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Antonio Lancetti
Paulo Amarante
bre e de superar a natureza de vio lência e exclusão so cial que tais insti-
tuiçõ es representavam.
Fo i num destes ho spitais que Philippe Pinel co m eço u a o perar
um pro cesso de transfo rmaçõ es que deu o rigem à psiquiatria. Po r cau-
sa deste mo tivo seu no me é ho menageado em muito s países dando
no me a ho spitais psiquiátrico s, e ele passo u a ser co nhecido co mo o
Pai da Psiquiatria.
Esta primeira mo dalidade de o rganização da psiquiatria recebeu o
no me de alienismo, em virtude do fato de ter sido um campo de saber
vo ltado para o estudo do que Pinel deno mino u de alienação mental.
Inicialmente, vejamo s o aspecto da refo rmulação do espaço e da fun-
ção ho spitalar. Pinel, cuja fo rmação principal era a de médico — e que
fo i pro fesso r de medicina interna da Faculdade de Medicina de Paris —
co meço u po r retirar do ho spital to do s o s que não eram especificamen-
te enferm o s e a dar-lhes o utro s destino s. Em seu entendim ento , so -
mente as pesso as do entes deveriam ficar no ho spital que, assim, co me-
ço u a ter sua função pro fundamente redefinida. No interio r do ho spital
o s enfermo s passaram a ser separados: expressão po r ele ado tada para
designar a divisão do s do entes de aco rdo co m o s tipo s de enfermida-
des. E nessa ro tina de identificar as pato lo gias, o bservá-las, descrevê-las
minucio samente, classificá-las e separá-las, uma no va fo rma de pro du-
ção e co nstrução do saber e da prática médica co meço u a to mar fo rma,
que virá a desembo car no que atualmente deno minamo s de clínica.
Neste pro cesso de identificação das mo dalidades de do enças, Pinel
dedico u-se especialmente ao que deno mino u de alienação mental, pri-
m eiro co nceito utilizado na m edicina para no m ear o que então era
co nhecido co mo lo ucura. Seu livro , que é um marco na fundação do
saber psiquiátrico , fo i intitulado de Tratado Médico-Filosófico da Aliena-
ção Mental ou Mania, e se to rno u fo nte o brigató ria de co nsultas e estu-
do s do s alienistas e psiquiatras po r lo ngo perío do de tempo .
É curio so o bservar que o termo alienação pro vém do latim alienare/
alienatio, que significa estar fo ra de si, fo ra da realidade. Tem ainda o
sentido de alienígena, isto é, estrangeiro , que po de remeter à idéia de
alguém que vem de fo ra, de o utro mundo , de o utra natureza. Macha-
do de Assis fo i muito sensível e perspicaz ao escrever O Alienista, uma
das mais impo rtantes o bras de no ssa literatura, e que po de ser co nsi-
derada a primeira o bra crítica ao saber médico -psiquiátrico , em que
pese o fato de ser uma o bra “ literária” e não “ científica” !
Nesse co ntexto de reo rganização da o rdem so cial e po lítica, co m a
sup eração d a estrutura m o nárq uica e feud al, co m o ad vento d o
saúde mental e saúde coletiva 19
A EXPERIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA:
DE TRIESTE, NA ITÁLIA A SANTOS, NO BRASIL
que era preciso colocar a doença entre parênteses para que se pudesse tratar e
lidar com os sujeitos concretos que sofrem e experimentam o sofrimento.
Trata-se, aparentemente, de uma o peração simples, mas na prática
ela revela um a grande riqueza, po is o pro fissio nal de saúde m ental,
que antes tinha diante de si um esquizo frênico catatô nico , um aliena-
do , um incapaz de Razão e Co nsciência, enco ntra subitam ente um a
pesso a, co m no me, so breno me, endereço , familiares, amigo s, pro jeto s,
desejo s. Co m a do ença mental entre parênteses o sujeito deixa de ser
reduzido à do ença; surgem assim necessidades o utras, no vas, que an-
tes o s pro fissio nais de saúde mental não co nseguiam vislumbrar. Po r
isso o tratamento também deixa de ser a prescrição do isolamento o u do
tratamento moral. O sujeito , visto em sua to talidade, requer demandas
de trabalho , de lazer, de cuidado s, de relaçõ es e afeto s. Percebe-se nes-
tas intervençõ es epistemo ló gicas e práticas de Franco Basaglia que, a
um só tempo , estão sendo o peradas algumas rupturas co m as bases do
paradigma psiquiátrico , na medida em que estão sendo superado s o s
co nceito s de alienação mental, de isolamento e de tratamento moral, que
nenhuma das pro po stas anterio res de refo rmas psiquiátricas havia al-
mejado realizar.
O pro cesso desenvo lvido em Trieste passo u então a ser um pro -
cesso de co nstrução e reco nstrução de muitas vidas que estavam apaga-
das e reprimidas no s manicô mio s e das muitas vidas que estariam po r
adentrar no s manicô mio s caso não fo sse iniciado este pro cesso . Po r
isso fo ram criadas co o perativas de trabalho s para pesso as antes inter-
nadas, ago ra não mais chamadas de pacientes, mas de usuário s. Po r
que usuário s? Po rque não são apenas pesso as do entes, mas cidadão s
que utilizam um recurso público . Fo ram criadas residências para o s ex-
interno s que não tinham mais famílias o u que, po r inúmeras razõ es,
não teriam co ndiçõ es de habitar co m elas. Fo ram iniciado s vário s pro -
jeto s de natureza cultural, de vídeo , cinema, teatro , o ficinas de arte,
dentre o utro s. Fo ram co nstituídas asso ciaçõ es de familiares e usuário s
para que se pudesse dialo gar co m as demais entidades da so ciedade
civil e co m o pró prio Estado . Enfim, fo ram po stas em ação diversas
po ssibilidades e iniciativas que Franco Ro telli ( 1990) , sucesso r de Basa-
glia em Trieste, deno mino u de estratégias de desinstitucionalização.
Em Trieste o s manicô mio s fo ram fechado s e inteiramente substi-
tuídos po r esta gama de recurso s assistenciais, po lítico s, culturais e so -
ciais. O do ente, que no mo delo anterio r estava restrito às enfermarias
do ho spício , ago ra passava a habitar a cidade co mo o s demais cida-
dão s. E, po r o utro lado , o trabalho dito “ terapêutico ” do s pro fissio -
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nais, que antes se restringia também ao ho spício , e que antes se restrin- ???
gia às atividades de co ntro le e vigilância, características das instituições
totais, o u de tratam ento m édico tradicio nal, co m o adm inistração de
fármaco s o u de terapias bio ló gicas ( eletro co nvulso terapias, lo bo to mias) ,
ago ra se am pliava para a atuação no territó rio . Assim é que surge a
no ção de trabalho de base territo rial, isto é, um trabalho que se desen-
vo lve no co tidiano da vida da cidade, no s bairro s, no s lo cais o nde as
pesso as vivem, trabalham e se relacio nam. O territó rio não é apenas a
região administrativa, mas as relaçõ es so ciais e po líticas, afetivas e ideo -
ló gicas que existem em uma dada so ciedade.
A experiência de Trieste fo i muito impo rtante e desencadeo u um
pro cesso de mudanças em to da a Itália, o nde, em 13 de maio de 1978,
fo i apro vada a Lei 180, co nhecida co mo a Lei da Refo rma Psiquiátrica
Italiana o u Lei Basaglia. Esta é a única lei nacio nal em to do o mundo
que prescreve a extinção do s manicô mio s em to do o territó rio nacio -
nal e determina que sejam co nstituído s serviço s e estratégias substitutivas
ao mo delo manico mial.
Franco Basaglia fo i sensível e capaz de co mpreender as especi-
ficidades e positividades de cada mo mento histó rico da psiquiatria e da
saúde mental. Percebeu que o manicô mio se fez necessário , uma vez
que o fereceu asilo a quem dele necessitasse, assim co mo o fereceu abri-
go e cuidado s a muito s desassistido s, em que pese a fo rma co mo reali-
zo u tais tarefas. Assim, extraiu das experiências de saúde mental co mu-
nitária a estratégia do centro de saúde mental, mas de fo rma diferente:
não co mo serviço s auxiliares o u co mplementares ao mo delo psiquiá-
trico manico mial, mas co mo serviço s efetivamente substitutivo s; co m
funcio namento de 24 ho ras, to do s o s dias da semana, co m o ferta de
leito s para atenção à crise e o utras po ssibilidades de assistência e cuida-
do , co m equipes m ultidisciplinares capazes de atuar não apenas no
interio r do centro de saúde mental, mas no territó rio , nas residências,
nas esco las, praças e lo cais de trabalho . Instituiu também o s pro jeto s de
residencialidade, isto é, a criação de residências o u estratégias o utras de
mo radia para pesso as que, pelo s mais variado s mo tivo s, não tinham
co ndição de co nstruir as pró prias casas. Po r o utro lado , ressignifico u a
idéia da labo rterapia, das o ficinas de ergo terapia, do trabalho co mo tra-
tamento moral e crio u as co o perativas de trabalho que pro duzem cidada-
nia, subjetividades e so ciabilidades nas relaçõ es do s que nelas se envo l-
vem. Co mpreendeu enfim a impo rtância de atuar no territó rio , não co mo
fo rma de expandir a ideo lo gia psiquiatrizante/ psico lo gizante manico mial,
mas, ao co ntrário , co mo estratégia de superação do mo delo manico mial.
saúde mental e saúde coletiva 25
nnn
trano . Talvez fo i essa a razão de ter sido realizada em tempo reco rde.
Em 1989 fo i iniciada a Intervenção ao Ho spital e em 1994 o ho spital
estava fechado e o sistema de saúde mental funcio nando .
Enfim, co m a experiência de Santo s fo i po ssível demo nstrar que
era po ssível cuidar de pesso as co m so frimento mental intenso sem o
co ncurso do s manicô mio s. O ensinamento que devemo s à Revo lução
Santista da Saúde Mental fo i a migração de sua meto do lo gia a o utro s
campo s de atuação : assistência so cial, tratamento de dro gado s, de me-
nino s e m eninas em situação de rua o u de pro stituição , educação e
pro gramas de distribuição de renda.
Mas, além da co ntribuição de Santo s, o certo é que a Refo rma Psi-
quiátrica avanço u significativamente no Brasil: em 1989 havia treze Naps
o u Caps e o itenta mil leito s. Ho je temo s 820 Caps e Naps e 45 mil
leito s psiquiátrico s.
BIBLIOGRAFIA