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Um passo político muito grande é dado, nos parece, quando da luta abstrata
pela abstrata "igualdade" caminhamos à luta concreta pelas concretas
diferenças, para que o ser diferente não mais implique ser superior, ou, ser
inferior, mas implique, justamente, o ser — original, único, e
Gustavo Bernardo
achiamé
Rio de Janeiro
1983
cawrí- Wrote »
Capa
Cláudio Mesquita
Revisão
Tel.: 222-0222
Editor
(dito popular)
SUMARIO
Introito ou Pro-Nomes Pessoais
NOTAS MARGINAIS
ERAM AS LÉSBICAS MARCIANAS?
0 MOVIMENTO HOMOSSEXUAL BRASILEIRO
ORGANIZADO — ESSE QUASE DESCONHECIDO
A SÍNDROME DO PRECONCEITO
SUMARIO
Intróito ou Pro-nomes Pessoais 9
Os anjos do Sexo 13
Crômica 29
Notas Marginais 45
Sexão da Revolução 56
Diário de Bardo 79
Conclusão 110
Anexo 114
Falamos de nós mesmas nos nossos dois ensaios. De. nossa vida,
imaginação, práticas, sonhos, teorias e outras dimensões. Falamos dos
nossos próprios sexos. “Nossos”? Pronome possessivo que não indica nem
posse, nem propriedade. Nosso pronome é próprio e substantivo —
designação que repudia adjetivos que classificam práticas do corpo de
cada qual: meu-teu-seu — o que pode ser lido assim: mete-o-seu, como
palavra-des-ordem apelando ao exercício da atividade e do ativismo erótico.
A passividade, atribuída às vítimas, é o arquétipo que estigmatiza o
oprimido. Não há passividade sexual; há os que exigem “passivas” para
engrossarem a voz negativa da possessividade.
Ambos os textos têm mais do que uma divisão, mais ou menos folclórica,
da “questão” homossexual. Não se trata apenas de deixar falar uma bicha e
uma lésbica para comparar as acrobacias das espécies e, ao fim do número,
atirar amendoins compensatórios. Interessamo-nos, esforçamo-
nos, divertimo-nos produzindo um discurso distante do academicismo. Só
caga regra quem se entulha com manuais indigestos, quem come com gula e
sem prazer. Procuramos apenas VER. “Ver, meu bem, é coisa de se
aproximar, sesionando” — é um verso que um de nós escreveu há anos. Ver
— não só a opressão, mas as invenções dos oprimidos. Ver — não só
a defesa dos direitos, mas as razões do direito do oprimido ao ataque. A
partir de ver, não concluímos nenhum prever ou prover preceitos.
Racionalizar o desejo, irracional por excelência, não é só incoerência: é
fascismo. Fugimos aqui de toda tentação de criar um novo catecismo sexual
que venha a substituir o calendário da genitalidade canônica.
Nossa esperança é contribuir, com umas poucas idéias aqui jogadas, para
que, quando o mundo disser “não pode”, a gente aprenda a responder “eu
quero”.
Herbert Daniel
OS ANJOS DO SEXO
para Liszt, que “não é”, mas que teve: a dignidade de dispersar nas ruas do
Rio alguns anjos — dos nexos.
Você sabe o que é ter um amor/ meu senhor?. ../ E por ele quase morrer?
(Lupicínio Rodrigues)
Devias vir/
(Cartola)
__ ??
— Ah, é que eu sou européia! Já não usam mais tirar os pêlos. Tá na época
de transar os pêlos, minha filha. Curtir o próprio corpinho.
— Feio nada! Fica é safado, analisou Marilyn. Essas européias, meu bem,
são todas umas porcas espertalhonas. São cheias de mumunha. Na .hora da
coisa levantam os braços. Assim, ó! Endoidam a rapaziada.
— Viu? Já pintou tarado. Não disse? Faça como eu, sugeriu à mãe depilada.
Esses homens querem mesmo é sem-vergonhice. Aproveite, filhota.
O espetáculo continuava. Aquela não era a única bicha na Avenida, mas das
mais talentosas.
Muitas e outras bichices passeavam ali, inclusive Cláudio, Paulo e eu, bem
serinhos, vejtidinhos de despistados. Eu, o mais enrustido de todos, de
macacão — embora um macacão meio avançadinho, de pano azul brilhante.
Paulo (meu namorado), com seu corpo de ginasta macho, estava mais ou
menos lembrando um capoeirista, com peito nu e calça branca de cetim.
Cláudio (meu companheiro-cônjuge), mais bandeira, de calção branco,
semi-transparente. Como eu, ele não via o carnaval há muitos anos, e
emputeceu:
— Amanhã não venho assim. Tô vestido como uma bicha enrustida: o pior
tipo. Amanhã desbundo, pó. Venho na minha. Nada disso de querer
disfarçar na fantasia.
Cláudio não gosta de travestir-se, mas usa suas roupas como estandartes.
No seu corpo, tradicionalmente, pendurou decorações “quais bandeiras
agitadas”, como na canção, fazendo seu “estranho festival”. Seu estilo é
vestir-se de dourado no palco das perdidas ilusões. Para se mostrar belo,
como de fato é. E ser desejado, o que para ele é fácil. E tão mais fácil
quanto necessário. Quanto mais bonito é um, mais exibe e impõe a suprema
precisão de fazer que todos reconheçam o seu próprio desejo. Cláudio,
desde que o conheci há 11 anos, sempre foi uma das pessoas mais
conscientes dos signos do vestuário. Seu discurso de hábitos e costumes
sempre foi um manifesto e mais do que uma proposta: uma prática do
próprio erótico. Às vezes, invejo. Mas para mim o caso é outro.
Feinho, tenho que elaborar outra linguagem, que já sei que enfeites não são
modos de expressão uniformes. A cada um segundo suas necessidades, para
cada um segundo suas capacitações físicas. Corpos e corpo. O meu é este.
Como vai? Mal, obrigado. Com isto me arranjo e desarranjo. Aprendo e
desaprendo. Evoluo nas avenidas possíveis, provocando meus ritmos.
Não precisa, meu senhor. Digo-vos, em verdade, que isso que chamais ser
bicha é uma morte provisória, um ensinamento do inútil, uma transição para
o estéril. Complicado? Não. Só quero dizer: ninguém é bicha, meu senhor,
aprende a ser. E pode aprender de muitas formas, tanto quanto o
senhor aprendeu a ser provável carrasco-de-viado. Ninguém nasce assim.
Isso tudo, vítima ou carrasco, é papel aprendido, que não vem de geração:
se assim NÃO se nasce, assim se pode morrer.
Outro tema: que não haja mortos ou feridos, mas a vida sem guilhotinas,
sem amputações educacionais; nem mesmo giletes depiladoras. Certamente
não falarei dos pêlos, pouco me preocuparei com a raspagem. Quero insistir
na navalha, cisei de tantas estatuarias que nos pesam com formidáveis
alegorias de carros carnavalescos que empurramos achando que estamos
sambando.
Pois então, Marilyn decorou — deve ter sido barra — o seu papel. Outros
homossexuais também, que os há de múltiplas variedades. Falar de bicha é
como falar do bicho, mera generalização, que inclui o invisível protozoário,
o veado, o viado e mais humanos.
— Você, rapaz, que disse, como escutei bem, que aquele cu da bicha semi-
nua era um dos mais quentes da cidade, que homossexual você é? E por
quê? E por que aquele nojo atravessado de ver naquele corpo, tão bonito,
apenas um buraco escatológico, um cu com merda, e não um poço de
pessoa onde teu gozo podia ter oásis para os teus anais de medos oblíquos?
O carnaval é uma anistia parcial e utilitária — como a da ditadura, em 79:
dá direito a liberações restritas, a diversões genéricas. Liberação com
limites: libertar-se do quê? E o quê? Apenas o riso? Claro, uma forma do
gozo. E a dor? Outro gozo? Onde esta se libera senão na intimidade que
não tem limite de hora?
É, eu não fui anistiado, não. Meu exílio terminou por prescrição das minhas
penas. Quer dizer, um dos exílios políticos. Bicha, porém, ainda não teve
anistia. Problemas políticos. Pra quando a irrestrição?
Posso tentar clareza, quando a tiver, mas sem claridade, que por aqui, no
tereno baldio da perversão, academia de penumbras, as luzes são névoas.
♦♦*
Logo que retornei ao Brasil publiquei um livro onde falo dos meus anos de
clandestinidade até 1974 (meu exílio brasileiro), da vivência no asilo
europeu e do desterro geral do homossexual. Aí teve gente que me disse:
“você foi corajoso de contar aquilo tudo”. Coragem? Não vejo nenhuma.
Talvez lucidez e alívio. Mas nesta nossa terra pra se ser bicha é preciso
tener cojones. É preciso ser macho pra caralho, para não ser machista!
Uma amiga me escreveu, de Minas. Contava que amara o meu livro, mas
que, em geral, “os homens não gosta'ram da parte em que se falava da
homossexualidade”. Reli a frase. Normalmente tenho dificuldades com o
vocabulário que me coloca fora da explicitação sexual. Mas é corrente
dividir o mundo em homens, mulheres e homossexuais. Ser não sendo? Eu?
Mulher, nem mesmo imitação, sou ou posso parecer ser (me falta
substância). Com-po(a)rto-me masculino, perfeita e infelizmente.
Se me permito coser idéias sobre a sexualidade, não é que creia que uma
experiência que tive — em política e em sexualidade, como guerrilheiro e
bicha — me dê títulos e direitos, mas porque esta experiência me impõe
agora a busca do prazer de escrever esclarecendo, opção e vocação que me
escolhi. Não me meteria jamais a falar de uma igualdade generalizante de
seres qualificados com seus seccionados gostos, perversos ou pervertidos.
Muito menos impingiría (puro engano ideológico do egocentrismo) minha
confissão, como se fosse válida por sê-la: confessional e sincera, “verdade”
apenas por carregar-se da ilusão da honestidade. Nem todos podem ou
sabem falar compreensivelmente da sua própria experiência, por mais rica
seja ela. É preciso exercitar-se muito, para tornar a vivência uma escritura
vital, aprender duramente a modelar as observações numa visão pelo menos
Original. Todos vêem, mas rever revivendo o objeto é função do ofício do
escritor. É uma bobagem, que se tornou mania demagógica, pensar que todo
“depoimento” é válido por transmitir veracidade (ou inclusive
verossimilhanças). Na maior parte das vezes o testemunho transfere tão-so-
mente uma similitude verdadeira, simples consciência atual do que ficou
desse resto, rest-o/ho, visão de um participio (onde pretensamente se
participou). Depor não exige apenas a boa-vontade desse vago eu-conscien-
te, mito fundador da individualidade e duma insinuante filosofia do
totalitarismo (com seu culto e personalidade). Depor exige o artesanato de
organizar nas brechas do discurso consciente as expressões incoerentes do
inconsciente, instância móvel onde o passado não o é, mas uma re-escritura
sempre presente pontuando o passado, dando constante significação ao que
terá sido. Perfeito, o passado nunca o é, senão per-feito, perfazendo-se a
cada instante. Nada aconteceu; terá acontecido segundo os parâmetros
dados pelo presentemente.
•♦*
Entre as muitas opções que fiz na vida, situo a minha qualificação de bicha,
gosto que tenho e curto, jeito que fui desenvolvendo. Opção? Não se creia
que trato de uma escolha entre gostos ou saídas. Opção envolve
necessidade, vontade e desejo.
Diz velho refrão: gosto não se discute. Claro que não! Gosto se INCUTE,
assim como o sabor da pimenta brava ou da carne podre (“faisandée”, para
ficar na elegância do menu civilizado). Agora: gosto imposto não é deposto.
Fica e forma. Para que não permaneça como pura imposição é preciso
trabalhá-lo para fins adequados à coexistência, para que todo gosto por
qualquer gosto seja gostar do gosto alheio, amar o amargo sem dissabores,
liberar o paladar de todos para todas as frutas do real.
E no entanto o primeiro passo da sensibilidade, que aprendemos nas
escolas, é discutir o gesto alheio, limitá-lo. Somos forçados a admitir a
igualdade de diferenciações, nunca a reconhecer a diferenciação em sua
totalidade. Ensinadinhos, viciadinhos, aprendemos a diferenciar, de tal
forma que muitos “diferentes” fazem entre si uma uniformidade
cercada, bem murada. O mundo se divide em diferentes que — pura ironia
— são iguais entre si. Divida para vencer, é a guerra que ensina. Raças,
tipos, classes, espécies, ramos, cada qual faz parte de um buraco de
diferentes-similares, vive nas neblinas da ignorância da sua total e absoluta
desigualdade individual. Assim se constituem “minorias”, “guetos”,
“submundos”, “subculturas”. E cada um desses abismos é uma escola-de-
sombra, uma escolha da sombra, onde se apagam os contornos, onde se
exclui a plena possibilidade de desempenhar suas capacidades próprias, de
tomar consciência das pessoais necessidades. Sem potencialidades, sem
vontade, os povoado-res de cada sombra servem de produtores para a única
necessidade que dá lucro, e uniformiza na claridão da cegueira: a fome e a
liberdade de ter fome. Aquela fome que nenhum alimento sacia, pois é a
antropofagia da violentação do poder.
CRÓMICA
As coisas estão no mundo/
(Paulinho da Viola)
Piada já fui — <e sou. De “bicha”, essa afronta ao mito fundamental que
acalentamos, mito que reza que o humano se reparte em dois sexos
biológicos, lógicos e inequívocos.
Debaixo da Ponte, uma Bicha se fazia enrabar por seu Macho. Passando
naqueles ermos, um Respeitável Cidadão, honesto e labutador, escandaliza-
se com a cena pública de baixos instintos. Invectiva, com fortes palavras, a
Bicha e seu Comedor, em termos formais e censuradores. Como única
reação a Bicha, tranquilamente, diz ao seu Metedor:
E continuam a trepada.
+ A BICHA
Qualquer ser humano que pisou ou, se a sorte deixar, pisará este vale de
lágrimas é exímio praticante de uma qualquer perversão. O sexo normativo
é meramente o texto da lei. Na prática, o papai-mamãe-no-escuro é mero
disfarce neurótico, exercício de angustiados. A humanidade vira, segundo
os parâmetros da sexuàlidade dual, um esmagado sanduíche de carne entre
a perversão e a angústia.
+ CHORXE
Chorxe goza. Qualquer que seja a razão que o move, goza debaixo da
Ponte, tanto quanto Marilyn Aparecida ou o Respeitável Cidadão. Como
classificá-lo, homossexual que do heterossexual guarda apenas a assim
denominada “atividade”? Ativo, no entanto, não toma iniciativa. Ê levado,
seduzido, bota e Jira como um pistón mecânico, sem ruídos, sem
atritos. Como é possível que Chorxe seja “ativo” diante da capacidade de
ataque e falação da Bicha-Comandante? Claro, a Bicha é totalmente o Cu-
mandante. Mas Jorge é o Falo-Rei, o Cara-lho-Governador.
Naturalmente fala-se do gozo anal como forma variante do Prazer. Como se
sabe, a Bicha especializa-se nesta peculiaridade do rabo como órgão sexual,
mas não deixa de ter seu pau. Garante-nos o folclore, em outras tantas
historietas, que ocorre freqüentemente a volta do cipó de aroeira doendo
no lombo de quem mandou dar. Um dos pavores (ou prazeres?) de Jorge, é,
transfigurado em Chorxe, que depois de ir tenha que vir: “obrigado, não;
pode ir descendo as calcinhas” — pode dizer a elefantina Marilyn ao
formiguinho Chorxe. Bicha sim, mas nunca se sabe. Quem tem, tem medo.
Quer dizer: no fundo quer. E se come é porque enfrenta claramente a
hipótese de dar. O sonho básico de todo “ativo” é a passividade, que
pressupõe como sua.
Chorxe participa calado da cena porque não tem graça e não faria rir. Jorge
é um caso sério, ou seja, aquilo que se chama no jargão familiar de “uma
pessoa com problemas homossexuais”. (Cláudio de vez em quando glosa:
“eu sou um homossexual com problemas de pessoa”. . .) Jorge tem,
no fundo, horror às bichas (ou será: horror à sua própria sexualidade hetero-
gênea?). Come com nojo, para matar uma fome escatológica e ingrata. Mas
sua fome, “problema”, não o deixa escapar de enfiar-se, como tantos
miseráveis, debaixo da Ponte.
Quer a lenda, contada por Ovídio, que o lindo filho de Hermes e Afrodite
ao mergulhar na fonte onde habitava uma apaixonada ninfa, que o rapaz
repudia, saia das águas marcado pela maldição da recusada. Ela pede aos
deuses que ele passe a ter os dois sexos simultaneamente, para vingar-se
do desprezo do moço aos seus avanços. Aquele que fora possante corpo
emerge da fonte fraco e ferido. Torna-se o temível Her-mafrodita, divindade
apavorante, dotada de poderes mágicos. Como na metamorfose do infeliz
banhista, o novo corpo que nos inventamos atualmente, depois do mergulho
no que denominamos Modernidade, possui em si os dois sexos, em luta
e contradição perenes. A tal ponto que fala-se mesmo (a modernidade é
científica) em proporções e percentagens. Fenômeno considerado real, o
“bissexualismo” é comensurável: alguns são 50% hetero, outros são
preferencialmente homo (98%? 77%? A linguagem popular taxaria em
24%) etc.
De qualquer forma, resta intocado o paupérrimo e inex-tinguível sexo dual,
vale dizer: biologicamente fundado. Só que agora como problema
individual.
+ RESPEITÁVEL CIDADÃO
O Cidadão, como ficou dito, não se caracteriza pelo sexo, mas pela idade
veneranda do ancião. Por responsável, é velho, e como tal, dentro dos
parâmetros do Mito, fora dos mercados do sexo. Nele só penetra como
empecilho, como pura inércia conservadora.
Nossa cena mostra por um lado sua iniciativa, sua disposição reacionária,
sua tarefa de ordenador e pedagogo, mas não mostra diretamente o outro
lado da coisa. Um dique funciona, mas é construído. Vitima, mas é também
vítima. O re-pressor é basicamente reprimido. O Cidadão Respeitável,
até ser batizado como tal, seguiu sua trilha, a -terceira rota ao terreno baldio
sob a Ponte. Como os outros, foi modelado, modelou-se, para se meter
debaixo da Ponte.
4- A PONTE
Elemento que finge ser cenário, mas que é principalmente o local que dá
sentido à cena. Esconderijo ou gueto, a Ponte é a geografia do sexual, ali
onde ocorre o Prazer. Portanto, a Ponte é exatamente o ponto no infinito
onde todas as paralelas sendas se encontram, lugar onde está em jogo a
sexualidade de todos os personagens que vieram buscando o autor. E o
autor é o cenário, a Ponte. Lugar onde se concentram os famintos e
desabrigados, gueto de carências.
São anjos que nos seguem, guardas protetores, desde a infância. Naquele
momento em que a sexualidade tem como característica o que se classifica,
desde Freud, com a terminologia técnica de “perversão polimórfica”, sexo
múltiplo e infinito. A grande complicação, na discussão sobre a
sexualidade, é que nos restringimos exclusivamente a diagnosticar
diferenças sexuais, como se fosse possível esquecer ou isolar qualquer uma
de todas as diferenciações humanas.
NOTAS MARGINAIS
Não reclama/
contra o temporal.../
Não reclama/
(Adoniran Barbosa)
*♦♦
***
Pode-se dizer que “ser homossexual” é uma opção. Tanto quanto ser
“heterossexual” ou “bissexual”.
***
Daí que não interessa nenhuma “explicação” e nem nunca poderá haver
uma “explicação” para a homossexualidade. Simplesmente não é possível
“explicá-la”. É preciso vivê-la.
***
O mais importante é que a questão seja apresentada- de tal forma que todos,
todos nós, nos víssemos diante da nossa própria (homo) sexualidade, dos
nossos preconceitos. Em primeiro lugar, sexo não é discussão abstrata, mas
uma discussão política, pois implica uma certa visão de nós mesmos e do
mundo. Em segundo lugar, o contra-preconceito, como forma de viver a
própria homossexualidade, torna-se mais agressivo quanto maior é o medo
do próprio sexo. Em terceiro lugar, além do preconceito e do contra-
preconceito, há o preconceito de ter preconceito: o que faz com que a
maioria das pessoas, que imaginam terem superado os preconceitos,
acredite que saiba tudo sobre a homossexualidade e tenda a “aceitar” o
homossexual (alheio).
♦♦♦
♦**
A repressão sexual que todos sofremos obriga aqueles que pretendem, por
várias razões, realizar atos homossexuais, a se tornarem “especiais”, a se
tornarem “completamente” homossexuais, uma minoria de diferentes.
A diferença homossexual não preexiste à opressão, mas <5 que esta faz é
exatamente criar, cristalizar essa diferença. A repressão que atinge tutti
quanti é incorporada em alguns que são isolados, como “exemplo” para os
outros.
♦*♦
Não se pode dizer que isso seja uma questão politicamente secundária. A
liberdade — inclusive a liberdade sexual — não é nunca uma questão
“menor”. E nunca poderemos falar verdadeiramente em liberdade enquanto
não soubermos de todas as pedras dos muros onde estamos aprisionados.
4. Onde uma apreciação literária faz aparecer casualmente uma didática dos
amestradores:
SEXÃO DA REVOLUÇÃO
O sol há de brilhar mais uma vez/ O amor há de voltar aos corações.
(Nelson Cavaquinho)
•
Continuo achando Trotski genial. (O que não tem muito a ver com o
assunto. Ou tem, e não deixo transparecer.) Sempre achei o Leon um tipo
magistral. Um escritor antes de tudo. Foi um estilo (tanto quanto o de Marx
e o da Rosa) que me fez preferi-lo a outros teóricos marxistas. Quem é
que agüenta ler o Camarada Stalin? O Camarada Stalin repete, porque é
didático.
Enfim, sempre admirei a sublime elevação literária de Trotski, que nem por
isso lhe evitou o machado, parte da didática stalinista que se repetiu tanto, e
na cabeça de tantas verdades, que até hoje nos confunde a escritura e o que
dela se seguiría.
Se falo do meu apreço por Marx, o Karl, e do humor, o seu, é que ele foi
parte grande da piada da minha vida e no seu circo espero ainda encontrar
um picadeiro. Sem bicho amestrado.
Sem bicha amestrada também, como as que conheci durante os anos em que
trabalhei numa sauna noturna especializada em pegação para entendidos,
que não compreendiam muito. Deixei o trabalho quando a barra pesou
demais. Estava incapaz de observar e aprender, como fizera inicialmente.
Havia uma coisa a mais no meu trabalho. No início foi bem compensador.
Aprendí coisas que precisava sacar. Corpo e corpos. Trabalho manual, pra
começo de conversa, remunerado com os massacres dos empregos da mão
que obra. Distanciamento do trabalho intelectual, que fora o único que
fizera até então na minha vida. Em resumo: a experiência do que
poderiamos chamar mediocridade, uma forma de consciência do mundo que
pode apavorar, mas que permite que a consciência não se perca no seu
encantamento de força autônoma.
Procurei e resisti, num emprego assim, por várias razões, mas teve uma
muito evidente: o medo que tinha de “ser homossexual” no meio da gente
que conheci, como você conhece. Uma vez alguém me disse que Cláudio e
eu éramos “bem aceitos” porque não éramos exatamente um casal de
homossexuais.
Verdade. Só que meu medo, ou minha angústia, era que as pessoas que me
sabiam homossexual (revelação como um texto sagrado, coisa a ser
descoberta ou denunciada), passavam a me pensar um “homossexual tout
court". Pois então, eu não sabia o que era homossexual, tanto quanto as
pessoas que aceitam ou recusam os assim (bem-mal) ditos. Pensei
que procurando no gueto, entre eles, elas, as bichas, eu pudesse adquirir
discernimento. Porque em primeiro lugar sempre soube que minha
diferença (pessoalidade), o meu modo de ser em toda a. minha
peculiaridade, não decorria disso, duma distinção que parecia uma cicatriz
ou um carimbo. Parecia-me — e hoje sei melhor — que os homossexuais
eram um grupo assim como um estoque de latas de sardinhas. Parecem
todas iguais, afinal são embalagens e com os mesmos rótulos, formatos
e preços. Mas no ver de mais perto o que se aprende é que latas iguais a
latas, sardinhas iguais a sardinhas, em cada conserva os peixinhos são
outros. Não há a mesma sardinha em todas as latas: nem a lata faz a
sardinha, nem a sardinha faz a lata. Há produtores atrás disso tudo. E na
produção é que a diferença se torna diferenciável.
Pois fui procurar o trabalho que procurei em Paris, para uma espécie de
pesquisa de campo no descampado da putaña. In cm Portugal, tinha
começado uma carreira de questionamento, mas sem exposição pública.
Bicha, sim, assumida domésticamente, numa espécie de
semiclandestinidade. Por ali eu rm jornalista, escrevia a sério, vivia entre
intelectuais, discutia política e todos nós comparávamos revoluções. Nesse
meio, mito, o homossexualismo é outra coisa. Fica pra lá das fron-iciuis da
política, e a gente é toda evoluída, ninguém vai fazer tempestade em copo
d’água por causa da viadagem (doméstica ) de um ou outro enrustido, o
assunto está classificado na pasta de “evoluções necessárias dos costumes”.
“Eles, os ho-tnossexuais...” — e estamos com a consciência limpa de mais
uma mazela universal. Além do quê, eu nem bem era um exilado:
encontrara asilo na comovente agitação de bailarico de família que seguiría
Abril. Estava ainda numa fase de exploração de Portugal e sua pequena
grande gente, navegava no exotismo dos destroços duma eternidade de 48
anos, estava apenas me instalando, me ajeitando, buscando um espaço
para plantar raiz, porque então, naquela travessia, o Brasil e
suas clandestinidades era do lado dè lá, de antes, e eu queria, de toda
severidade, abrir uma brecha e virar português. E tanto que — com Cláudio
— buscámos acções, deitámos ilusões nas chávenas do café morno, que
começámos a esquecer, e vínhamos, com deleite, nos orgasmos (gozar diz-
se “vir-se”, indicação de que era preciso chegar a qualquer sítio).
Foi, hoje vejo, um processo de isolamento. Sem querer, vou te dizer. Não
queria me afastar muito, mas meu jeito, meu modo canhoto de temer o
viver, me fez acabar assim, escrevendo por correio, já que não tinha muito
mais com quem dialogar.
Do Direito, contra o qual o meu escudo fez o que pôde, picciso: já que
afinal a perversão só o é, se bem legislada. E •»uns decorrências, se são
anais, são também anais jurídicos. (P preciso explorar até os limites da
vulgaridade, tanto no sexo, quanto na língua escrita. Trocadilho serve de
estilingue.)
E o poeta Aragon foi quem disse:
“Je traine après moi trop d’echecs et de mécomptes J’ai la méchanceté d’un
homme qui se noie Toute 1’amertume de la mer me remonte II me faut me
prouver toujours je ne sais quoi Et tant pis que j’écrase et tant pis que je
broie II me faut prendre ma revanche sur ia honte.”3
♦♦♦
*♦♦
Mas a regra do jogo não é tão simples, embora sirva como guia taxonómico
dividindo o reino humano em minerais, vegetais e animais: minerais, as
montanhas do -natural, parindo mios esgotados; vegetais, a natureza verde e
imatura de crianças, mulheres e velhos (salvem-se primeiro estes, os
incompetentes); animais, todos os que, contra-natura, pervertem a mi-
ucralidade espontânea da natureza (inventada) do ser procria-tivo e genital.
Às regras do jogo são mais trabalhosas e fazem dn perversão, enquanto Lei
e Ordem, o discurso negativo da normalidade; forma de ser, não sendo;
garantia, por contraposição, do bom senso comum (“o bom senso é a coiSa
mais bem repartida do mundo”, insinuava Descartes).
***
Só para terminar, nesta sexão, uma palavra sobre a Esquerda, esta gente à
qual pertenço. Para a esquerda, a questão du homossexualidade não deve
ser a de um grupo que possa ser contado como força política organizada (e
isolável) na luta pelo socialismo (libertário, democrático e ecológico
— como define bem o Liszt Vieira). O problema, no seu fundo mesmo, é
compreender a ação do poder, para melhor combatê-lo. A
homossexualidade — enquanto objeto da repressão é uma questão inerente
à discussão do sujeito revolucioná-IÍO, que não é (já se provou) aquela
classe operária abstrata, assexuada, bem-comportada, higiênica e sanitária.
E ela tem um. Muito afiado. Seja o silêncio, seja a compreensão do tipo
“tirar o corpo fora”.
Numa revolução não se tira o corpo fora. A revolução é Pura Tesão. O resto
é silêncio e uma vida que se leva morrendo até uma morte-susto que não se
vive.
Leila Miccolis
PRAZER, GENERO
DE PRIMEIRA NECESSIDADE
AOS QUE LUTAM
Geraldo Vandré
1
(Herbert Daniel)
Para a concepção clássica, greco-romana, o que valia era o eros (em priscas
eras, era o eros...), ou seja, o impulso sexual do sujeito, sem se importar
com o objeto para o qual este impulso se dirigia (homens, mulheres,
crianças, animais). Reduzir Safo a uma “lesbiana” é, além de má-fé, um
anacronismo, porque não havia esta divisão na época. Safo nasceu no
começo do século 6 a.C,, teve uma educação intelectual primorosa, aos
dezesseis anos já participava de uma conspiração contra o tirano Pitacos, o
que lhe valeu o exílio, casou-se, teve uma filha, enviuvou, com vinte e seis
anos fundou uma escola para jovens mulheres, foi considerada a “Décima
Musa” por Platão, morreu aos cinquenta e cinco anos, e atualmente é
conhecida não por sua intensa atuação sócio-política, mas upenas como
“iésbica”. . .
Maria Carneiro da Cunha escreveu sobre ela: “sua casa de educação era
baseada nos mesmos princípios de todas as associações culturais da
Antiguidade grega, como, por exem-
pio, a academia de Platão. Algumas pequenas se dedicaram ao longo do
tempo a questionar sobre a natureza do amor, mas é indiscutível que ele
estava ligado a um culto de beleza física que sempre teve, para os gregos,
um valor quase religioso. (...) Esta total liberdade de Safo, que nunca
limitou o objeto de seus amores, paradoxahnente a tornaria hoje difícil de
ser enquadrada em alguns movimentos lésbicos radicais atuais (os de
escolha mão única). Na verdade, ninguém encarnou ou cantou melhor as
potencialidades multiformes do Eros, irredutíveis a qualquer classificação
ou enquadramento”.
Para mim, todas essas palavras — puta, lésbica, bicha, sapatão, fancha,
pitomba, viado, corno, racha, bofe, foda, cabaço, caralho, saco, porra — só
podem ser minadas por um comportamento libertário esvaziando seu
sentido pejorativo e até ofensivo. Enquanto elas forem apenas usadas
maquinalmente, sem uma ação coerente que as desmitifique, cada vez mais
estarão reproduzindo estereótipos, e, daqui a pouco, assim como se fala
numa “linguagem feminina”, vai começar a se induzir a uma linguagem
“homossexual” — embora o gueto já fabrique vocábulos em profusão — e
aí o separatismo estará consolidado. Resgatar palavras apenas pela
repetição delas me parece ingenuidade ou utopia. Num país capitalista e
con-sumista como o nosso, as únicas coisas que se resgatam são as notas
promissórias. . . assim mesmo quando se tem dinheiro.
DIÁRIO DE BARDO
(Poemas, Notas, Recados, Trechos, Monólogos e Diálogos)
(Herbert Daniel)
♦♦♦
Nasci no Rio, de sete meses, um quilo e pouco, cabia numa caixa pequenina
de sapato, e o médico disse pra minha màe: “isso não se cria”. Contra todos
os prognósticos e vaticinios, virei gente. Mãe queria um menino — sofre
menos, ela justificava, pai também (embora ele negue), pois explicava aos
amigos: “é menina, mas muito inteligente”. Meu nome, raro em 1947, veio
de uma ópera chamada O Pescador de Pérolas, e uma vez me disseram que,
em árabe, significava “rainha da noite”.
Tenho l,30m de altura. Se esse tamanho causa vários problemas, também
tem uma semivantagem (nem sempre é boa como se verá): quem me olha
uma única vez não me esquece jamais. Sou, portanto, o tipo típico da
mulher inesquecível. Filha única, nada de mimos. Minha família, por
parte de mãe, é Barata Ribeiro, daí muitas vezes eu me assinar Leila Barata.
Era uma família de políticos revolucionários, grandes nomes, conviví com
minha mãe falando da galeria de heróis baianos. Suas mulheres não
entraram na História, foram todas anônimas, mas agüentaram sempre barras
violentíssimas, enquanto os homens tentavam transformar o mundo lá de
fora. Sei que delas herdei a resistência. Eram mulheres fortes, sem nem
saberem.
♦♦♦
Bob Fosse, naquele belíssimo filme Lenny, já punha na boca (será que essa
expressão é pornográfica?) do seu personagem principal o fato dele preferir
que sua filha lesse uma revistinha de sacanagem do que a Bíblia, um livro
cheio de matança. O máximo que estas publicações fazem é propiciar um
gozo solitário (ou solidário?). Nunca tentam dizer que as pessoas neguem
seus desejos ou renunciem a eles, em nome de comportamentos
comportados.
Falei em ato solitário e me veio uma frase de efeito, daquelas que a gente
diz só pra causar impacto, mas que logo se questiona, rapidinho: mulher só
faz suruba em siririca. . . Não é bem isso: que las hay las hay, mas não são
comuns, devido ao condicionamento que tiveram para PERTENCER a uma
única pessoa (de preferência um homem, lógico). Uma vez escreví um
poeminha assim: “Eu só posso ser de um homem / ou então de uma mulher.
/ Mais que isso a vó se queixa, / a mãe não deixa, / o pai não quer. . A
mudança de parceira (o) é vista mais como imaturidade, “medo de
se comprometer”, do que como opção.
Textos como estes, assim como algumas letras de música, me deram força
em determinados momentos críticos de minha vida; mostraram que eu não
estava sozinha, remando contra a maré, e que havia todo um pensamento
articulado com o que eu estava passando e vivendo.
♦♦♦
Quando te disse, Herbert, que em 68 eu queria ser guerrilheira, mas não fui
(lembra que meu tamanho me torna inesquecível? . . .), falaste que eu teria
chances de viver por quarenta e oito horas na clandestinidade. . . Mas já vivi
mais do que isso, muito mais, nossa geração é de clã-destinos (até na poesia
sou marginal...), de exilados (do sexo e do país). Isso nos moldou tão
parecidos: clandestinos de nós mesmos. A meu modo também guerrilhei.
Qual será teu nome verdadeiro, Daniel? E o meu nome de guerra, qual será?
Naquela vez em que notaste que muitos homens gozam como mulher, me
lembrei de um filme, muito bem roteirizado por João Silvério Trevisan, A
mulher que inventou o amor, em que ela também questiona as formas de
prazer feminino e masculino (gemidos, excitações, etc.) e aí saquei algo
que me impressionou: mudada a acentuação tônica para oxítona, Herbert
rima com mulher. . . não é bonito?
♦♦♦
♦♦♦
Em 1978, eu organizei, pela Ed. Vertente, uma antologia de poesia com dez
mulheres. Quis suscitar muita polêmica, e consegui, a partir do título:
Mulheres da Vida. Alguns, numa leitura simplista e pobre, apenas o viam
como sinônimo de prostitutas. No entanto, eu estava tentando reapropriar
vários significados de uma expressão manipulada contra as mulheres que
apenas estavam na vida, que viviam. Todo o clima do livro era o de
desmitificar aquela “lírica feminina” estagnada no tempo e no espaço,
alienada da realidade social e violenta do país.
Réca Poletti (SP), humorada e irônica, criticava toda uma hipocrisia social
em “Confissão”: “A mulher / do próximo / esteve aqui / Desejei / enfiar
meus dentes / em sua pele / morder sua carne / chupar seus ossos / Depois
ela foi embora / eu me arrependí / por sentir / essas coisas / escabrosas / e
juro / que lavo a boca / e não sinto mais / se ela parar de vir / dormir aqui
em casa”. E Ana Maria Pedreira Franco de Castro, da BA, escrevia: “eles
tentaram transformar-me num ser menos seguro / eles tentaram eu te
asseguro / eles tentaram / minha mãe meu tio minha professora
meu cachorro / eles tentaram eu te asseguro / eles tentaram / e até o grande
ditador e o diretor da faculdade / eles tentaram eu te asseguro / eles
tentaram / e o meu primeiro namorado e a mãe do cara que amei / eles
tentaram eu te asseguro / eles tentaram / e os meus amigos mais diletos e o
meu filósofo mais lido / eles tentaram eu te asseguro / eles tentaram '/ e às
vezes minha própria imagem e o padre que ouvi na infância / eles tentaram
eu te asseguro / eles tentaram / dia veio que me inteirei de suas intenções /
assim como eles se inteiraram das minhas”.
**♦
Esta parte está parecendo mais uma avalanche do que um capítulo. Mas é
difícil prender palavras nesta primeira oportunidade que tenho para soltá-
las, para falar de saldos, saltos, vivências, datas, danos. Quem já escreveu
um diário sabe que não se pode exigir dele um tom bem-comportado como
o de um dicionário, que mesmo focalizando assuntos tabus, como o do
Palavrão e Termos Afins, de Mário Souto Maior (Ed. Guararapes, de
Recife, 1980), torna-se “científico” e respeitoso, um verdadeiro compêndio,
visando mais o folclore regionalista do que o palavrão (im) propriamente
dito. Não aparece nenhuma terminologia do gueto homossexual do Rio e de
SP. Cheguei até a pensar em mandar uma relação, com o intuito de
preencher a lacuna. Mas desisti, destoaria muito, parecería “sacanagem”. . .
O problema dos teóricos é que eles se baseiam quase que exclusivamente
nos grandes mestres da língua (pátria, naturalmente) para as suas pesquisas.
. . e aí saem palavrões. . . eruditos.
Marisa Nunes, com 19 anos, num sábado, 25/11/79, às dez e meia da noite,
estava andando pela rua quando um homem a abordou, pediu seus
documentos e não os devolveu com a alegação de que uma moça com o seu
tipo físico assaltara dois rapazes, e que a polícia (mostrou-lhe uma
carteira de longe) estava detendo todas as que correspondiam à descrição.
Bateu no bolso dizendo que estava armado, e que a levaria para o 4*?
Distrito, próximo dali. Foram a pé. No meio do caminho, ele a agarrou,
enfiou-a por uma entrada de casa valendo-se de força, e a estuprou. Depois
lhe devolveu a identidade, perguntando: “Quantas vezes você gozou?”.
Com raiva e nojo ela respondeu: “Umas dez”. Como prova de ter estado lá,
deixou um modess atrás do divã.
Durou três anos o processo. Em 26 de junho de 80, por 5x2 votos, ela foi
inocentada, depois de ter sido humilhada pela imprensa machista e
sensacionalista, responsável por uma verdadeira devassa em sua vida,
inclusive publicando as cartas que não tinham nenhuma vinculaçâo com a
morte de Vânia. Apesar do final jurídico feliz, muito tempo mais tarde ela
ainda se queixava de desemprego: mesmo absolvida, sua fama
de “homossexual” continuava a persegui-la. Palavras dela: “O banco dos
réus é uma experiência amarga, pois ali começa a expiação ante o público
de um fato muitas vezes não praticado por quem nele se senta”. O público. .
. esta hidra de tnilhares de cabeças (e nem sempre “em cada cabeça uma
sentença”, há pré-julgamentos consensuais...), este “ser” que aplaude, vaia,
e pode condenar uma pessoa ao exílio em sua terra, até quando não é
criminosa.
Não quero dizer com isso que a (des) orientação sexual se deve
exclusivamente à sua passagem pela FEBEM (inclusive porque acho a
pesquisa da origem da “homossexualidade” igual à pesquisa da
“heterossexualidade”. . .), mas é inegável que a agonia que finalizou com
seu suicídio tem muito a ver com as repressões (inclusive sexuais) que ela
sofreu na infância e adolescência, tornando-a uma mulher em perpétuo
conflito consigo mesma, com seu próprio corpo e com o mundo, chegando
ao máximo da inadaptação com sua saída da FEBEM.
Esse meu verso é pra Sandra Mara, embora ela não possa mais ouvi-lo:
*♦♦
♦♦♦
0 MOVIMENTO HOMOSSEXUAL
BRASILEIRO ORGANIZADO — ESSE QUASE
DESCONHECIDO
‘“Quem cala consente’. .. Como se o silêncio não fosse a imposição
de um discurso”
(Herbert Daniel)
Antes dele houve vários “jornais gays", a partir de 1961 (Snob foi o
primeiro). Uma vez entrevistei estes pioneiros, Anuar Farah e Agildo
Guimarães, conseguindo um levantamento das • vinte e sete publicações em
circulação na época. Foi fundada inclusive a ABIG — ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE IMPRENSA GAY, aglutinando todos esses
“nanicos” brasileiros. Seu primeiro presidente foi Anuar, que nos conta: “A
ABIG foi feita para lutar, porque nós todos tínhamos um ideal, queríamos
mostrar que éramos pessoas normais, que fazíamos o que todas as outras
faziam, sem diferenças”.
Quase no final de 78, foi atingida uma nova fase, mais pública e
formalizada: houve uma reunião ampla no Teatro da Praça, para a qual
anteriormente foram distribuídos panfletos mimeografados, e após o debate
da USP (fev./79) o grupo se tornou amplamente conhecido, ganhando seus
contornos definitivos. Um dos problemas mais sérios era a ausência de
mulheres. As poucas que no decorrer de 79 se organizaram no SOMOS
passaram então, dentro dele, a formar o LF — LÉSBICO-FEMINISTA —,
por acharem que seus problemas eram específicos, isto é, a maioria
masculina tendia a discutir assuntos masculinos, em detrimento dos
femininos. A esta altura, já havia em São Paulo mais dois grupos: o
LIBERTOS (de Guarulhos, em abril) e o EROS (de SP, em maio).
Uma das características que diferia o AUÊ dos outros grupos brasileiros
estava em que ele foi o primeiro a não aceitar uma “identidade”
homossexual, aprofundando a discussão e a crítica à falsa dicotomía que
divide os seres em dois. Gente deveria poder apresentar quaisquer tipos de
comportamento, sem que com isso fosse posta em dúvida sua identidade
sexual masculina para os homens ou feminina para as mulheres. Passou-se
então a usar a palavra homossexual apenas como adjetivo de
comportamento e jamais como classificação de pessoas.
Josenilda conta que até na luta armada, numa organização maoísta, ela foi
discriminada por suas práticas homossexuais. “Aí minha cabeça pirou, o
pânico político misturou-se ao sexual”. Em 74 foi para Portugal, onde
constatou que a Revolução dos Cravos não abalara certos preconceitos.
Sempre considerada presona non grata por onde passasse, em 79 ela entrou
comjj processo na Suécia. “Meu pedido de asilo não foi só para defender
meu direito homossexual, mas para defender todo um grupo social”.
Realmente, criado o precedente, outros casos poderão nele se basear, para
atingirem igual objetivo.
Este último item já previa a terrível tormenta que se abatería em São Paulo,
proporcionando o racha do SOMOS, no famoso 17 de maio. Desde junho
de 79 que alguns militantes da Convergência Socialista (organização
política de linha trots-kista, posteriormente vindo a se integrar ao PT)
participavam do SOMOS/SP, motivando-se depois para organizarem
a FHCS — FRAÇÃO HOMOSSEXUAL DA CONVERGÊNCIA
SOCIALISTA. Este núcleo, com suas propostas de atividade política
claramente definidas junto ao operariado do ABC (Grande São Paulo), veio
a se chocar com a maioria dos fundadores do SOMOS, de orientação
anarquista, preocupados em discutir mais expressamente a sexualidade.
O MH, que nos seus áureos tempos (segunda metade de 80) chegou a contar
com dezessete grupos pelo país, alguns deles com centenas de ativistas, a
partir de 81 sofre notável descenso (não só ele como também os grupos de
mulheres e negros), com a extinção dos menores e esvaziamento geral das
atividades. Possíveis causas: briga entre o Lampião e os grupos, com uma
divulgação negativa que desentusiasmava os possíveis interessados; um
certo cansaço dos ativistas, desgastados ao longo do processo e dos
conflitos de 80; as condições gerais da conjuntura sócio-política do país,
nos percalços da “abertura” do governo Figueiredo, junto aos impasses
dos diversos partidos de oposição. Como tentativa de sobrevivência, o AUÊ
aliou-se ao SOMOS/RJ passando a funcionarem, na prática, como um só
grupo. Em São Paulo, amainou-se o clima de hostilidade entre os ativistas, a
ponto de comemorarem juntos, em maio de 82, os quatro anos do MH
brasileiro.
Conclusão
O MH, em seus quatro anos de bata/Aa, se teve erros e falhas (esta rima é
inevitável...), também alcançou alguns objetivos importantes: amadureceu
seus membros, que já conseguem uma participação política sem medo de
perder a autonomia do movimento; esclareceu melhor a opinião
pública, através dos órgãos de divulgação e de debates, sobre a
prática homossexual como uma das possíveis orientações sexuais do
ser humano; e influenciou alguns partidos, através de sua atuação,
principalmente o PT: enquanto em 79 Lula dava entrevista dizendo que
desconhecia a existência do homossexualismo entre a classe operária
(Lampião, n*? 14), já em 82 a plataforma eleitoral nacional do PT afirma,
em seu item 7: “SOMOS TODOS IGUAIS: CHEGA DE
DISCRIMINAÇÃO: O Brasil que queremos não é apenas o povo
comendo, morando, tendo saúde, se vestindo e se educando. A vida
que almejamos tem que ser baseada sobretudo numa relação pro-
fundamente humana e fraternal, igualitaria, entre as pessoas, sem nenhum
tipo de discriminação”.
Neste tópico existe uma sucinta análise dos dramas cru-ciantes dos diversos
grupos estigmatizados, inclusive afirmando: “Os homossexuais são
humilhados e discriminados, tratados como doentes ou caso de polícia. (...)
£ preciso acabar com todas as formas de discriminação. As minorias, indios
e homossexuais, têm que ser integralmente respeitadas”. Evidentemente,
uma tão grande transformação não acontece poi mero acaso, e sem dúvida
alguma foi obra também do “duplo ativismo” de algumas pessoas no PT e
no MH. E é importante que se leve a discussão de sexualidade inclusive
para a área parlamentar, para que se abra cada vez mais tribunas e espaços
de intervenção, ensejando também mudanças de leis anacrônicas que não
atendem mais à realidade social.
Aracaju — SE
♦»♦
Comecei com uma frase, vou terminar com outra, ouvida de uma líder de
um grupo lésbico-feminista de SP. Falava-se de aborto e a moça foi
categórica: enquanto feminista era a favor; mas enquanto lésbica o
problema não lhe dizia respeito. Para ela, algumas questões não atingiam as
“homossexuais”, como se elas fossem categoria à parte, e não,
simplesmente, MULHERES.
E é isso o que a repressão faz conosco, até mesmo com quem tenta
questionar este estado de coisas: confunde-nos a tal ponto que passamos a
ter uma vida dupla, bipartida, es-facelada, dicotomizada, esquizofrênica. E
quanto mais se divide, mais se conflitua, mais se quebra uma pessoa em
várias partes para melhor subjugá-la. Escapar desta armadilha deve ser meta
prioritária, chega de fazer das manifestações do prazer (desde o desejo até a
vontade de viver) uma mercadoria de luxo, inacessível ou supérflua. Não há
classe no mundo que precise só de pão para ser feliz. Não queremos uma
vida penosa, apenas com deveres e obrigações, difícil de se suportar, onde
sobreviver seja o brinde máximo e todo o restante pequenos prêmios de
consolação... A alegria, a satisfação e o prazer também são gêneros de
primeira necessidade.
FIM
DÉCADA DE 60
O Snob
Le Femme
Subúrbio à Noite
Gente Gay
Eros
Darling
28 de Abril
O Centro
Os Felinos
Opinião O Mito
Le Sophistique
O Galo
Na Bahia:
O Gay
Gay Society
O Tiraninho
DÉCADA DE 70
Entender
Lampião
Peteco e Rose*****
Boca da Noite
Rádice*****
Jornal Dobrabil*****
DÉCADA DE 80
Macho-Sex*****
Coverboy
Play Gay
Exclusive Gay
Luta e Prazer*****
— Boletim, do Ggb — BA
ANEXOS
ANEXO 1 MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE AO
I? CONGRESSO DA MULHER FLUMINENSE
“Representado no F Congresso da Mulher Fluminense o AUÊ, grupo pela
livre opção sexual, se une às suas irmãs de opressão em todas as
reivindicações específicas de nossos direitos humanos, na luta ampla, geral
e irrestrita contra todo tipo de massacramento responsável pelo
esvaziamento de seu discurso ideológico, ao considerá-las minoria, quando,
na verdade, elas são maioria numérica da população e força transformadora
desta sociedade discriminatória e antidemorcática”.
Rio, junho/80
Rio, julho/80
Rio, 20-11-80
Pelo menos essa é a versão dada por Oskar Panizza, um autor suíço, no
“Concilio do Amor”, peça escrita no final do Século XIX que provocou
escândalo e contrariedades ao autor. Naturalmente, ele conheceu a usual
panoplia de perseguições e sanções da censura obscurantista. Mesmo depois
do advento dos antibióticos e da conseqüente banalização da terrível doença
— tornada apenas mais uma infecção bacteriana facilmente curável — o
tema guarda atualidade e provoca polêmicas.
Assim, pouco antes do começo desta vacilante década dos 80, um estranho
mal chamou a atenção dos médicos. De todas as curiosidades, tipo “acredite
se quiser”, da novidade mórbida, uma serviu de brilhante chamariz: quase
todos os atingidos pela entidade patológica recém-descoberta eram
homossexuais. A doença (ou doenças) nasceu nos Estados Unidos,
sociedade particularmente fértil na gestação de bizarros fatos sociológicos.
Em poucos meses espraiou-se a calamidade, com características
sensacionalistas de nova peste, como aquelas que varreram a Idade Média.
As informações começam a circular, de uma forma evidentemente pouco
“científica”: o tom dos relatórios que chegavam aos jornais faziam voltar
a “objetividade médica” aos tempos ancestrais das atrações de feira. Como
naquela época onde os saltimbancos usavam certos dados “científicos” (o
éter, a teratología, etc) para atrair um público ingênuo que buscava
sensações fortes, a imprensa veiculou (veicula) os fatos e dados da
“epidemia” com evidente oportunismo caça-níquel. Afinal, as bichas
sempre fizeram rir. Nada mais natural do que contar a “última da bicha”, a
piada macabra do câncer, o único câncer alegre, ridente, sorridente: o horror
desmunhecante torna-se o oh-rir. Pura viadagem.
Pânico e Informação
“Nem câncer, nem gay — A terrível doença dos anos 80” (O Dia, 26-6-83)
— (A ilustração dessa matéria, que explicava que a AIDS não é apenas um
câncer, nem de exclusividade dos homossexuais, mostrava um
romântico casal de rapazes caminhando numa idílica paisagem formada
pela figura corrosiva de um caranguejo. Se as palavras dizem "nem um,
nem outro’’, fica por conta da imagem a informação definitiva: câncer E
dos homossexuais. Sutil.').
Não penso que tudo seja uma trama sórdida dos jornais. Pelo contrário. Eles
apenas se deixam levar — alguns jornalistas inclusive com toda seriedade
profissional e bastante honestidade — por pressupostos ideológicos que não
sonham — ou ousam — criticar.
Muito bem, muito bonito. Mas que informações devem ser transmitidas? As
médicas! E no entanto os próprios médicos revelam-se bastante perplexos
com o grau de conhecimento que possuem sobre a AIDS.
Pouco adianta uma “informação médica” neste caso. Os médicos não têm
feito senão transmitir dados estritamente técnicos ou revelar suas próprias
perplexidades.
Naturalmente é preciso fazer circular amplamente a informação. Mas, neste
caso, é preciso considerar que: a) além das informações médicas existem
outras, sociais e políticas, absolutamente imprescindíveis para a
compreensão da AIDS e de seus mecanismos epidêmicos; e, b) os
“homossexuais” além de “receberem” informação devem também informar
a comunidade médica — que parece entender tão pouco da questão —
e também a própria comunidade que produz informação, que parece tudo
desconhecer sobre as condições e circunstâncias das homossexualidades.
Saúde e Pública
Preconceito
Este livro foi impresso nas oficinas da Editora Gráfica Serrana Ltda.
Este é um livro onde o dito supera o nao-dito, onde a linha avança sobre a
entrelinha, onde o substantivo é mais importante do que o adjetivo. Onde o
prazer do texto se confunde com o texto do prazer: assumi-damente. Como
só os verdadeiros poetas e pensadores sabem fazê-lo — com garra e
disposição. Nesta hora de luta dura e puta, entre mil dificuldades políticas,
econômicas e sociais, o que dizer a mais?
Os Editores
Table of Contents
1. SUMARIO
2. Introito ou Pro-Nomes Pessoais
3. OS ANJOS DO SEXO
4. CRÓMICA
1. + A BICHA
2. + CHORXE
3. + RESPEITÁVEL CIDADÃO
4. 4- A PONTE
5. NOTAS MARGINAIS
6. SEXÃO DA REVOLUÇÃO
5. PRAZER, GENERO DE PRIMEIRA NECESSIDADE
1. ERAM AS LÉSBICAS MARCIANAS?
2. DIÁRIO DE BARDO
3. 0 MOVIMENTO HOMOSSEXUAL BRASILEIRO
ORGANIZADO — ESSE QUASE DESCONHECIDO
4. Conclusão
6. ANEXOS
1. ANEXO 1 MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE AO I?
CONGRESSO DA MULHER FLUMINENSE
2. ANEXO 2 CARTA ABERTA AOS SINDICATOS DOS
JORNALEIROS E AOS JORNAIS INCLUÍDOS NO LISTÃO
CONTRA OS ATENTADOS TERRORISTAS
3. ANEXO 3 MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE LIDA NO ATO
PÚBLICO DE 15-10-80
4. NEXO 4 MOÇÃO DE APOIO LIDA NO DIA DA
CONSCIÊNCIA NEGRA, 20-11-80, NA PRAÇA CINELÂNDIA
5. ANEXO N° 5 CARTA ABERTA AOS CANDIDATOS ÀS
ELEIÇÕES DE 82
6. ANEXO 6 A SÍNDROME DO PRECONCEITO
1. HERBERT DANIEL
2. Pânico e Informação
3. Saúde e Pública
4. Preconceito