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1
Psicóloga
e
psicanalista,
com
mestrado
e
doutorado
em
Psicologia
Escolar
(IP-‐
USP).
Trabalhou
no
Lugar
de
Vida
–
Centro
de
Educação
Terapêutica,
onde
coordenou
grupos
com
crianças,
entre
outras
funções.
Atualmente,
atende
em
consultório
particular
e
realiza
assessoria
em
escolas.
2
Texto
escrito
a
partir
da
tese
Função
do
semelhante
como
fundamento
do
trabalho
com
crianças
em
grupos
(2018),
sob
orientação
da
Profa.
Dra.
Cristina
Kupfer,
no
Departamento
de
Psicologia
da
Aprendizagem
e
do
Desenvolvimento
Humano
–
IPUSP.
Entre
na
sala
e
começa
a
correr,
contornando
as
paredes.
Pega
dois
bonecos:
Ahh
–
Puft
–
Ahh!
Pego
um
terceiro
boneco
e
tento
me
aproximar:
Ahh!
Ele
solta
seus
bonecos
e
volta
a
correr
pela
sala.
Essa
cena
se
repetiu
inúmeras
vezes
no
início
dos
grupos
com
Eudi,
um
garoto
de
quatro
anos,
com
diagnóstico
de
autismo.
Apesar
de
aceitar
entrar
no
grupo
conosco,
não
permitia
que
participássemos
de
suas
duas
únicas
brincadeiras:
correr
pela
sala
e
colocar
os
bonecos
para
lutar.
Só
se
dirigia
a
nós
para
pedir
algum
brinquedo,
através
de
gestos,
já
que
a
fala
não
estava
estabelecida.
Isso
se
repetia
também
em
casa
e
na
escola,
onde
passava
a
maior
parte
do
tempo
sozinho
no
pátio
ou
escondido
embaixo
de
sua
carteira.
Em
casa,
às
vezes
brincava
de
desenhar,
coisa
que
sua
mãe
e
seu
irmão
mais
velho
também
gostavam.
Eudi
frequentava
uma
EMEI
(Escola
Municipal
de
Educação
Infantil)
de
seu
bairro,
onde
morava
com
os
pais
e
o
irmão
mais
velho.
Tinha
um
histórico
de
otites
e
amidalites
longas
e
reincidentes
durante
os
dois
primeiros
anos
de
vida.
O
grupo,
nesse
momento,
contava
com
outros
três
garotos
de
idades
próximas
e
dois
coordenadores.
Nossos
encontros
eram
semanais
e
com
duração
de
1
hora
e
meia,
no
Lugar
de
Vida.
Os
outros
garotos
do
grupo
também
gostavam
de
desenhar.
Começamos
a
investir
nessa
atividade,
numa
tentativa
de
direcioná-‐los
em
torno
de
algo
em
comum,
que
não
demandasse
a
compreensão
de
regras
ou
a
criação
de
faz-‐de-‐conta,
o
que
era
difícil
para
alguns
deles.
Cada
um
tinha
o
seu
caderno,
disponibilizávamos
canetas
hidrocor,
giz
de
cera,
lápis
e
tinta.
Tínhamos
também
um
caderno
comum
do
grupo,
onde
anotávamos
o
que
tinha
se
passado
naquele
encontro
e
todas
as
crianças
eram
convidadas
a
assinarem,
deixarem
uma
marca
própria.
Páginas
e
páginas
recobertas
por
linhas
coloridas
e
expressivas,
assim
era
o
caderno
de
Eudi
no
grupo.
Na
ausência
de
um
nome
dado
por
ele,
chamamos
seu
desenho
de
“cobrinhas”.
Ele
parecia
sempre
pronto
para
desenhar.
Mas,
novamente,
diante
de
qualquer
tipo
de
aproximação
–
perguntar
o
que
era
o
desenho,
desenhar
junto
com
ele,
pedir
para
mostrar
sua
produção
para
os
colegas
–
éramos
ignorados.
Geralmente,
aceitava
o
convite
para
assinar
o
caderno
do
grupo,
o
que
fazia
também
com
uma
linha,
ou
uma
“cobrinha”.
Eu
gosto
de
gatinho.
O
que
os
golfinhos
comem?
Baleia
começa
com
a
letra
Be.
Tem
bicho
na
sua
casa?
É
assim
que
chega
Felício,
o
novo
integrante
do
grupo.
Um
garoto
de
cinco
anos,
muito
falante
e
apaixonado
por
animais.
Olha,
ele
é
da
minha
escola!
–
diz
o
garoto
ao
ver
Eudi
pela
primeira
vez.
Felício
também
gosta
muito
de
desenhar,
especialmente
animais.
Eudi
não
responde
as
perguntas
de
Felício
mas
percebemos
que
gosta
de
ver
seus
desenhos.
Certa
vez,
pegou
um
deles
(um
garoto
com
rosto,
corpo,
braços,
pernas
e
um
chapéu)
e
riscou
por
cima,
como
que
pintando
o
desenho,
ou
ainda,
apagando-‐o,
já
que
não
conseguia-‐se
ver
mais
nada
depois.
Felício
também
havia
sido
encaminhado
pela
mesma
EMEI
e
trazido
por
sua
mãe,
com
quem
morava.
Ele
não
conhecia
seu
pai,
que
tinha
outra
família,
apesar
de
ter
seu
sobrenome
e
receber
pensão
alimentícia.
A
mãe
conta
que
Felício
recusava
a
comida
da
escola,
alimentando-‐se
apenas
de
produtos
industrializados
(salgadinhos,
balas
e
refrigerantes)
e
da
comida
feita
por
ela.
Na
escola,
ele
não
se
relacionava
com
as
outras
crianças,
não
deixava
que
elas
se
aproximassem
dele.
Ele
gostava
de
enfileirar
os
bichinhos
e,
quando
alguma
criança
se
aproximava,
dizia
que
ela
iria
bagunçar
tudo
e
pedia
para
ela
ir
embora
e
deixa-‐lo
sozinho.
Ele
não
lidava
bem
com
os
limites
e
com
a
frustração,
chorando
por
muito
tempo,
sem
poder
ser
consolado.
No
grupo,
vemos
que
Eudi
vai
aos
poucos
se
aproximando
de
Felício.
Percebemos
que
ele
fica
observando
o
que
o
colega
faz
e,
por
vezes,
tenta
imitá-‐lo.
Essas
situações
se
repetem
diversas
vezes.
Eudi
esperava
Felício
começar
a
brincar
(desenhar
na
lousa,
sair
correndo
na
brincadeira
de
pega-‐pega,
esconder-‐se
na
brincadeira
de
esconde-‐esconde...)
para
então
imitá-‐lo.
Felício
permite
que
seu
colega
se
aproxime,
percebe
que
ele
está
querendo
auxílio
para
aprender
a
brincar
e
aceita
ajuda-‐lo.
Ele
não
afasta
Eudi
como
fazia
com
as
crianças
na
escola.
O
fato
de
Eudi
não
interferir
diretamente
na
brincadeira,
mas
observa-‐lo
e
imita-‐lo,
talvez
tenha
favorecido
a
aproximação
para
Felício.
Eudi
era
um
amigo
que
queria
aprender
com
ele.
Em
um
dos
encontros
do
grupo,
Eudi
está
com
sua
mão
apoiada
na
lousa,
enquanto
desenha
com
a
outra.
Um
dos
coordenadores
faz
o
contorno
dela
e
fala:
Olha,
Eudi!
O
desenho
da
sua
mão!
Ele
fica
muito
entusiasmado
com
a
representação
e
vai
mostrar
para
Felício:
A
mão
do
Eudi!
A
mão
do
Eudi!
Começa
a
pedir
para
fazermos
o
contorno
de
sua
mão
em
seu
caderno,
o
que
ele
pinta
por
cima
com
outra
cor.
Nesse
momento,
também
começa
a
desenhar
algo
mais
próximo
de
uma
figura
humana,
com
olhos,
boca
e
braços.
Sua
fala
também
se
desenvolve.
Começa
a
falar
em
casa
e
no
grupo
para
pedir
e
contar
o
que
quer,
parando
de
se
comunicar
somente
por
gestos.
Na
escola,
a
agitação
e
o
isolamento
diminuem,
passa
a
conseguir
ficar
em
sala,
sentado
na
carteira.
A
professora
repara
que
ele
espera
as
outras
crianças
começarem
a
atividade
para
então
imitá-‐las,
reproduzindo
a
cena
que
também
víamos
nos
atendimentos.
Felício
que
apresentava
grande
dificuldade
com
o
término
do
grupo
(não
queria
ir
embora,
chorava
e
brigava
conosco
quando
dizíamos
que
o
grupo
havia
terminado),
começa
a
lidar
melhor
com
esse
momento,
na
medida
em
que
os
coordenadores
propuseram
um
ritual
de
encerramento
(que
nós
escrevêssemos
no
caderno
coletivo
do
grupo
o
que
havíamos
feito
e
as
crianças
“assinavam”),
acompanhado
por
falas
como:
que
pena
que
o
grupo
terminou!
Na
semana
que
vem
vamos
nos
encontrar
novamente!
Vocês
estão
tristes,
é
chato
mesmo!
Ao
ver
seus
colegas
indo
embora
sem
chorar
longamente,
ainda
que
também
quisessem
ficar
mais
tempo,
Felício
pode
começar
a
se
perceber,
entrar
em
contato
com
suas
dificuldades
e
construir
outros
modos
de
lidar
com
a
frustração.
Apesar
de
brincarem
de
outras
coisas,
o
desenho
continuava
tendo
um
lugar
especial
para
ambos.
Certo
dia,
Felício
estava
desenhando
um
leão
e
Eudi
se
coloca
ao
seu
lado,
reproduzindo
o
mais
próximo
possível.
Entendemos
que
Eudi
está
em
um
movimento
de
alienação,
em
que
toma
Felício
como
modelo
identificatorio
para
adentrar
ao
campo
da
infância.
Parece-‐nos
que
ele
estaria
ocupando
um
lugar
de
representante
do
brincar,
do
ser
criança,
para
Eudi.
Leão
de
Felício
em
azul
e
leão
de
Eudi
em
preto.
Para
Lacan,
a
alienação
e
a
separação
são
movimentos
pendulares
constitutivos
do
sujeito
que
acontecem,
em
diferentes
níveis,
ao
longo
de
toda
a
vida.
O
bebê,
ao
nascer,
passaria
por
momentos
de
alienação
ao
desejo
materno
para
depois
se
separar
dele.
Na
alienação,
a
mãe
seria
uma
representante
do
Outro
para
o
bebê.
Nas
psicoses,
as
crianças
ficariam
presas
em
uma
relação
de
alienação
ao
Outro,
sem
constituir
a
separação.
Disso
decorreria
a
sensação
de
poder
ser
invadido
pelo
Outro
a
qualquer
momento.
As
crianças
com
autismo,
entretanto,
não
viveriam
o
momento
de
alienação
ao
Outro,
os
processos
identificatórios
e
de
inscrição
significante
que
ocorrem
entre
o
bebê
e
a
mãe
no
primeiro
ano
de
vida.
A
não
entrada
na
alienação
desencadearia
outros
efeitos,
como
falhas
na
estruturação
do
estádio
do
espelho,
no
estabelecimento
do
laço
com
o
outro,
na
entrada
da
linguagem,
entre
outros.
No
caso
de
Eudi,
a
procura
dele
por
Felício
poderia
indicar
uma
tentativa
de
construir,
num
segundo
momento,
aspectos
da
constituição
subjetiva
que
ficaram
interrompidos
no
primeiro
ano
de
vida.
Entretanto,
a
posteriori,
tais
processos
não
se
passariam
com
a
mãe
(como
acontece
no
caso
dos
bebês)
mas
poderiam
ser
vividos
entre
uma
criança
e
outra,
em
um
enquadre
de
grupo
terapêutico.
Nesse
sentido,
Felício
seria
para
Eudi
algo
como
um
Outro
da
infância,
indicando-‐o
o
que
é
ser
uma
criança.
Essa
relação
com
Eudi
também
produziu
efeitos
terapêuticos
em
Felício.
Ele
passou
a
permitir
que
as
outras
crianças
do
grupo
se
aproximassem
e
participassem
de
suas
brincadeiras.
Também
começou
a
se
interessar
mais
por
aquilo
que
os
colegas
faziam.
Parece-‐nos
que
através
da
parceria
com
Eudi,
Felício,
sempre
tão
cuidado
por
sua
mãe,
pode
sentir-‐se
cuidando
de
um
outro.
Ao
poder
experenciar
essa
relação
de
cuidado,
de
aprendizado
e
de
brincadeira
com
um
semelhante,
Felício
pode
se
experimentar
em
outra
posição.
Não
era
mais
aquele
que
ficava
somente
com
os
adultos
e
não
tolerava
as
outras
crianças.
Ele
pode
desenvolver
sua
capacidade
de
cuidar
de
alguém
significativo
para
ele,
um
amigo.
Seu
brincar,
antes
muito
rígido,
se
flexibilizou.
Sua
capacidade
de
tolerância
diante
das
frustrações
se
expandiu.
Ele
estava
mais
interessado
pelas
brincadeiras
do
grupo
e
por
seus
colegas.
O
outro
semelhante,
a
outra
criança,
não
era
mais
alguém
que
iria
“bagunçar”
sua
brincadeira
rígida.
No
grupo,
ele
encontrou
um
enquadre
que
permitiu
com
que
ele
entrasse
em
contato
com
suas
dificuldades
e,
a
partir
disso,
desenvolvesse
um
outro
jeito
de
se
relacionar
com
as
crianças,
de
estar
no
campo
da
infância.
Eudi,
ao
primeiro
observar
as
brincadeiras
de
Felício,
para
depois
se
aproximar
e
imitá-‐lo,
parece
ter
colocado
um
tempo
de
espera,
um
ritmo,
que
fez
com
que
Felício
não
se
sentisse
invadido
e
aceitasse
a
parceria.
Com
Eudi,
pudemos
ainda
acompanhar
mais
um
desdobramento
significativo.
Ele
passou
a
desenhar
em
seu
caderno
produções
próprias,
que
não
mais
imitavam
Felício,
indicando
um
movimento
de
separação.
Na
figura
abaixo,
temos
os
personagens
do
filme
Monstros
S.A.,
feitos
e
nomeados
espontaneamente
por
Eudi.
Percebemos
que
ele
também
já
consegue
compreender
melhor
as
brincadeiras
propostas
no
grupo.
Na
escola,
a
professora
relata
que
ele
está
muito
interessado
pelas
letras
do
alfabeto
e
participa
da
maioria
das
atividades,
junto
com
seus
colegas.
Após
o
movimento
de
alienação,
vemos
Eudi
se
separar
de
seu
amigo,
se
apropriando,
tomando
para
si
algo
dessa
experiência.
Por
ter
passado
pelo
movimento
de
alienação
é
que
Eudi
consegue
se
separar
e
produzir
algo
seu.
Por
fim,
temos
o
surgimento
de
uma
nova
assinatura
de
Eudi
em
seu
caderno.
Ele
desenha
um
teclado
e
uma
tela
de
computador
em
marrom
e
assina
seu
nome
em
verde.
Nesse
momento,
Eudi
não
apenas
responde
nossas
perguntas
mas
nos
procura
interessado
em
falar
sobre
suas
produções.
Parece-‐nos
que
o
vínculo
estabelecido
entre
os
dois
garotos,
atravessado
pelas
transferências
com
a
coordenação,
a
partir
do
trabalho
em
grupo,
permitiu
que
ambos
mudassem
sua
posição
no
campo
da
infância.
Tanto
Eudi,
que
apresentava
um
fechamento
de
tipo
autístico,
como
Felício,
que
tinha
dificuldades
no
contato
com
as
outras
crianças
e
um
brincar
rígido
e
não
espontâneo,
puderam
se
abrir
para
o
outro
de
forma
espontânea
e
prazerosa.
Isso
indica
a
existência
de
uma
dimensão
que
está
além
de
um
agrupamento
de
crianças
ou
de
profissionais.
Os
efeitos
terapêuticos
observados
e
a
análise
de
seus
processos
demonstram
que,
assim
como
indicam
os
autores
da
psicanálise
de
grupos,
há
uma
dimensão
inconsciente
operando
nos
grupos
e
nas
instituições,
a
partir
de
alianças
inconscientes.
Eudi
e
Felício
teriam
produzido
algum
tipo
de
pacto
em
que
um
é
cuidado/ensinado
enquanto
o
outro
cuida/ensina.
Puderam
estabelecer
esse
tipo
de
aliança
e
se
beneficiaram
mutuamente
dele.
Entretanto,
puderam
ressignificá-‐lo
quando
ele
não
lhes
servia
mais.
Dito
de
outro
modo,
a
partir
de
uma
perspectiva
lacaniana,
o
efeito
aqui
apontado
pode
advir
do
fato
de
que
ambas
as
crianças
participam
de
um
mesmo
campo
de
linguagem,
e
extraem
dos
discursos
ali
em
circulação
o
material
significante
que
lhes
permite
criar
esse
pacto
e
organizar-‐se
em
torno
dele.