Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Recife
2021
A DOUTRINA DO FIM ÚLTIMO NATURAL DO HOMEM COMO FUNDAMENTO DA
MORAL FAMILIAR:
uma leitura do tomismo neoescolástico
Resumo: O objetivo deste trabalho foi demonstrar as relações entre o fim último natural do homem e as
principais teses da filosofia social a respeito da sociedade doméstica (família). Adotamos como
fundamento teórico a doutrina da Escola tomista neoescolástica. Após a análise interpretativa de alguns
autores dessa Escola, concluímos que, embora o fim último seja o fundamento real da lei natural, as
doutrinas a respeito da sociedade doméstica se fundam principalmente na doutrina a respeito da felicidade
imperfeita possível nesta vida e nas inclinações naturais do homem enquanto substância, animal e
racional.
Palavras-chaves: Neotomismo; Neoescolasticismo; Sociedade Doméstica; Família; Felicidade; Fim.
Abstract: The objective of this article was to demonstrate the relationship between the ultimate end of
man and the main theses of social philosophy on domestic society (family). We adopted as a theoretical
framework the doctrine of the neo-scholastic Thomist school. After an interpretive analysis of some
authors of this school, we concluded that although the ultimate end of man may be the true foundation of
natural law, the doctrines of domestic society are founded principally on the doctrine of imperfect
happiness that is possible in this life and on the natural inclinations of man as substance, animal, and
rational.
Key-words: Neo-Thomism; Neo-scholasticism; Domestic Society; Family; Happiness; End.
Introdução
princípio de finalidade, quer relacionando diretamente com o fim último do homem, quer com
uma finalidade particular derivada daquele.
O princípio geral de finalidade é um princípio evidente por si mesmo da razão que tem
inúmeras consequências tanto em filosofia especulativa como em filosofia moral. Sua
formulação mais correta é “omne agens agit propter finem - todo agente age tendo em vista um
fim” (GARRIGOU-LAGRANGE, 1947, p. 82), porque assim o princípio se mostra ao mesmo
tempo abrangente o suficiente, mas ainda evidente.
O princípio de finalidade é evidente por si mesmo, porque sua verdade aparece com
clareza para qualquer um que compreenda os termos apresentados. Os dois termos usados no
princípio, “agente” e “fim”, se corretamente entendidos, nos levam a compreender claramente a
verdade desse princípio. Vejamos como os explica Garrigou-Lagrange: “[...] todo agente não
produz um efeito qualquer, senão um efeito determinado e proporcionado à sua natureza, mesmo
se, por outra parte, possa produzir um efeito acidental [...] (1947, p. 93 – tradução nossa)1.
Essa explicação traz dois efeitos possíveis que um agente pode causar. Um efeito é
“determinado e proporcionado a sua natureza”. É um efeito determinado, que não muda: os
olhos veem, os ouvidos ouvem, etc. É proporcionado a sua natureza, uma vez que todo efeito
deve ter uma causa proporcionada. O outro efeito é chamado acidental. A característica
principal do acidente é sua raridade, oposta à frequência do efeito próprio (cf. GARDEIL, 1967,
p. 49). Portanto, a expressão “todo agente age” (omens agens agit) deve-se sempre entender
como se referindo ao agente enquanto causa seu efeito próprio, comum ou frequente, e não o
1
“[...] todo agente no produce um efecto qualquiera, sino un efecto determinado y proporcionado a sua naturaleza,
aunque por outra parte pueda producir un efecto accidental [...]” (GARRIGOU-LAGRANGE, 1947, p. 93).
4
considerando enquanto causa um efeito acidental ou raro. Toda a tese depende desta diferença
clara entre os efeitos próprios e os acidentais.
Vejamos agora como Garrigou-Lagrange explica o termo “fim”:
Isso conclui a explicação, mostrando que a tese é analítica e logo verdadeira a priori. Ao
chamar o efeito próprio e proporcionado de fim, fica claro então que o agente não pode agir
senão pela causa própria e nunca pela causa acidental. Se agisse tendo em vista a causa acidental,
o que teríamos é que a causa acidental se tornaria mais frequente que a causa própria, e se
inverteriam os papéis, mantendo a tese verdadeira.
Há ainda outra forma de estabelecer esse princípio. Sendo um princípio por si evidente, é
impossível estabelecer uma demonstração em sentido estrito. Pode-se, entretanto, argumentá-lo
por absurdo. Isto se faz reduzindo-o ao princípio de razão de ser e então ao princípio de não
contradição (cf. GARRIGOU-LAGRANGE, 1947, p. 93). Vejamos como expõe esse argumento
o próprio Santo Tomás:
Se todo agente não tendesse para um determinado efeito, todos os efeitos
ser-lhe-iam indiferentes. Ora, o que se refere a muitas coisas indiferentes, não
opera mais em relação a uma coisa que a outra. Segue-se disto que aquilo que
está indiferente para ambas operações não tem efeito algum, a não ser que seja
determinado por algo para uma só. Logo, todo agente tende para determinado
efeito, que é dito seu fim (TOMÁS DE AQUINO, S. C. G., l. III, c. 2, 2017, p.
354).
Em primeiro lugar, Santo Tomás tira uma conclusão direta da negação da tese: “Se todo
agente não tendesse para um determinado efeito, todos os efeitos ser-lhe-iam indiferentes”. A
indiferença é a falta de relação entre o agente e o efeito anterior à ação. Quando o agente está
ordenado a um fim, tem essa relação com o fim antes de realizar a ação, já que é o fim que o
move a agir. Como, entretanto, se está argumentando por absurdo, Santo Tomás considera como
se daria se os fins fossem indiferentes para o agente.
Continua: “Ora, o que se refere a muitas coisas indiferentes, não opera mais em relação a
uma coisa que a outra”. Percebe-se que um agente ordenado a um fim pode agir em relação ao
fim ao qual está ordenado ou a outro fim qualquer. Se, entretanto, ambos os efeitos fossem-lhe
2
“Este efecto proporcionado al agente se llama rectamente fin; porque es para el agente la perfección a la que
tiende y la razón de ser de su actividad. El fin, en efecto, encierra una realidad última y excelente, que es a lo que
tiende todo agente” (GARRIGOU- LAGRANGE, 1947, p. 93, destaque do autor).
5
indiferentes, não haveria motivo para realizar uma ação que produz um efeito em lugar de uma
ação que produza o outro.
Por esse motivo, afirmou-se que esse argumento reduz o princípio de finalidade ao
princípio de causa eficiente. Pois se não há interesse em, ou ao menos alguma outra relação
qualquer com o fim, não há motivo para agir: “Segue-se disto que aquilo que está indiferente
para ambas operações não tem efeito algum, a não ser que seja determinado por algo para uma
só”.
Enquanto no agente não surja algo que determine para um dado fim, ele não agirá em
relação a nenhum deles. É, por exemplo, o caso de uma pessoa em dúvida, que não realiza ação
alguma enquanto não acha um motivo suficiente para fazer uma e não outra. “Por isso, é
impossível operar”. É aqui que se faz a redução ao princípio de não contradição. Essa conclusão
contradiz a premissa de toda a discussão, que está velada na palavra “agente”. Se for impossível
agir, não há agentes, e não faria sentido afirmar a tese contraditória “há agente que agem sem ter
um fim em vista”. É, então, possível chegar à conclusão: “Logo, todo agente tende para
determinado efeito, que é dito seu fim”.
O princípio acima exposto tem aplicação analógica a todos os agentes. Isso quer dizer
duas coisas: Primeiro, que o princípio aplica-se de fato a todos os agentes, e não só aos homens.
Mas também que não se aplica a todos no mesmo sentido, nem em sentido completamente
distinto, mas em sentidos análogos. Vejamos quais são esses sentidos (cf.
GARRIGOU-LAGRANGE, 1947, p. 84).
O princípio se aplica mesmo aos seres desprovidos de conhecimento. Entre esses,
incluem-se as plantas e os minerais. Agem para um fim apenas executivamente (executive
tantum). Assim, ao seguirem as leis naturais dos corpos, por uma ordem estabelecida de
antemão, colaboram com a finalidade geral do universo.
Os animais também agem por um fim. De fato, pelo conhecimento sensível, os animais
podem conhecer os alimentos, abrigos, etc. que são convenientes à sua natureza antes de
obtê-los. E assim, desejam essas coisas, ordenando-se em direção a elas. Entretanto, fazem-no de
modo meramente material, pois não são capazes de reconhecer nos objetos desejados a razão de
finalidade. Ou seja, não desejam essas coisas enquanto fins.
6
As criaturas inteligentes, como o homem, age sempre para um fim, e é capaz de fazê-lo
formalmente. É assim que o homem conhece um bem enquanto bem, e o deseja justamente
enquanto é um bem, ao menos aparente. E assim dizemos que agem em vista de um fim
formalmente (cf. GARRIGOU-LAGRANGE, 1947, p. 85).
O princípio de finalidade também pode ser aplicado analogicamente a Deus. Deus age
para um fim. Deus quer a sua essência necessariamente, já que a inteligência divina concebe uma
ideia perfeitíssima de Si mesmo, a vontade não poderia deixar de amá-la (cf. GREDT, 1961a, p.
262).
As demais coisas criadas, levantam outra questão. Sendo a criação uma ação divina, deve
ter sido querida por Deus. Mas as criaturas não são a essência divina. Logo, a vontade Divina
deve ter um objeto secundário, que são as criaturas. E quanto a esse objeto secundário, sua
vontade é livre (cf. GREDT, 1961a, p. 262).
Deus, ao criar o mundo, não pode ter agido desejando nada para si. Tem, em Si mesmo,
tudo o que poderia ser desejado. Segue-se que criou o mundo não por indigência, mas por
abundância: por amor da sua própria bondade, deseja que as demais criaturas participem d`Ela,
quer apenas materialmente, como fazem os seres irracionais, quer formalmente, como fazem as
criaturas racionais, isto é, conhecendo-A e amando-A (cf. GREDT, 1961a, p. 263).
Assim, ao criar o mundo, o fim último absoluto não poderia deixar de ser o próprio
Deus. Ele não poderia submeter-se a outra coisa. Pois, se a ação de Deus é a sua própria essência,
segue-se que Ele também não poderia subordinar a sua ação a outra coisa, como um fim distinto
d`Ele mesmo. Deus cria o mundo para sua glória extrínseca. A melhor expressão disso é dizer
que a finalidade da criação é “Deus glorificado pelas criaturas” (MARÍN, 1961, p. 349-350 –
tradução nossa)3. Essa glorificação consiste formalmente em que as criaturas racionais conheçam
e amem a Deus, com amor de benevolência e de concupiscência (cf. GREDT, 1961a, p. 264).
3
“Dios glorificado por las criaturas” (MARÍN, 1961, p. 349-350).
7
demonstração, mostrar que a espécie humana tem um único fim último natural. Para tal
demonstração, seguiremos Sinibaldi (1916).
A primeira tese que quer provar é que "os atos humanos tendem sempre para um fim"
(SINIBALDI, 1916, p. 558). Por atos humanos entende-se aqui aqueles atos que procedem da
sua natureza racional, isto é, da vontade e da inteligência. Como se demonstra na antropologia, a
vontade tem por objeto próprio o bem, e como objeto necessário o bem em comum (cf. TOMÁS
DE AQUINO, S. Th. I-IIae q. 5, a. 8, res.; q. 10, a. 4, res., 2016a, p. 70 e 98). Ora, mas fim e
bem, como dissemos, são a mesma coisa. Fica, então, claro, que a vontade humana sempre quer
um fim. Essa tese não é nada mais que uma aplicação ao homem e à sua vontade do princípio
geral de finalidade que já expusemos.
Continua o autor. O fim que o homem deseja ou se ordena a outro (fim próximo) ou não
se ordena e deseja-se por si mesmo (fim último). Como não se pode proceder ao infinito nessa
ordem de fins, deve-se ter sempre em vista um fim último ao agir. Esse fim último, entretanto,
pode ser considerado subjetivamente ou objetivamente. Subjetivamente, cada homem pode
escolher um. Como veremos, alguns o põe no prazer, outros nas riquezas etc. Mas objetivamente,
deve ser um só para todos os homens. Porque esse fim deve saciar totalmente as tendências do
homem, de tal modo que ele não busque nada mais fora dele. Se, além dele, fosse necessária
qualquer outra coisa, o fim último objetivo estaria na composição entre ambos os fins. Ora, mas
sendo as tendência algo comum da natureza humana, segue-se que aquilo que satisfaz essas
tendências deve ser o mesmo para todos os homens (cf. SINIBALDI, 1916, p. 559). Omitimos,
ao nos referirmos a esse fim, que é objetivo.
Em conclusão, o autor demonstra que esse fim último natural do homem deve existir
realmente. A razão disso é que não pode haver uma tendência natural sem correspondência.
Sinibaldi demonstra-no afirmando que Deus não nos daria uma tendência insaciável. Mas,
conforme Garrigou-Lagrange (1947, p. 201 et seq.), podemos demonstrar o princípio de
finalidade de modo a priori, e dele derivar como corolário de que um desejo natural não pode
ser vão, porque se assim o fosse todo a ação humana ficaria sem razão de ser. Assim, a tese
serviria, ao contrário, mais bem para demonstrar a existência de Deus, sem necessidade de
pressupô-la. Por qualquer caminho que se tome, chegar-se-á à mesma conclusão: todos os
homens têm um único fim último natural objetivo.
Essa tese é explicitamente defendida por Gredt: “a regra suprema da moralidade dos
atos humanos é o fim último do homem” (GREDT, 1961a, p. 399)4. Com “regra suprema da
moralidade”, quer se indicar aquilo por ordem a que um ato humano se diz moralmente bom ou
mau. Para prová-lo, o autor utiliza do seguinte argumento:
A primeira etapa do argumento estabelece sob qual aspecto um ato humano pode ser bom
ou mau: “Porque um ato humano é dito moralmente bom ou mau enquanto é humano”. E diz-se
que só pode ser bom ou mau enquanto é propriamente humano. Cabe aqui estabelecer ainda
melhor a diferença, que já citamos, entre atos humanos e atos do homem. Atos do homem são
quaisquer que procedam do homem. Atos humanos são unicamente aqueles atos procedentes do
homem por ser humano. E não simplesmente materialmente, mas segundo o modo. Assim,
comer é um ato do homem, pois procede do homem, mas não é ato humano pois não diz respeito
unicamente ao ser humano, mas é comum aos animais, por exemplo. Já rir é um ato próprio do
homem, mas só materialmente. Quanto ao modo, é ainda um ato animal, o que se percebe pelo
fato de que os animais poderiam também rir, e isso não implicaria qualquer natureza racional
neles. Atos humanos são unicamente os atos deliberados, porque procedem da vontade racional
(cf. GREDT, 1961a, p. 341). Assim, os atos são ditos moralmente bons ou maus enquanto são
humanos.
Em seguida, o autor substitui a expressão enquanto é humano por enquanto é ordenado a
um fim último: “Um ato humano enquanto é humano, entretanto, é um ato enquanto é dirigido
para um fim último”, pois é pelo fato de derivar da vontade racional que um ato é humano e é
ordenado ao fim último, como já demonstramos. Assim, se conclui que um ato humano é dito
moralmente bom ou mau conforme sua relação ao fim último: são bons os atos que a ele se
ordenam, e maus os que dele afastam.
4
“Suprema regula moralitatis actus humani est finis ultimus hominis” (GREDT, 1961a, p. 399).
5
“Nam bonus et malus moraliter dicitur actus humanus, ut humanus est. Actus autem humanus, ut humanus, est
actus, ut est propter finem ultimum positus. Et dicitur actus humanus etiam ultimo moraliter bonus et malus
propter finem ultimum, quia ultimus finis, eo ipso quod est ultimus, non habet aliquid ultra se, ex quo repeti possit
bonitas” (GREDT, 1961a, p. 399).
9
Em que consiste o bem universal ou fim último do homem? Para responder essa questão,
deve-se antes distinguir o fim objetivo e o fim formal. Essa distinção difere da distinção entre
fim objetivo e subjetivo. É o fim objetivo o bem cuja posse dará a plena felicidade ao homem. O
fim formal é a própria posse desse bem (cf. GONZÁLEZ, 1876a, p. 395). Determinemos qual o
fim objetivo do homem, como o objeto que, uma vez possuído, pode satisfazer plenamente às
faculdades do homem. Esse objeto não é senão Deus, porque esse é o único bem infinito.
Apresentamos um esquema da demonstração, que seguirá quase passo a passo a exposição de
Marín (1996, p. 31 et seq.), com pequenas adaptações necessárias devido ao contexto teológico
da obra.
Para que algo seja o fim objetivo do homem deve ter quatro condições: a) não seja
ordenado a outro fim, b) exclua todo mal, c) que satisfaça todas as aspirações do homem, d) que
não se possa perder.
Os bens podem ser: (i) um bem incriado e infinito, Deus, ou bens finitos. Os bens finitos
são ou (ii) tomados todos coletivamente ou tomados parcialmente. Parcialmente, são ou externos
ou internos. Os externos são (iii) ou corporais, que são as riquezas, ou espirituais, entre os quais
estão os bens (iv) externos espirituais pessoais, (v) a honra, ou sociais, (vi) a fama e a glória, ou
mistos, (vii) o poder. Os internos são ou corporais, (viii) a saúde, ou mistos de corporal e animal,
(ix) os prazeres, ou espirituais, (x) a ciência e (xi) a virtude.
Temos então que:
1. O bem incriado e infinito, Deus, é, como queremos provar, o fim último do homem,
pois:
a) Não é, por Ele mesmo, ordenado a nenhuma outra coisa.
b) Não contém em si nenhum mal, já que é o bem perfeitíssimo.
c) Satisfaz as aspirações do homem de conhecer toda a verdade, pois Ele é a
verdade e fonte de toda a verdade, e de amar todo o bem, por ser Amável em si
mesmo e infinito.
d) Por fim, se a inteligência, na alma separada, conhecesse a Deus como fim
10
Uma vez determinado o fim objetivo - Deus, devemos determinar também o fim formal.
11
O fim formal deve ser a última perfeição da natureza humana. Sabemos, entretanto, que a última
perfeição de um ente é a operação (cf. GREDT, 1961a, p. 31, n. 640, 1, b). Logo, o fim formal
deve ser uma operação pela qual o homem possua o fim objetivo, que é Deus. Ora, sendo Deus
um ente espiritual, só podem possuí-lo as operações das potências espirituais: inteligência e
vontade. Entretanto, à vontade cabe, na doutrina tomista, escolher os meios para chegar ao fim e,
uma vez alcançado, deleitar-se nele. Mas não possuí-lo. Por isso, o fim formal é essencial, única
e radicalmente a operação do intelecto que, conhecendo, possui a Deus (cf. GREDT, 1961a, p.
359, n. 900). Entretanto, não se pode dizer que o fim formal consista única e absolutamente na
operação do intelecto, pois requer ainda a retidão da vontade, que não se segue necessariamente
à visão mediada de Deus (cf. GREDT, 1961a, p. 361, n. 903, 1).
A doutrina tomista afirma que, embora o fim último natural do homem seja o
conhecimento de Deus através da razão natural e o amor natural a Deus, este fim não pode ser
atingido perfeitamente senão quando nossa alma estiver separada do corpo (cf. GREDT, 1961a,
p. 363). Em primeiro lugar, temos que sofrer nesta vida muitos males, incompatíveis com a
perfeita felicidade (cf. SINIBALDI, 1916, p. 392). Mais que isso: o conhecimento imediato de
Deus e das demais substâncias separadas não pertence ao objeto formal próprio da inteligência
humana, e logo não o temos nesta vida. Após a morte, com a subsistência da alma separada do
corpo, passa a conhecer imediatamente a si mesma, às demais substâncias separadas, e a Deus
(cf. GREDT, 1961b, p. 487, n. 569, 2).
Afirma-se ainda a existência de uma danação natural como punição dos pecadores na
vida futura. Exige-a a justiça, pois a pena dos pecadores nesta vida não é proporcional à culpa,
como vê-se pela experiência. Além disso, tanto a felicidade perfeita quanto a danação
comportam diferentes graus, de acordo com as disposições boas ou más, melhores ou piores, que
ficaram na alma após a presente vida. Tudo isso deriva-se do fato que, no momento da morte, as
disposições da alma em relação ao fim último se tornam imutáveis, e daí segue-se, aos que
aderiram ao fim último, sua consecução eterna, aos que não, a sua perdição eterna (cf. GREDT,
1961a, p. 426 et seq.).
Ora, se não se pode atingir nesta vida a felicidade perfeita, qual deve ser o fim próximo
do homem nesta vida? A filosofia tomista neoescolástica responde afirmando que devemos nos
12
dispor, nesta vida, de tal modo a alcançarmos a felicidade na vida futura. E essa disposição
comporta uma certa participação na felicidade futura, e pode ser, portanto, chamada de felicidade
imperfeita possível nesta vida. Acrescenta-se, a essa participação, a esperança de alcançar a
felicidade perfeita. Pois aquele que está bem disposto, pode corretamente esperar obtê-la. E essa
esperança é como um gozo adiantado da felicidade vindoura. Vejamos cada um desses pontos.
Em primeiro lugar, devemos estabelecer se é possível nos dispormos para alcançar a
felicidade perfeita na vida futura. A doutrina a respeito da inteligência estabelece que, uma vez
separada pela morte a alma do corpo, aquele poderá atingir uma cognição superior a que é
possível nesta vida. Ora, mas como o imperfeito deve-se ordenar ao perfeito, segue-se essa vida
deve ordenar-se para a vida futura. Mas a nossa natureza inclui o corpo, sendo assim deve-se
concluir que o corpo é um instrumento dado à alma pelo qual ela possa atingir o seu fim último.
Conclui-se que a presente vida e até as próprias operações do corpo podem nos dispor para a
vida futura. Pois, sem isso, a presente vida corporal careceria de razão suficiente (cf. GREDT,
1961b, p. 488; SINIBALDI, 1916, p. 565).
Dessa tese segue-se, naturalmente, que o homem bem disposto pode ter esperança de
alcançar a felicidade perfeita. Porquanto “toda a perfeição do meio consiste na aptidão que tem
para levar à consecução do fim” (SINIBALDI, 1916, p. 565). A esse argumento opõem-se duas
teses diferentes sobre a relação entre a presente vida e a futura: (a) que conseguiremos a
felicidade na vida futura independente da nossa disposição para ela na vida presente e (b) que
não conseguiremos atingir a felicidade futura apesar da nossa disposição para ela na vida
presente. Ambas opõem-se ao princípio anunciado e devem ser rejeitadas por esse mesmo
motivo. Qual seja, em ambos a vida presente careceria de sentido. E daí conclui-se que o homem
pode ter já uma esperança de alcançar a felicidade perfeita, o que constitui já poderia ser
chamada de uma certa felicidade imperfeita (cf. TOMÁS DE AQUINO,S. Th. I-IIæ q. 5, a. 3, ad.
1, 2016a, p. 65).
Qual é, então, essa correta disposição para a vida futura? Gredt (cf. 1961a, p. 348 e 365)
nos explica que tudo o que há no homem nos foi dado em ordem ao fim último, já que essa é a
finalidade da natureza humana inteira. Segue-se que a disposição para a vida futura deve ser a
disposição de todos os elementos do homem. Em outras palavras, deve-se ordenar para Deus
com as potências superiores da alma, a inteligência e a vontade. E isso se faz do seguinte modo.
A inteligência foi-nos dada para conhecer o fim e assim poder ordenar todas as demais
coisas em direção a ele. Por tanto, o fim próximo do homem consiste no conhecimento de Deus
13
A lei foi definida por Santo Tomás como “ordenação racional ao bem comum
promulgada por aquele que governa a comunidade” (TOMÁS DE AQUINO, S. Th. I-IIæ q. 90 a.
14
Nesta última parte do nosso trabalho, queremos deduzir dos princípios expostos as
principais doutrinas filosóficas da Escola tomista neoescolástica a respeito da sociedade
doméstica. A sociedade doméstica é o que comumente chamamos família. A finalidade da
sociedade doméstica é a conservação da vida, que se dá quer pela ministração dos bens
exteriores, quer pela conservação da espécie, ou seja, a geração e educação da prole. Por causa
disso, ela é composta por três sociedades simples: a conjugal, que visa a geração e educação da
prole, a parental, que visa a educação da prole, e a heril, que visa à ministração dos bens
exteriores (cf. SINIBALDI, 1916, p. 739). Vejamos cada um desses componentes. A sociedade
15
O que é, então, sociedade? Define-se “sociedade é a união moral de muitos a fim de agir
para o bem comum” (GREDT, 1961a, p. 459)6. Concorda também Sinibaldi (1916, p. 20), ao
dizer que “sociedade é a união de duas ou mais pessoas, que, pelos seus atos, cooperam para um
fim comum”. Este último autor nos apresenta detalhadamente os principais conceitos e teses a
respeito da sociedade de que precisamos, e seguiremos aqui sua explanação.
Inicia por determinar que dois elementos constituem a essência da sociedade. O primeiro
é a pluralidade de pessoas, porquanto uma única pessoa não se diz sociedade. O segundo é a
união. Essa união deve ser moral, pois pouco importa para o conceito de sociedade que os sócios
coabitem (sociedade conjugal) ou estejam muito espalhados (um grande país). Importa sim, que
todos queiram os mesmos fins e cooperem para alcançá-los juntos, e por isso se diz união moral,
pois é da inteligência e da vontade (cf. SINIBALDI, 1916, p. 728 e 729).
Essa união é a forma da sociedade, porque é ele que faz da simples pluralidade uma
sociedade. Essa união é sempre em vista de um fim, já que não bastaria uma união física, como
dissemos. Se é assim, pode-se aplicar ao caso um corolário do princípio de distinção entre o ato e
a potência que afirma ser a potência e os hábitos especificados pelo seu objeto formal (cf.
GARRIGOU-LAGRANGE, 1925). Assim também, a união, que é a forma da sociedade, é uma
tendência a um fim, e por isso conclui-se que as sociedades se especificam pela sua finalidade
(cf. SINIBALDI, 1916, p. 731).
É também a finalidade que determina os direitos e deveres dentro da sociedade. Pois se
os homens formam a sociedade para alcançar o fim, o mesmo fato da sociedade dá a todos o
direito de alcançar esse fim. Ora, mas quem tem direito ao fim tem direito aos meios. Os direitos
e os deveres da sociedade são os meios pelos quais aquela sociedade alcança o seu fim. Logo, a
6
“societas est unio moralis plurium ad agendum pro bono communi” (GREDT, 1961a, p. 459).
16
finalidade é quem determina os direitos e deveres dentro da sociedade (cf. SINIBALDI, 1916, p.
732).
Por fim, deve-se estabelecer o princípio da autoridade. Não é suficiente haver um fim
comum, é necessário que todos convenham nos meios a serem empregados. Porque os mesmos
meios que levam a um fim podem inclusive anular suas forças, se empregam-se indistintamente.
Sendo assim, deve existir um direito pertencente à sociedade de obrigar os seus membros a
cooperarem com o seu fim por tais meios. E esta é a definição de autoridade, considerada em si
mesma. Essa autoridade deve concretizar-se numa pessoa física ou moral (corpo) que a exerça
convenientemente (cf. SINIBALDI, 1916, p. 731; GREDT, 1961a, p. 459 e 475).
Estabelecidos esses princípios, queremos também estabelecer algumas distinções.
Novamente, seguimos aqui Sinibaldi (cf. 1916, p. 730). Uma sociedade pode ser universal, se
abrange todos os homens, ou particular, se abrange só uma parte. Entre as particulares, podemos
falar de sociedades naturais e artificiais, que também se dizem sociedades necessárias ou
voluntárias. São naturais aquelas que derivam da própria lei natural, e chamam-se também
necessárias porque a lei as exige para o bem comum. São artificiais todas as demais, criadas
pelos homens, que delas dispõem livremente. As sociedades podem ainda ser completas ou
incompletas. São completas as que procuram “um bem completo ou total no seu gênero”
(SINIBALDI, 1916, p. 733). As demais são incompletas. Por fim, uma sociedade pode ser
perfeita, se tem todos os meios para atingir seu fim, ou imperfeita se não o tem. Toda sociedade
imperfeita deve-se subordinar à uma sociedade perfeita (cf. SINIBALDI, 1916, p. 733).
Existem sociedades naturais ou necessárias? Muitos filósofos negaram essa
possibilidade, afirmando serem todas as sociedades voluntárias. A tese tradicional no tomismo
neoescolástico é que o homem é naturalmente animal social (cf. GREDT, 1961a, p. 459). Isso
porque o homem está ordenado, pela lei natural, ao fim último imperfeito dessa vida, como já
dissemos. Mas, só o pode atingir mediante a cooperação com outros homens. Se é assim, devem
haver sociedades estabelecidas pela própria lei natural para atingir essa felicidade imperfeita. São
duas essas sociedades: a sociedade doméstica e a sociedade civil. Aqui, tratamos exclusivamente
da primeira.
7
“Societas coniugalis seu matrimonium, si formaliter sumitur, est unio legitima viri ac mulieris perpetua et
exclusiva, ex mutuo ipsorum consensu orta, ad prolem procreandam et educandam ordinata” (GREDT, 1961a, p.
462).
8
“La unión perpetua del varón y de la mujer para la procreación de hijos, que lleva consigo el amor mutuo y la
comunicación perfecta de vida” (GONZÁLEZ, 1876b, p. 506)
18
finalidade primária, mas também para a conservação do indivíduo, e por isso vem a finalidade
secundária. É assim que a família, além de cuidar da geração e educação da prole, pode também
buscar o bem privado dos indivíduos, ficando a cargo do Estado apenas o bem público (cf.
GREDT, 1961a, p. 490). Mas, essa finalidade secundária é natural e necessariamente
pertencente à mesma sociedade que tem por fim a geração e educação da prole? A resposta
afirmativa vem, nessa tradição, desde Aristóteles:
A amizade entre marido e mulher parece existir por natureza, pois a espécie
humana tende naturalmente a constituir casais, mais até do que a constituir
cidades, visto que a família é anterior à cidade e mais necessária que esta, e a
reprodução é comum ao homem e aos animais. Entre os outros animais a
união se estende apenas até esse ponto, porém, os seres humanos vivem juntos
não só para procriarem-se, mas também para os vários propósitos da vida.
Desde o início são divididas funções, e as do homem e as da mulher são
diferentes; assim, eles se ajudam um ao outro fazendo de seus dotes
individuais um patrimônio comum (ARISTÓTELES. Eth. VIII 12, 1162 a 15,
2001b, p. 186).
Nesse trecho, Aristóteles procura estabelecer que existe uma amizade natural entre
marido e mulher, fundada na própria natureza. Ele diz que, se o homem é naturalmente político,
e política é uma forma de amizade, muito mais ele é naturalmente conjugal, pois (a) a sociedade
conjugal é anterior à civil e (b) a sociedade conjugal está fundada no gênero animal, e a civil
somente na diferença específica racional. Esse é o motivo pelo qual a geração e educação da
prole deve ser sempre tida como finalidade primária do matrimônio. Em seguida, ele estabelece
que o homem e a mulher exercem na sociedade funções distintas mas complementares, de tal
forma que a união entre homem e mulher torna-se natural não só para a geração, mas também
por outros motivos.
Santo Tomás comenta isso, concluindo daí que a sociedade conjugal deve estar ordenada
também para conseguir aquilo que seja necessário para a conservação da vida dos membros da
sociedade doméstica, o que se chama caráter econômico, ou, como na definição dada, “para o
auxílio de ambos”. Diz Tomás de Aquino (1969):
9
“Unde patet quod amicitia coniugalis in hominibus non solum est naturalis sicut in aliis animalibus, utpote
ordinata ad opus naturae quod est generatio, sed etiam est oeconomica utpote ordinata ad sufficientiam vitae
domesticae” (Sententia Ethic., lib. 8 l. 12 n. 21).
19
Estabelecemos, até agora, com segurança, que a sociedade conjugal tem ambas as ditas
finalidades e que a sociedade doméstica se ordena a prover os bens privados que sejam
necessários para a manutenção da vida dos seus membros. Além disso, estabelece-se também
que a sociedade doméstica está ordenada à sociedade política, e que, portanto, ela deve colaborar
com o bem comum da sociedade civil. O motivo é que, não sendo a sociedade doméstica capaz
de prover tudo o que é necessário para a felicidade imperfeita nesta vida, como está claro pela
experiência, deve unir-se às demais família na sociedade civil, porque a lei natural requer tudo o
que seja necessário para alcançar essa finalidade (cf. GREDT, 1961a, p. 473).
10
“comunicación recíproca en las obras de la vida, el amor mutuo, la paz doméstica y la tranquilidad”
(GONZÁLEZ, 1876b, p. 510).
20
AQUINO, S. Th. Suppl. q. 64, a. 5, res. 2016b, p. 313; SINIBALDI, 1916, p. 742; GONZÁLEZ,
1876b, p. 511; GREDT, 1961a, p. 464). Essa é a doutrina da hierarquia do matrimônio.
Essa tese levanta algumas dificuldades. São três: (i) por que não poderia ser determinada
por um fato humano? (ii) por que um só e não ambos? (iii) por que o homem e não a mulher?
As duas primeiras dificuldades surgem por comparação com a sociedade civil. Nessa
sociedade, concordam os autores da Escola neotomistas que o sujeito da autoridade é definido
por um fato humano. Concordam também que a autoridade pode ser monárquica, aristocrática ou
democrática, e que nesse último caso o poder está em todos (cf. SINIBALDI, 1916, p. 764).
Aplicadas as mesmas ideias à sociedade conjugal, poder-se-ia imaginar que a autoridade poderia
ser determinada por um fato humano, por exemplo, o acordo entre ambos dar à mulher a
autoridade, ou ainda que a própria natureza determinasse um regime democrático, dando a
ambos a autoridade.
Há, entretanto, uma diferença fundamental que impede que a analogia proceda. É que a
sociedade civil tem elementos por si mesmo iguais. Não há nada na própria natureza das coisas
que faça algum dos homens mais apto para governo que os demais. Logo, é necessário que o
governo seja determinado por um fato humano.
Na sociedade conjugal não ocorre o mesmo. O consenso da Escola, como já dissemos,
estabelece que o homem é por natureza dotado de características que o tornam mais apto para o
governo do que a mulher. Note-se que não é necessário que o homem seja melhor em geral que a
mulher. Basta para o argumento que seja mais apto para o governo. Também não é necessário
que seja mais apto em geral, mas unicamente mais apto para o governo. E ainda não se exige
que, no caso concreto, este homem seja mais apto para o governo do que sua esposa concreta,
porque a lei natural dispõe as coisas conforme são em si e não segundo o que é acidentalmente
(GREDT, 1961a, p. 464)11.
11
“lex naturalis autem attenditur secundum ea, quae sunt per se, non secundo ea, quae sunt per accidens” (GREDT,
1961a, p. 464).
21
Sinibaldi (cf. 1916, p. 745) dá-nos a seguinte definição de sociedade parental: “É a união
entre os pais e os filhos, instituída para a educação dos mesmos filhos”. Procederemos
determinando os seus sujeitos e onde reside a autoridade e, em seguida, sua finalidade. Por fim,
22
Como já declaramos, uma sociedade pode ser natural ou artificial. É natural aquela
sociedade que decorre necessariamente da própria natureza. É assim a sociedade parental, por
dois motivos. O primeiro é a indigência do filho. É um consenso de que as crianças necessitam
não só serem geradas, como alguns animais, mas ainda de muitos e variados cuidados para a sua
perfeição física, e são incapazes de procurarem sozinhos as coisas necessárias para o seu sustento
material. Mais ainda, se considerarmos o perfeito desenvolvimento do seu organismo espiritual,
que necessita das ciências e das virtudes para sua perfeição. Por fim, se considerarmos ainda que
devem ter uma vida conveniente e estão ordenados, pela lei natural, à felicidade imperfeita
possível nesta vida, muito mais necessitam do auxílio de outrem.
À essa indigência junta-se as capacidades da sociedade doméstica. Sendo ela ordenada
justamente a prover às necessidades fundamentais dos seus membros, é natural que as crianças
sejam associadas a alguma família para ali receberem todas essas provisões. Se se acrescenta
ainda a afeição que a própria natureza deu aos pais pelos filhos, que os faz naturalmente
buscar-lhes o bem e o que lhes seja útil, vê-se que os filhos não devem estar em qualquer família,
mas naquela em que foram gerados (cf. SINIBALDI, 1916, p. 749). O mesmo ocorre da parte
dos filhos, que também têm naturalmente afeição por seus pais. Outro motivo temos da parte dos
pais para essa união necessária. É que a educação nada mais é que a continuidade da geração.
Logo, quem gerou fica naturalmente ordenado para continuá-la na educação, e por isso a
sociedade parental entre os pais e filhos biológicos aparece como necessária (cf. PIO XI, 1929;
TOMÁS DE AQUINO, S. Th. II-IIae q. 102 a. 1, 2016c, p. 626).
467).
Em sentido estrito, a educação é o auxílio dado para o desenvolvimento corporal e
espiritual. O desenvolvimento corporal exige o alimento e qualquer outra coisa que seja
necessária para que o corpo atinja a sua perfeição natural. O desenvolvimento espiritual exige a
instrução especulativa e prática. A instrução prática, ou educação moral inclui a educação
religiosa e a civil. Essa instrução dá-se pelas ordens, pela correção e punição. Pois, conforme
Gredt (cf. 1961a, p. 467), não basta instruir o intelecto, é necessário curvar a vontade para que
aja bem. Nesse sentido, a educação cessa quando os filhos estão suficientemente desenvolvidos.
Disso segue-se que a finalidade da educação é a perfeição corporal e espiritual dos filhos.
Entretanto, sabemos que a perfeição de um ser é uma operação a respeito do seu fim último (cf.
GREDT, 1961a, p. 359). Em outras palavras, a perfeição de um indivíduo é o seu fim último
natural. Ora, mas já demonstramos que esse fim só se dará na vida futura. Logo, não é possível
que a educação a alcance diretamente, mas somente de modo indireto. Ou seja, a finalidade da
educação em sentido estrito deve ser uma certa perfeição relativa.
Já tratamos da felicidade imperfeita nesta vida. Poderia essa ser a finalidade da educação?
Se tratarmos a educação em sentido lato, a resposta é afirmativa. Como já dissemos, os pais
procuram, além de alimentar e educar o filho, deixá-lo tudo aquilo que seja desejável para sua
vida conveniente e felicidade imperfeita. Mas, tratando da educação em sentido estrito,
precisamos distinguir. Naqueles aspectos externos da felicidade imperfeita, a educação em
sentido estrito exerce um papel mediado. Nos aspectos internos, deve exercer papel imediato. É
assim que, se a felicidade imperfeita exige, por exemplo, bens, é papel da educação em sentido
estrito provê-lo dos meios necessários para adquiri-los, conservá-los e bem aplicá-los.
Diante disso, concluímos que a educação em sentido estrito tem, juntamente com sua
finalidade primária, uma série de finalidades secundárias que visam capacitar o educando a viver
a felicidade imperfeita possível nesta vida (cf. MARÍN, 1967, p. 563). De fato, aquela finalidade
primária pode ser inclusive reduzida à secundária, já que a felicidade imperfeita nesta vida
consiste justamente na disposição para a felicidade perfeita e sua esperança (cf. GREDT, 1961a,
p. 364). Assim, concluímos que a finalidade da educação é propriamente a correta disposição do
indivíduo para viver a felicidade imperfeita nesta vida e, por este meio, alcançar o seu fim
24
último. Essa tese corresponde à definição de educação dada pelo Papa Pio XI (1929), ao dizer
que a educação consiste “essencialmente na formação do homem como ele deve ser e portar-se,
nesta vida terrena, em ordem a alcançar o fim sublime para que foi criado”, reduzindo-a para a
hipótese da ordem puramente natural.
Aristóteles afirma que a educação pertence propriamente à sociedade civil. Ele reconhece
que a prática universal do seu tempo era da educação privada, feita na sociedade parental. Mas
insiste que ela deve ser assunto público (cf. ARISTÓTELES, Pol. VIII c. I, 1337a, 2001a, p.
265). Toda a Escola tomista neoescolástica discorda dele, afirmando que a educação dos filhos
pertence em primeiro lugar aos pais, e que esses dever e direito são anteriores à sociedade civil
(cf. GREDT, 1961a, p. 467; SINIBALDI, 1916, p. 746; GONZÁLEZ, 1876b, p. 512).
A razão para isso é a mesma que indicamos ao tratar da própria natureza e finalidade da
educação, a quem foi dada a faculdade de gerar cabe também o direito e o dever de educar. Além
disso, os autores já citados acrescentam que a sociedade doméstica é anterior ao Estado, e,
portanto, nada do que o direito natural estabelece em relação à família pode ser subtraído pelo
Estado. Além disso, a própria natureza dotou os pais de tal amor aos filhos e os filhos de tal
dileção aos pais, que tornam não só conveniente, mas até imprescindível que esses realizem a
tarefa educativa. Se não diretamente, ao menos indiretamente, decidindo a respeito dos meios
que serão aplicados.
González (cf. 1876b, p. 512) vai mais além, e acrescenta que o Estado só pode interferir
na educação dos filhos quando os pais estão manifestamente contrariando a lei natural na sua
educação. A razão é que a finalidade da sociedade civil restringe-se, no seu aspecto positivo, a
procurar apenas os bens que os indivíduos ou sociedade menores não possam conseguir por si
próprios (cf. GREDT, 1961a, p. 490). A esse princípio dá-se o nome de princípio de
subsidiariedade. É claro que a essa doutrina opõem-se manifestamente a escola pública
obrigatória. O regime mais comum atualmente, onde há possibilidade de educação em escolas
privadas, também pode ser contrário à lei natural, caso haja interferência excessiva nos
currículos.
das dúvidas céticas. Assim, temos as três partes da metafísica: crítica, ontologia e teologia
natural.
Entretanto, como já dissemos, nosso corpo necessita de uma razão suficiente para nos
haver sido dado. Ora, essa razão está em que nossa inteligência conhece primeiro as coisas
sensíveis e por meio delas se eleva às inteligíveis. Daí a necessidade de preceder o estudo da
metafísica pelo estudo da filosofia natural (cf. GARRIGOU- LAGRANGE, 1947, p.192).
Já o conhecimento dos nossos deveres é conhecido de modo perfeito pela filosofia moral
(cf. GREDT, 1961a, p. 339). Assim, concluímos que é sumamente conveniente o ensino de toda
a filosofia na educação, na seguinte ordem: lógica, filosofia da natureza, metafísica e filosofia
moral. As demais ciências têm também seu lugar na educação na medida em que nos ajudam no
progresso em direção à sabedoria. Também se pode afirmar a importância das virtudes
intelectuais especulativas, que são três (cf. TOMÁS DE AQUINO, S. Th. I-IIae q. 57 a. 2 res.,
2016a, p. 336): a sabedoria, que consiste justamente na metafísica (cf. GREDT, 1961a, p. 4), ou
em sentido mais amplo na filosofia (cf. GREDT, 1961b, p. 3); a inteligência, que é o
conhecimento dos primeiros princípios; as ciências, quer as filosóficas, isto é, a filosofia da
natureza, quer as demais, enquanto nos ajudam a adquirir a sabedoria e a cumprir nossos
deveres. A isso se chama propriamente educação intelectual.
Além disso, é necessário conduzir a criança ao amor de Deus, tanto amor de
concupiscência quanto ao amor de benevolência. A isso pertence a educação da vontade. Para
isso é necessário dar-lhes uma vontade enérgica e segura, e dirigi-la para o bem, que é Deus
(cf. MARÍN, 1967, p. 653).
O terceiro elemento, a operação das virtudes, pode ser conseguido diretamente, i.e.,
pode-se dar à criança a educação das virtudes. Como todas as virtudes têm uma certa unidade
(cf. GREDT, 1961a, p. 417), faz-se necessário ensinar a criança todas as virtudes. Em especial,
devem-se os educadores fundamentar-se nas quatro virtudes cardeais: prudência, justiça,
fortaleza e temperança. A partir delas desenvolverá também todas as suas partes potenciais,
subjetivas e integrantes (cf. GREDT, 1961a, p. 409). Essa educação se faz principalmente
auxiliando a criança a repetir os atos virtuosos, já que é assim que se adquirem as virtudes (cf.
GREDT, 1961a, p. 410). Juntas, a educação da consciência, a educação da vontade e a educação
das virtudes formam a educação moral.
Entre as virtudes, a justiça deve ser especialmente considerada, porque diz respeito às
nossas relações com o próximo. A essa parte da educação podemos convenientemente chamar
27
educação social. Com isso, podemos também considerar satisfeita a educação que se destina ao
último elemento da felicidade possível nesta vida, já que as virtudes sociais darão à criança as
disposições necessárias para viver em sociedade.
Por fim, como a felicidade possível nesta vida necessita também dos bens materiais para
seu sustento, segue-se que devem-se ensinar também todas as artes e ciências que sejam
necessárias para que ele possa adquirir esses meios. Em alguns casos pode reduzir-se à aquisição
de uma profissão, e assim teríamos a educação profissional.
Mas essa educação profissional estaria mais de acordo com a tradição aristotélico-tomista
se fosse complementada por uma educação doméstica. A ideia de profissão, ou seja, de uma
determinada atividade que se exerce em troca de um valor pecuniário está profundamente
enraizada na nossa sociedade capitalista como meio normal para aquisição dos bens materiais
necessários à sustentação da vida na comunidade doméstica. Por educação doméstica, termo que
não aparece nos autores, queremos indicar o ensino daquela arte que diz respeito à administração
da sociedade doméstica, das quais fala Aristóteles (cf. Pol. I, VIII 1256a et seq., 2001a, p. 65).
Essa ciência é distinta da arte de adquirir riquezas, que é por vezes incluída como parte da
educação (educação financeira), porque na arte de adquirir riquezas se procura obter pelo
comércio os bens primários, enquanto que no governo doméstico esses bens são dados pela
própria natureza, e o chefe da família explora convenientemente esses recursos, por meio da
agricultura e outras artes semelhantes. Segundo Aristóteles, a primeira forma é conforme a
natureza, enquanto a segunda é artificial. Encontramos uma versão contemporânea dessas teses
na teoria distributivista, proposta por Chesterton e Belloc (cf. BELLOC, 2018, in toto;
CHESTERTON, 1927, in toto).
Assim, podemos concluir também que a educação deve também incluir todas as virtudes:
intelectuais especulativas (sabedoria, ciência e inteligência), intelectuais práticas (artes e
prudência) e morais (justiça, temperança e fortaleza com suas derivadas) (cf. TOMÁS DE
AQUINO, S. Th. I-IIae q. 57 a. 4 res., 2016a, p. 338).
A sociedade heril define-se como “a união moral do criado e do amo, formada para
procurar o bem útil à família do próprio amo” (SINIBALDI, 1916, p. 749; cf. GREDT, 1961a, p.
470). Embora os autores consultados deem alguma importância à sociedade heril como
28
complemento necessário da sociedade doméstica, não exporemos em detalhes essa doutrina por
fugir ao marco do nosso trabalho.
Considerações finais
Nosso trabalho procurou demonstrar a relação entre o fim último natural do homem e as
teses a respeito da sociedade doméstica defendidas na Escola tomista neoescolástica. Diante do
que expusemos, vimos que essas teses não dependem exclusivamente do fim último do homem.
Várias delas requerem outras teses da filosofia da natureza, da metafísica e da lógica, outras
ainda requerem conhecimentos retirados da experiência.
Uma das teses atualmente mais polêmicas, sobre a determinação do sujeito da sociedade
conjugal, depende de um dado da experiência (melhor aptidão do elemento masculina para o
governo da sociedade doméstica) que não encontra fácil aceitação em muitos meios. Entretanto,
todas as teses aqui propostas dependem das finalidades particulares estabelecidas para cada
sociedade. Essas teses dependem, por sua vez, tanto da doutrina do fim último do homem como
da tese da lei natural. Por tese da lei natural, queremos indicar a determinação do que é bom ou
mau a partir dos caracteres de substância, animal e racional.
Mostrou-se especialmente determinada pela doutrina do fim as teses a respeito da
educação. Entretanto, não tanto do fim último natural, mas sim o fim próximo, isto é, a felicidade
imperfeita possível nesta vida. O que não tira sua relação com o fim último, já que essa
felicidade é justamente determinada em ordem ao fim último.
De modo geral, as teses a respeito da sociedade doméstica se baseiam principalmente na
finalidade própria de cada sociedade (conjugal ou parental ou doméstica). Como essas
sociedades são naturais e necessárias, elas são determinadas para suprir uma necessidade advinda
do fim próximo do homem, que é a felicidade imperfeita possível nessa vida. Assim, do fim
último se deriva o fim próximo, e deste a exigência de tal ou qual sociedade com tal e qual fim.
Desse fim se derivam as teses apresentadas, como a indissolubilidade, hierarquia no matrimônio,
pertencimento da educação etc.
González (1876a, p. 399) percebe que nem sempre julgamos as ações a partir dessa
perspectiva: “nós não julgamos direta e imediatamente da bondade ou malícia de uma ação por
sua conformidade ou relação a Deus como fim último da mesma”12. De fato, todas as regras
12
“nosotros no juzgamos directa e inmediatamente de la bondad o malicia moral de una acción, por su conformidad
o relación con Dios como último fin de la misma” (1876a, p. 399).
29
Diante disso, devemos concluir que (a) a lei moral é determinada pelo fim último, (b) e
de fato o fim último é especialmente útil para a determinação de questões concretas de moral,
mas (c) não é absolutamente necessário que assim fosse para a veracidade da tese. Por fim,
concluímos que (d) seja ainda mais presente na discussão sobre a sociedade doméstica a doutrina
a respeito do fim próximo e da inclinação natural do homem enquanto substância, animal e
racional.
Ao longo deste trabalho nos referimos sempre ao fim último natural para evitar
confusões com o fim último sobrenatural. Conforme o consenso de Santo Tomás e da Escola
neotomista, Deus poderia ter criado o homem em estado de simples natureza, e assim o fim
último do homem seria o natural. Entretanto, sabemo-lo por revelação divina, Deus elevou o
homem, no mesmo instante da sua criação, à ordem sobrenatural, e assim o destinou a um fim
último sobrenatural. Portanto, nas condições atuais e objetivas, o fim último do homem é
13
“Sucede aquí una cosa análoga a la que hemos observado al tratar de la verdad transcendental. Por más que sea
cierto que la verdad transcendental de la cosa consiste en su conformidad y ecuación con el entendimiento divino,
cuando se trata, sin embargo, de reconocer si el cuerpo A posee o no la verdad transcendental del oro, o lo que es
lo mismo, si es verdadero oro, nos vemos precisados a servirnos de procedimientos a posteriori, examinando sus
propiedades externas, porque ni poseemos la intuición inmediata y directa de la esencia del oro, ni tampoco de su
relación concreta con la idea que le corresponde en el entendimiento divino” (GONZÁLEZ, 1876a, p. 399).
30
sobrenatural. O estudo desse fim e dos atos humanos enquanto a ele se ordenam pertence à
teologia moral (cf. MARÍN, 1996, p. 3). À filosofia cabe, portanto, um estudo hipotético a
respeito de qual seria o fim último do homem se ele não tivesse sido elevado à ordem
sobrenatural.
Não se pode confundir as doutrinas filosóficas a respeito da felicidade na vida futura com
as doutrinas teológicas a respeito da salvação eterna. Tais doutrinas são derivadas da fé, e
prometem um conhecimento de Deus, um amor a Deus e um gozo de Deus sobrenaturais. Em
filosofia, tratamos apenas de um conhecimento, amor e gozo de Deus naturais (cf. MARÍN,
1996, p. 37).
Este estudo, entretanto, não fica por isso excluído de todo propósito, pois (a) o fim último
natural é ainda possível, por exemplo, no limbo (TOMÁS DE AQUINO, S. Th. apêndice, q. 1, a.
2, res., 2016b, p. 590), (b) esse fim tem ainda importância na determinação a finalidade das
sociedades naturais e (c) é útil para argumentar contra os que rejeitam a revelação sobrenatural a
respeito da lei natural.
Referências
ARISTÓTELES. Política. 5. ed. Tradução de Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret,
2001a.
ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. 4. ed. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret,
2001b.
BELLOC, H. The servile state. [S.l.]: Cavalier Books, 2018.
CHESTERTON, G. K. The outline of sanity. [S.l.]: Dodd, Mead & Company, 1927.
FESER, E. The thomistic tradition. [S.l.], 2009. Part I. Disponível em:
https://edwardfeser.blogspot.com/2009/10/thomistic-tradition-part-i.html. Acesso em: 13. 04.2021.
FRANÇA Leonel. Noções de história da filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1965.
GARDEIL, H.-D. Iniciação à filosofia de Santo Tomás de Aquino (II): cosmologia. Tradução de
Wanda de Figueiredo. São Paulo: Duas Cidades, 1967.
GARRIGOU-LAGRANGE, R. Fundamentum distinctions inter potentiam et actum ejusque peaecipuae
applicationes. Angelicum, v. 2, n. 3, p. 277–298, 1925. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/44619792.
GARRIGOU-LAGRANGE, R. El realismo del principio de finalidad. Buenos Aires: Decleé, De
Brouwer, 1947.
GONZÁLEZ, Z. Filosofia elemental. 2. ed. Madrid: Imprenta de Policarpo López, 1876. vol. I.
GONZÁLEZ, Z. Filosofia elemental. 2. ed. Madrid: Imprenta de Policarpo López, 1876. vol. II.
GREDT, J. Elementa philosophiae aristotelico-thomisticae: logica, philosophia naturalis. Barcelona:
Herder, 1961a. vol. I.
GREDT, J. Elementa philosophiae aristotelico-thomisticae: methaphysica, theologia naturalis - ethica.
31
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica: I-IIae pars. 4. ed. Tradução de Alexandre Correia. Campinas:
Ecclesiae, 2016. v. 2.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica: suplemento. 4. ed. Tradução de Alexandre Correia. Campinas:
Ecclesiae, 2016. v. 5.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica: II-IIae pars. 4. ed. Tradução de Alexandre Correia. Campinas:
Ecclesiae, 2016. v. 3.
TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. 2. ed. Tradução de Dom Odilão Moura, OSB.
Campinas: Ecclesiae, 2017.