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Vejamos, a seguir, um trecho do famoso poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Mello Neto:
No famoso poema, João Cabral de Mello Neto conta a história de Severino, um retirante do interior da Paraíba que foge da seca, em
direção a Recife, no litoral de Pernambuco. Lá, Severino acredita que terá uma vida melhor, com melhores condições.
Esse trecho reproduzido se refere ao final da viagem de Severino, já chegando em Recife. Mas, ainda assim, mesmo estando na
capital pernambucana, Severino encontra morte e pobreza, da mesma maneira que via no interior do sertão. Decepcionado e
desiludido, o trecho reproduzido sugere ao leitor que Severino irá se suicidar para dar fim a sua sina.
Esse sonho desfeito de Severino, escrito pelos idos dos anos 50 do século passado, ainda se mostra atual. Traduzido para o mundo
do Direito, traz os desafios que a dignidade humana (ou sua falta ou desrespeito) coloca para as sociedades contemporâneas, e em
especial a brasileira.
Ela é vista até mesmo com um valor suprajurídico, isto é, para além do Direito e da Constituição, já que seria a dignidade um valor
ínsito do ser humano. E, desta maneira, a dignidade trata diretamente da essência do ser humano. É, portanto, esse seu caráter
supraconstitucional que permite, inclusive, que possamos sustentar sua efetividade independentemente da sua positivação (isto é,
seu reconhecimento pelo direito, através de uma norma jurídica, quer seja ela lei ou mesmo uma norma constitucional).
Se pensarmos, por exemplo, nos dramas humanos da atualidade, como entre tantos outros, a questão dos refugiados de guerra ou a
fome nos países africanos, salta aos olhos a crise humanitária que vivenciamos e destacamos a importância da valorização e
proteção da dignidade humana como bússola para enfrentarmos essas calamidades que assolam o mundo.
Assim, falar de dignidade humana é falar do outro, é falar de direitos, é falar de democracia, é falar de cidadania.
Para as sociedades atuais, a dignidade da pessoa humana coloca uma série de desafios a serem enfrentados, assegurando a todas as
pessoas uma vida decente: com respeito, igualdade e liberdade, com acesso aos bens necessários para a realização do projeto de vida
de cada um e que leve, enfim, à felicidade. Assim, a dignidade se articula com a própria possibilidade de existir com decência no
mundo para nele viver em plenitude.
No entanto, a vida em sociedade é marcada por desigualdades materiais e carências sociais, pois, ainda que expresso de forma
simplista, há mais pessoas do que bens disponíveis, isto é, não é possível o acesso igual de todos a todos os recursos disponíveis: aí
se coloca o dilema da dignidade humana.
Fonte: Anton_Ivanov / Shutterstock
São as noções de Kant que fixaram as bases da compreensão moderna da dignidade humana fixando sua relação com os direitos
humanos e que até hoje se colocam como, de certa forma, pertinentes.
A ideia de finalidade, isto é, o homem, por ser dotado de razão, é um fim em si mesmo.
A ideia de autonomia, isto é, a vontade humana deve estar direcionada para o dever de estabelecer parâmetros de moralidade que
sirvam para todos, inclusive para ela mesma, não porque se busca uma vantagem futura, mas sim porque esta é a dignidade do ser
dotado de razão.
A problemática conceitual e sua relação com os direitos
humanos
Em uma postagem, de março de 2015, no Blog JOTA, Daniel Sarmento, diz que:
“uma rápida pesquisa no site do STF mostra que, sob a égide da Constituição de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana
foi explicitamente invocado em nada menos que 260 acórdãos, 2.298 decisões monocráticas, 79 decisões da Presidência, 9 questões
de ordem e 3 repercussões gerais. Os temas abordados pelas decisões são os mais variados, indo da vedação de denúncias criminais
genéricas à união homoafetiva; da impossibilidade de realização compulsória do exame de DNA ao aborto de fetos anencéfalos; das
políticas de ação afirmativa à criminalização da violência doméstica”.
Assim, dignidade humana quer (e pode) dizer respeito a muitas coisas diversas, em razão do sentido que lhe é atribuído e dos
interesses que se busca preservar ou defender quando a ela recorremos.
Entretanto, ainda que a dignidade humana possa ser etiquetada como uma cláusula aberta, podemos fazer aqui alguns acordos
quanto ao seu sentido.
Para nossa disciplina, adotaremos o conceito dado por Ingo Wolfgang Sarlet que articula a ideia de respeito a todos os seres
humanos, independentemente de suas qualidades. Esse respeito é exigido do Estado e da sociedade como um todo, materializando-
se em um feixe de direitos e deveres fundamentais que asseguram uma existência minimamente decente, (como, por exemplo,
acesso ao saneamento básico, à água potável, dispor de alimentação adequada, etc.) que permita ao ser humano decidir os rumos de
sua vida, assegurando sua felicidade e participação na sociedade.
Reconhece-se que a dignidade é um princípio fundamental que emana de todos os humanos, desde a concepção no útero materno,
não se vinculando e não dependendo de atribuição de personalidade jurídica ao seu titular para seu reconhecimento.
Aqui, neste ponto de nossa disciplina, não aprofundaremos a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais.
Assim nesta aula, consideraremos os dois como sinônimos, apesar de haver uma distinção entre eles, especialmente, no que tange a
sua esfera de incidência:
Desse modo, quer sejam direitos humanos ou direitos fundamentais, ambos emanam, decorrem da dignidade humana. Podemos,
então, dizer que dignidade é um critério unificador, ao qual todos os direitos humanos/fundamentais se reportam, em maior ou
menor grau de adesão ou concretização.
Por outro lado, também se discute se esses direitos poderão ser relativizados, ou não, na medida em que nenhum direito ou princípio
se apresenta de forma absoluta, especialmente quando estudamos o conflito ou colisão entre direitos e suas formas de resolução.
Por exemplo, em nome do direito à intimidade e privacidade é possível que se proíba a circulação de uma reportagem jornalística?
Esse é um tema de muita relevância e também delicado.
A relação da dignidade humana com os direitos humanos/fundamentais gera uma dupla obrigação para o Estado quanto ao que dele
se pode exigir: uma de caráter negativo e outra de aspecto positivo.
CARÁTER NEGATIVO
DIMENSÃO POSITIVA
A dignidade da pessoa humana, ao ser incorporada à ordem normativa de um país, passa a ostentar um aspecto jurídico que lhe dá
todos os atributos que a norma jurídica ostenta, deixando de ser apenas uma indicação ética ou moral cuja adesão do sujeito depende
apenas de sua consciência.
Para comentar este artigo trazemos novamente a contribuição de Ingo Wolfgang Sarlet:
“Consagrando expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do
nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), nosso Constituinte de 1988 [...] além de ter tomado uma
decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado,
reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano
constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”. (SARLET, 2010: 133)
Em outras palavras, é o Estado que passa a servir ao cidadão, como instrumento para a garantia e promoção da dignidade das
pessoas individual e coletivamente consideradas.
Além desse artigo, o princípio da dignidade se encontra previsto de modo expresso ou implícito ao longo do texto constitucional,
reforçando a ideia de fundamento, sendo a dignidade humana o eixo valorativo de nosso Estado e direito.