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achiamé • SOC1 i

JACARÉS & LOBISOMENS

dois ensaios sobre a homossexualidade

Se é possível o ato de alegrar se para uma entidade, e deve ser, pois a


alegria das pessoas que a sustentam é, no fim e ao cabo, seu sentido, então o
Socii está contente. 0 Socii se alegra seriamente ao participar da presente
edição de Jacarés & Lobisomens, de Herbert Daniel e Leila Mícco-lis.

A alegria, aliás, é coisa muito da séria. Buscamos nos definir como


"companheiros de ciência e de afeto", porque a ciência e o conhecimento
não precisam estar contra o afeto. Ao contrário, o afeto e o carinho, sempre
com as marcas da diferença e da desobediência, necessitam do
conhecimento para conscientemente recusar a culpa, para decididamente
enfrentar o medo.

A luta homossexual pelo direito à sua diferença e à sua desobediência, neste


livro desenvolvida com humor, fatos, estilo e coragem, necessita do
conhecimento para fazer a defesa do desejo, se colocando assim ao lado das
demais lutas pelo direito às demais diferenças e desobediências.

Um passo político muito grande é dado, nos parece, quando da luta abstrata
pela abstrata "igualdade" caminhamos à luta concreta pelas concretas
diferenças, para que o ser diferente não mais implique ser superior, ou, ser
inferior, mas implique, justamente, o ser — original, único, e

* especial para si mesmo e para alguém, ou alguéns.

Gustavo Bernardo

JACARÉS & LOBISOMENS

Como enfrentar a questão do homossexualismo sem cair na apologia vulgar


ou na condenação emocional? Trata-se de um enfrentamento cultural, com
suas variantes sociais, políticas, psicológicas etc. Os Autores de Jacarés &
Lobisomens — Herbert Daniel e Leila Míc-colis — entendem que a
luta pelo prazer é uma luta política. Nós também a entendemos: uma luta
fundada no político 24 horas por dia, sem que, com isso, estejamos fazendo
qualquer trocadilho de ordem numérica.

E se o tivéssemos, tudo bem! Afinal, este é um livro sério que se permite


ser alegre o tempo todo (queiram nos perdoar, mas o novo trocadilho, de
ordem semântica, despontou de forma irresistível). A coragem intelectual e
humana dos Autores é modelar: assim como para ser bicha no Brasil (ou na
América Latina) é preciso ser muito macho, pra ser lésbica é preciso ser
muito mulher. É preciso ter muito culhão, é preciso ter muito peito...

Mas este é um livro sério — entendam como quiserem entender o que


significa seriedade para nós. Os entendidos no assunto que se manifestem:
este é um livro aberto à Diferença. A luta. Ao prazer. À necessidade da
opção sexual. Ao sonho e ao devaneio:com muito tato, com muita dor.

Leila Míccolis Herbert Daniel

JACARÉS E LOBISOMENS dois ensaios sobre a homossexualidade

achiamé

Rio de Janeiro

1983

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JACARÉS E LOBISOMENS dois ensaios sobre a homossexualidade

Copyright © 1983 by Herbert Daniel e Leila Míccolis

Esta obra foi editada em regime de co-edição com o SOCII -


Pesquisadores Associados em Ciências Sociais — RJ Direitos
reservados desta edição a Edições Achiamé Ltda.
Ê vedada a reprodução total ou parcial desta obra sem a prévia
autorização da Editora.

Capa

Cláudio Mesquita

Revisão

Maria Cristina Britto

Composição Linotipia Cordeiro

Edições Achiamé Ltda.

Rua da Lapa, 180 sobreloja

Tel.: 222-0222

20021 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Editor

Robson Achiamé Fernandes

Coordenação Editorial Marcos Medeiros Moacy Cirne

Assistente Editorial Maria Cristina Britto

Gerente Comercial Jaques Jonis Netto

“Mulher com mulher dá jacaré, homem com homem, lobisomem”

(dito popular)

SUMARIO
Introito ou Pro-Nomes Pessoais
NOTAS MARGINAIS
ERAM AS LÉSBICAS MARCIANAS?
0 MOVIMENTO HOMOSSEXUAL BRASILEIRO
ORGANIZADO — ESSE QUASE DESCONHECIDO
A SÍNDROME DO PRECONCEITO

SUMARIO
Intróito ou Pro-nomes Pessoais 9

Os anjos do Sexo 13

Grafias Bio-De/Gradáveis ou/A ou/Sa 19

Crômica 29

Notas Marginais 45

Sexão da Revolução 56

Prazer Gênero de Primeira Necessidade 69

Eram as Lésbicas Marcianas? 73

Diário de Bardo 79

O Movimento Homossexual Brasileiro Organizado Esse Quase


Desconhecido 96

Conclusão 110

Anexo 114

A Síndrome do Preconceito 121

Introito ou Pro-Nomes Pessoais


Somos, Leila e Daniel, dois em intersecção nas paralelas de nossas vidas e
trabalho. Ambos somos baixinhos, teimosos, falantes, equilibristas de
palavras, vaidosos e mútuo-admira-dores (pra quem não desconfia, é
fabuloso amar o camarada de ofício). Também somos. O que justifica
nossos presentes ensaios; como tem justificado, pela vida, pseudónimos,
adjetivos e epítetos que nunca chegaram a nos transmutar em jacaré ou
lobisomem. Somos corpos e (como cada corpo) sexos diferentes, que nos
explicitamos a urgencia de derrotar as maneiras usuais das corporificações
do conformismo.

Temos sabido, com o sentido conhecer da pele e da mágoa, a opressão —


que intuímos compartilhar com tantos que ainda se calam. Temos buscado a
disposição de abrir portáis onde ninguém sofra, nem venha a sofrer, as
consequências da tragédia ou holocausto de um sexo triste.

Não queremos definir, como programa, um sexo geral e “alegre” — guei é


só um frió despropósito. Não queremos projetos, não apresentamos
propostas “partidarias”. Apenas nos dispomos, expondo-nos aqui nestes
escritos, a experimentar todas as partilhas viáveis e necessárias para as
partidas para a democracia (não há democracia cantada no coro dos
castrados). Afinal, basta-nos uma definição nada definitiva: definitivo é só
o transitorio.

Indispostos com os comportamentos socialmente regimentais, nunca


tivemos a mínima intenção de sermos bem-comportados: nem na cama,
nem na mesa, nem no gesto, nem na língua, nem no olho; enfim, em
nenhum dos lugares ou órgãos sexuais convencionais edificados e
edificantes. Estes nossos textos são retratos daquela indisposição e de usos
e abusos, espécie de convite a vir-a-ser.

Falamos de um sexo novo — ou melhor, de ‘novos sexos’ — sem estatutos.


Novos porque é a sexualidade renovada cotidianamente de cada um. O
plural se explica pela diversidade não só de atitudes, gostos, escolhas, mas
principalmente de histórias. Cada um de nós é a sua história, nesta praça
de desejos cruzados que é o corpo que nós construímos e que temos que
aprender com a intencionalidade do poeta que forja um verso
surpreendente. O plural é a pessoalidade que nos iguala na diferenciação
absoluta. Sendo todas pessoas, nossa gramática de libertação impõe que
sempre falemos de nós mesmas — machos e fêmeas — no feminino plural.
Desrespeitamos uma regra sintática que impõe o masculino no coletivo
misto, porque desrespeitamos a dominação de um sexo perdido, de uma
humanidade ferozmente macha.

Falamos de nós mesmas nos nossos dois ensaios. De. nossa vida,
imaginação, práticas, sonhos, teorias e outras dimensões. Falamos dos
nossos próprios sexos. “Nossos”? Pronome possessivo que não indica nem
posse, nem propriedade. Nosso pronome é próprio e substantivo —
designação que repudia adjetivos que classificam práticas do corpo de
cada qual: meu-teu-seu — o que pode ser lido assim: mete-o-seu, como
palavra-des-ordem apelando ao exercício da atividade e do ativismo erótico.
A passividade, atribuída às vítimas, é o arquétipo que estigmatiza o
oprimido. Não há passividade sexual; há os que exigem “passivas” para
engrossarem a voz negativa da possessividade.

A multiplicidade de sexos, que escrevendo aqui procuramos desvendar,


serve para derrubar fábulas de um bipartida-rismo sexual que confunde
sexualidade e genitalidade. Os sexos são os que temos: pessoal e
intransferivelmente.

Jacarés e Lobisomens é um trabalho a dois sobre o tema das


homossexualidades. Não é um “estudo”, nem um depoimento: é uma fala
própria da sexualidade. E a FALA não é o feminino do FALO, símbolo
monotonamente de um só gênero, portanto solitário e totalitário. A fala é
democrática — múltipla e conflitiva — portanto solidária e libertária.

Ambos os textos têm mais do que uma divisão, mais ou menos folclórica,
da “questão” homossexual. Não se trata apenas de deixar falar uma bicha e
uma lésbica para comparar as acrobacias das espécies e, ao fim do número,
atirar amendoins compensatórios. Interessamo-nos, esforçamo-
nos, divertimo-nos produzindo um discurso distante do academicismo. Só
caga regra quem se entulha com manuais indigestos, quem come com gula e
sem prazer. Procuramos apenas VER. “Ver, meu bem, é coisa de se
aproximar, sesionando” — é um verso que um de nós escreveu há anos. Ver
— não só a opressão, mas as invenções dos oprimidos. Ver — não só
a defesa dos direitos, mas as razões do direito do oprimido ao ataque. A
partir de ver, não concluímos nenhum prever ou prover preceitos.
Racionalizar o desejo, irracional por excelência, não é só incoerência: é
fascismo. Fugimos aqui de toda tentação de criar um novo catecismo sexual
que venha a substituir o calendário da genitalidade canônica.

Garimpamos, nos veios deste desterrado de “jacarés e lobisomens”, atrás da


preciosidade da sinceridade. Oh, não se exige coragem para expor a(s)
própria(s) homossexualida-de(s)l É preciso só um pouco de paciência e
ironia (esperamos ter tido). Escrevemos sobre nossa vida e opções
sexuais, escola e escolhas, com o mesmo orgulho que nos leva a
contar encantos que nos dão prazer (escrever ou trepar, por exemplos).
Coragem é preciso ter para escapar da facilidade da justificação e do apelo
humilhante à uma vaga “compreensão” ou piedade. Ninguém precisa pedir
desculpa pela própria sexualidade; precisa fundamentalmente livrar-se de
uma culpabilidade imobilizadora. Coragem mesmo é preciso para amar
a vida com todo o seu cortejo de disparidades.

Nossa esperança é contribuir, com umas poucas idéias aqui jogadas, para
que, quando o mundo disser “não pode”, a gente aprenda a responder “eu
quero”.

Herbert Daniel

OS ANJOS DO SEXO
para Liszt, que “não é”, mas que teve: a dignidade de dispersar nas ruas do
Rio alguns anjos — dos nexos.

Invocação ao leitor, ou cantada inicial:

Você sabe o que é ter um amor/ meu senhor?. ../ E por ele quase morrer?

(Lupicínio Rodrigues)

1. Onde o autor revela seu caminho e descaminho no terreno baldio em


questão:

GRAFIAS BIO — DE/GRADÁVEIS ou/A ou/SA


Volto ao jardim/

na certeza que devo chorar/(...)

Devias vir/

para ver os meus olhos tristonhos/

e quem sabe sonhavas meus sonhos/ por fim. . . /

(Cartola)

Era carnaval e 1982, o que não é contraditório. O carnaval já ocorrera em


anos outros mais tenebrosos ou inseguros, sem por isto deixar de ser festejo,
exaltação, desafogo e tantos mais lugaies-comuns para este vale-tudo da
carne.

Voltando de um exílio de sete anos (pelo menos), vim constatar a festa


carioca: despenquei na Cinelándia. Ver e crer, visitar. Visitar apenas: não
tenho talento para folião (condição que não me imuniza da curiosidade,
nem de um leve ressentimento de não poder farrear assim com hora
marcada). Sou dos que observam, torto e fora do calendário; não sirvo para
Natal, reino de Momo, sete de setembro, ou bandeiras e bandeirolas.
Admiro e me afasto. Mas já passei da fase das justificativas acusatórias do
fenômeno: comércio, hipocrisia, etc. Reconheço hoje o que é minha pura
incapacidade sentimental de me perder na ingenuidade das datas. Cada
um tem o corpo que tem, com seu séquito de disparidades. Assim,
• fantasiado de cotidiano, fui ver os que se vestiam com as ade-quações do
dia. Disfarces catárticos? Não: pulsões concretizadas em pano, brilhos e
confeitos, realidade momentânea duma permissividade rara, só válida por
poucos dias.

Grande sucesso fazia na Avenida Rio Branco a corpulenta Marilyn,


formidável travesti, vestido elegantemente com um resplandescente rabo-
de-peixe verde carregado de vidrilhos e pingentes. Ser de fábula, não era
uma mera pretensão de fantasiar-se de mulher e tentar reproduzir a imagem
simbolizada. Era uma caricatura dúbia da fêmea.
Marilyn não era a única bicha na avenida: de jeito nenhum; seria uma das
mais engraçadas e com seu número atraía um grupo importante que a
seguia, provocando. E a cada deixa do público, el£1 retrucava sem levar
troco. Um grande ator certamente, afiado na improvisação, com alguns
recursos cênicos formidáveis.

— Êi, Maria, gritou um senhor munido de máquina fotográfica.

— Maria, não, cavalheiro: Ma-ri-lyn! (silabava: mé-ri-line.)

— Vira-pra cá, preu tirar uma foto.

— Pra capa de Manchete? Eu sabia que ainda seria revelação de beleza-82.


Peraí, deixa eu retocar a maquiagem... Estou bem?

Para acertar a caiação do rosto, Marilyn mirava-se no anel exagerado que


trazia no anular, um enorme pedaço de espelho. Fazia caras e bocas para a
improvisada penteadeira de mão.

— Tira uma foto dela com as crianças, aconselhou a mulher do fotógrafo.

Marilyn posou com os dois menininhos fantasiados de pirata.

— Aii, deu um berro histérico, ai, ai, ui!

__ ??

— É o flashe, minha filha. Sempre me assusta. Sou muito sensível e tímida.

Uma senhora, acompanhada do filhinho de dez anos, curtindo a cena,


provocou:

— Você tá linda. Mas precisa se depilar.

Marilyn além de grande, o que um redator apressado chamaria de “pessoa


de compleição robusta”, tinha grossos pêlos nas costas, nos braços, nas
axilas.
— Depilar já era, queridoca. Libere-se dos preconceitos, aconselhou o
travesti, caricatura não só delas, mas daquehw liberadas.

— Debaixo do braço fica feio, argumentou a senhora.

— Ah, é que eu sou européia! Já não usam mais tirar os pêlos. Tá na época
de transar os pêlos, minha filha. Curtir o próprio corpinho.

— Fica feio, revidou a plácida dona-de-casa, ciente e inconsciente dos


hábitos das pequenas mutilações a serviço dos machos.

— Feio nada! Fica é safado, analisou Marilyn. Essas européias, meu bem,
são todas umas porcas espertalhonas. São cheias de mumunha. Na .hora da
coisa levantam os braços. Assim, ó! Endoidam a rapaziada.

Gritou e levantou os braços, mostrando a pornocabeleira do sovaco:

— É um tesão, né, garotão?

O rapaz interpelado riu e agarrou-se na cintura da bicha:

— Vão dançar, vão. ..

— Viu? Já pintou tarado. Não disse? Faça como eu, sugeriu à mãe depilada.
Esses homens querem mesmo é sem-vergonhice. Aproveite, filhota.

O espetáculo continuava. Aquela não era a única bicha na Avenida, mas das
mais talentosas.

— Ator de um personagem só, comentou Cláudio, que me acompanhava.

— O texto é bom, a mise-en-scène perfeita. Mas o que deu trabalho para


preparar a peça, hein? Imagino o que ele não teve de fazer, como
laboratório e como ensaio, a vida inteira, para chegar a isso, comentei.

Muitas e outras bichices passeavam ali, inclusive Cláudio, Paulo e eu, bem
serinhos, vejtidinhos de despistados. Eu, o mais enrustido de todos, de
macacão — embora um macacão meio avançadinho, de pano azul brilhante.
Paulo (meu namorado), com seu corpo de ginasta macho, estava mais ou
menos lembrando um capoeirista, com peito nu e calça branca de cetim.
Cláudio (meu companheiro-cônjuge), mais bandeira, de calção branco,
semi-transparente. Como eu, ele não via o carnaval há muitos anos, e
emputeceu:

— Amanhã não venho assim. Tô vestido como uma bicha enrustida: o pior
tipo. Amanhã desbundo, pó. Venho na minha. Nada disso de querer
disfarçar na fantasia.

Cláudio não gosta de travestir-se, mas usa suas roupas como estandartes.
No seu corpo, tradicionalmente, pendurou decorações “quais bandeiras
agitadas”, como na canção, fazendo seu “estranho festival”. Seu estilo é
vestir-se de dourado no palco das perdidas ilusões. Para se mostrar belo,
como de fato é. E ser desejado, o que para ele é fácil. E tão mais fácil
quanto necessário. Quanto mais bonito é um, mais exibe e impõe a suprema
precisão de fazer que todos reconheçam o seu próprio desejo. Cláudio,
desde que o conheci há 11 anos, sempre foi uma das pessoas mais
conscientes dos signos do vestuário. Seu discurso de hábitos e costumes
sempre foi um manifesto e mais do que uma proposta: uma prática do
próprio erótico. Às vezes, invejo. Mas para mim o caso é outro.

Feinho, tenho que elaborar outra linguagem, que já sei que enfeites não são
modos de expressão uniformes. A cada um segundo suas necessidades, para
cada um segundo suas capacitações físicas. Corpos e corpo. O meu é este.
Como vai? Mal, obrigado. Com isto me arranjo e desarranjo. Aprendo e
desaprendo. Evoluo nas avenidas possíveis, provocando meus ritmos.

No carne-vale-hoje do tríduo de muitos dias do espetáculo pagão, começo


falando do corpo de carne, suas linguagens, e do aprendizado dessa pele,
osso, fantasias e canais. Primeiro tema.

No passeio público, na descontração de aceitar tudo como gozo, me deu


uma vontade de falar com aquela gente que aplaudia rindo o espetáculo de
Marilyn. Digamos que eu tivesse coragem de falar àquela senhora que
raspava os pentelhos axilares:

— Minha senhora, se Marilyn fosse seu filho, como é que a senhora


reagiría?
Pergunto para os pais que me lêem, o que vale a mesma coisa. Para meus
pais, não perguntei nada, mas respondí com algumas dúvidas que os
entristeceram, sem que as minhas respostas aliviassem ou tranqüilizassem.
Não se amputa o sonho de um de reproduzir no descendente a imagem linda
que se fez para si, e não foi, mas projetou como hipótese no herdeiro.

Soube de pais que dizem:

— Se meu filho fosse bicha, eu matava.

Não precisa, meu senhor. Digo-vos, em verdade, que isso que chamais ser
bicha é uma morte provisória, um ensinamento do inútil, uma transição para
o estéril. Complicado? Não. Só quero dizer: ninguém é bicha, meu senhor,
aprende a ser. E pode aprender de muitas formas, tanto quanto o
senhor aprendeu a ser provável carrasco-de-viado. Ninguém nasce assim.
Isso tudo, vítima ou carrasco, é papel aprendido, que não vem de geração:
se assim NÃO se nasce, assim se pode morrer.

Outro tema: que não haja mortos ou feridos, mas a vida sem guilhotinas,
sem amputações educacionais; nem mesmo giletes depiladoras. Certamente
não falarei dos pêlos, pouco me preocuparei com a raspagem. Quero insistir
na navalha, cisei de tantas estatuarias que nos pesam com formidáveis
alegorias de carros carnavalescos que empurramos achando que estamos
sambando.

Pois então, Marilyn decorou — deve ter sido barra — o seu papel. Outros
homossexuais também, que os há de múltiplas variedades. Falar de bicha é
como falar do bicho, mera generalização, que inclui o invisível protozoário,
o veado, o viado e mais humanos.

Mais perguntas faria na Avenida, aos mil variantes:

— Você, rapaz, que disse, como escutei bem, que aquele cu da bicha semi-
nua era um dos mais quentes da cidade, que homossexual você é? E por
quê? E por que aquele nojo atravessado de ver naquele corpo, tão bonito,
apenas um buraco escatológico, um cu com merda, e não um poço de
pessoa onde teu gozo podia ter oásis para os teus anais de medos oblíquos?
O carnaval é uma anistia parcial e utilitária — como a da ditadura, em 79:
dá direito a liberações restritas, a diversões genéricas. Liberação com
limites: libertar-se do quê? E o quê? Apenas o riso? Claro, uma forma do
gozo. E a dor? Outro gozo? Onde esta se libera senão na intimidade que
não tem limite de hora?

Bicha é coisa menos grave até a terça-feira gorda.

É, eu não fui anistiado, não. Meu exílio terminou por prescrição das minhas
penas. Quer dizer, um dos exílios políticos. Bicha, porém, ainda não teve
anistia. Problemas políticos. Pra quando a irrestrição?

Duvido do samba de arquibancada, da coreografia de luxo, dos direitos


concedidos. Continuo minhas questões:

Direito à homossexualidade? E o que são tais direitos? O que afinal é isto:


homossexualidade? É explicável? E como?

Além dos dias de festa, no deslocamento da segregação, encontramos os


atores de um só papel, o seu: os tantos vários homens-sexuais e as tantas
variantes sexuais hetero-gêneras. E esse papel, como foi aprendido,
decorado e condecorado? Será intuído ou instilado?

E é o quê, a repressão? Ela se dirige contra quem? Contra a imagem do des-


viado? Mas quem é “homossexual”? Contra “minorias”? Que aritmética
determina tais percenta-gens de massacrados? Que absurda contabilidade
inventou as partições entre majoritários e outros diminuídos?

Neste ensaio, tentativa e erros, tentarei algumas respostas. Segundo minhas


vivências, , naturalmente. Aqui trabalharei como numa espécie de não-
depoimento.

Posso tentar clareza, quando a tiver, mas sem claridade, que por aqui, no
tereno baldio da perversão, academia de penumbras, as luzes são névoas.

♦♦*
Logo que retornei ao Brasil publiquei um livro onde falo dos meus anos de
clandestinidade até 1974 (meu exílio brasileiro), da vivência no asilo
europeu e do desterro geral do homossexual. Aí teve gente que me disse:
“você foi corajoso de contar aquilo tudo”. Coragem? Não vejo nenhuma.
Talvez lucidez e alívio. Mas nesta nossa terra pra se ser bicha é preciso
tener cojones. É preciso ser macho pra caralho, para não ser machista!

Uma amiga me escreveu, de Minas. Contava que amara o meu livro, mas
que, em geral, “os homens não gosta'ram da parte em que se falava da
homossexualidade”. Reli a frase. Normalmente tenho dificuldades com o
vocabulário que me coloca fora da explicitação sexual. Mas é corrente
dividir o mundo em homens, mulheres e homossexuais. Ser não sendo? Eu?
Mulher, nem mesmo imitação, sou ou posso parecer ser (me falta
substância). Com-po(a)rto-me masculino, perfeita e infelizmente.

Minha querida Sheila me avisa, reclamando: “não se meta a compreender as


mulheres. Você não é.” Mas não quero “compreender”, não. Quero
compartilhar, por puro amor e por carência. Como homem, preciso delas,
para aprender e desaprender o sexo do opressor: mesmo o da fêmea
opressora. (A Leila, neste mesmo livro que dividimos, rima meu
nome duma maneira com que eu gostaria de solucionar a vida. Leila, meu
tesão, quem me dera um dia merecer seus versos lindos.)

O mais divertido é que muita gente disse que eu “confessava” minha


homossexualidade (ou meu pecado?). Acontece que consegui passar seis
anos fugindo da polícia e nunca fui preso, nem torturado, para ser obrigado
a cçjnfessar. Nem mesmo depor. Não seria agora que. . . Enfim, o que
procuro? Diálogo (palavra que na tradução, com graça grega, seria
a dialética).

Anos a fio, carregando a pecha de terrível “terrorista”, um pânico me


assombrou: que “descobrissem” que eu ERA! Vivi um quase pesadelo,
pensando que os jornais, que certa vez me classificaram de “braço direito de
Lamarca”, poderiam estampar esta manchete assustadora: “Guerrilheiro
Bicha”. Ou: “O terrorista era um tremendo invertido”... Na época a gente
imaginava que essas coisas eram ofensivas e “taras sexuais” eram reservas
(i)morais da Pátria da direita. À esquerda éramos abstratos, voláteis,
imunes; o corpo-militante era o corpo de um anjo exterminador de sexo
exterminado. Não é por outra razão que eu — e todos! — silenciava.
Bicha admissível, só a caladinha.

Hoje, pelo avesso, uns e outros equivocados usam o linguajar da extorsão


da intimidade: querem que o homossexual “confesse” ou “deponha”. O que
querem esses hetero-inves-tigadores (Aein/erogadores)?

Procuro atualmente expor(me), em primeira pessoa, mas excêntrica. Não


esse sujeito indiviso e central do discurso, uma satisfeita consciência
teórica, mas um dúbio autor que deixa escapar as manifestações do seu
desejo, tentando ordenar suas duplicidades excéntricas. Falo de eu, como
quem inventa com intencionalidade, para poder sustentar o diálogo com
outras intencionalidades (as de vocês). Se organizo minhas idéias,
no decorrer do meu desejo, nem por isto quero lhes transmitir uma espécie
de auto-análise, pois não estou num divã-livro, duma psicanálise mal
entendida. Minha postura não é a do dizer psicanalista, orelha do falar
alheio, nem a das livres-associações estruturantes do analisando, boca-do-
céu nublado do desejo que terá sido.2

Se me permito coser idéias sobre a sexualidade, não é que creia que uma
experiência que tive — em política e em sexualidade, como guerrilheiro e
bicha — me dê títulos e direitos, mas porque esta experiência me impõe
agora a busca do prazer de escrever esclarecendo, opção e vocação que me
escolhi. Não me meteria jamais a falar de uma igualdade generalizante de
seres qualificados com seus seccionados gostos, perversos ou pervertidos.
Muito menos impingiría (puro engano ideológico do egocentrismo) minha
confissão, como se fosse válida por sê-la: confessional e sincera, “verdade”
apenas por carregar-se da ilusão da honestidade. Nem todos podem ou
sabem falar compreensivelmente da sua própria experiência, por mais rica
seja ela. É preciso exercitar-se muito, para tornar a vivência uma escritura
vital, aprender duramente a modelar as observações numa visão pelo menos
Original. Todos vêem, mas rever revivendo o objeto é função do ofício do
escritor. É uma bobagem, que se tornou mania demagógica, pensar que todo
“depoimento” é válido por transmitir veracidade (ou inclusive
verossimilhanças). Na maior parte das vezes o testemunho transfere tão-so-
mente uma similitude verdadeira, simples consciência atual do que ficou
desse resto, rest-o/ho, visão de um participio (onde pretensamente se
participou). Depor não exige apenas a boa-vontade desse vago eu-conscien-
te, mito fundador da individualidade e duma insinuante filosofia do
totalitarismo (com seu culto e personalidade). Depor exige o artesanato de
organizar nas brechas do discurso consciente as expressões incoerentes do
inconsciente, instância móvel onde o passado não o é, mas uma re-escritura
sempre presente pontuando o passado, dando constante significação ao que
terá sido. Perfeito, o passado nunca o é, senão per-feito, perfazendo-se a
cada instante. Nada aconteceu; terá acontecido segundo os parâmetros
dados pelo presentemente.

Viver são revivências.

Aqui não faço um estudo“especializado”, nem de “especialista” (não sou


nenhum técnico em viadologia, bichótica ou pederastografia). A ciência
“especialista” da sexualidade é exclusivamente uma estruturação do mito
moderno do Corpo: toda cátedra despeja do seu alto uma tecnologia de
constituição corporal que só serve para nos vestir com preconceitos, altos
conceitos do que deveríamos ser. Muito menos do que proibir excessos do
Corpo, a Ciência força um molejo, um jogo, uma linguagem padrão, com
afirmações e as necessárias e decorrentes negações. A Ciência não mente,
nem distorce: simplesmente é o poder de construir o objeto do seu
estudo. Todo saber é um dos modos do fazer.

•♦*

Entre as muitas opções que fiz na vida, situo a minha qualificação de bicha,
gosto que tenho e curto, jeito que fui desenvolvendo. Opção? Não se creia
que trato de uma escolha entre gostos ou saídas. Opção envolve
necessidade, vontade e desejo.

Diz velho refrão: gosto não se discute. Claro que não! Gosto se INCUTE,
assim como o sabor da pimenta brava ou da carne podre (“faisandée”, para
ficar na elegância do menu civilizado). Agora: gosto imposto não é deposto.
Fica e forma. Para que não permaneça como pura imposição é preciso
trabalhá-lo para fins adequados à coexistência, para que todo gosto por
qualquer gosto seja gostar do gosto alheio, amar o amargo sem dissabores,
liberar o paladar de todos para todas as frutas do real.
E no entanto o primeiro passo da sensibilidade, que aprendemos nas
escolas, é discutir o gesto alheio, limitá-lo. Somos forçados a admitir a
igualdade de diferenciações, nunca a reconhecer a diferenciação em sua
totalidade. Ensinadinhos, viciadinhos, aprendemos a diferenciar, de tal
forma que muitos “diferentes” fazem entre si uma uniformidade
cercada, bem murada. O mundo se divide em diferentes que — pura ironia
— são iguais entre si. Divida para vencer, é a guerra que ensina. Raças,
tipos, classes, espécies, ramos, cada qual faz parte de um buraco de
diferentes-similares, vive nas neblinas da ignorância da sua total e absoluta
desigualdade individual. Assim se constituem “minorias”, “guetos”,
“submundos”, “subculturas”. E cada um desses abismos é uma escola-de-
sombra, uma escolha da sombra, onde se apagam os contornos, onde se
exclui a plena possibilidade de desempenhar suas capacidades próprias, de
tomar consciência das pessoais necessidades. Sem potencialidades, sem
vontade, os povoado-res de cada sombra servem de produtores para a única
necessidade que dá lucro, e uniformiza na claridão da cegueira: a fome e a
liberdade de ter fome. Aquela fome que nenhum alimento sacia, pois é a
antropofagia da violentação do poder.

Fome política e politizada. Uma fome-noite onde todos os gostos são


pardos, desgostos. Fome vinda da indiferença: a fome da Morte — pura
indiferença.

2. Onde unia piada revela a multiplicidade do sexual:

CRÓMICA
As coisas estão no mundo/

só que eu preciso aprender. . . /

(Paulinho da Viola)

Quem me dera poder aprender a desenhar tão significativamente, com cores


tão primarias, quanto as criancinhas. Continuo preto e branco, como minhas
roupas sem elegância. Alguém diría que escolho cores mortas, que visto
ilustrações en-rustidas, porque ainda não assumi o que sou. Mas
cromatismos e vestes são formas de muitas pulsões, e o sexo é uma
paisagem de forças cegas e-videntes. Os hábitos que cobrem meu jeito são
jeitos dos hábitos que adquiri e não* mais perderei. Ou perderei, se isto
pintar. Não desbundo em panos e pendões de bandeirinhas. Lábaro que
ostento, e as estrelas de uma noite, meu sexo sem sol (multicor), mas
divertido.

Escrevo em bancos públicos, vendo passar o mundo e seus modos. Escrevo


crómicas, naturalmente. Crómica, a ser registrado em dicionário, tem
anedota e colorido^ Piada.

Piada já fui — <e sou. De “bicha”, essa afronta ao mito fundamental que
acalentamos, mito que reza que o humano se reparte em dois sexos
biológicos, lógicos e inequívocos.

O humor, como a poesia, são poderosas formas de “apreensão do real”, e


que, entretanto, são pouco consideradas enquanto valor de método, na nossa
civilização adoradora do totem exclusivista — e totalitário — da (cons)
ciência. Para evitar as armadilhas da análise que parte sempre da
dualidade do sexo, contarei uma piadinha manjada:

Debaixo da Ponte, uma Bicha se fazia enrabar por seu Macho. Passando
naqueles ermos, um Respeitável Cidadão, honesto e labutador, escandaliza-
se com a cena pública de baixos instintos. Invectiva, com fortes palavras, a
Bicha e seu Comedor, em termos formais e censuradores. Como única
reação a Bicha, tranquilamente, diz ao seu Metedor:

— Tira, Jorge. (A pronuncia da Bicha, para ser realmente engraçada, deve


ser afetada, palatizando muito, chiando ferinamente. Ela diz: “thira,
Chorxe”.)

Jorge tira e a Bicha ataca de maiéutica socrática:

— Escuta, Cidadão: esta ponte é sua?

O Cidadão Respeitável, surpreso, reage prontamente. Diz “não” e


acrescenta um moralista discurso sobre o decoro público, os bons costumes,
a Ordem e a Lei. A Bicha retoma, impávido colosso:

— Escuta, Cidadão: este pau é seu?

— Claro que não, esbraveja o Respeitável Cidadão, levando púdico e


trêmulo as mãos sobre o púbis ligeiramente posto em dúvida, acrescentando
uma catilinária sobre a Propriedade, a Moral, A Família, a Pátria e outras
potestades.

O que não altera a Bicha, que avança:

— Escuta, Cidadão: este cu é seu?

— Não, grita apoplético o Respeitável Cidadão, colocando as mãos nas


costas, protegendo o seu, e grunhindo apenas, falto agora de outros
argumentos.

— Então bota, Chorxe.

E continuam a trepada.

Nessa pequena cena mitológica já não encontramos com a sexualidade


encarada sob sua forma dupla, senão como recurso último — que produz a
disparidade excessiva da cena, fazendo daí nascer um ex-sexo, traduzido em
forma de impulso ao riso. Aqui temos quatro aspectos fundamentais do
problema: 1) a Bicha; 2) Chorxe; 3) O Respeitável Cidadão; 4) A Ponte.

Serão, como veremos, os aspectos da “relação sexual” — não apenas dual,


mas facetada em múltiplas questões. Consideremos cada uma dessas arestas
da nossa pequena fábula.

+ A BICHA

Para usar uma língua “fácil e chão” (como a queriam os cronistas


quinhentistas, descrevendo com agucidade as opulências das exóticas terras
brasílicas) diz-se bicha, louca ou viado, para os machos; e sapatão,
fanchona ou lésbica, para as fêmeas. Ninguém tem dúvida, empregando
esses ou outros sinônimos do farto vocabulário do sexual, da exatidão do
que nomeia. Ao nomeado, porém, as certezas não chegam tão rapidamente.
Quem É? É é o quê? E como é ser? (Para o designado a aprendizagem será
longa.)

Os termos registrados em dicionários, chulos, eufêmicos ou científicos,


qualificam, com extrema simplicidade sempre, às vezes com alto valor
cromático, um aspecto da sexualidade, isto é, das “relações sexuais”. Mas a
complicação começa quando se tenta explicar o que são as relações entre os
sexos. Pra começo de papo: quantos e quais são os sexos que entram em
“relação”?

A linguagem corrente, ou seja, a ideologia corrente, parte do princípio de


uma dualidade fundamental, dois “sexos” primitivos que travam feroz
combate na arena do social. “Macho e fêmea os criou”, diz o antigo livro,
firmando uma rigorosa polarização que, logo, logo, se complica. As
fronteiras dessa duplicidade básica não são precisas e o que acontece
nessa terra-de-ninguém intersexual é o tema geral da maioria
das conversações familiares. Ê a evidência mais simples qúe Homem e
Mulher são papéis sociais que se aprendem, às vezes com alguma
dificuldade. Ser homem ou mulher não é apenas ter um sexo, mas adquirir
as confusas ornamentações distintivas de cada sexo. A questão ficaria
reduzida a uma tarefa prática: como se produz um homem ou uma mulher?
O que determina essa produção? A resposta mais simples, e que funda todas
as confusões posteriores, diz que há uma diferenciação mínima da espécie,
garantia mesma da procriação. Fundamos assim, como ponto de partida
para toda nomenclatura, a existência de um “corpo”, conceito muito
fundamental para ser discutido em sua realidade. O axioma (corpo) facilita
a estruturação de todas as explicações matemáticas do sexual, a produção
dos teoremas com que organizamos nossa ciência da sexualidade.

Mas a explicação encontra uma barreira imediata. Ao reduzirmos a questão


ao animal biológico que se procria, des-mentimos a informação mais
imediata que nos fornece nosso cotidiano: o homem é um animal, sim, mas
o conhecido “zoon politikoon” (animal social), como bem o definiu
Aristóteles. O corpo humano não é mero objeto de uma zoologia; o seu
desenvolvimento não se passa mais segundo as leis de uma “História
Natural”. A natureza do humano é já a sua História. Social.
Qualquer “teoria” da sexualidade que parta da existência de uma bipartição
entre sexos, que estabelecem entre si “relações”, comete um engano
primário: a admissão dessa polaridade, exclusivamente biológica; uma
“lógica biológica”, ou seja, uma fantástica e suposta “natureza”
determinando a realidade do social. A hipótese de uma repartição mínima
do humano entre dois eixos não nos leva senão a becos sem saída. Isso
evidencia-se, por exemplo, quando as “perversões” devem ser analisadas.

“O termo genérico ‘perversões’ serve para designar o conjunto de


manifestações sexuais que não servem à função de reprodução”, ensina uma
definição de J. M. Palmier, em Sur Marcuse. (Palmier fala de reprodução
para designar o que prefiro denominar “procriação”). A definição de
“perversão” é sempre apresentada assim, rápida e rasteira. O dicionário
é taxativo: “qualquer anomalia do comportamento sexual” (Aurélio).
Naturalmente, sendo qualquer “comportamento sexual” humano uma
normal anomalia, enfiamos, dentro da generalidade “perversão”, toda
sexualidade que não seja estritamente genital, heterossexual, monogâmica e
procriativa.

Qualquer ser humano que pisou ou, se a sorte deixar, pisará este vale de
lágrimas é exímio praticante de uma qualquer perversão. O sexo normativo
é meramente o texto da lei. Na prática, o papai-mamãe-no-escuro é mero
disfarce neurótico, exercício de angustiados. A humanidade vira, segundo
os parâmetros da sexuàlidade dual, um esmagado sanduíche de carne entre
a perversão e a angústia.

A Bicha, ou o Viado (a não se confundir jamais com “veado”, mera espécie


em vias de extinção), torna-se, segundo nossa piada, um substantivo. Não se
trata da qualidade sexual de um ente, mas de uma entidade nacional,
autónoma, pública e notoria.

A Bicha é, no fundo, uma Imitação. Uma Imitação da Fêmea. A definição


da “bicha” parte duma localização precisa do individuo no “ato sexual”,
considerado como “relação entre dois sexos”. Ora, como se trata de um
individuo masculino que executa um papel feminino, o deslocamento da
função é a origem do riso. É muito gozado um homem que ocupa um lugar
da mulher. O caso inverso é menos engraçado, o que faz do lesbianismo
menos rico em piadas. Por qué? Porque quando uma mulher imita um
homem, ocupa o seu lugar, isto é, quando possa ser insinuada a ausência do
macho, a coisa torna-se muito mais grave e cheia de ameaças.
Menos engraçada, a mulher-macha é um disparate coberto de perigos. E não
faz rir. Daí que o lesbianismo é muito mais utilizado como recurso erótico
(para os machos), manipulando com certas fantasias primitivas.

.A Bicha, no seu estereotipo, como Imitação Acabada da Fêmea, vai


deslizar para ocupar uma ausência nítida na piada: a ausência (recusa) da
Mulher. Evidentemente o Respeitável Cidadão não tem sexo. Tanto poderia
ser Macho como Fêmea (a estória poderia ser contada com uma beata, que
acabasse de sair da missa). Como veremos, a característica do Respeitável
Cidadão é a sua “indiferenciação”. Mas, beata ou burocrata, tanto faz. A
ausência continua.

Dessa forma nossa história nos fornece uma classificação definitiva da


Bicha, muito mais precisa do que toda terminologia aparentemente
científica (como, por exemplo, “homossexual”), que usa sempre os recursos
dos limites entre dois sexos, falando de sexos iguais e diferentes. . . A Bicha
é, então, Ausência da Fêmea, presença da ausência. Inversamente, também
(como presença de um macho imitando a Ausente), a ausência da presença
do Macho. Não se “localizando” no sexo — tal como é convencionalmente
definido — a bicha é um fenômeno (risível): sua presença indica apenas o
Prazer como função do ato sexual (reparem: digo função e não
objetivo). Puro Gozo — a partir da ausência do sexual conformado
e ordenado —, a Bicha é portanto o rigor extremo da Perversão.

A Bicha, sem nome na piada, chamar-se-ia, por exemplo, Marilyn


Aparecida, nome de guerra. De guerra sim, com suas oatalhas perdidas.
Mas o nome de origem, de antes, poderia ser, por exemplo, João José Pedro
de Oliveira e Silva e Cruz e Souza e. ..

Entre um nome e outro há toda urna Historia, ou um roteiro, que parte de


um corpo (masculino, no caso) predeterminado e chega a um sexo ensinado,
que passa a ser admitido expressamente como opção no novo nome de
Bicha. Se aqui o nome é a associação de um dos mitos de Corpo favoritos
do século (La Monroe) e uma designação da Santa Padroeira, tudo é so para
mostrar certas regras do ensino e formação: a ação constituidora da
moralidade da época enquanto poder de organização da sexualidade
individual (ou Poder, apenas).

Até aqui, então, acentuamos algumas características da Bicha.


Recapitulemos, acrescentando:

a. Bicha é uma definição que parte do inexplicável incómodo dum


“deslocamento” no espaço da sexualidade dual. O que significa uma
dificuldade de ocupação regular do corpo (o corpo mitológico que
aprendemos). Resultado lógico: o corpo (real) da Bicha é um organismo
intermediario numa localização (sexo) intermediária. A nova área precisa
ser registrada, mapeada, ordenada, legislada. Tudo começa como se se
tratasse da descoberta de um novo mundo; logo, naturalmente, da
necessidade de encontrar novas toponimias. Difícil tarefa, o descobrimento
da novidade permite enganos: pen-sa-se primeiro numa Ilha, a seguir numa
Terra, depois num Continente. Os adjetivos patronímicos serão também
enganadores: diz-se “índios”, quando se planejam índias Orientais. Diz-se
bicha, viado, homófilo, homossexual etc., quando se planeja uma imitação
da ausente.

No caso do “homossexualismo feminino” a questão será diferente, já que


ideologicamente o “macho” nunca pode estar alísente. Não se esqueça que a
ideologia que gera a mitologia é a dominante, isto é, machista, exclusivista,
possessiva, falo-crática. O que vai complicar a relação da lésbica: um
estereótipo menos definido, de sexualidade mais difusa. Aliás,
toda sexualidade feminina é estabelecida como uma nebulosa: é concebida
como passividade pura, de tal forma que passa sempre por “receptiva”,
raramente por “doadora”, nunca como OPÇÃO voluntaria. Assim o
lesbianismo é uma espécie de substituição, não de imitação: é uma
perversão onde o objeto ausente — no caso, o macho — é substituido sem
ser realmente imitado. Seu lugar vago não é vazio. De urna forma ge-ral a
sexualidade feminina, quando se torna ativa, na busca exata do gozo —
qualquer que seja ele —, é entendida — pela ideologia dominante — como
nova perversão. A mulher, no estereotipo fundamental, não goza, nem deve
gozar. Só goza quando se torna um tipo qualquer de perversão: a prostituta,
a piranha, a de “furor uterino”, a lésbica, ou — mutatis mutandis — a Bicha.
b. A Bicha é um aprendizado de um novo Nome. Não apenas um adjetivo
ao nome original, mas um substantivo substituto constituidor. Esse
aprendizado é também a adoção de um discurso normalmente
autojustificativo. Note-se que na nossa Cena Mitológica apenas dois
elementos falam e não são os elementos que participam na relação dita
sexual. O discurso da Bicha é definitivo e absolutamente primordial — é a
linha condutora de toda a trama. Discurso justificativo, sim, aparentemente
contestador, mas na sua própria essência moralista e irrespondível. A
dificuldade não é descobrir a ação de repressão do discurso do Respeitável
Cidadão, mas a ação forma-dora do discurso da própria Bicha. Não é
proveitoso analisar apenas o discurso oficial sobre as Bichas, mas criticar o
discurso oficiante das próprias bichas, isto é, o que nesse discurso é
transferência da ação do Poder.

Falar •sobre a homossexualidade implica urna postura específica: ou se fala


de um ponto de vista exterior (“científico”), ou se fala de dentro, isto é,
como a homossexualidade fala. Neste segundo caso, pode-se gerar uma
ideologia cheia de falseamentos, defensiva, explicativa etc. Tal ideologia
é apenas a contrapartida da ideologia dominante. Por isso é importante uma
crítica — exatamente o contrário do depoimento, ou de um auto de defesa.
Pelas características mesmas da sexualidade, o único discurso capaz de
escapar das tramóias do Poder é uma análise autocrítica: falar da própria
sexualidade (homo/hetero. . .?) sem alheamentos ou alienação.

Um lugar comum do liberalismo (até mesmo avançado) recorre ao


eufemismo de postular que sexo é um comportamento entre duas pessoas.
“O que duas pessoas fazem na cama é problema delas”, afirma-se com a
mesma leviandade com que se supõe que a liberdade de um termina onde
começa a liberdade do outro. O liberalismo, engano clássico da consciência,
supõe o social como contrato entre indivíduos. Mas o que existe
(socialmente) são pessoas, conjunto de complexas relações que forma o
participante de uma época historicamente dada. O que se passa na cama do
meu vizinho me interessa tanto quanto o que se passa na minha. Devemos
exigir saber como se passam as trepadas do próximo, pois são trepadas onde
estou, como contemporâneo. Exijo o meu direito de conhecer o que se passa
na cama ao lado, tanto quanto seu(s) ocupante(s) interfere(m) por sincronia
na minha cama. Vivemos uma orgia — pura — e trepamos em grupo. O
acordo social não passa por indivíduos celulares, mas como jogo
de necessidades e capacidades coletivas. Não exijo (nem posso) poder de
interferência, mas simplesmente a posse no patrimônio comum dos corpos
contemporâneos.

+ CHORXE

Jorge, cavaleiro com sua lança de enfrentar dragões, é um silente centauro


sem cavalo. Em silêncio permanece atrás do seu mastro, meramente
figurativo.

Aparentemente sem maiores dificuldades, sua existência é a própria


normalidade. Chamou-se Jorge, Jorge chamar-se-á, exceto em pequenos
instantes debaixo da Ponte, quando se transfigura passageiramente em
Chorxe. Jorge servira, quem sabe, o exército; talvez seja noivo; talvez coma
a Bicha para ganhar uns trocados ou, sabe-se lá, para “quebrar um
galho”, enquanto seu lobo (buceta) não vem.

Mas no silêncio de Jorge é que vamos encontrar as maiores dificuldades.


Naturalmente, segundo definição normativa, Jorge é um "homossexual”3 já
que mantém relações com uma pessoa do “seu mesmo sexo” (sic)! Ora, mas
já vimos que o sexo de Marilyn Aparecida é um outro, impreciso. A
relação Chorxe x Bicha, tecnicamente, é completamente “heterossexual”:
são sexos muito diversos que estão em liça. Neste caso, a
heterossexualidade é uma pura perversão, a perversão de Chorxe. Então,
qual é o sexo de Chorxe, esse macho impuro?

Chorxe goza. Qualquer que seja a razão que o move, goza debaixo da
Ponte, tanto quanto Marilyn Aparecida ou o Respeitável Cidadão. Como
classificá-lo, homossexual que do heterossexual guarda apenas a assim
denominada “atividade”? Ativo, no entanto, não toma iniciativa. Ê levado,
seduzido, bota e Jira como um pistón mecânico, sem ruídos, sem
atritos. Como é possível que Chorxe seja “ativo” diante da capacidade de
ataque e falação da Bicha-Comandante? Claro, a Bicha é totalmente o Cu-
mandante. Mas Jorge é o Falo-Rei, o Cara-lho-Governador.
Naturalmente fala-se do gozo anal como forma variante do Prazer. Como se
sabe, a Bicha especializa-se nesta peculiaridade do rabo como órgão sexual,
mas não deixa de ter seu pau. Garante-nos o folclore, em outras tantas
historietas, que ocorre freqüentemente a volta do cipó de aroeira doendo
no lombo de quem mandou dar. Um dos pavores (ou prazeres?) de Jorge, é,
transfigurado em Chorxe, que depois de ir tenha que vir: “obrigado, não;
pode ir descendo as calcinhas” — pode dizer a elefantina Marilyn ao
formiguinho Chorxe. Bicha sim, mas nunca se sabe. Quem tem, tem medo.
Quer dizer: no fundo quer. E se come é porque enfrenta claramente a
hipótese de dar. O sonho básico de todo “ativo” é a passividade, que
pressupõe como sua.

Chorxe participa calado da cena porque não tem graça e não faria rir. Jorge
é um caso sério, ou seja, aquilo que se chama no jargão familiar de “uma
pessoa com problemas homossexuais”. (Cláudio de vez em quando glosa:
“eu sou um homossexual com problemas de pessoa”. . .) Jorge tem,
no fundo, horror às bichas (ou será: horror à sua própria sexualidade hetero-
gênea?). Come com nojo, para matar uma fome escatológica e ingrata. Mas
sua fome, “problema”, não o deixa escapar de enfiar-se, como tantos
miseráveis, debaixo da Ponte.

Para designar a questão de relações entre “mesmos sexos”, a linguagem


esbarra em pantanais imperdoáveis. Daí começam a pulular os adjetivos.
Tantos quantos, e todos impróprios. A maioria, para o caso masculino,
ofensas graves: chama-se o indigitado de mulher (depreciativamente no
diminutivo) ou lhe é atribuída alguma característica feminina específica.
Por exemplo: mariquinhas, florzinha, invertido, travesti, paneleiro etc. . .
(Vivemos num mundo onde os homens amam tanto o Homem que ser
mulher — ou imitá-la — passa por ofensa). Há o termo “louca”, que
explicita bem o absurdo do deslocamento esquizofrênico do corpo (o louco
é ofensivo, no nosso mundo racional, sem lucidez). Há adjetivos mais
cultos, que permanecem na mesmíssima balbúrdia. O que caracteriza todos,
com algumas variantes, é o fundar-se no preconceito de uma bissexualidade
primitiva. Há confusões e generalizações: por exemplo, o termo
“pederasta”, que falaria de uma atração pelas crianças e aborda sem querer
a questão complexa das relações entre diferenças sexuais e diferenças
de geração (diferenças primárias em todo grupamento humano). Mas os
cruzamentos entre “pederastía” (atração sexual pelas crianças) e
“homossexualidade” (relação entre indivíduos de semelhante constituição
biológica) são bem mais ramificadas do que ousa sonhar a vã filosofia da
bipartição sexual.

Acaba-se, normalmente e normativamente, firmando uma nomenclatura


frágil, de uso abusivo, que inventa uma espécie de qualidade “substantiva”
dessa “coisa” fantástica que nunca se explicita ou resume: a
homossexualidade, travestida numa essência determinante do sujeito. Diz-
se mesmo “homossexua-lismo”, que aparenta o substantivado a uma
espécie de religião, filosofia, seita ou partido. No qual se encontram
células bastardas com ismos mais absurdos ainda, como “bissexualis-mo”,
pura mistificação desexplicativa, partição do partido.

Por que falai em bissexos. ;enãc como forma de referendar um mito


desgastado, isto é, como mera veiculaçâo da ideologia dominante? Por que
insistir no esquema de dois sexos genéticos?

Chorxe, aquela pessoa com “problemas homossexuais”, seria um bissexual,


porque teria atração por homens e mulheres. A evolução do Mito quer que
agora os corpos não sejam separados mecanicamente em sexos distintos e
oposáveis. Continuam oposáveis, distintos, mas internalizados.

Quer a lenda, contada por Ovídio, que o lindo filho de Hermes e Afrodite
ao mergulhar na fonte onde habitava uma apaixonada ninfa, que o rapaz
repudia, saia das águas marcado pela maldição da recusada. Ela pede aos
deuses que ele passe a ter os dois sexos simultaneamente, para vingar-se
do desprezo do moço aos seus avanços. Aquele que fora possante corpo
emerge da fonte fraco e ferido. Torna-se o temível Her-mafrodita, divindade
apavorante, dotada de poderes mágicos. Como na metamorfose do infeliz
banhista, o novo corpo que nos inventamos atualmente, depois do mergulho
no que denominamos Modernidade, possui em si os dois sexos, em luta
e contradição perenes. A tal ponto que fala-se mesmo (a modernidade é
científica) em proporções e percentagens. Fenômeno considerado real, o
“bissexualismo” é comensurável: alguns são 50% hetero, outros são
preferencialmente homo (98%? 77%? A linguagem popular taxaria em
24%) etc.
De qualquer forma, resta intocado o paupérrimo e inex-tinguível sexo dual,
vale dizer: biologicamente fundado. Só que agora como problema
individual.

Donde surge a teoria (e a prática) do dualismo? Exatamente da noção do


Corpo enquanto coisa, órgão ou organismo. Duvidamos de tudo, menos da
existência “concreta” e individual desse objeto corporal, “natural”,
biológico. O corpo é preconcebido como unidade física real do ser humano,
totalidade compreendida em si, decorrente de uma evolução fisiológica (o
corpo nasce, cresce, procria, envelhece e morre, num processo biológico,
naturalista). Existe, a partir dessa fundação unitária do corpo, uma
duplicidade fundamental resol-

vida diferentemente segundo varias visões de mundo: o ser humano


enquanto sujeito histórico é “habitado”, ou seja, é um objeto físico
“ocupado” pelo que é propriamente histórico e humano. Assim, o humano é
dividido em objeto e sujeito: corpo e alma, soma e psique, carne e
consciencia, necessidade e vontade etc. Não pára aí a dualidade, e as
dificuldades que dela decorrem.

Segundo essa concepção da corporalidade naturalista, o físico é a


localização estática de diferenças. Todos os corpos são diferentes — é uma
evidência empírica. Mas as diferenças são vistas, coisificadas, como
decorrência da natureza animal e orgânica daquela constituição que se
denomina “corpo”. As diferenças fundamentais — variáveis invariantes —
são determinadas culturalmente, o que é o modo próprio de cada sociedade
ver os corpos que precisa.

Ora, esse seria um corpo mecânico, puramente procria-tivo. No momento


da procriação o corpo (que nunca é unidade, nem identidade) é macho OU
fêmea. Mas o que caracteriza a humanidade é que ela produz e reproduz
socialmente. Se a procriação e suas conseqüências estabelecem uma divisão
entre macho X fêmea, e entre pais X filhos, isto não basta para a
perpetuação histórica do humano. Ao produzir, já o corpo não apenas
produz objetos para as suas necessidades, mas produz também suas
necessidades, isto é, produz o seu próprio corpo e sua própria sociedade.
PRODUZ E REPRODUZ. No momento da produção, na criação dos
objetos que inventa (e não apenas procura) o corpo é: Nem macho Nem
fêmea. Quem planta, colhe, fabrica, modela, organiza, distribui não é um
macho ou uma fêmea: não é nem uma coisa nem outra, é um humano total,
indiferenciado. Na reprodução, ao garantir a continuidade das relações
sociais de produção, o corpo é macho E fêmea, pois na criação de novos
corpos existem divisões (“sexuais”) de função. Certamente, com o
aparecimento da divisão social do trabalho cria-se o papel social do Homem
e o da Mulher. Papéis que são regulados de acordo com a época histórica,
assim como os papéis sociais de adultos e criança, velho e jovem.

Enfim, o corpo não é apenas um conjunto orgânico de diferenças dadas,


mas um ESPAÇO onde ocorrem diferenciações. O corpo humano é uma .
das dimensões da História e como tal deve ser entendido como: a) um
espaço social (nunca unitário, sempre conjunto de relações sociais); b) um
processo de evolução histórica (nunca “natural”, sempre social), um
processo de diferenciação (e não “diferença” predeterminada).

O sexual não é uma coisa, nem órgão, nem diferença. É um processo de


criação-ação dos sexos (ou do sexo de cada um). A sexualidade não é uma
qualidade, mas uma ação permanente de qualificação, uma constante
diferenciação. Entre macho/fêmea não há, no humano, uma desigualdade ou
diferença, mas o que nasce desse conflito é a sexualidade complexa que
individualiza cada um.

O erótico — o corpo socialmente existente — é uma cena também trágica,


porque estabelece a finitude. O sexo — que em muitas lendas da tradição
greco-romana surge como ferida e limite — é uma partilha, uma forma que
permite ligar (relacionar) na medida em que divide (SEXIONA).

Antes dos ismos partidários que dividem singelamente nossas partilhas


multiformes, situemos o ensaio com sua orquestra enorme e nem sempre
sinfônica (concordante), numa vereda sem nome que busca apenas a
decisiva harmonia de existir no Espaço que nos é dado. Isto é, o espaço
(incorretamente entendido eomo interno e finito) do próprio corpo, e o
espaço (absurdamente suposto externo e infinito) do Universo. O decisivo é
a harmonia de conquistar esses espaços, não espalhando uma cega
dominação destrutiva — como nossa civilização vem fazendo —, mas
equilibrando as capacidades de ocupação desses campos.
Jorge, em resumo, no seu suspeito calar, é a incapacidade de verbalizar a
desarmonia onde subsiste, mero caralho desinformado, corpo sem meios
(ambientes) no ambiente da Ponte. Entre Jorge e Chorxe há o mesmo
roteiro que guiou ao batismo de Marilyn Aparecida no terreno baldio em
questão.

+ RESPEITÁVEL CIDADÃO

Personagem patética, contribuinte do imposto de renda, esteio da Moral,


cavaleiro da repressão sexual, a triste figura sem nome vira uma
generalidade assexuada: Respeitável.

O Cidadão, como ficou dito, não se caracteriza pelo sexo, mas pela idade
veneranda do ancião. Por responsável, é velho, e como tal, dentro dos
parâmetros do Mito, fora dos mercados do sexo. Nele só penetra como
empecilho, como pura inércia conservadora.

O Respeitável Cidadão caracteriza-se principalmente pela indiferenciaçüo


sexual. É o símbolo exato desta classificação jurídica do indivíduo que o
toma como capaz de responder — sem Prazer — ao formulário, marcando
com um desalfabetiza-do A' o quadrinho correspondente a masculino ou
feminino. Ou seja, o responsável opressor vive a indiferença sexual
como garantia da sua função de policial da ética.

Sua postura não corresponde exatamente a uma atividade, mas a uma


imobilidade de represa, paredão que resiste gravemente, por reação, à força
da água ágil.

Nossa cena mostra por um lado sua iniciativa, sua disposição reacionária,
sua tarefa de ordenador e pedagogo, mas não mostra diretamente o outro
lado da coisa. Um dique funciona, mas é construído. Vitima, mas é também
vítima. O re-pressor é basicamente reprimido. O Cidadão Respeitável,
até ser batizado como tal, seguiu sua trilha, a -terceira rota ao terreno baldio
sob a Ponte. Como os outros, foi modelado, modelou-se, para se meter
debaixo da Ponte.

Sua aprendizagem, e dura, é a formação dolorosa da vi-venciação da


indiferença. É Macho ou Fêmea. Para ele não existem alternativas para
“macho e fêmea”, “nem macho nem fêmea”. Não faz história. Virou objéto.

Sabe-se muito bem que em política “a questão central é a questão do


poder”. Mas fala-se pouco do poder da questão: macho ou fêmea? E aqui as
coisas se desarranjam. Politicamente. O poder político não é apenas pura
negação — repressão. Na sua multiplicidade de formas, o poder age como
poder afirmativo, cbnformativo. Antes de reprimir, o poder imprime um
modelo ao corpo. No campo da sexualidade a ação do poder caracteriza-se
por impor permanentes opções — e estabelecer respostas — impostas —
conformadas. Isto é, modelos aceitos ou tolerados.

A adequação aos modelos preestabelecidos sofrida pelo Respeitável


Cidadão não é absolutamente uma diferenciação, é um conformismo na
indiferença sexual. Entre a indiferença sexual e a indiferença política
existem sutis relações. De um modo geral, toda opção sexual é uma opção
diante do poder político. O que torna complexa a ação de repressão do
Respeitável Cidadão. Aqui, na piada, a repressão é apresentada como um
incompreensível monólogo ao qual se antepõe o discurso da Bicha. Mas
ambos os monólogos se nutrem e se sustentam. O que os unifica? O quarto
elemento da fábula: a Ponte.

Curiosamente tanto o corpo da Bicha, quanto o do Respeitável Cidadão são


moldes esquemáticos e ao mesmo tempo formas de deslocamento, corpos
alheios, alienados.

Antes de tudo não se pode abandonar o significado do Corpo enquanto


espaço real da vida. Tratar o corpo como mera acontecência historicista,
seria o mesmo historicismo que abandonaria o espaço geográfico e que faz,
às vezes, voltar a uma ecologia abstrata que lida com uma contradição
falsa: humanidade x natureza, esquecendo-se, de um lado, a
própria natureza da humanidade (sua história “natural”) e, por outro lado, a
história da natureza enquanto objeto humanizável.

Mais uma vez retornamos à conquista do espaço. Um dos sonhos mais


freqüentes da nossa civilização é a colonização do mundo das estrelas, um
espraiamento pelas galáxias. Como todos os sonhos, esse aí mdica uma
realidade indecifrável, mas inegável. De fato, é preciso sair à conquista
desses sóis, mas sem esquecer que muitos mais são os que habitam os
próprios sonhos, esse componente do espaço dito interno,
inconvenientemente. Há um espaço a colonizar, harmónicamente, e se
chama Corpo, tanto quanto a Terra que nos cabe.

O Respeitável Cidadão perdeu seu corpo, tornado estática indiferença


política, conservadorismo fatal. Em outras palavras, conhece a morte —
indiferença — como reconhecimento do outro. Perdeu também a Terra, que
não mais povoa, onde simplesmente transita, deixando seu lixo, como a
podridão do seu cadáver ambulante.

4- A PONTE

Elemento que finge ser cenário, mas que é principalmente o local que dá
sentido à cena. Esconderijo ou gueto, a Ponte é a geografia do sexual, ali
onde ocorre o Prazer. Portanto, a Ponte é exatamente o ponto no infinito
onde todas as paralelas sendas se encontram, lugar onde está em jogo a
sexualidade de todos os personagens que vieram buscando o autor. E o
autor é o cenário, a Ponte. Lugar onde se concentram os famintos e
desabrigados, gueto de carências.

Afinal, a Ponte, em sua impessoal globalidade, é a questão sexual


propriamente dita. Ao discutir o sexo como “relação” interpessoal,
esquecido o local histórico onde se desenvolvem as relações, reais, não se
faz mais do que discutir o sexo dos anjos — abstratos animais de asas, sem
vôo. É preciso — e daí nos meter embaixo da Ponte — expor os anjos do
sexo.

São anjos que nos seguem, guardas protetores, desde a infância. Naquele
momento em que a sexualidade tem como característica o que se classifica,
desde Freud, com a terminologia técnica de “perversão polimórfica”, sexo
múltiplo e infinito. A grande complicação, na discussão sobre a
sexualidade, é que nos restringimos exclusivamente a diagnosticar
diferenças sexuais, como se fosse possível esquecer ou isolar qualquer uma
de todas as diferenciações humanas.

Isso explica que as “soluções” para a “liberação” sexual proponham


“assumir” certas qualidades sexuais que seriam “inerentes”: assumam-se as
perversões, como forma de contestação; assuma-se a “parte feminina”;
assuma-se um sexo padrão saudável que atingirá o Celestial Orgasmo. E
etc. e etc. e etc.

Nisso tudo o sexo é um bicho escondido no fundo de cada um, animal


filogenético que deve ser solto. . . Puro engodo, decorrente do monótono
dualismo sexual.

Nada a assumir, tudo a construir. E construir o sexo de cada um significa


inventar a criança de cada um, ou seja, a criança-sexo de cada um. Mas não
a criança “real” que fomos, nem a criança-ilusão que memorizamos. É
preciso gerar, hoje, em cada um, a criança que poderiamos ter sido.
Processo de gestação: devemos nos engravidar, todos, produzir um
filho. Que filho? O nosso próprio sexo polimórfico, doce e perverso. Não há
esquema ou um modelo. Poxa, sexo não é vestimenta pret-à-porter! Há um
plano, um projeto. Sejamos um útero PRO/ENITOR de nós mesmos,
eduquemos nossa harmonia individual.

Tudo isso, enquanto opção, ação e programa é uma atividade política.


Estritamente política, sem partido, sem biparti-darismo sexual.

O que resta a aprender é que O SEXO É A CONTINUAÇÃO DA


POLÍTICA POR OUTROS MEIOS.

3. Onde aparecem anotações centralmente sobre o que é a normatividade do


sexual:
1

el&: grafia variável de ele/ela ou ele-a, para uma biografia variante


e/ou.
2

Há um caminho de versos que começa em boca-do-cíu- varia em boca


de setas (ferindo), bocado setas, boca-seta, bo-seta, buceta, linda
palavra que é a trilha da nossa inicial viagem, céu (da boca
que seremos). A buceta é muito mais elogio do que uma coisa do
caralho. Ê a parte mais feliz e delicada de um medo do abismo vertical
donde emergimos.
3

A palavra “homossexual” deveria neste texto vir sempre entre aspas.


Para facilitar vamos escrevê-la, como fizemos até aqui, sem aspas. Leia-
se, entretanto, sempre, com as marcas que carrega originalmente a
palavra.

NOTAS MARGINAIS
Não reclama/

contra o temporal.../

Não reclama/

pois a chuva só levou a sua cama/

(Adoniran Barbosa)

Poder-se-ia escrever, como já é um hábito comum, uma história da


homossexualidade1 que começasse numa infância feliz, ingênua e pagã da
humanidade, de “sexo natural”, onde os homossexuais tinham relativa
liberdade. Esta pacífica manhã resvalaria no crepúsculo medieval, sob o
manto judaico-cristão (“com varão não te deitarás, abominável é”,
escrevia Moisés, que só escrevia para os homens.)

Sob a espada dos severos anjos de Sodoma, conheceram a fogueira


inquisitorial sodomitas e bruxas zoófilas, cabras e bodes.

O capitalismo não viría melhorar a vida de bichos e bichas. Pelo contrário.


De sujeito do direito canônico à questão médico-legal, o crime, que
encontrara a sua asserção na fé, passa a ter sua verificação na ciência. A fé
não depõe as suas armas e a ciência vem ombreá-la no mesmo combate. A
psiquiatria revalida a moral, a razão ilumina a revelação bíblica. Do segredo
do consultório partia a fundamentação da Lei e a justificação da ação
policial.

Juntos, médicos, padre, juiz e policial concertavam uma repressão sem


tréguas, que impunha a ordem sexual burguesa, racional, autoritária. O
homossexual é dissecado, pesado e medido, sistematizado num conjunto de
perversões. A sexualidade era modelada, estátua familiar sagrada, com o
cisei da terapêutica e o martelo da justiça.

A repressão aumenta, aperfeiçoa-se, numa história que vai da medicina à


política. Como o resto da sexualidade, a homossexualidade, a partir de uma
época relativamente recente, torna-se cuidado da revolução. E a repressão
toma novas formas, nas promessas de paraísos sociais do gozo
perfeito, onde o homossexualismo se extirpa (se se considera que é
um vício da decadência) ou terá direitos à cidadania, como minoria social,
“integrada*’, “aceita”.

Nossa história esbarra numa enorme dificuldade: saber do que estamos


falando, além da descrição da repressão. O que é o objeto dessa repressão?
Que “homossexualidade” é essa? Uma entidade própria da sexualidade, que
atravessaria as épocas, como qualidade inata de certos indivíduos? O
que mudaria seriam apenas as formas da repressão e daí as “manifestações”
dessa entidade material?

Ressalta ¡mediatamente nesta perseguição histórica que a repressão se


dirige diferentemente a objetos diferentes.

A não ser que se suponha uma homossexualidade supra-histórica, que não


se “revelaria” em sua “verdade própria” por causa das formas da respressão,
não encontraríamos um “fio explicativo” na nossa história acima. Hipótese
facilmente descartável.

Primeiro, porque considerar que a homossexualidade (ou a sexualidade em


geral) tenha uma “verdade” especial que a consciência só revela no avanço
da ciência é inventar upta “verdade física” (corporal), acima da história,
escondida nas trevas da ignorância, esperando as luzes do saber.
Segundo, porque não é a maior ou menor repressão que define o
aparecimento e desenvolvimento da “minoria homossexual”. Sociedades
onde não há repressão ao homossexualis-mo, como é o caso da Grécia
clássica ou de certas sociedades “primitivas”, deveriam ver o aparecimento
de uma ou várias organizações sociais homossexuais. E isto não acontece.
Embora não haja interdições neste sentido, não se diferencia
um comportamento específico e/ou exclusivamente homossexual, mas o
desejo e o ato homossexual aparecem “dissolvidos” e integrados no
conjunto da sexualidade. Há diferenças sexuais nítidas e estruturas sociais
próprias, separando homens e mulheres, mas nenhuma evidência de
regulamentação de “minorias”. Para outras qualidades, como as diferenças
de idade, existem sempre organizações ou estruturas sociais que as
regulamentam e integram. Por que não os homossexuais, se fossem uma
diferença sexual? A tolerância às minorias faria dissolver a diferença?
Neste caso, evidencia-se que a homossexualidade não é uma qualificação de
certos indivíduos (como o é a diferença de idade). Não sendo um
comportamento sexual que caracterize alguns indivíduos, é, em certas
sociedades, uma variante socialmente definida dos seres humanos.

Esta é uma primeira hipótese a ser guardada: a homossexualidade não pode


ser considerada como uma “diferença sexual” (uma qualidade sexual), mas
é fundamentalmente uma diferença social, uma variante do comportamento
sexual, estabelecida como critério para definir uma categoria social
(o homossexual).

Mas, ainda assim, outras dificuldades permanecem na nossa história da


repressão. Como explicar que é sob o capitalismo, exatamente, que a
“diferença sexual” se cristaliza, fazendo emergir uma “minoria” onde a
homossexualidade vai erigir-se num estatuto?

Seria a repressão mais eficaz, mais violenta, noutras sociedades? Os fatos


dizem que não. Sob o capitalismo a repressão não só é mais estendida,
como mais específica e instrumentalizada. E isto nos mostra uma curiosa
contradição. A violenta e implacável perseguição não apenas se mostra
absolutamente inútil, como resulta em objetivos opostos. Especialista em
genocídios, em violentações ecológicas monstruosas, o capitalismo não
consegue esmagar o desejo homossexual. E ainda: não consegue impedir a
constituição de uma categoria social organizada. Pior, o homossexual deixa
de ser uma das formas do desejo, para ser um grupamento a ser preservado.

Essa “contradição” nos obriga a levantar outra hipótese. A repressão não


aparece e se desenvolve para oprimir uma casta. A ação do poder consiste
exatamente em definir uma raça. Isto é, postula os direitos a serem
reinvindicados pela minoria, na medida em que inventa, determina,
institucionaliza um setor homo-gêneo. A criação do grupo ou gueto não
decorre de diferenças preexistentes nos indivíduos, que o poder regula e
controla. No caso dos homossexuais é a própria criação da diferença que é a
esfera de ação própria do poder.

*♦♦

A terminologia técnica — homossexual, homossexualis-mo,


homossexualidade — constitui-se de ambigüidades. As palavras foram
postas em curso pela psiquiatria nos meados do século XIX, junto a outras
(homofilia, inversão, hermafroditismo psíquico, etc.). Nunca se encontrou,
porém, um termo que não levantasse objeções. Muitas designações, para
indicar alguma coisa que permanecia obscura. Sempre sobram palavras,
quando estão ausentes as idéias, Marx já acentuou.

A terminologia caracteriza, principalmente, um ato sexual. O ato não nos


informa diretamente a estrutura de um “desejo homossexual”. Entretanto,
quando se diz “homossexualidade” — seja: certa “composição” da
sexualidade — definimos o desejo a partir do ato ou relação sexual. As
imprecisões são flagrantes:

a) O objeto do desejo não é sempre o objeto da realização do ato. Por


exemplo, tanto masturbação, como zoofilia, ou homossexualidade
podem ser variantes ou substitutos de um ato genital e “heterossexual”.
No caso da masturbação obrigatória do adolescente, da zoofilia do
tropeiro com a sua mula, do homossexualismo nas prisões existe uma
substituição do objeto erótico ausente. Mas nem sempre é a
substituição que leva ao ato.

b) Ao definir a homossexualidade como relação sexual entre


indivíduos do “mesmo sexo”, estabelece-se, de fato, uma definição
extremamente precária do sexo (considerado igual à zona erógena,
genitalidade). É evidente que na relação genital heterossexual pode-se
encontrar a impulsão que leva o indivíduo a buscar seu HOMOSSEXO
no parceiro (por exemplo, o homem que busca na mulher um outro
“homem" enquanto papel a ser desempenhado na relação).

c) Pode ser perigosamente mecânico definir o desejo a partir do


objeto, ou da forma de realização do ato. Isto pode levar a fazer do
desejo uma espécie de interpretação psíquica da necessidade. E
confundir a satisfação, da necessidade com a satisfação do desejo.
Assim como a água satisfaz a sede, o ato homossexual satisfaria a
homossexualidade. Como se pode encontrar as explicações fisiológicas
da sede, encontra-se a razão fisiológica (médica) da
homossexualidade.

***

Aceitando a homossexualidade corno qualidade das “relações sexuais entre


dois indivíduos do mesmo sexo”, podemos generalizar de forma ampla,
concluindo naturalmente que todas as relações “entre indivíduos do mesmo
sexo são homossexuais”, em maior ou má.or grau. Como explicação, isto
não nos leva muito longe. A não ser concluir que todas as relações entre os
indivíduos têm um nítido conteúdo sexual. O que é apenas uma passável
banalidade.

O desejo homossexual, o desejo que tem por objeto um indivíduo de mesma


conformação corporal, é uma presença constante na sexualidade. Se
caracterizarmos a sexualidade como um processo, a homossexualidade
corresponde a momentos desse processo, mas não é nem o específico, nem
um modo dele.

O desejo homossexual (tanto quanto o desejo heterossexual) não caracteriza


nem o conjunto do desejo, nem uma “entidade” do desejo. Nem caracteriza
uma estrutura do indivíduo, nenhuma qualidade imánente dessa pessoa.

Se falarmos agora da forma como é vivido sob a civilização capitalista2


vemos um desejo homossexual ser transformado num modo da sexualidade.
**♦

Pode-se dizer que “ser homossexual” é uma opção. Tanto quanto ser
“heterossexual” ou “bissexual”.

Como compreender essa opção homossexual?

Uma opção é um ato de vontade: “ser homossexual” é um ato de vontade. O


que não significa que um homossexual tenha “escolhas” entre desejar ou
não. Neste ato de vontade homossexual não há nada de “livre arbítrio”, de
vontade nascida duma consciência.

Primeiro, essa “vontade” é determinada por uma história pessoal, um


desenvolvimento particular do indivíduo. A homossexualidade resulta do
jogo de forças que o próprio indivíduo não controla, que não dependem da
sua consciência, nem da sua vontade consciente — que entra nesta história
como uma das forças em jogo, mas não a força determinante. Da mesma
forma como, noutros, se apresenta a heterossexualidade.

Será sempre um ato de vontade que fará o indivíduo viver de diversas


maneiras o seu desejo. Sua consciência se desenvolve segundo opções
sucessivas que lhe serão apresentadas.

Cada um soluciona de forma própria as questões da sua sexualidade. O


desejo homossexual não se apresenta como coisa, objeto exterior ao
indivíduo e à sua historia pessoal: ele é criado e desenvolvido num jogo de
conflitos que inventam, que postulam e estimulam esse desejo. Esta é a
esfera de ação do poder.

Não é uma ação linear. Como movimento contraditório, apresenta rupturas,


brechas, instantes. Pode ser contraposta pela ação duma consciencia
(política). O indivíduo não é meramente um joguete nas mãos do poder: o
que lhe permite escapar de um jogo cegó (um destino) onde a historia se
escreve fora e acima do individuo.

O desejo homossexual apresenta, para cada um, um enigma: na sua historia


pessoal ele será resolvido segundo opções mais ou menos conscientes. Estas
opções envolvem uma definição diante dos mecanismos do poder: são, de
fato, opções políticas.

Durante a vida inteira a sexualidade imporá opções políticas ao indivíduo.


Opções que podem levá-lo a viver de forma mais ou menos conflituosa os
vários instantes da sexualidade.

Entre o desejo (campo das ações — repressivas, mas não só — do poder) e


a vontade (campo de opções — conscientes, mas não só) há todo um
mecanismo político que caracteriza o que se chamará homossexualidade.
UM PROBLEMA POLÍTICO, portanto.

Nesta política (da perversão em geral) vive-se um labirinto. Escapar da


dialética própria do poder é uma questão não só política, mas de política
revolucionária. Porque entre as inúmeras opções possíveis não se exclui, de
forma nenhuma, opções reacionárias, sob formas de rebeldías marginali-
zantes.

Ser homossexual não se limita aos campos do poder. Inscreve-se também


no querer. Isto nos leva a uma abordagem simples, porém globalizante: a
homossexualidade é uma forma de viver o desejo em geral.

***

A homossexualidade não se fecha numa definição, nem mesmo pode ser


reconhecida como objeto definível. É simplesmente uma forma de viver a
sexualidade.

Portanto, só há uma “definição” possível: homossexual é quem se define


como tal. Inevitavelmente só esta autodefinição poderá englobar todas as
questões que levanta a homossexualidade: o fato de estar inscrita numa
história pessoal, que implica a própria idealização do indivíduo de si
mesmo, por um lado, e as tensões sociais que estão presentes, por outro
lado. Só este critério permite situar as complexas relações
políticas envolvidas entre o desejo e a vontade homossexual. Só as$im se
especifica e se determina a opção.
Por ser um critério autocentrado, nem por isto é um critério subjetivo.
Porque a homossexualidade, enquanto desejo e vontade, é objetiva, isto é,
real. É exatamente a autodefinição que expressa esta realidade, permitindo
determinar os conflitos da sexualidade, as adequações da opção no quadro
desses conflitos, etc., sem querer descrever um “modelo”, uma “coisa-
homossexualidade”, contra a qual se chocaria a vontade (moral) individual.

Daí que não interessa nenhuma “explicação” e nem nunca poderá haver
uma “explicação” para a homossexualidade. Simplesmente não é possível
“explicá-la”. É preciso vivê-la.

Constatando que a homossexualidade “não é explicável”, estamos


afirmando que qualquer “teorizaçâo” sobre a sexualidade é uma forma de
vivê-la. Sempre será muito mais do que uma ‘análise’: será uma postura.

O que é então o preconceito? Será fundamentalmente uma forma


conflituosa de viver a própria homossexualidade.

Esta forma conflituosa não apresenta apenas problemas individuais. Ela


corresponde, em sua essência, a uma posição política profundamente
reacionária: uma aceitação da sexualidade burguesa que implica uma
aceitação (ou supervaloriza-ção) do caráter repressivo e autoritário
característico. Quando este preconceito toma a forma de um discurso “de
esquerda”, apresenta-se como uma veiculação do totalitarismo, usando
a terminologia da revolução para esvaziar todas as revoluções.

***

O mais importante é que a questão seja apresentada- de tal forma que todos,
todos nós, nos víssemos diante da nossa própria (homo) sexualidade, dos
nossos preconceitos. Em primeiro lugar, sexo não é discussão abstrata, mas
uma discussão política, pois implica uma certa visão de nós mesmos e do
mundo. Em segundo lugar, o contra-preconceito, como forma de viver a
própria homossexualidade, torna-se mais agressivo quanto maior é o medo
do próprio sexo. Em terceiro lugar, além do preconceito e do contra-
preconceito, há o preconceito de ter preconceito: o que faz com que a
maioria das pessoas, que imaginam terem superado os preconceitos,
acredite que saiba tudo sobre a homossexualidade e tenda a “aceitar” o
homossexual (alheio).

Para mim, justificar, aceitar, explicar, recusar ou abominar a


homossexualidade é o problema de quem justifica, aceita, recusa, abomina,
etc. São atitudes, no fundo, idênticas, pois se toma uma posição em relação
a alguma coisa — a homossexualidade — exterior a si mesmo. Qualquer
dessas posturas diante da homossexualidade faz do homossexual um ente
diferente, uma pessoa à parte no grupo humano, faz dos homossexuais uma
“minoria”.

♦♦♦

Ora, a questão é certamente esta: a repressão ao homos-scxualismo, sob o


capitalismo, consiste em fazer dos homossexuais uma minoria dentio da
sociedade, um grupo fechado dentro de um gueto. Explico melhor isto:

+ a homossexualidade, enquanto “pulsão homossexual”, certa pulsão que


dirige o desejo sexual para alguém supostamente do mesmo sexo, existe em
todos os seres humanos in-distintamente, em todas as épocas históricas, em
todos os momentos da vida sexual de uma pessoa;

+ cada sociedade trata diferentemente as varias pulsóes sexuais, levando de


urna forma ou de outra à constituição de uma sexualidade considerada
“normal” (padrão), reprimindo ou “adaptando” as outras pulsões sexuais da
forma mais conveniente àquele meio social;

+ a homossexualidade numa dada sociedade pode ou não ser reprimida, isto


é, combatida, proibida, punida. Ou adaptada, “aceita”, integrada, etc. Várias
sociedades não-capi-talistas estigmatizaram violentamente a
homossexualidade. (Jean de Léry, escritor francês que visitou os
tupinambás no século XVI, diz que quando os índios brigavam
“insultavam-se de ‘tivira’, que quer dizer sodomita".') O que caracteriza
a moderna repressão não é a perseguição ou punição do ato homossexual; o
que a caracteriza é a tendência de fazer do homossexual uma pessoa
completa, um “outro sexo”, intermediário entre o masculino e o feminino;
+ a minoria homossexual é uma invenção capitalista. Invenção porque
nunca houvera, em qualquer sociedade repres-sora, um grupo social que se
distinguisse por esta peculiaridade do comportamento. O homossexual —
uma pessoa que se define enquanto certo padrão social específico — nunca
existiu. Noutras sociedades, existia sodomía, atos “contra-natura”, atos
sexuais variantes, atitudes diversas de pessoas que não tinham nenhuma
“especialização sexual”, que poderiam (ou não) ser punidas, segundo as
normas morais vigentes. A repressão não se dirigia a um grupo, nem a
alguns seres especiais, mas duma forma generalizada condenava um ato
possível de ser realizado por todos, indistintamente;

+ a minoria é invenção própria do capitalismo, na repressão que ele exerce


sobre a sexualidade de todos. O capitalismo é mais sofisticado, é claro. Não
reprime um ato. Força o responsável pelo ato a se tornar um ator completo.
Já não é mais um mero criminoso, mas uma entidade completa, um ser
humano diferente de todos os outros, que tem uma fisiología, uma
psicologia e uma realidade humana diferente do normal. Assim, ao querer
que o homossexual seja esse “diferente”, forja, através do complexo
mecanismo social de mo-delação sexual, o “homossexual” enquanto uma
diferença social, uma verdadeira subcultura;

+ a “maioria normal” é aquela que consegue abafar o seu desejo


homossexual, que consegue, de um modo qualquer, realizar suas pulsões
homossexuais sublimando-as, recalcando-as, ou fazendo délas o que
chamamos “preconceito”: o ódio contra o homossexual — que acredita que
é alguma coisa fora dc si mesmo, diferente de si mesmo. O ódio contra o
homossexual “que existe externamente” origina-se do ódio contra certos
aspectos da própria sexualidade;

+ o capitalismo não inventa a pulsão homossexual, mas torna o que é


característica de todos em característica de um grupo, através duma
repressão que violenta todos nós, indistintamente. Assim, a violência contra
todos se localiza sob a forma da repressão contra um grupo — minoritário
— de "anormais”.

♦**
A repressão sexual que todos sofremos obriga aqueles que pretendem, por
várias razões, realizar atos homossexuais, a se tornarem “especiais”, a se
tornarem “completamente” homossexuais, uma minoria de diferentes.

A diferença homossexual não preexiste à opressão, mas <5 que esta faz é
exatamente criar, cristalizar essa diferença. A repressão que atinge tutti
quanti é incorporada em alguns que são isolados, como “exemplo” para os
outros.

A existência da “minoria homossexual” não é apenas a forma da repressão,


mas o próprio conteúdo da repressão. Não é por serem oprimidos que os
homossexuais se tornam uma minoria. Eles se tornam homossexuais por
serem inventados, moldados, enquanto minoria.

♦*♦

É preciso entender que a ação do poder político é mais profunda e mais


unificada do que a simples repressão pela recusa e negação duma
“sexualidade padrão”. Antes da repressão (negação), é preciso falar da ação
de modelação do poder, da forma como socialmente somos obrigados a
cumprir certos papéis, servindo nós mesmos de instrumentos do poder.

Não se pode dizer que isso seja uma questão politicamente secundária. A
liberdade — inclusive a liberdade sexual — não é nunca uma questão
“menor”. E nunca poderemos falar verdadeiramente em liberdade enquanto
não soubermos de todas as pedras dos muros onde estamos aprisionados.

4. Onde uma apreciação literária faz aparecer casualmente uma didática dos
amestradores:

SEXÃO DA REVOLUÇÃO
O sol há de brilhar mais uma vez/ O amor há de voltar aos corações.

(Nelson Cavaquinho)


Continuo achando Trotski genial. (O que não tem muito a ver com o
assunto. Ou tem, e não deixo transparecer.) Sempre achei o Leon um tipo
magistral. Um escritor antes de tudo. Foi um estilo (tanto quanto o de Marx
e o da Rosa) que me fez preferi-lo a outros teóricos marxistas. Quem é
que agüenta ler o Camarada Stalin? O Camarada Stalin repete, porque é
didático.

Para o Camarada Stalin a repetição é didática.

A didática é repetitiva porque repetindo muito uma verdade, se ela não é,


vira.

A repetição didática é importante porque cria verdades proletárias.

A verdade proletária é repetitiva para ser didática.

A verdade proletária é didática por ser repetitiva.

A verdade proletária é didática por ser verdade.

A verdade proletária é didática por ser proletária.

A repetição é a verdade do Camarada Stalin, que se repetia para ver se


aprendia que era Camarada, já que Stalin ele era e contra isso já não podia
fazer mais nada.

Enfim, sempre admirei a sublime elevação literária de Trotski, que nem por
isso lhe evitou o machado, parte da didática stalinista que se repetiu tanto, e
na cabeça de tantas verdades, que até hoje nos confunde a escritura e o que
dela se seguiría.

Enquanto o marxismo arranja novos mestres, digo ames-tradores, sossega-


leões e desliga-senão-explode, estão caindo de moda as velhas igrejas e
irmandades. Marx — a não se confundir com a família de Groucho, Chico e
Harpo — sofreu líbalos na sua integridade. Mas sei que ainda terão os que
hão de rir com ele. Não dele, como faz o “socialismo real”, que o tornou
uma piada: o obscuro irmão Marx, o outro: o Grande Irmão (e isso muito
antes do 1984 previsto por Orwell). Eu, liein? Não estou reivindicando
nenhum marxismo. Não tenho autoridade, nem padrinho. Nem os quero.

Se falo do meu apreço por Marx, o Karl, e do humor, o seu, é que ele foi
parte grande da piada da minha vida e no seu circo espero ainda encontrar
um picadeiro. Sem bicho amestrado.

Sem bicha amestrada também, como as que conheci durante os anos em que
trabalhei numa sauna noturna especializada em pegação para entendidos,
que não compreendiam muito. Deixei o trabalho quando a barra pesou
demais. Estava incapaz de observar e aprender, como fizera inicialmente.

Depois, a angústia notívaga, o tempo que não passava, aquela gente


procurando o que nunca vai encontrar. Nada é mais aflitivo e contagiante do
que a constante procura homossexual — ou sexual, simplesmente —, já que
a caça e o caçador são meros resultados do espelho e este é invisível.

Havia uma coisa a mais no meu trabalho. No início foi bem compensador.
Aprendí coisas que precisava sacar. Corpo e corpos. Trabalho manual, pra
começo de conversa, remunerado com os massacres dos empregos da mão
que obra. Distanciamento do trabalho intelectual, que fora o único que
fizera até então na minha vida. Em resumo: a experiência do que
poderiamos chamar mediocridade, uma forma de consciência do mundo que
pode apavorar, mas que permite que a consciência não se perca no seu
encantamento de força autônoma.

Procurei e resisti, num emprego assim, por várias razões, mas teve uma
muito evidente: o medo que tinha de “ser homossexual” no meio da gente
que conheci, como você conhece. Uma vez alguém me disse que Cláudio e
eu éramos “bem aceitos” porque não éramos exatamente um casal de
homossexuais.

— Vocês são um casal, tout court, foi o que disse.

Verdade. Só que meu medo, ou minha angústia, era que as pessoas que me
sabiam homossexual (revelação como um texto sagrado, coisa a ser
descoberta ou denunciada), passavam a me pensar um “homossexual tout
court". Pois então, eu não sabia o que era homossexual, tanto quanto as
pessoas que aceitam ou recusam os assim (bem-mal) ditos. Pensei
que procurando no gueto, entre eles, elas, as bichas, eu pudesse adquirir
discernimento. Porque em primeiro lugar sempre soube que minha
diferença (pessoalidade), o meu modo de ser em toda a. minha
peculiaridade, não decorria disso, duma distinção que parecia uma cicatriz
ou um carimbo. Parecia-me — e hoje sei melhor — que os homossexuais
eram um grupo assim como um estoque de latas de sardinhas. Parecem
todas iguais, afinal são embalagens e com os mesmos rótulos, formatos
e preços. Mas no ver de mais perto o que se aprende é que latas iguais a
latas, sardinhas iguais a sardinhas, em cada conserva os peixinhos são
outros. Não há a mesma sardinha em todas as latas: nem a lata faz a
sardinha, nem a sardinha faz a lata. Há produtores atrás disso tudo. E na
produção é que a diferença se torna diferenciável.

Puxa, e eu perdí amigos. Que eu amava, sabe, que eu respeitava, que eu


queria, mas que começaram, obliquamente, sem resumir, sem mesmo
estampar, a distanciar-se e que, claramente ou não, quando eu aparecia,
abriam uma questão que me esmagava, uma interrogação não-formulada,
mas que deixavam transparecer no não-dito:

— Aceito ou não aceito a homossexualidade dele?

Alguns foram se afastando, lentamente. Outros, aproveitando as ocorrências


do existir e seus desencontros, não se aproximaram mais. “A gente se vê um
dia desses”, fórmula prática.

Oh, não, ninguém me expulsou, ninguém nem mesmo deixou de me tratar


com cerimônia e até respeito. (Afinal, como você me conhece, passo
melhor por um enrustido, com “problemas homossexuais”, e não pareço
ameaçar as instituições com os desrespeitos formais de uma perversão que
instituiu, por sua parte, óbvias éticas do escândalo). Muitos me “aceitaram”,
quiseram mesmo deixar claro que me aceitavam e me repetiam o tempo
todo: “vocês, os homossexuais. .como se eu fosse um substantivo coletivo,
uma cáfila. Ou um cardume, já que falava em sardinhas. Prefiro, porém, os
camelos, já que o deserto é mais de acordo com o nome próprio da im-
propriedade de ser medido no grupo de outros, os alternantes.
Que não, nenhuma excomunhão, não apagaram a minha vela no subterrâneo
do vaticano da esquerda. O processo de exclusão foi lento, imperceptível,
gentil formação de um casulo onde me imobilizaram na doçura de fios de
seda que chamavam “aceitação”.

De todos os meus velhos de guerra foram poucos os que mio obedeceram


tais regras. Claro, com as mulheres quase sempre o caso foi diferente. Com
novos amigos, a coisa se passa diversamente. Estava falando dos daquela
época, daquelas guerras, daquelas memórias.

Pois fui procurar o trabalho que procurei em Paris, para uma espécie de
pesquisa de campo no descampado da putaña. In cm Portugal, tinha
começado uma carreira de questionamento, mas sem exposição pública.
Bicha, sim, assumida domésticamente, numa espécie de
semiclandestinidade. Por ali eu rm jornalista, escrevia a sério, vivia entre
intelectuais, discutia política e todos nós comparávamos revoluções. Nesse
meio, mito, o homossexualismo é outra coisa. Fica pra lá das fron-iciuis da
política, e a gente é toda evoluída, ninguém vai fazer tempestade em copo
d’água por causa da viadagem (doméstica ) de um ou outro enrustido, o
assunto está classificado na pasta de “evoluções necessárias dos costumes”.
“Eles, os ho-tnossexuais...” — e estamos com a consciência limpa de mais
uma mazela universal. Além do quê, eu nem bem era um exilado:
encontrara asilo na comovente agitação de bailarico de família que seguiría
Abril. Estava ainda numa fase de exploração de Portugal e sua pequena
grande gente, navegava no exotismo dos destroços duma eternidade de 48
anos, estava apenas me instalando, me ajeitando, buscando um espaço
para plantar raiz, porque então, naquela travessia, o Brasil e
suas clandestinidades era do lado dè lá, de antes, e eu queria, de toda
severidade, abrir uma brecha e virar português. E tanto que — com Cláudio
— buscámos acções, deitámos ilusões nas chávenas do café morno, que
começámos a esquecer, e vínhamos, com deleite, nos orgasmos (gozar diz-
se “vir-se”, indicação de que era preciso chegar a qualquer sítio).

Em Portugal, o que havia de diferente dos meus tempos brasílicos é que,


quando queria, eu ia paquerar no parque que começa no final da Avenida da
Liberdade. (Não. Em Portugal “engata-se”, como na França a gente
“draga”, de draguer, que os brasileiros homossexuais adotaram. Dragar é
uma boa. E fala, com saber, de fundo e lodo.)

Na França, o pulo do gato. Radical. Desta vez quis saber da


homossexualidade não apenas como visitante. Muito menos como
assumido, que não via nada a assumir e a dúvida era exatamente desvendar
que quê havia a assumir. Assunção, como a da Virgem? Ótimo: a Virgem,
segundo os analistas, é a representação do Fálus, a imagem do pipiu que
deixa de ser pintinho repousando sua moleza no ninho das entrecoxas,
para levantar a crista vermelha. O falo é o Grande Ereto, e o que o xixi
promete, o pênis fá-lo. Mais não falo, que todos os trocadilhos são
armadilhas. Em Paris, meu projeto foi simplesmente retraçar essa ascensão.

Foi, hoje vejo, um processo de isolamento. Sem querer, vou te dizer. Não
queria me afastar muito, mas meu jeito, meu modo canhoto de temer o
viver, me fez acabar assim, escrevendo por correio, já que não tinha muito
mais com quem dialogar.

/Escrever é uma vontade de se fazer amar — anoto na margem do caderno


da memória, para eventuais desenvolvimentos posteriores./

Quer dizer, praticar amores.

Que amores? Como a literatura é uma forma de nomear o inominável, acaba


vindo a ser o amor que ousa dizer os nomes. Porque estou, desta cidade de
Sodoma, experimentando escrever um romance de amor, como todos. Sabe
aquela sublime asneira do Wilde? Daquele amor que não ousa dizer
seu nome? Pois parece que o nome sodomia, em desuso, serve para o «mor
do qual pretendo ainda retraçar meu roteiro. Não ousa nomear? Mas, com
que então! Conheço seiscentos e trinta e oito nomes para ele, entre os quais,
alguns, tantos, entulham os recantos judiciários, médicos, políticos e mais
cantos e encantos, a torto e a direito.

Do Direito, contra o qual o meu escudo fez o que pôde, picciso: já que
afinal a perversão só o é, se bem legislada. E •»uns decorrências, se são
anais, são também anais jurídicos. (P preciso explorar até os limites da
vulgaridade, tanto no sexo, quanto na língua escrita. Trocadilho serve de
estilingue.)
E o poeta Aragon foi quem disse:

“Je traine après moi trop d’echecs et de mécomptes J’ai la méchanceté d’un
homme qui se noie Toute 1’amertume de la mer me remonte II me faut me
prouver toujours je ne sais quoi Et tant pis que j’écrase et tant pis que je
broie II me faut prendre ma revanche sur ia honte.”3

Minha vergonha tem um nome e — como a cáfila e seu deserto — a


vergonha é também um substantivo coletivo. Si-mmimamente o termo
ditadura diz um pouco: mas é um si-hmiar que retoma a significação
integral. Silenciar — ato de quem fez calar. Silenciar — desespero ou
cumplicidade de quem murchou. Todos os silencios: ninguém escapa desta,
que a vergonha, a gigantesca e nacional, foi grão a grão secando a terra.
Cada um de nós, os de então, diferentemente mas cumplicemente,
depositamos uní calar, nem que seja porque só gritavamos a palavra
liberdade com restrições, ou que faláva-mos da fome como quem analisa
estômagos. Tudo que não foi dito e que permitiu o silêncio.

♦♦♦

Ao nos aproximarmos de Sodoma, repara-se que tem a mesma forma


cercada de outras isolações e que por todo canto reina a fome. A praga dos
famintos, dos sem pão, a mesma dos que têm uma víscera. Sodoma fala
também da fome, da FOME. Pois não é num estômago um num sexo que
qualquer fome assedia um humano. Há corpos, mas também há sonhos.

E a miséria não são os miseráveis. A miséria é aceitar, com comiseração, o


miserável. A miséria é UM miserável. Qualquer um.

Permita-me expor, linearmente, a questão da fome:

— A fome é o resultado de um sistema econômico-social historicamente


determinado. A resposta à ela é uma revolução: a transformação das
relações sociais, a transformação da forma como os seres humanos se
organizam para satisfazerem suas necessidades.

— A nutrição é uma necessidade humana: enquanto houver humanidade


haverá necessidade de comer. Mas o faminto é decorrência de certas
relações sociais. A fome é mais que necessidade: é um fenômeno histórico e
político.

— Supõe-se, abstratamente, que a origem da fome é o estômago. Portanto,


a solução da relação entre necessidade e seu objeto é dar alimento ao corpo
esfomeado. A solução da fome é a caridade?

— A caridade faz do indivíduo um corpo abstrato, objeto orgânico


chafurdando na necessidade de objetos “exteriores”. O estômago é um
órgão individual, analisa a caridade, portanto a fome é um problema
fundamentalmente individual. A epidemia da miséria é a fome associada de
desnutridos, conclui tal análise.

— A caridade defende os direitos do esfaimado: defende o seu direito de


possuir um aparelho digestivo e enchê-lo pe-liodicamente. Nesta proteção
aos famélicos, os “caridosos” defendem apenas o direito do corpo a
continuar faminto.

— Que fome é a fome? Serão as panelas vazias de muitos que tornam as


misérias o problema central duma maioria massacrada?

— Não há feijão que encha a panela do corpo. Só há uma saciedade


possível à fome: e este pão se chama liberdade. A caridade propõe: dai de
comer a quem padece de fome. A i evolução dispõe: ao faminto, a
liberdade. Porque a fome é tintes de tudo a opressão do esfaimado.

— A caridade é a fome da fome: alimenta-se da opressão do esfomeado.


Vive da fome, que é preciso ser fome, para que ela seja caridade. Por isto, a
ajuda caritativa, a proteção di is infelizes, a orientação dos desgraçados, é
sutil, manhosa, eloquente. Usa argumentos complexos. Diz-se paternal,
mestre c guia da satisfação da necessidade. Torna-se, aos poucos
e impcrceptivelmente, didática: ensina e conforma. Amestra o necessitado
que se domestica dentro da necessidade de ser necessidade pura. A didática
dos amestradores usa os métodos mnis cruéis: o outro lado da fome.

— Lições do corpo da didática dos amestradores: se há um órgão da fome,


que funda uma maioria inconsciente, há outros órgãos no corpo que
inventam minorias oprimidas. Seja este órgão a pele e sua cor, seja o sexo e
seu negrores.

■ — É fácil confundir a necessidade da alimentação com u complexa


dialética da fome.

— Já acusaram muitos que falam dos problemas das uiNim chamadas


“minorias” de escamotearem a questão cen-iiul que seria a dos explorados e
oprimidos. O argumento é luho c simplesmente: fascista. Não por proibir o
que se diz, IIIIIJÍ por impor uma forma de dizer, baseado em postulados que
não aceitam críticas.

— A didática dos amestradores é exatamente este fascismo primário que


nos ensina a ser famintos ou minorias. Ê preciso começar por derrubar tais
princípios, ancorados no corpo mágico cheio de órgãos, progressos e
ordens. É preciso impor o corpo enquanto espaço de muitas histórias que se
encontram nessa praça do Prazer. Só é possível falar da
necessidade, qualquer uma, como sintaxe do discurso erótico que é o corpo.

— O caminho da didática dos amestradores vai da fome ao corpo,


inventando este como conseqüência daquela. Ou, também, do corpo à fome,
segundo variante. Só há uma alternativa que evita este ensinamento dos
totalitarismos: a que denuncia o corpo façrjinto como um aprendizado do
corpo da fome, inventando fomes no corpo. Desaprender tal corpo e tais
fomes é uma escolha, exercício de vontade política, que nega uma escola,
imposição de opções limitadas. A vontade não decorre do jogo das
necessidades, muito menos de imposições do desejo. A vontade, que lida
com opções determinadas, deve — no caminho da liberdade — saber
distinguir as determinações das opções, antes de ser escolha inconsciente.

*♦♦

E aí já atingíramos a oitava década do vigésimo, desde que a Virgem


praticara pelos ermos da Galiléia e concebera do Espírito Santo,
posteriormente ingenuamente representado por branca pombinha, numa
época em que o amor aos animais ainda não se chamava zoofilia.4 Naqueles
tempos, a psiquiatria não ameaçava ninguém. A tarefa ficava para os
doutores da Lei e os vendilhões do Templo, que transavam numa boa com
centuriões, dando para César o que era obrigatório dar.

Nossos tempos são menos ricos em poesia nas fábulas e milagres.


Racionais, matamos divindades interventoras. A intervenção virou
vigilância e classificações. Perversões, aqui estamos nós: zoófilos,
masturbadores, voyeurs, fetichistas, sado-masoquistas, narcisistas, uranistas,
copófilos, coprofágicos, ge-rontófilos. . . Todos os objetos supostos e
intermediários do desejo fazem do amor uma transgressão. Não se ame
crianças, velhos, bichos, coisa, rosto ou resto. O amor organizou-
se, organicista e genital. Só a exclusiva adoração à parcela fisiológica da
genitalia merece a confirmação tranquila e tranquilizante.

Mas a regra do jogo não é tão simples, embora sirva como guia taxonómico
dividindo o reino humano em minerais, vegetais e animais: minerais, as
montanhas do -natural, parindo mios esgotados; vegetais, a natureza verde e
imatura de crianças, mulheres e velhos (salvem-se primeiro estes, os
incompetentes); animais, todos os que, contra-natura, pervertem a mi-
ucralidade espontânea da natureza (inventada) do ser procria-tivo e genital.
Às regras do jogo são mais trabalhosas e fazem dn perversão, enquanto Lei
e Ordem, o discurso negativo da normalidade; forma de ser, não sendo;
garantia, por contraposição, do bom senso comum (“o bom senso é a coiSa
mais bem repartida do mundo”, insinuava Descartes).

Por que diabos, pode-se perguntar pertinentemente, comecei a falar dos


corredores mais transversos dos subúrbios da sexualidade? Minha
experiência “pessoal e política” (desculpem o pleonasmo) é um indício, mas
ainda não rima, nem «oluciona. Minha preocupação virava-se para a luta
pela democracia. Era preciso entendê-la como crítica e autocrítica, gemí e
irrestrito refazer de visões políticas.

Os temas abandonados ou tratados “secundariamente”, luis como a


sexualidade, o feminismo, as “relações pessoais”, lis drogas, os marginais, o
racismo, a ecologia e tudo isso, que foram preocupações mundiais desde
que os movimentos 'evolucionarlos começaram a tomar amplitude, e
chegaram às explosões de 68, estão, no meu entender, no centro da
crise que batizamos de “perplexidade”. Aqueles sujeitos de discusión
ultrapassam de longe vagas preocupações teóricas, morais, especulativas,
pois estão no coração mesmo da Política, isto é, ilu praxis revolucionaria,
pois são expressões concretas das formas do exercício do poder.

l-ui chamado a dar minha opinião no debate sobre a homossexualidade por


ser membro da estirpe. E meti minha colher torta na sopa, por recusar ser
especie de uma raça, ruim ou boa. Por princípio recusava-me a falar como
“homossexual”, pois seria fazer uma exposição de um aprendizado que
fazia questão de desaprender. Quero falar como político, ensinamento que
procuro, para conservar a lucidez. Em resumo, falar de sexo e de mais a
mais5 temas vários, para mim é discutir a prática da Democracia.

Naturalmente intitulei o capítulo anterior de “Notas marginais” porque trata


fundamentalmente de assuntos marginalizados, que eu não mais quero
marginalizáveis. Era uma forma de meter todos debaixo da Ponte. Uma
ponte liga margens, enquanto corre um rio. Os marginais só podem se meter
numa delas quando estão embaixo. Minha opção me mete na margem
esquerda, mas aprendí que a margem direita é muito mais freqüentada, por
mais ampla e confortável.

“Falar como um homossexual” ou “deixar a homossexualidade falar de si


mesma” é, a priori, justo, mas esconde arapucas perigosas. É evidente que,
num longo processo de institucionalização da perversão, o poder impôs um
discurso per-feitamente estruturado, homossexual, que possui algumas
diretrizes inabaláveis. A “defesa” da homossexualidade, com sua pungente
desesperação, é inaugurada na mesma época em que a ciência esquematiza
as perversões. Inicialmente culto, os elementos do discurso tornar-se-ão aos
poucos vulgarizados e populares. Durante anos ouvi, no gueto, as mesmas
exposições, apresentadas sem elegância, nem sofisticação: religião popula-
resca de dogmas fúteis. As relações entre “compreensão científica”,
“aceitação” e “defesa” são muito semelhantes às teorias racistas, com suas
inversões compreensivas, para só lembrar o caso do negro, sem falar ainda
nas mulheres. Estudar, compreender, educar, ajudar e proteger e curar e
salvar: eis o caminho de toda teoria racista ou de todo discurso da opressão.
A “minoria” ou o “desviante” são, antes de tudo, menos do que seres
humanos. Sílvio Romero expressa com rara felicidade: “o negro não é só
uma máquina econômica; ele c antes de tudo, e malgrado sua ignorância,
um objeto da ciência”.
Objeto e objetivo, as perversões também serão. Mas na sua ignorância
(aprendida) tecerão uma teoria, uma resposta. I' por aí só encontrarão a
justificativa do injustificável. O caminho passa por uma desativação de toda
opressão, uma prática que condena o papel de objeto, para se tornar ação de
um sujeito histórico inovador.

***

Vocês já conhecem aquela cantilena: “aqui não temos espaço para


desenvolver melhor. . .” etc. Ê isto aí para o número de páginas que tenho.
Só espero ter sido o suficientemente inexplicado, para que nenhuma
fórmula venha substituir as bulas que medicalizam nossa sexualidade.

Só para terminar, nesta sexão, uma palavra sobre a Esquerda, esta gente à
qual pertenço. Para a esquerda, a questão du homossexualidade não deve
ser a de um grupo que possa ser contado como força política organizada (e
isolável) na luta pelo socialismo (libertário, democrático e ecológico
— como define bem o Liszt Vieira). O problema, no seu fundo mesmo, é
compreender a ação do poder, para melhor combatê-lo. A
homossexualidade — enquanto objeto da repressão é uma questão inerente
à discussão do sujeito revolucioná-IÍO, que não é (já se provou) aquela
classe operária abstrata, assexuada, bem-comportada, higiênica e sanitária.

Ao falar da sexualidade, enquanto homossexual, não se faz uma tentativa de


introduzir um discurso homossexual na esquerda, mas UMA CRÍTICA AO
DISCURSO HOMOSSEXUAL QUE A ESQUERDA TEM.

E ela tem um. Muito afiado. Seja o silêncio, seja a compreensão do tipo
“tirar o corpo fora”.

Numa revolução não se tira o corpo fora. A revolução é Pura Tesão. O resto
é silêncio e uma vida que se leva morrendo até uma morte-susto que não se
vive.

A chamada democracia liberal tem a perniciosa mania de parar na porta da


fábrica. Nenhuma democracia pode parar aí, e nem na beirada da cama
proibida.
Deixemos que os anjos do sexo ganhem as ruas da Terra, que queremos
como toda, como nua.

Leila Miccolis

PRAZER, GENERO
DE PRIMEIRA NECESSIDADE
AOS QUE LUTAM

“quem sabe faz a hora

não espera acontecer”

Geraldo Vandré
1

Não se esqueça de aspar os termos transitórios.


2

Esta expressão inclui os países capitalistas e os “socialismos realmente


existentes”.
3

“Comigo carrego muitas decepções e derrotas Possuo a malvadez de


um homem que se afoga Toda a amargura do mar sobe por
mim Preciso sempre me provar não sei o quê E tanto faz que esmague e
tanto faz que triture Devo tirar minha desforra sobre a vergonha”
4

Não há nenhuma intenção blasfema na frase acima. Pelo contrário. É


preciso ler com inocência, caros censores.
5

De mais a mais; de mais, amais; demais há mais; demais amais: de-


mais a-mais.

ERAM AS LÉSBICAS MARCIANAS?


“Não se persegue um grupo, modela-se uma raça”

(Herbert Daniel)

Uma vez me perguntaram, numa entrevista: “o que é ser lésbica?”, e eu


respondí, sem pestanejar: “deve ser um ser estranho, tipo marciano. Eu
nunca vi uma”. Com isso, queria questionar a divisão da mulher em lésbica
e não-iésbica. Queria dizer que não existe uma raça à parte, que as
pessoas são pessoas, e homossexuais ou heterossexuais são os atos
que praticam, não elas em si. Um “ser lésbico” ou um “ser heterossexual”
deve ser coisa de um outro mundo, e por mais que se pareça conosco e fale
a mesma língua, será um alienígena.

Para a concepção clássica, greco-romana, o que valia era o eros (em priscas
eras, era o eros...), ou seja, o impulso sexual do sujeito, sem se importar
com o objeto para o qual este impulso se dirigia (homens, mulheres,
crianças, animais). Reduzir Safo a uma “lesbiana” é, além de má-fé, um
anacronismo, porque não havia esta divisão na época. Safo nasceu no
começo do século 6 a.C,, teve uma educação intelectual primorosa, aos
dezesseis anos já participava de uma conspiração contra o tirano Pitacos, o
que lhe valeu o exílio, casou-se, teve uma filha, enviuvou, com vinte e seis
anos fundou uma escola para jovens mulheres, foi considerada a “Décima
Musa” por Platão, morreu aos cinquenta e cinco anos, e atualmente é
conhecida não por sua intensa atuação sócio-política, mas upenas como
“iésbica”. . .

Maria Carneiro da Cunha escreveu sobre ela: “sua casa de educação era
baseada nos mesmos princípios de todas as associações culturais da
Antiguidade grega, como, por exem-
pio, a academia de Platão. Algumas pequenas se dedicaram ao longo do
tempo a questionar sobre a natureza do amor, mas é indiscutível que ele
estava ligado a um culto de beleza física que sempre teve, para os gregos,
um valor quase religioso. (...) Esta total liberdade de Safo, que nunca
limitou o objeto de seus amores, paradoxahnente a tornaria hoje difícil de
ser enquadrada em alguns movimentos lésbicos radicais atuais (os de
escolha mão única). Na verdade, ninguém encarnou ou cantou melhor as
potencialidades multiformes do Eros, irredutíveis a qualquer classificação
ou enquadramento”.

Este exemplo é bem característico da filosofia da época. Só no Cristianismo


é que o conceito se inverteu, passando a ter o objeto do desejo mais
importância do que a pessoa que o ama. Onde o grego via só erotismo (o
impulso), o cristão avaliava o valor moral do ser amado. Para a Igreja, esta
santa falocrata, o esperma é o bem supremo, e criminoso é quem
o desperdiça (por isso até a masturbação é condenável). Nos Contos de
Canterbury, filme de Pasolini, na cena em que o homem pratica sodomía
com um rapaz, nota-se que ele, o “ativo”, é o queimado, enquanto seu
parceiro nada sofre. É ele o único culpado por ter, inutilmente, esbanjado
um líquido tão precioso quanto o petróleo para o mundo moderno. . .

Enquanto a prática dos atos homossexuais masculinos foi condenada em


quase todo o Ocidente cristão, o lesbianismo quase não era mencionado na
lei, simplesmente por ser caso de menor gravidade, não estando em jogo a
seiva da vida. . . Sumariamente ignoraram-no... Assim, no século passado,
na época da reforma do Código Civil na Inglaterra, ao permanecer a
pederastía como crime, perguntaram à puritaníssima rainha Vitória sobre o
homossexualismo feminino, e ela se limitou a responder: “isso não existe”.
Para o vitorianismo, a mulher era tão assexuada, que^seria impossível
pensar que ela pudesse querer praticar um ato sexual com outra mulher,
pois fazê-lo apenas com um homem já era obrigação por demais penosa.

A palavra homossexualidade foi usada pela primeira vez em 1869, por


Benkert, médico húngaro, numa obra em defesa dos direitos homossexuais;
em 1862, o alemão K. Ulrichs escrevia um livro em prol do “uranismo”
como o terceiro sexo. Finalmente, em 1897, outro alemão, M. Hirschfeld
criou a primeira organização científica a apoiar os direitos dos
homossexuais. Note-se que, na Alemanha, a pederastía enquanto crime era
punida com grande severidade; se passasse à categoria de doença,
possibilitaria a compreensão. Naquela época, portanto, tinha um significado
histórico importante a inclusão do homossexualismo na categoria de
distúrbios, era um modo de defender a vida de seus adeptos. Esta noção
porém, que no século XIX se constituiu num avanço para as práticas
homossexuais, hoje em dia não tem outra função senão a repressora.

O Código Civil Napoleónico (1804) foi o primeiro, no Ocidente, a


descriminalizar os homossexuais. Por influência da França, o primeiro
Código Civil Brasileiro, após a Independência, também segue esta
orientação, ficando, portanto, um século na frente de muitos países,
inclusive de alguns estados norte-americanos, onde a sodomía é um ilícito,
condenável à morte ainda hoje em dia no Irã.

A esta altura vocês pensarão: mas se ela não acredita em homossexualismo,


como vai explicar a necessidade de um movimento homossexual? Se este
não existe, como haver então um movimento organizado para a liberação
dele? Simples: embora negando esta divisão culturalmente inventada — ho-
messexuais/heterossexuais — justifica-se o movimento porque, se u
sociedade crê nesta divisão e discrimina os primeiros, eles têm direito a se
organizarem e lutarem contra os preconceitos ¡ilé mesmo provindos desta
divisão.

Mais um detalhe: na época em que o movimento apareceu, não havia outro


campo para questionamentos sexuais. Se <* lema está na “moda”
atualmente, não estava naquela época . Desde 1964, quando no Brasil se
instalou o golpe militar iam o seu enorme aparelho repressivo, as pessoas,
impedidas de falarem diretamente sobre política, contornavam esta
dificuldade, discutindo-a através de outras formas, e nada mais justo que
elas dissessem respeito ao corpo, a vítima de tortillas, espancamentos,
maus-tratos e violências.

Na década de 70, os movimentos feministas tendiam a ver o sexo mais


como uma característica biológica, em cima da qual se davam as
reproduções da mão-de-obra e do poder masculino. A grande inovação do
movimento homossexual foi questionar esse biologismo reprodutor,
mostrando aspectos da sexualidade diretamente ligados ao prazer. Até 79 só
se podia debater sexualidade com este enfoque, repito, através do
MH (movimento homossexual). Este era o único espaço aberto, a única
brecha transformada em tribuna livre para se denunciar a manipulação
político-econômica do corpo. E como a luta partidária, naquele tempo,
parecia esvaziada por anos de repressão política, por palavras de ordens
abstratas e porque assistimos ao desmoronamento de nossos projetos
democráticos, o MH surgiu como uma nova opção política, na época
realmente inovadora.

Uma pessoa condicionada a ser reprimida em seu prazer, desde a infância,


será muito mais facilmente reprimida durante toda a sua vida. Isso com as
mulheres ainda é mais visível, porque elas foram educadas para renunciar
ao seu prazer, em prol dos filhos, do marido, dos outros. E educação, do
latim “e-ducare”, significa “dirigir para”. De “duca” vem duque: o que
comanda. Mussolini era chamado de “il ducce”. Ou seja, a raiz da palavra
educação tem sempre uma conotação autoritária. Inevitável. Mas,
dependendo da estrutura da sociedade, esta autoridade será exercida de
modo mais ou menos castrador. Para uma educação machista e patriarcal é
necessário incutir nas crianças papéis diferenciados, segundo os sexos
delas.

Margaret Mead, em seu livro Sexo e Temperamento (Ed. Perspectiva, São


Paulo, 1979), ilustra muito bem o assunto, ao notar que como certos traços
humanos foram socialmente designados para um único sexo, quando eles se
encontram no sexo oposto, são tidos como “antinaturais” e significam de-
sajustamento. “Às vezes, uma simples identificação com base no interesse
ou na habilidade se traduzirá em termos de sexo e a mãe lamentará: ‘Maria
está sempre trabalhando com os instrumentos de desenho de Jorge. Ela não
tem interesses normais de menina. Jorge diz que é uma pena que ela não
tenha nascido menino’. A partir deste comentário, será muito fácil Maria
chegar à mesma conclusão. A criança censurada em sua escolha e acusada
de ter as emoções do sexo oposto poderá com o tempo adotar muito do
comportamento socialmente limitado àquele sexo”.

Nas sociedades destituídas de uma rígida dicotomia sexual, as crianças são


poupadas deste tipo de confusão muito habitual na sociedade ocidental.
Naquelas, ao apresentar traços de comportamentos indesejados, diz-se: “não
aja desta íorma, as pessoas não fazem isso”; nós já dizemos: “não
se comporte como uma menina”, ou “isso é coisa de menino”. Assim,
incute-se uma eterna dúvida sobre o real sexo da criança, e isto fica muito
patente nos comportamentos dos chamados machões, onde é constante a
necessidade de afirmação, para si próprios e para os outros, de que são
realmente homens, frisando: “com H maiúsculo”. . .

Wilhelm Reich também comentava que a energia sexual leprimida poderia


ser canalizada para fins que o poder constituído considerasse úteis: a
reprodução da mão-de-obra do trabalho, e, às vezes, em determinadas
épocas, até de serventia para a guerra. Já se sabia, portanto, há longos anos,
que conceitos como traição, monogamia, virgindade, taras, homosse-
xualismo são culturais, e portanto apreendidos, manipulados, dirigidos
(através da educação, inclusive); mas foi no movimento homossexual que
se vivenciou a discussão desses conceitos através de uma prática de vida. ’

Também basicamente cultural, a luta do MH não era (nem é) para só abolir


leis repressivas, nem para integrar <>s “coitados” na sociedade ou criar leis
antidiscriminatórias; seu objetivo principal é a transformação da
mentalidade da sociedade como um todo, para que haja mais prazer em
tudo o que se faz, para que se respeite as diferenças de comportamento, sem
que por isso a pessoa seja discriminada como doente, anormal, tarada,
pecadora. A luta não é — como er-icmeamente se supõe — em prol dos
“direitos homossexuais” mas da liberdade humana, porque não adianta
apenas a mudança de um regime político — como em Cuba — onde
os homossexuais continuam perseguidos e oprimidos, e as mulhe-ics
tratadas como “companheiras do homem” (palavras de um discurso de
Fidel). Este aparente reconhecimento do seu valor só serve para
secundarizá-la e oprimi-la, transformando-a cm satélite do astro de primeira
grandeza.

Esta demagogia ideológica aparece em todos os sistemas políticos, seja qual


for a época histórica. Se vocês querem uma prova, tentem adivinhar de
quem é este trecho “primoroso”: “A mulher é por natureza e destino
companheira do homem. Mas ambos são, por isso, não apenas
companheiros da vida, mas também camaradas de trabalho. (...) O trabalho
honra a mulher tanto quanto o homem. Mas a criança enobrece a mãe”.
Acertou quem disse Adolf Hitler, no manifesto para a eleição presidencial
de 1932. Este era o seu “Programa” e continua sendo o da maioria dos
dirigentes políticos.

Tradicionalmente sempre foram as forças da direita (representadas pela


Igreja, aristocracia, burguesia, poder constituído, etc.) que mais se
posicionaram contra a liberdade sexual; mas, a partir da Revolução
Francesa, e mais recentemente em meados do século XIX, com as revoltas
proletárias européias e a constituição da esquerda, esta, mesmo criticando a
direita em vários aspectos, herdou dela seu rígido moralismo sexual. Engels
condenava as “repugnantes práticas da pederastía” entre os gregos e os
“feios vícios antinaturais dos germanos” (veja-se A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado, Ed. Vitória). Esta esquerda ortodoxa
considerava como prioritária a luta político-social, e as reivindicações
específicas como “menores” e até desmobilizantes em relação à luta
principal. No Brasil, só no final dos anos 70 é que segmentos significativos
da esquerda passaram a compreender que sexo não era apenas algo privado
— feito entre duas pessoas e quatro paredes — mas também um
instrumento de manipulação do sistema.

Aposto como muitos (como muitos? além do cacófano, um duplo sentido?)


vão dizer: “esse palavrório todo é só para defender o bissexualismo. No
fundo, ela o justifica porque não assume o que é, e não o faz por medo”. Se
não creio em homo ou hetero, não acredito em bi, mais uma
classificação inútil. Quanto ao argumento de um pseudo não-posicionamen-
to por “medo” — tantas vezes sugerido pelos mais ingênuos — me parece
que é sempre usado mais como provocação agressiva do que como uma
expressão da realidade. “Assumir” (esta expressão tomou quase uma
conotação heróica) rótulos, só para provar coragem, me faz lembrar os
métodos primitivos de iniciação sexual indígena, onde meninos e
meninas passavam por verdadeiras torturas para mostrarem o seu valor. . .

Para mim, todas essas palavras — puta, lésbica, bicha, sapatão, fancha,
pitomba, viado, corno, racha, bofe, foda, cabaço, caralho, saco, porra — só
podem ser minadas por um comportamento libertário esvaziando seu
sentido pejorativo e até ofensivo. Enquanto elas forem apenas usadas
maquinalmente, sem uma ação coerente que as desmitifique, cada vez mais
estarão reproduzindo estereótipos, e, daqui a pouco, assim como se fala
numa “linguagem feminina”, vai começar a se induzir a uma linguagem
“homossexual” — embora o gueto já fabrique vocábulos em profusão — e
aí o separatismo estará consolidado. Resgatar palavras apenas pela
repetição delas me parece ingenuidade ou utopia. Num país capitalista e
con-sumista como o nosso, as únicas coisas que se resgatam são as notas
promissórias. . . assim mesmo quando se tem dinheiro.

DIÁRIO DE BARDO
(Poemas, Notas, Recados, Trechos, Monólogos e Diálogos)

“Se falo em primeira pessoa é para escapar da política da


abstrata pessoa ausente do discurso”

(Herbert Daniel)

Todos temos más-turbações e maus antecedentes. Também eu. Dos últimos,


fiz um livro com este título. Das más-turbações, tornei-as boas, aos onze
anos, mais ou menos, quando eu queria ser freira e me autoflagelava (pelo
menos eu achava que era um flagelo) docemente, apertando meu sexo. Num
livro de Guy de Larigaudie soube o nome deste ato, pecado, coisa feia que
podia me levar à loucura. E eu, que só fazia isso para melhor servir a Deus,
fiquei muito confusa. Ainda bem que Kinsey, com seu relatório, logo me
resolveu o conflito. Foi a primeira vez em que optei pelo prazer,
em detrimento da culpa.

♦♦♦

Nasci no Rio, de sete meses, um quilo e pouco, cabia numa caixa pequenina
de sapato, e o médico disse pra minha màe: “isso não se cria”. Contra todos
os prognósticos e vaticinios, virei gente. Mãe queria um menino — sofre
menos, ela justificava, pai também (embora ele negue), pois explicava aos
amigos: “é menina, mas muito inteligente”. Meu nome, raro em 1947, veio
de uma ópera chamada O Pescador de Pérolas, e uma vez me disseram que,
em árabe, significava “rainha da noite”.
Tenho l,30m de altura. Se esse tamanho causa vários problemas, também
tem uma semivantagem (nem sempre é boa como se verá): quem me olha
uma única vez não me esquece jamais. Sou, portanto, o tipo típico da
mulher inesquecível. Filha única, nada de mimos. Minha família, por
parte de mãe, é Barata Ribeiro, daí muitas vezes eu me assinar Leila Barata.
Era uma família de políticos revolucionários, grandes nomes, conviví com
minha mãe falando da galeria de heróis baianos. Suas mulheres não
entraram na História, foram todas anônimas, mas agüentaram sempre barras
violentíssimas, enquanto os homens tentavam transformar o mundo lá de
fora. Sei que delas herdei a resistência. Eram mulheres fortes, sem nem
saberem.

♦♦♦

Entrei para a Faculdade de Direito (ex-Nacional, atual CFRJ) no começo de


64, portanto num período em que a lei era a do mais forte — a Ditadura —
e a Justiça andava mesmo de olhos fechados — não por ser imparcial, mas
cega. Em abril houve o golpe, peguei a intensa mobilização do
CACO (quando havia dois partidos: o da ALA e o da REFORMA) e a sua
extinção (em 66, pela Lei Suplicy, embora resistisse exatamente até 69,
quando saí; em 78 voltou a funcionar, com eleições livres). No terceiro ano
de curso minhas ilusões desmoronaram, esperanças também, passei a não
ver mais sentido naquela teoria, o que eu estudava ali não servia para o
momento político que víamos, vivíamos e convivíamos.

Já sabíamos, de antemão, que a Constituição (de 46) e o Código de


Processo Civil (de 39) — os estudados — seriam alterados; o Código Civil
servia apenas para proteger a família e a propriedade; o Administrativo
soava burocrático, organizativo dos órgãos do poder; o Comercial, de 1850,
era do tempo em que a mulher precisaria do consentimento do marido até
para assinar cheques, se estes existissem na época...; o Código Penal se
tornava uma piada de mau-gosto, frente aos bárbaros e impunes crimes
praticados contra o indivíduo (isso sem falar nas figuras jurídicas do habeas
corpus e do mandado de segurança, letras mortas naquele momento), e o
Internacional, totalmente impotente e incapaz de solucionar os conflitos
explodidos entre os países. Não poderia exercer a Medicina Legal, que eu
gostava, ela era apenas um complemento do Direito Criminal, ramo que não
me atraía. Sobrava o Direito do Trabalho, o único que ainda tinha um
mínimo dc dignidade e eficácia. Como resolví acabar o curso de qualquer
maneira, me agarrei nele, como tábua de salvação. Mas só tomei
consciência da escolha malfeita por uma frase de Heleno Fragoso,
advogado que até hoje admiro pela coragem, mas que na época me parecia
insuportável como professor. Ele dizia que quando alguém gostava muito de
sua profissão, lia assuntos relacionados a ela, nas horas vagas. Eu lia muito.
.. vivia com livros de psicologia e de literatura na mão. .. Minha área era
outra.

Nunca acreditei em amor eterno — sumiu logo, na terceira vez, o primeiro


homem por quem me apaixonei. Romantizar também é uma forma de
mistificar. E não confundir afetividade com romantismo, aquela posição
alienante, mano-brismo que leva à idealização de um amor abstrato,
fantasioso, "perfeito”, irreal, inatingível. Talvez por isso, quando no final dc
76 larguei a advocacia para sobreviver das minhas escritas (eu era advogada
trabalhista de um sindicato de trabalhadores. . não me adaptei às novas
atividades: escrever fotono-velas românticas. É que, nelas, a fórmula
moralista do bem contra o mal sempre me soou tão antipática quanto
perniciosa (a pobre mocinha no fim levava sempre a melhor,
mesmo quando derrotada, pois se agarrava em consolos — no
caso, entender só como conselhos — que a sustentavam e a faziam superar
os tolos momentos de crise).

Affonso Romano de Sant’Anna escreveu uma vez um excelente artigo, cujo


título ainda me lembro: “A História de um povo também é a história de seus
bandidos”, mostrando que nem sempre bandido é bandido e mocinho é
mocinho, essa divisão dependia muito das testemunhas oculares e de
quem fosse o escrivão de plantão na delegacia da História. Até Cristo fora
julgado como marginal. . . Como os editores não iriam aplaudir, sequer
admitir esta linha dialética nas histórias de amor, verdadeiras tramas sado-
masoquistas (incrível como incutem o sado-masoquismo na cabeça da gente
da forma mais imperceptível possível), preferi me mudar, só de
bagagens, sem armas, para as chamadas “revistas de sacanagem”, aquelas
que, vira e mexe, são apreendidas pelo Curador e contra as quais as
Senhoras de Santana veemente protestam indignadas.
Nelas há moralismo, óbvio, mas sempre de forma mais flagrante: um super-
homem capaz de gozar mil vezes por noite, e uma mulher-maravilha,
também perfeita. Esta fórmula me parece ridícula até para a criança mais
retardada. Nestas “imoralidades” não há maniqueísmos nem mensagens
subliminares de que “querer é poder”. . . Ah, se fosse. Estas mentiras
piedosas fazem mais mal do que toda a pornografia (?) do mundo.

Bob Fosse, naquele belíssimo filme Lenny, já punha na boca (será que essa
expressão é pornográfica?) do seu personagem principal o fato dele preferir
que sua filha lesse uma revistinha de sacanagem do que a Bíblia, um livro
cheio de matança. O máximo que estas publicações fazem é propiciar um
gozo solitário (ou solidário?). Nunca tentam dizer que as pessoas neguem
seus desejos ou renunciem a eles, em nome de comportamentos
comportados.

Falei em ato solitário e me veio uma frase de efeito, daquelas que a gente
diz só pra causar impacto, mas que logo se questiona, rapidinho: mulher só
faz suruba em siririca. . . Não é bem isso: que las hay las hay, mas não são
comuns, devido ao condicionamento que tiveram para PERTENCER a uma
única pessoa (de preferência um homem, lógico). Uma vez escreví um
poeminha assim: “Eu só posso ser de um homem / ou então de uma mulher.
/ Mais que isso a vó se queixa, / a mãe não deixa, / o pai não quer. . A
mudança de parceira (o) é vista mais como imaturidade, “medo de
se comprometer”, do que como opção.

O grupo feminista Costela de Adão, de Porto Alegre, lançou, em 1980,


livrinhos mimeografados chamados “Escritos sobre feminismo”. Este
trecho está no segundo número, e fala de relação monogâmica: “Somos,
pois, educados para aceitar (e procurar) um relacionamento afetivo
exclusivista, como se o casal fosse uma entidade afetivamente
completa, por isso podendo separar-se do resto do mundo. Acredita-se tão
seriamente numa complementaridade total entre duas pessoas, que o mito
da ‘alma gêmea’ passa a ser uma coisa na qual todo mundo (consciente ou
inconscientemente) acredita c sai a procurar a sua. Assim, a solução para as
crises dos ca-suis modernos, casados ou não, vai ser sempre a separação c a
busca da formação de um novo par monogâmico. Ou seja, já que nos dias
que correm o par monogâmico eterno será difícil de ser suportado, a forma
encontrada pelo sistema foi conduzir os indivíduos mais rebeldes, não a
procurar formas alternativas de relacionamento, mas a passar a vida a casar-
se c descasar-se (vide o divórcio, para os que gostam das formalidades
jurídicas, desde que, no espaço de tempo em que estiverem juntos, seja
mantida a exclusividade). (...) O casamento monogâmico, onde se configura
a divisão entre a vida do casal e a vida ‘lá fora’, é o reflexo da fragmentação
do homem: trabalho/lazer; amor/sexo; prazer/sofrimento; racio-
nulismo/afetividade; sanidade/loucura, e assim por diante. Da lorma
compartimentada como é ensinado a ver o mundo, só pode resultar um
homem que não detém o controle sobre sua própria existencia: urna vez
perdendo a visão de unidade, perde também a consciencia de seu papel
transformador nesta realidade”.

Textos como estes, assim como algumas letras de música, me deram força
em determinados momentos críticos de minha vida; mostraram que eu não
estava sozinha, remando contra a maré, e que havia todo um pensamento
articulado com o que eu estava passando e vivendo.

♦♦♦

Exatamente por isso — digo sinceramente — aceitei a tarefa de fazer este


livro, só porque era contigo, Herbert. Sozinha ou com outro, não me
animaria. Por quê? Simplesmente me apaixonei pela Passagem para o
Próximo Sonho, por toda aquela emoção descontrolada em meio aos
cadáveres dos amigos e dos sonhos. Você coloca tudo exatamente como
me pareceu ter sido, como eu vivi. Tem uma passagem (sem trocadilho) em
que você diz: “Não há pior desterro do que aquele que se vive no meio
duma gente que jala uma língua que parece ser a nossa". Tem também
aquela: “o pavor nem sempre é dramático ou teatral". E mais: "A
participação democrática não é enganosa “liberdade de opinião’ sobre a
ação dos outros. Reclamação opiniática não é protesto". “O gueto é
um serviço de utilidade pública”. "Nunca é difícil brandir um autor contra
ele mesmo, basta selecionar frases mais ou menos isoladas do contexto”
(ui...). “Muitos nunca conseguiram compreender que a convivência nos
aparelhos, sem espaço individual possível, sem concessão à intimidade era
um verdadeiro problema político”. “O mais importante eram as idéias
que tirávamos daquelas idéias".
Pois é, Herbert, depois do teu livro, fervilhei, e cá estou, aqui me tens,
expondo algumas das idéias que tu me de-fla-graste. Fiquei pensando nos
nossos ativismos urbanos, tão diferentes, tão próximos. . . Militante não me
considero, porque militante é quem milita e eu não vejo o MH como
milícias, com hostes, falanges, guerras e estratégias, muito menos poder: o
MH não quer conquistá-lo, mas justamente questioná-lo. Eu me sinto mais
como uma participante entusiasta, sem outras definições mais pretensiosas.
O importante pra mim — e sei que pra você também — é intervir, é atuar.

Quando te disse, Herbert, que em 68 eu queria ser guerrilheira, mas não fui
(lembra que meu tamanho me torna inesquecível? . . .), falaste que eu teria
chances de viver por quarenta e oito horas na clandestinidade. . . Mas já vivi
mais do que isso, muito mais, nossa geração é de clã-destinos (até na poesia
sou marginal...), de exilados (do sexo e do país). Isso nos moldou tão
parecidos: clandestinos de nós mesmos. A meu modo também guerrilhei.
Qual será teu nome verdadeiro, Daniel? E o meu nome de guerra, qual será?

Naquela vez em que notaste que muitos homens gozam como mulher, me
lembrei de um filme, muito bem roteirizado por João Silvério Trevisan, A
mulher que inventou o amor, em que ela também questiona as formas de
prazer feminino e masculino (gemidos, excitações, etc.) e aí saquei algo
que me impressionou: mudada a acentuação tônica para oxítona, Herbert
rima com mulher. . . não é bonito?

♦♦♦

O preconceito é uma arma de poder e do poder. “Mas nem sempre o


autoritarismo veste uniformes militares e encarcera os indivíduos em plena
luz do dia. Ele pode ser sutil, invisível; estar incorporado em cada
indivíduo, mesmo nas sociedades de aparência a mais democrática” (Guido
Mante-ga, Sexo & Poder, Ed. Brasiliense). Por pensar assim, presto atenção
ao que chamam de “cultura popular” e que nada mais é do que uma cultura
incutida no oprimido. Provérbios, frases e ditos, em sua aparência
inofensiva, cristalizam e servem de esteio aos alicerces mor(t)ais de uma
sociedade. Só um exemplo: “Mulher de amigo meu pra mim é homem”: 1)
só se respeita a mulher, porque é do amigo; 2) o amigo fique seguro, porque
um homem só gosta de mulher a menos que seja efeminado; 3) a fidelidade
é grande virtude a se preservar, e depende do homem, porque, afinal, todas
estão loucas pra dar; 4) a amizade está acima do sexo, amigos são
amigos, coisa muito mais séria e duradoura do que amores
passageiros. Agora pergunto: não deveriamos erotizar nossas amizades? Ao
longo de minha vida percebi que dificilmente olhamos para os amigos ou
amigas com olhar mais sexualizado, continuamos a criar compartimentos
estanques, amigo é uma coisa, amor outro departamento. Por quê? Porque
assim resguardamos estas pessoas queridas do perigo de possíveis
decepções e desgastes. Se o sexo, este tempestuoso elemento, pode ameaçar
um sentimento “seguro”, eliminemos o primeiro. E em nome de um
comodismo individual, criamos lemas pseudo-liberais que tornam nossa
covardia um sentimento “nobre”, “digno”, “respeitoso”, “honroso”. . .

Numa sociedade competitiva, acostumamos a separar as coisas e os


sentimentos, uns em detrimento dos outros. Sempre tentei não cair nesta
ideologia dicotômica. Quando eu falo sobre o corpo, não pretendo
supervalorizá-lo em detrimento das potencialidades ditas “psicológicas”.
Ao contrário, o propósito é dar à sexualidade uma conotação mais ampla,
acabando com essa história de dividir o ser humano em espírito e matéria,
numa famigerada tradição que vem de Platão e se perpetua no Cristianismo
via Santo Agostinho, aquele mesmo que dizia que “nascemos entre as fezes
e a urina” e considerava o corpo a “prisão da alma”. . . Quanto mais se
acabar com desigualdades, mais acabaremos com marginalizações,
e, portanto, com discriminações.

♦♦♦

Em 1978, eu organizei, pela Ed. Vertente, uma antologia de poesia com dez
mulheres. Quis suscitar muita polêmica, e consegui, a partir do título:
Mulheres da Vida. Alguns, numa leitura simplista e pobre, apenas o viam
como sinônimo de prostitutas. No entanto, eu estava tentando reapropriar
vários significados de uma expressão manipulada contra as mulheres que
apenas estavam na vida, que viviam. Todo o clima do livro era o de
desmitificar aquela “lírica feminina” estagnada no tempo e no espaço,
alienada da realidade social e violenta do país.

Se eu fosse contar todas as histórias preconceituosas que o livro gerou,


escrevería um romance. Incomodou porque foi mostrada uma poesia
político-sexual, num tom diferente da época em que a mulher só tinha como
“direito” o de parir. Foi uma façanha uma coletânea com este objetivo. Num
dos poemas, eu dizia: “Não sou comportada / puta e lésbica / e o que mais
me der na telha / sou a sequência / do que o primeiro gesto desencadeia”.
Choveu protestos, eu estava usando a linguagem repressora (e volta o
problema da linguagem). Presos a palavras isoladas, não captavam a idéia:
o peso dos rótulos, que precisam ser sacudidos para que sejam
transcendidos, desencadeando uma reação (s)em cadeia, como a própria
poesia propunha. ..

Réca Poletti (SP), humorada e irônica, criticava toda uma hipocrisia social
em “Confissão”: “A mulher / do próximo / esteve aqui / Desejei / enfiar
meus dentes / em sua pele / morder sua carne / chupar seus ossos / Depois
ela foi embora / eu me arrependí / por sentir / essas coisas / escabrosas / e
juro / que lavo a boca / e não sinto mais / se ela parar de vir / dormir aqui
em casa”. E Ana Maria Pedreira Franco de Castro, da BA, escrevia: “eles
tentaram transformar-me num ser menos seguro / eles tentaram eu te
asseguro / eles tentaram / minha mãe meu tio minha professora
meu cachorro / eles tentaram eu te asseguro / eles tentaram / e até o grande
ditador e o diretor da faculdade / eles tentaram eu te asseguro / eles
tentaram / e o meu primeiro namorado e a mãe do cara que amei / eles
tentaram eu te asseguro / eles tentaram / e os meus amigos mais diletos e o
meu filósofo mais lido / eles tentaram eu te asseguro / eles tentaram '/ e às
vezes minha própria imagem e o padre que ouvi na infância / eles tentaram
eu te asseguro / eles tentaram / dia veio que me inteirei de suas intenções /
assim como eles se inteiraram das minhas”.

Acho que todas — ou quase todas — falavamos na primeira pessoa do


singular, mas que na verdade era do plural (o plural emotivo). Arte pra mim
é isso mesmo: aproveitamento de situações concretas, mas de um jeito que
as extrapole. O individual coletivo. A meu ver, este também foi o grande
avanço dos movimentos homossexuais: falar em primeira pessoa, jogar nas
reuniões a vivência particular como um dado político, quando então
boiavam claramente as formas de repressão, a partir da família.
Substituindo as palavras de ordem e os velhos chavões, surgia o eu, que está
em todos nós, o eu plural, nosso emocional exposto não como uma sessão
terapêutica (quem falou em doentes ou cura?), mas política, e patética. E
poética. Não se falava de repressão como uma palavra vaga que passava ao
longe, mas da nossa própria, a que dormia e acordava conosco, na nossa
cama. Foram dias importantíssimos de descoberta, estávamos diante de uma
revolução sem armas, e que no entanto era tão perigosa quànto as explosões
nucleares, ou os arsenais de munições.

**♦

Esta parte está parecendo mais uma avalanche do que um capítulo. Mas é
difícil prender palavras nesta primeira oportunidade que tenho para soltá-
las, para falar de saldos, saltos, vivências, datas, danos. Quem já escreveu
um diário sabe que não se pode exigir dele um tom bem-comportado como
o de um dicionário, que mesmo focalizando assuntos tabus, como o do
Palavrão e Termos Afins, de Mário Souto Maior (Ed. Guararapes, de
Recife, 1980), torna-se “científico” e respeitoso, um verdadeiro compêndio,
visando mais o folclore regionalista do que o palavrão (im) propriamente
dito. Não aparece nenhuma terminologia do gueto homossexual do Rio e de
SP. Cheguei até a pensar em mandar uma relação, com o intuito de
preencher a lacuna. Mas desisti, destoaria muito, parecería “sacanagem”. . .
O problema dos teóricos é que eles se baseiam quase que exclusivamente
nos grandes mestres da língua (pátria, naturalmente) para as suas pesquisas.
. . e aí saem palavrões. . . eruditos.

Outra constatação: enquanto é possível (embora difícil) se fazer um dossiê,


mesmo que pobre, de violências cometidas contra homens com práticas
homossexuais (veja-se o levantamento realizado por Luís Carlos Machado,
no seu livro: Descansa em Paz, Oscar Wilde, Ed. Codecri, 1982),
praticamente impossível é se fazer isso com relação à mulheres com
vivências homossexuais. Ê como se inexistissem. Naturalmente não estou
levando em consideração os jornais da grande imprensa, repletos de
manchetes diárias explorando o assunto através de crimes, violências e
versões sensacionalistas, pois estas fontes não são nada confiáveis. Embora
todos saibam que são inúmeros os casos de mulheres com vivência
homossexual agredidas e violentadas de todas as formas, poucos são os que
vêm à luz do conhecimento público, inclusive por medo das próprias
vítimas. Por isso, só pude me ater a três casos, compro-vadamente
verídicos, dos quais, indiretamente, participei de dois: o de Marisa Nunes,
participante do GALF, de SP, e o de Ninuccia Bianchi, que me concedeu
uma entrevista para o jornal Lampião (trabalhei nele enquanto foi possível,
durante três anos, do n? 0 ao 31).

Marisa Nunes, com 19 anos, num sábado, 25/11/79, às dez e meia da noite,
estava andando pela rua quando um homem a abordou, pediu seus
documentos e não os devolveu com a alegação de que uma moça com o seu
tipo físico assaltara dois rapazes, e que a polícia (mostrou-lhe uma
carteira de longe) estava detendo todas as que correspondiam à descrição.
Bateu no bolso dizendo que estava armado, e que a levaria para o 4*?
Distrito, próximo dali. Foram a pé. No meio do caminho, ele a agarrou,
enfiou-a por uma entrada de casa valendo-se de força, e a estuprou. Depois
lhe devolveu a identidade, perguntando: “Quantas vezes você gozou?”.
Com raiva e nojo ela respondeu: “Umas dez”. Como prova de ter estado lá,
deixou um modess atrás do divã.

Conseguiu que a polícia fosse ao local, arrombasse a porta, constatasse o


absorvente, levasse à delegacia o estuprador, Clodomir da Silva Pereira, 37
anos, casado, auxiliar de química num bairro da alta classe média paulista
(Moema). Lá ele reclamou: estava dormindo muito bem (a luz foi apagada
quando a polícia chegou) e apareceram aqueles guardas que arrombaram
sua casa e o acusaram de estupro só porque uma prostituta resolveu se
vingar por ter recebido metade dos mil cruzeiros que pedira. O delegado
procurou os quinhentos cruzeiros e não encontrou.

Ela oficializou a queixa, assinou-a em numerosas vias, foi fazer a perícia


médico-legal, e quando voltou encontrou sua bolsa revirada e a acusação do
delegado: os papéis achados eram pornográficos (ela pertencia ao grupo
Lésbico-Fe-minista e as meninas, naquela época, andavam cheias de
panfletos sobre o movimento) e ela portanto devia ser mesmo prostituta.
Assim se descaracterizava a violência sexual. . . O acusado saiu rápido da
delegacia, ela ficou até cinco da manhã jurando inocência... De vítima
passara a ré.

Um mês depois do ocorrido, uma de suas advogadas, Dr? Solange Gibran,


descobriu não ter havido representação pela delegacia; conseqüentemente, o
inquérito não fora instaurado, apesar da vítima e do acusado terem
comparecido na mesma noite do estupro. Os papéis de sua bolsa
continuavam confiscados e serviam, segundo o delegado, para lançarem a
suspeita da prostituição. O crime (apenas punido com pena de três a oito
anos) tinha virado somente escândalo de uma “profissional” tipicamente
fodida e mal paga. . . Dois anos e meio se passaram e o processo ainda não
tem sentença.

O outro caso foi o de Ninuccia Bianchi — preconceituo-samente conhecido


como o de “Nino, o italianinho”. Ninuccia foi acusada da morte de Vânia,
sua ex-companheira com quem não mais vivia, e julgada pelo 4? Tribunal
do Júri, no Rio. Nenhuma prova havia nos autos que justificasse sua
indicia-ção, a não ser o fato de sua opção sexual diversa da
maioria, constatada pela descoberta de cartas amorosas entre as
duas. Baseando-Se apenas em suspeitas, a acusação tentou incriminá-la por
homicídio.

Durou três anos o processo. Em 26 de junho de 80, por 5x2 votos, ela foi
inocentada, depois de ter sido humilhada pela imprensa machista e
sensacionalista, responsável por uma verdadeira devassa em sua vida,
inclusive publicando as cartas que não tinham nenhuma vinculaçâo com a
morte de Vânia. Apesar do final jurídico feliz, muito tempo mais tarde ela
ainda se queixava de desemprego: mesmo absolvida, sua fama
de “homossexual” continuava a persegui-la. Palavras dela: “O banco dos
réus é uma experiência amarga, pois ali começa a expiação ante o público
de um fato muitas vezes não praticado por quem nele se senta”. O público. .
. esta hidra de tnilhares de cabeças (e nem sempre “em cada cabeça uma
sentença”, há pré-julgamentos consensuais...), este “ser” que aplaude, vaia,
e pode condenar uma pessoa ao exílio em sua terra, até quando não é
criminosa.

Do terceiro caso só tive conhecimento através do livro autobiográfico


intitulado A Queda para o Alto, publicado postumamente pela Ed. Vozes
(3? ed., 1982). Sua autora, Sandra Mara Herzer, conhecida como Anderson
Bigode (Big), nascida em 10 de junho de 1962, em Rolândia, Paraná, ati-
rou-se do Viaduto 23 de Maio, em SP, a 9 de agosto de 1980, vindo a
falecer na manhã do dia seguinte. O tema principal do livro é sua vivência
nas diversas unidades da FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do
Menor) de SP, contando as atrocidades, barbaridades, violências e sadismos
contra as menores; sua situação era das piores, principalmente por
sua postura masculinizada, parte da crise de identidade sexual originada por
uma série de pressões emocionais acumuladas ao longo de sua curta vida.

Não quero dizer com isso que a (des) orientação sexual se deve
exclusivamente à sua passagem pela FEBEM (inclusive porque acho a
pesquisa da origem da “homossexualidade” igual à pesquisa da
“heterossexualidade”. . .), mas é inegável que a agonia que finalizou com
seu suicídio tem muito a ver com as repressões (inclusive sexuais) que ela
sofreu na infância e adolescência, tornando-a uma mulher em perpétuo
conflito consigo mesma, com seu próprio corpo e com o mundo, chegando
ao máximo da inadaptação com sua saída da FEBEM.

O texto que se segue é do livro de Sandra Mara, e embora se refira a


prostitutas e homossexuais serve bem para mostrar seu senso de
compromisso social: “O caso é que a sociedade incrimina tanto homens
como mulheres, e, como é cega, ainda não conseguiu perceber que a culpa
não cabe a mais ninguém a não ser a ela própria. Se eu tivesse meio
de comunicar-me com todas essas pessoas, teria muito a dizer. Pena que a
sociedade jamais admitiría culpa ou incompreen-sâo, mas infelizmente,
minha cara sociedade, aí estão os frutos que por terrível fraqueza um dia
foram semeados”.

Esse meu verso é pra Sandra Mara, embora ela não possa mais ouvi-lo:

Te chamar de menor é piada.

De todas, foste a maior abandonada.

*♦♦

Em 1980, conhecí Fernando Batinga, quando reunia material para um livro.


Ele fora mais outro exilado, como tantos — o golpe militar transformou
“exilado”, de participio passado, num substantivo comum. . — saído do
Brasil em 70, permaneceu no Chile até a queda de Allende, depois foi
preso num campo de concentração, escapou de lá graças ao Governo da
Alemanha Federal, e finalmente viajou para a Europa (Alemanha, França,
Portugal, Itália e Espanha).
Pareceu-me incrível que um homem com esta vivência político-partidária
tivesse interesse em parar para pensar e escrever sobre sexualidade
feminina. Mas teve. Segundo Fernando, a idéia nasceu em Paris (1978)
quando ele, conversando com várias amigas suas, se espantou com os
papéis e significados que uma mulher pode exercer na vida da outra. De
minha parte, fiquei curiosa por ler a visão de um homem sobre o assunto e
paguei pra ver: comprei o livro —• A Outra Banda da Mulher — quando
ele saiu em 1981 pela Codecri, e confirmei minhas suspeitas sobre o autor:
uma pessoa capaz de fazer um livro emocionante. Sem cair na armadilha de
um teoricismo dissertativo, preferiu deixar que as oito entrevistadas
falassem em primeira pessoa, mostrando suas incoerências, dúvidas,
rancores, incertezas, medos. Acho que quanto mais se luta mais se aguçam
as contradições, e o livro de Batinga é justamente valioso por mostrar que,
em matéria de sexo, “nós ainda somos os mesmos e vivemos como os
nossos pais”, já diria Belchior...

No final do livro, Batinga tem um capítulo intitulado “Shere Hite e o


Lesbianismo Político”: “Elas propõem a sua transformação (do mundo)
material e cultural? Pelo contrario: acertando parcialmente na identificação
do componente machista, resvalam, no entanto, pelo escapismo
oportunista e sectário, que tanto combatem nos machos, apontando a
relação homossexual como a alternativa única. O ‘inimigo’ para Kelly/Hite
não é o tipo de sociedade vigente em seu país, mas sim o macho, ou seja, o
outro pólo da relação humana fundamental. Para elas, as mulheres
provavelmente estão livres das forças destrutivas da sociedade; (...) não
veem que 'opressão machista’ pode ser também assimilada pelas mulheres e
que transformar os machos em diabos e as fêmeas em santas é um
maniqueísmo cômodo”.

É. A relação entre mulheres/mulheres ou homens/ho-inens não é fácil,


como também não são fáceis as de homens/ mulheres. Nenhuma relação é
fácil, em suma, justamente por ser uma relação entre duas pessoas distintas,
com seus mundos, fantasias, esperanças, projetos, alegrias, sofrimentos.
No entanto, o que mais aparece são mitos generalizadores: o do homem
gozar mais rápido do que a mulher e ter prazer mais centralizado; o das
“lésbicas” serem mais possessivas do que us “bichas”; o de que o caso entre
elas é mais harmonioso e duradouro do que o entre eles; o do orgasmo
simultâneo como sendo o mais maduro e “perfeito”; as fábulas do
maravilhoso amor entre duas mulheres, a maior facilidade de “ser
lésbica” do que “bicha”, porque mulheres podem se dar as mãos na rua e até
andarem de braço dado, ou porque as famílias permitem que as meninas
durmam com as amiguinhas, sendo isso proibido aos meninos, etc. A esse
respeito, convém lembrar que estas pseudo-facilidades ilusórias só são
permitidas a quem as usa “sem maldade”, “inocentemente”, sem dupla
intenção. .. As “lésbicas” não se dão a mão com tanta simplicidade, pois já
têm na cabeça o sentimento de culpa a cerceá-las e coibi-las; qualquer gesto
só propicia uma determinada prática sexual quando é feito intencional e
conscientemente. Eu acho.

A partir de quando me conscientizei dos prazeres (também sexuais) da vida,


nunca quis ser homem. Não que ser mulher implique num mar de rosas, em
absoluto, mas, pelo menos, está em nós a capacidade de questionar todo
este estado de coisas; para os homens, embora ruim, o mundo é deles, e
a opressão passa menos despercebida. Não há muito mais a conquistar, eles
são o referencial de tudo, o centro do universo. Lá vou eu com mais um de
meus poemas, o “Referencial”, que está num livro ainda inédito chamado
Mercado de Escra-vas: “Solteira de aceso facho / precisa logo de macho; /
se é nervosinha a casada / só pode ser mal trepada; / viúva cheia de enfado /
tem saudades do finado; / puta metida a valente / quer cafetão que a
esquente. / Mulher não vive sem homem. / A prova mais certa disto / é que
até as castas freiras / são as esposas de Cristo. / Tal regra é tão extremista /
que não contém exceção: / quem sai dela é feminista, / fria, velha ou sa-
patão. .

Seja qual for a preferência sexual, homens e mulheres custam a perceber


que a repressão sexual é parte da social. Quando se cultua, por exemplo,
sentimentos de posse, tratan-do-se pessoas como se fossem propriedades
privadas, na verdade está se incentivando essas últimas; ao se alimentar
sentimentos exclusivistas, como o ciúme, inconscientemente se apóia uma
economia de monopólios. . . Ao se mitificar o ser amado como único e
diferente de todos os demais, está se reproduzindo a competição,
privilegiando uns em detrimento de outros. A sexualidade, que passa por ser
um assunto estritamente individual, é, no fundo, um microcosmos da
ideologia dominante. Resta-nos detectar o grau de manipulação e tentar não
repetir os mesmos vícios sócio-econômicos na nossa vida amorosa, no
corpo-a-corpo. . .

. Pessoalmente, concluí quç o amor não é um bolo do qual se tire um


pedaço, desfalcando o restante. Sensações — amor, prazer, sexo — não são
coisas que se quebram sem conserto, de forma irremediável. Quanto mais se
ama, lucidamente, mais se acrescenta, e não há obrigatoriedade de se querer
a uma única pessoa de cada vez (ai meu sangue grego. . Lógico que na
prática isto é complicadíssimo de ser articulado. Mas dá pra tentar. Sei
porque vivo assim.

♦♦♦

E não me perguntem os motivos, as causas que levaram alguma mulher a


“escolher” outra, porque são tão variadas e diversas como as que podem
impulsionar alguém a preferir o sexo oposto. Falei em escolha, mas não sei
se ela efetivamente existe. As pressões são tantas e tais que somos levados a
ter uma escolha, não a escolher (somos levados a não sermos levados . . .).
Outro dia, ouvi uma artista opinar que achava errada a atitude de
determinadas cantoras ao fazerem proselitismo, apologia do
homossexualismo. Isto era indução. Concordo. Só que sequer mencionou as
milhares de induções diárias a uma prática heterossexual, presentes desde o
primeiro vagido.

Na “heterossexualidade” qualquer um está seguro, definido, defendido,


resguardado, protegido, certo de estar no caminho certo, o da maioria. Sair
dele é procurar atalhos, talvez perigosos, tendo certeza de contar sempre
com o repúdio, o estigma e intolerância sociais. Diante desta desproporção
de forças pode-se realmetne falar em opção sexual?

A prática homossexual deveria ser um abrir de fronteiras, inclusive para um


maior autoconhecimento. Mas nem sempre é. Há fortes misoginias e
misantropias, sexismos de todas as espécies, porque qualquer relação de
poder (ativo/passivo, do-minante/dominado, forte/fraco) gera mais ódio e
rancor do que amor e afeto. Quando em vários Congressos eu falava
da posição das mães e das desquitadas no MH, a reação era sempre a de
espanto: na verdade, nem as mais “liberadas” pensavam na prática
homossexual como uma escolha, em vez de fatalidade ou estigma.
“Lésbicas só são lésbicas”, uma vez lésbica, lésbica até morrer. Esta
estereotipia serve menos para diferençar quem é quem, do que para
tranquilizar quem não é quem. Só que às vezes as coisas são mais
complexas, e aí surpreendem, assustam, ameaçam. Uma “lésbica”, com
filho, pode ser “confundida” com uma mulher “normal”. Por isso
uma grávida chegou a me dizer possessa: “não tenho nada a ver com a luta
homossexual, acho mesmo a das. prostitutas ‘mais justa’.. . Corno se as
fontes repressoras de ambas não viessem da mesma origem machista,
preconceituosa, moralista.

Enquanto a indústria do orgasmo fabrica gozos a ataca-do(s), de todos os


tamanhos — inclusive descartáveis — a gente se propõe a achar o prazer
individualizado, porque ge-neralizá-lo é igualá-lo, uniformizá-lo, massificá-
lo, massacrá-lo e faz parte da política de padronização do que é “certo” e
“errado”, perseguindo-se o que sair fora dos esquemas e
cânones convencionais. Nenhuma mulher deveria ser criada para criada,
nem apenas para reproduzir. Sacanagem não é o que fazemos na cama. É o
que fazem conosco. Por tudo isso, fico com o meu “Ponto de Vista”: “Eu
não tenho vergonha / de dizer palavrões / de sentir secreções / (vaginais ou
anais). / As mentiras usuais / que nos fodem sutilmente / são muito
mais imorais, / são muito'mais indecentes.”

0 MOVIMENTO HOMOSSEXUAL
BRASILEIRO ORGANIZADO — ESSE QUASE
DESCONHECIDO
‘“Quem cala consente’. .. Como se o silêncio não fosse a imposição
de um discurso”

(Herbert Daniel)

Foi mencionada, na primeira parte, a dificuldade de se começar a criar um


espaço para se falar de sexo, como fonte de prazer e ao mesmo tempo
reivindicação de luta. Relembrando, a luta político-partidária não
encampava as específicas. A esquerda tradicional, inclusive, via os exilados
que voltavam com outros tipos de propostas políticas (através da
sexualidade), como desbundados (isso em pleno 78/79), o que equivalia a
demonstrar todo o descrédito sentido por quaisquer outros meios de luta.
Para eles, na austeridade e sisudez estaria o encaminhamento correto de
seus projetos, que fatalmente seriam “desvirtuados”, se saíssem destes
severos padrões...

Já em 1976, João Silvério Trevisan tentava, em São Paulo, formar um


núcleo com pessoas de prática homossexual^ sem conseguir. No Rio, desde
meados de 77 também se tentava, inutilmente. O que deu muita força e
praticamente apoio para se começar o movimento, foi o jornal Lampião,
cujo primeiro número saiu em abril de 78, e que, no início, serviu realmente
como porta-voz de vários grupos estigmatizados. O Lampião foi o primeiro
a tratar questões sexuais com enfoque político. Daí a sua importância.

Antes dele houve vários “jornais gays", a partir de 1961 (Snob foi o
primeiro). Uma vez entrevistei estes pioneiros, Anuar Farah e Agildo
Guimarães, conseguindo um levantamento das • vinte e sete publicações em
circulação na época. Foi fundada inclusive a ABIG — ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE IMPRENSA GAY, aglutinando todos esses
“nanicos” brasileiros. Seu primeiro presidente foi Anuar, que nos conta: “A
ABIG foi feita para lutar, porque nós todos tínhamos um ideal, queríamos
mostrar que éramos pessoas normais, que fazíamos o que todas as outras
faziam, sem diferenças”.

Todas aquelas publicações lidavam com o material disponível na época:


fatos, fofocas, piadas, notícias de festas, reuniões em que se juntavam
pessoas que se sentiam marginalizadas pela sua opção sexual. Como em
geral tratavam de amenidades, eram encaradas como “coisa de bichinhas”, e
em meio a muitas dificuldades, inclusive financeiras, acabaram. Só
dezessete anos depois é que renasceu a “imprensa gay”, desta vez maior,
profissional, falando de prazer enquanto meta a ser alcançada. A
importância do Lampião para o movimento homossexual daquele tempo
fica constatada quando se observa que logo no mês seguinte ao de seu
lançamento, portanto em maio/78, surgiu o primeiro grupo homossexual
organizado no Brasil: o SOMOS/SP, homônimo ao da revista do
primeiro guipo homossexual da América Latina, a FILHA — FRENTE Dli
LIBERTAÇÃO HOMOSSEXUAL DA ARGENTINA, já naquele ano
massacrada pela repressão estatal.

Entre seus fundadores, se destacavam dois escritores: o mesmo Trevisan e


Glauco Mattoso, que desde 77 fazia o Jornal Dobrabil, com a sua deliciosa
gaÁeria aXegria — notem que o “1” é escrito como o lambda grego, em
muitos países o símbolo do MH, além de uma série de brincadeiras com a
palavra gay, alegria em inglés. Segundo depoimento da época, não houve a
priori nenhum plano organizado sobre o funcionamento do grupo, a única
coisa que tinham em mente era se encontrar fora dos locais do chamado
gueto. A partir destas conversas iniciais, começou um processo de
conscientização de como era inédita e necessária a experiencia deles.

Durante muitos meses o SOMOS não teve preocupação de divulgação


externa. Suas atividades consistiam, basicamente, em papos e reflexões.
Neste período buscavam alcançar uma identidade enquanto grupo, a partir
da vivência homossexual, elemento comum a todos. “A coisa não foi fácil.
Tivemos uma existência quase clandestina e muito conturbada. Imaginem
um bando de pessoas frequentemente com problemas básicos de aceitação
pessoal, tentando encontrar o ponto comum para iniciar um diálogo sobre si
mesmas. Tudo bastante dilacerado, de um lado. Muita dúvida porque tudo
era novo. E uma extrema oscilação de gente entrando e saindo. Muitos
vinham para espiar. Se decepcionavam. De fato, não tínhamos nenhuma
fórmula para mudar o mundo. Eles iam embora. Pelos motivos mais
diversos. Só não diziam que era por medo, insegurança — coisa que todo
mundo lá dentro sentia”.

Quase no final de 78, foi atingida uma nova fase, mais pública e
formalizada: houve uma reunião ampla no Teatro da Praça, para a qual
anteriormente foram distribuídos panfletos mimeografados, e após o debate
da USP (fev./79) o grupo se tornou amplamente conhecido, ganhando seus
contornos definitivos. Um dos problemas mais sérios era a ausência de
mulheres. As poucas que no decorrer de 79 se organizaram no SOMOS
passaram então, dentro dele, a formar o LF — LÉSBICO-FEMINISTA —,
por acharem que seus problemas eram específicos, isto é, a maioria
masculina tendia a discutir assuntos masculinos, em detrimento dos
femininos. A esta altura, já havia em São Paulo mais dois grupos: o
LIBERTOS (de Guarulhos, em abril) e o EROS (de SP, em maio).

No Rio, a primeira experiencia a ser concretizada foi o GAAG — GRUPO


DE ATUAÇÃO E AFIRMAÇÃO GAY, criado em 1/7/79. Pontos
interessantes a salientar: sua composição era mista, mas a maioria era de
mulheres, inclusive na coordenação; seu âmbito de atuação foi basicamente
a Baixada Fluminense (região famosa por seu alto índice de criminalidade,
pobreza e descaso governamental), com seus componentes morando em
Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti; e sua cyrta vida, pois
não chegou aos primeiros meses de 1980, nada mais se ouvindo a seu
respeito.

Motivados pelos frequentes artigos publicados no jornal Lampião sobre os


primeiros grupos paulistas, alguns cariocas passaram a fazer contato com os
mesmos, ou através de cartas, ou mesmo indo a SP participar de reuniões,
até que em setembro de 1979, com cerca de cinquenta pessoas, e entre elas
lá estava eu, é formado um agrupamento no Rio, posteriormente chamado
de SOMOS/RJ — em sinal de união com o seu homônimo, seguindo uma
estrutura semelhante: reuniões de recepção para os novos membros; de
reflexão, em que se desenvolvia a consciência individual face à repressão
social; e subgrupos de atividades.

O primeiro racha do MH brasileiro se deu no Rio, em dezembro, nas


vésperas da prévia do P Encontro de Grupos Homossexuais Organizados
(EGHO). Possível motivo: o SOMOS/RJ, desde o seu início, devido ao
grande número de participantes, teve necessidade de se dividir em dois
subgrupos: um na Zona Norte, o outro na Zona Sul, o que acarretou
experiências diferentes e práticas até certo ponto conflitantes, visto que,
enquanto na Zona Norte se privilegiava a reflexão pessoal — o que
significava a fala (difícil e até dolorosa) em primeira pessoa, ao expor as
experiências vivencia-das —, na Zona Sul a ênfase era dada a discussões
metodológicas sobre as melhores formas de organização, não implicando,
portanto, um envolvimento individual tão forte quanto o necessário numa
prática reflexiva. Talvez por isso permitiu-se, na Zona Sul, a presença de
uma antropóloga sem vivência homossexual, a qual declaradamente estava
ali apenas para colher material para a sua tese de mestrado.
Enquanto a referida pesquisadora freqüentou apenas as reuniões do
subgrupo que a aceitava não houve problema, já que eles tinham
independência na sua organização interna; mas quando ela compareceu à
reunião geral (em 9 de dezembro de 1979), com direito a voto e a
deliberações, houve tantos protestos que, três dias após, as pessoas
dissidentes, inconformadas, resolveram formar o AUÊ — GRUPO PELA
LIVRE OPÇÃO SEXUAL, nome dado quase de brincadeira (auê) pela
confusão, movimentação e agito criados em torno do fato.

Não ia nisso nenhuma intransigência nem atitude discriminatória ou


contrária às pessoas de vivência heterossexual; tratava-se apenas de que não
se via sentido em questionar a repressão às práticas homossexuais com
pessoas que não so-friam na pele este tipo de problema. Nesta briga, fiquei
com o AUÊ, que fechava mais com minha ideologia. Trecho do primeiro
manifesto: “acreditamos que a liberdade sexual seja essencial para uma
sociedade mais justa e democrática, sendo portanto parte integrante de uma
liberdade mais ampla, social. Tudo o que prejudicar a liberdade sexual afeta
necessariamente a liberdade em geral, e vice-versa, sendo a existência de
ambas inter-relacionadas e interdependentes. Não nos propomos à mera
integração na sociedade atual, pois a vemos profundamente injusta e
marginalizadora. Desejamos mudanças em vários níveis, desde a social até
a das nossas individualidades. Acreditamos assim poder contribuir para uma
luta coerente pelo prazer, direito (e por que também não dever) de
toda pessoa”.

Uma das características que diferia o AUÊ dos outros grupos brasileiros
estava em que ele foi o primeiro a não aceitar uma “identidade”
homossexual, aprofundando a discussão e a crítica à falsa dicotomía que
divide os seres em dois. Gente deveria poder apresentar quaisquer tipos de
comportamento, sem que com isso fosse posta em dúvida sua identidade
sexual masculina para os homens ou feminina para as mulheres. Passou-se
então a usar a palavra homossexual apenas como adjetivo de
comportamento e jamais como classificação de pessoas.

Em 15 de dezembro é realizada, no Rio, a primeira reunião preparatória


para o EGHO, contando (além do SOMOS/ SP, EROS, LIBERTOS,
GAAG, SOMOS/RJ e AUÊ) com a participação de dois outros grupos,
formados ao longo do ano de 79 — de setembro a dezembro: o BEIJO
LIVRE, de Brasília e o SOMOS/SOROCABA. Ficou marcado para abril
(Semana Santa), em São Paulo, o grande encontro.

Em 79 três fatos importantes a ressaltar, sendo o primeiro, internacional: o


12? Congresso da Anistia Internacional (reunido em Louvain, Bélgica)
configurou como “prisioneiras de consciência” as vítimas de opressão
sexual (ou seja, quem fosse aprisionado, detido ou restringido fisicamente,
de qualquer modo, pelo sexo); assim, como preso político, se adquiria o
direito a asilo. Com relação a isso, convém se lembrar que a Suécia já era
um dos poucos países cuja legislação previa a concessão de asilo por razões
de discriminação à opção sexual. Essa lei, porém, jamais fora aplicada a
estrangeiros. Coube a uma mulher brasileira, Maria Josenilda Felix
Duarte, inaugurá-la, quando, num processo que durou dois anos, inclusive
com documentos comprobatórios de que a prática homossexual no Brasil
pode ser considerada atentatória à moral e aos bons costumes, ela obteve o
asilo, em 28-7-81.

Josenilda conta que até na luta armada, numa organização maoísta, ela foi
discriminada por suas práticas homossexuais. “Aí minha cabeça pirou, o
pânico político misturou-se ao sexual”. Em 74 foi para Portugal, onde
constatou que a Revolução dos Cravos não abalara certos preconceitos.
Sempre considerada presona non grata por onde passasse, em 79 ela entrou
comjj processo na Suécia. “Meu pedido de asilo não foi só para defender
meu direito homossexual, mas para defender todo um grupo social”.
Realmente, criado o precedente, outros casos poderão nele se basear, para
atingirem igual objetivo.

Os outros dois fatos de destaque ocorreram no campo jurídico: a absolvição


do jornalista Celso Curi (em 12 de março), pela 14? V. Criminal de São
Paulo, com processo desde 1977 por ter sido enquadrado no artigo 17 da
Lei da Imprensa, por “ofensa à moral e aos bons costumes", através de
sua “Coluna do Meio”, no jornal Ültirna Hora, de SP; e, em ou-tubro/79, o
arquivamento pela 4? V. Federal do inquérito instaurado, desde agosto de
78, para a apuração da participação ilícita de cada um do Conselho Editorial
do Lampião, invocando-se novamente o mesmo artigo, e a mesma Lei
5260/67.
1980 foi um ano de grande movimentação: em 29 de fevereiro, surge em
Salvador o GGB — GRUPO GAY DA BAHIA, que se apresenta como uma
“associação de homossexuais que tem como objetivo refletir e trabalhar em
prol da liberdade sexual em geral, e, mais especificamente, lutar pela
causa homossexual”. O GGB sempre foi dos mais ativos no Brasil, em
grande parte incentivado por um dos seus fundadores, o antropólogo Luís
Mott. Foi um dos poucos que conseguiu agir junto às populações carentes,
inclusive prestando serviços médicos gratuitos e fazendo levantamento de
doenças venéreas com os travestis do Pelourinho.

Em junho, realizou-se o Encontro, dividido em duas partes: a fechada


(EGHO, com participantes apenas do MH e onde discutiu-se temas que
interessavam a estes movimentos) e a aberta (o EBHO — Encontro
Brasileiro de Homossexuais), no teatro Ruth Escobar, um coroamento de
todos os nossos trabalhos e esforços. Entre os consensos do EGHO
estavam: “entrar em contato com médicos, psicólogos, psiquiatras e
interessados, dentro dos grupos e fora deles, para elaborar trabalhos sobre
homossexualismo, criando discussão dentro do Congresso Anual da SBPC;
criar, em cada grupo, comissão encarregada de estudar medidas para
viabilizar: 1) a alteração da Constituição Brasileira no que diz respeito à
opção sexual, incluindo este termo nos direitos individuais do cidadão; 2)
a alteração no Código Internacional de Doenças — OMS —, seguido pelo
INAMPS, do artigo 302.0 que inclui o homossexualismo como desvio
mental; elaborar carta, destinada à Associação de Psiquiatria e de Psicologia
do Brasil, denunciando o tratamento dado aos homossexuais; denunciar
junto ao Conselho de Psicologia a discriminação feita durante o
recrutamento e seleção de candidatos a emprego; preservar a autonomia do
MH, enquanto movimento, sem se afastar a possibilidade de uma
participação individual de homossexuais em outras lutas”.

Este último item já previa a terrível tormenta que se abatería em São Paulo,
proporcionando o racha do SOMOS, no famoso 17 de maio. Desde junho
de 79 que alguns militantes da Convergência Socialista (organização
política de linha trots-kista, posteriormente vindo a se integrar ao PT)
participavam do SOMOS/SP, motivando-se depois para organizarem
a FHCS — FRAÇÃO HOMOSSEXUAL DA CONVERGÊNCIA
SOCIALISTA. Este núcleo, com suas propostas de atividade política
claramente definidas junto ao operariado do ABC (Grande São Paulo), veio
a se chocar com a maioria dos fundadores do SOMOS, de orientação
anarquista, preocupados em discutir mais expressamente a sexualidade.

Estas duas tendências contraditórias entraram em choque violento a partir


do P EGHO, culminando na comemoração do 1? de maio de 1980, quando
uma parte foi participar das festividades dos operários em São Bernardo do
Campo, inclusive com faixas denunciando a discriminação ao
trabalhador homossexual, e a outra parte resolveu fazer um piquenique no
Ibirapuera.

A 17 de maio (80) consolidou-se o racha. O grupo dos “antigos”


considerou-se desligado do SOMOS e formaram um novo agrupamento
que, a 25 de maio, se denominou OUTRA COISA — GRUPO DE AÇÃO
HOMOSSEXUALIS-TA, e em cujo primeiro manifesto afirmava: “De
repente, decretou-se que as bichas e lésbicas do SOMOS tinham que
ser solidários às lutas dos setores oprimidos da população. Isto porque,
sendo oprimidos, deveriamos apoiar todos os outros setores que o eram.
Assim, esta posição passou a ser um dogma dentro do grupo. Os que dela
discordavam eram tidos como ‘fascistas’, ‘inconseqüentes’.
CONSIDERANDO que a imagem externa do Grupo SOMOS está
irreversivelmente associada ao grupo Convergência Socialista; que a
autonomia do Grupo SOMOS está comprometida pelo caráter da atuação
de elementos filiados a organizações políticas partidarias; que o Grupo
SOMOS foi desviado de sua definição como grupo de homossexuais
interessados em discutir basicamente nossa sexualidade e lutar contra a
discriminação sexual, passamos a constituir um novo grupo que se propõe a
reafirmar a definição do grupo homossexual autônomo e interessado
prioritariamente na questão homossexual”.

Também como conseqüência deste racha, na mesma reunião de 17 de maio,


houve a separação das mulheres do Grupo Lésbico-Feminista do
SOMOS/SP passando a formar o GALF — GRUPO DE ATUAÇÃO
LÉSBICA-FEMINISTA (tudo no feminino). Diziam elas: “Dada a
especificidade da discriminação que sofremos, enquanto mulheres e
homossexuais, consideramos o processo de afirmação somente possível em
reuniões separadas das dos homens. As mulheres não podem descobrir o
que têm em comum a não ser em grupos só de mulheres. Ê falsa a idéia de
que um grupo homossexual precise de lésbicas para levar a questão
feminista”. Isto era a reafirmação do que elas já tinham dito, um mês atrásr
no I? EGHO: “O les-bianismo não se descarta do movimento homossexual,
mas tem especificidades que justificam os grupos exclusivos de mulheres,
levando-se em conta a importância da discussão das sexualidades
específicas. Então, num primeiro momento, a união é necessária como fator
de agrupação, afirmação e organização, mas depois, também, é preciso que
haja grupos separados, sem que isso signifique a perda do caráter coletivo
da luta, já que o elo comum é o combate contra a opressão discriminatória”.

Em maio ainda, além do OUTRA COISA e do GALF, surgiram o


TERCEIRO ATO, de Belo Horizonte, o AUÊ/ RECIFE e o GATHO, de
Olinda. Sobre o primeiro: “Nosso grupo é o TERCEIRO ATO, está
relacionado ao ato de questionamento, enquanto o primeiro está relacionado
ao ato instintivo e o segundo ao ato condicionado”. Quanto ao
AUÊ/ RECIFE, fundado por uma mulher, teve vida efêmera. Dos três, o
GATHO — GRUPO DE ATUAÇÃO HOMOSSEXUAL foi o único que
vingou, sendo até hoje um dos mais atuantes. Surgiu como reação à série de
assassinatos de homossexuais ocorridos naquele mês em Pernambuco, todos
eles tratados pela grande imprensa em tom sensacionalista e
preconceituoso, sempre acabando por inverter situações, colocando
o assassinado como responsável pelo crime, e o assassino como uma vítima
das circunstâncias.

Nos Estados Unidos, a partir de 28 de junho de 1969, e durante uma semana


inteira, em Greenwich Village, Manhatt-an, cerca de quatrocentos
homossexuais saíram às ruas para protestar contra a onda de repressão
policial e prisões que vinham ocorrendo em lugares gays, cujo clímax tinha
se dado na véspera, numa batida policial ocorrida em Stonewairinn, bar
homossexual localizado na Christoper Street, onde foram feitos muitos
feridos e efetuadas treze prisões. Por isso, 28 de junho ficou como marco da
organização de homossexuais, e desde aquele ano foi comemorado como o
“Dia do Orgulho Gay”, “Gay Pride”. No Brasil, o 19 EBHO resolveu
também adotar essa comemoração, mas se achou que “orgulho gay” não
tinha muito a ver com o Brasil, e preferiu-se um título que ressaltasse a
necessidade de atuação sócio-política para o MH: “DIA DA LUTA
HOMOSSEXUAL”; a primeira vez em que foi festejado foi em 1980, tendo
os grupos cariocas apresentado inclusive um dossiê de crimes praticados
contra homossexuais no Brasil. Em sinal de solidariedade com as lutas de
outros grupos estigmatizados, convidou-se para dirigir os debates a
militante negra e feminista Lélia Gonzales.

Em julho houve a formação de mais dois grupos: o GOLS/ABC-SP, dia 12,


e o BANDO DE CÁ, no dia 20. O GOLS — GRUPO OPÇÃO À
LIBERDADE SEXUAL tinha como meta “trabalhar e divulgar no ABC a
causa homossexual, procurando não apenas criar novos espaços, como
também despertar o diálogo, o papo franco e verdadeiro sobre o assunto, em
virtude de ser a região carente de esclarecimentos”. Quanto ao BANDO DE
CÁ, surgiu após uma agitação em Icaraí, realizada por alguns moradores de
Niterói e membros do AUÊ/RIO, interessados na formação deste novo
grupo.

Diziam no primeiro manifesto: “Um BANDO significa multidão, reunião


de bandidos, pessoas que habitam determinada região e possuem
características comuns. Tudo isso vem de

encontro ao que somos, mulheres e homens aos bandos, marginalizados e


oprimidos em nossa sexualidade, e ao que querem ser: pessoas, vivendo e
convivendo sem diferenciações sexuais, raciais, sociais, e, portanto, numa
sociedade libertária. Ao assumirmos o lado de cá, não pretendemos
reafirmar a segregação de que somos vítimas, mas denunciá-la, ao
definirmos a face da opressão em cada fatia de nossas vidas”.
Infelizmente, este grupo teve curta duração.

A 10 de julho, durante a realização da 32^ Reunião Anual da Sociedade


Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), os grupos AUÊ e
SOMOS/RJ organizaram um grande debate, que contou com a presença de
mais de seiscentas pessoas e a participação de outros grupos: GALF,
OUTRA COISA, SOMOS/SP, grupos feministas e negros do Rio e
manifestos de BEIJO LIVRE, GGB e GATHO. A idéia de se intervir na
SBPC surgiu no I? EGHO, quando, após uma série de discussões, ficou
patente que a ciência, em quase todas as suas expressões, pelo
academicismo e cientificismo com que trata o assunto, “é uma das maiores
responsáveis pela atual marginalização e opressão sofrida pelos
homossexuais” (Lampião, n? 27). O debate teve de ser realizado no hall do
nono andar do campus da UERJ, já que não foi concedida autorização para
ser feito nas reuniões oficiais da SBPC.

No entanto, apesar do estrondoso êxito conseguido com a polêmica gerada


em torno do tema “Homossexualismo, Repressão e Ciência”, houve quem o
criticasse. Francisco Bittencourt, um dos redatores do Lampião, no mesmo
número, afirma que: “Os homossexuais foram dar vexame num saguão,
cedido com o maior desdém pelos promotores do Encontro (e as bichas
dizem que ‘invadiram o Congresso da SBPC’!) para que os representantes
de alguns grupos homossexuais usassem mais uma vez de seus jargões mais
batidos do que os do Partido Comunista. O que o pessoal quer é entrar
mesmo para o PT e colher as migalhas de poder que lhes forem lançadas”.

Com isso começava-se a delinear a campanha contra os grupos ativistas,


realizada pelo jornal Lampião, que em seu número 29 já não fazia mais
menção alguma a respeito do MH, sequer publicando a anteriormente
costumeira seção: “Escolha seu Grupo”. Estes reagiram, comentando com
perplexidade o gradual afastamento do jornal, numa carta aberta ao
Lampião e assinada pelos AUÊ/RIO, SOMOS/RJ, BANDO DE
CÁ/NITERÓI, GALF, GGB e GOLS/ABC.

O periódico passa então a acusar nominalmente seus “detratores” e adquire


uma linha claramente revanchista e anti-ativista. Esta situação vai perdurar
até o último número, o 37, em junho/81. Foi lamentável esta disputa por
todos os motivos: os grupos perderam um espaço importante para
a veiculação de suas idéias; os leitores do jornal se desmotivaram em
relação aos grupos; e o jornal desgastou-se junto de uma de suas bases de
sustentação, vindo a implodir por ques-tiúnculas internas.

A partir do racha do SOMOS/SP, o OUTRA COISA iniciou um movimento


de trabalho junto com os grupos EROS e LIBERTOS, formando o MHA —
MOVIMENTO HOMOSSEXUAL AUTÔNOMO, em oposição ao
“excessivo engajamento político-partidário” de que acusavam o
SOMOS. Segundo o MHA: “Autonomia significa termos a nossa própria
análise e as rédeas dos nossos destinos como organização e a prioridade na
discussão e defesa da questão homossexual. Autonomia significa entender,
na prática, que somos um movimento político, mas não partidário. Isso não
quer dizer ausência de discussões sobre temas relevantes da nossa
situação política-social, mas que não sejamos utilizados em nome
de discursos ‘mais amplos’ ou ‘mais importantes’. Ou em nome de
interesses que não são os nossos”.

Em setembro de 80 aparece o grupo NÓS TAMBÉM — GRUPO DE


ATUAÇÃO HOMOSSEXUAL, em João Pessoa (PB). Entendendo que as
manifestações artísticas eram uma das melhores formas de superação da
dicotomía teoria/prática, esse grupo a elas deu ênfase, através de filmes
super-8, espetáculos teatrais, produções de artes plásticas, realizando
até uma série de pichações favoráveis ao Movimento
Homossexual, aproveitando a onda de graffiti que há alguns anos
predomina nas grandes cidades.

Na mesma época surgiram também dois grupos homossexuais


exclusivamente de negros; o GRUPO DE NEGROS HOMOSSEXUAIS (de
SP), por um ex-integrante do SOMOS e o ADÊ-DUDU (de Salvador), por
um ex-integrante do GGB. ADÊ-DUDU significaria “homossexual negro”,
na linguagem do candomblé. Ambos os grupos se queixavam do pouco
espaço que havia dentro do MH para a discussão do problema específico do
negro, ao mesmo tempo em que não encontravam dentro do movimento
negro um clima para a discussão de práticas homossexuais.

Resta lembrar ainda a existência de mais três grupos: COLETIVO


ALEGRIA ALEGRIA, TERRA MARIA — OPÇÃO LÉSBICA (ambos em
SP) e DIALOGAY (de Aracaju, SE), os três surgidos mais ou menos na
mesma época, final de 80. O primeiro foi organizado em outubro/80 por ex-
mtegrantes do SOMOS e do GALF, e funcionou como núcleo de estudos e
debates. O segundo, definiu-se a partir do nome: “Terra porque é energia,
algo que está nascendo da natureza. Muita força. Maria, um nome comum
que engloba tudo, muita coisa. Um nome que está em toda parte.
Opção lésbica porque é a nossa opção, uma identificação”. Perguntadas se a
criação de mais um grupo não enfraquecia o movimento, responderam: “é
com a pluralidade que teremos um confronto de idéias. Não estamos
disputando o poder com os outros, rivalidade, nada disso. Se há divergência
é quanto à metodologia”. DIALOGAY, embora com muitas
dificuldades, sobrevive e ainda continua de pé, inclusive com a
publicação do seu boletim, vendido em bancas de jornais de Aracaju.

O MH, que nos seus áureos tempos (segunda metade de 80) chegou a contar
com dezessete grupos pelo país, alguns deles com centenas de ativistas, a
partir de 81 sofre notável descenso (não só ele como também os grupos de
mulheres e negros), com a extinção dos menores e esvaziamento geral das
atividades. Possíveis causas: briga entre o Lampião e os grupos, com uma
divulgação negativa que desentusiasmava os possíveis interessados; um
certo cansaço dos ativistas, desgastados ao longo do processo e dos
conflitos de 80; as condições gerais da conjuntura sócio-política do país,
nos percalços da “abertura” do governo Figueiredo, junto aos impasses
dos diversos partidos de oposição. Como tentativa de sobrevivência, o AUÊ
aliou-se ao SOMOS/RJ passando a funcionarem, na prática, como um só
grupo. Em São Paulo, amainou-se o clima de hostilidade entre os ativistas, a
ponto de comemorarem juntos, em maio de 82, os quatro anos do MH
brasileiro.

Houve momentos memoráveis naquele ano de 80: as discussões em


faculdades e as moções lidas em vários eventos significativos da política
brasileira. Em 13 de junho, SP, quase mil pessoas em passeata na rua:
“homossexuais” e prostitutas protestando contra a violenta repressão
(principalmente aos travestis), exercida pelas forças policiais do delegado
Ri-chetti. Panfletos foram distribuídos, denunciando arbitrariedades,
espancamentos, prisões ilegais, humilhações, curras.

Ainda em junho, dias 14 e 15, o 19 Congresso da Mulher Fluminense, no


Rio, onde se conseguiu, pela primeira vez num encontro heterogêneo deste
tipo, moção de solidariedade às mulheres “homossexuais”, empenhadas na
luta contra a violência e a discriminação (anexo n? 7); fechando o mês,
dias 21/22, em SP, o Encontro de Grupos Feministas em Vali-nhos, da
maior importância para clarear rumos e expectativas comuns dos
movimentos feminista e homossexual.

Em 28-8-80, o repúdio aos atentados terroristas, através de nota entregue ao


CBA, e outra aos Sindicatos dos jornalemos e aos jornais incluídos no
Listão (anexo n? 2). Em 16 de outubro de 80, outro momento a ser
lembrado com emoção foi o do ato público em que grupos feministas e
homossexuais se juntaram para protestar contra a onda de assassinatos,
gigantesca na época (anexo 3). Em 20-11-80, a comemoração do “Dia da
Consciência Negra” e aniversário da morte de Zumbi, na Cinelândia (anexo
n° 4). O MH esteve presente em momentos importantes da vida brasileira, e
se no fim transcrevo cinco textos, é para demonstrar a vincula-ção de sua
luta com outra mais ampla, que também passa pela sexual para atingir seus
objetivos democráticos.

No ano de 82, já houve alguns marcos significativos, a saber, maio: em SP,


a comemoração dos quatro anos do MH, com uma semana de debates,
filmes e festas no Teat.ro Ruth Escobar, em promoção conjunta de todos os
grupos paulistas;

¡unho: no Rio, a comemoração do “Dia da Luta Homossexual”, numa


promoção do AUÊ/Rio e SOMOS/RJ, através de debates no Teatro
Ipanema, local lotado (gente em pé por todos os lados), contando com a
participação de Herbert Daniel, Eduardo Mascarenhas, Lélia Gonzales,
Glauco Mattoso e show de Lecy Brandão, Bráulio Tavares, GANG, entre
outros; julho-, liderados pelo GGB e NÓS TAMBÉM, o MH participa
intensamente da 34? Reunião Anual da SBPC, provocando debates,
intervindo e denunciando os preconceitos pseu-damente científicos contra a
livre orientação sexual. Vale salientar também a campanha do abaixo-
assinado, com mais de vinte mil adesões, contra o item 302.0 do CID,
adotado pelo INAMPS. Ainda em julho, em Recife e Olinda, o
GATHO promove um curso sobre homossexualismo, dentro do Encontro
Nacional de Estudantes de Medicina, atingindo plenamente suas intenções
de desmascarar a ideologia repressora exercida por grande parte da classe
média.

Conclusão
O MH, em seus quatro anos de bata/Aa, se teve erros e falhas (esta rima é
inevitável...), também alcançou alguns objetivos importantes: amadureceu
seus membros, que já conseguem uma participação política sem medo de
perder a autonomia do movimento; esclareceu melhor a opinião
pública, através dos órgãos de divulgação e de debates, sobre a
prática homossexual como uma das possíveis orientações sexuais do
ser humano; e influenciou alguns partidos, através de sua atuação,
principalmente o PT: enquanto em 79 Lula dava entrevista dizendo que
desconhecia a existência do homossexualismo entre a classe operária
(Lampião, n*? 14), já em 82 a plataforma eleitoral nacional do PT afirma,
em seu item 7: “SOMOS TODOS IGUAIS: CHEGA DE
DISCRIMINAÇÃO: O Brasil que queremos não é apenas o povo
comendo, morando, tendo saúde, se vestindo e se educando. A vida
que almejamos tem que ser baseada sobretudo numa relação pro-
fundamente humana e fraternal, igualitaria, entre as pessoas, sem nenhum
tipo de discriminação”.

Neste tópico existe uma sucinta análise dos dramas cru-ciantes dos diversos
grupos estigmatizados, inclusive afirmando: “Os homossexuais são
humilhados e discriminados, tratados como doentes ou caso de polícia. (...)
£ preciso acabar com todas as formas de discriminação. As minorias, indios
e homossexuais, têm que ser integralmente respeitadas”. Evidentemente,
uma tão grande transformação não acontece poi mero acaso, e sem dúvida
alguma foi obra também do “duplo ativismo” de algumas pessoas no PT e
no MH. E é importante que se leve a discussão de sexualidade inclusive
para a área parlamentar, para que se abra cada vez mais tribunas e espaços
de intervenção, ensejando também mudanças de leis anacrônicas que não
atendem mais à realidade social.

Por enquanto, estamos engatinhando em lutas político-apartidárias. Nosso


estágio ainda é o da mobilização da opinião pública através do grito: berra-
se o mais possível até que nosso clamor desperte a atenção do maior
número de pessoas. Mas não se trata de uma gritaria histérica. £ histórica.
Estes grupos ainda estão na batalha, procure por eles:

AUÈ/RIO — Caixa Postal n? 25029 — CEP: 20552 — RJ D1ALOGAY —


Caixa Postal n<? 298 — CEP: 49000 —

Aracaju — SE

GALF — Caixa Postal n? 62618 — CEP: 01000 — SP GATHO — Centro


Luiz Freire, R. 27 de Janeiro, 181 —

Carmo — CEP: 53000 — Olinda — PE


GGB — Caixa Postal n.? 2552 — CEP: 40000 — Salvador — BA

NÓS TAMBÉM — R. Orris Soares, 51 — Castelo Branco — CEP 58000 —


João Pessoa — PB

OUTRA COISA — Caixa Postal n<? 62699 — CEP: 01000 — SP

SOMOS/RIO — Caixa Postal n"? 3356 — CEP; 20100 — RJ SOMOS/SP


— Caixa Postal n? 22196 — CEP: 01000 — SP

♦»♦

Comecei com uma frase, vou terminar com outra, ouvida de uma líder de
um grupo lésbico-feminista de SP. Falava-se de aborto e a moça foi
categórica: enquanto feminista era a favor; mas enquanto lésbica o
problema não lhe dizia respeito. Para ela, algumas questões não atingiam as
“homossexuais”, como se elas fossem categoria à parte, e não,
simplesmente, MULHERES.

E é isso o que a repressão faz conosco, até mesmo com quem tenta
questionar este estado de coisas: confunde-nos a tal ponto que passamos a
ter uma vida dupla, bipartida, es-facelada, dicotomizada, esquizofrênica. E
quanto mais se divide, mais se conflitua, mais se quebra uma pessoa em
várias partes para melhor subjugá-la. Escapar desta armadilha deve ser meta
prioritária, chega de fazer das manifestações do prazer (desde o desejo até a
vontade de viver) uma mercadoria de luxo, inacessível ou supérflua. Não há
classe no mundo que precise só de pão para ser feliz. Não queremos uma
vida penosa, apenas com deveres e obrigações, difícil de se suportar, onde
sobreviver seja o brinde máximo e todo o restante pequenos prêmios de
consolação... A alegria, a satisfação e o prazer também são gêneros de
primeira necessidade.

FIM

PUBLICAÇÕES DA “IMPRENSA GAY”

DÉCADA DE 60
O Snob

Le Femme

Subúrbio à Noite

Gente Gay

Aliança de Ativistas Homossexuais

Eros

La Saison O Centauro O Vic O Grupo

Darling

Gay Press Magazin

28 de Abril

O Centro

Os Felinos

Opinião O Mito

Le Sophistique

O Galo

Na Bahia:

O Gay

Gay Society

O Tiraninho

Fatos e Fofocas Baby


Zéfiro

Little Darling Elio

DÉCADA DE 70

Colunas de Celso Curi, de Glorinha Pereira, de Fernando Moreno,


respectivamente nos jornais: Última Hora (SP), Jornal de Copacabana
(RJ), Diario de Notícias (RJ)

Entender

Journal Gay Internacional

Lampião

Peteco e Rose*****

Boca da Noite

Rádice*****

Jornal Dobrabil*****

DÉCADA DE 80

Macho-Sex*****

AUE/Jornal de Sexualidade***** Iamuricumá

Coverboy

Play Gay

Exclusive Gay

Luta e Prazer*****

Revista Dedo Mingo*****


PUBLICAÇÃO DOS GRUPOS DO MH BRASILEIRO

1979 — Suruba — grupo Somos/SP (antes do racha)

1980 — Boletim do Gatho (PE)

— Corpo — grupo Somos/SP (após o racha)

1981 — Chanacomchana — grupo Galf/SP

— Manga Preta — grupo Beijo Livre/Brasília

— Caderno de Textos, do MHA — SP

— O Bandeirante Destemido (Guia Gay de SP) — grupo Outra Coisa-SP

— Boletim, do Dialogay (SE)

— Guia Gay da Bahia — Grupo Ggb — BA

— Boletim, do Ggb — BA

1982 — Boletim, do Auê e Somos/RJ

Obs.: Essas publicações seguidas de asteriscos ( ♦ ♦ * ♦ ♦ ) não são


exclusivamente “homossexuais”, embora abram grande espaço para o
assunto.

ANEXOS
ANEXO 1 MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE AO
I? CONGRESSO DA MULHER FLUMINENSE
“Representado no F Congresso da Mulher Fluminense o AUÊ, grupo pela
livre opção sexual, se une às suas irmãs de opressão em todas as
reivindicações específicas de nossos direitos humanos, na luta ampla, geral
e irrestrita contra todo tipo de massacramento responsável pelo
esvaziamento de seu discurso ideológico, ao considerá-las minoria, quando,
na verdade, elas são maioria numérica da população e força transformadora
desta sociedade discriminatória e antidemorcática”.

Rio, junho/80

ANEXO 2 CARTA ABERTA AOS SINDICATOS


DOS JORNALEIROS E AOS JORNAIS
INCLUÍDOS NO LISTÃO CONTRA OS
ATENTADOS TERRORISTAS
Através da imprensa, o Grupo Aué/Rio — pela livre opção sexual e de
liberação homossexual — tomou conhecimento de bombas colocadas em
bancas onde são vendidos jornais alternativos, os mais ativos em denúncias
às arbitrariedades diárias.

Estranhamos que a polícia, sempre tão ciosa de sua eficiência quando se


trata de ameaças esquerdistas, se mantenha omissa frente aos fatos que
evidenciam um terrorismo de direita.

Nós que lutamos pela liberdade sexual só a podemos conceber dentro de


uma sociedade democrática. Assim, nos solidarizamos com os jornaleiros e
os jornalistas ameaçados no cumprimento do seu dever, e condenamos todo
e qualquer atentado contra as liberdades humanas.

Rio, julho/80

ANEXO 3 MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE


LIDA NO ATO PÚBLICO DE 15-10-80
Nós, do Grupo Auê — pela livre opção sexual e contra a repressão
homossexual, queremos nos solidarizar com todas as mulheres oprimidas e
com todas as pessoas» que sofrem coação por seus atos homossexuais, a
elas nos juntando nesta manifestação, contra o machismo, contra a
violência.

Não queremos a repetição de relações autoritárias entre dominador e


dominado; não queremos a lei inocentando culpados e condenando as
vítimas das suas agressões, em nome de uma hipócrita legítima-defesa da
honra; não queremos a deturpação e o sensacionalismo por parte dos meios
de comunicação, responsáveis por uma serie de estereótipos sobre
as mulheres e as pessoas consideradas sexualmente desviantes. Basta de
manipular lemas como “liberdade”, “ciúme”, “paixão”, “honra”,
“dignidade”, “respeito”, conceitos que sempre estiveram a serviço do poder
e de suas arbitrariedades.

A par de uma transformação político-econômica, queremos uma profunda


mudança cultural, permitindo a cada homem e a cada mulher o direito à sua
própria vida, à opção de seus caminhos, ao prazer, ao exercício pleno de sua
sexualidade, ao acesso a meios contraceptivos, se assim o desejarem,
mesmo que essa atitude seja contrária aos propósitos lucrativos de uma
sociedade preocupada tão-somente com seus próprios interesses e com a
manutenção de falsas separações entre homens e mulheres, entre
homossexualidade e heterosse-xualidade.

O machismo que conduz à violência sobre as mulheres é o mesmo que


permite a repressão diária, desde a prisão até os assassinatos de todas as
pessoas que vivenciam sua homossexualidade, por acharem estas à margem
dos padrões considerados legítimos pela sociedade patriarcal. Portanto, a
mulher que pratica atos homossexuais tem seu assassinato duplamente
justificado, na medida em que não exerce o papel de reprodução que lhe é
historicamente destinado.

Todos esses crimes atentam contra os direitos humanos e denunciam uma


sociedade calcada não só nas disparidades sociais, mas também nas sexuais
e raciais. Cabe a todos nós a luta pela liberdade em todos os níveis, e por
uma sociedade mais justa e democrática.

NEXO 4 MOÇÃO DE APOIO LIDA NO DIA DA


CONSCIÊNCIA NEGRA, 20-11-80, NA PRAÇA
CINELÂNDIA
Quando da comemoração do 20 DE NOVEMBRO, Dia da Consciência
Negra e aniversário da morte de Zumbi, o Grupo Auê pela livre opção
sexual, vem prestar sua solidariedade a todos aqueles que são alvos de
qualquer forma de discriminação por pertencerem à raça negra.

O negro tem sido sistematicamente oprimido ao longo da História do Brasil


e o é ainda hoje quando, sob uma falsa noção de “democracia racial”, se
pretende escamotear todo um aparato repressivo destinado a negar-lhe sua
identidade enquanto pessoa e a sua importância na construção da sociedade
brasileira.

Em nome da necessidade de exploração colonial, toda uma série de


estereótipos e preconceitos foram erigidos e redefinidos até os nossos dias
para perpetuar o sistema de dominação capitalista, mantendo-se a condição
do negro como mão-de-obra servil: o escravo de ontem é o operário de
hoje enquanto os senhores da Casa Grande se sucedem de pai para filho
reconstruindo sempre o patriarcalismo e seus mecanismos de opressão.

A mulher e o homem negros que vivenciam sua homossexualidade tem sua


opressão ainda mais justificada em função de sua preferência sexual. À
violência determinada pela sua cor numa sociedade racista é acrescida a
violência determinada por sua opção sexual numa sociedade machista. O
negro que exerce sua homossexualidade não é somente abordado por
policiais, preso, torturado, preterido no trabalho, discriminado na escola, no
sindicato, no partido por sua negritude, mas também por ser considerado
sexualmente desviante. Este negro é, portanto, duplamente reprimido ou
ainda mais, caso se trate de uma mulher e seja pobre.

Acreditamos assim que a construção de uma sociedade realmente capaz de


garantir a todos uma verdadeira democracia, numa luta de todos os
oprimidos, só pode ser alcançada através de uma transformação capaz de
abolir também o racismo e o machismo, conceitos e atitudes que algumas
vezes se aproximam e até se confundem. Por isso, nós, que lutamos pela
livre opção sexual e contra a discriminação à homossexualidade,
repudiamos toda e qualquer forma de racismo.
CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, SEXUAL E À
HOMOSSEXUALIDADE!

CONTRA A VIOLÊNCIA SOBRE HOMENS E MU-, LHERES NEGROS


QUE VI VENCIAM SUA HOMOSSEXUALIDADE!

PELA LIVRE OPÇÃO SEXUAL!

Rio, 20-11-80

ANEXO N° 5 CARTA ABERTA AOS


CANDIDATOS ÀS ELEIÇÕES DE 82
Os grupos Auê e Somos/RJ de Liberação Homossexual vêm trazer a
discussão pública uma questão que usualmente tem sido esquecida pelas
forças políticas em nossa sociedade: a questão homossexual.

Estamos apresentando os seguintes pontos mínimos que achamos


indispensáveis para que possamos viver no Brasil como pessoas íntegras e
no pleno exercício de nossos direitos humanos.

Esperamos com interesse a sua opinião sobre os pontos seguintes, pois é


nossa intenção divulgar as respostas recolhidas como parte de uma
campanha de esclarecimento da opinião pública nesta atual fase pré-
eleitoral.

1 — Apoiar reforma constitucional que, no capítulo dos direitos


individuais, acrescente a proibição de discriminação pela orientação
sexual, além das já existentes por raça, credo e sexo. Ficaria assim
assegurado o direito à livre escolha do parceiro sexual entre pessoas
maiores, sejam ou não do mesmo sexo, sem que por isso possam ser
discriminadas de alguma forma.

2 — Encaminhar e apoiar projetos de lei que proíbam a discriminação


pela orientação sexual em todos os âmbitos específicos onde seja
necessário, por exemplo, no trabalho, moradia, etc.
3 — Agir junto aos Ministros da Previdência Social e da Saúde para
que haja supressão do item 302.0 “homosse-xualismo” do Código
Internacional de Doenças, já que a livre orientação sexual é um direito
do indivíduo, que não pode por isso ser considerado criminoso, nem
doente, nem imaturo, nem desviante, nem incluído em qualquer outra
categoria discriminatória.

4 — Colaborar para o fim da repressão, prisão e violência que muitas


vezes, ao arrepio da lei, são cometidas até mesmo pelas forças policiais
contra pessoas de comportamento qualificado de homossexual. Por
exemplo, categorias criminais ambíguas como atentado ao pudor
público ou ato obsceno são usadas regularmente para reprimir
manifestações de afeto entre pessoas do mesmo sexo.

5 — Denunciar a veiculação, nos diversos órgãos de imprensa e de


comunicação, de mensagens que fortaleçam preconceitos e
discriminações contra indivíduos a partir de sua orientação sexual.

6 — Lutar para que da Lei de Imprensa seja eliminado o item de


“preservação da moral e bons costumes”, usado para incriminar
pessoas e jornais que discutam homossexua-lismo.

7 — Lutar para que o conceito de legítima defesa se restrinja à defesa


da vida, e não à defesa da “honra”, pois baseados em tal ambíguo
conceito muitos homicídios têm sido cometidos e permaneceram
impunes.

8 — Promover a inclusão nos Programas de Educação Sexual do


direito à livre orientação sexual, incluindo discussões sobre
homossexualismo como uma das formas de preferência sexual.

9 — Reconhecer e apoiar a existência pública dos grupos organizados


de liberação homossexual, entidades que lutam pelo direito à livre
orientação sexual dos indivíduos, sem que por isso sejam vítimas de
preconceitos e violências.

10 — Lutar por uma sociedade mais justa, onde sejam eliminadas


todas as formas de opressão e exploração, incluindo aquelas que
atualmente são usadas contra os diversos setores oprimidos, tais como
as mulheres, negros, índios, pessoas de orientação homossexual e
todos aqueles que vivem em condições sub-humanas.

ANEXO 6 A SÍNDROME DO PRECONCEITO


HERBERT DANIEL

Sob o reino de Alexandre VI era tal a licenciosidade na Terra que chegou


aos ouvidos do Senhor o tremendo clamor. No próprio Céu, reúne-se um
urgente Concilio de maiorias para pôr fim à dissolução dos costumes que
começava na própria família papal, os Bórgias. Entra em cena Deus em
pessoa. E já não é mais aquele: é um velho senil, com graves problemas de
saúde, locomovendo-se com dificuldade apoiado em seus anjos. O celestial
Concilio, analisadas as circunstâncias, pesadas as impotencias do Todo
Poderoso, não encontra senão uma alternativa: convoca o Demônio que,
instado pelo Senhor, inventa a punição máxima para o deboche. Assim
nasce na Terra a sífilis.

Pelo menos essa é a versão dada por Oskar Panizza, um autor suíço, no
“Concilio do Amor”, peça escrita no final do Século XIX que provocou
escândalo e contrariedades ao autor. Naturalmente, ele conheceu a usual
panoplia de perseguições e sanções da censura obscurantista. Mesmo depois
do advento dos antibióticos e da conseqüente banalização da terrível doença
— tornada apenas mais uma infecção bacteriana facilmente curável — o
tema guarda atualidade e provoca polêmicas.

Sem o talento de Panizza, muitos — jornalistas, médicos e outros — tentam


reescrever a versão contemporânea do “Concilio do Amor”, acentuando
apenas um moralismo vesgo que justifica punições aos que pecam na carne
e na fraqueza dela. Eis que, senhores e senhoras, entra em cena o AIDS-
SIDA (Síndrome de Imuno-Deficiência Adquirida), a sífilis da era atômica.
Castigo feroz: como nova cena bíblica, o raio destruidor arruina Sodoma.
Pobre Sodoma.

Assim, pouco antes do começo desta vacilante década dos 80, um estranho
mal chamou a atenção dos médicos. De todas as curiosidades, tipo “acredite
se quiser”, da novidade mórbida, uma serviu de brilhante chamariz: quase
todos os atingidos pela entidade patológica recém-descoberta eram
homossexuais. A doença (ou doenças) nasceu nos Estados Unidos,
sociedade particularmente fértil na gestação de bizarros fatos sociológicos.
Em poucos meses espraiou-se a calamidade, com características
sensacionalistas de nova peste, como aquelas que varreram a Idade Média.
As informações começam a circular, de uma forma evidentemente pouco
“científica”: o tom dos relatórios que chegavam aos jornais faziam voltar
a “objetividade médica” aos tempos ancestrais das atrações de feira. Como
naquela época onde os saltimbancos usavam certos dados “científicos” (o
éter, a teratología, etc) para atrair um público ingênuo que buscava
sensações fortes, a imprensa veiculou (veicula) os fatos e dados da
“epidemia” com evidente oportunismo caça-níquel. Afinal, as bichas
sempre fizeram rir. Nada mais natural do que contar a “última da bicha”, a
piada macabra do câncer, o único câncer alegre, ridente, sorridente: o horror
desmunhecante torna-se o oh-rir. Pura viadagem.

Se por um lado os fatos assustadores serviam como apólogo sem piedade


para demonstrar a vingança terrível do Bem — através do Mal — contra os
caídos, por outro lado uma certa autoproteção mecânica dos ofendidos
levava a outra atitude, mais ou menos incoerente: a recusa dos fatos.
Muitos, procurando defender a “comunidade homossexual”, simplesmente
negavam a existência do perigo ou fantasiavam sobre causas conspirad vas
do “câncer” (teria sido a CIA?...)

Entre o sensacionalismo que insuflava o pânico (forma obscurantista do


exercício da liberdade de imprensa nas nossas sanitárias sociedades
democráticas) e o equívoco de supor ações criminais dos homófobos, a
perda de tempo só servia para desinformar todos e adoecer muitos. Foi
assim que o mal se espraiou nos países desenvolvidos. Foi assim que o mal
chegou às terras brasileiras, em meados de 1983. Agora, enquanto escrevo,
com uns poucos mortos e alguns feridos, a guerra medra devagarzinho. Os
elementos da tragedia já estão a postos. Primeiro, o pânico: em São Paulo a
reação é mais preocupada; no Rio ainda não se acredita na gravidade da
situação. Segundo, a incompetencia ou insuficiencia das instalações da
Saúde Pública. Terceiro, a vigência de um preconceito que impede que a
palavra “homossexual” seja escrita ou pronunciada fora de certos antros
específicos — entre os quais as páginas policiais, os relatórios médicos ou
panfletos e livros semi-clandestinos. As forças do destino, direis?

Pânico e Informação

A primeira vítima registrada da AIDS, no Brasil, foi um famoso costureiro.


Certamente adquiriu o vírus em terras americanas. Os outros casos descritos
estavam no mesmo caso: trouxeram dos Estados Unidos a misteriosa
doença. Imediatamente a imprensa se mobilizou e a homossexualidade —
é claro! — chegou às primeiras páginas, arrastada pela medicina. É difícil
pensar que tal questão pudesse romper o silêncio pudibundo e
preconceituoso dos jornais a não ser por razões médicas e policiais.

Antes mesmo que o mal tivesse alguma importância epidêmica, o


estardalhaço foi tal que a AIDS passou a ser mais popular que a fome ou as
tradicionais doenças infecto-conta-giosas, que no entanto matam milhares
de brasileiros todos os anos.

A primeira questão é: há razão para tamanha cobertura de uma questão


ainda tão obscura? Por que a imprensa se preocupou tão intensamente com
isso? Por seriedade? E no entanto essa mesma imprensa deixa de lado
questões urgentes que ameaçam a própria sobrevivência das populações
(podemos nos esquecer das catástrofes ecológicas? Da situação econômica?
Da situação da saúde pública no país?). Por que será que esta síndrome
ganhou os privilégios da maior ameaça à vida saudável dos brasileiros?

Sejamos suficientemente ingênuos para supor que o esforço jornalístico seja


voltado ao serviço da informação pública. Considerando a gravidade real do
AIDS, é natural a preocupação e a evidenciação do problema. O que não se
justifica é a geração do pánico — a anti-informação por excelência — e a
leviandade da veiculação de informações contraditórias. Alguma coisa vai
mal com a invenção de Gutemberg e não é só o preço do papel e os cochilos
dos revisores.

A atitude da imprensa — escrita, falada, televisada — que saudou o “câncer


gay” e pediu passagem para o preconceito teve algumas características
marcantes. Os títulos das matérias usam adjetivos dramáticos e a síndrome
ganha epítetos tão coloridos quanto são sugestivas as metáforas para
a descrição dos fatos. O tom passa sutilmente do relatório médico ao pregão
profético, embarcando pelas viagens de ficção científica. E não se pode
esquecer da galhofa. Alguns exemplos do noticiário:

“Perigo Cubano” (Zero Hora, Porto Alegre, 28-2-83).

“Mal particular — Hormônios causariam doença entre homossexuais”


(Veja, 14-7-82).

“Síndrome Gay e Evita (Perón)” (Tribuna da Imprensa, Rio, 9-6-83).

“Bancos de sangue ainda desprevenidos contra Aids” (Folha de S. Paulo, 9-


6-83).

“Pesquisa determinará entre homossexuais quem tem ‘câncer-gay’”. (Jornal


do Brasil, 9-6-83).

“Já foram detectados sete casos da doença, no Brasil”. (Folha de S. Paulo,


12-6-83).

“América aponta 3 vírus como suspeitos de causar càn-cer-gay”. (Jornal do


Brasil, 11-6-83).

“Medo de AIDS em Campinas aumenta procura de médico” (O Globo, 15-


6-83).

“Dois casos suspeitos de “câncer-gay” são examinados na Unicamp”.


(Jornal do Brasil, 15-6-83).

“AIDS provoca pânico entre os americanos’’ (O Globo, 16-6-83).

“Médico francês consegue isolar vírus do AIDS” (O Globo, 21-6-83).

“Médico anuncia vacina contra o câncer-gay” (O Globo, 22-6-83).

“Nem câncer, nem gay — A terrível doença dos anos 80” (O Dia, 26-6-83)
— (A ilustração dessa matéria, que explicava que a AIDS não é apenas um
câncer, nem de exclusividade dos homossexuais, mostrava um
romântico casal de rapazes caminhando numa idílica paisagem formada
pela figura corrosiva de um caranguejo. Se as palavras dizem "nem um,
nem outro’’, fica por conta da imagem a informação definitiva: câncer E
dos homossexuais. Sutil.').

“O enigma que mata” (Veja, 15-6-83).

“Peste-gay ataca mais dois em SP” (Luta Democrática, 14-6-83).

“Peste-gay bota toda a bicharada apertadinha” (Folha de O Povo, 14-6-83).

“Médico não quer sangue de gays” (idem).

São perceptíveis pelo menos dois aspectos:

1) Toda e qualquer informação passa para a letra de forma sem maior


verificação. Hipóteses são apresentadas como fatos. Suposições
passam a ser notícias.

2) A grande questão é a tônica dada à MEDICALIZA-ÇAO do


fenômeno e, por extensão, das homossexualidades.

Não penso que tudo seja uma trama sórdida dos jornais. Pelo contrário. Eles
apenas se deixam levar — alguns jornalistas inclusive com toda seriedade
profissional e bastante honestidade — por pressupostos ideológicos que não
sonham — ou ousam — criticar.

É claro que todos insistem num apelo, patético e bem intencionado: é


preciso advertir “a comunidade gay” (sic) do perigo que corre. É preciso
“mobilizá-la” para “informá-la”, reivindicam os médicos.

Muito bem, muito bonito. Mas que informações devem ser transmitidas? As
médicas! E no entanto os próprios médicos revelam-se bastante perplexos
com o grau de conhecimento que possuem sobre a AIDS.

Pouco adianta uma “informação médica” neste caso. Os médicos não têm
feito senão transmitir dados estritamente técnicos ou revelar suas próprias
perplexidades.
Naturalmente é preciso fazer circular amplamente a informação. Mas, neste
caso, é preciso considerar que: a) além das informações médicas existem
outras, sociais e políticas, absolutamente imprescindíveis para a
compreensão da AIDS e de seus mecanismos epidêmicos; e, b) os
“homossexuais” além de “receberem” informação devem também informar
a comunidade médica — que parece entender tão pouco da questão —
e também a própria comunidade que produz informação, que parece tudo
desconhecer sobre as condições e circunstâncias das homossexualidades.

Ê exatamente na garantia desse diálogo, dessa troca de informações, que se


poderá efetivamente criar alguma condição de um combate eficaz para
evitar o espraiamento da AIDS. Naturalmente isto implica uma postura do
corpo médico mais democrática do que a que assume em relação a outros
corpos sobre os quais se considera com direito de manipulação,
como “competente”, sem aceitar a reciprocidade de intervenção.

A grande questão para a Saúde — e não só para o caso da AIDS — é evitar


a medicalização do fenômeno humano: o corpo é um espaço político; sua
medicalização é uma forma de seqüestro de direitos democráticos.

Parece-me que este é o pressuposto mesmo para uma abordagem coerente


da questão levantada pela AIDS. Ê isto que a imprensa tem abandonado,
prestando um enorme desserviço à sociedade. Popularmente — o que
evidencia a falência da informação — o que sobra é: há um câncer,
perigoso e transmissível, que é espalhado pelos homossexuais. Novos
leprosos que aguardam a instalação de segregados lazaretos. O horror nunca
nos poupará, irmãos.

Saúde e Pública

Numa das cenas mais perfeitas do cinema brasileiro, na obra-prima de


Walter Lima Jr., Inocência, um leproso (ai, as palavras! Que carga de
violência carregam!) aproxima-se a cavalo do médico que, horrorizado,
comunica que “não recebe dinheiro” para tratar aquela moléstia. O homem
queria se informar, apenas. Faz duas perguntas, num diálogo
magistral: “Cura?” Não, responde o médico. “Pega?” Pega, afirma o doutor.
O homem se afasta, perdidas todas as esperanças e penetra no inferno da
sua solidão de banido.

Aí está, em resumo, a atitude do preconceito da medicali-zação. A grave


ameaça que paira sobre nossos corpos — e em conseqüência sobre nossas
consciências — não é uma doença qualquer, mas a forma social de
abordagem desse mal qualquer. A medicalização é uma forma de indispor o
corpo ao convívio social, eliminando qualquer recurso à solidariedade.

A atitude inversa da medicalização do corpo, ou seja, a ação coerente de um


profissional médico capaz de intervir positivamente na criação coletiva da
Saúde, respondería essas questões com uma relativização que considera, por
um lado, a própria história social e, por outro, os dados políticos da
chamada “saúde pública.”

“Cura?” Ainda não, respondería o médico. Mas a cura não depende do


médico e do seu exclusivo saber. Depende também do considerado doente e
do seu meio social. A doença não é meramente um fenômeno individual
que dependeria de relações mecânicas entre um agente etiológico e um
corpo afetado ou predisposto, inclusive considerando-se aqui a situação
social do desenvolvimento da moléstia. A doença, em si mesma, é um
fenômeno social, determinado e desenvolvido a partir de certas relações
sociais historicamente dadas. A “cura” nunca é intervenção no individual,
mas complexo conjunto de práticas sociais transformadoras. Que são de
responsabilidade de toda a comunidade sujeita à doença.

“Pega?” Em certas condições a doença se transmite. Com a ajuda dos


sujeitos à transmissão é possível entender essas condições.

No caso da AIDS as duas perguntas têm sido respondidas da forma mais


simplista — ou seja, “medicalizada”. Trata-se, segundo todas as evidências,
de um mal para o qual não se conhece remédio, provocando uma altíssima
taxa de mortalidade. O mecanismo fundamental da síndrome é a perda de
defesas imunológicas do corpo, sujeitando-o a infecções que se instalam e
se desenvolvem de forma brutal.

Duas grandes hipóteses existem sobre a origem da síndrome. Ou se trata de


um vírus já conhecido que estimulado por certas condições de vida tomar-
se-ia patogênico, ou trata-se de um vírus completamente desconhecido até o
dia de hoje. De qualquer forma, o vírus destruiría o sistema de defesas do
organismo e em conseqüência favorecería o desenvolvimento de “vírus
oportunistas”. O corpo debilitado fica à mercê de todas as infecções.
Dessas, duas têm sido as mais virulentas: uma pneumonia e um câncer de
pele (o Sarcoma de Kaposi).

Quanto às formas de transmissão parece que seguramente pode-se dar


através de transfusão de sangue, de agulhas infeccionadas e do contato
sexual. Ainda não está muito claro todo o mecanismo, embora muitos
afirmem que o simples contato não é suficiente para o contágio.

Os conhecimentos sobre a síndrome ainda são bastante inseguros e


rudimentares. O que me interessa aqui, particularmente, é a
correspondência criada entre a AIDS e a homossexualidade. Tal relação foi
estabelecida de uma maneira muitas vezes fictícia. Homossexuais
masculinos formaram o grande contingente de atingidos inicialmente pela
AIDS. O que não é suficiente para estabelecer nem uma relação entre a
homossexualidade — como forma que assume certa orientação sexual — e
a síndrome; e muito menos entre a homossexualidade e a formação de uma
“comunidade homossexual”.

Embora se possa classificar um “grupo de risco”, como diz o jargão técnico,


este não se identifica com “os homossexuais”, enquanto comunidade. As
lésbicas estão excluídas desse grupo, assim também como homossexuais
com práticas sexuais diferentes das que são características do “grupo de
alto risco”. Naturalmente, os homossexuais afetados tinham um estilo de
vida determinado que — ao que dizem — facilita o advento da síndrome.
(Até onde o puritanismo não terá aqui dirigido a investigação?)

Ora, a forma como a homossexualidade é vivida por este grupo de


homossexuais não é absolutamente uma contingência de todas as
homossexualidades. A decantada promiscuidade não é inerente à orientação
homossexual. Também não é a utilização de drogas, ou outras condições
pretensamente facilitadoras da AIDS. Essas condições são opções
individuais (de homossexuais ou não!), que, como tal, aliás, devem ser
respeitadas. Além do mais, não é a própria promiscuidade ou a utilização de
drogas que impulsiona ao mal: esta é uma visão moralista e reacionária que
procura associar a doença com uma punição qualquer de forças divinas.

O esquematismo faz uma salada onde se lê: homossexualidade —


promiscuidade e “vida libertina” — uniformização de um grupo
socialmente homogêneo = doença.

A confusão que faz da homossexualidade uma “doença” é uma forma do


preconceito tradicional. Mas não é o essencial do preconceito. O
fundamento dele encontra-se na diferenciação do homossexual como
indivíduo classificado e à parte, não apenas com uma determinada
orientação sexual que o leva a certo tipo de prática sexual. O homossexual
torna-se, segundo o preconceito, um “diferente integral”, uma
variante humana completa, com psicologia própria, ou (quem sabe?) uma
fisiologia e uma anatomia específicas. A partir dessa visão do homossexual
como ente diferenciado é possível igualá-lo a outros “diferentes” formando
urna uniforme comunidade “racial’ , uma “sociedade” dentro da sociedade,
urna “subcultura”, ou um gueto.

O que importa, fundamentalmente, dentro da dinámica do preconceito, não


é que o homossexual seja um doente ou apenas uma “varíente normal”
dentro das diversidades humanas. Ele pode ser até um ser de excepcionais
qualidades, pode ser visto até como ser superior (não mais viado, enviado).
O que importa é que ele seja segregado numa “comunidade” à parte, e
dentro dela formado e conformado.

Por que isto?

Porque isto torna a sexualidade uma questão individual e exclusivamente


uma espécie de tecnologia: envolve apenas as técnicas de relações sexuais
individuais. Assim, esvazia-se a questão política essencial que caracteriza a
sexualidade como processo de opções determinádas em relação às ações do
poder político na esfera do corpo.

A formação do gueto diferencia alguns indivíduos “sexualmente”, para


homogeneizá-los dentro de uma verdadeira indiferença política. Passam a
viver no e pelo próprio gueto.
Ê claro que a questão das homossexualidades, do ponto de vista político,
não interessa apenas à forma como é vivida a orientação sexual de um dado
grupo de pessoas, mas interessa ao conjunto social, pois problematiza a
forma como toda a sociedade resolve a sua própria homossexualidade (ou
simplesmente: sua própria sexualidade).

A medicalização da homossexualidade revela-se como instrumento


coercitivo para formação do corpo, de tal forma que o condiciona a ser
instrumento dócil da opressão política. Sua eficácia é conceituar e forjar
uma verdadeira “comunidade homossexual” — um gueto.

A resposta a isto passa por uma política de combate ao preconceito


medicalizante que proponha claramente que as questões de saúde são de
responsabilidade da própria comunidade organizada e autônoma.

Preconceito

A teorização para o gueto passa por diferentes e complexas fases. A


medicina, evoluindo nas suas descobertas e teorias, tomou inicialmente a
homossexualidade como condição patológica. Aos poucos essa visão foi
sendo contestada e vai entrando para o museu da opressão humana. Mas, se
já não são mais exatamente uma condição patológica, as homossexualida-
des passam a ser consideradas situações patogênicas: passam a facilitar o
advento de doenças, psiquiátricas ou não. Como por exemplo, a AIDS.

É mais do que evidente que HOMOSSEXUALIDADE NÃO DÁ


CÂNCER. O que precisa, agora, ser repetido fre-qüentemente para destruir
todo o absurdo desenvolvido por idéias preconceituosas que já confundem a
condição de qualquer homossexual como um perigo sanitário.

O grande câncer, destruidor e mortal, segue sendo o preconceito, este sim


uma síndrome de perigo infinito, que continua praticando genocídios
estarrecedores. E quando digo o preconceito quero me referir à
complexidade das suas ações e não apenas aos sentimentos mais ou menos
confusos de alguns “preconceituosos”. Se acentuei o lado formativo do
preconceito contra os homossexuais não quero deixar de chamar
atenção para a própria presença do preconceito na forma mesma
como muitas vezes a homossexualidade é vivida pelos próprios
homossexuais.

Ê previsível o grande estrago que pode advir da atitude preconceituosa de


recusar a existência da AIDS ou minimizar seu alcance. Infelizmente, não é,
no meio homossexual, infre-qüente encontrar os que simplesmente se
desinteressam do problema, achando que tudo é mera “manipulação
mentirosa” de “inimigos” dos homossexuais. Antes fosse... A questão é
muito mais complexa e exige uma lucidez maior dos homossexuais para
que não venham a ser vitimados; menos pela doença, apenas; mais pelo
enraizamento de um preconceito que os tornará inimigos públicos de uma
saúde tão pouco pública.

Outra questão, e não de pouca monta, é a discussão enviesada sobre a


questão da promiscuidade. Reagindo, com toda razão, ao puritanismo
castrador que “condena” a “promiscuidade” e a confunde com a própria
vivência de qualquer homossexualidade, alguns caem candidamente na
defesa vaga da mesma promiscuidade, como se esta fosse uma conquista ou
uma forma de liberdade. Isto demonstra apenas que se caiu numa
armadilha: contra o puritanismo opõe-se um moralismo ingênuo que é
incapaz de ver nas formas da promiscuidade um modelo imposto pela
opressão.

Certamente, a promiscuidade não é só uma questão quantitativa em


oposição simples e regular à monogamia. Muitas vezes, a vivência
promíscua é uma atitude decorrente da falta de visão crítica dos modelos
comportamentais impostos pela repressão sexual. E aqui o problema
pertence muito mais à sexualidade masculina como um todo do que a
questão propriamente homossexual. A eficácia sexual, apreciada
como qualidade de macheza, é medida quantitativamente, impulsionando o
homem a ter uma obsessão pela freqüência de troca dos (das) parceiros (as)
sexuais. Parece-me que a “promiscuidade” (compulsiva ou compulsória)
não deve ser discutida apenas em relação aos homossexuais, mas em
relação aos homens e às suas expressões de repressão sexual.

O homossexual masculino não se livra facilmente do machismo. Pelo


contrário, este encontra condições ideais de plena evolução dentro das
instituições do gueto homossexual. A visão crítica disso não tem sido uma
preocupação muito grande, como se fosse uma questão secundária dentro
do quadro da “opressão homossexual”. No entanto, quero crer que
essa opressão tem como fundamento a adoção de modelos falocrá-ticos de
relações humanas que tornam o homossexual masculino (mas não só...) um
oprimido que ainda não ousou dar o nome à sua opressão.

A chegada da AIDS nas praças de Sodoma obriga-nos, homossexuais ou


não, a uma reflexão em profundidade sobre as próprias circunstâncias da
vivência da homossexualidade. Só mesmo uma participação coletiva na
politização da questão das homossexualidades pode permitir uma reflexão
mais coerente e uma ação realmente transformadora, capaz de arrebentar
os portões doentes da opressão.

Este livro foi impresso nas oficinas da Editora Gráfica Serrana Ltda.

Rua Washington Luiz, 281 — Petrópolis, RJ, com filmes e papel


fornecidos pelo editor.

"Temos sabido, com o sentido conhecer da pele e da mágoa, a opressão —


que intuimos compartilhar com tantos que ainda se calam. Temos buscado a
disposição de abrir portáis onde ninguém sofra, nem venha a sofrer, as
conse-qüências da tragédia ou holocausto de um sexo triste" — dizem os
Autores. 0 que mais dizer?

Este é um livro onde o dito supera o nao-dito, onde a linha avança sobre a
entrelinha, onde o substantivo é mais importante do que o adjetivo. Onde o
prazer do texto se confunde com o texto do prazer: assumi-damente. Como
só os verdadeiros poetas e pensadores sabem fazê-lo — com garra e
disposição. Nesta hora de luta dura e puta, entre mil dificuldades políticas,
econômicas e sociais, o que dizer a mais?

Recorramos aos próprios Autores: "Não queremos projetos, não


apresentamos propostas 'partidárias'. Apenas nos dispomos, expondo-
nos aqui nestes escritos, a experimentar todas as partilhas viáveis e
necessárias para as partidas para a democracia (não há democracia cantada
no coro dos castrados). Afinal, basta-nos uma definição nada definitiva:
definitivo é só o transitório".
Sem a menor dúvida, este é um livro sério. Que todos nós tenhamos uma
leitura alegre — e feliz.

Os Editores
Table of Contents
1. SUMARIO
2. Introito ou Pro-Nomes Pessoais
3. OS ANJOS DO SEXO
4. CRÓMICA
1. + A BICHA
2. + CHORXE
3. + RESPEITÁVEL CIDADÃO
4. 4- A PONTE
5. NOTAS MARGINAIS
6. SEXÃO DA REVOLUÇÃO
5. PRAZER, GENERO DE PRIMEIRA NECESSIDADE
1. ERAM AS LÉSBICAS MARCIANAS?
2. DIÁRIO DE BARDO
3. 0 MOVIMENTO HOMOSSEXUAL BRASILEIRO
ORGANIZADO — ESSE QUASE DESCONHECIDO
4. Conclusão
6. ANEXOS
1. ANEXO 1 MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE AO I?
CONGRESSO DA MULHER FLUMINENSE
2. ANEXO 2 CARTA ABERTA AOS SINDICATOS DOS
JORNALEIROS E AOS JORNAIS INCLUÍDOS NO LISTÃO
CONTRA OS ATENTADOS TERRORISTAS
3. ANEXO 3 MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE LIDA NO ATO
PÚBLICO DE 15-10-80
4. NEXO 4 MOÇÃO DE APOIO LIDA NO DIA DA
CONSCIÊNCIA NEGRA, 20-11-80, NA PRAÇA CINELÂNDIA
5. ANEXO N° 5 CARTA ABERTA AOS CANDIDATOS ÀS
ELEIÇÕES DE 82
6. ANEXO 6 A SÍNDROME DO PRECONCEITO
1. HERBERT DANIEL
2. Pânico e Informação
3. Saúde e Pública
4. Preconceito

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