquece segundo o que lhe convém no calendário e na
geografia.
O caso é que se passou algo. Não sei se sabem, mas se vos digo é porque parece que
alguns não sabem ou têm esquecido, ou mesmo fingem como se o estivesse. Bom, o caso
é que o primeiro de janeiro de 1994, milhares de indígenas se levantaram em armas
contra o supremo governo. Podem até não crer nisto, mas foi aqui, nesta geografia e
neste calendário. E dizem que é preciso confirmar que os que se autodenominaram
“Exército Zapatista de Libertação Nacional” e que usaram máscaras para cobrir o rosto o
fizeram para evidenciar que eram nada.
Segundo algumas referencias de periódicos deste calendário, os insurgentes tomaram
simultaneamente 7 sedes municipais. Parece, não estou muito seguro, que uma dessas
sedes municipais que caiu em mãos rebeldes foi esta soberba cidade de San Cristóbal de
Las Casas.
Combateram contra o exército federal e o governo central de então, que era encabeçado
por Carlos Salinas de Gortari e estava formado por vários personagens que hoje podem
ser encontrados nas fileiros do PRD e da CND lopezobradorista, que os catalogou como
“transgressores da lei” (seguramente por terem transgredido a lei da gravidade, porque
o que está abaixo não deve levantar-se).
Lhes peço que notem que nós estamos falando de pessoas com as que temos diferenças
de estratégia ou tática, ou de concepção de reforma ou revolução. Estamos falando de
nossos perseguidores, de nossos carrascos, de nossos assassinos. Se tivéssemos traído
nossos mortos e tivéssemos apoiado essa suposta opção contra a direita, agora
estaríamos em uma “queda” e uma frustração similar às que descreveu o companheiro
Ricardo Gebrim, do Movimento dos Sem Terra, do Brasil.
Esta manhã li que a aberração jurídica que, violando a constituição, permite a legalidade
do fascismo (como oportunamente ressaltou ontem aqui Jorge Alonso), foi votada a favor
pelos deputados de todas as tribos e correntes do PRD, incluindo aquelas afins ou
dependentes de Andrés Manuel López Obrador. Odeio dizer o que os disse, mas os disse.
Aqueles que passaram pelo alto, em movimentos psNdarados e em "ra deter a direita,
agora est tribos e correntes do PRD, incluindo aquelas afins ou dependentes de
Andrtpriedadara deter a direita, agora estão frustrados e em “queda”. Nós que
levantamos intuindo o que agora se passa, temos... outra coisa.
Em fim, é algo que deverá ser investigado nas bibliotecas e nas hemerotecas, que é onde
o trabalho teórico sério deve surgir. O que quero contar-lhes é o que passou também
nestes calendários, mas em outra geografia que não é a das cidades, quer dizer, na
geografia do campo.
Acontece que, não é muito seguro, mas há indícios de que isto foi assim, os insurgentes
se prepararam com muito tempo de antecipação, e até elaboraram uns regulamentos ou
memorandos que chamaram de “Leis Revolucionárias”.
Uma delas, a chamada “Lei Revolucionária das Mulheres”, já foi mencionada aqui por
Sylvia Marcos[4] faz uns dias. Ela é uma investigadora séria, assim que é muito provável
que, de fato, existiram (talvez, contudo existam) essas mencionadas leis.
Bom, pois outra dessas leis se chamou, ou se chama, “Lei Agrária Revolucionária”.
Ainda que nem todo teórico que se respeite o faz, eu tenho tomado o inconveniente de
investigar e, assim, tenho encontrado o que os intelectuais progressistas chamam de
“panfleto” e que parece um jornalzinho que os pequenos grupos radicias e marginais
fazem. Se chama “O Despertador Mexicano. Órgão Informativo do EZLN”, é o número 1
(ignoro se há números posteriores) e está datado de dezembro de 1933, faz exatamente
14 calendários.
Aí encontrei isto que lhe narro e que diz a letra (respeito a redação original só para
evidenciar que estes insurgentes não tinham nenhuma assessoria teórica respeitável e
conhecida, e que se veja que tais planos eram meio nascidos, ou que lhes perguntaram a
sua gente – pessoas sem nenhuma preparação, evidentemente – o que iam propor):

Lei Agrária Revolucionária


A luta dos campesinos pobres no México segue reclamando a terra para os que
trabalham. Depois de Emiliano Zapata e contra as reformas do artigo 27 da Constituição
Mexicana, o EZLN retoma a justa luta do campo mexicano por terra e liberdade. É com o
fim de versar a nova partilha agrária que a revolução traz à terras mexicanas a seguinte
LEY AGRÁRIA REVOLUCIONÁRIA.
Primeiro – Esta lei tem validade para todo o território mexicano e beneficia a todos os
campesinos pobres e diaristas agrícolas mexicanos sem importar sua filiação política,
credo religioso, sexo, raça ou cor.
Segundo – Esta lei afeta todas as propriedades agrícolas e empresas agropecuárias
nacionais ou estrangeira dentro do território mexicano. Terceiro – Serão objeto de
afetação agrária revolucionária todas as extensões de terras que excedam a 100 hectares
em condições de má qualidade e de 50 hectares em condições de boa qualidade. Aos
proprietários cujas terras excedam os limites acima mencionados serão quitado o
excedente e ficarão com o mínimo permitido por esta lei, podendo permanecer como
pequenos proprietários ou somar-se ao movimento campesino de cooperativas,
sociedades campesinas ou terras comunais.
Quarto – Não serão objeto de afetação agraria as terras comunais, ejidales ou em posse
de cooperativas populares ainda que excedam os limites mencionados no artigo terceiro
desta lei.
Quinto – As terras afetadas por esta lei agrária serão repartidas aos campesinos sem terra
e diaristas agrícola, que assim o solicitem, em PROPRIEDADE COLETIVA para a formação
de cooperativas, sociedades campesinas ou coletivos de produção agrícola e pecuária. As
terras afetadas deverão ser trabalhadas em coletivo.
Sexto – Tem DIREITO PRIMÁRIO de solicitar os coletivos de campesinos pobres sem terra
e diaristas agrícolas, homens, mulheres e crianças, que certifiquem devidamente não
possuírem terra alguma ou possuírem terra de má qualidade.
Sétimo – Para a exploração da terra em benefício dos campesinos pobres e diaristas
agrícolas serão afetados os grandes latifúndios e monopólios agropecuários incluindo os
meios de produção tais como maquinarias, fertilizantes, bodegas, recursos financeiros,
produtos químicos e assessoria técnica.
Oitavo – Os grupos beneficiados com esta Lei Agrária deverão dedicar-se
preferentemente à produção em coletivo de alimentos necessários para o povo
mexicano: milho, feijão, arroz, hortaliças e frutas, assim como a criação de gado bovino,
suíno, equíno e da apicultura, e aos produtos derivados (carne, leite, ovos, etc).
Nono – Em tempo de guerra, uma parte da produção das terras afetadas por esta lei se
destinará ao abastecimento de órfãos e viúvas de combatentes revolucionários e ao
abastecimento das forças revolucionárias.
Décimo – O objetivo da produção em coletivo é satisfazer primeiramente as necessidades
do povo, formar nos beneficiados a consciência coletiva de trabalho e beneficio, e criar
unidades de produção, defesa e ajuda mutua no campo mexicano. Quando em uma
região não se produza algum bem será realizadas trocas em condições de justiça e
igualdade com outra região onde se produza. Os excedentes de produção poderão ser
exportados a outros países se não houver demanda nacional para o produto.
Décimo primeiro – As grandes empresas agrícolas serão expropriadas e passarão à mãos
do povo mexicano, e serão administradas em coletivo pelos mesmos trabalhadores. A
maquinaria das lavouras, arreios, sementes, etc. que se encontrem ociosos nas fábricas
e agronegócios ou outros lugares, serão distribuídos entre os coletivos rurais, afim de
fazer produzir a terra extensivamente e começar a erradicar a fome do povo.
Décimo segundo – Não se permitirão o monopólio individual de terras e meios de
produção.
Décimo terceiro – Serão preservadas as zonas de florestas virgens e os bosques, e serão
feitos campanhas de reflorestamento nas principais zonas.
Décimo quarto – Os mananciais, rios, lagoas e mares são propriedade coletiva do povo
mexicano e serão cuidados evitando a contaminação e evitando o seu mal uso.
Décimo quinto – Em benefício dos campesinos pobres, sem terra e trabalhadores
agrícolas, além da partilha agrária que esta lei estabelece, serão criados centros de
comercio que comprem a preço justo os produtos que o campesino necessita para uma
vida digna. Serão criados centros de saúde comunitária com todos o progresso da
medicina moderna, com doutores e enfermeiras capacitados e conscientes, e com
medicina gratuita para o povo. Serão criados centro de diversão para que os campesinos
e suas famílias tenham um descanso digno sem botecos nem bordéis. Serão criados
centros de educação e escolas gratuitas onde os campesinos e suas famílias se eduquem
sem importar sua idade, sexo, raça ou filiação política, e aprendam a técnica necessária
para seu desenvolvimento. Serão criados centro de construção de habitações e estradas
com engenheiros, arquitetos e materiais necessários para que os campesinos possam ter
uma habitação digna e bons caminhos para o transporte. Serão criados centros de
serviços para garantir que os campesinos e suas famílias tenham luz elétrica, água
encanada e potável, drenagem, rádio e televisão, além de tudo o necessário para facilitar
o trabalha da casa, estufa, refrigerador, lavadoras, moinho, etc.
Décimo sexto – Não haverá impostos para os campesinos que trabalhem em coletivo,
nem para ajudatários, cooperativas e terras comunais. DESDE O MOMENTO EM QUE SE
EXPIDA ESTA LEI AGRÁRIA REVOLUCIONÁRIA SE DESCONHECE TOTAS AS DÍVIDAS QUER
POR CRÉDITO, IMPOSTO OU EMPRÉSTIMOS, QUE TENHAM OS CAMPESINOS POBRES E
TRABALHADORES AGRÍCOLAS COM O GOVERNO OPRESSOR, COM O ESTRANGEIRO OU
COM OS CAPITALISTAS.
Com este artigo décimo sexto termina essa lei. Existem mais leis, mas não vêm ao caso,
ou coisa. Faz-se notar a falta de perspectiva de modernidade destes transgressores da
gramática e do bom gosto, já que não aparece nenhuma referência ao livre comércio
nem às comodidades agrícolas que, deus salve o senhor Monsanto, o capitalismo traz
felizmente ao mundo. Em fim, parece que nos territórios que os rebeldes chegaram a
controlar se aplicou esta lei e que os finqueros foram expulsos de suas grandes
propriedades e essas terras foram repartidas entre os indígenas que, contam, o primeiro
que fizeram foi desfazer os cercos que protegiam as casa dos fazendeiros.
Contam também que fizeram esse atentado contra a propriedade privada cantando a
lista de mesmo nome, autoria de um tal Daniel Viglietti (o mesmo que foi visto faz umas
horas nesta geografia, acompanhado de gente de muito duvidosa reputação – várias
pessoas presentes cobriram o rosto, o que não deixa duvida de que ocultavam algo).
Segundo rumores, anos depois os levantados criaram suas próprias formas de
autogoverno e formaram o que chamam “comissões agrárias” para vigiar a partilha de
terra e o cumprimento da lei.
O que sabemos é que não são poucas as dificuldades que se tem encontrado e se
encontram, e que os rebeldes resolvem segundo suas próprias faculdades e meios, em
lugar de recorrer a assessores, especialistas e intelectuais que lhes digam o que devem
fazer, como devem e os avaliem o feito e o desfeito.
Existe outro dado, escandaloso como ele é. Segundo fontes confiáveis, que não puderam
ser reveladas porque usavam mascaras, em uma madrugada qualquer, esses homens,
mulheres, crianças e anciãos, descobriram seus rostos e cantaram e bailaram, sempre
com ritmo que não tem catalogação conhecida. Dizem que sabiam que não eram menos
pobres que antes e que apareciam-lhe em cima problemas de todos os tipos, entre eles
o da morte, assim nós não sabemos o motivo, causa ou razão de sua alegria.
Segundo últimas informações, seguem dançando, cantando e rindo há 14 calendários e
que dizem que é porque há outra geografia em suas terras. Isto só demonstra que são
uns ignorantes, porque os mapas e cartas topográficas de INEGI não dão conta de
nenhuma mudança no território desse sudeste estado mexicano de Chiapas.

“A madrugada é a região mais Che Guevara dos sonhos” -Daniel Viglietti

• Primeira pergunta: Há trocas mudanças fundamentais na vida das comunidades


indígenas zapatistas?
• Primeira resposta: Sim.
• Segunda pergunta: Estas mudanças se deram a partir do levante do primeiro de
janeiro de 1994?
• Segunda resposta: Não.
• Terceira pergunta: Quando foi então que se deram?
• Terceira resposta: Quando a terra passou a ser propriedade dos campesinos.
• Quara pergunta: Quer dizer que foi quando a terra passou à mão de quem a
trabalha que se desenvolveram os processos que se podem apreciar agora nos territórios
zapatistas?
• Quarta resposta: Sim. Os avanços no governo, saúde, educação, habitação,
alimentação, participação das mulheres, comercialização, cultura, comunicação e
informação tem como ponto de partida a recuperação dos meios de produção, neste
caso, a terra, os animais e as máquinas que estavam nas mãos dos grandes proprietários.
• Quinta pegunta: Esta lei agraria revolucionária vigorou em todos os territórios em
que os zapatistas afirmam ter controle?
• Quinta resposta: Não. Por suas características próprias na zona de Los Altos e
Norte de Chiapas este processo foi mínimo ou inexistente. Só se deu nas zonas da Selva
Tzeltal, Tzotz Choj e na Selva Fronteiriça. Contudo as mudanças se estenderam a todas as
zonas pelas pontes subterrâneas que unem nossos povos.
• Sexta pergunta: Por que sempre parecem estar contentes, ainda que tenham
erros, problemas e ameaças?
• Sexta resposta: Porque, com a luta, temos recuperado a capacidade de decidir
nosso destino. E isso inclui, entre outras coisas, o direito de nos equivocarmos.
• Sétima pergunta: De onde tiram esses ritmos estranhos que cantam e dançam?
• Sétima resposta: Do coração.
Agradecido e nos vemos na noite.
SubComandante Insurgente Marcos
San Cristobal de Las Casas, Chiapas, México.
Dezembro de 2007.

Referências:

1. Aquele que explora uma “finca”, uma propriedade ou posse. Pode ser traduzido
como posseiros. (Nota do Tradutor)
2. ↑ Dicionário Aurélio Século XXI: “1. pequeno bloco semelhante ao tijolo,
preparado com argila crua, secada ao sol, e que também é feito misturado com palha,
para se tornar mais resistente; tijolo cru”. (N.T.)
3. ↑ Dicionário elmundo.es: Alimento refogado e cozido em salsa junto com
verduras ou batatas (tradução similar). (N.T.)
4. ↑ Diretora do Centro de Investigação Psico-etnológico Cuernavaca, México.
Dedica-se à história da psiquiatria, medicina e da mulher na cultura popular pré-hispânica
e contemporânea do México. Concentra-se na recuperação de práticas tradicionais de
saúde que fortalecem o papel das mulheres e trabalha com grupos de mulheres indígenas
e organizações no México e para além dele. (N.T.)
5. Cheirar o negro - o calendário e a geografia do medo

“Quando parece que nada fica,


ficam os princípios”
Don Durito de A Lacandona

Dizia o Velho Antonio que a liberdade tinha haver também com o ouvido, a palavra e a
observação. Que a liberdade era quando não tivéssemos medo da observação e da
palavra do outro, do diferente. Mas também que não tivéssemos medo de ser observados
e escutados pelos outros. E logo acrescentou que se podia cheirar o medo, e que abaixo
e acima esse medo expelia um odor diferente. Digo mais, que a liberdade não estavam
em um lugar, e sim que havia que fazê-la, contruí-la em coletivo. Que, sobretudo, não se
pode fazer sobre o medo do outro, pois por mais que ele seja diferente, é como nós.

Isto vem ao caso ou à coisa, porque nós pensamos que, mais que a quantidade de pessoas
no movimento, mais que seu impacto midiático ou a contundência de suas ações, mais
que a clareza e o radicalidade de seu programa, o mais importante é a ética desse
movimento. Isso é o que lhe dá coesão interna, o define, lhe dá identidade... e futuro.

Já em outra ocasião falamos, e falaremos, do que são os fundamentos de nossa ética


zapatista. Agora queremos nos referir, brevemente, à não-ética de cima, à ética do medo.

Sobre o medo e, mais especificamente, sobre o medo da transformação, o sistema tem


construído, com especial paciência, um edifício inteiro de razões para não lutar.

Há um “não” para cada um, mais ou menos simples ou complexo segundo o destinado a
usá-lo.
Vamos deixar de lado, por um momento, as condições materiais que permitem e marcam
este que podemos chamar “o império do medo”, uma das características definidoras do
sistema capitalista, e nos concentremos em sua existência, sua divisão e hierarquia.

Suponhamos que um dos medos mais elaborados é o medo do outro, ao diferente, quer
dizer, ao que desconhecemos.

Só farei uma separação, esperando que possam desenvolver-se logo:


O medo de Gênero. Mas não só da mulher ao homem e vice-versa, também o medo da
mulher à mulher e do homem ao homem.
O medo da Geração. Entre os mais velhos, adultos, jovens e meninos e meninas.
O medo do Outro. Contra homossexuais, lésbicas, transsexuais e as outras realidade que,
não é porque as desconheçamos que elas deixam de ter existência.
O medo da Identidade ou da Raça. Entre indígenas, mestiços, nacionais, estrangeiros.
A liberdade que queremos deverá também vencer estes medos.

Aqui foi dito antes, e com razão, que as lutas anti-sistêmicas não devem circunscrever-se
unicamente ao que os ortodoxos chamam de infraestrutura ou base das relações sociais
capitalistas.
O fato de sustentarmos que o núcleo central do domínio capitalista está na propriedade
dos meios de produção, não significa que ignoremos (no duplo sentido de desconhecer
e de não dar importância) os outros espaços de domínio. É claro para nós que as
transformações não devem apenas se focar nas condições materiais. Por isso para nós
não há hierarquia de âmbitos; não sustentamos que a luta pela terra é prioritária sobre a
luta de gênero, nem que esta é mais importante que o reconhecimento e o respeito à Interseccionalidade

diferença.

Pensamos, ao contrário, que todas as ênfases são necessárias e que devemos ser
humildes e reconhecer que não há atualmente organização ou movimento que possa
valorizar todos os aspectos da luta anti-sistêmica, quer dizer, anticapitalista. Este
reconhecimento é a base de nossa Sexta Declaração da Selva Lacandona. Ela parte do
reconhecimento e aceitação da largura de nosso sonho e da estreiteza de nossa força.

Por exemplo, temos assinalado alguns aspectos da luta de gênero no sonho do zapatismo,
e no próximo encontro poderão conhecer isto em primeira mão. Mas nós reconhecemos
que existe avanços mais substanciais em outros coletivos, grupos, organizações e
individu@s que possuem este objetivo.

Pensamos que a própria realidade de nossa existência como EZLN não poucas vezes
apresenta obstáculos e travas que não podem ser resolvidos em nossa lógica interna. Por
isso buscamos e pedimos uma relação eqüitativa com as companheiras e os
companheiros que tem avançado mais que nós na luta de gênero.

Contudo queremos que não confundam ensinar com mandar, nem aprender com
obedecer. Cremos que é possível construir uma relação de respeito onde nossa realidade
avance em transformações profundas neste aspecto e sabemos duas coisas: que não
podemos fazê-lo por nós mesmos, sozinhos; e que necessitamos desta relação com os
movimentos.

Não oferecemos nada em troca, nada de material quero dizer. Tampouco oferecemos
unidade orgânica, nem hierarquia de mando ou obediência em um ou outro sentido.

O que oferecemos é a disposição de conhecer, respeitar e aprender.

O que vocês podem e, creio eu, devem nos dar, terá seu próprio processo de assimilação
e algo novo sairá.

Este novo não será nem um cópia de suas propostas nem uma repetição justificada de
nossa imperfeita realidade (sobretudo nesta da luta de gênero), e sim uma forma nova,
a nossa forma, de assumir esta luta e levá-la adiante.

Isto que falo da luta de gênero, que é onde o EZLN reconhece que temos mais
dificuldades, é válido para todas as lutas e modos que não conhecemos, não abrangemos
ou não conseguimos até então cobrir.
O EZLN é uma organização que tem recusado claramente hegemonizar e homogeneizar
em suas relações com outros grupos, coletivos, organizações, povos e indivíduos,
inclusive com outras realidades organizadas ou não.

Nem sequer no movimento indígena, que é onde está nossa força e nossa primeira
identidade, temos aceitado o papel de vanguarda que represente a totalidade do
movimento indígena no México.

Às nossas carências evidentes na luta das mulheres podem-se agregar lacunas


insuperáveis: os trabalhadores e trabalhadoras da cidade, os movimentos urbanos
populares, os jovens e as jovens, os outros amores, e uma verdadeira contestação da luta
que A Outra Campanha tem revelado em seus percursos e atividades.

O movimento anti-sistêmico que pretendemos levantar no México parte desta premissa


fundamental: tem que ser com o outro, com o diferente que compartilhe as dores e
esperanças, que reconhece no sistema capitalista o responsável de sua situação de
injustiça. E isto, pensamos nós, só é possível com o conhecimento mutuo que se deve ao
respeito.

Por isso a Sexta Declaração e A Outra Campanha no México tem seguido os passos que
até agora se tem dado: uma chamada, uma apresentação onde cada um diz quem era,
onde estava, como veio ao mundo e ao nosso país, o que queria e como pensava fazê-lo.

Neste processo de conhecimento, alguns, algumas, souberam que este não era o seu
lugar, nem seu tempo. Que não eram seu calendário e nem a sua geografia. Puderam
dizer uma ou outra coisa, mas é esta a causa fundamental de sua distância atual.

Não é e nem tem sido o objetivo do EZLN criar um movimento abaixo de sua hegemonia
e homogeneizado com seus tempos, modos e não modos. Queríamos, e queremos, um
movimento amplo, com toda a extensão do de baixo de nosso país, mas com objetivos
claros, diáfanos, definitivos e definitórios: a transformação radical e profunda de nosso
país, quer dizer, a destruição do sistema capitalista.

Não temos mentido, nem antes, nem agora.

Não nos interessam os remendos nem as reformas, simples e sensivelmente porque não
remendam nada e não reformam nem sequer o mais superficial.

Falamos sem rodeios àqueles que nos querem escutar: o que nos interessa é que se
reconheçam nossos direitos, que nos deixem ser o que somos e como somos, em suma,
que nos deixem em paz.

Não nos interessa nem os postos, nem os cargos, nem as estátuas e monumentos, nem
o museus, nem passar para a história, nem prêmios, nem honores, nem homenagens.
O que queremos é poder levantarmos cada manhã sem que o medo esteja na agenda do
dia.

O medo de ser indígena, mulheres, trabalhador@s, homossexuais, lésbicas, jovens,


anciãos, crianças, outras e outros.

Mas pensamos que isto não é possível no sistema atual, no capitalismo.

Temo buscado e temos encontrado pensamentos e experiências diferentes, mas


similares.

Temos sido parte, sobretudo algum@s, do mais formoso exército pedagógico que os céus
e solos mexicanos tem contemplado em toda sua história.

Tem sido, e é, uma honra chamar companheiras e companheiros dos povos,


organizações, grupos, coletivos e individu@s de todos os aspectos da oposição
anticapitalista em nosso país.

Não somos muitos, muitas, é verdade. Mas somos. E nestes tempos de indefinição
convenenciera, este ser é, e será, a peça ou o sonho que sonhamos necessário para
colocar para andar a realidade em seu largo caminho.

Elias Contreras Explica à Magdalena sua muito peculiar versão do amor e essas coisas
Creio que podemos imaginá-lo tudo. Imaginar a conversação, o calendário e a geografia
em que se deu. Imaginar que Magdalena e Elías Contreras, Comissão de Investigação do
EZLN, estão fazendo qualquer coisa. Mas imaginar que, quando ouvimos e escutamos, o
que vemos e escutamos é o seguinte...

Existe uma noite que se precipita sobre a tarde, retirando-a fora do dia e fora do tempo,
estendendo seus negros e suas sombras por todos os recantos, permitindo só algumas
luzes e brilhos.

Tem sido tão rápida esta invasão obscura, que tem surpreendido Elías Contreras e
Magdalena no caminho a voltar do milharal. Já estão próximo do povoado, mas a noite é
tão densa e tão imprevista que as breves luzes que povoam a aldeia, todavia, não estão
claras.

Como se os cocuyos [1], estrelas, lua e lampejos ficaram em outro calendário ou estavam
errados na geografia e não chegaram a tempo da noite que já era dona e senhora nas
montanhas do sudeste mexicano.

Elías Contreras sabe. Conhece, com a força da caminhada, os caminhos que a noite cira
sobre os caminhos do dia. Por isso é que Elías toma a mão de Magdalena, que estava
paralisada com um suspiro de medo quando se via o negro.

Magdalena está nestas terras porque veio ajudar Elías Contreras no combate contra o
mal e ao mau, mas este não é seu lugar. Ela, ou ele, conforme dizem, é cidadão ou cidadã.
E na cidade, ainda mais na cidade onde vivia Magdalena, a noite nunca se completa. Com
tantas luzes pelejando por um espaço, a noite ali apenas é um pretexto para que cada
uma delas, das luzes, se definam.

A mão de Elías tranqüilizou Magdalena. Por uns instantes essa mão é seu único apoio
para a realidade. Quase imediatamente, Elías colocou a mão de Magdalena nas partes
baixas de suas costas, de modo que segurasse no cinto de Elías.

“Não de soltes”, disse Elías.

O medo fez com que Magdalena não conseguisse sussurrar e só pensasse:

“Nem louca”, ou logo, segundo alguns.

Elías saiu do caminho real e seus grandes charcos e lodos, e se adentra por entre os
arvoredos. Devagar caminha Elías, cuidando para que Magdalena não tropece.

No olhar cego de Magdalena aparecem terrores e fantasmas que não são da terra: os
judiciais rodeando-a, pondo um saco malcheiroso em tua cabeça. Os golpes e as
zombarias em si. Não ver, não saber. Os ruídos que vão apagando. A discussão entre eles
sobre o dinheiro que lhes roubam. Os turnos para violá-la/violá-lo. O ruído em si
afastando-se. O desmaio. O cachorro que farejava o sangue das feridas... "Já chegamos
já" – disse a voz de Elías, e Magdalena, contudo, treme ao sentar sobre um tronco.

Em pouco tempo Magdalena se localiza. Elías sabe o que faz. O lugar onde estão tem uma
luz parda que não chega a iluminar, mas sim a definir objetos e distâncias.

Parece que Elías pensa que Magdalena treme por causa do frio, e a envolve com o náilon
que, prevendo as chuvas, leva em sua morraleta[2].

“Onde?”, pergunta Magdalena.

Elías parece saber que o que Magdalena quer saber é a origem dessa luz dispersa e difusa.

“São cogumelos”, diz Elías acendendo um fósforo cuja luz apaga tudo e deixa só sua visão.
“De dia agarram luz, e de noite vão soltando de pouquinho a pouquinho, para que dure,
para que tarde, para que não logo se prevaleça a obscuridade”.

Contestando uma pergunta que não chega, Elías diz:

“Estes não se podem comer, só servem para olhar”.

Não é a voz e sim o cheiro de Elías que vai tranqüilizando Magdalene. Uma mistura de
raiz, ramas, terra, tabaco, suor.
“Aqui vamos esperar um pouco até que a noite apanhe seu passo e deixe de andar
correndo”, disse Elías.

Magdalena, sentada ao seu lado, se agarra a seu braço e repousa sua cabeça sobre o
ombro de Elías.

Algo fica pensando, porque, de pronto, lhe solta de Alías:

“Escuta Elías, tu tem estado com uma mulher?”.

Elías se engasga com o fumo de cigarro e nota que seu corpo se mostra nervoso. Sua voz
é apenas um fio quando responde:

“Err... bom, sim, nas reuniões... e nos trabalhos... e nas festas... chegam as
companheiras... e falamos da luta... e dos trabalhos... e falamos... sim.... nas reuniões...”.

“Não te faças de bobo Elías, tu sabes do que estou falando”, o interrompe Magdalena.

Se houvesse um pouco mais de luz, poderíamos ver que o rosto de Elías é um semáforo:
primeiro aparece a cor vermelha, logo a amarela e agora está adquirindo uma cor verde
lminosa.

“Err... Mmh... Err... Ou seja, o que você está perguntando é se tenho feito amor?”.

Magdalena ri de boa fé ao escutar o modo com que Elías se refere a ter relações sexuais.
“Sim”, disse rindo, “pergunto se já tens feito amor”.

As cores de Elías seguem agora o caminho inverso: do verde ao amarelo e daí ao


vermelho.

“Bem, sim, mas não vulgar, um pouco, ou seja mais ou menos, apenas...”.

A noite é fria, como esta que caminhamos, mas Elías Contreras, Comissão de Investigação
do EZLN, tem já a camisa ensopada de suor. Magdalene está desfrutando do embaraço
de Elías e não faz nada para aliviá-lo.

Ao contrário, alarga seu silencio para que Elías tenha que continuar com a palara...

“Bom, Magdalena, não vou mentir para você. Não me lembro, de repente sim e de repente
não... Mas me lembro que eu li um livro que encontrei e que se chama 'Já pensas no
amor?' e eu vi bem como é isso”.

Magdalena, ainda que não seja nem homem nem mulher, é bem burra (sem ofender aos
que me escutam ou leem), e o nervosismo de Elías lhe faz esquecer os fantasmas que há
uns minutos lhe assediavam, assim o pergunta...
“Assim? E como é isso?”, e se aproxima mais do flanco de Elías.

A cor de Elías já é a do cogumelos fosforescentes que cobre os troncos e as ramas das


proximidades. Mas Elías Contreras é Comissão de Investigação do EZLN, e tem enfrentado
uma multiplicidade de perigos e situações imprevistas, assim que respira fundo enquanto
pensa: “Um cigarro, vou acender um cigarro. Onde deixei os cigarros? Acendo um cigarro
e assim me dá tempo de ajustar meu pensamento, acendo um cigarro. E se não acender
o palito? Pois como diz o Sup, se escangalhar essa senhora Roma, bom, já. E se o palito
não acender?”.

Elías inicia então sua explicação:

“Bem Magdalena, resulta que estão, como quem diz, ele esse-como-se-chama e o outro
tal, e este assim, como que se não está pensando em nada, mas prontamente como que
já pensa algo e pois então, acontece...”

Elías duvida, depois diz:

“Bem, creio que é melhor te explicar de outra forma porque desta você não vai
entender...”

Magdalena tem um sorriso malicioso que a escuridão oculta quando diz:

“Bom”.

Elías começa:

“Bem, pois resulta que há uns que se chamam meios de produção, porque os pichitos não
são logo pichitos, pois que primeiro não produtos. Então os produtos se fazem com meios
de produção. Ah e também com matéria-prima. Daí então resulta que este é o meio de
produção do homem que é assim como algo para produzir produtos, mas não puro nem
só, pois necessita de outro meio de produção e então já se fala em um menino e fazem
acordo para a produção e põem a matéria-prima e produzem o produto e sempre um ou
uma, dizem, se cansa, mas assim como um cansaço bom, contente. Contudo não é assim
que chega um e diz a muchacha 'escuta, vamos fazer uma produção de um produto', e
sim que como quem diz dando volta e vão os dois voltando, voltando e logo fazem um
acordo, e logo tarda uns meses e sai no produto e já colocam nome porque vão estar
dizendo 'olhe o produto, veza ele trazer a água e a lenha', pois é preciso que tenha um
nome, e logo si é produta precisa também por um nome. Daí que o homem é importante,
mas não muito porque só é um, ou uma, dizem, se é zapatista pode escolher logo seu
nome de luta, mas tem que ir pensando bem porque alogo um já não sabe se fica assim.

Aí está por exemplo o Sup, que escolheu o nome de Sup e já escangalhou Roma porque
continuará se chamando Sup. Invés disso eu escolhi Elías, mas nem todos sabem assim
que posso por outro nome. Isto é tudo em minhas palavras e espero que entendeste
Magdalena e se caso não tenha entendido, outro dia te explico porque já é tarde e temos
que chegar ao povoado”.

Magdalena até doendo a barriga estava de tanto rir escutando a explicação de Elías, mas
re compõe e diz:
“Bom, então me explicas outro dia”.
A noite já é mais clara quando Elías Contreras caminha colina abaixo com Magdalena nos
braços. É Elías quem rompe o silêncio:
“Oi Magdalena. Já não tens medo se estás comigo”.

Magdalena apenas se detém para perguntar:

“Como supôs que tive medo?”.

“O medo se cheira”, diz Elías retomando o passo.

“Cheira como o pesadelo, como o mal sonho, como a vergonha e apena”.


Já é madrugada quando chegam à beira do povoado.
Magdalena pergunta: “E como cheira a alegria?”

Elías Contreras, Comissão de Investigação do EZLN, estende o braço como se tendesse a


manhã e diz:

“Assim...”

Uma odor de capim e dignas terras rebeldes se levanta e cheira tanto que quase se pode
ver e tocar e provar e escutar e pensar e sentir. Como se a manhã tivesse se debruçada
ao hoje por um instante só e tivesse mostrado seu tesouro mais fantástico, terrível e
maravilhoso, quer dizer, sua possibilidade.

Agradecido, boa noite. Nos vemos amanhã.

Subcomandante Insurgente Marcos.


San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México.
Conferência vespertina do dia 15 de Dezembro de 2007.

Referência:
1. Inseto parecido com os vagalumes, mas que pela noite aparece com luzes azuladas.
(N.T.)
2. Pequeno saco de pano ou couro utilizado para carregar provisões e ferramentas. (N.T.)
6. Olhar o azul - o calendário e a geografia da memória

“Se para os de cima, nós de baixo somos apenas insetos.


Piquemo-lhes”.
Dom Durito da Lacandona

Temos dito, não poucas vezes, que nosso levante zapatista é conta o esquecimento.
Permitam-me então falar um pouco de memória.
Faz algumas luas, de passagem por uma das zonas do irregular território zapatista, nos
reunimos com um grupo de oficiais insurgentes e Comandantes e Comandantas para ver
alguns problemas.
Um destes assuntos era que há muito anos, à pedido de um dos comandos de zona,
alguns povoados haviam colaborado com algo para levantar uma cooperativa que, como
lhes digo, tempos depois lhes reporiam o que haviam dado.
Certamente, como sempre acontece quando há um erro, nada se acordava com quem
havia feito a solicitação, quanto tinha sido o colaborado, de quem, o que passou com a
cooperativa, et cetera. Na hora de determinar as responsabilidades chegávamos a um
buraco negro.

“O problema” me disse um dos oficiais insurgentes, “é que nós não lembramos como
simplesmente foi. Mas os povoados se recordam e estão virados na porra porque não lhes
prestamos contas”.
“Esse é o problema. Os povoados não esquecem nada”.

O que eu ia dizer, acabou sendo digo por outro oficial:

“Como isso é o problema? Pelo contrário, isso é nossa força. Si os povoados se


esquecessem, não estariam em luta”.
“Isso”, respondeu o primeiro oficial.
Olhei para os Comandantes e Comandantas. Não foi necessário perguntar nada,
prontamente me disseram:
“Queremos que o Comando Geral investigue para que se solucione o problema”.
“Tá bom”, lhes disse.

Dei as indicações para que se buscasse Elías Contreras e lhes passaram todos os dados
que existiam.
Não passaram muitos dias quando chegou o informe de Elías.
Efetivamente, em uma dessas raras temporadas de baixa pressão militar, o comando de
zona, prevendo que isso não duraria muito, propôs que se fizesse uma cooperativa para
ter algo quando voltasse a apertar o cerco. O CCRI dessa zona esteve de acordo e fez esta
proposta a alguns povoados, e este aceitaram. Chegou, efetivamente, o tempo da
pressão militar e tudo o que havia sido acumulado na cooperativa foi enviada ao
povoados que estavam recebendo de volta. Até aí tudo limpo e sem problemas. Mas...
cito parte do informe de Elías Contreras:

“O problema, Sup, é que nem o comando nem os comitês informaram aos povoados.
Então já passaram uns anos, nem muitos nem poucos, e os povoados recordaram disso e
estão pedindo que o Comando Geral veja o que se passou para que não aconteça mais
com os priystas que fazem suas tarugadas e não informam.
Aparte te exponho minha opinião. Bem Sup, claramente te digo como quem diz que
cagaram, porque pode ser que as vezes não tenham boa comida, ou não há roupas, ou
não há remédios, ou mesmo planos, parece que não passam o dia com todos os problemas
que há, mas nunca lhes faltam memória”.
Se repartiram as sanções que cabia a cada um, se fez o informe aos povoados e lhes
deram indicações para que se fizesse um censo de quem e quando havia contribuído e
se estabeleceu que, usando o fundo de guerra, lhes fossem reintegrado o que haviam
dado.
As comissões foram aos povoados em questão. Ao pouco regressaram e informaram.
Tudo se ajustou, menos no povoado de San Tito. É que um companheiro, que já é de
idade, se negou a receber a reposição do que havia retribuído. Lhe explicaram uma e
outra vez que o companheiro se zangou dizendo que não recebia e não. As comissões
passaram três dias com suas noites e nada que o convencessem. Como tinham que
regressar para os outros trabalhos, lhes deixaram com um responsável do povoado o que
correspondia ao companheiro, com a recomendação de que posteriormente o
convencesse.
Perguntei o que tinha ocorrido ao oficial que acompanhou a Comissão. Isto foi o que ele
me disse:

“É o Chompiras. Não sei se você lembra dele, Sup. Foi ele quem ajudou a tirar os feridos
do mercado de Ocosingo, daquela vez em 94. E logo quando da traição de 95 lhes
mataram dois filhos. Foi um dos primeiros a entrar na luta deste lado. Ele relembra muito
o Senhor Ik. Quase não fala. Sempre está calado. Mas, urrr, Sup, quando nós o contamos,
mandou parar. Até nos repreendeu. Bem que nos disseram que ele tem mais memória que
qualquer um de nós. Se mete que nem os mais novos, nos disse (o oficial tem quase 30
anos). Que se por acaso não sabemos, o Senhor Ik explicou que a luta não acaba até que
se acabe e então tudo fique correto. Que ele não vai receber nada porque o deu para a
luta e a luta não terminou”.

“E o que fizeram vocês?”, lhe perguntei enquanto acendia a pipa.

“Nada, que iríamos fazer? Saímos correndo porque nos botou para correr com o facão. E
disse que fossemos nos acusar com você porque não temos memória. Assim disse”.

Em uma das intervenções neste colóquio, na de Don Jorge Alonso, nos foi dito que não
há um só enfoque para analisar a realidade, e sim que existem distintas formas de
aproximar-se dela. Nós queremos aproveitar a dupla proximidade de Jean Robert e de
John Berger, que algo sabem disso, para tomar essa acertada afirmação e falar da
observação.
Ou melhor, de dois grandes olhares e dos privilégios de um sobre o outro.
Me refiro ao olhar aos zapatistas e ao olhar dos zapatistas.
Pode-se atribuir à sua formação, à sua história, à sua lucidez ou a essa estranha
sensibilidade que logo aparece de tanto em tanto em algumas pessoas, mas há uma
enorme diferença na maneira que vêem à nós zapatistas aquelas pessoas que trabalham
diretamente com comunidades indígenas e àquelas outras que nos vêem de longe, quer
dizer, de outra realidade.
Não me refiro à sua forma indulgente ou não, questionadora ou não, definidora ou não,
de nos olhar. E sim a parte nossa que elegem para olhar e a atitude com que a olham.
Andrés Aubry, cuja história nos convoca aqui, tinha sua forma de nos olhar, quer dizer,
elegia uma parte do que somos para vernos. As duas últimas vezes que o vi eu descrevo
aqui:
Em uma, foi em uma reunião privada junto com Jérome Baschet, falamos de livros e
outros absurdos.
Aubry estava desenvolto, eloqüente, como se estivesse com amigos.
Na outra, foi naquela mesa redonda onde lançou uma das críticas mais severas e certeiras
que eu já havia escutado contra a academia, André voltava uma e outra vez até atrás,
fazia suas costas, onde centenas de companheiras e companheiros, autoridades
autônomas, responsáveis por comissões e comandos organizados dos 5 caracóis
escutavam em silêncio.
Andrés estava nervoso, inquieto, como se estivesse diante de severos juízes ou bispos.
Do outro extremo da mesa, o olhei e o entendi.
Há quem se preocupe com as valorações que na academia faz de suas explanações. Aubry
fazia tais explanações sem esta preocupação. Era a valoração das zapatistas, dos
zapatistas, que o preocupava.
Era o mesmo Andrés Aubry que, naquela Marcha da Cor da Terra do calendário de 2001,
não reparava nos galpões que foram sucedendo na geografia que recorremos. Tampouco
às multidões que acudiam aos atos. Olhava, em troca, aos pequenos grupos que, disperso
ao longo de caminhos e estradas, se somavam para nos ver passar ou para mandar uma
saudação.
Porém quando se estava no estica e puxa de conceder ou não a palavra no Congresso da
União à uma mulher indígena sem rosto, Aubry acertou na mosca de um calendário
posterior quando disse, mais ou menos, “a marcha, não esta, a marcha lá, nas serranias,
nos pequenos povoados, de onde não se fala, irá fazer acontecer”.
Andrés Aubry não nos olhava como outras pessoas que trabalham em comunidades ou
com indígenas, quer dizer, como a imagem dos perpétuos evangelizados, como eternos
meninos e meninas sem se importar com os calendários que passem, como as filhas e
filhos que envergonham ou orgulham ao pais, ou como espelhos que, de uma mesma, de
um mesmo, se penduram para tapar a própria vida dos outros, das outras, com quem nos
contactamos, espelhos que se mostram ou não, dependendo do auditório ou da
conjuntura, com uma nova espécie de oportunismo. Aqueles, aquelas que escutam
alguma intervenção certeira ou um análise lúcida de uma companheira e de um
companheiro, e, com cotoveladas cúmplices ao vizinho ou abertamente, dizem: “À essa,
à esse nós nos unimos (assim, em masculino), não aos zapatistas”.
Não, Aubry nos olhava como se os povos indígenas fossem um severo professor ou tutor.
Como se fosse consciente de que a história pudesse virar de cabeça pra baixo a qualquer
momento, ou como se nas comunidades zapatistas já houvesse ocorrido isto, onde foram
os indígenas los evangelizadores, os professores, e frente a isto não valeram os
doutorados no estrangeiro, a alta pilha de livros escritos, o ar descuidosamente europeu
ou propositalmente missionário de vestimenta e atitude.
Ontem foi dito algo aqui que deve ter provocado muito Andrés Aubry para que ele tenha
se remexido na terra que lhe hospeda. Foi dito que nossos povos são ignorantes. Não sei
como ficam aqueles que se reconhecem como alunos desses povos “ignorantes”. Depois
voltarei a esta questão.
Creio que, ao se perguntar, Andrés Aubry via a parte dos povos zapatistas que está em
voga por dentro. Como se este povo tivesse decidido não só voltar ao mundo, mas sim
também voltar à sua percepção e tivesse feito com que sua essência, o que o define,
fosse olhada por dentro, não por fora. Como se as máscaras fossem uma armadura de
múltiplos usos: fortaleza, trincheira, espelho externo e, ao mesmo tempo, cobertura de
algo em gestação.
Em outros e outras também reconhecemos esta forma de nos olhar: Ronco, Don Pablo,
Jorge, Estela, Felipe, Raymundo, Carlos, Eduardo, outro, outra, nada, para mencionar só
alguns. Desculpem se só aparece um nome feminino, mas parece que nesta forma de
olhar não há quota de gênero.
Nem todos os olhares que nos olham são tão levados a reconhecer e a agradecer como
a de Aubry.
Também existem olhares que nos olham como se fossemos, para quem disse em pleno
neoliberalismo, uma possibilidade de luco a curto, médio ou longo prazo. São os olhares
do agiota político, ideológico, científico, moral, jornalístico. Dessas formas de nos olhar
falarei depois.
Todos estes olhares, tão distintos uns dos outros, tão diferentes na forma de eleger a
parte nossa que observam, têm, contudo, algo em comum: são olhares de fora.
Além disso, é preciso dizer, esses olhares têm o privilégio de ser os difundidos e se
conhecem em outras geografias e outros calendários.
Nosso olhar, nosso olhar para eles e para elas, tem o inconveniente (e ao mesmo tempo
a vantagem, mas disso falarei depois) de só ser conhecido por outro de fora se vocês
decidem ou permitem.
Se nosso olhar é de agradecimento, de reconhecimento, de admiração, de respeito, ou
coincide com os que nos olham, então aí sim, que seja difundido, que se faça conhecer,
que se destaque a sabedoria, lucidez, pertinência.
Mas se pelo contrário, se é de crítica e questionamento, não importam as argumentações
e razões que se dê, então aí é preciso calar este olhar, tapá-lo, ocultá-lo.
Então aí se assinala nossa falta de referência, nossa intolerância, nosso radicalismo,
nossos erros.
Bom, não “nossos”, e sim “os erros de Marcos”, “o mal da máscara de Marcos”, “a
intolerância de Marcos”, “o radicalismo de Marcos”.
Em uma das apresentações do livro “Noites de Fogo e Desvelo” uma jornalista me
explicava o feroz repúdio e a reiterada calúnia contra nossa palavra em lugares antes
abertos e tolerantes, dizendo “é que não entendem isso de ser conseqüente”.
Enfim, o que quero assinalar é que nos últimos três anos, é o olhar de vocês sobre nós
que é mais conhecido.
Foram feitas fotos, documentários, gravações, reportagens, entrevistas, crônicas, artigos,
ensaios, teses, livros, conferências, mesas redondas com seus olhares olhando-nos.
Não vou me deter em assinalar detalhes como o fato de algumas pessoas terem escritos
livros inteiros sobre o zapatismo sem ter ido para além de San Cristobal de Las Casas e
algumas se apresentam como se estivessem vivendo em comunidades quando na
realidade viviam nesta fria e soberba Jovel, ou o caso extremo de Carlos Tello Díaz, que
escreveu uma suposta história do EZLN com material proporcionado pelo serviço de
inteligência do governo e que, me permitam dizer, não são nada inteligentes.
Quero, ao contrário, assinalar que seu olhar não só é de fora e não só elege uma forma
de nos olhar (um enfoque, disse Don Jorge), mas também elege olhar só uma parte do
que somos.
Ontem assinalei que nós reconhecemos que não somos capazes (nem o queremos ser)
de abranger todo o espectro do movimento anti-sistêmico no México.
Me parece que seu olhar olhando-nos deveria reconhecer que não é capaz de abranger
tudo o que foi, é, significa e representa nosso movimento.
Não lhes pedimos humildade (ainda que creio que para alguns não cairia mal receber um
curso sobre o tema), e sim honestidade.
O olhar de vocês, cientistas sociais, intelectuais, teóricos, analistas, artistas, é uma janela
para que outas, outros, nos olhem.
No geral não se tem sido consciente de que essa janela está mostrando apenas uma
pequena parte da grande casa do zapatismo, assim que não cairia mal advertir aqueles
que nos olham através de seus olhares.
Há um ano, uma companheira citadina fazia seu próprio reconto da história do zapatismo
desde o primeiro de janeiro de 1994 e dizia: “se tem estado em tudo!”.
Não era correto. Por sua conta esqueceu de compreender que só apareciam os fatos e
atividades externas públicas do zapatismo.
Não estavam coisas e fatos que não têm palavras para ser descritas: a resistência
cotidiana e heróica nas comunidades, a teimosia paciente das tropas insurgentes, o
silencioso ir e vir por nossos território das autoridades organizativas. O zapatismo, então,
sustenta e dá sentido ao que se olha, escuta, toca, degusta, fala, pensa e sente.
Sei que minha posição como Sup me dá um lugar privilegiado para olhar olhando-nos.
Mas lhes sou sincero: não consigo abranger todos os detalhes e, como nos confessou
Ronco esta manhã, não deixo de me assombrar e de me maravilhar, uma e outra vez,
com o pouco que consegue abranger um coração maltratado, cheio de remendos e de
cicatrizes que, afortunadamente, não cessam.
Então vos digo com esse coração na mão: no zapatismo, o olhar não é um privilégio
individual e sim coletivo.
E acrescento que em nosso olhar olhando-os, temos sempre nos esforçado em tentar
entendê-los, não de jugá-los.

“Por quê?” é a pergunta que anda em nosso olhar quando olhamos vocês.
“Por quê dizem isso, por quê pensam assim, por quê fazem assim?”.

A verdade é que quase sempre nossas perguntas acabam sem respostas, mas vá e passe,
em altos e baixos. Depois de tudo há a segurança de que conosco sempre acabam
existindo mais perguntas e dúvidas do que certezas e respostas.
É o que vos digo, mas não para pedir reciprocidade. Creiam-me, na maioria dos casos,
além de respeito, lhes devemos gratidão.
É só para que olhem tudo o que inclui e exclui em um olhar.
Se erro aí me corrigem, mas creio que foi Paul Eluard quem disse que “Le monde est blue
commme une orange”, que meu francês de san papier traduz como “o mundo é azul
como um laranja”.
Tem se visto também algumas dessas fotos tiradas do mundo a partir do espaço. A terra
se olha, efetivamente, azul, mas bem poderia ser uma laranja.
Às vezes, nas madrugadas que me encontram perambulando sem repouso possível, me
pego trepado em uma espiral de fumaça e, lá de muito alto, nos olho.
Creiam-me que o que se consegue ver é tão belo que dói olhar.
Não digo que seja perfeito, nem acabado, nem que careça de vãos, irregularidades,
feridas por fechar, injustiças por remediar, espaços por liberar.
Mas é algo que se move.
Como se todo o mal que somos e carregamos se mesclasse com o bom que podemos ser
e o mundo inteiro redesenhasse sua geografia, e seu tempo se enchesse com outo
calendário.
Vá, como se outro mundo fosse possível.
Venho depois aqui e escuto, então, que alguém disse que nossos povos são ignorantes.
Eu encho de tabaco a pipa, a acendo e então digo:
Caralho! Que honra poder ser aluno de tanta e tão rica ignorância!
Gracias de nuez.

Subcomandate Insurgente Marcos.


San Cristobal de Las Casas, Chiapas, México.
Dezembro de 2007.
7. Sentir o vermelho - o calendário e a geografia da guerra

“A diferença entre o irremediável e o necessário é que para o primeiro


não é preciso se preparar. E só a preparação torna possível o segundo”.
Don Durito da Lacandona

Antes, não só neste colóquio, mas também nele, temos assinalado o caráter belicista do
capitalismo.
Agora queremos acrescentar que a guerra não é só uma forma, é certamente a essência
pela qual o Capitalismo se impõe e implanta na periferia.
É também um negócio em si mesmo. Uma forma de obter lucros.
Paradoxalmente, é na paz onde é mais difícil fazer negócios. E digo “paradoxalmente”
porque se supõe que o capital necessita de paz e tranqüilidade para desenvolver-se.
Talvez isso tenha sido antes, não sei, o que vemos é que agora ele necessita da guerra.
Por isto a paz é anticapitalista.
Se fala pouco dele, ainda menos no México, mas o peso econômico da industria militar e
seus gigantescos lucros (que obtêm cada vez que o supostamente agonizante poder
norte-americano decide “salvar” o mundo democrático de uma ameaça
fundamentalista... que não seja a sua, é claro), não são nada desprezíveis.
Nos aspectos teóricos, tal como, conforme nosso entender, assinalou faz umas horas Jean
Robert, é necessário estar questionando “os solos” sobre os quais se põem em pé na
terra um planejamento científico. Pensamos que o conceito de “guerra” dos analistas
teóricos anti-sistêmicos pode ajudar a solidificar solos ainda pantanosos.
Contudo não se trata apenas de uma questão teórica. Robert Fisk, por um lado, e Naomí
Klein, por outro, contribuem enormemente para tirar o véu que ocultava a encenação da
guerra no Iraque. Não de um escritório ou afrente de um monitor que administra a
informação dos grandes monopólios midiáticos, e sim se dirigindo pessoalmente ao lugar
dos fatos, ambos chegam às mesmas conclusões.
Mais ou menos nos dizem: “Vá! Acontece que não se está libertando o Iraque da tirania
de Hussein, e sim, simples e sensivelmente, está se fazendo negócios. E, inclusive, o
aparente fracasso da invasão é também um negócio”.
Vou lhes recomendar um livro: É este. “A doutrina do choque. O auge do capitalismo do
desastre”, de Naomi Klein. É um desses livros que vale apena ter em mãos. É ainda um
livro muito perigoso. Seu perigo reside em entender o que se diz.
Quando escrevo isto suponho que Naomi Klein tenha enfocado os eixos centrai do
exposto no seu pensamento, assim que não repetirei. Só assinalo que trata de aspectos
do funcionamento capitalista que são passados por alto ou ignorados por não poucos
teóricos e analistas de esquerda no mundo.
Don Pablo Gonzáles Casanova é outro dos que avança no desmonte das velhas e novas
realidades do capitalismo no México e no mundo, e um olhar generoso no tempo, e
respeitoso na análise de nosso e e vir como zapatistas.
Temos aqui dois dos representantes de duas gerações de analistas do sistema capitalista,
sérios, sérias, brilhantes, e além disso com algo que se esquece no meio teórico e
intelectual: são pedagógicos, ou seja, se fazem entender.
Don Pablo Congález Casanova é um homem sábio. É o único intelectual em que os
companheiros e companheiras falam com confiança. Eu, que tenho mais de vinte e tantos
anos vivendo com nossos povos, sei o quanto é difícil ter sua confiança.
Presenteamos Naomi Klein, junto com Don Pablo, com esta muñequita com um caracol.
O caracol em nossos povos é como se convoca as pessoas para o coletivo. Quando os
homens estão nos milharais e as mulheres nos trabalhos, o caracol convoca para se
reunirem em assembléia e é daí acontece o coletivo. Por isso dizemos que ele é o
“chamador dos nossos”.
Nossa admiração e respeito coletivo para Don Pablo, também são pessoais. Eu só posso
dizer que, quando eu crescer, quero ser omo Don Pablo Gonzáles Casanova. Devo
acrescentar ainda que ele é um desses que nos provoca recaídas chovinistas e nos faz
dizer que é uma honra ser mexicano.
Don Pablo, lhe presenteio com este livro de Naomi Klein. Contem novos elementos para
entender novos caminhos que o capitalismo está seguindo. Se eu o presenteio é porque
já tenho outro.
Quero aproveitar a ocasião para comunicar-lhes algo.
Esta é a última vez, ao menos em um bom tempo, que saímos para atividades deste tipo,
me refiro ao colóquio, encontros, mesas redondas, conferências, além de, obviamente,
entrevistas.
Algumas pessoas que têm moderado estas conferências coletivas têm me apresentado
como o porta-voz do EZLN, e hoje de manhã li que alguém se refere a mim, além de porta-
voz, como “ideólogo” do zapatismo. Óra! “Ideólogo”, e isso dói muito?
Observem, o EZLN é um exército. Bem diferente, é verdade, mas é um exército.
E, além da parte que vocês querem ver do Sup (quero dizer, além de suas belas pernas),
como porta-voz, “ideólogo” ou o que seja, creio que já têm idade para saber que o Sup
é, alem disso, o chefe militar do EZLN.
Como há tempo não ocorria, nossas comunidades, nossas companheiras e
companheiros, estão sendo agredidas.
Já havia ocorrido antes, é verdade.
Mas é a primeira vez desde aquela madrugada de janeiro de 1994 que a resposta social,
nacional e internacional, tem sido insignificante ou nula.
É a primeira vez que estas agressões provém descaradamente de governos de suposta
esquerda, ou que se perfazem com o apoio sem dissimulação da esquerda institucional.
No jornal de hoje se pode ler que o personagem representativos dos fazendeiros
chiapanecos que lhes falei ontem, o senhor Constantino Kanter, acaba de ser nomeado
funcionário no governo perredeista de Juan Sabines , em uma posição onde os recursos
financeiros poderão ser destinados sem problemas para os grupos paramilitares.
Esta é também a primeira vez que encontramos fechados, à Flor e Canto, os espaços onde
as pessoas comuns se inteiravam do que se passava com nosso movimento, com nossas
reflexões e nossos chamados.
E não é só.
Faz uns meses, em ocasião de uma das mesas redondas que participamos na Cidade do
México, uma pessoa dessas que formam filas nas modernas “camisas pardas” do
lopezobradorismo (e que têm como comando pessoas metidas a cretinas e a cagatintas
da estirpe de Jaimes Avillés, do periódico La Jornada), interpelou os zapatistas (estávamos
a Comandanta Miriam, o Comandante Zebedeo e eu) perguntando, com tom petulante
e inquisidor, mais ou menos, por que não deixávamos que a “gente progressista deste
país avançasse na democracia do México”. Assim disse. Nós acabávamos de detalhar uma
série de fatos que fundamentavam nossa distancia do PRD e do lopezobradorismo que,
certamente, a bem vestida senhora não escutou.
Aos argumentos que expomos, os cinco ou seis personagens enviados responderam
primeiro com mentira (que AMLO havia se afastado do governador Sabines e demais
personagens que haviam se alinhado com Felipe Calderón, que a CND era anticapitalista,
e coisas do gênero) e logo com suas palavras de ordem, “é um horror, estar com
obrador”. O Comandante Zebedeo me perguntou depois o que estávamos fazendo ali e
quem era essa gente que nem sequer escutava o que dizíamos.
Uns dias depois, o bichano (com perdão dos gatos) que preside o Partido da Revolução
Democrática, Leonel Cota Montaño, nos acusou de ter provocado, com nossas críticas, a
derrota eleitoral (assim disse) de López Obrador nas eleições presidenciais de 2006.
Antes, praticamente desde o arranque da Sexta Declaração da Selva Lacandona, o
lopezobradorismo ilustrado encontrou aberto os espaços para atacarmos, ao mesmo
tempo nos fechavamos em nós mesmos.
Foi nos dito de tudo ao longo deste calendário. Parafraseando Edmundo Valadez, “a
merda teve permissão” e na chamada intelectualidade progressista e de esquerda se
disseram, desenharam e escreveram coisas que envergonharam a mais reacionária
imprensa de nosso país, mas que na esquerda institucional e em seus satélites foram
festejadas.
Nas palavras de um intelectual de “esquerda”, depois da fraude eleitoral de 2006: “por
essa não vamos perdoar Marcos”.
Estou assinalando um fato simples e contatável. Um fato que previmos inclusive desde
antes de 19 de junho de 2005, momento em que tornamos pública nossa Sexta
Declaração da Selva Lacandona, e para o qual nos preparamos.
Ocorrem também incidentes, sobretudo no último percurso que fizemos para o Encontro
de Povos Indígenas da América, realizado em Vican, Sonora, que nos advertem e nos
previnem.
Sabemos e entendemos que pensem que só ocorram coisas se os meios ou um meio de
comunicação específico a informa. Lhes digo que não é assim, já faz tempo que ocorrem
muitas coisas que são caladas ou ignoradas.
Entendemos que nossas posições sejam recebidas com a mesma abertura e tolerância de
anos.
Entendemos que se apóie e publicite uma visão e uma posição política e que se faça
“casamentos” para deixar de fora qualquer questionamento ou posição dissidente.
Entendemos também que para alguns meios de comunicação só sejamos notícias quando
estamos matando ou morrendo, mas, pelo menos por hora, preferimos que se cessem
suas notícias, e nós trataremos de seguir adiante em consolidar o esforço civil e pacífico
que se chama A Outra Campanha, e, ao mesmo tempo, estaremos preparados para
resistir somente com reações às agressões sofridas por nós, sejam feitas por exército,
polícias ou paramilitares.
Para nós que temos estado em guerra, aprendemos a reconhecer os caminhos pelos
quais ela se prepara e se aproxima.
Os sinais de guerra no horizonte são claros.
A guerra, como o medo, também tem odor.
E agora já se começa a respirar seu fétido odor em nossas terras.
Nas palavras de Naomi Klein, devemos nos preparar para o choque.
Ademais, nestes dois anos que temos estado fora, nossa produção teórica, reflexiva e
analítica tem sido mais abundante que nos 12 anos anteriores. O fato de que não apareça
nos meios públicos habituais não significa que não exista. Aí estão nossas concepções,
caso alguém se interesse em discutí-las, questioná-las ou confrontá-las com o que agora
ocorre no mundo e em nosso país. Talvez se isto somar um pouco, então verão como
advertência o que hoje é realidade.
Enfim, assim está. Talvez agora se entenda o tom como de “aí vos encarrego” que nossas
participações tem tido.
Quando as zapatistas, quando nós zapatistas falamos, pomos adiante o vermelho coração
que bate em coletivo.
Entender o que dizemos, fazemos e fazeremos, é impossível se não consegue sentir nossa
palavra.
Eu sei que os sentimento não têm cabido na teoria, quanto menos na que agora anda ao
tropeços.
Que é muito difícil sentir com a cabeça e pensar com o coração.
Que não são menores as masturbações teóricas que o plantar desta possibilidade criou,
e que as estantes de livrarias e bibliotecas então cheias de tentativas falidas ou ridículas
disto que vos digo.
O sabemos e entendemos.
Mas insistimos que esta concepção é correta, o incorreto é o lugar em que se está
querendo a implantar.
Porque para nós zapatistas, o problema teórico é um problema prático.
Não se trata de promover o pragmatismo ou de voltar às origens do empirismo, e sim de
assinalar claramente que a teorias não só não devem isolar-se da realidade, e sim devem
buscar nela os maços que as vezes são necessários quando se encontra um beco sem
saíta conceitual.
As teorias redondas, completas, acabadas, coerentes, são boas para apresentar exame
profissional ou para ganhar prêmios, mas costumam virar cacos com o primeiro vendaval
de realidade.
Temos escutado nesta mesa luzes e lampejos que, a nós zapatistas, nos dão fôlego e
folga.
Essa mescla explosiva de conhecimento feito de sentimento com o que nos deslumbrou
e comoveu John Berger;
o questionamento lúcido e sem concessões de Jean Robert;
a análise concreta e implacável de Sergio Rodríguez;
a serena clareza das reflexões de Francois Houtart;
a honesta história do que se passou e passará com um movimento que nós não só
respeitamos, mas também admiramos, o do MST, contato pelo companheiro Ricardo
Gebrim;
o pensamento rico e abarcadora de Jorge Alonso;
a entusiasta descrição de Peter Roset;
a brilhante referência que Gilberto Valdez fez das discussões teóricas que se processam
agora na Cuba revolucionária;
as proveitosas provocações teóricas de Gustavo Esteva;
a nobre lucidez de Sylvia Marcos;
os avanços teórico-analíticos de Carlos Aguirre Rojas;
a luz de grande entusiasmo de Immanuel Wallerstein;
e faz uns anos, a sapiência irmã e companheira de Don Pablo, e a inquieta iluminação
sobre o cinismo capitalista de Nami Klein.
Saudamos também as companheiras e companheiros que moderaram as sessões deste
colóquio.
Meu respeito àqueles que trabalharam na tradução das apresentações, e minhas
desculpas sinceras pelos problemas que devem ter provocado os “modos” de falar
zapatista do senhor Coruja, Dezembro, Magdalena e Elías Contreras.
Há, contudo, algo maior que não está no que se vê, porque se vê como se faz.
Me refiro às companheiras e aos companheiros que dizemos vibrantes e luminosos, e,
sobretudo, a todas as jovens e todos os jovens indígenas que estudam e trabalham aqui
no CIDECI com o Doutor Raymundo Sánchez Barraza.
Já que falamos em olhares, creio que o mínimo que podemos fazer é não só ver seu
trabalho (fundamentalmente foram quem tornou possível este colóquio), mas também
vê-los, a eles e a elas.
Agradeço também, e muito especial e carinhosamente a equipe de apoio da Comissão
Sexta do EZLN. Agradeço Julio. Agradeço Roger.
Eu sei que estão estranhando o fato de estar dizendo sito, sendo que ainda falta a
homenagem a Andrés Aubry que será amanhã e a declaração-advinha de seu doutorado.
Para isto, prevendo o dia de amanhã, chegarão minhas chefas e meus chefes do Comitê
Clandestino Revolucionário Indígena da zona Altos, junto com autoridades autônomas e
comissões de trabalha da Junta de Bom Governo de Oventik.
Elas e eles terão então nossa palavra e, como agora pela minha, por sua voz falaremos o
todo que somos.
Como última parte de nossa estendida intervenção neste colóquio, quero explicar o que
queremos assinalar com o título geral, esse “Nem o centro, nem a periferia”.
Nós pensamos que não se trata só de evitar as armadilhas e concepções, teóricas e
analíticas neste caso, que o centro põe e impõe à periferia.
Tampouco se trata de intervir e agora mudar o centro gravitacional para a periferia, para
daí “irradiar” ao centro.
Acreditamos, ao contrário, que essa outra teoria, algumas das quais os traços gerais foi
apresentado aqui, deve romper também com essa lógica de centros e periferia, deve
então ancorar-se em realidades que irrompem, que amergem, e, assim, abrir novos
caminhos.
Se é que este tipo de encontro se repete, creio que estarão de acordo comigo que a
presença de movimentos anti-sistêmicos, como agora o do Movimento dos Sem Terra do
Brasil, são particularmente enriquecedores.
Bem, creio que é tudo.
Ah, antes que me esqueça: ai vos engarrego.
Muchas gracias a todas, a todos.

Subcomandante Insurgente Marcos.


San Critóbal de Las Casas, Chiapas, México.
Dezembro de 2007.

Notas:

• Referente ao Partido da Revolução Democrática (PRD), partido dito de oposição ao PAN,


do atual presidente Felipe Calderón, e ao PRI, que governou o México durante mais de
60 anos. (N.T.)
• Licenciado em Ciências Políticas e Administração Pública ingresado na Universidade
Iberoamericana, governador de Chiapas pelo PRD eleito em 2006, ex-filiado ao PRI e filho
de Juan Sabines Gutiérrez, que foi governador de Chiapas, senador e deputado federal.
(N.T.)
• Sigla usada para referir-se a Andrés Manuel López Obrador (PRD). (N.T.)
• Conferência Nacional Democrática – fundada inicialmente com o apoio zapatista, depois
transformada em instituição política a favor do PRD e do PT, momento no qual o EZLN se
afastou. (N.T.)
• Centro Indígena de Capacitação Integral, em San Cristobal de Las Casas, Chiapas, México.

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