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PROPÓSITO
O estudo das relações entre o cuidado em saúde e as relações de identidade de
gênero é de natureza essencial para a formação dos profissionais da área da saúde,
uma vez que, em seu exercício profissional, estes serão os principais responsáveis
por garantir o direito universal à saúde para todos os cidadãos brasileiros,
respeitando suas especificidades de gênero, raça/etnia, orientação e práticas
afetivas e sexuais.
OBJETIVOS
MÓDULO 1
Reconhecer as diferentes formas de violência institucional contra as minorias
sexuais e suas diferentes formas de funcionamento
MÓDULO 2
Distinguir os aspectos terminológicos ligados às minorias sexuais e suas principais
demandas de cuidado em saúde
MÓDULO 3
Identificar uma concepção de ética que visa contribuir para a produção de um
cuidado inclusivo e humanizado em saúde para a população LGBTQIA+
INTRODUÇÃO
Faz mais de uma década que o Brasil ocupa a incômoda primeira posição no
ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo, sendo, portanto, o país
mais violento para essa população. Esse grupo populacional está entre os mais
sujeitos a toda sorte de violências.
MÓDULO 1
PRIMEIRA PECULIARIDADE
A primeira peculiaridade para a qual precisamos nos atentar é sobre o fato de
que essas violências não se resumem ao campo das violências físicas, isto é,
corporais. Daí, então, você poderia pensar em como essas violências podem estar
referidas também a palavras, xingamentos e assim por diante.
De fato, o campo das violências institucionais não fala apenas de maus tratos e
violências físicas, mas passa também por agressões verbais, humilhações,
xingamentos, atitudes segregativas, excludentes, entre outras. Infelizmente, é isso o
que acontece em muitas de nossas instituições, como é o caso de hospitais,
escolas, prisões, quartéis, abrigos de menores, serviços de saúde mental, centros
de ressocialização, serviços socioeducativos, serviços de assistência a idosos,
serviços para pessoas que fazem uso abusivo de drogas, entre muitos outros.
Porém, como você pode perceber, ambas as formas de violência, físicas ou verbais,
podem ser identificadas com certa facilidade. Não que elas estejam dadas,
entregues facilmente à nossa percepção. Determinadas formas violentas de se
dirigir ao outro podem muito bem passar despercebidas. Entretanto, o que
queremos dizer aqui é apenas que essas formas podem ser percebidas por um
observador mais atento.
Assim, essas duas manifestações de violência, na verdade, dizem respeito apenas
ao que podemos chamar de violências visíveis. Ainda que possuam
particularidades, podemos dizer que estão num mesmo plano de visibilidade.
SEGUNDA PECULIARIDADE
A segunda peculiaridade das violências institucionais, ou seja, daquilo que é
específico das mesmas, é o fato de sua manifestação não se realizar apenas ao
nível do visível, mas, principalmente, ao nível daquilo que não se dá a ver, ou
seja, do invisível. Para utilizar uma metáfora famosa, podemos tomar como
exemplo o iceberg, que é uma montanha de gelo que flutua nos oceanos, e cuja
parte visível representa apenas 10% de seu tamanho ou, muitas vezes, até menos.
Como se costuma dizer, o que vemos do iceberg é apenas a sua ponta, sendo que
sua parte maior e mais robusta se encontra fora do alcance de nossa visão. Pois
bem, para que possamos compreender as violências institucionais, devemos estar
atentos para o fato de que estas, além de não se resumirem ao plano físico,
também não podem ser resumidas ao campo do visível, e também do dizível
(violências físicas e verbais).
TERCEIRA PECULIARIDADE
A terceira particularidade do conceito de violência institucional é a atenção que
devemos tomar a fim de não confundirmos instituição com estabelecimento, ou
seja, com o prédio. Por exemplo, podemos dizer que, em determinado prédio, até
então inutilizado, passou a funcionar uma escola. Ora, neste exemplo, fica bem
mais fácil entender o porquê da não identificação entre o prédio e a instituição
escolar.
É claro que os espaços também fazem parte desse conjunto de procedimentos que
compõem a instituição, mas a questão aqui é que os mesmos não definem a sua
essência, mas apenas uma de suas propriedades, que pode estar presente ou não.
Isso fica evidente no exemplo citado, em que o prédio, mesmo não possuindo uma
arquitetura propriamente escolar, pode, ainda assim, ser chamado de escola. Em
suma, a forma do estabelecimento pode fazer parte de uma instituição, ou até
mesmo ser uma extensão desta, porém não pode ser identificado com ela. Esse é
inclusive um dos motivos de nosso estranhamento ao constatarmos que uma
instituição destinada ao cuidado produz violências e maus tratos em suas práticas
cotidianas. Isso porque o que conta efetivamente são os saberes e as lógicas
institucionais que se produzem e reproduzem naquele espaço.
Vale ressaltar que esse tipo especial de tratamento da questão da loucura só passa
a existir a partir do momento em que esta é considerada como uma doença, ou seja,
quando ela se torna um objeto do saber médico.
Portanto, essas lógicas que conformam a essência de uma instituição, no campo da
saúde, são expressas por saberes. Saberes estes que implicam, necessariamente,
relações de poder. São nessas relações de saber-poder que encontramos aquilo
que é específico das violências qualificadas como institucionais.
Como veremos adiante, isso também acontece no campo das relações entre
instituições de saúde e minorias sexuais (LGBTs), que, historicamente, foram
concebidas pelos saberes médico-científicos (dominantes e conformadores das
instituições de saúde) como patológicas.
Essa tese do autor serviu para questionar a hipótese de que a sexualidade, no fim
do século XVIII e início do século XIX, sofreria uma espécie de repressão, no
sentido de ser relegada ao silêncio, ao mutismo, à inexistência e à interdição. Ou
seja, nessa época, a crítica intelectual tratava a questão dizendo que o sexo seria
um tabu na sociedade, e que sobre ele as pessoas eram incentivadas a guardar
silêncio, a reprimi-lo ou a restringi-lo às quatro paredes do quarto. Essa era a
hipótese predominando em sua época, qual seja, a “hipótese repressiva”
(FOUCAULT, 1988). No entanto, a hipótese foucaultiana é um pouco diferente e
afirma que a sexualidade, ao contrário de ser reprimida, era, na verdade, colocada
em discurso.
O que isso significa? Significa que o que esses intelectuais críticos não estavam
percebendo era que o controle sobre a sexualidade passava, sobretudo, por falar
sobre ela; passava por produzir verdades e saberes sobre o sexo, e não em
silenciá-lo. A “colocação do sexo em discurso” (FOUCAULT, 1988), especialmente a
partir dos saberes médico-científicos, estabeleceu verdades a respeito dos corpos e
de seus prazeres, cujos efeitos foram seu controle e policiamento. A sexualidade
torna-se, então, uma categoria médica, e seus desvios passam a ser considerados
patologias, isto é, doenças.
Reparem que isso não é qualquer coisa! Vejamos bem, isto que se afirma é um
exemplo que o próprio Foucault (1988) menciona, não necessariamente com estas
mesmas palavras: os indianos, diz ele, ao tomarem o sexo como objeto de reflexão,
isto é, o corpo e seus prazeres como objeto de estudo, construíram uma obra
chamada Kama Sutra.
Essa obra, como você deve saber, visa aprimorar os prazeres do corpo, ampliar
suas possibilidades visando uma maior satisfação na vida amorosa. E o que fizeram
os ocidentais, a partir desse mesmo objeto que constitui a sexualidade?
COMENTÁRIO
Para que você tenha noção do tamanho desse problema, é importante destacarmos
que a homossexualidade só foi retirada da categoria de doenças mentais pela
Associação Americana de Psiquiatria no ano de 1973, sendo seguida pela brasileira
em 1985. E o mais curioso é que essa retirada não foi embasada numa revisão
técnico-científica, mas na pressão popular de movimentos de minoria sexual
organizados, que questionavam esses discursos médico-patologizantes (OMS,
1997).
Basta que alguém diga ou seja identificado como lésbica, gay, bissexual, travesti ou
transexual para que nos fixemos nessa identidade e desconsideremos toda a sua
totalidade como pessoa. E isso sem contar com o fato de que, a essa identidade,
costumamos atribuir aspectos pejorativos.
APROPRIAÇÃO DA SEXUALIDADE
PELO DISCURSO MÉDICO
Neste vídeo o especialista reflete sobre a tese de Foucault em relação à
apropriação da sexualidade pelo discurso médico.
VERIFICANDO O APRENDIZADO
MÓDULO 2
ASSEXUAIS
são pessoas que não experimentam atração sexual.
BISSEXUAIS
são pessoas que têm atração sexual, física e/ou afetiva por pessoas de ambos os
sexos.
GAY
é o homem que tem atração sexual, física e/ou afetiva por outro homem.
GÊNERO
HETERONORMATIVIDADE
ORIENTAÇÃO SEXUAL
é a atração física, sexual e/ou afetiva que uma pessoa tem pela outra. Indica a
forma como ela vai canalizar a sua sexualidade.
HETEROSSEXUAL
é a pessoa que sente atração física, sexual e/ou afetiva por outra pessoa do sexo
ou gênero oposto.
HOMOSSEXUAL
é a pessoa que sente atração física, sexual e/ou afetiva por outra pessoa do mesmo
sexo ou gênero.
INTERSEXUAL
LÉSBICA
é a mulher que tem atração sexual, física e/ou afetiva por outra mulher.
IDENTIDADE DE GÊNERO
TRANSEXUAL
CISGÊNERO
TRANSGÊNERO
TRAVESTI
Você já deve ter visto algumas pessoas questionando e até mesmo zombando do
alargamento dessas siglas, o que, em si mesmo, já constitui uma forma de violência,
uma vez que parte de um julgamento preconceituoso e, principalmente, de um
desinteresse pela compreensão. Como diz o ditado: “Para julgar, basta não
conhecer”. E você que se propõe a estudar deve saber muito bem que a melhor
arma contra o preconceito é o conhecimento e o interesse por aquilo que me é
estranho, diferente, isto é, por aquilo que eu ainda não conheço.
É devido a isso que essa população conquistou direitos que até então lhes eram
negados pela via de sua invisibilização social, isto é, pelo seu não reconhecimento.
Como dissemos anteriormente, foi precisamente pela via dessas lutas que, na
década de 1970, a homossexualidade deixou de receber o estigma de doença,
apenas para citar um exemplo.
Já que não se trata, aqui, de discutirmos todas as nuances dessa questão, podemos
dizer, em resumo, que é justamente por isso que, hoje, temos políticas públicas de
saúde no âmbito nacional destinadas especificamente a essa população. Por isso
que também estamos aqui na busca por aprender e refletir melhor sobre esse tema,
já que um dos direcionamentos dessas políticas é também a inclusão da questão
LGBTQIA+ na formação dos profissionais de saúde. Essa já é, como você pode
perceber, uma ação em direção ao cuidado dessa população, relativo a uma das
conquistas dos movimentos que se reúnem em torno dessa sigla.
Em suma, não se trata de querer fazer com que a diversidade dos modos de vida
caiba numa sigla, mas sim que esta sigla unifique e fortaleça as lutas em prol do
reconhecimento e da conquista de direitos sociais, como é o caso do direito
universal ao cuidado em saúde. Assim, a sigla LGBTQIA+ pretende representar as
minorias sociais discriminadas por questões de gênero e sexualidade. Essas
minorias discriminadas são aquelas que possuem identidades de gênero e
orientações sexuais que não se enquadram no padrão cis-heteronormativo, e,
portanto, não recebem a atenção devida na construção de nossas políticas públicas
de saúde.
PESSOAS TRANS
Pessoas trans são aquelas que se identificam com uma masculinidade ou com uma
feminilidade diferente da que lhes impõe a sociedade em função do seu sexo
biológico. Ou seja, a construção de sua identidade de gênero não está submetida à
determinação do sexo biológico. Isso porque, como vimos na definição anterior, a
identidade de gênero independe dos órgãos genitais e de qualquer característica
anatômica, porque a anatomia não define o gênero.
Por exemplo: você já parou para pensar que não há algo que diferencie a cintura de
uma pessoa do sexo masculino e do sexo feminino a ponto de um poder usar saia e
o outro não? Pois bem, essas determinações são exclusivamente culturais e dentro
delas torna-se possível criar tantos estilos quanto são as pessoas. É
importantíssimo que você se lembre, ainda, que a identidade trans também não se
relaciona com a orientação sexual. Parece óbvio, mas como sabemos, o óbvio
costuma ser algo muito difícil de ser compreendido. Então, devemos lembrar que o
fato de alguém usar determinadas roupas e de se comportar de maneira mais
masculinizada ou mais feminilizada também não define sua orientação sexual, ou
seja, por quem essa pessoa se afeiçoará sexualmente e/ou afetivamente.
Por último, temos as travestis, que apesar de estarem relacionadas com o universo
feminino, podem carregar no corpo marcas tanto femininas quanto masculinas,
optando por fazer ou não modificações corporais no sentido da feminilização, uma
vez que a classificação de travesti não as exige.
Todos esses procedimentos de modificação corporal, relacionados com o campo da
saúde, estão regulamentados pelo Ministério da Saúde por meio da portaria nº 457,
de agosto de 2008, e ampliados pela Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013.
A esses procedimentos dá-se o nome de Processo Transexualizador (PrTr), visando
garantir o acesso, o acolhimento e o atendimento integral a essa população. Inclui-
se nesse processo transexualizador, além da adequação do corpo biológico à
identidade de gênero, o direito à utilização do nome social, instituído desde 2009
pela Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009.
Nome social, neste caso, nada mais é que o nome de escolha do usuário ou da
usuária que acessa os serviços de saúde. É aquele que reflete sua identidade de
gênero, independentemente do nome que foi registrado em seu registro civil.
ATENÇÃO
Para além de uma questão ética, o não cumprimento dessas normativas por parte
do profissional de saúde implica em variadas sanções e até em crime, como é o
caso do não respeito ao uso do nome social.
Nesse âmbito, como você já deve ter conhecimento, a saúde tem um sentido
abrangente, amplo, sendo a resultante das condições de alimentação, habitação,
educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, acesso e
posse da terra e acesso a serviços de saúde. Como descrito no art. 3º da legislação
mencionada anteriormente:
Pois bem, falar das relações entre saúde e população LGBTQIA+ passa,
necessariamente, por considerarmos esse conceito ampliado de saúde, dando
especial atenção para isso que se denomina determinantes sociais da saúde (DSS),
que se traduz no entendimento de que as condições de vida e trabalho dos
indivíduos e de grupos da população estão relacionadas com sua situação de
saúde, ou seja, a saúde está diretamente relacionada às condições sociais em que
as pessoas vivem e trabalham.
Você já parou para pensar como vivem as pessoas trans em nosso país?
Segundo Benevides (2021), faz 12 anos que o Brasil ocupa a incômoda primeira
posição no ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo, sendo,
portanto, o país mais violento para essa população. Esse grupo populacional está
entre os mais sujeitos a toda sorte de violências.
Em geral, tudo começa pela própria rejeição das famílias, passando pela exclusão
escolar, até chegar às dificuldades de acesso ao mercado de trabalho formal, tendo
de assumir posições em postos de trabalho precarizados e, muitas vezes,
encontrando na prostituição a única via de adquirir sustento.
O fato de não possuírem identidade de gênero de acordo com a imposta pelos
padrões vigentes em nossa sociedade, a saber, o padrão cis-heteronormativo, faz
com que essas pessoas sejam vítimas de intensa discriminação, preconceito e
violências. O questionamento que essa população coloca para a sociedade é muito
mais radical do que aquele levantado pela orientação sexual, que costuma possuir
um grau de tolerância maior em nossa sociedade.
Dentro desta sociedade, você pode até possuir uma orientação sexual divergente,
desde que você não extrapole a questão do gênero, isto é, desde que se vista e se
comporte de acordo com aquilo que seu sexo biológico supostamente determinaria,
que seria, em outras palavras, o padrão cisgênero.
Em vista disso, essa população está muito mais sujeita a uma série de agravos à
saúde, sendo que uma das principais marcas das políticas de saúde voltadas para
essa população é o reconhecimento dos efeitos da discriminação e exclusão sexual
em seu processo saúde-doença.
Como você pode perceber, muitos dos agravos relatados acima se referem à
dificuldade no acesso aos serviços de saúde. São muitos os estudos que, ao
relacionarem cuidado em saúde e diversidade sexual, têm apontado o estigma e a
discriminação como grandes obstáculos ao acesso dessa população aos serviços
de saúde. Isso porque os próprios serviços de saúde são também compostos pelos
mesmos membros dessa sociedade descrita acima, ou seja, os serviços de saúde
se organizam a partir de uma lógica cis-heteronormativa que produz exclusão, daí a
exigência de uma ética no cuidado em saúde.
O CONCEITO AMPLIADO DE SAÚDE E
AS ESPECIFICIDADES DA DEMANDA
DAS PESSOAS TRANS
Neste vídeo, o especialista reflete sobre o conceito ampliado de saúde e as
especificidades da demanda das pessoas trans.
Pessoas trans
VERIFICANDO O APRENDIZADO
MÓDULO 3
PRIMEIRO
SEGUNDO
PRIMEIRO
O primeiro é o de analisar os diferentes sentidos que o termo ética tem adquirido
ao longo das últimas décadas, naquilo que podemos chamar de senso comum.
Definimos senso comum aqui como uma forma de apropriação espontânea do termo
ética, baseado em experiências cotidianas, vivências institucionais, notícias de
jornais, debates televisivos ou em interações por meio das redes sociais. Referem-
se, em última análise, aos usos práticos ou efetivos do termo, baseados nos
costumes sociais de certo espaço geográfico e tempo histórico, sem preocupações
relativas às definições ou conclusões científicas.
SEGUNDO
O segundo movimento é aquele que nos obriga a revisitar o significado tradicional
do termo ética, relativo ao campo dos saberes formais ou científicos. Nesse caso,
nosso objetivo será o de resgatar ou mesmo o de colocar em análise seu significado
histórico, a fim de depurá-lo e, sobretudo, fazer com que este possa nos servir de
ferramenta para nossas práticas no campo da saúde. Trata-se aqui da ética como
um campo de discussão filosófica, campo de reflexão teórica e de produção de
conhecimento.
Outro inconveniente que o uso indiscriminado do termo ética coloca é o fato de este
ser utilizado muitas vezes para transformar problemas sociais, ou seja, problemas
de causalidades complexas, em problemas individuais, culpabilizando os sujeitos
isoladamente.
O professor poderia, então, ser chamado a responder pela sua atitude por meio de
uma série de procedimentos que vão da simples advertência até o que se poderia
chamar de reciclagem ou capacitação. Ora, todas as questões estruturais relativas à
desvalorização do trabalho docente, aos baixos salários, às condições de ensino, à
precarização da escola, à falta de autonomia pedagógica, ao número de alunos em
sala de aula, entre outros, ficariam intocadas, ou seja, não seriam colocadas em
análise.
Como podemos perceber nesse exemplo, os problemas históricos e estruturais da
educação podem ser facilmente interpretados como um suposto problema de ética
individual, nesse caso, possivelmente, sendo chamada de “ética profissional” ou
“ética docente”.
Essa concepção de ética é bastante curiosa para nós, contemporâneos, uma vez
que está muito distante da maneira como concebemos nossa existência. Se
tomarmos a discussão do que é arte, por exemplo, veremos que esse debate
atravessou séculos, no sentido de se definir se uma tal atividade ou ofício poderia
ser considerado arte ou não. Todavia, a despeito das concordâncias e
discordâncias, ou da adequação ou não de uma tal atividade dentro daquilo que fora
definido como arte, o fato é que, quando pensamos em arte, pensamos logo na
produção de objetos dados à nossa percepção, como quadros, esculturas, filmes,
músicas, peças de teatro, livros, entre outros.
Como você pode ver, a arte é geralmente pensada como uma produção de coisas.
Para os gregos, entretanto, o principal objeto da arte era a própria vida, ou a
maneira de se conduzir no mundo, entre pessoas e coisas. Ou seja, como fazer da
própria vida uma obra de arte.
Daí ser a ética uma sabedoria, uma reflexão ou uma arte das condutas, do modo de
agir no mundo. É por isso também que a ética, como veremos mais adiante, está
relacionada com uma prática de liberdade, com um cuidado consigo mesmo, e não
com simples obediência.
Se ser ético está relacionado com uma forma de construir a própria vida
singularmente, com um fazer artístico, ela não pode estar submetida apenas a
fórmulas, códigos, manuais, protocolos ou padrões ditados por um outro.
A ética é uma prática de reflexão sobre nossa autonomia, sobre como construir com
o outro relações de liberdade e bem-estar.
Como você deve estar imaginando, a reflexão filosófica sobre a produção de uma
vida boa, justa, bela e honrada não é tarefa fácil. Isso porque muitas são as coisas
que, em nossa existência, não dependem de nós, ou seja, da nossa vontade. É o
que os gregos denominavam fortuna ou destino, mas não no sentido de algo selado
definitivamente, mas daquelas coisas que não estão sob nossa jurisdição.
Internamente, somos ainda povoados por paixões que muitas vezes dominam
nossas ações no mundo. Agimos e só depois nos damos conta do que fizemos.
Existe todo um mundo psicofisiológico de sensações e pensamentos que não
passam necessariamente por nossa consciência, e ainda que estes se tornem
conscientes, não é certo que nossa força de vontade seja suficiente para
estabelecer um domínio adequado sobre os mesmos. Há, portanto, batalhas
externas e internas a serem travadas, caso nosso horizonte seja uma vida ética.
Dominar as paixões e a fortuna, a fim de se produzir uma vida boa, era o que os
gregos tinham em mente na construção de seus preceitos filosóficos, ainda que
houvesse diferentes maneiras de conceber tanto a virtude ética quanto o caminho
para alcançá-la.
Essa virtude ética também recebia outros nomes, como felicidade, soberano bem,
bem supremo, justiça, vida bela, entre outros. A busca pelo soberano bem envolvia
uma série de preceitos, normas e regras, em vista de se aproximar da virtude e da
correção.
Esses preceitos podem ser traduzidos por aquilo que hoje conhecemos como
função da saúde, da educação, da economia, do direito, da política, das artes e das
ciências em geral.
Como podemos notar, não havia ainda a divisão dos saberes em disciplinas,
fenômeno que teve seu início na modernidade. Aliás, uma vez que se trata aqui de
pensar a ética como uma ferramenta para nossas práticas em saúde, é preciso
lembrar que todos esses procedimentos relacionados à ética poderiam, ainda, ser
resumidos sob a denominação de remédio, ou de uma saúde Paideia (JAEGER,
2013), como também era chamada.
PAIDEIA
Termo usado pelos gregos sobre a noção de educação na sociedade grega
clássica. Aqui, o termo também está sendo usado no sentido de uma cura ou de
uma salvação.
O cuidado com a vida, isto é, consigo mesmo e com o outro, ou, simplesmente, a
ética, era pensada como a busca ou a conquista de um remédio para a existência,
para uma vida que valesse a pena ser vivida. Como veremos com mais detalhes
adiante, o conceito de ética não somente pode ser pensado como uma ferramenta
para nossas práticas em saúde na contemporaneidade. Na verdade, é o próprio
conceito que, em seu sentido original, nos remete imediatamente a práticas de
cuidado de si e do outro.
Como você já deve ter percebido a partir daquilo que foi descrito, não seria razoável
pensar na existência de uma só ética, mas de muitas. Porém, isso não significa
dizer que existiria uma ética de cada um, coisa que já questionamos anteriormente,
mas no sentido da ética como forma de conduzir de um povo, numa determinada
época.
Por exemplo, você já deve ter ouvido falar na tese de que vivemos numa sociedade
do consumo. Isso quer dizer que nossa maneira de sentir, ser e pensar é
caracterizada por uma permanente insatisfação e pelo incessante desejo do novo,
fazendo com que estabeleçamos relações descartáveis com coisas e pessoas. Essa
maneira de se conduzir é denominada por muitos teóricos como ética do
capitalismo.
Como você pode perceber, trata-se, mais uma vez, de um uso inadequado da
palavra, pois, colocada nesses termos, não haveria sequer espaço para discussão e
criação de estratégias singulares mais alinhadas ao cuidado com o outro.
Consequentemente, não haveria também espaço para a reflexão ética, pois a ética,
como dissemos anteriormente, é uma atividade de criação, uma estética, como
sugere Foucault (2004). Nesses termos, toda a complexidade da reflexão e da
criação ética seria restringida em favor do mero julgamento moral das ações e da
procura de culpados.
À diferença disso, e alinhados com Foucault, podemos adotar uma perspectiva ética
que pensa que as relações entre os seres humanos devem ser cuidadas com
práticas de liberdade, que é a própria condição da ética, e não com práticas de
controle e diminuição da autonomia do outro e de nós mesmos, o que apenas
reforçaria condutas de julgamento, discriminação e exclusão.
De fato, é o próprio Foucault (2004) quem vai dizer que não se deve passar o
cuidado do outro na frente do cuidado de si, e é ele também, mas não somente,
quem dirá que a ética é a prática refletida da liberdade, e não o assujeitamento aos
valores de uma dada instituição, sociedade, entre outros.
É importante ressaltar que a ética do cuidado de si pensada por Foucault não faz
oposição ao cuidado com o outro. Bem ao contrário, segundo este, é o cuidado de si
que pode regular nossas relações com o outro.
Como ele mesmo diz:
Como você pode ter notado, a ética não significa o cumprimento dos valores e das
verdades legitimadas, mas uma reflexão sobre estas.
Na verdade, simplesmente pelo fato de que somos constituídos por estes mesmos
valores, aquilo que eu penso e sinto está diretamente relacionado com o modo
como nossa sociedade constrói sua forma de ver e sentir o mundo.
Como podemos observar, tal análise constitui-se em uma atitude que interroga as
implicações do lugar que ocupamos na ordem do saber/poder, e, neste caso, do
saber/poder que se opera no campo das práticas em saúde. Todavia, de acordo
com Foucault (2004), essa é uma empreitada que possui um caráter paradoxal, uma
vez que aquilo que visa pôr em questão não são somente os lugares que
ocupamos, mas, sobretudo, nós mesmos.
No campo das relações entre saúde e sexualidade isso fica ainda mais evidente,
pois, como vimos, a homossexualidade deixou de ser considerada uma patologia na
década de 1970 apenas por pressões de movimentos sociais organizados. Isso quer
dizer que, antes disso, se nos relacionássemos com essa população mediados
pelos saberes dominantes no campo da saúde, qual seja, o saber biomédico,
estaríamos produzindo violência e exclusão, ainda que realizando um trabalho
considerado qualificado tecnicamente, cumpridor dos protocolos em voga na
ocasião.
No campo do cuidado com a população trans, isso costuma acontecer, por exemplo,
no processo transexualizador, em que os profissionais que agem de acordo com os
procedimentos do SUS, ao seguirem o padrão diagnóstico, excluem aqueles
indivíduos considerados como não adequados a esses padrões.
É a própria norma que aqui se torna discriminatória e violenta, daí a ética ser uma
reflexão sobre como nos relacionamos não apenas com o outro, mas também com
os saberes e as verdades que nos constituem e que veiculamos, uma vez que
tomamos essas verdades como se fossem nossas.
Por fim, e com relação a isso, não poderíamos deixar de afirmar que travestis e
transexuais ainda são vistos pela medicina como seres portadores de patologia,
identificados por uma Classificação Internacional de Doenças.
Ainda hoje, para os saberes médicos e “psis” (psicologia, psicanálise e psiquiatria),
a transexualidade é vista como algo patológico, descrito no Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como “Disforia de Gênero”, e pela
Classificação Internacional de Doenças (CID-10), como “transtorno de identidade de
gênero”.
VERIFICANDO O APRENDIZADO
CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temos, então, dois direcionamentos para que possamos pensar um cuidado ético,
alinhado com a vida e livre de preconceitos e discriminações, embasados pelas
discussões empreendidas pela ética do cuidado de si foucaultiana. Um que
pressupõe o assujeitamento dos indivíduos a códigos preestabelecidos, cujo
paradigma é a produção de verdades que engessam as relações entre
trabalhadores e usuários. O outro é aquele cujo paradigma pressupõe uma
autonomia que coloca em jogo a possibilidade de nos conduzirmos, de nos
cuidarmos, de inventarmos outras formas de cuidar baseadas em relações não
discriminatórias. O cuidado de si significa, em suma, a invenção de formas
singulares de ser e estar com o outro, baseadas no respeito às diferenças e no
aumento da potência de existir de ambos. Ser ético não significa dizer que meu
direito termina onde começa o do outro, mas sim que a minha liberdade começa
onde começa a do outro, e também minha saúde e meu bem-estar.
Assim, o cuidado que queremos no campo da saúde aponta para este último
direcionamento, isto é, para a possibilidade de produções singulares que se abram
para diferentes modos de ver, ouvir, pensar, sentir, cuidar e amar. Um cuidado que
provoque, nas relações com o outro, possibilidades de transformações, seja no
trabalhador, seja no usuário, de modo que o que vai nortear o cuidado será menos o
protocolo, a norma e a regra, e mais a possibilidade de criação que se abre no fazer
em saúde a partir de cada encontro, ou seja, um cuidado norteado pela vida em sua
singularidade, e pela normalização e mortificação do outro.
PODCAST
AVALIAÇÃO DO TEMA:
REFERÊNCIAS
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estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
ANDRADE, E. O.; GIVIGI, L. R. P.; ABRAHÃO A. L. A ética do cuidado de si
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CONTEUDISTA
Luís Renato Givigi