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Carmo, Z. & Pollo, V. O CAPSi Dom Adriano Hipólito: uma instituição atravessada pela psicanálise?

O CAPSi1 Dom Adriano Hipólito: Uma Instituição Atravessada


pela Psicanálise?

CAPSI Dom Adriano Hipólito: an Institution Crossed by


Psychoanalisis?

Zélia Carmo2

Vera Pollo3

Resumo
O presente artigo visa a indagar até que ponto um Centro de Atenção Psicossocial _CAPS_ pode funcionar como uma instituição atravessada
pela psicanálise. Depois de um breve histórico sobre a origem dos CAPS e sua relação com a reforma psiquiátrica brasileira, as autoras
descrevem o funcionamento do CAPSi Dom Adriano Hipólito e o atendimento de um adolescente encaminhado por um hospital municipal.
Em seguida, abordam o conceito de “desejo do analista”, sua diferença em relação ao Wunsh freudiano e ao puro desejo de morte de
Antígona e suas características de desejo advertido, impuro, vazio de objetos e produtor de diferença entre o significante e o significado. Por
fim, mencionam a importância da “douta ignorância” para a prática analítica e retornam à relação entre a psicanálise e a atenção psicossocial,
para sustentar que o discurso do analista não é necessariamente antinômico à ideologia dos CAPS.

Palavras-chave: CAPS; desejo do analista; Wunsh; douta ignorância; discurso do analista.

Abstract

This article aims to inquire up to which point a CAPS (Psychosocial Attention Center) may operate as an institution crossed by
psychoanalysis. After a brief historical on the origins of the "CAPS" and its relation with the Brazilian psychiatric reform, the authors
describe the operation of the CAPSi Dom Adriano Hipólito as well as the treatment of a teenager forwarded by a municipal hospital. In the
sequence, they approach the concept of "analyst's wish", the differences between it, the freudian Wunsch and the pure death wish in
Antigone, including its characteristics of adverted, impure, empty of objects wish, producer of difference between the significant and the
significance. Finally, the authors mention the importance of the "learned ignorance" for the analytical practice and they return to the
relationship between psychoanalysis and psychosocial attention to argue that the analyst's discourse is not necessarily antinomian to the
ideology of the CAPS.

Keywords: CAPS; analyst's wish; Wunsch; learned ignorance; analyst's discourse.

1
Centro de Atenção Psicossocial à infância a juventude.
2
Psicanalista. Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA, 2008); professora de Pós Graduação da Universidade Gama Filho do curso
de Educação Especial; Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/RJ; participante da pesquisa “A Clínica do
Sujeito” (UERJ). Endereço eletrônico: zcarmo@attglobal.net.
3
Psicanalista. Doutora em psicologia (PUC-RJ, 1997); professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA) e da
Especialização em Psicologia Clínica (PUC-RJ); AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano; psicóloga do Núcleo de
Estudos da Saúde do Adolescente (HUPE-UERJ). Autora de “Mulheres histéricas” (Contra Capa, 2003).

Pesquisas e Práticas Psicossociais 4(2), São João del-Rei, Jul. 2010


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Introdução enfermeiros, os assistentes sociais e outros, para


que viessem trabalhar nos CAPS.
Ao longo das últimas décadas, temos assistido Não sendo exatamente a primeira, a reforma
à inserção da prática psicanalítica nas mais diversas brasileira inspirou-se nas comunidades terapêuticas
instituições, entre elas, os hospitais gerais, públicos norte-americanas dos anos 1960, assim como na
ou particulares, civis ou militares, os serviços chamada “análise institucional” francesa, de
ambulatoriais e os assim chamados CAPS ou inspiração psicanalítica, e na psiquiatria
Centros de atenção psicossocial. Estes últimos são democrática italiana, primeira a procurar conjugar o
serviços municipais de saúde que oferecem sujeito e o cidadão. Diz-se, contudo, que a principal
atendimento clínico e visam à reinserção social de característica da reforma brasileira – o que constitui
pessoas com transtornos mentais, por meio do sua marca distintiva - é a inseparabilidade entre a
acesso ao trabalho e ao lazer, do exercício dos clínica e a política, motivo pelo qual ela teria
direitos civis e do fortalecimento dos laços encontrado nos CAPS o dispositivo institucional
familiares e comunitários. Funcionam em regime de mais adequado para substituir os dispositivos
atenção diária, objetivando evitar muitas psiquiátricos tradicionais.
internações em hospitais psiquiátricos4; de acordo Nas palavras de Fernando Tenório (2001, p.
com a Portaria 336 de 2002, que define e estabelece 122), os CAPS conjugam as três principais
diretrizes para o funcionamento dos CAPS, é vertentes da reforma psiquiátrica brasileira: a
função do serviço oferecer suporta em saúde mental desinstitucionalização da “doença mental”, não do
à atenção básica, responsabilizar-se pela hospital psiquiátrico; a clínica institucional que
organização da demanda e da rede de cuidados, designa “um corpo de trabalhos – iniciativas
supervisionar e capacitar equipes de atenção básica. práticas e formulações teóricas – que giram em
Compete-lhes, portanto, buscar estreitar os laços torno de como fazer da instituição um lugar de laço
entre o campo da saúde mental e a comunidade. social para quem, por definição, tem dificuldade de
Com o passar dos anos, os CAPS foram fazer laço social”; a reabilitação psicossocial, que
gradativamente se modalizando. Além dos “desloca o tratamento da doença para a existência,
primeiros, atualmente existem também os CAPSi, porém mantém um caráter pedagógico, de educação
cuja população é constituída exclusivamente de para a vida social.”
crianças e adolescentes, e os CAPSad, cujas letras Nosso objetivo, no presente texto, é indagar até
finais indicam tratar-se de uma população com que ponto um CAPSi pode funcionar como uma
problemas ligados ao uso abusivo de álcool e instituição atravessada pela psicanálise. Em outros
drogas em geral. termos, discutir quais são as chances de sustentação
Todavia é importante não deixarmos cair no do desejo do analista no dia-a-dia deste dispositivo,
esquecimento o berço em que nasceram os ou seja, nos atendimentos que lá acontecem. Para
primeiros CAPS. Eles são filhos da assim chamada tanto, abordaremos o funcionamento do CAPSi
Reforma psiquiátrica que chega ao Brasil na década Dom Adriano Hipólito e, em particular, o caso de
de 1980, ou seja, nos anos marcados por um adolescente que nos colocou diante de questões
“movimentos políticos e sociais pela a um só tempo urgentes e de difícil solução. Em
redemocratização do país, encabeçada pelo seguida desenvolveremos o conceito lacaniano de
Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental” “desejo do analista”, partindo do princípio de que o
(Mira, 2005, p. 146), pouco depois transformado sintagma “uma instituição atravessada pela
em Movimento por uma Sociedade sem psicanálise” significa literalmente uma instituição
manicômios (Amarante, 2001, p. 104). Como em que é possível sustentar este desejo.
salienta Rinaldi (2005), no Brasil, como em
diversas partes do mundo, a Reforma psiquiátrica Qual a proposta de trabalho no CAPSi Dom
pôs em questão a hegemonia do saber médico- Adriano Hipólito?
psiquiátrico no tratamento da doença mental,
introduzindo a multidisciplinaridade no campo da Localizado na região da Baixada Fluminense, o
saúde mental. Desde então, teve início a Capsi Dom Adriano Hipólito é formado por um
convocação dos psicólogos, lado a lado com os corpo técnico multidisciplinar: psicólogos,
médicos, os terapeutas ocupacionais, os psicanalistas, enfermeiro, auxiliar de enfermagem,
psiquiatra, técnicos de nível secundário e faxineira.
Recebe diariamente crianças e adolescentes que
sofrem de diferentes tipos de psicose ou de
4
Há atualmente 820 CAPS e 45 mil leitos psiquiátricos; em neuroses graves. Estes, em sua maioria, já chegam à
1989, havia 13 CAPS e 80 mil leitos psiquiátricos (Lancetti &
Amarante, 2006). instituição com algum diagnóstico.

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A orientação do CAPSi segue as mesmas metas O território vai se compondo com as


dos demais centros de atenção psicossocial, quais características das pessoas e estas vão sofrendo as
sejam: a não internação, a medicação criteriosa e a ações desse território, gerando processos contínuos
discussão permanente dos casos, tanto com as de transformação. É nele que as pessoas adoecem,
instituições encaminhadoras quanto com os portanto nele devem ser tratadas. No campo da
técnicos responsáveis pelos atendimentos. Os casos etologia, o território é uma noção ligada às práticas
são abordados nas supervisões semanais e nas de acesso e controle no interior de fronteiras.
reuniões diárias que almejam evitar possíveis Porém, conjugado ao conceito deleuziano de
conduções equivocadas, transformando-se “dobra”, como propõe Silva (2005) o território
ocasionalmente em reuniões de capacitação. subjetivo expressa o caráter coextensivo do dentro e
Procura-se sempre levar em consideração o do fora.
diagnóstico situacional - quando e como o paciente
chegou ao serviço – assim como o diagnóstico Um adolescente no CAPSi
estrutural – neurose, psicose ou perversão. Outros
recursos que podem ser utilizados são: a visita Certo dia, a equipe do CAPSi Dom Adriano
domiciliar e o contato com o CRAS (o Conselho Hipólito foi chamada para atender um adolescente
Tutelar e as escolas, entre outros), pois, como de dezesseis anos que estava internado na Unidade
dissemos acima, se considera relevante uma Mista do Hospital Municipal de Austin e que havia
constante interlocução com a comunidade. A recebido o diagnóstico de psicose. Conforme
tomada de responsabilidade frente aos casos regulamentação da Secretaria Municipal de Saúde,
encaminhados por outras instituições é considerada o CAPSi foi chamado para acompanhar e avaliar o
também algo da ordem de um princípio que rege a caso, por se tratar de um adolescente. Como o
ação do CAPSi. pedido fora feito por telefone, decidiu-se criar
Além da idéia de um duplo diagnóstico, inicialmente uma “mini-equipe de sobreaviso”,
situacional e estrutural, outros elementos composta por psiquiatra e psicólogo, a qual deveria
importantes para o modelo de clínica que se pratica ir até o local da internação.
ali são: a rede de interventores e o território Começamos a tomar conhecimento da história
subjetivo. A primeira inclui desde o psicólogo, o que culminou na internação de João5. Ele havia
médico, o analista, terapeutas em geral, monitores, perdido trinta quilos e alegava que havia feito
educadores, enfermeiros, até as instituições e a regime porque, antes, se achava gordo demais: “Eu
comunidade em geral. Todos os integrantes da rede estava uma baleia. Eu quis emagrecer para ficar
vão fazer parte do território subjetivo de cada forte.”. Depois que decidiu emagrecer, começou a
indivíduo em questão. Segundo Deleuze (1999), a frequentar uma academia de ginástica onde
ideia de indivíduo enquanto território subjetivo praticava Jiu-Jitsu. Justificou-o nos seguintes
moderno é um modo de subjetivação, isto é, uma termos: “Eu queria ficar forte, musculoso e saber
formação histórica e existencial. me defender na rua de pessoas que gostam de
O trabalho em rede supõe que nenhum arrumar encrenca à toa”. Comenta que, nesse meio
interventor, como nenhum serviço, pode resolver tempo, ficou resfriado e um amigo da academia lhe
sozinho a ampla gama de cuidados requeridos pelas aplicou uma injeção, dizendo que ele ficaria curado.
pessoas de um determinado território. Em suma, a Chamou-nos a atenção que, embora os pais
rede aposta na interseção da saúde individual com a subscrevessem a fala do filho acerca de uma
saúde coletiva, no que ambas incluiriam, além dos suposta injeção de medicamento, nem eles, nem
elementos subjetivos, elementos objetivos, tais João sabiam especificar de que se tratava. Mas João
como: signos universais, leis físicas, elementos prossegue comentando que foi convidado por este
matemáticos e a estrutura da linguagem (Delfini, amigo para ir ao ensaio de uma Escola de Samba,
Sato, Antoneli & Guimarães, 2009) por isso, tanto ele, quanto os pais desconfiam que
Como norteador das estratégias de ações, o este rapaz seja “viado”. O pai diz:
território corresponde também aos “modos de
construção do espaço, de produção de sentidos para Achamos que o João Paulo transou com este cara.
o lugar que se habita e ao qual se pertence por meio Ele chegou estranho em casa. O que será que a
de práticas cotidianas” (Yasui citado por Delfini, injeção continha? Será que tinha droga? Eu não
2009, p. 1486). Por isso Milton Santos (2002) o compreendo porque ele ficou deste jeito! A mãe da
define como um objeto dinâmico, vivo e de inter- minha mulher é maluca, ela toma remédio
relações, englobando as características físicas de
uma determinada área, assim como as marcas e 5
Optamos por um nome bastante comum, no intuito de acentuar
relações produzidas pelo homem. que, embora difícil, o caso João não pode ser dito exatamente um
caso raro.

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controlado. Depois desse dia, João ficou tratamento. Na segunda-feira, quando chegou ao
completamente isolado, até mesmo na escola. CAPSi, João estava chorando e jogando-se ao chão.
Vários profissionais acorreram, provocando uma
O discurso do pai deixa ver, de imediato, uma cena que nos pareceria equivalente a uma espécie
série de preconceitos relativos à homossexualidade de grande “embrulho” de pessoas. Então, a
e ao uso de drogas, assim como a projeção nos coordenadora pediu que todos se afastassem e que
outros – o amigo, a família da mãe - de um apenas a psicóloga ficasse com ele, para que João
sentimento de culpa, provavelmente em grande pudesse tomar a palavra. Naquele momento, nos
parte inconsciente, com vistas à lembrávamos da observação de Ana Cristina
desresponsabilização subjetiva. Figueiredo (1977) em seu livro “Vastas confusões e
Quando chegamos à enfermaria da Unidade atendimentos imperfeitos”, segundo a qual, apesar
Mista, sentimo-nos diante de uma cena de horror: dos atendimentos serem imperfeitos e confusos, é
João Paulo estava amarrado à cama, falava possível exercer a função de psicanalista na
arrastado, dizia que queria ir embora, queria lutar instituição.
jiu-jitsu, fazia alguns gestos de luta, em seguida Inicialmente, João não queria falar, sentar ou
permanecia letárgico. Conversamos separadamente outra coisa qualquer, queria apenas ficar
com os pais, os quais se mostravam bastante perambulando, aparentemente sem destino, no
desnorteados. “Nós apenas queremos que ele fique espaço do CAPSi. Estava angustiado e dizia querer
melhor. Ele não era assim!” disse a mãe. O pai de ir embora. Porém, ao escutar seu nome próprio em
João revela que ele e a mulher são separados, mas tom claro e enfático - “João! Vamos conversar!”- o
vivem na mesma casa. Declara: adolescente parou e olhou na direção daquela que o
pronunciara. A intimação ao comparecimento do
Temos liberdade de viver o que queremos. Os nossos sujeito, para além do indivíduo ou da pessoa,
filhos sabem disto e nunca houve nenhum problema. surpreendeu-o.
Nós nunca nos agredimos fisicamente. O problema
neste momento é que estou desempregado. Nosso
Ao não acolhermos a demanda de que o
filho menor está triste com tudo isto. João começou deixássemos partir, orientávamo-nos também pelo
a ficar desagradável em casa e Tiago começou a se comentário de Freud em Linhas de progresso na
queixar de que ele estava muito chato, implicante e terapia psicanalítica, Freud (1919 [1918], 1976:
batendo nele. Ele começou a ficar estranho depois 205), ressaltando que “cruel como possa parecer,
de tomar a injeção e de sair com aquele cara. Temos devemos cuidar para que o sofrimento do paciente,
certeza disto! em um grau de um modo ou de outro efetivo, não
acabe prematuramente”. Neste texto, ele comenta
Dois fatos também chamaram a nossa atenção igualmente que há situações em que o analista deve
do ponto de vista fenomenológico. Primeiramente, saber combinar a influência analítica com a
o fato de que João e o pai são igualmente obesos. A educativa, agindo como uma espécie de consciência
família parecia dividir-se em dois pequenos grupos: crítica que advém de fora, o que, talvez,
de um lado, a mãe e o filho mais novo, descritos pudéssemos traduzir na linguagem lacaniana como
como pessoas que se interessam, respectivamente, uma situação em que o analista precisaria fazer
pelo trabalho e pelo estudo; de outro, o pai e João, semblante de S1 para o sujeito, isto é, de
este, desempregado, aquele, fora da escola. Porém, significante do ideal do eu em sua vertente
surpreendeu-nos ainda mais a aparente falta de imperativa, desprovida de duplo sentido e,
censura com que o pai relatou que, quando consequentemente, de ambiguidade.
necessário, uma tia materna, não médica, dera a Ao ser conduzido até a sala do médico, João
João a mesma medicação controlada da avó. Isto voltou a se jogar violentamente ao chão. Diante
porque João ameaçara fugir de casa, afirmando que disto, lhe dissemos: “Eu não vou te segurar, assim
“havia pessoas querendo matá-lo”. Diz o pai: “ela você vai se machucar. Você é bem maior que eu. Eu
deu para ele a mesma medicação que a minha não consigo te segurar e não sei o que você quer. O
sogra toma. Ele estava como ela, totalmente que você quer?”. João respondeu: “Eu quero ir
descontrolado”. embora! Não quero ficar aqui!” Indagamos: “Por
Apesar da aposta da “mini-equipe de que você quer ir embora? Você só poderá sair
sobreaviso” de que o adolescente ficaria melhor em daqui se você se organizar. Está bem?”. Então João
casa, isto não impediu que ficássemos inseguros levantou-se, depois se sentou aparentemente
com a orientação terapêutica de que João voltasse apaziguado.
ao CAPSi somente na segunda-feira pela manhã, Diremos que, naquele momento, a palavra teve
após a correção da medicação por parte do médico efeito de contenção.
e a ênfase na necessária inclusão dos pais no

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Pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no assumir a responsabilidade de atendimento à vida
Outro [...] O efeito de linguagem está o tempo todo psíquica dos indivíduos e dos profissionais; e de
misturado com o fato, que é o fundo da experiência auxiliar na organização do funcionamento
analítica, de que o sujeito só é sujeito por ser institucional, de modo a viabilizar a modificação do
assujeitamento ao campo do Outro...”. (Lacan, 1985 funcionamento interno do cliente. (Altoé, 2005, p.
[1964], p. 178) 80)

A medicação foi sendo reduzida E o desejo do analista, como defini-lo e onde


gradativamente e João freqüentou algumas sessões localizá-lo?
individuais, até a retirada completa da medicação.
A equipe apostou na neurose, na escuta do sujeito e Como dissemos acima, o conceito do “desejo
lhe oferecemos um lugar de acolhimento da fala. do analista” emerge no seio da doutrina lacaniana
Uma vez estabelecida a transferência, instaurado o onde se torna um referencial importante na direção
“sujeito suposto saber” (Lacan, 1967), ele pôde do tratamento: é o analista quem dirige o processo e
revelar seus desejos: “Quero terminar meu terceiro ele o faz a partir de seu desejo, que não é desejo de
ano, prestar vestibular para educação física e um analista, mas uma função exercida por todo
iniciar namoro”. Depois disso, João nos contou aquele que ocupa o lugar de analista.
também acerca de sua preferência por filmes de Enquanto modalidade do desejo, o desejo do
super heróis: “Eles podem fazer tudo. Salvam analista, como todo desejo, se diferencia da
carros cheios de gente, não morrem, voam. É muito necessidade e da demanda, mas, além disso, ele
bacana”. tampouco se confunde com qualquer uma das três
Em supervisão, decidiu-se pelo formas do desejo na neurose: o desejo prevenido da
encaminhamento de João para o ambulatório, onde fobia; o desejo insatisfeito da histeria; o desejo
seus atendimentos teriam continuidade, mas ele não impossível da neurose obsessiva. Desde o momento
quis. Ele pôs um fim em seu atendimento com as em que a fala ultrapassa a ecolalia, falar é
seguintes palavras: “Estou me sentindo bem. Não inevitavelmente demandar e o que se demanda é
lembro o que aconteceu e não quero lembrar.” sempre o amor. Mas a demanda é processual, ela
Atualmente está terminando seu terceiro ano do vai se constituindo mediante o encadeamento dos
ensino fundamental e trabalhando em uma locadora significantes. É conseqüência do automatismo pelo
de filmes perto de seus super-heróis. qual os significantes convocam uns aos outros. Já o
Não diremos que João chegou a fazer um desejo, enquanto causa, origina-se exatamente na
percurso analítico, no sentido da elaboração da falta de pelo menos um significante, aquele que, se
fantasia fundamental que funciona como suporte existisse, representaria a verdade última do sujeito
inconsciente dos sintomas do sujeito, elaboração e, nessa mesma medida, a verdade toda.
cujo resultado implica numa retificação da posição Pode-se dizer que a obra inaugural da
que o sujeito ocupava no mundo até então. Mas psicanálise, qual seja, A Interpretação dos sonhos,
pôde expressar o desejo de obter reconhecimento que Freud deixa vir à luz em 1900, é um longo
como o irmão, mediante a conclusão dos estudos, tratado sobre a função do desejo no sonho. Nela já
talvez ele tenha, até mesmo, deixado cair alguns podemos encontrar todos os princípios que regulam
significantes do ideal ligados à figura do herói a vida mental, tais como a inexistência do
onipotente, pois não há trabalho sem sublimação da arbitrário, a força de atração do recalcado
pulsão, independe do objeto de trabalho ser ou não inconsciente, a sobredeterminação causal dos atos
filmes de super-heróis. psíquicos, até mesmo a língua imaginária da
Como tão bem salienta Altoé (2005, p. 79), se neurose, feita, toda ela, de condensações e
uma prática qualquer é marcada pelo método deslocamentos. Mas o Wunsh que o sonho realiza
freudiano, então ali há lugar para a psicanálise e não é o desejo consciente, é o anseio, o voto, numa
para o analista no trabalho institucional. E qual é só palavra. Um sonho é uma realização imagética
essa marca do método criado por Freud? Ora, ela da demanda, são palavras transformadas em
não é senão imagens oníricas. Não é o desejo como a falta que
impulsiona ou o significante/ato que funda um fato
O privilégio dado à expressão própria do sujeito, à
sua palavra e à sua história [...] O lugar do
novo. No entanto, ali se pode ler que “o desejo do
psicanalista é o de sustentar uma posição impossível homem é o desejo do Outro” (Lacan,1998 [1964],
e indispensável – aquela de fiador da possibilidade p. 223). Há uma identidade entre o objeto do desejo
de pensar a prática; de saber o poder das palavras e o objeto da pulsão6 - sempre buscado, nunca
quando estas, enfim, chegam a ser ditas; de favorecer
o esforço, muitas vezes enorme, de substituir a 6
Em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
disciplina, os maus-tratos físicos pela palavra; de psicanálise, Lacan declara: “Compreendam que o objeto do

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encontrado -, por isso se diz que o desejo faz É um texto que participa dos primórdios da
barreira ao gozo. O gozo pode ser letal, ele não é elaboração da moral da felicidade, a qual, segundo
necessariamente antinômico à inércia, a demanda e Lacan, ainda é a nossa moral. Pois a demanda que é
o desejo o são, pois feita cotidianamente aos analistas não é outra senão
demanda de felicidade, o que prova que
É na medida em que a demanda está para além e compartilhamos dessa moral.
para aquém de si mesma, que, ao se articular com o O texto da tragédia de Antígona ilustra
significante, ela demanda sempre outra coisa, que, magistralmente o limite tênue que, a um só tempo,
em toda satisfação da necessidade, ela exige outra separa e conjuga o desejo e a morte. Antígona é
coisa, que a satisfação formulada se estende e se
enquadra nessa hiância, que o desejo se forma como
uma jovem que desafia as leis da cidade, ciente de
o que suporta essa metonímia, ou seja, o que quer que seu ato a conduz diretamente à morte. Nos
dizer a demanda para além do que ela formula. E é termos de Lacan, ela é também a tragédia da paixão
por isso que a questão da realização do desejo se e da fidelidade ao desejo que se tornou visível, isto
formula necessariamente numa perspectiva de Juízo é, que se deu a ver. Conhecemos alguns detalhes de
final. (Lacan, 1988 [1960], p. 353) sua história. Após a morte de Édipo e de Jocasta,
seus dois filhos homens, Eteocle e Polinices, se
No texto intitulado A direção do tratamento e assassinaram mutuamente. Creonte, o governante,
os princípios de seu poder, Lacan ainda não não autoriza o sepultamento de um deles, Polinices,
emprega a expressão “desejo do analista”, mas que é considerado traidor das leis do país. Porém
observa que “o paciente não é o único com Antígona considera que todo ser humano tem
dificuldades a entrar com sua quota” na análise, direito à sepultura, porque esta é a continuação do
pois o analista também paga caro: com sua pessoa, nome próprio. Em suas palavras,
suas palavras e seu “juízo mais íntimo” (Lacan,
1998[1958], p. 593). Ele empresta sua pessoa aos Não se trata de acabar com quem é homem como se
fenômenos transferenciais em que é confundido faz com um cão. Não se pode acabar com seus restos
com as figuras imaginárias e reais da história de esquecendo que o registro do ser daquele que pôde
cada analisante; ele tem o dever de interpretar, mas ser situado por um nome deve ser preservado pelo
“essa interpretação, quando ele a faz, é recebida ato dos funerais. (apud Lacan, 1988 [1960], p. 337-
8)
como proveniente da pessoa que a transferência lhe
imputa ser.” (Idem, ibid., p. 597) E onde fica seu
desejo? Na implicação do que ele tem de mais Mas isso não é tudo. Antígona argumenta que,
íntimo, já que não teria outro recurso “para intervir uma vez que seus pais já estão mortos, ela jamais
numa ação que vai ao cerne do ser (Kern unseres poderia ter outro irmão. Ela talvez nem lutasse
Wesens, escreveu Freud): seria ele o único a ficar tanto para enterrar um marido ou um filho, uma vez
fora do jogo?” (Idem, ibid., p. 593) que ela ainda poderia ter outro marido ou outro
filho. Mas são as frases em que Antígona já se
reconhece morta, embora estando viva, que levam
Uma investigação sobre a ética
Lacan a situá-la no espaço “entre-duas-mortes.” Por
um lado, o coro – ou seja, as pessoas que se
Em 1959, Lacan se põe a investigar a ética da emocionam – denunciam sua inflexibilidade, mas
psicanálise em continuidade ao seminário do ano também sua beleza, por outro, sua lamentação só
anterior cujo tema era o desejo e sua interpretação. começa quando Creonte decreta que seu castigo
Novas perguntas são levantadas. O que orienta a consistirá em ser enterrada viva, pois “há muito
ação do analista? Até que ponto ele deve ou não tempo que ela nos dissera que já estava no reino dos
recusar-se a satisfazer a demanda do analisante? mortos, mas desta vez a coisa é consagrada no fato.
Em O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise Seu suplício vai consistir em ser trancada, suspensa,
(1959-60), antes de lançar o termo “desejo do na zona entre a vida e a morte” (Idem, ibid., p. 339).
analista”, Lacan faz uma longa e minuciosa análise O coro enaltece o brilho de Antígona, a beleza
da tragédia Antígona7, de Sófocles. Ele a considera de seu porte enquanto caminha em direção à tumba
referência indispensável à pesquisa sobre o que o onde será encerrada. Todavia este brilho produz um
homem quer e aquilo contra o qual ele se defende. efeito de cegueira, de obscurecimento. Lacan
considera que este efeito de beleza representa a
última barreira antes do encontro do sujeito com a
desejo é a causa do desejo, e esse objeto causa do desejo é o castração. Trata-se da beleza que resulta da relação
objeto da pulsão – quer dizer, o objeto em torno do qual gira a
pulsão” (1964/1985, p. 229). do herói com o limite, pois o efeito do belo no
7
Terceira peça da trilogia que começa com Édipo rei e desejo só acontece quando o raio do desejo foi
prossegue com Édipo em Colono.

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demasiado longe, tão longe que se deu a refração do O desejo do analista será caracterizado também
raio. A personagem trágica de Antígona se situa por Lacan (1964) como desejo de obter a maior
para- além do registro dos bens e da ética diferença possível entre o significante e o
aristotélica da temperança, do meio-termo e da significado, ou seja, entre o que se ouve e o que se
virtude. Ela quer ir além do limite que a vida lê. Três anos depois, na famosa Proposição de 9 de
humana não poderia transpor por muito tempo, outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola, ele
além da Até, isto é, do mais atroz. Ir além do limite será situado na passagem de analisando a analista.
é entrar na zona em que há a possibilidade de Em outras palavras, situado no assim chamado
transformação do humano no inhumano. Por isso, “passe” que corresponde a uma importante
Lacan chega a se perguntar se Antígona não estaria mudança discursiva: do discurso histérico da
perpetuando o desejo incestuoso de seus pais. Então impotência ao discurso do analista, em que não há
responde: lugar para grandes idealizações. É o passe de
analisante a analista, o qual pressupõe que, desde o
Antígona leva até o limite a efetivação do que se início da análise, o desejo do analista estava
pode chamar de desejo puro, o puro e simples desejo presente na linha do horizonte.
de morte como tal. Esse desejo, ela o encarna [...] O Como vimos, Lacan (1958) nos adverte bem
desejo da mãe, o texto faz alusão a ele, é a origem de
tudo. O desejo da mãe é, ao mesmo tempo, o desejo
cedo de que tomar a psicanálise como uma prática
fundador de toda a estrutura [...] é um desejo que visa à “reeducação emocional do paciente” é
criminoso”. ( Idem, ibid., p. 342) desvirtuar a virulência da descoberta freudiana. Só
se ocupa a posição de psicanalista via o desejo do
Ao fim de sua leitura, Lacan conclui que a analista cuja ética não é a mesma do pedagogo.
imagem trágica de Antígona está latente em cada Outra questão crucial é de onde parte a resistência
um de nós, é parte de nossa moral, nós, que em um processo de análise. Ela não vem do
vivemos em um momento histórico cuja expressão analisante, mas do próprio analista, pois é a este
política assim se formula: “Não poderia haver que compete o dever de oferecer um lugar vazio de
satisfação de ninguém sem a satisfação de todos” objetos em seu próprio desejo. O analista não pode
(Idem, ibid., p. 351). No serviço dos bens, desejar que seu analisante escolha esta ou aquela
prossegue Lacan, o limite que nos detém é o profissão, que faça este ou aquele curso, esta ou
primum vivere, isto é, o temor da morte. No serviço aquela opção sexual e assim por diante. Porém,
do belo - neste para-além da dialética hegeliana do deve propiciar o surgimento de um saber que antes
senhor e do escravo – a experiência do desejo se faz estava apenas no inconsciente do analisando, pois o
sempre por meio de algum ultrapassamento do inconsciente é um saber que “não se sabe”, no
limite. É por isso, então, que o analista deve ter um duplo sentido da expressão: um saber não sabido,
desejo advertido. O analista não é parceiro do amor, um saber cujo “se” corresponde ao sujeito
ele não tem amor para dar, mas deve ter desejo, indeterminado.
desde que não seja um desejo impossível. É necessário ainda que o desejo do analista o
situe na via da “douta ignorância”, expressão que
Lacan extrai de Nicolau de Cusa e que se aproxima
O que caracteriza o desejo do analista claramente da recomendação freudiana segundo a
qual é preciso que cada caso seja tomado como se
Alguns anos depois, Lacan volta à mesma fosse sempre o primeiro, caso contrário, o analista
questão, para lembrar mais uma vez que o desejo do não teria como “encaminhá-lo pelas vias de acesso
analista não é um desejo puro, localizando-o no ao saber (simbólicas), que será sempre perpassado
momento da análise em que “pode surgir a pelo não-saber (real).” (Rinaldi, 1992:20) A nosso
significação de um amor sem limites” (1998 [1964], ver, as duas condições propostas por Lacan para
p. 248). Assertiva bastante curiosa, à qual Lacan que haja uma prática analítica – independe de onde
ainda acrescenta que se trata de um amor fora dos esteja o praticante - são justamente o desejo do
limites da lei, o que entendemos como fora da lei analista e a douta ignorância. Elas decorrem, é
edipiana, correspondendo à proposta de que a claro, da análise do analista, da qual se espera a
análise possa sempre ir além do pai, ou seja, além introdução do sujeito na ordem do desejo, ou seja,
do Édipo e de todas as suas conseqüências uma “conversão ética radical.” (Lacan, 1965)
subjetivas, isto é: as inibições sexuais, os desejos
incestuosos, o repúdio à feminilidade em homens e
mulheres e a culpa pela assunção subjetiva de um
crime primordial.

Pesquisas e Práticas Psicossociais 4(2), São João del-Rei, Jul. 2010


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Retornando à relação entre a atenção pertencentes às ciências médicas e psicológicas


psicossocial e a psicanálise para dar conta do impossível – o que, afinal, é seu
ofício – precisa, por esta mesma razão, diluir sua
Concordamos inteiramente com Tenório (2001, especificidade?” Não precisa, nem deveria. Mas o
p. 123) na afirmação de que “se é verdade que a fato é que a noção de clínica ampliada ou clínica
incidência do analítico depende, antes e sobretudo, do cotidiano que incorpora a dimensão do sujeito, o
do desejo e do trabalho dos analistas, é também faz, não raramente, como uma “imprecisa palavra
verdade que certos contextos criam condições mais de ordem de natureza ideológica”.
ou menos favoráveis para que dessa incidência se Não se pode reduzir o tratamento da psicose ou
possam extrair conseqüências mais significativas”. da neurose grave a uma Carta de intenções, sob a
Por um lado é importante ressaltar que a psicanálise alegação de que se estaria trabalhando com a
se interessa pelo trabalho dos CAPS justamente no “singularidade”, a “diferença” ou a
que eles se opõem ao “modelo manicomial” e à “interdisciplinaridade”, menos ainda se deixando
demissão subjetiva que este propicia. Por outro, é levar pelos ideais de autonomia e liberdade que
bom lembrar que a orientação lacaniana que dirige desconhecem “o caráter radicalmente heterônomo
os psicanalistas ao enfrentamento da psicose, de nossa condição” (Tenório, 2001, p. 131).
também os lança para fora das quatro paredes do Entretanto, ao situar o tratamento na referência
consultório, uma vez que é a instituição, e não o permanente à questão da existência, a reforma
consultório, o lugar privilegiado de acolhimento estabelece um ponto de elo entre as diferentes
dos sujeitos psicóticos. Lugar ao qual eles se concepções de sujeito, pelo menos um.
dirigem para encontrar quem lhes possa ajudar a Mas, afinal, quando, em que situações a
vencer a angústia ligada à sensação de um corpo psicanálise vai ao encontro do trabalho que se
sem órgãos ou de órgãos sem função, “coisa pela desenvolve nos CAPS? Ela o faz, por exemplo,
qual se especifica o dito esquizofrênico ao ser quando lembra que “por nossa posição de sujeitos
apanhado sem a ajuda de nenhum discurso somos sempre responsáveis” (Lacan, 1965) ou
estabelecido” (Lacan, 1973/2003, p. 475) quando esclarece que estar no coletivo é participar
Antecipar prognósticos, como também observa de um discurso no qual a política está
Tenório, pode ser apenas uma forma de impor ao inevitavelmente presente. Se a cultura se define
sujeito que nos procura ideais de saúde mental e de como um conjunto de discursos – ou laços sociais -,
bem-estar psicossocial que fecham qualquer os sujeitos são sempre os habitantes provisórios de
praticante, psicanalista ou não, em sua própria um ou outro discurso e a visada de todo e qualquer
lógica, não o abrem à lógica da loucura. Há um discurso, como ensina Lacan (1969-1970), é frear o
risco na junção que a reforma psiquiátrica brasileira gozo e acumular algum saber. Uma mudança de
procura ou procurou fazer entre o sujeito e o gozo equivale a uma mudança de discurso, com
cidadão: o risco de fazer existir o Outro da conseqüências simbólicas, imaginárias e reais.
cidadania como Outro intransigente e absoluto. Em Participar do discurso do analista não significa
linguagem estritamente lacaniana, podemos dizer necessariamente estar em análise há muitos anos,
com Quinet (2006) que significa estar num laço em que aquele que ocupa o
lugar de agente acolhe o outro como sujeito
a inclusão da foraclusão do Nome-do-Pai [ ou defesa dividido, porém capaz de desejar, e funciona como
subjetiva que caracteriza os diferentes tipos de causa para que este deixe cair os ideais que o
psicose] na reforma indica ao trabalhador em saúde assolam e petrificam. Isto pode ocorrer num CAPS.
mental que ele deve estar atento não só ao seu furor
sanandi, mas ao seu furor includenti, ele deve se
precaver contra seu desejo de inclusão do louco nos
Referências
jardins da polis no intuito de retirá-lo do jardim das
espécies da nosografia. Isto significa não exigir dele Amarante, P. (2001). Sobre duas proposições
a todo custo aquilo que é valor fálico em nossa relacionadas à clínica e à reforma psiquiátrica.
ordem social (trabalho, dinheiro, sucesso, In A. Quinet (Org.), Psicanálise e Psiquiatria:
competição, competência etc.), e sim deixá-lo fazer controvérsias e convergências (pp.103-110).
sintoma sem Nom-do-Pai, um sintoma que pode ir Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.
do delírio à arte, passando por todas as artimanhas.
(p. 50)
Altoé, S. (2005). Sobre o termo instituição e as
práticas institucionais. In S. Altoé & M. M.
É o que também lembra Greco (2001, p. 119), Lima, (Orgs.), Psicanálise, clínica e instituição
indagando em seguida: “Se a clínica pode lançar (pp. 72-86). Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.
mão de recursos e discursos distintos daqueles

Pesquisas e Práticas Psicossociais 4(2), São João del-Rei, Jul. 2010


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