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Mestra em Estudos Literários - UFPI
[...] enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação eles tornam
possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui
fundamentalmente para a reprodução da ordem social. (BOURDIEU, 2006,
p. 10).
Podemos afirmar que o poeta fundamenta, por meio de seu texto, algumas
compressões sobre a época, como também reflete um ponto de vista consensual das pessoas,
em especial dos intelectuais que divergiam da situação política e desejavam manifestar-se de
alguma forma a respeito.
Ao ponderarmos a produção de Bourdieu, aliada às teorias de mercado, seja francesa
ou mesmo alemã, verificamos a relevância no papel das instituições econômicas e dos
fenômenos econômicos em suas dimensões culturais e simbólicas; essa produção foi formada
ao analisar como o mercado de bens culturais se desdobra desde a Idade Média até o
momento de sua autonomia, em relação à produção capitalista e aos reflexos sociais,
possibilitando mudanças maiores no que tange a formas de produzir essa mercadoria de cunho
cultural. Nesse sentido, tomando a produção de Gullar como um bem simbólico que traria
impulso à indústria cultural da época, torna-se importante relacionar esse produto com a
sociedade que o recebe, refletindo a intenção ou a recepção de ambos.
A ideia de indústria cultural, conceito explorado por Adorno, traz à tona as
interferências do capitalismo e sua vigência pós-Revolução Industrial, que faz do homem um
ser que busca produções e consumo de acordo com o mercado de produção, atribuindo aos
bens culturais e artísticos a perspectiva de que deveria agir em consonância com as intenções
capitalistas.
Para Adorno e Horkheimer (2002), essa organização seria a estratégia ideal para
alienação, visto que o termo indústria cultural nada mais era que renomear, (re) categorizar
construções capitalistas que moldavam, por meio de parâmetros industriais, diferentes bens
que outrora não eram regulados pelo mercado.
Em consonância com esse termo vigente de indústria cultural, adotado para a prática
recente do capitalismo, Bourdieu corrobora a teoria de Adorno e Horkheimer, ainda que os
indivíduos que estão inseridos no processo de produção e consumo de bens culturais não
estejam de fato cientes de como se dá tal processo, as condições e as atribuições a cada um
dos componentes deste, ao destacar que:
[...] a imersão da economia no social é tal que, por legítimas que sejam as
abstrações realizadas para as necessidades da análise, é preciso ter claro que
o verdadeiro objeto de uma verdadeira economia das práticas não é outra
coisa, em última análise, senão a economia das condições de produção e de
reprodução dos agentes e das instituições de produção e de reprodução
econômica, cultural e social, isto é, o próprio objeto da sociologia na sua
definição mais completa e mais geral. (BOURDIEU, 2000, p. 25-26).
Dessa forma, os agentes no campo de produção de bens culturais não estão senão
praticando o exercício estabelecido pelas normas econômicas vigentes, alheios ou não a que
papel ocupam e ao que se espera de cada um.
Ao associarmos essa ideia com a produção do escritor, podemos enxergar claramente
que a seleção vocabular, de conteúdos, momento de produção e ciência da posição no campo
intelectual, imprimem na obra de Gullar uma seleção de consumidores que, por sua vez,
arbitrariamente ou conscientemente, está nesta ordem para preencher a outra extremidade
mercadológica. Embora pensemos costumeiramente que as produções artísticas ou
intelectuais provêm de um dom que se satisfaça apenas com o reconhecimento de seu caráter
sublime diante de outros bens de consumo e, muito frequentemente, se esqueça, de modo
geral, que a produção de tal bem não é desprovida de interesses, seja de quem produz, seja de
quem orquestra os segmentos de produção, a saber, para esta situação, editoras, críticos
literários ou qualquer outro instrumento que seja aval para a consagração de um produto
cultural.
Nessa lógica, estão inseridos homens ou produções de homens que desejam encontrar,
no que têm acesso diariamente, algo que possua um valor senão o econômico. Não mais
envolveria, nessa troca, a apreciação pura ou moralmente valorosa e, por sua vez, isenta de
noções impressas pelo capital. O homem passa a valer tudo que consome ou produz, ainda
que não esteja completamente apropriado de que posição ocupa nesse ínterim, nem mesmo os
efeitos que tal posição ecoa dentro da sociedade na qual está vivendo.
Podemos então refletir, a partir do aspecto que torna um autor como Gullar um
membro desta “cadeia de trocas” que não são mais despretensiosas, mas que, voluntariamente,
o encaixam num sistema do reconhecimento vinculado ao desinteresse da parte do poeta
quando julga que, seu poema, contextualizado politicamente contra as normas que estariam
em vigor, não compactuaria com o instrumento de maior manobra capitalista da nossa
sociedade, o Estado; assim trazendo um dos conceitos mais familiares de Bourdieu – o
habitus – que nos auxilia a pensar o percurso de consagração que viabiliza um poeta como tal,
posicionando-se em desacordo com a política do seu país e que, ao mesmo tempo, estaria
fazendo de sua obra mais militante contra tal, consegue firmar um bem de consumo nas
configurações que o capitalismo certamente entenderia como favorável o acontecimento de
uma expressa repercussão.
Ao apresentar o conceito de habitus, Bourdieu afirma que a disposição de cada agente
no campo de produção tem a ver com sua posição no espaço social e, de maneira
inconsciente, condiciona a visão de seu próprio comportamento e do mundo.
Para Bourdieu, o produto deve condizer com os anseios objetivos dos que formam
determinado grupo de consumo; o bem cultural e intelectual foge em, alguns aspectos, à
intencionalidade de um resultado aprovativo dos que o consomem e, ainda assim, mantém
através de suas práticas, regularidade do consumo diante do planejamento prévio de atingi-
los.
Mesmo que pareça despretensioso, há, sim, um encaminhamento por trás do produto e
da sua prospecção diante do mercado no qual está inserido. Um produto cultural como o PS,
de certa forma, foi elaborado com condições de adaptar-se ao que seus potenciais
consumidores viviam como habitus, e, claramente, oferecia ao poeta chances promissoras de
reconhecimento popular, ou para leitores ávidos ou mesmo para aqueles que conseguiram
enxergar seus próprios medos e recordações de tempos idos, nas estrofes do poema.
Contudo, esse interesse por parte do autor e o reconhecimento do público envolvem
um viés muito amplo para análise estrita do termo associando-o apenas a trocas simbólicas e
econômicas, sabendo que, dentro da produção do mercado da indústria cultural, as
gratificações simbólicas podem estabelecer diante do bem produzido as mais variadas formas.
Assim, voltado para como se dá esse “interesse” inerente à condição humana, Bourdieu
recorre à terminologia psicanalítica da noção de libido:
dilema do sobrevivente reside no caráter incomensurável e irresolúvel dessa mediação entre experiência e
narrativa: a organização diegética própria do horror vivido é percebida não só como uma intensificação do
próprio sofrimento, mas, o que é pior, como uma traição ao sofrimento dos demais”. (AVELAR, 2003, p. 235-
236).
a circundaram como representação de uma sociedade, passando a buscar uma posição nova e
ajustada, não somente teórica, mas vocabular, de gêneros que assumem mais aceitação, ou
seja, tudo aquilo que possa se encaixar melhor na linha de produção, tudo que não destoe
demasiadamente, nem que transgrida nem que enfatize por meio do passado o que fosse
intempestivo e que por intermédio da produção literária poderia ser esboçado. A pós-ditadura
reforçou com a urgência da escrita, a vulnerabilidade das produções quiçá do próprio homem
das letras.
A literatura, no Brasil, assume nova proposta de colonização. Os padrões modernos, e
até os “pós-modernos”, imprimem, na produção, a colonização estrangeira, dessa vez
ideológica, voluntária. A opção pela alienação nos faz dar as mãos ao colonizador e esvaziar
de sentido nossas bases culturais. Com essa adesão ao pensamento mercadológico, não
somente os registros experienciais ficaram comprometidos como a própria compreensão do
presente. Em especial, na América Latina, essa nova etapa galgada pelo capital foi o papel,
precisamente, desempenhado pelos regimes ditatoriais.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. (Tradução Amélia Cohn) In: COHN, Gabriel.
(Org.). Comunicação e Indústria Cultural, 5ed., São Paulo: T.A. Queiroz, [1962]1987a. p.
287-295.
BOURDIEU, P. A troca dos bens simbólicos. São Paulo: Civilização Brasileira, 2006.