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Centro de atenção psicossocial como dispositivo de atenção à crise: em

defesa de uma certa (in)felicidade inventiva1

Luciano Elia

De saída, uma nota de advertência: na escrita deste trabalho, o tom e a direção


eminentemente críticos que tem acompanhado minhas intervenções sobre a
questão do desmonte da atenção psicossocial a que assistimos no Brasil atual
cederam lugar a uma perspectiva que chamarei de politicamente amorosa, efeito
do significante que compõe o tema-título deste Colóquio: construções da
felicidade.
Dito isso, reafirmemos que a atenção psicossocial, como categoria que designa
algo de absolutamente inédito, inventivo, democrático, transformador e irredutível
a qualquer outra invenção que a tenha precedido no mundo, inclusive na
Psiquiatria italiana, os (Centros de salute mentale de Basaglia), vem sofrendo um
processo de desmontagem, retrocesso, destruição mesma, no Brasil de hoje.
A atenção psicossocial é efetivamente uma invenção democrática. Rapidamente,
quero caracterizá-la, admitindo que há, nesta caracterização mesma, mais do que
um mero esforço de retratar para os que aqui estão o que esta categoria designa
no quadro conceitual da Reforma Psiquiátrica Brasileira, contexto que a formulou:
há na minha leitura do que seja atenção psicossocial algo de inventivo, próprio,
meu, que não está nela em si mesma.
A atenção psicossocial pode ser entendida, como sua própria composição nominal
indica, uma modalidade de atenção em saúde, no caso, saúde mental. No entanto,
se o primeiro termo do binômio insere esta categoria no campo da saúde – ela é
uma modalidade de atenção em saúde, o segundo termo – psicossocial – está
destinado, senão a retirá-la deste campo, pelo menos a fazê-la transbordá-lo,
extravasá-lo, tanto quanto a própria loucura o extravasa.
E aqui uma primeira verificação importante: sem transbordar o campo da saúde,
qualquer tipo de invenção/intervenção com a loucura estará destinado ao
fracasso. E portanto, uma primeira expressão da potência da atenção psicossocial
é que ela não cabe inteira no campo da saúde.
Nisso ela faz jus a uma dignidade histórica da própria Psiquiatria que é justo
resgatar hoje aqui, num momento em que a psiquiatria, como a psicologia, tem

1
Trabalho apresentado no II Coló quio Internacional NUPSI/USP e XI Coló quio de Psicopatologia e
Saú de Pú blica – Invençõ es democrá ticas: construçõ es da felicidade, realizado no Centro de Convençõ es
Rebouças, Sã o Paulo, de 19 a 22 de setembro de 2013, na Mesa 5 do Coló quio, de título homô nimo ao
do presente trabalho. Disponível em http://www.redehumanizasus.net/65942-centro-de-atencao-
psicossocial-como-dispositivo-de-atencao-a-crise-em-defesa-de-uma-certa-infelicidade-inventiva
sido tão degradadas, tem estado tão vagabundas em termos de ciência e ética, se
me permitem dizer assim de modo que pode parecer grosseiro mas na verdade é
apenas exato, tão fodidas como estão pelo capitalismo - não sem seu gozo nessa
foda. Mas não foi sempre assim. Nos primórdios da psiquiatria (e parece que os
saberes e práticas, em suas fases primordiais, são sempre mais verdadeiros,
marcados que são de modo mais genuíno pelas condições de sua emergência)
ela própria transbordava a medicina. Podemos afirmar que a psiquiatria foi, ela
própria, efeito de um transbordamento do campo médico, do campo da saúde:
com Edmar de Oliveira (um psiquiatra piauiense politizado e dos bons,
protagonistas da RFB, que mora, trabalha e milita no Rio), podemos dizer que a
primeira especialidade médica foi a psiquiatria exatamente porque ela não é uma
especialidade médica, por não caber toda na medicina, ela foi cuspida, expelida
para fora, dando a impressão de que era uma especialidade.
Pois bem, a atenção psicossocial, fruto epistêmico-assistencial genuinamente
brasileiro que não tem mais de 30 anos de existência e já está morrendo antes
mesmo de florescer, emergiu de forma análoga: extravasando o campo da saúde
mental, que o pariu. O caráter inventivo deste campo está, a meu ver, sobretudo
em sua irredutibilidade ao campo estritamente sanitário.
Para lembrar algo de demasiado fundamental mas que nem todos são obrigados a
saber aqui, a saúde é estratificada em modos e níveis de atenção, ditos primário,
secundário e terciário. Ao nível primário, a atenção primária ou atenção básica,
cabem as ações de prevenção, promoção e atenção à saúde em escala ampla,
social e fundamental, que garante à população o acesso às condições básicas de
seu bem estar físico e social: saúde materno-infantil, bucal, vacinação, etc. Para
simplificar e não alongarmos demais esta rápida caracterização, que não visa aqui
esses níveis, mas situar a atenção psicossocial em relação a eles, diremos que os
níveis secundário e terciário vão avançando no sentido de uma crescente
especialização em termos de intervenção, sempre envolvendo as dimensões da
prevenção e do tratamento - a prevenção não é exclusividade da atenção básica,
que por sua vez pode incluir formas de tratamento em seu escopo.
Será que a atenção psicossocial cabe no espectro vertical dos níveis de atenção
em saúde? Poderia ser ela dita primária, secundária ou terciária? Ou ela é externa
e estranha a este eixo? Poderíamos dizer que a atenção psicossocial é
secundária? E aqui começamos a poder enxergar que o modo mais eficaz pelo
qual as políticas públicas de saúde mental, por atos diretos de gestão do
Ministério da Saúde, começaram o desmonte do campo da atenção psicossocial
foi sua forçagem para dentro deste eixo, no qual a atenção psicossocial começa a
ser vista como uma modalidade especializada de atenção, o que acompanha o
processo de sua plena sanitarização.
Para isso, iniciou-se uma aparente articulação da saúde mental com a atenção
básica, e forjou-se o feio termo de matriciamento para isso. Mas na prática, onde
se revelam as intenções políticas, o que vemos é uma fagocitose da atenção
psicossocial pela atenção básica. Fiz questão de falar antes de atenção básica
como a forma mais democrática das práticas de saúde para que minha colocação
sobre este processo não dê lugar a mal-entendidos, que no entanto ocorrem,
parecem indefectíveis, quanto a uma inexistente e absurda crítica que eu faria à
articulação da atenção psicossocial com a atenção básica. Articulação não é
redução, fagocitose, submissão. E podemos atestar isso simplesmente ao
registrar o número de vezes em que os nossos próprios colegas, que sempre
foram engajados nas políticas de vanguarda em saúde mental, muitos deles
atores guerreiros e de primeira hora na RPB, começam a se referir aos CAPS
como serviços especializados. Um deles, certo dia, em uma discussão comigo,
disse: Mas Luciano, o que você tem contra o termo especialização? Eu não tenho
nada. Quero dizer a vocês que eu tenho tudo contra, quando este termo é
aplicado ao CAPS. O CAPS não é um serviço especializado em loucos, em
loucura ou em casos graves, não porque não se destine a eles, posto que ele
existe para o sofrimento grave e persistente, para os que tem seus laços sociais
esgarçados, os que sofrem em demasia – e curiosamente o que vemos é que os
CAPS, ao longo do processo de sua nociva especialização em casos graves,
começou a ser inundado pelos chamados casos leves, aspecto que abordaremos
depois. O CAPS não é especializado em coisa alguma, porque ele é territorial,
articulado em rede, intra e intersetorialmente, e não viceja senão costurado com a
comunidade, com o tecido social e cultural, nos efeitos que produz sobre as
formas como a civilização suporta e não suporta o convívio com a loucura, pois
sabemos que ela NÃO SUPORTA.
E aqui me lembro das palavras de Marilena Chauí ontem que, por me precederem
na sequencia das apresentações, pude acrescentar a este escrito: a privatização é
a transformação de direitos sociais em serviços que compõem o mercado e as
aplico aqui: o CAPS precisa se manter no plano dos direitos sociais,
psicossociais, direito, no caso, precipuamente do louco, a existir no laço social, e
direito do corpo social a ter viabilizadas algumas condições de suportar a loucura.
Ele vem se transformando em serviços, aliás de péssima qualidade, e aqui não
entra em jogo apenas a qualidade das equipes, que vem sendo vilipendiadas em
sua formação, remuneração, e nas condições de seu trabalho em todos os níveis,
mas a desqualificação que os CAPS vem recebendo pr parte das políticas
públicas.
Aparentemente, a política proposta e praticada pelo Ministério da Saúde apoia os
CAPS e amplia sua rede. No entanto, qual é, efetivamente, a verdadeira política
que vem sendo implementada? No final de 2011 a Coordenação de Saúde Mental
do MS criou a portaria que estabelece a RAPS. De saída, lê-se que ela cria a
"rede de atenção psicossocial". Como é que se pode criar uma rede 20 anos
depois que ela existe? Estaria esta portaria inventando a roda? Ou o CAPS existiu
no Brasil fora de uma rede, quando na verdade a rede é condição estrutural da
própria concepção de CAPS, dito, inclusive, seu ordenador? O que pretende esta
portaria quando começa pela afirmação de uma mentira histórica, conceitual,
institucional e política? Prosseguindo a leitura, vemos que a RAPS situa o CAPS
como um tomate numa salada, um item de um elenco de serviços e dispositivos
operacionais, no mais rasteiro estilo dos protolocos burocráticos de gestão norte-
americanos. Ao tratar da questão da emergência, tema que nos diz respeito neste
mesa, a RAPS se vê estranhamento acompanhada pela RUE ("Rede de Urgência
e Emergência"), dentro da qual o CAPS aparece como uma "alínea", a "b", um
recurso entre outros, que deverá "acompanhar" as crises dos usuários. Se isso
não é a reintrodução de uma lógica assistencial medicocêntrica, que em última
instância evoca as práticas manicomiais em situações de crise, e dissocia a
atenção psicossocial (PS de RAPS) da questão da urgência/emergência (UE de
RUE), então o que é?
E é claro que, em paralelo não casual ao processo de transformação dos CAPS
em serviços, e pior, especializados, eles vem sendo privatizados em sua gestão
pelas OSs, o que, entre outros danos irreparáveis, mata qualquer possibilidade de
que resgatem seus fundamentos político-assistenciais, eliminando as pactuações
coletivas, as diretrizes das políticas construídas em décadas de um processo
democrática de conferências municipais, estaduais e nacionais de saúde mental,
em fóruns coletivos diversos, pois delega ao poder gestor de grupos privados a
própria direção das ações, os modos degradantes de contratação com
permanente ameaça de demissão sumária de profissionais críticos, politizados,
etc.etc.etc. Vocês tiveram aqui em São Paulo o exemplo paradigmático disso com
o que se passou no primeiro CAPS do Brasil, o da Rua Itapeva, de cujo primeiro
aniversário, em 1988, eu tive a honra e o prazer de participar, compartilhando,
com Jairo Goldberg e Peter Pal Perbart e todos os colegas, um entusiasmo
psicossocial que hoje está extinto. E eu participei da criação e da supervisão, por
13 anos, quando fui devidamente afastado pela gestão municipal, do primeiro
CAPSi do Brasil, o Pequeno Hans, no Rio, e sei em que condições ele
teimosamente ainda sobrevive.
Pois bem. Antes de chegar ao ponto central da questão temática deste Mesa, e
assim concluir esta intervenção, quero afirmar que o CAPS É PRIMÁRIO, não no
sentido da atenção primária com a qual ele tem que se articular, é claro, mas
mantendo seu caráter psicossocial não destituído nem descaracterizado, bem
como com outros setores que não a Saúde – Assistência, Educação, Justiça,
Esporte e Lazer e, mais do que isso, com todos as instâncias formais e informais
do território. O CAPS é primário porque ele, em relação à loucura (dita aqui em
termos amplos, democráticos e basaglianos) sua ação territorial é primordial,
primeira, primária. Cabe a ele a ordenação da rede, o que é mal tolerado pelos
gestores pois fazem sempre uma interpretação dessa ordenação em termos de
centralidade e poder, quando não se trata disso. O CAPS tem e opera com
alguma forma de poder? Claro que sim, e como não operaria, a menos que
adotasse a posição impotente? Mas seu poder não é central nem estatal, não é
gestor, e aqui quem nos fundamenta é Foucault, com sua teoria do poder,
sucintamente exposta no Capítulo III, intitulado Método, do primeiro volume da
História da Sexualidade, intitulado A vontade de saber: lá ele nos explica que o
poder se exerce em todas as direções, de cima para baixo, de baixo para cima, de
um lado para o outro, entre cada um e cada outro, incluam aí o louco e os que
tratam dele. Pois bem, o poder do CAPS é foucaultiano, ele não manda em
ninguém na rede, não exerce autoridade sobre outros equipamentos, nem outros
setores. Ele pactual, articula, ordena a rede segundo uma lógica nova, ele polariza
e encarna esta política no território, sustentando ali as condições de possibilidade
de afecção e mudança no tecido social em suas relações com o sofrimento
demasiadamente agudo, com a loucura. É claro que o CAPS trata, e como,no
sentido clínico, terapêutico, se quiserem, do termo, e eu poderia passar o dia
inteiro aqui apresentando a vocês inúmeros exemplos de casos de autismo de que
tratamos, com bastante eficácia, no Pequeno Hans – mas fiquem calmos, não vou
fazer isso – a despeito de hoje a ciência, mancomunada com a gestão estatal e
com uma sociedade sempre fiel e ávida em apoiar o que há de pior na ciência e
na gestão, afirmarem que o autismo é uma deficiência, que seu tratamento é
neuronal e comportamental, ladainha quotidiana no Fantástico, na Revista Veja e
portanto no nosso dia-a-dia. Mas o CAPS trata tanto melhor quanto menos ele for
concebido como um lugar especializado em tratar. Ele tratará sempre melhor,
clinicamente, de seus usuários, quanto mais fiel ele for aos princípios que o
fundam e fundamentam: um polo de direitos e de encarnação de uma política de
sustentação da loucura no laço social, avessa e combativa a toda prática de
exclusão, segregação e internação não acompanhada.
Uma última mas de forma alguma menos importante observação: um CAPS, se
ele é voltado para o campo da loucura, sem patologizá-lo mas também sem
neutralizar demais a positividade e a irredutibilidade próprias ao sofrimento louco,
ele precisa ser afeito ao próprio funcionamento louco. Ele precisa ser um pouco
louco. Os CAPS são, como tudo hoje no mundo, cada vez mais obsessivos. Nem
histéricos eles tem sido mais, pois o mundo fruto da cópula da ciência com o
capitalismo, o mundo da cópula das neurociências com a psicologia
comportamental não tem dado lugar à histeria, só a transtornos miseravelmente
arrolados nos manuais diagnósticos e estatísticos, o DSM. Sem um funcionamento
mais afeito à lógica da loucura um CAPS não opera bem sua função psicossocial,
clínica e política. E esta observação nos introduz no tema da crise, não porque
seja a crise o paradigma da loucura, longe disso. Em tempos de calmaria, também
e sobretudo neles, a atenção ao funcionamento louco é preponderante.
Vamos à crise: como é que um serviço assim concebido e exercido não tomaria a
si a responsabilidade sobre as crises de seus usuários? Como é que o CAPS
poderia manter-se alheio à crise? É claro que o CAPS deve tomar a si não apenas
o tratamento, o encaminhamento das ações clínicas aplicáveis a situações de
crise, mas em termos de um princípio que é ético, conceitual, clínico e político ao
mesmo tempo: a crise lhe diz respeito.
Vamos começar pelo começo. Se o usuário do CAPS tem no CAPS um lugar de
referência primordial, se ele efetiva e verdadeiramente INCLUI o CAPS em sua
vida, em sua experiência de dor, prazer ou sofrimento, para o que é obviamente
necessário que o CAPS o INCLUA em seu espaço de CAPS, o que não é fácil
nem frequente, quando ele começa a sentir que está piorando, quando uma crise
se anuncia, seria ao CAPS que ele tenderia a recorrer, e a equipe estaria
acompanhando, advertida dos sinais que lhe estariam chegando, não é mesmo?
Começaria então a intervir junto à crise anunciada antes de sua eclosão, muitas
vezes inevitável, e, no momento da eclosão, praticaria ações que ou já estariam
sendo elaboradas, ou que seriam da ordem da surpresa e da invenção súbita,
porém advertida. Entre essas ações eu incluo, é claro, a internação, mas não
qualquer internação, e sim uma internação inteiramente logicizada pelo CAPS,
inserida na lógica da atenção psicossocial, e não uma internação manicomial.
Sabem o que acontece hoje, na maioria das vezes? O usuário começa por ir
pouco, ou burocraticamente, ao CAPS. Quase sempre vai porque precisa pegar
remédio e o CAPS, este ambulatório psiquiátrico multiprofissional, sustenta a
prática de dispensação de remédios sem nenhuma problematização da situação,
sob alegação da equipe de que “já trabalha demais”. Quando ele começa a
perceber que vai entrar em crise, o usuário se afasta de um CAPS que já está
afastado dele há muito tempo, e, em crise, dirige-se ao hospital psiquiátrico e se
interna. O hospital, quando algum enlace territorial já tiver existido no passado, ou
porque sua equipe (do hospital) tem, por acaso, algum grau de engajamento
territorial, telefona para o CAPS e informa que tem um paciente “seu”, do CAPS,
internado. A equipe registra o fato, comentando: “é mesmo, o fulano não vinha
mesmo aparecendo por aqui”, e espera o fim da crise e da internação para
novamente receber o usuário para voltar a pegar remédio no CAPS. Esse relato é
monotonamente revisitado no quotidiano dos CAPS.
Os argumentos são: a equipe está sobrecarregada, não tem médicos, só uma vez
por semana, estamos repletos de pacientes. Que pacientes? Aí começamos e ver
que o CAPS é preenchido até o pescoço com os chamados “casos leves”. Leves?
Que espécie de leveza? Os casos que a psiquiatria transtornalista do DSM
classifica e medica com os poderosos e eficazes psicofármacos. CAPS não é para
casos leves, que podem ser atendidos em ambulatórios e na atenção básica. Mas
observem que, se o CAPS se desobriga desses casos, ele perde sua função
ordenadora da rede, e em pouco tempo teremos uma rede de saúde mental
novamente medicalizada, ambulatorizada, sanitarizada. Se é de saúde mental que
se trata, o CAPS deve se envolver, mas não para tratar, absorver o caso na
agenda de sua equipe de profissionais e em suas atividades quotidianas.
Não ouvimos mais falar de desconstrução de demanda. No caso de crianças e
adolescentes, isso é fundamental. Escolas inundam os serviços de saúde mental
com demandas de atendimento, não problematizado nem interrogado, para
indisciplina, hiperatividade, desatenção. O TODA/H, quadro em larga medida
forjado pela psiquiatria atual, compõe mais de 50% (estou sendo moderado) dos
casos atendidos em CAPSi. Para vender ritalina, que alguns psiquiatras
recomendam que se coloque na caixa d’água das grandes cidades, nas estações
de tratamento da água do Guandu ou do Tietê. Ora, um CAPSi precisa envolver-
se com isso, politizar isso, discutir clinicamente isso, trabalhar com a escola,
clinico-intersetorialmente, essa questão, e não simplesmente remetê-la à atenção
básica, por tratar-se de casos leves. Mas para isso o CAPS precisa sustentar
ações inter-equipamentos, fóruns coletivos semanais, quinzenais, mensais,
conforme o caso. Mais uma vez, para cumprir sua função, inclusive nas crises, o
CAPS não pode restringir-se a tarefas clínicas de um quotidiano rotineiro e
repetitivo, ele precisa estar em plena articulação no território.
Tomar a crise como sua questão, tarefa e função exige muito mais do que
aparelhar-se tecnicamente para isso, com recursos médico-profissionais, o que
apenas reproduziria a lógica médico-manicomial no CAPS. Fala-se em crise,
pensa-se em um setor de emergência dentro do CAPS. Mas tratar da crise é algo
muito diferente disso, requer uma malha, um tecido de atos territoriais, não apenas
para dar encaminhamento territorial aos casos ditos leves e assim liberar a equipe
para os casos graves e em crise, mas porque não se trata de crise, em termos
psicossociais, sem o recurso lógico-político da rede, do coletivo, do fora-do-
serviço, do fora-de-si.
Um CAPS FORA DE SI (título da dissertação de mestrado de Daniel Elia,
defendida este ano na Fiocruz): eis a invenção democrática que estaria à altura
do que é ou deveria ser o CAPS na concepção clínico-política que lhe convém e
que presidiu à sua criação, e eis a única forma possível de responder à crise,
incluindo alguma dimensão inventiva de infelicidade na construção permanente da
felicidade.
Set/2013

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