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LITERATURA E MERCADO: A REPERCUSSÃO SIMBÓLICA DO POEMA SUJO

NO CAMPO DE PRODUÇÃO CULTURAL PÓS-DITADURA

Bárbara Laís da Silva Negreiros1


“que a sorte me livre do mercado
e que deixe
continuar fazendo ( sem o saber)
fora do esquema
meu poema
inesperado”
(GULLAR, 2010, p.35)

Nos anos de 1970, a ditadura civil-militar afetou a sociedade de maneira geral e as


manifestações artísticas traziam relevâncias aos efeitos cotidianos do regime. O produto
artístico da época estava comprometido com uma manifestação social que não se daria de
outra forma que não fosse por meio da resistência e do engajamento. Ademais, os
representantes do golpe apressaram-se em reagir às manifestações, por meio da repressão e da
censura, na tentativa de frear possíveis ameaças.
Observando a trajetória de Ferreira Gullar, bem como sua atuação durante esse
período, analisamos a relação que o poeta constrói com a cidade de São Luís, por meio do
Poema sujo (PS), como forma de ampliar a visão do leitor para uma compreensão do contexto
no qual estava inserido e das instabilidades que os intelectuais da época tiveram de vivenciar.
O PS alinhou-se a esta análise, principalmente por ter o exílio como pano de fundo e as
remissões de infância do autor como perspectiva direta de manifestação de tais sensibilidades,
almejando salvaguardar um pouco da cidade na qual viveu boa parte de sua vida.
Dito isso, debruçar-nos-emos sobre a relação de Gullar com as repercussões políticas
que estimularam o momento de produção do PS e o reconhecimento de seu livro como
registro efetivo de seu fazer literário. Gullar mantinha, em grande parte de sua produção, uma
constante batalha com a política vigente, a literatura dera ao autor uma chance de se
posicionar sobre isso. A partir dos conceitos de Bourdieu sobre os sistemas simbólicos,
passaremos a entender as interações sociais por meio dos símbolos que ultrapassam a
estrutura comunicativa e se tornam, por excelência, um sistema da integração social,

1
Mestra em Estudos Literários - UFPI
[...] enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação eles tornam
possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui
fundamentalmente para a reprodução da ordem social. (BOURDIEU, 2006,
p. 10).

Podemos afirmar que o poeta fundamenta, por meio de seu texto, algumas
compressões sobre a época, como também reflete um ponto de vista consensual das pessoas,
em especial dos intelectuais que divergiam da situação política e desejavam manifestar-se de
alguma forma a respeito.
Ao ponderarmos a produção de Bourdieu, aliada às teorias de mercado, seja francesa
ou mesmo alemã, verificamos a relevância no papel das instituições econômicas e dos
fenômenos econômicos em suas dimensões culturais e simbólicas; essa produção foi formada
ao analisar como o mercado de bens culturais se desdobra desde a Idade Média até o
momento de sua autonomia, em relação à produção capitalista e aos reflexos sociais,
possibilitando mudanças maiores no que tange a formas de produzir essa mercadoria de cunho
cultural. Nesse sentido, tomando a produção de Gullar como um bem simbólico que traria
impulso à indústria cultural da época, torna-se importante relacionar esse produto com a
sociedade que o recebe, refletindo a intenção ou a recepção de ambos.
A ideia de indústria cultural, conceito explorado por Adorno, traz à tona as
interferências do capitalismo e sua vigência pós-Revolução Industrial, que faz do homem um
ser que busca produções e consumo de acordo com o mercado de produção, atribuindo aos
bens culturais e artísticos a perspectiva de que deveria agir em consonância com as intenções
capitalistas.

Em nossos esboços tratava-se do problema da cultura de massa.


Abandonamos essa última expressão para substituí-la por ‘Indústria
Cultural’ a fim de excluir de antemão a interpretação que agrada aos
advogados da coisa; esses pretendem, com efeito, que se trate de algo como
uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, de
forma contemporânea da arte popular. (ADORNO, 1987, p. 286).

Adorno prossegue dizendo que, com o fortalecimento do comércio, o homem havia


perdido sua autonomia e, consequentemente, a humanidade estava se desumanizando ao abrir
mão das razões humanas em nome das razões técnicas. O homem, embora mais individualista,
estaria à mercê de sua condição ou posição dentro das regras do mercado que iriam
categorizá-lo e atribuir-lhe um valor conforme seu desenvolvimento diante dessas ideias,
marginalizando-o sempre que não conseguisse acompanhar o ritmo dessa ideologia de vida.
Na indústria cultural, tudo se torna negócio. Assim, os bens culturais – que antes
serviam como representatividade e reflexão humana – seriam promovidos a meios de
manipulação de massas. A arte, outrora instrumento de lazer, seria mais uma das peças que,
ao compor a indústria cultural, era portadora do sistema ideológico dominante, transformando
suas produções em sustentação capitalista, manobrando seus consumidores.
Desse modo, a produção de cultura em série – pois agora deveria atingir o maior
número de consumidores – já não seria mais um meio de expressão e crítica, ou instrumento
de conhecimento, e, sim, um produto negociável, que deveria ser consumido e adquirido de
forma comercial como qualquer outro. A indústria cultural tratava-se, então, de prática social
na qual a produção de lazer ou intelectual transformam-se em mercadoria. Assim sendo, tais
produtos passam a compor uma norma vigente, geral e talvez até superficial com atribuições
medianas de qualidade, visando o acesso da maior quantidade de pessoas e que estas não
teriam tempo ou base para questionar o que estão consumindo.

A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é


procurada pelos que querem se subtrair aos processos de trabalho
mecanizado, para que estejam de novo em condições de enfrentá-lo.
(ADORNO; HORKHEIMER, 2002, p. 30).

Para Adorno e Horkheimer (2002), essa organização seria a estratégia ideal para
alienação, visto que o termo indústria cultural nada mais era que renomear, (re) categorizar
construções capitalistas que moldavam, por meio de parâmetros industriais, diferentes bens
que outrora não eram regulados pelo mercado.
Em consonância com esse termo vigente de indústria cultural, adotado para a prática
recente do capitalismo, Bourdieu corrobora a teoria de Adorno e Horkheimer, ainda que os
indivíduos que estão inseridos no processo de produção e consumo de bens culturais não
estejam de fato cientes de como se dá tal processo, as condições e as atribuições a cada um
dos componentes deste, ao destacar que:

[...] a imersão da economia no social é tal que, por legítimas que sejam as
abstrações realizadas para as necessidades da análise, é preciso ter claro que
o verdadeiro objeto de uma verdadeira economia das práticas não é outra
coisa, em última análise, senão a economia das condições de produção e de
reprodução dos agentes e das instituições de produção e de reprodução
econômica, cultural e social, isto é, o próprio objeto da sociologia na sua
definição mais completa e mais geral. (BOURDIEU, 2000, p. 25-26).
Dessa forma, os agentes no campo de produção de bens culturais não estão senão
praticando o exercício estabelecido pelas normas econômicas vigentes, alheios ou não a que
papel ocupam e ao que se espera de cada um.
Ao associarmos essa ideia com a produção do escritor, podemos enxergar claramente
que a seleção vocabular, de conteúdos, momento de produção e ciência da posição no campo
intelectual, imprimem na obra de Gullar uma seleção de consumidores que, por sua vez,
arbitrariamente ou conscientemente, está nesta ordem para preencher a outra extremidade
mercadológica. Embora pensemos costumeiramente que as produções artísticas ou
intelectuais provêm de um dom que se satisfaça apenas com o reconhecimento de seu caráter
sublime diante de outros bens de consumo e, muito frequentemente, se esqueça, de modo
geral, que a produção de tal bem não é desprovida de interesses, seja de quem produz, seja de
quem orquestra os segmentos de produção, a saber, para esta situação, editoras, críticos
literários ou qualquer outro instrumento que seja aval para a consagração de um produto
cultural.

A teoria das práticas propriamente econômicas é um caso particular de uma


teoria geral da economia das práticas. Mesmo quando elas dão todas as
aparências do desinteresse porque escapam à lógica do interesse
"econômico" (no sentido restrito) e porque se orientam para alvos não
materiais e dificilmente quantificáveis, como nas sociedades "pré-
capitalistas" ou na esfera cultural das sociedades capitalistas, as práticas não
cessam de obedecer a uma lógica econômica. (BOURDIEU, 1980 p. 209).

Considerando o ponto de vista de Bourdieu, a prática econômica com aspectos de


desinteresse soa não apenas ingênua como improvável para aqueles que estão envolvidos de
alguma forma nessa prática. Algo comum aos que quase sempre associam a produção e seus
resultados a uma ação completamente arbitrária, na qual um determinado produto
“desinteressado” deveria conseguir reconhecimento apenas por sua potencialidade como
produto, desconsiderando que a lógica do sistema capitalista visualiza previamente a
repercussão, bem como os encaminhamentos lucrativos que são atribuídos a cada bem.
Conforme reforça na citação a seguir, Bourdieu chama a atenção para o fato de não
comungar com o capitalismo e a produção de bens que não se integra a essas estratégias de
consumo preestabelecidas pelo próprio sistema econômico, do mesmo modo que o sujeito
que, uma vez dentro deste sistema, quase nunca ou nunca conseguiria se articular de outra
maneira que não correspondesse ao seu papel dentro dele:
Como ele não conhece outras espécies de interesse além daquele que o
capitalismo produziu [...], o economismo não pode integrar em suas análises
e menos ainda em seus cálculos nenhuma das formas do interesse "não-
econômico": como se o cálculo econômico tivesse conseguido apropriar-se
do terreno objetivamente entregue à lógica impiedosa do "interesse puro",
como diz Marx, apenas deixando uma ilhota sagrada, milagrosamente
poupada pela "água gelada do cálculo egoísta", asilo do que não tem preço,
por excesso ou por falta. (BOURDIEU, 1980 p. 192).

Nessa lógica, estão inseridos homens ou produções de homens que desejam encontrar,
no que têm acesso diariamente, algo que possua um valor senão o econômico. Não mais
envolveria, nessa troca, a apreciação pura ou moralmente valorosa e, por sua vez, isenta de
noções impressas pelo capital. O homem passa a valer tudo que consome ou produz, ainda
que não esteja completamente apropriado de que posição ocupa nesse ínterim, nem mesmo os
efeitos que tal posição ecoa dentro da sociedade na qual está vivendo.
Podemos então refletir, a partir do aspecto que torna um autor como Gullar um
membro desta “cadeia de trocas” que não são mais despretensiosas, mas que, voluntariamente,
o encaixam num sistema do reconhecimento vinculado ao desinteresse da parte do poeta
quando julga que, seu poema, contextualizado politicamente contra as normas que estariam
em vigor, não compactuaria com o instrumento de maior manobra capitalista da nossa
sociedade, o Estado; assim trazendo um dos conceitos mais familiares de Bourdieu – o
habitus – que nos auxilia a pensar o percurso de consagração que viabiliza um poeta como tal,
posicionando-se em desacordo com a política do seu país e que, ao mesmo tempo, estaria
fazendo de sua obra mais militante contra tal, consegue firmar um bem de consumo nas
configurações que o capitalismo certamente entenderia como favorável o acontecimento de
uma expressa repercussão.
Ao apresentar o conceito de habitus, Bourdieu afirma que a disposição de cada agente
no campo de produção tem a ver com sua posição no espaço social e, de maneira
inconsciente, condiciona a visão de seu próprio comportamento e do mundo.

Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de


existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e
transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como
estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de
práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas a seu
fim sem supor a intenção consciente de fins e o domínio instantâneo das
operações necessárias para atingi-los. (BOURDIEU, 1980, p. 88).
Quando nos traz a objetividade das representações que se adaptam diante de uma
finalidade e domínio de outrem, claramente as disposições e as organizações do que se produz
dialogam com as teorias apresentadas acerca da produção. Trazendo para a obra de Gullar, é
possível afirmar que a construção do PS foi elaborada de tal maneira que pudesse consolidar
objetivos preestabelecidos pelo autor no que se refere à propagação da espacialidade e da
memória, que trariam às mãos do público leitor a noção de sua condição como exilado e
saudoso de sua terra natal. Ainda que não se trate de uma obra categorizada como biográfica,
o desabafo do poeta tinha o intuito de vociferar o passado e presentificá-lo, aproximando
todos os que não compartilhavam de sua situação, mas que puderam compreendê-la com base
nas linhas do poema.
Contudo, dialogar com o brasileiro de 1975, por meio da poesia, sabendo-se vítima do
exílio, era querer que o leitor, ao receber a obra, assumisse um lugar de apreciador dos efeitos
heroicos que o sobrevivente ao exílio provavelmente planejou divulgar, o que
automaticamente, privilegiaria o lugar do autor, que outrora não tinha visibilidade. Assim,
percebemos que:

O habitus não depende somente da posição social do agente, de sua situação


atual, mas também de sua trajetória pessoal. Ou seja, "o comportamento de
cada agente é menos função de suas estratégias e seus cálculos explícitos do
que de seu 'senso do jogo', adquirido ao longo de seu itinerário social".
(GARCIA-PARPET, 2003, p. 150).

Reconhecemos, então, a adaptação do habitus ao qual Bourdieu se referira


anteriormente. Perceber-se numa condição visivelmente propícia para produção fez de Gullar
não apenas um delator de suas experiências pessoais, mas um agente que, por meio de sua
trajetória pessoal, entende uma estratégia que pudesse favorecer e dar visibilidade à produção
que não teria sido atingida não fosse a situação social que se encontrava.
O autor direciona através de sua experiência política e social, o seu fazer como agente
de produção, tornando sua trajetória pessoal cenário para produção, protagonizando sua
consagração e conferindo reconhecimento até os dias atuais.
Os dissidentes do exílio – e aqueles que aqui ficaram sob o regime de resistência
contra a ditadura militar de 1970 – enxergaram, catarticamente, a si próprios no poema
visceral que relatava os efeitos do exílio. O poema passou a ser voz coletiva e instrumento de
representação de uma sociedade que se solidarizava com as mesmas causas políticas de
Gullar. Mesmo que diferente de outros, o poeta se sobressaia ao transformar a mazela do
exílio em sublimação, pelos que não tiveram o mesmo pulso de sair do país ou de resistir se
tivessem sido expulsos, ou mesmo os que se calaram e preferiram manifestar-se em silêncio,
ou até aqueles que, sendo artistas e diante da situação política de censura, paralisaram-se ou
encaminharam suas produções para outras que não confrontassem o Estado. Assim, ao terem
contato com um livro construído em forma de poema, com a sensibilidade que refletia a voz
dos pares, a reação do acolhimento foi quase que instantânea. Tratava-se, enfim, de uma obra
de Gullar que, como este já havia escrito em outro livro, seria um texto de muitas vozes, de
um povo em um único poema.

Isso explica a existência de diferenças entre habitus coletivos, de classe,


e habitus individuais. Se Bourdieu reconhece a forte probabilidade de que
diferentes indivíduos, "sendo o produto das mesmas condições objetivas,
[sejam] dotados dos mesmos habitus", lembra, no entanto, que "o princípio
das diferenças entre os habitus individuais reside na singularidade
das trajetórias sociais". (BOURDIEU, 1980, p. 100-101, grifos do autor).

Embora pareça contraditório, acerca desse movimento de transição de trajetórias


individuais e coletivas e vice-versa, ao mesmo tempo, é sabido que qualquer registro ocupa
ambos os interesses de coletividade e de particularizações daquele que o produz. Com Gullar,
não seria diferente. A intenção de compartilhar singularidades de sua trajetória social ao
tempo que cumpre este requisito também diz o que tantos outros que vivenciam seu mesmo
habitus desejariam dizer ou externar, ainda que não fosse com as mesmas palavras, a
sensibilidade do momento vivido.
Bourdieu afirma também que os agentes que compõem o campo de produção já
compreendem se o que foi produzido poderá ter êxito ou não, visto que dentro do próprio
campo já estão estabelecidas, previamente, as condições que podem favorecer o que foi
produzido, diante de uma leitura de como se configura esse sistema e como, possivelmente,
tais bens podem se adaptar às demandas esperadas.

O conceito de habitus permite entender por que o comportamento dos


agentes econômicos pode revelar-se bem adequado às chances objetivas de
êxito, sem ser, no entanto o produto de um cálculo racional. "Quando o
habitus é produto de condições objetivas parecidas com aquelas nas quais
funciona, ele engendra condutas que são perfeitamente adaptadas a essas
condições, sem ser o produto de uma busca consciente e intencional da
adaptação". (BOURDIEU, 2006, p. 53-54).

Para Bourdieu, o produto deve condizer com os anseios objetivos dos que formam
determinado grupo de consumo; o bem cultural e intelectual foge em, alguns aspectos, à
intencionalidade de um resultado aprovativo dos que o consomem e, ainda assim, mantém
através de suas práticas, regularidade do consumo diante do planejamento prévio de atingi-
los.
Mesmo que pareça despretensioso, há, sim, um encaminhamento por trás do produto e
da sua prospecção diante do mercado no qual está inserido. Um produto cultural como o PS,
de certa forma, foi elaborado com condições de adaptar-se ao que seus potenciais
consumidores viviam como habitus, e, claramente, oferecia ao poeta chances promissoras de
reconhecimento popular, ou para leitores ávidos ou mesmo para aqueles que conseguiram
enxergar seus próprios medos e recordações de tempos idos, nas estrofes do poema.
Contudo, esse interesse por parte do autor e o reconhecimento do público envolvem
um viés muito amplo para análise estrita do termo associando-o apenas a trocas simbólicas e
econômicas, sabendo que, dentro da produção do mercado da indústria cultural, as
gratificações simbólicas podem estabelecer diante do bem produzido as mais variadas formas.
Assim, voltado para como se dá esse “interesse” inerente à condição humana, Bourdieu
recorre à terminologia psicanalítica da noção de libido:

Uma das tarefas da sociologia é a de determinar como o mundo social


constitui a libido biológica, pulsão indiferenciada, em libido social,
específica. [...] o trabalho de socialização da libido é, precisamente, o que
transforma as pulsões em interesses específicos, interesses socialmente
constituídos. (BOURDIEU, 1996, p. 141, grifos do autor).

Essa motivação envolve interesses específicos da posição humana diante de um


produto, é cotidianamente estimulada por meio do reconhecimento do mercado e de seus
agentes, que uma vez voltados para o que desperta – ou a vaidade ou a sensação momentânea
de prazer em contato com o bem de consumo –, faz com que não só produtores como também
consumidores se articulem em prol do próprio bem, quando, logicamente para os indivíduos,
essa articulação deveria atuar de maneira contrária.
No mesmo texto, o autor aborda como se manifestam interesses e desinteresses
econômicos, ao dizer que:

As condutas de honra das sociedades aristocráticas ou pré-capitalistas têm


como princípio uma economia de bens simbólicos fundada no recalque
coletivo do interesse [...] que tende a produzir habitus
"desinteressados", habitus antieconômicos, dispostos a recalcar os interesses,
no sentido estrito do termo (isto é, a busca de lucros econômicos).
(BOURDIEU, 1996, p. 151).
O não reconhecimento do capital econômico, nem mesmo do funcionamento da
economia, e atribuir-lhe uma despretensão e desinteresse de acordo com a lógica construída
pelo sistema capitalista formam uma “hipocrisia coletiva” que constrói um jogo simbólico e
descarta que o capital é que move e molda qualquer bem produzido, movendo “[...] (n)um
conjunto de mecanismos que tende a limitar e a dissimular o jogo do interesse e do cálculo
econômico.” (BOURDIEU, 1980, p. 195). 
A mobilidade frenética do mercado vai, aos poucos, ressaltando o valor comercial em
detrimento dos valores que humanizam os sujeitos. Convidar ao descarte cada item ou
indivíduo que não acompanhe tal mobilidade realça o sentimento de perda, por ele ultrapassar
a perda material e por se tratar, então, de uma perda simbólica. Experimentou-se vários tipos
de perda no regime ditatorial, muitas dessas transitavam entre a identidade do próprio cidadão
que o vivenciava, e a volubilidade dos que desejavam produzir algo diferente das
“necessidades” impostas pelo mercado.

A mercantilização nega a memória porque a operação própria de toda nova


mercadoria é substituir a mercadoria anterior, lança-la à lata de lixo da
história. O mercado opera de acordo com uma lógica substitutiva e
metafórica segundo a qual o passado está sempre em vias de tornar-se
obsoleto... Em termos beijaminanos, o mercado chega a transformar
inclusive os mais brutais documentos de bárbarie em radiantes testemunhos
da riqueza da cultura. (AVELAR, 2003, p. 238).

A convergência do que prejudicou todo um país durante os anos do regime ditatorial,


em trunfos e bens de consumo que carregavam o rótulo do progresso, carrega também o
paradoxo de que quanto mais se produz/consome, tanto menos as coisas realmente possuem
valor. De acordo com a citação acima, percebemos que a substituição constante do que é
produzido pelas pessoas torna o passado obsoleto. Logo, o passado presentificado em
narrativa poderia lembrar e reafirmar premissas culturais que, de acordo com o mercado,
deveriam ser esquecidas ou tornadas superficiais; o que passaria a valer, então, era o
compromisso com o que estivesse cotidianamente se atualizando e, por sua vez, tornando-se
descartável.
A substituição das mercadorias, de acordo com o capitalismo, difere da substituição
manifestada no trabalho de luto2. O luto envolve substituição metafórica, o capitalismo
2
A escolha vocabular do “luto” carrega consigo várias demandas metafóricas. A palavra luto vem do
latim luctus, origem do galego e do português medieval loito, vem do verbo lugeo, “chorar”. Associada a
sentimentos profundos de perda, a ideia do luto será abordada a partir de dimensões figurativas que estejam
associadas à sobrevivência e à manutenção da memória daquele que vive o luto pós-ditatorial. Para isso, será
utilizado o conceito do luto à luz do livro Alegorias da derrota, do professor Idelber Avelar, que comunga com o
objetivo deste trabalho. “Se o trabalho do luto só pode ser levado a cabo através da narração de uma história, o
envolve substituição material. Essa substituição buscada pelo trabalho de luto deseja restituir
o passado, o que entra em desacordo com a lógica do mercado que vê no passado agora, uma
mercadoria anacrônica e museificada. Contanto, a resistência da literatura nessas
reminiscências, ao chamar a atenção, no presente, para aquilo que já passou, vai minando, aos
poucos, por reconhecer que o mercado quer algo imediato, evidenciando um descompasso
entre o fazer literário e o mercado.

O imperativo do luto é o imperativo pós-ditatorial por excelência. Nutrindo-


se de uma recordação enlutada que tenta superar o trauma das ditaduras , a
literatura pós-ditatorial leva consigo sementes de uma energia messiânica
que, como o anjo benjaminiano da história, olha o passado, pilha de
escombros, ruínas e derrotas , num esforço para redimi-los, enquanto é
empurrado adiante pelas forças do “progresso” e da “modernização”. Trata-
se aqui de estabelecer uma relação salvífica com um objeto
irrevogavelmente perdido. (AVELAR, 2003, p. 239).

Enquanto encontramos no trabalho do luto o apego ao passado e a tentativa constante


de vivificá-lo como passado, a proposta do sistema capitalista vive em prol da insistência no
futuro. O testemunho vivenciado e que tem o intento de manter-se e de preservar motes
humanos mais vinculados ao que os formam enquanto humanos e sociedade passa a dar lugar
a perspectiva voraz de consumo e de renovação de material a ser consumido. A memória
permanece tendo valor àqueles que insistem em mantê-las; não se trata de passar o valor da
memória, pois se diminui o público que se interessa por ela, e, sim, de mantê-la como valores
que se sobrepõem acima dos comerciais de uso e de troca.
Essa urgência no futuro abre mão da pretensão salvífica mencionada por Avelar. O
objeto bem como o objetivo, que move os literatos que imaginam uma forma compensatória
de mercado, que possa manter ou reestabelecer a aura potencializadora da arte, o que
desvencilharia o artista de outros produtores de bens de consumo; o capitalismo entra e toma
para si esta aura e a alinha com os outros produtos de consumo, intelectuais ou não, e iguala,
padroniza, assim como toda ideia pregada pela grande linha de produção em massa de
qualquer produto dentro do mercado.
A necessidade de ajustar-se aos – sempre – novos tempos faz com que o próprio
presente pareça estar em crise. A literatura foge às dimensões reflexivas e críticas que sempre

dilema do sobrevivente reside no caráter incomensurável e irresolúvel dessa mediação entre experiência e
narrativa: a organização diegética própria do horror vivido é percebida não só como uma intensificação do
próprio sofrimento, mas, o que é pior, como uma traição ao sofrimento dos demais”. (AVELAR, 2003, p. 235-
236).
a circundaram como representação de uma sociedade, passando a buscar uma posição nova e
ajustada, não somente teórica, mas vocabular, de gêneros que assumem mais aceitação, ou
seja, tudo aquilo que possa se encaixar melhor na linha de produção, tudo que não destoe
demasiadamente, nem que transgrida nem que enfatize por meio do passado o que fosse
intempestivo e que por intermédio da produção literária poderia ser esboçado. A pós-ditadura
reforçou com a urgência da escrita, a vulnerabilidade das produções quiçá do próprio homem
das letras.
A literatura, no Brasil, assume nova proposta de colonização. Os padrões modernos, e
até os “pós-modernos”, imprimem, na produção, a colonização estrangeira, dessa vez
ideológica, voluntária. A opção pela alienação nos faz dar as mãos ao colonizador e esvaziar
de sentido nossas bases culturais. Com essa adesão ao pensamento mercadológico, não
somente os registros experienciais ficaram comprometidos como a própria compreensão do
presente. Em especial, na América Latina, essa nova etapa galgada pelo capital foi o papel,
precisamente, desempenhado pelos regimes ditatoriais.

O imperativo do luto se impõe agora (pós-ditadura) num contexto em que a


literatura se viu forçada a abandonar seu papel modernamente privilegiado –
a imaginação de uma outridade não reificada, a redenção do poético dentro
do prosaísmo cotidiano da vida alienada, o vislumbre de uma epifania
redentora... A própria empresa da literatura parece haver chegado, a partir da
crise dessa relação constitutiva com o nome próprio que sempre lhe
caracterizou, a uma situação tendencial de isolamento irreversível. Nesse
sentido, o luto pós-ditatorial seria também um luto pelo literário. (AVELAR,
2003, p. 263).

Alinhar as posições de sujeito, objeto e a literatura pós-ditatorial em todas as suas


oscilações, em todos os seus anseios, faz-nos compreender que o cotidiano trazido pelo capital
trata-se de um hiato, preenchido por excessos que pouco ou nada representam, mas que
isolam o presente do que foi um dia e do que poderá ser. O homem das letras espera tanto a
redenção, mencionada acima, que segue imobilizado pelo passado e pelas perspectivas de
futuro, fazendo das suas produções presentes um mero passar de tempo que nem alcança o
futuro, nem pode ser mais como um dia foi nos tempos idos. O presente passa a ser algo
mecanizado e dia a dia tragado pela máquina do capital. O sentimento do homem se mantém
deslocado constantemente para um dos polos. O sentimento de luto o exila de si.

A perda com a qual a escrita tenta lidar engoliu, melancolicamente, a própria


escrita: o sujeito enlutado que escreve se dá conta de que ele é parte do que
foi dissolvido... A melancolia emerge assim de uma variedade específica de
luto, daquele que fechou um círculo que inclui o próprio sujeito enlutado
como objeto de perda. (AVELAR, 2003, p. 263).

O homem enlutado no sistema pós-ditatorial mantém o deslocamento no tempo e no


espaço para encaixar-se melhor em sua zona de conforto. Curiosamente, Gullar, após o exílio,
reconhece que, como autor, o seu lugar de acolhimento é o passado e nele permanece como
forma de melhor executar sua produção dentro do mercado.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. (Tradução Amélia Cohn) In: COHN, Gabriel.
(Org.). Comunicação e Indústria Cultural, 5ed., São Paulo: T.A. Queiroz, [1962]1987a. p.
287-295.

______; HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação das


massas. In: ______. (Org.). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
p.169-214.

AVELAR, I. Alegorias da derrota: ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América


Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

BOURDIEU, P. A troca dos bens simbólicos. São Paulo: Civilização Brasileira, 2006.

______. Le sens pratique. Paris: Minuit, 1980.        

______. Les structures sociales de l'économie. Paris: Seuil, 2000.     

______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

GARCIA-PARPET, M. F. Des outsiders dans l'économie de marché : Pierre Bourdieu et les


travaux sur l'Algérie. Awal, France, v. 150, n. 27-28, p. 139-152, 2003.

GULLAR, F. Poema sujo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

______. Em parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

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