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Prefácio

Neste caderno de formação, encontraremos a carta de demissão de Frantz Fanon,


guerrilheiro na revolução argelina contra o imperialismo francês.

Atuando na Frente de Libertação Nacional (FLN), Fanon abandona seu cargo


como psiquiatra para lutar na guerra de independência argelina. Suas contribuições em
textos até hoje são uteis para compreender o funcionamento do tecido social de
sociedades dominadas pelos imperialismos europeu e estadunidense, havendo estudado
as pressões realizadas pelo colonialismo na psique humana e as psicopatologias
resultantes.

Fanon, ao escrever essa carta, busca apresentar as contradições na resolução


meramente clínica das aflições mentais, uma vez que o sujeito que adoece não o faz de
forma isolada das condições objetivas com as quais convive. Na realidade, quase
sempre está na própria realidade cotidiana a explicação do sofrimento psíquico, e uma
perspectiva de tratamento individual, embora útil para o alivio dos efeitos mais graves
desse adoecimento, precisa ser realizada em unidade com a luta pela superação das
condições que tornam esse sofrimento tão comum aos explorados.

Temos o conhecimento de que o capitalismo não tem nada à não ser a


exploração cotidiana para oferecer à juventude. Seja empurrando ao endividamento e à
empregos precarizados em jornadas que tornam a conciliação com o tempo de estudo
uma tarefa extremamente cansativa, seja roubando da juventude a perspectiva de
melhora da sua situação no futuro, jogando-nos para o alcoolismo e o consumo abusivo
de outras drogas, seja aplicando medidas de corte nos sistemas de saúde e nas políticas
de assistência social, os filhos e filhas da classe trabalhadora são diretamente atacados
em seus direitos, e isso tem óbvias implicações na nossa saúde mental. Não ajuda
também a lógica individualista do sistema de mercado, agravando ainda mais a situação
dos jovens e oferecendo falsas saídas à todos nós.

No mesmo espírito da carta de Fanon, sabemos que nossa militância é pela


construção de uma sociedade em que esse atentado às condições mínimas de vida e de
saúde não sejam possíveis, muito menos sistemáticos. No sistema capitalista em
decomposição, organizado em torno do imperialismo, não teremos saída para nossas
reivindicações mais básicas. Por isso, organizamo-nos na Juventude Revolução do PT,
para que nossos direitos não sejam travados pela bandeira da manutenção da exploração
Carta ao ministro residente
Frantz Fanon

Sr. Ministro,

A meu pedido e por decreto de 22 de Outubro de 1953, o Sr. Ministro da Saúde Pública
e da População quis pôr-me à disposição do Sr. Governador-Geral da Argélia para ser
designado à um hospital psiquiátrico da Argélia.
Colocado no Hospital Psiquiátrico de Blida-Joinville a 23 de Novembro de 1953, desde
essa data exerço aí as funções de médico-chefe de serviço.

Embora as condições objetivas da prática psiquiátrica na Argélia constituíssem já um


desafio ao bom senso, pareceu-me que se devia ser feito um esforço para tornar menos
abusivo um sistema cujas bases estruturais se opunham cotidianamente a uma
concepção verdadeiramente humanizada.

Durante quase três anos dediquei-me totalmente ao serviço deste país e dos homens que
o habitam. Não poupei nem os meus esforços nem o meu entusiasmo. Nada houve na
minha ação que não exigisse como horizonte o surgimento unanimemente desejado de
um mundo melhor.

Mas que significam o entusiasmo e o cuidado pelo homem, se diariamente a realidade é


tecida de mentiras, de covardias, de desprezo pela humanidade?

De que servem as intenções, se a sua encarnação é tornada impossível pela indigência


do coração, pela esterilidade do espírito, pelo ódio aos nascidos neste país?

A Loucura é um dos meios que o homem tem de se alienar da liberdade. E posso dizer
que, observando este fato, medi com horror a amplitude da alienação dos habitantes
deste país.

Se a psiquiatria é a técnica médica que se propõe permitir ao homem deixar de ser


estranho ao que o rodeia, devo afirmar que o Árabe, estranho permanente no seu país,
vive num estado de despersonalização absoluta.

O estatuto da Argélia? Uma desumanização sistematizada.

Ora, que aposta absurda era querer fazer existir certos valores quando a ausência de
direitos, a desigualdade, o assassínio quotidiano do homem eram erigidos em princípios
legislativos.

A estrutura social que existia na Argélia opunha-se a qualquer tentativa de inserir o


indivíduo no seu lugar de direito.

Sr. Ministro, chega um momento em que a tenacidade se transforma em uma


perseverança mórbida. Então, a esperança deixa de ser a porta aberta para o futuro, e se
torna a defesa ilógica de uma atitude individual contrária à realidade.

Sr. Ministro, os atuais acontecimentos que ensanguentam a Argélia nào são


escandalosos ao estrangeiro. Não são nem um acidente, nem uma ruptura na estrutura.
Devo à verdade dizer que o medo não me pareceu ser o traço dominante dos grevistas.
Muito pelo contrário, havia o desejo inelutável de criar, na inatividade e no silêncio,
uma era nova de paz e dignidade.

Na sociedade, o trabalhador deve colaborar no atual estado das coisas. Mas é preciso
que concorde com a excelência da sociedade vivida. Chega um momento em que o
silêncio se torna mentira.

As intenções hegemônicas da existência individual não condizem com os atentados


constantes aos valores mais básicos.

Há já longos meses que a minha consciência é palco de debates imperdoáveis. E a


conclusão a que chego é a vontade de não se desesperar em relação à humanidade, isto
é, de mim próprio.

A minha decisão é a de não assumir uma falsa responsabilidade de mitigar as doenças


mentais impulsionadas por tal sociedade, sob o pretexto de nada mais haver a fazer.

Por todas estas razões, tenho a honra, Sr. Ministro, de lhe pedir que aceite a minha
demissão e que dê por finda a minha missão na Argélia, com a certeza de toda a minha
consideração.

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