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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Antropologia
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Nome: Natália Sayuri Suzuki n.º USP 3671526
Disciplina: Antropologia e Cinema período: vespertino Prof. Rose Satiko
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felizmente é mediada pela câmera, que, deixa de ser um ³objeto técnico´, mas um
³pretexto para o desvelamento de coisas novas e surpreendentes´, como lembraria
Fieschi ao analisar o trabalho de Rouch em · :
³(...) é toda uma função nova da câmera que se estabelece: não mais simples
aparelho de registro, mas agora agente provocador, estimulante, deflagrador de
situações, conflitos, itinerários que, sem ela, jamais aconteceriam ou, em todo
caso, jamais daquela forma´. (FIESCHI, 2010, p. 30)
Assim, como Rouch, Coutinho questiona não apenas o fato de a verdade estar
presente apenas nesta dita realidade, mas também problematiza o que seria a realidade.
A diferença entre · e
é que o primeiro desafia o senso-
comum de que a verdade de seus personagens reside apenas em experiências reais; já o
segundo parte do princípio de que todas aquelas histórias ordinárias e belas são
verdadeiras, e o ³problema´ estaria no portador desse conteúdo.
³Representação´ é conceito-chave para compreender a proposta perturbadora desse
documentário. Como o próprio nome do filme sugere, Coutinho convida o espectador a
participar de um jogo. Ao propor este da representação, o cineasta (ou entrevistador)
também se torna muitos. Em sua obra, ele dirige, entrevista, elabora, protagoniza e cria.
Esse jogo, no entanto, não se realiza só com ele.
Para tal, é colocado um anúncio de jornal, convidando mulheres para participar de
um filme. A proposta é que contem histórias de suas vidas em um estúdio. Dentre 83
mulheres, 23 foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauber Rocha, no Rio de
Janeiro, em junho de 2006. Em setembro do mesmo ano, atrizes profissionais assumem
as histórias dessas mulheres e trazem ao público, diante da câmera.
Aqui, há uma dificuldade de se afirmar se essas atrizes interpretam, imitam ou
representam (ou seria tudo isso junto?) as mulheres ³reais´. Geralmente, esses termos
são utilizados como sinônimos para uma mesma ação, mas, para este caso, assumem
significados e proporções diferentes. Não fica claro qual é a proposta de Coutinho para
essas atrizes. Elas deveriam ser o mais fiel possível às personagens? Ou deveriam
interpretá-las de acordo com a compreensão e a sensibilidade que tiveram diante das
experiências daquelas mulheres?
Quando as atrizes Andrea Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra assumem o lugar
das outras mulheres, elas trazem algo de si para a interpretação/imitação. Isso parece ser
inevitável, o que torna inviável a cópia ou reprodução fiel das mulheres ³reais´. Por
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outro lado, a capacidade de encenação é impressionante a ponto de causar estranheza e
incômodo ao público atônito com tamanha semelhança entre o original e a sua cópia.
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No momento em que as mulheres, personagens ³reais´, estão diante da câmera, há
um distanciamento entre o indivíduo e aquele ser que narra a experiência. É a
oportunidade que elas têm para se ouvir, se avaliar e se considerar. Repensam, então, os
seus dramas a partir do próprio discurso que, ao ser externalizado, deixa o âmbito
subjetivo e privado e passa ser também de outro domínio. Fieschi (2010, p.30), ao
abordar a distância entre a improvisação e a premeditação dos personagens de ·
adota os conceitos de ³espaço mental´ e ³espaço representado´, cujos
significados são apropriados também para descrever as duas esferas que estão colocadas
para as personagens de Coutinho e com as quais têm que se confrontar.
A técnica remete também à ideia do psicodrama, uma técnica terapêutica da
psiquiatria. Pacientes submetidos a esse tratamento representam papéis que remetem a si
mesmo:
³Seu próprio passado lhes é acessível de uma forma que lhes permite
representar uma recapitulação dele. (...) Além disso, os papéis que ³outros´
significativos representaram com relação a ele no passado também parecem ser
acessíveis, permitindo-lhe passar da pessoa que foi para ser as pessoas que
outros foram para ele´. (GOFFMAN, 1985, p.72)
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contexto criado pela câmera e pela estrutura do documentário.
O filme de Coutinho sobrepõe, ao mesmo tempo em que desdobra, as inúmeras
camadas possíveis da representação. Esse recurso permite que ele atinja a mais profunda
dessas camadas, que é a dimensão individual das mulheres. Mas ainda considerando
Goffman, essa dimensão individual não seria uma unidade, mas composição de
fragmentos a exemplo de fractais. O meio para se alcançar isso é a via complexa e
sinuosa do imaginário.
O recurso ficcional permite que Coutinho desloque os depoimentos da trivialidade
para um lugar especial, onde serão vistos e ouvidos. Assim, todas as histórias passam a
ter relevância, e o documentarista transforma cada mulher, extraída do seu cotidiano,
em seu objeto de pesquisa, da mesma forma que Rouch, em î?? ? ?(1954-5),
resgatara cavadores, garçons e carregadores de seu dia a dia de trabalho opressivo para
o perturbador e particular ritual. Por meio da entrevista e da filmagem, Coutinho
consegue, a
Vertov, transportar essas histórias da condição de drama pessoal a casos
emblemáticos de um plano mais macro, expondo assim uma rica e inusitada diversidade
entre as mulheres selecionadas que, à primeira vista, parecem ser nada mais do que
ordinárias. ³Nesse sentido, é interessante pensar o imaginário enquanto fazendo parte da
µrealidade¶ ou pelo menos um discurso sobre a realidade´. (GONÇALVES, 2008,
p.119).
³Para Rouch, ciência e cinema funcionam como álibis um do outro, ou melhor,
como geradores um do outro´. (FIESCHI, 2010, p. 25). Esse cinema rouchiano, do qual
Coutinho se apropria em
, é a ³etnoficção´, que Gonçalves categoriza
como um gênero híbrido que não atende o rigor científico e nem o próprio cinema. Seria
um gênero liminar, assim como a experiência que vivem as personagens desses filmes.
Ainda que possa não ter sido uma preocupação inicial de Coutinho, o documentarista
brasileiro faz uma etnografia do universo feminino, porque ele manipula dados e revela
ao público questões inexploradas, assim como faria um antropólogo a respeito da
comunidade que estuda.
Gonçalves afirma que Rouch etnografa ³imageticamente as ficções e as
imaginações´ (2008, p. 115) dos seus personagens sem, necessariamente, colocar a
ficção em disputa com a chamada realidade. É justamente isso que Coutinho promove
com as suas entrevistadas.
Ao dar voz a seus objetos de pesquisa, Coutinho compartilha a antropologia, que
realiza de forma involuntária, pois transforma esses objetos em autores participativos e
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fundamentais para seu trabalho, afinal são eles que, em última instância, detém o
conteúdo de sua obra.
Ao longo do filme, Coutinho alterna a posição dos depoimentos no filme. As
histórias, ora narradas pelas personagens, ora pelas atrizes, aparecem sobrepostas,
justapostas ou então, intercaladas por outros depoimentos.
Uma mesma história contada por duas mulheres diferentes, que não são atrizes
famosas, surge espaçada por outros depoimentos. O espectador é levado a questionar a
qual das duas mulheres pertence essa história e qual delas estaria representando. O fato
é que pouco importa. Não se questiona se aquela história é verdadeira, porque ela nos
chega como tal, legitimada, em grande parte, pelo fato de estar inserida em um
documentário.
A conclusão a que se chega com
é que a verdade existe independente
de quem a detém ou de quem é o seu portador . É como se existisse um conteúdo
substantivo que aguarda uma forma pelo qual será veiculado. O lugar está vago - como
as cadeiras vazias no final do filme - esperando que alguém o assuma para que a
história seja contada e possamos crer nelas.
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? Ana Lúcia Ferraz, Edgar Teodoro da Cunha, Paula
Morgado e Renato Sztutman, 2000, 41 min.
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