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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Antropologia
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Trabalho final de Natália Sayuri Suzuki,


n.º USP 3671526, para a disciplina ³Antropologia e
Cinema´, do departamento de Antropologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP, ministrada pela Prof. Rose Satiko Hikiji.
Vespertino, 1º semestre de 2011.

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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Antropologia
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Nome: Natália Sayuri Suzuki n.º USP 3671526
Disciplina: Antropologia e Cinema período: vespertino Prof. Rose Satiko

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Ao longo da história do documentário, cineastas buscaram romper com a dicotomia


ficção/realidade e trabalharam esses dois conceitos de forma inovadora. Em vez de
colocá-los numa relação de contradição e antagonismo, cineastas, como Jean Rouch,
fizeram com que essas duas dimensões deixassem de ser excludentes para que se
tornassem complementares em suas obras. Os limites da ficção e da realidade passaram
a ser mais fluidos desde que Rouch inaugura ·  (1957)
Nessa mesma toada rouchiana,
   (2006) é a tentativa do documentarista
brasileiro Eduardo Coutinho de desconstruir o pressuposto de que os documentários
devem trazer ao público a verdade apenas por meio da realidade. Sua proposta neste
filme contraria a ideia de que essa realidade - neutra e objetiva e que não admitiria
intervenções de qualquer espécie daquele que filma - tem mais propriedade e
legitimidade do que a ficção para se tratar de um assunto. 
³(...) Mas os fazedores de filmes de hoje preferem não se aventurar nessas vias
perigosas, e só os mestres, os loucos e as crianças se atrevem a apertar botões
proibidos´ , dissera Rouch (1955, apud, FIESCHI, 2010, p.24) a respeito do uso da
ficção em documentários. Para o cineasta francês, confrontar a ficção com a realidade,
sem que necessariamente se agridam, dissolve as barreiras, fundindo-as e dispensando a
tentativa de se explicar o que é e o que não é.
Coutinho não está atrás de uma verdade imaculada, porque sabe que o próprio
aparato da câmera instiga uma encenação, uma representação. Antes do primeiro
depoimento do filme, registra-se um plano breve em que aparecem duas cadeiras ± a do
entrevistador e a da entrevistada - e a câmera entre elas. Para o cineasta, o momento da
filmagem e o da entrevista é único. A história que o personagem nos conta, as lágrimas
que vertem em seu rosto com sinceridade ± não importam se são de atrizes ou das
mulheres ³reais´ ± só existem naquele momento, naquela circunstância precisa que (in)

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felizmente é mediada pela câmera, que, deixa de ser um ³objeto técnico´, mas um
³pretexto para o desvelamento de coisas novas e surpreendentes´, como lembraria
Fieschi ao analisar o trabalho de Rouch em ·  :

³(...) é toda uma função nova da câmera que se estabelece: não mais simples
aparelho de registro, mas agora agente provocador, estimulante, deflagrador de
situações, conflitos, itinerários que, sem ela, jamais aconteceriam ou, em todo
caso, jamais daquela forma´. (FIESCHI, 2010, p. 30)

Assim, como Rouch, Coutinho questiona não apenas o fato de a verdade estar
presente apenas nesta dita realidade, mas também problematiza o que seria a realidade.
A diferença entre ·  e
   é que o primeiro desafia o senso-
comum de que a verdade de seus personagens reside apenas em experiências reais; já o
segundo parte do princípio de que todas aquelas histórias ordinárias e belas são
verdadeiras, e o ³problema´ estaria no portador desse conteúdo.
³Representação´ é conceito-chave para compreender a proposta perturbadora desse
documentário. Como o próprio nome do filme sugere, Coutinho convida o espectador a
participar de um jogo. Ao propor este da representação, o cineasta (ou entrevistador)
também se torna muitos. Em sua obra, ele dirige, entrevista, elabora, protagoniza e cria.
Esse jogo, no entanto, não se realiza só com ele.
Para tal, é colocado um anúncio de jornal, convidando mulheres para participar de
um filme. A proposta é que contem histórias de suas vidas em um estúdio. Dentre 83
mulheres, 23 foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauber Rocha, no Rio de
Janeiro, em junho de 2006. Em setembro do mesmo ano, atrizes profissionais assumem
as histórias dessas mulheres e trazem ao público, diante da câmera.
Aqui, há uma dificuldade de se afirmar se essas atrizes interpretam, imitam ou
representam (ou seria tudo isso junto?) as mulheres ³reais´. Geralmente, esses termos
são utilizados como sinônimos para uma mesma ação, mas, para este caso, assumem
significados e proporções diferentes. Não fica claro qual é a proposta de Coutinho para
essas atrizes. Elas deveriam ser o mais fiel possível às personagens? Ou deveriam
interpretá-las de acordo com a compreensão e a sensibilidade que tiveram diante das
experiências daquelas mulheres?
Quando as atrizes Andrea Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra assumem o lugar
das outras mulheres, elas trazem algo de si para a interpretação/imitação. Isso parece ser
inevitável, o que torna inviável a cópia ou reprodução fiel das mulheres ³reais´. Por

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outro lado, a capacidade de encenação é impressionante a ponto de causar estranheza e
incômodo ao público atônito com tamanha semelhança entre o original e a sua cópia.

Outra questão se refere ao papel desempenhado por essas mulheres ³reais´ e as


atrizes. As primeiras deixam de ser apenas mulheres comuns a partir do momento em
que estão inseridas no filme. Elas assumem imediatamente a condição de personagens.
O mesmo acontece com as atrizes que, ao serem partes desse mosaico fílmico,
transformam-se igualmente em personagens. Isso acontece quando interpretam outras
pessoas, mas também quando elas próprias contam histórias pessoais, ainda que essas
passagens suscitem dúvidas no espectador se elas, de fato, pertencem ao repertório
pessoal das atrizes ou se seriam estariam casos de uma terceira pessoa. Mesmo em
passagens metalinguísticas, nas quais o entrevistador/cineasta discute com essas atrizes
o processo de representação/interpretação, elas não deixam o ? ? de personagens.
Por outro lado, todas elas ± as próprias atrizes e as mulheres ³reais´ - são atrizes,
porque protagonizam as experiências de maneira única, irreproduzível, ainda que se
tente representar, interpretar, imitar etc.
Andréa Beltrão e Fernanda Torres refletem sobre as suas interpretações. A primeira
analisa o choro imprevisto em uma de suas representações, já que o seu original não
chora: ³Se eu tivesse me preparado como atriz para chorar, talvez, eu não tivesse tão
incomodada. Eu teria que ter que me preparado demais (para não chorar)´. Nessa
passagem, Beltrão revela que essa interpretação não é como outra qualquer que tenha
feito como atriz. Para ela, de fato, ela assumira o lugar daquela mulher por meio da
apropriação de seu discurso. ³Representar é tornar algo presente´, lembraria Pitkin
(2006, p. 17) a partir da conceituação latina da palavra  ? .
Fernanda Torres interrompe sua narrativa por não conseguir interpretar uma de suas
personagens, dizendo que ela (a personagem) estava muito próxima de si. Essa
proximidade, o envolvimento e a identificação, talvez, dificultassem o acesso à
personagem pela atriz, já que lhe faltava a distância necessária para um olhar analítico e
construção de um eu distinto do seu que pudesse ser representado diante da câmera.
Numa passagem seguinte, reflete sobre o fato de trabalhar com personagens ³reais´: ³A
realidade esfrega na sua cara onde você não chegou´, diz. O fato de haver um
referencial verdadeiro determina para a atriz uma escala mensurável entre a boa e a má
interpretação. Quando o personagem é fictício, o nível de realidade da interpretação
seria, quase sempre, aceitável ou admissível.

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No momento em que as mulheres, personagens ³reais´, estão diante da câmera, há
um distanciamento entre o indivíduo e aquele ser que narra a experiência. É a
oportunidade que elas têm para se ouvir, se avaliar e se considerar. Repensam, então, os
seus dramas a partir do próprio discurso que, ao ser externalizado, deixa o âmbito
subjetivo e privado e passa ser também de outro domínio. Fieschi (2010, p.30), ao
abordar a distância entre a improvisação e a premeditação dos personagens de ·  
adota os conceitos de ³espaço mental´ e ³espaço representado´, cujos
significados são apropriados também para descrever as duas esferas que estão colocadas
para as personagens de Coutinho e com as quais têm que se confrontar.
A técnica remete também à ideia do psicodrama, uma técnica terapêutica da
psiquiatria. Pacientes submetidos a esse tratamento representam papéis que remetem a si
mesmo:

³Seu próprio passado lhes é acessível de uma forma que lhes permite
representar uma recapitulação dele. (...) Além disso, os papéis que ³outros´
significativos representaram com relação a ele no passado também parecem ser
acessíveis, permitindo-lhe passar da pessoa que foi para ser as pessoas que
outros foram para ele´. (GOFFMAN, 1985, p.72)

A conclusão a que se chega com


   é que todos representam no
documentário e na vida real. Diante disso, o filme pode ser compreendido como uma
metáfora da vida social, que seria um teatro em que os indivíduos nunca deixam de
representar.
Goffman enuncia que o ³eu´ não é contínuo, ou seja, ele é constituído de muitos
³eus´, sem que exista um que seja íntimo e verdadeiro. O indivíduo se desdobra em
papéis de acordo com os vários ambientes de representação. Goffman define a
representação como ³toda atividade de um indivído que se passa num período
caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e
que tem sobre estes alguma influência´. (1985, p.29)
No documentário, todos são atores, personagens, mas também autores de uma
história. As atrizes também assumem o papel de autoras, uma vez que são detentoras
por meio do discurso da memória e da narrativa de suas personagens.
Por meio desse artifício,
   tem acesso a histórias que não seriam
possíveis de outra forma. Como já mencionado, elas só existem por causa desse

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contexto criado pela câmera e pela estrutura do documentário.
O filme de Coutinho sobrepõe, ao mesmo tempo em que desdobra, as inúmeras
camadas possíveis da representação. Esse recurso permite que ele atinja a mais profunda
dessas camadas, que é a dimensão individual das mulheres. Mas ainda considerando
Goffman, essa dimensão individual não seria uma unidade, mas composição de
fragmentos a exemplo de fractais. O meio para se alcançar isso é a via complexa e
sinuosa do imaginário.
O recurso ficcional permite que Coutinho desloque os depoimentos da trivialidade
para um lugar especial, onde serão vistos e ouvidos. Assim, todas as histórias passam a
ter relevância, e o documentarista transforma cada mulher, extraída do seu cotidiano,
em seu objeto de pesquisa, da mesma forma que Rouch, em î?? ? ?(1954-5),
resgatara cavadores, garçons e carregadores de seu dia a dia de trabalho opressivo para
o perturbador e particular ritual. Por meio da entrevista e da filmagem, Coutinho
consegue, a  Vertov, transportar essas histórias da condição de drama pessoal a casos
emblemáticos de um plano mais macro, expondo assim uma rica e inusitada diversidade
entre as mulheres selecionadas que, à primeira vista, parecem ser nada mais do que
ordinárias. ³Nesse sentido, é interessante pensar o imaginário enquanto fazendo parte da
µrealidade¶ ou pelo menos um discurso sobre a realidade´. (GONÇALVES, 2008,
p.119).
³Para Rouch, ciência e cinema funcionam como álibis um do outro, ou melhor,
como geradores um do outro´. (FIESCHI, 2010, p. 25). Esse cinema rouchiano, do qual
Coutinho se apropria em
   , é a ³etnoficção´, que Gonçalves categoriza
como um gênero híbrido que não atende o rigor científico e nem o próprio cinema. Seria
um gênero liminar, assim como a experiência que vivem as personagens desses filmes.
Ainda que possa não ter sido uma preocupação inicial de Coutinho, o documentarista
brasileiro faz uma etnografia do universo feminino, porque ele manipula dados e revela
ao público questões inexploradas, assim como faria um antropólogo a respeito da
comunidade que estuda.
Gonçalves afirma que Rouch etnografa ³imageticamente as ficções e as
imaginações´ (2008, p. 115) dos seus personagens sem, necessariamente, colocar a
ficção em disputa com a chamada realidade. É justamente isso que Coutinho promove
com as suas entrevistadas.
Ao dar voz a seus objetos de pesquisa, Coutinho compartilha a antropologia, que
realiza de forma involuntária, pois transforma esses objetos em autores participativos e

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fundamentais para seu trabalho, afinal são eles que, em última instância, detém o
conteúdo de sua obra.
Ao longo do filme, Coutinho alterna a posição dos depoimentos no filme. As
histórias, ora narradas pelas personagens, ora pelas atrizes, aparecem sobrepostas,
justapostas ou então, intercaladas por outros depoimentos.
Uma mesma história contada por duas mulheres diferentes, que não são atrizes
famosas, surge espaçada por outros depoimentos. O espectador é levado a questionar a
qual das duas mulheres pertence essa história e qual delas estaria representando. O fato
é que pouco importa. Não se questiona se aquela história é verdadeira, porque ela nos
chega como tal, legitimada, em grande parte, pelo fato de estar inserida em um
documentário.
A conclusão a que se chega com
   é que a verdade existe independente
de quem a detém ou de quem é o seu portador . É como se existisse um conteúdo
substantivo que aguarda uma forma pelo qual será veiculado. O lugar está vago - como
as cadeiras vazias no final do filme - esperando que alguém o assuma para que a
história seja contada e possamos crer nelas.

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·   Jean Rouch, 1957, 80 min 

Fieschi, Jean-André. ³Derivas da ficcção: notas sobre o cinema de Jean Rouch´. In


Araújo Silva, Mateus (org.).
   ?  ? ? ? 
Belo Horizonte: Balafon, 2010.
Goffman, Erving. ³Representações´. In___. ?  ·        
Petrópolis: Vozes, 1985.
Gonçalves, Marco Antonio. ³Ficção, imaginação e etnografia: a propósito de ·  
´. In____. î   ·    ?  ?
   
Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
Henley, Paul. ³Cinematografia e pesquisa etnográfica´. In ?   
 Volume 9. Rio de Janeiro (UERJ), 1999, p 29-49.

  ? !    ? Ana Lúcia Ferraz, Edgar Teodoro da Cunha, Paula
Morgado e Renato Sztutman, 2000, 41 min.

   Eduardo Coutinho. 2006, 107 min.


"?# ! ?$%  #   . Jean Rouch, 1972, 9 min.
î?? ? ?Jean Rouch. 1955, 27 min.
Pitkin, Hanna. ? &   ? ?  '?  ? In " ( , São Paulo,
67: p.15-47, 2006
Sztutman, Renato. ³Jean Rouch: um antropólogo-cineasta´. In Barbosa, Caiuby Novaes,
Cunha, Ferrari, Hikiji & Sztutman (orgs.) ·?  ?   São Paulo:
Edusp/Fapesp, 2004.
Sztutman, Renato. ³Imagens-transe: perigo e possessão na gênese do cinema de Jean
Rouc´. In Barbosa, Cunha & Hikiji (org.).  )   
  ? ? Campinas: Papirus, 2009.


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