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“Darrin Patrick é um amigo dos plantadores de igrejas.

Ele é amplamente conhe-


cido como um líder forte e bom pensador no movimento de plantação de igrejas da
atualidade. Neste livro, Darrin combina compreensão bíblica, percepção teológica
e sabedoria pastoral sobre o que é necessário para plantar uma igreja missional. Se
você está plantando uma igreja ou pensando em fazê-lo, este livro vai ajudá-lo a ver
se está preparado com a mensagem e para a missão.”
Ed Stetzer, www.edstetzer.com; Coautor de
Viral churches: helping church planters become movement makers.

“Todos já lemos livros sobre plantação de igrejas e movimentos de plantação de


igrejas. Este livro é sobre o plantador de igreja [...] suas qualificações, sua teo-
logia e seu caráter. Não se engane, Darrin Patrick cobre o terreno todo no que
diz respeito a ser um plantador de igreja bem-sucedido no século 21. Encontre
o homem certo, indo na direção certa, com a mensagem certa e você terá uma
combinação de alto impacto para o reino de Deus. Esta é uma abordagem de
iniciar novas igrejas centrada em Cristo e no evangelho.”
Bill Hornsby, Presidente da Association of Related
Churches, Birmingham, al

O plantador de igreja: o homem, a mensagem, a missão é uma obra magnífica. Em


Darrin Patrick estão combinados a mente de um teólogo meticuloso, o coração
de um pastor compassivo e a paixão de um cristão missional. Como alguém
com a enorme responsabilidade de treinar plantadores de igreja num seminário,
tenho certeza de que este será um livro obrigatório para os que ensinamos e
enviamos para penetrarem a perdição nas cidades não alcançadas e negligencia-
das do nosso país e do mundo. Obrigado, Darrin, por esta obra de amor. Você
prestou um serviço valioso ao corpo de Cristo.”
Daniel L. Akin, Presidente do Southeastern
Baptist Theological Seminary, Wake Forest, nc

“O plantador de igreja vem do coração de um homem real compartilhando o


evangelho real com base numa experiência real na liderança da igreja de Cristo.
Convincente, útil, auspicioso.”
Bryan Chapell, Presidente do Covenant Seminary;
Autor de Christ-centered preaching e Christ-centered worship.

“Se você foi chamado para plantar igrejas, Darrin Patrick cativa você. Melhor,
ele sabe o que é necessário para conectar você com o evangelho, o evangelho
com a igreja e a igreja com a missão. Profundamente perceptivo; é um acampa-
mento de treinamento em formato impresso. Se Deus alistou você, leia-o, e que
comece o treinamento!”.
Dave Harvey, Autor de Rescuing ambition e ministro de plantação
de igreja e cuidado pastoral da Sovereign Grace Ministries

“Meu novo amigo, Darrin Patrick, proporciona um olhar perceptivo sobre o


privilégio e o chamado de ser um plantador de igreja. Como alguém apaixonado
por fazer a igreja de Deus crescer, recomendo este livro para cada pastor e plan-
tador de igreja. Se você espera plantar uma igreja para ampliar a fama do nome
de Jesus Cristo, leia este livro antes de começar.”
James MacDonald, Pastor Coordenador do Harvest
Bible Chapel; Fundador do Harvest Bible Fellowship
“Eu amo este livro porque eu amo plantadores de igreja e sei que este livro vai
ajudá-los a cumprir o seu chamado. Também acho ótima essa maneira direta
em que Darrin escreve. Este livro não é uma torre de marfim. Foi escrito por
alguém que tem algumas cicatrizes da batalha porque esteve nas trincheiras da
plantação de igrejas.”
Mark Batterson, Pastor Coordenador da National
Community Church, Washington, dc

“Darrin consegue atravessar um denso emaranhado para nos dar uma percepção
melhor do que é mais importante na iniciação de uma nova obra — uma com-
preensão clara de uma comunidade funcionando segundo os padrões bíblicos e
conduzida por alguém apaixonadamente comprometido com Jesus. Esta é uma
obra robusta, excelente, que vai além de estratégias pragmáticas e apresenta
princípios que servem em qualquer contexto. Estou empolgado com a ideia de
um movimento de líderes que estejam dispostos a colocar em prática os princí-
pios fundamentais de O plantador de igreja e iniciar igrejas que honrem a Deus
e compartilhem a reputação dele!”
Jud Wilhite, Autor de Eyes wide open; Pastor Coordenador da
Central Christian Church, Las Vegas, nv

“Darrin Patrick entende o ministério. Ele sabe que não é uma carreira para aqueles
entre nós que estão tentando fazer alguma coisa para Deus. É um chamado que
só pode ser cumprido fielmente quando edificado sobre o fundamento das normas
das Escrituras. Não é somente um excelente livro para qualquer pessoa envolvi-
da em plantação de igreja, mas também um excelente livro para qualquer pessoa
envolvida no ministério pastoral. Este livro vai ajudar você (e sua equipe) a manter
a vida, a mensagem e a missão alinhadas com a visão e o chamado de Deus.”
Larry Osborne – Pastor da North Coast Church, Vista, ca

O plantador de igreja vai muito além de um manual de implantação de igrejas;


é uma reflexão que parte da motivação à prática, passando pelo coração do
missio­nário e por sua finalidade maior. É uma leitura indispensável para quem
ama e pratica a grande comissão. Estou certo de que vai dar novas cores ao
assunto e mudar a visão de muitos — como mudou a minha.
Maurício Zágari – Jornalista, teólogo, autor do premiado livro
O Enigma da Bíblia de Gutemberg, 2011) e editor.

“Este livro é uma arma. O plantador de igreja é uma das peças mais importantes
do instrumental de que um plantador de igreja (ou aspirante a qualquer posição
de liderança na igreja) pode dispor. Darrin Patrick escreve com base em sua
convicção bíblica e experiência comprovada, não em suas preferências pragmá-
ticas. Confio em Darrin. Confio no que ele escreveu aqui. Espero que este livro
chegue às mãos de homens em todo o mundo.”
Justin Buzzard, Plantador de igreja, Phoenix, az; blogger, BuzzardBlog

“Darrin Patrick fez um trabalho extraordinário em detalhar o nosso chamado,


não somente como plantadores de igreja, mas também como pastores e homens
de Deus. Quer você esteja planejando plantar uma igreja, quer seja pastor há
décadas, eu só posso lhe recomendar entusiasticamente este livro.”
Matt Chandler, Pastor Coordenador da The Village Church, tx
DARRIN PATRICK

O
PLANTADOR
DE
IGREJA
O homem, a mensagem, a missão

TRADUÇÃO
DANIEL HUBERT KROKER
Copyright ©2010, Darrin Patrick
Título original: Church Planter: the man, the message, the mission
Traduzido a partir da primeira edição publicada pela Crossway,
ministério de publicações da Good News Publishers
1300 Crescent Street – Wheaton, Illinois, 60187 EUA.
1a edição: 2013
Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos
reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA,
Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970
www.vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br
Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos,
xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de
dados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 978-85-275- 0532-1


Impresso no Brasil | Printed in Brazil

SUPERVISÃO EDITORIAL
Marisa K. A. de Siqueira Lopes
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Valdemar Kroker
REVISÃO
Thomas Neufeld Lima
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Sérgio Siqueira Moura
REVISÃO DE PROVAS
Ubevaldo G. Sampaio
Fernando Pires
DIAGRAMAÇÃO
SK Editoração
CAPA
Eduardo Mano

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Patrick, D.
O plantador de Igreja / D. Patrick ; tradução Daniel
Hubert Kroker. — 1. ed. — São Paulo: Vida Nova, 2013.
Título original: Church Planter: the man, the message,
the mission
1. Evangelização 2. Igreja – Crescimento
3. Missões – Teoria 4. Novas igrejas I. Título.

13-02330 CDD-254.1
Índices para catálogo sistemático:
1. Igrejas: Plantio: Cristianismo 254.1
2. Plantio de igrejas: Cristianismo 254.1
Sumário

Agradecimentos.....................................................................................................006
Prefácio de Mark Driscoll.................................................................................007
Introdução: Por que focar no homem?......................................................009

O HOMEM
1 Um homem resgatado..............................................................................027
2 Um homem chamado...............................................................................037
03 Um homem qualificado............................................................................055
04 Um homem dependente ........................................................................075
05 Um homem habilidoso.............................................................................087
06 Um homem que pastoreia ...................................................................103
07 Um homem determinado........................................................................121

A MENSAGEM
08 Uma mensagem histórica......................................................................137
09 Uma mensagem que resulta em salvação ................................149
10 Uma mensagem centrada em Cristo .............................................167
11 Uma mensagem que expõe o pecado..............................................185
12 Uma mensagem que estilhaça os ídolos.......................................199

A MISSÃO
13 O cerne da missão: compaixão...........................................................223
14 A casa da missão: a igreja....................................................................233
15 Os meios da missão: contextualização .........................................249
16 As mãos da missão: o cuidado...........................................................268
17 A esperança da missão: transformação da cidade.................288
Agradecimentos

OQ PLANTADOR
uero agradecer a meu pai por ser o primeiro homem na minha
vida e a minha piedosa mãe os quais eu tanto queria que esti-

DE IGREJA
vessem vivos para ler este livro.
Também quero agradecer à diretoria e aos integrantes do
ministério Atos 29, cuja coragem e fé inspiraram as palavras que
aqui estão escritas.
Sou grato aos presbíteros e obreiros da igreja The Journey que
serviram e sofreram por nossa igreja local para que eu pudesse
escrever.
Além disso, sem o apoio de Amie, minha esposa piedosa e
temente a Deus, e de nossos quatro filhos, isso não teria tido a
mínima chance de acontecer.
Finalmente, glória a Jesus, que me salvou e me chamou para
ele e para a sua missão por meio da igreja local em favor do mundo.

Para continuar conectado com Darrin,


visite PastorDarrin.com.
Prefácio

C onheci Darrin Patrick no primeiro acampamento do ministé-


rio Atos 29 que realizamos para avaliar e treinar plantadores
de igrejas em potencial. Esse foi um momento providencial e cen-
tral para mim e para outros plantadores de igrejas.
Desde aquele dia, Patrick se tornou, pela graça de Deus, um
plantador de igreja bem-sucedido, com um vigoroso ministério
em St. Louis, Missouri, e um ímã para os jovens plantadores no
país todo e no mundo inteiro. Em grande parte devido à sua lide-
rança, o ministério Atos 29 testemunhou trezentas igrejas sendo
plantadas nos Estados Unidos e em muitos outros países.
Em meio a tudo isso, Darrin se tornou um amigo querido.
Pude vê-lo amar sua esposa com amor profundo, servir seus filhos
com fidelidade, pastorear sua igreja com zelo e pregar o evangelho
com paixão, e passei a amá-lo grandemente. Os grandes líderes
são raros, e mais raros ainda, os grandes líderes de líderes. Darrin
é ambas as coisas.
Em sua vida, ele enfrentou dificuldades como a doença, um
aborto espontâneo e os mais ferozes críticos religiosos, e tudo isso
o tornou cada vez mais desejoso de se arrepender de seus pecados,
servir humildemente e ajudar os outros. Em resumo, ele é um
pastor de pastores, com as cicatrizes da batalha e os despojos da
vitória, um homem que conquistou o direito de ser ouvido quanto
às questões que aborda neste livro.
Quando chegou a hora de um dos plantadores do Atos 29
escrever o primeiro livro sobre plantação de igrejas, fazia sentido
que fosse Darrin a escrevê-lo, porque tantos líderes de denomi-
nações e de redes de igrejas veem nele uma fonte confiável de
8 O plantador de igreja

conselhos sábios, centrados no evangelho, enraizados na Bíblia e


focados em Jesus. Fico muito empolgado em ver este livro final-
mente sendo publicado. Creio que Deus o usará para jogar mais
lenha no fogo da plantação de igrejas, levantar muitos outros
plantadores, salvar alguns plantadores de sua própria insensatez
e, pelo poder do Espírito Santo, ver mais pessoas transformadas
adorando a Jesus, que é o que realmente importa quando o assun-
to é plantar igrejas.

Mark Driscoll
Pastor de pregação e teologia da Mars Hill Church.
Fundador e responsável pela visão do ministério Atos 29
Introdução

Por que focar no homem?

E stou ciente de que perdi a atenção de muitos de vocês antes


mesmo de começar ao usar a palavra “homem” no subtítu-
lo deste livro. Por que eu excluiria mais da metade da popu-
lação com um foco tão limitado? Por que motivo eu seria tão
patriarcal e chauvinista? Por que eu reforçaria estereótipos sobre
quem pode pertencer ou não ao ministério de tempo integral?
Antes de fechar o livro achando que se trata apenas de mais uma
promoção do cristianismo “masculino”, leia esta introdução. A
minha “loucura” tem razão de ser. Há uma razão para este livro
ser escrito de homem para homens e tratar do tipo de homem
necessá­rio para proclamar o evangelho e liderar a igreja de Deus
em um mundo destruído. Em suma, adoto este foco porque
estamos enfren­tando uma crise cultural e uma crise teológica
que precisam ser abordadas.

A crise cultural
Vivemos em um mundo repleto de homens que prolongaram a
adolescência. Não são nem meninos nem homens. Eles vivem
suspensos, por assim dizer, entre a infância e a idade adulta, entre
crescer e já ter crescido. Chamemos esse tipo de homem de home-
nino, um híbrido de homem e menino. O homenino é imaturo
como um adolescente, porque todo um nicho foi criado para que
ele viva nas paixões da juventude. A cultura à nossa volta não ape-
nas tolera esse comportamento, mas o encoraja e estimula (pense
10 O plantador de igreja

em revistas masculinas como, p. ex., Maxim [em inglês] ou fil-


mes como Penetras bons de bico). Esse tipo de homem está em
toda parte, inclusive na igreja, e até mesmo, assustadoramente, no
ministério vocacional.
O homenino pode ser uma realidade alarmante na igreja, mas
ele é a melhor coisa que já aconteceu para a indústria dos videoga-
mes. Quase metade (cerca de 48%) dos homens americanos entre
18 e 34 anos jogam videogame todo dia — por quase três horas.1 O
consumidor médio de jogos de videogame tem 27 anos. Em 2005,
95% dos consumidores de jogos de computador e 84% dos de
jogos de console tinham mais de 18 anos.2 O jogo Halo 3 faturou
mais de três milhões de dólares nos eua na primeira semana,3 e
mais de um milhão de pessoas jogou Halo 3 no Xbox Live nas pri-
meiras vinte horas após o lançamento do jogo.4 Espantosamente,
75% dos “chefes de família” americanos jogam jogos de computa-
dor e videogame.5
Pode ser preocupante ver como o homenino gasta o seu
dinheiro, mas é assustador ver como ele se relaciona com as
mulheres. Basta acompanhá-lo até a “balada” para ver o que ele
pensa sobre o sexo oposto e o que espera dele. Mais uma vez, as
estatísticas contam a história.

1
Cf., de Kay S. Hymowitz, “Child-Man in the Promised Land”. Esse artigo,
do qual me vali ao longo deste capítulo, pode ser acessado em http://www.city-
journal.org/2008/18_1_single_young_men.html.
Depois de observar que o tempo médio gasto em jogos de videogame pelos
homens na faixa dos 18 aos 34 anos é de duas horas e quarenta e três minutos
por dia, Hymowitz sarcasticamente acrescenta: “Isso é 13 minutos a mais do que o
tempo gasto pelos jovens na faixa dos 12 aos 17, que ao que tudo indica têm mais
responsabilidades do que a turma atual dos vinte e tantos”.
2
Ver http://www.city-journal.org/2008/18_1_single_young_men.html.
3
Scott Hillis, “Microsoft says ‘Halo’ 1st-week sales were $300 mln”, Reuters,
4 de outubro, 2007.
4
Paul McDougall, “Halo 3 sales smash game industry records ”, Information
Week, 27 de setembro, 2007.
5
Ver http://www.seriousgameseurope.com/index.php?option=com_frontpag
e&Itemid=1&limit=4&limitstart=44. [Mantivemos a indicação da fonte, apesar de
o site não mais estar disponível na Internet. N. do E.]
Por que focar no homem? 11

Há 9,7 milhões de americanos vivendo com um companhei-


ro não casado do sexo oposto, e 1,2 milhão de americanos vivendo
com um companheiro do mesmo sexo.6 A cada segundo são gastos
US$3.075,64 em pornografia,7 28.258 usuários da internet aces-
sam conteúdo pornográfico8 e 372 usuários digitam termos de
busca adultos em sites de busca.9 A cada 39 minutos, um novo
vídeo pornográfico é produzido nos Estados Unidos.10
Nos Estados Unidos, 13 mulheres são estupradas a cada dez
minutos (1,3 por minuto). Isso resulta em 78 estupros por hora,
1.872 estupros por dia, 56.160 estupros por mês e 683.280 estu-
pros por ano.11 Uma em cada três americanas sofrerá algum tipo
de agressão sexual ao longo da vida.12 Os Estados Unidos têm o
maior índice de estupro entre os países que publicaram estatís-
ticas sobre esse problema. Ele é quatro vezes maior do que na
Alemanha, treze vezes maior do que na Inglaterra e vinte vezes
maior do que no Japão.13
Infelizmente, hoje muitas jovens desistiram de tentar encon-
trar o “cara certo”. Elas começam a se dar conta da dura realidade
de que provavelmente terão de procurar um “cara mais ou menos”.
O homenino é bom em se vender como homem, mas a realidade
é que ele não passa de um projeto de homem. O homenino não
costuma gostar da verdade absoluta, mas prova a existência dela
em sua própria degeneração pessoal contínua, evidenciada em
comportamentos dignos de garotos do ensino médio e em suas

6
U.S. Census Bureau, 2000; http://usattorneylegalservices.com/divorce-
statistics.html.
7
Ver http://www.familysafemedia.com/pornography_statistics.html.
8
Ibid.
9
Ibid.
10
Ibid.
11
Ver http://oak.cats.ohiou.edu/~ad361896/anne/cease/rapestatisticspage. html.
[Mantivemos a indicação da fonte, apesar de o site não mais estar disponível na
Internet. N. do E.]
12
Ibid.
13
Ibid.
12 O plantador de igreja

consequências. O fato de que assumir as responsabilidades de


marido e pai transforma o menino num homem é uma realidade
transcultural, mas o homenino não gosta de responsabilidades, e
por isso prolonga sua adolescência o tanto quanto for humana-
mente possível.14 Ao adiar a constituição de uma família, que é
em muitas culturas o rito de passagem para a idade adulta do
homem, o homenino pode se concentrar de forma exclusiva e
suprema em si mesmo.15
Assim como o homenino adia a vida adulta, ele também adia
o casamento. Por que se preocupar com esposa e financiamento
da casa própria quando você pode continuar morando com os
pais, mesmo que numa edícula nos fundos da casa, jogar videoga-
me o dia inteiro, participar de torneios esportivos à noite e passar
o fim de semana indo de bar em bar? Hymowitz observa que,
em 1970, 69% dos homens brancos de 25 anos e 85% dos de 30
estavam casados; em 2000, esses números caíram para meros 33%
e 58%, respectivamente.16 E os dados sugerem que essa tendên-
cia não está diminuindo. Acho que esse é um dos motivos pelos
quais os jovens do sexo masculino adoram assistir a lutas de ufc.
Eles se projetam e se enxergam nesses “super-heróis”, homens
que são tudo aquilo que eles não são: incrivelmente disciplina-
dos, corajosos diante dos riscos e genuinamente respeitados pelos
pares. É como se assistir a homens de verdade em perigo mexes-
se na química cerebral responsável por aquilo que chamamos de
masculinidade. Curiosamente, a testosterona e a adrenalina que
encorajam os homens a ir atrás de perigo e risco raramente são
aproveitadas para propósitos nobres, como o casamento para a
vida toda e a criação de filhos. Em vez disso, o homenino se con-
tenta com a realidade virtual e os relacionamentos virtuais.

14
Hymowitz, “Child-Man in the Promised Land”.
15
Ver David Gilmore, Manhood in the making: cultural concepts of masculinity
(Binghamton: Vail-Ballou Press, 1990), p. 41-2, 64.
16
Hymowitz, “Child-Man in the Promised Land”.
Por que focar no homem? 13

Alguns homens cansam de ficar se masturbando,17 ou de


ficar segurando o controle do videogame ou o controle remoto,
preferindo então participar do mundo real, em torneios espor-
tivos, incluindo até mesmo o jogo infantil “kickball”.18 Talvez
um dos principais catalisadores do amor desses jovens pelos
esportes recreativos seja o fato de eles replicarem o desafio e
a competitividade que estão seriamente ausentes em sua vida
pessoal, profissional e espiritual. Certo autor chamou os espor-
tes de equipe de “um substituto civilizado para a guerra”,19 o
que explicaria por que tantos homens só parecem despertar
emocionalmente em seu íntimo e se sentir socialmente conec-
tados exteriormente quando estão com seus “companheiros de
guerra de fim de semana”. Ser um menino adulto se tornou uma
tendência popular.20
A jornada masculina que vai da infância à maturidade con-
siste em grande parte na transição da fase em que o indivíduo lida
com a vida por meio de um envolvimento físico, que inflige dor,
para a fase em que ele passa a lidar com a vida de uma maneira
emocional, absorvendo a dor emocional e superando-a por meio
da perseverança.21 Os meninos precisam aprender a usar sua força
física de maneira mais passiva do que ativa à medida que progri-
dem rumo à maturidade e se tornam o que David Gilmore chama
de “homens de verdade”. Os homens de verdade “dão mais do que

17
De acordo com um estudo do Kinsey Institute sobre as práticas sexuais ame-
ricanas, conduzido há quase sessenta anos, 92% dos homens americanos de todas as
faixas etárias após a puberdade informaram que se masturbavam regularmente. Ver
http://www.teenhealthfx.com/answers/Sexuality/1056.html.
18
De acordo com a Associação Mundial de Kickball Adulto (waka), o kick-
ball adulto autorizado já conta com mais de 700 times em 18 estados, com mais de
17.000 jogadores registrados. A waka tem mais de 30 empregados em tempo inte-
gral e é um negócio de um milhão de dólares por ano. Ver http://www.kickball.com.
19
John Carroll, citado em Leon J. Podles, The Church impotent (Dallas:
Spence Publishing, 1999), p. 168.
20
Para evidências disso, ver http://www.rejuvenile.com.
21
Podles, The Church impotent, p. 43.
14 O plantador de igreja

tomam [...] são generosos, inclusive ao ponto do sacrifício”.22 Ser


homem é ser firme, mas também amoroso.
Tenho três filhas lindas. Elas não só roubaram o meu cora-
ção, mas parece que andam com ele pra lá e pra cá, atirando-o
umas às outras como se ele fosse um brinquedo enquanto riem
de mim, porque jamais conseguirei recuperá-lo das mãos delas!
Mas também tenho um filho, Drew, e devido à minha consciência
aguda do fenômeno dos homeninos, com o qual eu lido como pas-
tor, sei que a tarefa de criar um homem de Deus caiu em minhas
mãos. Assim como todos os pais com aspirações semelhantes,
minha única esperança é o Espírito Santo. Assim, recentemente
escrevi uma pequena oração que reflete o tipo de homem de que
precisamos. Drew e eu fazemos essa oração quase toda noite. É
uma oração para ele e para mim:

Deus, faça de mim um homem inabalável, mas de coração terno.


Faça de mim um homem firme e amoroso. Faça-me firme para
que eu possa encarar a vida. Faça-me amoroso para que eu possa
amar as pessoas. Deus, faça de mim um homem.

O que quero dizer com tudo isso é que temos duas gera-
ções de homens que não foram criados por verdadeiros homens,
e o resultado é uma adolescência masculina prolongada. Em uma
cultura que precisa desesperadamente da influência de homens
de Deus, essa lacuna resulta numa legítima crise cultural. Não a
solucionaremos ignorando o homenino e esperando que, alguma
hora, ele acabe virando adulto. Não solucionaremos o problema
simplesmente dizendo às mulheres que assumam o papel dos
homens. Nós poderemos resolver o problema sendo exemplos de
masculinidade bíblica e conclamando os meninos adultos a aban-
donarem as paixões da juventude e se tornarem os homens que
Deus os está chamando a ser no ambiente da igreja local. Esse

22
Gilmore, Manhood in the making, p. 229.
Por que focar no homem? 15

chamado deve partir dos homens e mulheres tementes a Deus nos


bancos da igreja, e especificamente do púlpito da igreja de Deus.
Os exemplos para esses homens devem ser verdadeiros homens
de Deus.

A crise teológica
Nosso mundo está bagunçado em inúmeros aspectos. Problemas
óbvios estão por toda parte: crimes sexuais contra crianças, vio-
lência cometida por governos injustos, práticas desonestas no tra-
balho que sugam o salário honesto de pessoas decentes e comuns
— a lista vai longe. Mas uma das áreas mais sutis de confusão e
conflito doentios que tenho visto envolve a questão dos gêneros
sexuais. As definições são importantes aqui.
Nosso sexo é definido pelo nosso corpo: somos homens ou
somos mulheres, de forma tangível, devido à nossa genitália. O
gênero, contudo, é algo um pouco menos tangível. Nosso gêne-
ro é uma mistura de nossas ações, mentalidade e características
pessoais.23 E visto que, de acordo com a Bíblia, Deus criou tanto
o homem como a mulher à sua imagem e semelhança, o gênero
está inseparavelmente ligado à espiritualidade. Ser uma pessoa do
sexo masculino está ligado à biologia, mas ser homem está ligado a
como ele se relaciona com Deus, pensa sobre ele e o serve.
Os homens e as mulheres são um reflexo do caráter de Deus,
e os homens em geral não estão indo muito bem na questão de
exibir a imagem de Deus com integridade. Como se trata de uma
questão essencialmente espiritual, a correção precisa vir na forma
de uma retificação teológica. Assim como Deus se dirigiu a Adão,
embora ambos, ele e sua mulher, tivessem pecado,24 penso que
é totalmente apropriado usar a oportunidade que este livro me
proporciona para me dirigir aos homens diretamente, apontan-
do o pecado deles, mas também apontando para cima, para o

23
Podles, The Church impotent, 37.
24
Gênesis 3.9.
16 O plantador de igreja

ideal: conclamando-os a ser mais do que meros indivíduos do


sexo masculino.
Não cresci frequentando a igreja, e quando jovem eu não
compreendia todas as discussões cristãs aparentemente detalhistas
demais quando comecei a frequentá-la. Uma dessas questões era
o debate sobre se tanto homens como mulheres podiam desem-
penhar a função de presbítero. Na igreja que comecei a frequentar
(onde mais tarde me tornei cristão) havia um grande interesse
nessa questão em particular. Como minha igreja cria que só os
homens podiam servir na função de presbítero, essa também era a
minha posição. Foi só quando ingressei no seminário que comecei
a me envolver de verdade nessa discussão e a considerar ambos
os lados dela. A igreja que eu servi durante o seminário acredita-
va que tanto homens quanto mulheres podiam ser presbíteros.25
Essa visão é chamada de igualitarismo.26 Por alguns anos eu a
adotei — basicamente porque, mais uma vez, era o que a minha
igreja acreditava. Li alguns livros defendendo a posição iguali-
tária e comecei a compartilhar minha perspectiva com colegas e
professores. Como minha paixão e meu foco pessoais estavam em
fundar novas igrejas, decidi escrever um artigo que intitulei “Fun-
dando novas igrejas no século 21”. Um dos principais argumentos
do artigo era que a igreja precisava adotar o igualitarismo, ou cor-
ria o risco de se tornar irrelevante para o mundo moderno. Lem-
bro que eu estava tão entusiasmado com o assunto que comecei a
devorar todo livro que conseguia encontrar sobre o tema.

25
Devo grande parte de meu desenvolvimento como professor e líder a Rick
McGinniss, que fundou e pastoreia a Igreja Comunitária de North Heartland na
cidade de Kansas. Ver http://www.northheartland.org.
26
O igualitarismo faz contraste ao complementarismo, sustentando que ho-
mens e mulheres podem e devem servir em funções iguais na igreja e no lar. Já o
complementarismo sustenta que homens e mulheres são iguais em valor, mas cha-
mados para funções complementares em determinadas funções da igreja e do lar. A
melhor defesa da posição igualitária, em minha opinião, é Men and women in the
Church: building consensus on Christian leadership, de Sarah Summer (Downers
Grove: InterVarsity, 2003).
Por que focar no homem? 17

Ao longo do percurso de minha pesquisa, entretanto, acon-


teceu uma coisa estranha — fiquei convencido de que a posição
complementarista era a posição bíblica. Passei a acreditar que
Deus reservou a função de presbítero para o homem, e cheguei
a essa conclusão não por causa do que minha igreja ensinava ou
devido a tendências culturais, mas por meio de meu estudo pessoal
intenso das Escrituras e do trabalho de estudiosos e linguistas
bíblicos muito mais sábios e habilidosos do que eu.
Enquanto estudava o material sobre esse assunto,27 fiquei
estu­pefato com o quanto a Bíblia é clara a respeito dele.28
Quando digo clara não pretendo dar a entender que aqueles
que adotam uma interpretação igualitária não sejam tementes a
Deus, ou que Deus não os esteja usando de formas poderosas e
eficazes. Muitos dos meus amigos e vários dos meus mentores
adotam a posição igualitária. Aliás, um dos mentores que mais
me impactaram foi uma mulher que, apesar de já ser adulta,
não era casada. Também sirvo ativamente com vários líderes
pastorais de outras redes de igreja29 que discordam do ponto
de vista complementarista do ministério Atos 29. Considero,
porém, que as Escrituras como um todo são claras quanto ao
fato de que a função de presbítero está reservada aos homens.
Essa visão, que deriva principalmente das epístolas do Novo
Testamento, é consistente com o restante da Bíblia. Embora
tanto homens quanto mulheres fossem chamados de profetas

27
Alguns livros úteis sobre esse assunto são Dan Doriani, Women and ministry
(Wheaton: Crossway, 2003); Jerram Barrs, Through his eyes: God’s perspective on
women in the Bible (Wheaton: Crossway, 2009); e Recovering Biblical manhood and
womanhood: a response to evangelical feminism, ed. John Piper e Wayne Grudem
(Wheaton: Crossway, 1991).
28
Alguns dos textos mais relevantes incluem 1Timóteo 2.11-15; 3.2; Tito 1.6;
Efésios 5.22-33 e 1Coríntios 11.1-16 e 14.33b-35.
29
Por exemplo, a rede de Dan Kimball e Erwin McManu, http://
theoriginsproject.org, assim como a rede de Dave e Jon Ferguson, http://www.
newthing.org.
18 O plantador de igreja

tanto no Antigo30 quanto no Novo31 Testamentos, apenas os


homens eram sacerdotes e apóstolos.
As mulheres, de acordo com as Escrituras, são coiguais aos
homens em importância, dignidade e valor, e podem servir no
ministério em tempo integral. Elas servem como diaconisas e
líderes de louvor, ensinando e usando seus dons espirituais no
serviço a Deus em sua igreja. Posso dizer sem hesitação que nossa
igreja não existiria sem algumas mulheres, cujo papel é funda-
mental tanto no ministério quanto nos bancos da igreja; mulheres
que usam seus dons espirituais para edificar a igreja de Cristo.
Nossas líderes de louvor levam a igreja ao trono de Deus de
maneira profundamente significativa. Nossas diaconisas atendem
às necessidades de nossa igreja de formas que não seriam possíveis
aos nossos diáconos. As esposas de nossos presbíteros oferecem
sabedoria e percepção que se mostraram absolutamente essenciais
para a sobrevivência e a eficácia de nossa igreja.
Não há absolutamente nenhuma indicação nas Escrituras
de que o sexo da pessoa desempenhe algum papel na distribui-
ção soberana que Deus faz dos dons espirituais. É preocupante
que aqueles que amam a Bíblia tendam a se concentrar naquilo
que as mulheres não podem fazer, ao invés de naquilo que elas
podem fazer. O foco, infelizmente, está na restrição em vez de na
capacitação.32 Em geral, as igrejas complementaristas têm feito
um trabalho deplorável quando se trata de equipar e capacitar
as mulheres para que elas usem na igreja os dons que receberam
de Deus. Creio que as mulheres podem usar qualquer dom que
receberam de Deus na igreja e que só o ofício de presbítero está
reservado exclusivamente aos homens. Isso pode parecer parado-
xal, mas acredito que é bíblico.

30
Por exemplo, Débora em Juízes 4.4.
31
Por exemplo, as filhas de Filipe em Atos 21.9.
32
Esse foi o principal catalisador para o livro de Jerram Barr, Through his eyes:
God’s perspective on women in the Bible.
Por que focar no homem? 19

Acredito que as Escrituras ensinam consistentemente o


princípio da liderança masculina — não apenas na igreja, mas
também no lar33 —, princípio que a Bíblia associa à ordem cria-
da, e não meramente ao contexto cultural.34 Portanto, os homens
devem servir como “primeiros entre iguais” tanto no lar (como
maridos e pais) quanto na igreja (como presbíteros e pastores).
Alexander Strauch argumenta corretamente, porém, que “o prin-
cípio da liderança masculina [...] não diminui de forma alguma a
importância e a necessidade do envolvimento feminino ativo no
lar ou na igreja”.35 Não é que os maridos no lar ou os pastores na
igreja sejam mais importantes ou tenham mais dons, mas eles são
incumbidos de uma responsabilidade maior, e prestarão contas a
Deus pela forma como lideram. Vemos isso claramente na carta
de Paulo à igreja em Éfeso, na qual os maridos são chamados a
amar, cada um, a sua esposa assim como Cristo amou a igreja,
sendo cada um a cabeça de seu lar assim como Cristo é a cabeça
da igreja.36 Isso significa que o marido, assim como Jesus, deve
conduzir o seu lar sendo o primeiro a amar, o primeiro a perdoar
e o primeiro a sofrer, e assumindo a responsabilidade pelo pecado
não importando se a “culpa” é dele ou não. Vemos esse princípio
em Gênesis 3.9, em que Deus se dirige a Adão quanto ao pecado
da mulher, e em Romanos 5, em que Adão é considerado respon-
sável pelo pecado de Eva.
Vemos que essa também é a incumbência dos líderes e pas-
tores da igreja de Deus em Hebreus 13.17 (o versículo bíblico
mais assustador para os pastores!).37 Presbíteros e não presbíteros

33
Efésios 5.21-33; 1Pedro 3.1-7; Colossenses 3.18,19.
34
1Coríntios 11; 1Timóteo 2.11-15.
35
Alexander Strauch, Biblical eldership: an urgent call to restore Biblical
Church leadership, Littleton: Lewis and Roth, 1995, p. 58.
36
Efésios 5.28.
37
Hebreus 13.17 diz: “Obedecei a vossos líderes, sendo-lhes submissos, pois
eles estão cuidando de vós, como quem há de prestar contas; para que o façam com
alegria e não gemendo, pois isso não vos seria útil” [grifo do autor]. No lar, Deus
orde­nou que maridos e pais assumam o comando no amor, no serviço e no sofri-
mento. Na igreja, Deus chamou os presbíteros/pastores a fazerem o mesmo.
20 O plantador de igreja

são iguais na igreja, mas eles têm papéis diferentes, o que é aná-
logo aos relacionamentos na Trindade — Pai, Filho e Espírito
Santo. As pessoas da Trindade são iguais; mesmo assim, na
divindade há submissão do Filho e do Espírito ao Pai. Minha
interpretação dessa deferência divina é que a submissão é uma
característica de um relacionamento saudável. A submissão
indica uma humildade geral e confiança mútua que orienta os
companheiros no relacionamento. A submissão é boa, e exige
não apenas que uma pessoa se submeta, mas também que outra
assuma o papel de liderança. Deus, em sua sabedoria, situou o
homem no papel de líder, tanto na família quanto na igreja. E
a obra de formação de caráter que Deus quer realizar nos mari-
dos, nos pastores e nos pais será realizada no contexto do papel
de liderança.
É a minha convicção que quando o lar e a igreja estiverem
corretamente ordenados — quando maridos e presbíteros aceita-
rem que Deus colocou o seu povo amado sob o cuidado deles e
que ele os considera responsáveis pela saúde espiritual dos filhos
dele —, as famílias e as igrejas começarão a se assemelhar à comu-
nidade perfeita que observamos na Trindade. Quando isso come-
çar a acontecer, os homens de fato se sentirão atraídos a assumir
a responsabilidade no lar e na igreja, porque verão o chamado
para seguir a Cristo na liderança como um chamado inspirador e
singularmente masculino.
O que é necessário na igreja não é dominância — o abuso
de poder por parte de homens abusivos e arrogantes. Já tivemos
demais disso. O que realmente precisamos é de uma ressurgência
— uma infusão saudável de homens tementes a Deus que sirvam
a igreja pelo poder do Espírito de Deus.38
Considere as seguintes estatísticas reveladoras fornecidas
por David Murrow, autor de Why men hate going to Church [Por

38
Adotei o vocabulário “dominância vs. ressurgência” como usado em http://
www.churchformen.com.
Por que focar no homem? 21

que os homens detestam ir à igreja] e diretor de Church for Men


[Igreja para homens]:39

yy A igreja típica nos eua atrai uma multidão adulta que é 61%
feminina e 39% masculina. Essa lacuna entre os sexos aparece
em todas as categorias de idade.40
yy Em qualquer dado domingo, há 13 milhões de mulheres adul-
tas a mais do que homens nas igrejas americanas. Essa estatís-
tica provém dos diagramas do Grupo Barna sobre a frequência
de homens e mulheres na igreja sobrepostos aos números do
censo de 2000 relativos a homens e mulheres adultos na popu-
lação dos eua.
yy Neste domingo, quase 25% das mulheres casadas e que fre-
quentam a igreja comparecerão ao culto sem o marido. Che-
guei a esse diagrama usando os números de 2000 para o total
de adultos casados do censo dos eua e sobrepondo as porcen-
tagens de 2000 de frequência masculina versus feminina em
cultos semanais da pesquisa do Grupo Barna. Os diagramas
sugerem que pelos menos 24,5 milhões de mulheres casadas
frequentem a igreja numa dada semana, mas entre os homens
casados esse número é de apenas 19 milhões. Isso são 5,5
milhões de mulheres a mais, ou 22,55%. O número real pode
ser até mais alto, já que as pessoas casadas frequentam a igreja
em números muito maiores do que as solteiras.
yy Mais de 70% dos rapazes que estão sendo criados na igreja
a abandonarão durante a adolescência e na casa dos 20 anos.
Muitos desses rapazes nunca voltarão.41

39
Todas as estatísticas que se seguem foram tiradas diretamente de http://
www.churchformen.com/allmen.php. [Mantivemos a indicação da fonte, apesar de
o site não mais estar disponível na Internet. N. do E.]
40
“U.S. Congregational Life Survey—Key Findings”, 29 de outubro, 2003;
www.uscongregations.org/key.htm.
41
“LifeWay research uncovers reasons 18 to 22 year olds drop out of Church”
[“Pesquisa da LifeWay descobre as razões por que os jovens entre 18 e 22 anos
abandonam a igreja”], disponível no site da LifeWay: http://www.lifeway.com/
lwc/article_main_page/0,1703,A=165949&M=200906,00.html. Acesso em: 12
set. 2007.
22 O plantador de igreja

yy Mais de 90% dos homens americanos creem em Deus e cin-


co entre seis se denominam cristãos. Mas apenas dois em
cada seis frequentam a igreja num dado domingo. O homem
comum aceita a realidade de Jesus Cristo, mas não consegue
ver nenhum valor em ir à igreja.42

A piada do antigo diretor da liga principal de beisebol, Leo


Durocher, de que “o beisebol é como a igreja: muitos frequentam,
poucos entendem”, é completamente verdadeira no caso dos homens.
Embora a questão dos gêneros constitua uma das discussões
mais intensas em nossa atmosfera cultural atual, o complementaris-
mo tem sido a posição predominante da igreja nos últimos dois mil
anos, só começando a ser questionado por volta de cem anos atrás.
Certamente, nós complementaristas temos muito trabalho para
fazer na vivência prática das implicações de nossa posição. O cres-
cimento deve vir por meio da séria correção dos abusos de poder de
certos líderes masculinos que não refletem o caráter de Deus; deve-
mos aprender também a discordar de maneira honrável e respeitosa
daqueles que não compartilham a nossa posição. Acredito que igre-
jas, denominações e redes de igrejas — especialmente aquelas que
estejam tentando plantar igrejas centradas no evangelho — podem
trabalhar juntas apesar de discordâncias nessa questão. Precisamos
aprender a discordar com respeito. Por quê? Porque o evangelho
precisa progredir. E o evangelho provavelmente não prevalecerá
numa cidade em que só haja igrejas reformadas de liderança mascu-
lina.43 Desejamos, portanto, cooperar com todos os tipos de igrejas
que permaneçam nos limites do Credo dos Apóstolos.44

42
Barna Research Online: “Women are the backbone of Christian congrega-
tions in America” [“As mulheres são a espinha dorsal das congregações cristãs na
América”], 6 de março, 2000; http://www.barna.org.
43
Ver http://www.acts29network.org/about/doctrine.
44
É isso que amo no Redeemer Church’s Planting Center (rcpc). Eles
plantam todo tipo de igreja que permaneça nos limites do cristianismo ortodoxo,
para que possam alcançar as cidades do mundo; ver http://www.redeemer.com/
about_us/church_planting.
Por que focar no homem? 23

Espero que nossas diferenças teológicas não impeçam você


de ler este livro. Creio que muitos dos princípios encontrados
aqui podem ser proveitosos apesar de nossas diferenças teológicas.
Um dia todos nós nos assentaremos diante de Jesus, e ele poderá
corrigir nossos erros doutrinários. Todos nós “vemos como por
um espelho”.45 Até que toda a verdade se manifeste à luz da glória
de Deus, trabalhemos para construir igrejas mais saudáveis, que é
o objetivo supremo deste livro.
Estamos vivendo uma crise espiritual, e vivemos num mun-
do povoado por homeninos. Eles estão em nossa cidade, nos nossos
bairros, igrejas e famílias. O homenino precisa de homens e mulhe-
res tementes a Deus que mostrem a ele que há coisas maiores na
vida do que as que ele está experimentando. O homenino precisa
ser mais que um mero indivíduo do sexo masculino. Ele precisa
ser aquele indivíduo que está se tornando o homem de Deus, que
está sendo transformado pela mensagem do evangelho de Deus e
buscando a missão de Deus de todo o coração.

45
1Coríntios 13.12.
O HOMEM
Um bom ministro, que tem a presença de Deus consigo em sua obra, é
a maior das maiores bênçãos que Deus pode conferir a um povo além
da dádiva de si próprio. ( Jonathan Edwards).1

O homem precisa ser purificado, antes de purificar os outros: tornar-


se sábio ele próprio, se quer tornar sábios aos outros; tornar-se luz,
para poder oferecê-la; aproximar-se de Deus, e assim trazer os outros
consigo; ser santificado, e então santificá-los. (Gregório de Nazianzo).2

Prestem atenção em si mesmos, para não serem privados da graça


salvadora de Deus que vocês oferecem aos outros, e não serem
estranhos à obra efetiva do evangelho que vocês pregam; para que,
enquanto proclamam ao mundo a necessidade de um Salvador, o
próprio coração de vocês não o negligencie, e vocês não percam o
interesse nele e em seus benefícios salvíficos. Prestem atenção em si
mesmos, para que, enquanto alertam os outros do perecimento, vocês
próprios não pereçam; e a fim de que vocês próprios não tenham fome,
enquanto preparam a refeição deles. (Richard Baxter).3

A conversão é a condição sine qua non de um ministro. Vós que aspirais


aos nossos púlpitos: “Vós precisais ser nascidos de novo”. A posse
dessa primeira qualificação também não é algo que homem algum deva
tomar por certo, pois há uma possibilidade muito grande de estarmos
enganados quanto a se somos convertidos ou não. Crede-me,
“firmar vosso chamado e eleição” não é uma brincadeira de
criança. (Charles Spurgeon).4

1
Jonathan edwards, The salvation of souls, Wheaton, Crossway, 2002, p. 140.
2
Gregório de nazianzo, Oratorian 2.71, citado em Andrew Purves, Pastoral
theology in the classical tradition (Louisville: Westminster John Knox, 2001), p. 9.
3
Richard Baxter, The reformed pastor, Edinburgh, The Banner of Truth
Trust, 2001, p. 53.
4
Charles sPurgeon, Lectures to my students, Grand Rapids, Zondervan, 1972,
p. 9. Sine qua non é uma expressão latina que significa “sem a qual não”, isto é, aquilo
que é precondição necessária.
1

Um homem resgatado

N inguém, não importa quão habilidoso seja como orador,


quão talentoso como líder, ou quão numerosos sejam os
seus distintivos teológicos, deve tomar sobre si a incumbência de
pastorear a igreja de Jesus sem antes ter experimentado o poder
salvífico do Pastor, em quem transborda a graça. Mesmo que um
pastor/plantador de igreja seja um homem bom ou talentoso ou
inteligente, o que ele precisa ser, antes de qualquer outra coisa, é
um homem resgatado. Ele precisa ser um homem que foi resga-
tado da escravidão e loucura de seu próprio pecado, e salvo pela
liberdade e “loucura” de um Deus que exibiu sua justiça e amor
perfeitos ao sacrificar sua própria vida em favor das mesmas pes-
soas que o ofenderam. O requisito obrigatório e a principal qua-
lificação para um homem que deseja servir e liderar em nome de
Jesus é ter experimentado pessoalmente o perdão e a aceitação
de Jesus.
Infelizmente, não é preciso ter um discernimento extraor-
dinário para perceber que muitas igrejas têm um pastor que está
tentando conduzir as pessoas a um Salvador que ele mesmo ainda
não encontrou pessoalmente.
Muitas pessoas fazem a trágica pressuposição de que os pas-
tores e os plantadores de igrejas sem dúvida são cristãos. Essa
pressuposição, contudo, ignora o fato de que é possível, e para
alguns notavelmente fácil, fingir os dons necessários para o minis-
tério. Um indivíduo pode ser um comunicador, conselheiro ou
28 O homem

líder muito habilidoso sem jamais ter chegado a verdadeiramente


conhecer a Cristo. Aliás, Cristo tratou dessa questão em Mateus
7.21-23, quando disse:

Nem todo o que me diz Senhor, Senhor! entrará no reino do


céu, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está no céu.
Naquele dia, muitos me dirão: Senhor, Senhor, nós não profeti-
zamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios?
Em teu nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi cla-
ramente: Nunca vos conheci; afastai-vos de mim, vós que prati-
cais o mal.

Essa é uma declaração extraordinária. Se é possível profetizar,


expulsar demônios e fazer muitos milagres em nome de Cristo sem
nunca chegar a verdadeiramente conhecê-lo, então certamente é
possível plantar ou liderar uma igreja sem ter um relacionamento
salvífico com ele. Se os dons espirituais não são prova de uma fé
autêntica, então um título profissional certamente também não
é. O pastor e teólogo puritano Richard Baxter escreve sobre essa
realidade de maneira muito vívida:

Oh senhores, quantos pregaram a Cristo, e não obstante perece-


ram pela ausência de um interesse salvífico nele! Quantos, que
agora estão no inferno, pregaram às pessoas sobre os tormentos
do inferno, e as advertiram que escapassem dele! Quantos prega-
ram a respeito da ira de Deus contra os pecadores, e agora a estão
sofrendo! Pode haver no mundo coisa mais triste que um homem
cujo próprio ofício e chamado era proclamar a salvação e conduzir
os outros ao céu, ser ele próprio, depois de tudo isso, excluído?5

“Examinai a vós mesmos, para ver se estais na fé. Provai a vós


mesmos” (2Co 13.5).

5
Baxter, The reformed pastor, p. 72.
Um homem resgatado 29

Ao longo dos anos, conheci vários pastores que pareciam não


ter uma fé salvífica.6 Lembro-me de como um pastor de jovens
que era meu amigo na universidade admitiu para mim que ele
estava no ministério principalmente porque fizera parte de um
grande ministério de jovens no ensino médio. Ele me disse que,
embora questionasse sua própria salvação, ele já estava “compro-
metido com o ministério profissional”. Outro sujeito que conheço
plantou uma igreja em grande parte, em suas próprias palavras,
para impressionar o pai. Em um encontro de treinamento comi-
go, ele confessou temer que o conselheiro com quem estava se
encontrando acabaria descobrindo a realidade atordoante de que
ele havia plantado a igreja não apenas para obter o favor de seu
pai, mas também o favor de Deus.
Eu poderia contar muitas histórias semelhantes. A questão,
por ora, é que muitas pessoas que se envolvem em profissões que
prestam ajuda aos outros (assistência social, aconselhamento e
outras) o fazem a fim de resolver alguns de seus próprios pro-
blemas. Essas pessoas usam o serviço aos outros para obter cura
para si próprias. Muitos homens fazem o mesmo com o pasto-
rado. Isso pode parecer nobre em certo aspecto; afinal, quanto
mais servimos aos outros, mais percebemos que, na verdade, eles
é que estão nos servindo. Eu entendo isso. A principal diferença
no pastorado, porém, é que esses homens não estão meramente
buscando ajudar a si mesmos, mas salvar a si mesmos.
Um dos meus primeiros mentores, Wayne Barber, a quem
Deus usou para confirmar minha percepção de chamado ao minis-
tério, confessou em um sermão que ele não havia sido cristão
durante os primeiros anos de seu ministério. Ele disse que se tornou
pastor para que pudesse obter o favor de Deus. Wayne, como muitos
outros, estava usando o ministério como uma forma de compensar
6
Como só Deus conhece o coração de cada pessoa, não podemos jamais ser os
juízes finais da salvação de alguém. Ao mesmo tempo, as Escrituras nos chamam a
discernir o caráter daqueles à nossa volta. Advertindo contra os falsos profetas, Jesus
diz: “Vós os conhecereis pelos frutos”.
30 O homem

e expiar seu próprio pecado. Ele estava confiando no que ele estava
fazendo em vez de confiar no que Cristo havia feito por ele.
Infelizmente, as igrejas muitas vezes estão tão desesperadas
por liderança que não se importam em deixar passar defeitos de
caráter em um líder, especialmente se ele for talentoso. As pessoas
podem pensar: Ele pode não exibir um caráter piedoso, mas a pre-
gação dele é espetacular... ele é um conselheiro maravilhoso... ele pode
inspirar as pessoas a segui-lo! Com a vasta maioria das igrejas atual-
mente em declínio ou estagnadas, os homens talentosos mas não
regenerados acabam se tornando um item bastante procurado na
economia cristã profissional.
Outras igrejas simplesmente não estão devidamente prepa-
radas para discernir entre um líder regenerado e um não rege-
nerado. Às vezes, a visão que determinada igreja tem sobre o
ministério pastoral foi tão influenciada pelo modelo de negócios
americano, concentrando-se no crescimento a qualquer custo,
que há pouca ou nenhuma ênfase em encontrar alguém chamado
por Deus. Nos últimos anos, tenho sido chamado para prestar
consultoria a várias denominações e redes evangélicas, entre elas
algumas denominações tradicionais, sobre decisões envolvendo a
contratação, demissão e o recrutamento de obreiros. Descobri que
a principal pergunta com que tanto liberais como conservadores
muitas vezes começam o processo não é: Este homem é cristão?,
mas: Este homem pode fazer a igreja crescer? Essa questão principal
é reveladora, e nos alerta para uma das razões por que há tantos
homens que estão implantando e liderando igrejas mas não têm
uma relação salvífica com Jesus Cristo.
Sem dúvida, há uma preocupação ética quando um homem
engana a igreja a respeito de suas próprias “credenciais” para o
ministério. Mas é mais do que uma mera questão ética. O bem-estar
da igreja (e do seu pastor) está em jogo. Considere o que acontece
quando um homem tenta liderar ou plantar uma igreja sem antes
ter sido resgatado dos seus pecados. Ele se sentirá ou abatido
(condenado, inseguro e inadequado), ou cheio de si (convencido,
Um homem resgatado 31

arrogante e orgulhoso), dependendo de se a igreja está diminuindo


ou crescendo. Em ambos os casos, o pastor/plantador de igreja que
busca liderar a igreja sem antes ter sido resgatado dos seus pecados
está plantando as sementes da idolatria, da angústia e, finalmente, do
fracasso, porque está usando a igreja e seu ministério para salvar a si
mesmo. Só o homem resgatado pode verdadeiramente servir a igreja
de Cristo, porque só o homem resgatado tem uma identidade e uma
motivação para o ministério que estão fora do próprio ministério.
Por pior que possa ser o estado final de um pastor não
regenerado,7 o estado final da igreja liderada por um homem assim
é ainda pior. Embora às vezes Deus possa, em misericórdia, usar
esses pregadores falsamente motivados,8 em geral a igreja liderada
por um pastor desses sofre espiritualmente, comunitariamente e
missionalmente, e alguma hora acaba definhando e morrendo. A
maioria das igrejas não cresce além da saúde espiritual de sua lide-
rança. As metáforas de Spurgeon são úteis aqui:

Um pastor desprovido de graça é como um homem cego escolhido


para ensinar ótica, filosofando sobre a luz e a visão, discursando a
respeito das finas matizes e combinações delicadas das cores pris-
máticas, e distinguindo-as diante da plateia, quando ele próprio
está submerso em completa escuridão! É um homem mudo eleva-
do à cadeira de música; um homem surdo fluente em sinfonias e
harmonias! É uma toupeira professando educar filhotes de águia;
um molusco eleito para presidir sobre os anjos.9

7
Como Wayne Grudem observa, o termo não regenerado literalmente significa
“alguém que não é renovado no coração e na mente ou renascido no espírito”. Isso
está em contraste com alguém que é regenerado. É importante lembrar que um
espírito regenerado não é algo que uma pessoa pode alcançar. Antes, é como nascer
— é algo que acontece a uma pessoa e que está fora de seu controle. Ver, de Wayne
Grudem, Systematic theology: an introduction to Biblical doctrine (Grand Rapids:
Zondervan, 1994), p. 699, 700. [Publicado em português por Edições Vida Nova,
São Paulo, 1999]. Ver também Ezequiel 36.26,27; João 3.3-8; 1Pedro 1.3.
8
Ver Filipenses 1.15-18.
9
Charles Spurgeon, Lectures to my students, Grand Rapids, Zondervan, 1972,
p. 9,10.
32 O homem

Em outras palavras, um homem para quem as coisas de Deus


são totalmente estranhas não tem a menor capacidade de ensiná-las
aos outros. Não obstante, muitos pastores ingressam no ministério
com sérias dúvidas a respeito da sua própria salvação! Não será essa
uma das razões por que centenas de igrejas norte-americanas esta-
rão fechando as portas este ano e por que a vasta maioria das igrejas
norte-americanas está estagnada ou em declínio?
Considerando-se que ser um homem resgatado é a qualifi-
cação fundamental para qualquer aspirante a pastor/plantador de
igreja, e como nenhum homem pode ser bem-sucedido no minis-
tério se não atender a ela, é necessário que consideremos cuida-
dosamente o que significa ser um homem resgatado antes de nos
apressarmos para discutir outras qualificações.
O que significa ser resgatado? A Bíblia usa muitas palavras
para descrever o milagre da salvação: adoção, justificação, reden-
ção, reconciliação etc. Uma imagem que a Bíblia usa para descre-
ver essa realidade é a do novo nascimento. Jesus disse: “Em verdade,
em verdade te digo que ninguém pode ver o reino de Deus se não
nascer de novo” ( Jo 3.3). O termo que os teólogos frequente-
mente usam para descrever esse novo nascimento é regeneração. A
regeneração se refere à implantação de uma nova vida espiritual
no coração de um pecador, levando-o a amar a Deus e aos outros.
J. I. Packer descreve a regeneração da seguinte maneira:
O novo nascimento ou regeneração é uma recriação interna, efe-
tuada pelo Espírito Santo, da natureza humana decaída. No novo
nascimento, a disposição humana é transformada, passando do
antigo egoísmo licencioso e ímpio a uma nova disposição de con-
fiança e amor, de arrependimento pela rebelião e incredulidade do
passado, de submissão amorosa à lei de Deus desse momento em
diante. A regeneração ilumina a mente cega para que ela possa
discernir as realidades espirituais, e liberta e energiza a vontade
escravizada para que ela possa obedecer livremente a Deus.10

10
James Packer, Your father loves you: daily insights for knowing God, Whea-
ton, Harold Shaw Publishers, 1986), devocional para o dia 22 de janeiro.
Um homem resgatado 33

O homem resgatado é o homem que renasceu, tendo agora


uma nova vida, uma vida espiritual que o capacita a se arrepender
do seu pecado e confiar na obra de Cristo em favor dele. “Portan-
to, se alguém está em Cristo, é nova criação; as coisas velhas já
passaram, e surgiram coisas novas”.11
Também é possível descrever o que significa ser resgatado ao
olharmos para o que Deus realiza na vida da pessoa que foi verda-
deiramente regatada dos seus pecados. Em Mateus 22.37-42, Jesus
ensinou que todo o Antigo Testamento depende de dois breves
mandamentos: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de
toda a alma e de todo o entendimento. Este é o maior e o primei-
ro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Toda a Lei e os Profetas dependem
desses dois mandamentos”. O homem resgatado não apenas crê
nessa verdade que está no âmago e na essência do cristianismo,
mas ele de fato ama a Deus de todo o coração, alma, mente e
força, e, como resultado, ele busca amar ao próximo como a si
mesmo. O homem resgatado é um homem cujo amor a Deus
cresce de forma holística — nas inclinações, nos pensamentos, na
motivação, nas paixões, nos deveres, em todas as áreas da vida. Ele
é também um homem que demonstra um amor crescente pelas
outras pessoas, sacrificando-se por elas e dando a vida pelo seu
bem. Em resumo, o homem resgatado é um homem que cresce
em amor genuíno a Deus e ao próximo12.
O homem resgatado também é um homem em quem o
Espírito Santo está operando, produzindo o fruto da justiça.
Em Gálatas 5.22-24, o apóstolo Paulo escreveu: “Mas o fruto
do Espírito é: amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bon-
dade, fidelidade, amabilidade e domínio próprio. Contra essas
coisas não existe lei. Os que são de Cristo Jesus crucificaram a
carne juntamente com suas paixões e desejos”. No grego original,

11
2Coríntios 5.17.
12
1João 2.9,10 diz: “Aquele que diz estar na luz, mas odeia seu irmão, até agora
está nas trevas. Aquele que ama seu irmão permanece na luz, e nele não há tropeço”.
34 O homem

a palavra “fruto” no versículo 22 está no singular. Paulo não está


listando algum tipo de cardápio espiritual em que possamos esco­
lher o amor, a paz, a paciência ou qualquer outro fruto. Antes,
todas essas qualidades, juntas, constituem o fruto que o homem
cristão produz. O homem resgatado é um homem que exibe todas
essas qualidades, de forma crescente, em sua vida — amor, alegria,
paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, amabilidade e
domínio próprio.13
Se você aspira ao ministério pastoral, precisa começar fazen-
do um exame honesto de sua própria salvação, de seu próprio
resgate. Não pressuponha que você é cristão só porque é pastor
ou deseja sê-lo. Jesus disse que “muitos” que expulsam demônios
em seu nome não serão salvos (Mt 7.22). Certifique-se de que
você mesmo conhece a salvação que está proclamando aos outros.
Esteja disposto a questionar a sua motivação para o ministério e a
se certificar de que não está tentando fazer por merecer o favor de
Deus. A salvação é a primeira e mais importante qualificação para
o ministério cristão. Sem ela, nada mais é possível, e se você está
entrando no ministério sem ela, arruinará a si próprio bem como
aqueles que busca servir.
No próximo capítulo, examinaremos mais de perto como é
um homem qualificado para liderar a igreja. Antes disso, porém,
reflita sobre as seguintes perguntas destinadas a ajudar os leitores
a reconsiderar e confirmar a sua fé na vida, morte e ressurreição de
Jesus e no ministério do Espírito Santo.

1) É sua convicção genuína e atual que Cristo é tanto o perdoa­


dor dos seus pecados como sua única esperança para um relaciona-
mento eterno com Deus?
2) Imagine-se perante Deus, o justo Juiz de todas as pessoas. Em
sua mente, você se sente tentado a listar as suas boas obras em defesa

13
1João 2.3 diz: “E sabemos que o conhecemos, se guardamos seus manda-
mentos”.
Um homem resgatado 35

de sua própria salvação, ou tem consciência de que você depende da


obra de Cristo — da vida obediente, morte sacrificial e ressurreição
poderosa de Cristo — para a sua salvação?
3) Há evidência da obra do Espírito Santo em sua vida e caráter?
a. Você tem um senso geral de que é um verdadeiro filho de
Deus? (ver Rm 8.15,16; 1Jo 4.13).
b. Leia Gálatas 5.22,23. “Amor, alegria, paz, paciência,
benignidade, bondade, fidelidade, amabilidade e domínio
próprio” são características que estão se desenvolvendo
em você? As pessoas mais próximas de você diriam ver
esses traços regularmente em sua vida?
c. Leia Mateus 7.16-20. O seu ministério produz bons fru-
tos? As pessoas e a igreja estão realmente sendo edificadas,
ou será que o seu ministério é caracterizado por dissensão
e divisão?
4) Se você atualmente é um pastor ou plantador de igreja segu-
ro de sua própria condição de “homem resgatado”, você está seguro
de que aqueles que estão liderando junto com você creem no verda-
deiro evangelho da graça?
O ministério não é uma profissão. É uma vocação [...] É preciso
ser chamado para realizá-lo. Embora possa não ser fácil para um
pastor determinar o que exatamente significa ser chamado por Deus
para conduzir uma igreja, ele precisa ter certo senso de que está no
ministério porque Deus quer que ele esteja. Repetidas vezes, em meio
aos desafios do ministério pastoral, essa autorização divina mais
do que subjetiva é um dos principais meios de perseverança
pastoral. (William H. Willimon).1

Não entre no ministério se você puder evitá-lo. Se qualquer estudante


nesta sala puder se contentar em ser editor de jornal, merceeiro,
agricultor, ou médico, ou advogado, ou senador, ou rei, em nome dos
céus e da terra, que ele siga o seu caminho. (Charles Spurgeon).2

1
William H. williMon, Pastor: the theology and practice of ordained minis-
try, Nashville, Abingdon, 2002, p. 141-5.
2
Charles sPurgeon, Lectures to my students, Grand Rapids, Zondervan, 1972,
p. 262-7.
2

Um homem chamado

H á mais de dois mil e quinhentos anos, Deus convocou um


homem chamado Jeremias para ser profeta com estas pala-
vras: “Antes que eu te formasse no ventre te conheci, e antes que
nascesses te consagrei e te designei como profeta às nações”.3
Entretanto, quanto mais Jeremias seguia o chamado de Deus,
mais ele era zombado, proscrito e perseguido por aqueles a quem
falava. Ele é muitas vezes apelidado “o profeta chorão” devido
à profundidade do seu conflito como homem chamado.4 Con-
sidere o caso de Jeremias. Ele foi chamado para ser profeta. A
maioria das pessoas pensa num profeta como alguém semelhante
a um adivinho — uma pessoa que prediz o futuro, lê a mente
dos outros e assim por diante. E definitivamente há evidências de
predição e até mesmo de vislumbres do futuro nas visões ao longo
da Bíblia. Mas o profeta bíblico, na maioria das vezes, era alguém
que passava tanto tempo com os olhos voltados para o passado
e o presente quanto para o futuro. O profeta era — e ainda é —
alguém que examinava o passado e o presente para repreender o
povo de Deus pelos seus pecados e chamá-lo à fidelidade à sua
aliança com Deus.
Jeremias foi esse tipo de profeta. Observando a situação pas-
sada e presente do povo de Deus, o futuro não lhe parecia muito

3
Jeremias 1.5.
4
Alguém certa vez me disse que concordar em servir a Deus no ministério
vocacional é aceitar um chamado a uma vida inteira de sofrimento.
38 O homem

auspicioso. O que ele via era um povo rebelde, ingrato, teimoso e


completamente mergulhado no pecado, e Deus chamou Jeremias
para mostrar um espelho a esse povo “obstinado”.5 A principal
vocação de Jeremias era criticar e esmiuçar cada aspecto da cultu-
ra à qual ele fora chamado a “ministrar”. E ele era particularmente
bom nesse trabalho, o que fez da vida do profeta um alvo muito
visado em sua cultura.
Jeremias era um crítico imparcial: do israelita comum aos
profissionais religiosos, passando pelo rei e seu séquito, ninguém
saía ileso. Ele condenava o sexo casual e as orgias, denunciava os
ricos por oprimir os pobres, repreendia os pobres por não aspira-
rem a uma vida melhor, e repreendeu severamente o povo todo
por adorar qualquer ídolo fajuto que capturasse os seus olhos. Ele
foi um ofensor implacável do povo de Deus e um profeta de pri-
meira classe, o que o deixou sem amigos.
Você pode sentir a dor de Jeremias em um dos momentos de
maior vulnerabilidade capturados na Bíblia, quando o profeta diz:
“Pois sempre que falo, grito e clamo: Violência e destruição! Por
isso a palavra do Senhor trouxe-me intimidação e insulto o dia
todo” ( Jr 20.8). Ser um homem chamado é um trabalho solitário,
e muitas vezes você tem a sensação de que Deus o abandonou em
seu ministério.
Mas o Deus que chamou Jeremias ardia como fogo no ínti-
mo do profeta. E, no mesmo fôlego, Jeremias era capaz de acusar
Deus de não abençoar o seu ministério e também de exclamar: “Se
eu disser: Não farei menção dele e não falarei mais no seu nome,
então meu coração arde como fogo, pressionando os meus ossos;
estou exausto de contê-lo e não tenho mais forças!” ( Jr 20.9).
O chamado de Jeremias não lhe trouxe nada senão angústia,
e ainda assim ele não conseguia desistir. Por quê? Porque a pala-
vra de Deus era como um fogo em seus ossos. Tradução: porque Deus o
havia chamado.

5
Como visto em Êxodo 32.9 e várias outras passagens.
Um homem chamado 39

Jeremias é uma ilustração de como é ser chamado ao minis-


tério pastoral. O ministério não é somente difícil, é algo impos-
sível. E a não ser que tenhamos um fogo em nossos ossos nos
compelindo, simplesmente não sobreviveremos. O ministério
pastoral é um chamado, não uma carreira. Não é um trabalho
que você exerce só porque gosta da atenção, ou porque sua mãe
pensa que você seria bom nele, ou porque não envolve carre-
gar grandes pesos. Fico continuamente chocado com quantos
homens estão tentando exercer o ministério sem uma percepção
clara de chamado. Por favor, ouça isto: se você não tem um senti-
mento de chamado para o ministério, então, por favor, encontre
outra vocação! Só aqueles que, como Jeremias, têm o sentimento
forte e ardente de que são chamados por Deus devem exercer o
ministério pastoral.

O que é o chamado?
Uma das coisas mais importantes a fazer na hora de avaliar o seu
chamado é estudar o de outros homens, e também o que ele têm
a dizer sobre esse chamado.
Martinho Lutero, o reformador da igreja e teólogo do século
16 que deflagrou a Reforma Protestante, ensinava que “o chama-
do é dúplice [...] divino, algo que é efetuado pelo poder do alto,
e que é da fé [...], [bem como] um chamado de amor [...] como
quando os amigos desejam que você pregue um sermão. Ambas as
vocações são necessárias para assegurar a consciência”.6
Lutero listou oito qualidades que um ministro deve ter:

1) Ser capaz de ensinar de forma sistemática


2) Eloquência
3) Boa voz

6
The table talk theology of Martin Luther, ed. e intr. Thomas S. Kepler, Grand
Rapids, Baker, 1952, p. 234.
40 O homem

4) Boa memória
5) Saber quando parar de falar
6) Estar seguro de sua doutrina
7) Estar disposto a arriscar corpo e sangue, riqueza e honra na obra
8) Estar disposto a ser zombado e ridicularizado por todos.7

João Calvino, o reformador e teólogo que seguiu os passos de


Lutero, também distinguia entre dois aspectos do chamado. Ele
escreveu: “[A] vocação [interior] é o bom testemunho de nosso
coração, de que recebamos o ofício outorgado não por ambição,
nem por avareza, nem por qualquer outra cobiça, mas por sincero
temor de Deus [...] [A] vocação exterior [...] tem a Igreja por tes-
temunha [...] Só devem ser eleitos os que professam a sã doutrina
e vivem vida santa [...] que hajam sido dotados dessas capacidades
que serão necessárias para o cumprimento de seu ofício”.8
John Newton, o ministro anglicano do século 18 e autor do
famoso hino “Maravilhosa graça”, observou três indicações do
chamado. Em primeiro lugar, o chamado ao ministério é acompa-
nhado de um “fervoroso e sincero desejo de ser empregado nesse
serviço”. Em segundo lugar, o chamado ao ministério é acom-
panhado de “certa suficiência competente quanto aos dons, ao
conhecimento e à expressão”. E em terceiro lugar, o chamado ao
ministério é acompanhado de “uma abertura correspondente na
Providência, por meio de uma sequência gradual de circunstân-
cias apontando os meios, o tempo e o lugar em que de fato se deve
iniciar a obra”.9 George Whitefield, o evangelista do século 18,
oferece este conselho para os que estão considerando o chama-
do: “Perguntem a si mesmos, vez após vez, se vocês pregariam a
Cristo se tivessem certeza de que teriam de dar a própria vida por
fazê-lo. Se vocês temem o descontentamento de algum homem

7
Ibid., p. 23-89.
8
João Calvino, Institutas, Livro iv, Cap. 3, seções 11 e 12.
9
Letters of John Newton, Londres, Banner of Truth Trust, p. 545-6.
Um homem chamado 41

por realizar o seu dever agora, tenham certeza de que a sua mente
ainda não está orientada para isso”.10
Charles Hodge, o teólogo reformado do século 18, distin-
guia entre as qualificações intelectuais, espirituais e corporais para
o ministério, todas as quais devem estar presentes num chamado
genuíno. As qualificações intelectuais são “habilidade, conhe-
cimento, ortodoxia”. As espirituais são “uma grande apreciação
do ofício, um grande desejo por ele pelos motivos apropriados, a
disposição de ir a qualquer parte e de se submeter a tudo o que
for necessário no desempenho de seus deveres, [e] um senso de
obrigação — de modo que digamos ‘ai de mim, se não anunciar
o evangelho’”. As qualificações corporais, segundo ele, são “boa
saúde e os dons de expressão necessários”.11
Robert L. Dabney, outro teólogo presbiteriano do século 19,
escreveu que Deus chama um homem ao ministério “iluminando
e influenciando sua consciência e entendimento, bem como aos
seus irmãos, para que compreendam [...] as qualificações nele
existentes que apontam de maneira criteriosa para a pregação
como o seu ofício”.12 As qualificações que ele lista incluem: (1) sau­
dável e ardoroso temor a Deus, (2) sólida reputação de vida san-
ta, (3) caráter de respeitável força, (4) alguma experiência cristã
e (5) aptidão para ensinar.13
Deixemos agora o passado distante. Vou compartilhar uma
história do passado recente, sobre como eu fui chamado ao minis-
tério. Eu estava sentado no primeiro culto de retiro da minha vida,
e para ser sincero eu estava um pouco assustado com a enorme
quantidade de jovens cristãos que havia na capela dessa pequena

10
Letters of George Whitefield: for the period 1734-1742, Edinburgh: The
Banner of Truth Trust, 1976, p. 81-2.
11
Charles Hodge, Princeton sermons: outlines of discourses, doctrinal and
practical, Londres, The Banner of Truth Trust, 1958, p. 311.
12
Robert L. Dabney, Discussions: evangelical and theological, vol. 2, Londres,
The Banner of Truth Trust, 1967, p. 27.
13
Ibid., p. 31.
42 O homem

faculdade cristã denominacional. A faculdade estava localizada


numa montanha, com metade de suas instalações no Tennessee
e a outra metade, na Geórgia. Nós estávamos no Sul americano
com S maiúsculo. Eu nunca tinha estado ali antes. Onde cresci,
havia uma estranha combinação de culturas do meio-oeste e do
sul, o que significava que algumas pessoas eram amigáveis, mas
a maioria não era. Bem, no Sul todos são amigáveis, ao menos na
sua frente. A única coisa que compensava toda essa “gentileza” era
que as “donzelas do Sul” eram muito amigáveis, o que eram boas-
novas — não no mesmo sentido do evangelho, mas ainda assim
boas-novas.
A coisa mais estranha de estar nesse lugar era a impressão de
que a maioria desses garotos e garotas ao meu redor havia crescido
na igreja. Isso era totalmente bizarro para mim, porque eu não
havia crescido na igreja, o que significava que eu não era versa-
do nas nuances da subcultura cristã. Não conhecia a maior parte
dos “corinhos” ou os ridículos movimentos de mão que pareciam
acompanhar cerca de 80% dos “cânticos de louvor”. Eu não sabia
como apenas parecer estar ouvindo atentamente ao palestrante.
Não dominava a habilidade de “fingir fazer anotações frenetica-
mente” durante o sermão, uma habilidade necessária quando você
quer dar a entender que está prestando atenção, mas na verdade
precisa escrever uma cartinha de amor para a terceira namorada
que você arranjou nesse retiro de uma semana. Apesar de tudo
isso, eu estava fazendo o melhor para ignorar boa parte desse
comportamento de “eu-pertenço-ao-grupo-de-jovens” do retiro
para me concentrar naquilo que Deus estava me dizendo.
Esse acampamento cristão em particular tinha um pastor de
acampamento. Gostei dele logo de cara. Em primeiro lugar, ele
era engraçado. Não parecia se levar tão a sério. Em segundo lugar,
ele tinha mais de dois metros de altura, era notoriamente corpu-
lento e tinha jogado basquete na faculdade. Eu gostava da ideia
de ouvir um pregador que provavelmente seria páreo para mim
numa briga.
Um homem chamado 43

Esse pastor de acampamento se levantou e fez algo bastante


incomum para um retiro de jovens (e infelizmente para muitas
igrejas, como hoje sei). Ele abriu a Bíblia. Ora, isso já era uma
coisa estranha em si mesma, mas ele a levou a um novo nível. O
pastor de acampamento cômico e gordo não usava a Bíblia apenas
como um ponto de partida para alguma conversa sobre questões
juvenis (“não beba, não fume e não namore quem faz essas coisas”).
Realmente ensinou a Bíblia versículo por versículo para os ado-
lescentes! Ele levava jeito para usar ilustrações no sermão com as
quais os rapazes ali podiam se identificar, sobretudo porque elas
sempre envolviam esportes, caça ou pesca, que eram as “facul-
dades” pelas quais a maior parte da garotada ali estava optando.
Ele era bom em unir o bom ensino bíblico com uma contextu-
alização adequada.
Lembro que o pastor estava ensinando do começo ao fim o
mara­vilhoso livro chamado Filipenses, escrito pela mão do após-
tolo Paulo enquanto sofria por Jesus numa prisão infestada por
ratos e vigiada por guardas romanos. Perto do fim do acampa-
mento, ele estava pregando sobre Filipenses 3.12-17, e foi nesse
momento que eu soube que Deus estava me chamando para servi-
lo no ministério vocacional. Deus falou a mim interiormente a
partir dessa passagem, dizendo que eu não devia apenas avançar
para as coisas que estão adiante, prosseguindo rumo ao alvo e
me esquecendo das coisas que ficaram para trás, como todo cris-
tão, mas que eu também devia imitar o apóstolo Paulo, passando
o restante da minha vida sofrendo pela igreja e a servindo. Eu
não fazia a menor ideia de como isso seria na prática, nem tinha
ideia do que isso exigiria de mim, mas aceitei o chamado de Deus
naquele dia.

Discernindo o chamado
O seu chamado ao ministério não precisa ser como o meu ou,
aliás, como o chamado de qualquer outra pessoa. Na verdade,
um dos aspectos mais interessantes do chamado é que, seja nas
44 O homem

páginas da Bíblia ou nos anais da história da igreja, Deus rara-


mente chama duas pessoas exatamente da mesma maneira. É
muito importante não padronizar a experiência do chamado. Às
vezes ele é uma experiência dramática como a da estrada para
Damasco. Outras, está mais para uma atração interior. Mas não
importa como o seu chamado tenha se desenvolvido, é imprescin-
dível reconhecer que você precisa ter um claro senso de chamado antes
de entrar no ministério. Examinemos a natureza do chamado um
pouco mais de perto.
O aspirante a pastor/plantador de igreja que está buscando
testar o seu senso de chamado deve buscar confirmação em pelo
menos três áreas: no coração, na mente e nas habilidades.14

Confirmação do coração
Não há nada como ir a um show de rock e simplesmente pirar.
Por causa da música, quero dizer. Se o som estiver certo no show,
dá para sentir o baixo no seu tórax, como que alterando o seu rit-
mo cardíaco. Há uma pressão, uma força da qual você não pode
escapar até deixar o local. Essa pressão é semelhante à confir-
mação do coração de um chamado ao ministério. Você a sente
em você. Você a sente sobre você. É uma pressão no coração e
na alma. Uma pressão inescapável. Uma pressão inevitável. Uma
pressão que evoca um profundo anseio de ser pastor.
Em 1Timóteo 3.1, o autor se refere ao sujeito que “almeja”
ser presbítero. Na verdade, esse desejo pode ser considerado a
primeira qualificação do presbítero. O homem que é verdadei-
ramente chamado deseja o ministério. Ele não entra no ministé-
rio de má vontade, triste, relutante, arrastando os pés. Ele entra
no ministério porque quer e sente alegria em seguir esse desejo.

14
Estou falando no nível popular com essa terminologia; também é legíti-
mo usar o termo coração para se referir à pessoa toda. Cf. a proveitosa discussão a
respeito em Bruce K. Waltke, The book of Proverbs: chapters 1–15 (Grand Rapids:
Eerdmans, 2004), p. 902-9.
Um homem chamado 45

Isso não significa que não se deva ter alguma cautela, já que se
trata de um chamado elevado; mas há um entusiasmo, uma
alegria e um sentimento de privilégio em poder servir a Deus
dessa forma.15
Um verdadeiro chamado é frequentemente acompanhado de
um desejo insaciável de, a todo custo, servir a Deus e ao seu povo.
Há um forte sentimento no coração de que ou é o ministério ou
nada. Considere o chamado de Neemias. O livro que leva o seu
nome começa descrevendo um chamado do coração para servir a
Deus conduzindo o povo dele. No capítulo 1, Neemias pergunta
quanto ao estado dos sobreviventes do Exílio e à condição física
da grande cidade, Jerusalém. O relato que ele recebe não é enco-
rajador: “Os que sobreviveram ao cativeiro estão passando grande
aflição e vergonha lá na província. Os muros de Jerusalém foram
derrubados, e as portas da cidade, queimadas” (Ne 1.3). Essas
notícias atingem diretamente o coração de Neemias. Sabemos
disso por causa do versículo seguinte:

Quando ouvi essas coisas, sentei-me e chorei. Passei dias lamen-


tando-me, jejuando e orando ao Deus dos céus (Ne 1.4 nvi).

Essa é a essência do chamado de Neemias, literalmente o


coração por trás de seu chamado ao ministério. Ele não levou as
notícias para casa e refletiu sobre elas por alguns dias. Não come-
çou imediatamente a procurar soluções e estratégias para abordar
esses problemas, embora mais tarde ele certamente o fizesse, e
muito bem. Não, quando ouviu as notícias, elas lhe cortaram o
coração. O texto enfatiza a urgência, a angústia e o sofrimento
de Neemias, dizendo que ele respondeu imediatamente com pro-
funda tristeza e que, na verdade, ficou de luto por dias. Ficar de
luto é o que fazemos quando alguém morre, e é uma das mais

15
Isso também não significa que não haja alguma “relutância humilde” por
parte daquele que é chamado.
46 O homem

profundas e dolorosas experiências humanas. E nesse caso nós


vemos que ele está de luto porque o povo de Deus e a cidade de
Deus estão em ruínas. As notícias ferem o seu coração, e ele não
teve outra escolha senão alterar o curso de sua vida a fim de servir
a Deus e ao seu povo com os seus melhores dons. Esse é o cha-
mado do coração.
Num chamado do coração, uma profunda inclinação da alma
diz: Eu preciso fazer isso, ou morrerei. O homem chamado não con-
segue se imaginar ingressando numa outra vocação: sonha com o
seu ministério, fala sobre ele e mal pode esperar para estar nele.
Há um desejo permanente e inexorável pela obra do ministério
que o homem chamado não consegue ignorar nem dele se des-
vincilhar — mesmo em meio a sofrimento, perseguição e medo.
Esse forte desejo no coração pode às vezes resultar em ansie-
dade e apreensão. Certas questões são forçadas a vir à tona. Será
que posso mesmo fazer isso? Deus pode mesmo me usar? E se eu fra-
cassar? Nada provoca tanta insegurança quanto se inscrever para
seguir o chamado de Deus e realizar a sua obra. Um homem que
é verdadeiramente chamado pode, às vezes, questionar esse cha-
mado e ter conflitos sérios sobre se deve segui-lo, mas no fim não
conseguirá se afastar dele. Suas dúvidas podem testar o seu desejo
pelo ministério, mas elas não destruirão o seu desejo de ministrar.
É importante reconhecer que as dúvidas e os sentimentos de inse-
gurança não são sinais de que você não é chamado. As pessoas
que são genuinamente chamadas muitas vezes passam por fases
de dúvida e incerteza. Mas com o tempo o senso de chamado vai
ficando mais forte, não mais fraco.
A confirmação do coração vai além de um mero capricho
passageiro ou entusiasmo inicial com a perspectiva de entrar no
ministério. Spurgeon se refere a ela como um “desejo intenso e
total pela obra”.16 É o que Newton chama de “um caloroso e sin-
cero desejo de ser empregado neste serviço [...] ele não consegue

16
Spurgeon, Lectures to my students, p. 26.
Um homem chamado 47

desistir dele [...] o desejo de pregar é sobremodo ardente”.17 Em


outras palavras, o homem que é chamado ao ministério deseja tão
fortemente estar nele que não consegue se conter: o seu chamado
é fogo em seus ossos, exatamente como no caso de Jeremias. É
um desejo profundo de prover para o povo de Deus e protegê-lo,
como o fez Neemias. Essa confirmação do coração é um com-
ponente essencial do chamado. Entretanto, não é suficiente para
indicar um chamado genuíno ao ministério. Um homem que é
verdadeiramente chamado por Deus também experimenta a con-
firmação da mente.

Confirmação da mente
A confirmação da mente é um aspecto importante na hora de
discernir o chamado ao ministério, mas muitas vezes é ignorada
porque é mais fácil se concentrar na confirmação do coração. É
fácil permitir que as emoções daquilo que se percebe ser um cha-
mado tirem o foco de todo o restante. Mas um genuíno chamado
ao ministério vai além dos desejos e emoções, incluindo também
reflexão e planejamento. A confirmação da mente é uma avalia-
ção feita pela pessoa que se sente chamada ao ministério quanto
àquilo a que ela é especificamente chamada a fazer. Enquanto a
confirmação do coração é mais geral e etérea, a confirmação da
mente é específica e prática. A confirmação do coração vem à
tona por meio de suas paixões e clama: Quero dar minha vida pela
igreja! A confirmação da mente segue essas paixões e pergunta:
Como, especificamente, posso servir a igreja?
Muitos homens se entregaram ao ministério em geral sem
fazer a menor ideia de qual ministério em particular eles estão
sendo chamados a exercer. A história cristã nos mostra que um
chamado ao ministério é geralmente acompanhado de um encargo
ministerial específico. Isso não quer dizer que a primeira atribuição

17
John Newton, Memoirs of the rev. John Newton, in: The works of the rev. John
Newton, vol. 1, Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1985.
48 O homem

ministerial também seja a última, mas quer dizer que o chamado


ao ministério se origina num contexto específico.
Um erro comum entre os jovens que se entregam ao minis-
tério é simplesmente adotar o modelo de alguma igreja especí-
fica que eles tenham experimentado ou idealizado. Outro erro
semelhante é adotar cegamente a filosofia e prática de ministério
de algum herói ministerial. O homem que está experimentan-
do a confirmação da mente reflete sobre sua própria filosofia de
ministério, seu próprio estilo de ministério, suas próprias convic-
ções teológicas, seus próprios dons, habilidades e desejos únicos.
Em suma, há algo de único na maneira como ele deseja realizar
o ministério. Diferentemente dos numerosos jovens que sabem
bastante sobre aquilo a que eles se opõem, mas pouco sobre o que
defendem, o homem que está experimentando a confirmação da
mente reflete de maneira muito cuidadosa e deliberada sobre as
seguintes questões: O que eu quero alcançar com minha vida e minis-
tério? Quais são os meus encargos específicos para a igreja? Como posso
servir melhor a igreja nessas áreas?
Um de nossos antigos estagiários na igreja, Gavin, tem uma
herança de ministério na sua família. Seu avô foi pastor, seu pai
é pastor e os seus dois irmãos mais velhos estão no ministério.
Gavin sente o desejo de seguir, ele também, o ministério pastoral,
mas também deseja prosseguir nos estudos. No momento, está
refletindo sobre perguntas como: Será que quero estar no ministério
simplesmente porque os homens mais próximos de mim o fizeram? Será
que Deus está me chamando especificamente para servir no ministério?
Será que ele está me chamando para fazer um doutorado e ensinar, ou
será que está me chamando para servir na igreja local? Esses tipos de
perguntas e os conflitos que as acompanham estão na categoria da
confirmação da mente. O teste máximo da confirmação da mente
é quando um jovem pode dizer: Deus está confirmando, por meio
dos meus pensamentos, o meu chamado para um ministério específico.
As confirmações da mente e do coração são ambas importan-
tes. As duas se encaixam na categoria daquilo que muitos pastores
Um homem chamado 49

e teólogos já descreveram como o chamado interior. Mas em si


mesmas elas são incompletas. Um genuíno chamado ao ministé-
rio se manifesta não apenas nos pensamentos e desejos da pessoa
chamada, mas também nos seus dons, habilidades e talentos. Esse
último aspecto da confirmação se encaixa na categoria daquilo
que os teólogos denominam o chamado exterior, por ser mais facil-
mente reconhecível pelas outras pessoas.

Confirmação das habilidades


Não cresci indo à igreja quando garoto, de modo que, quando me
tornei cristão e comecei a experimentar os aspectos do chamado
ligados ao coração e à mente, eu não tinha um paradigma para o
que fazer com o chamado de Deus na minha vida. A tradição da
igreja que eu estava frequentando era ir para a frente do templo no
final do culto para sinalizar o meu comprometimento espiritual.
Você ia para a frente se quisesse aceitar a Cristo. Ia para a frente se
quisesse se tornar membro da igreja. Percorria o corredor da igreja
se quisesse ser batizado. E, por estranho que possa parecer, você ia
para a frente para tornar público o seu senso do chamado de Deus
para o ministério vocacional.
Minha igreja tinha um processo para ajudar os rapazes enquan-
to eles exploravam um possível chamado ao ministério. Em primei-
ro lugar, a igreja confirmava se nós éramos de fato chamados. Havia
um exame de caráter no qual a igreja perguntava: Esse jovem tem um
caráter qualificado? (Trataremos desse exame mais detalhadamente
no próximo capítulo.) A igreja também examinava as habilidades
do homem que afirmava ser chamado, perguntando: Esse homem
tem os dons necessários para exercer o ministério? Esses dois exames,
de caráter e de habilidade, são de suprema importância para o indi-
víduo que está sendo chamado, porque ele pode comparar a sua
sugestão interior subjetiva com a avaliação objetiva da igreja.
Inevitavelmente, quando a igreja examina a habilidade do
homem em questão, o seu chamado é depurado. A igreja não só aju-
50 O homem

da a responder à pergunta Será que eu sou chamado?, mas também


ajuda a responder à pergunta Para o que eu sou chamado? Dessa for-
ma, a igreja serve tanto como um valioso filtro para distinguir entre
um verdadeiro e um falso chamado quanto como um guia para o
exercício do verdadeiro chamado. Em suma, ela ajuda o homem a
discernir especificamente qual ministério ele deve exercer.
Há duas valas nas quais os líderes de igreja podem cair
quando estão ajudando a confirmar o chamado de um homem
ao ministério do evangelho. Em primeiro lugar, há a possibilida-
de de facilitar demais a confirmação para o ministério. A igreja
pode aceitar sem questionar o chamado interior do homem — o
seu senso subjetivo de chamado — como uma afirmação de Deus.
As igrejas que caem nessa vala têm uma atitude do tipo “Deixe o
garoto pregar!”. Muitas vezes essa abordagem produz um homem
que confia nos seus dons e deixa de desenvolver o seu caráter, o
que praticamente garante uma futura desqualificação.
A outra vala é quando a igreja dificulta demais a confirmação
de uma pessoa ao ministério do evangelho. Essas igrejas têm um
padrão exageradamente elevado quanto ao desenvolvimento de
determinadas habilidades (ser um grande pregador) ou quanto à
formação acadêmica do candidato ao ministério (ele precisa ter
concluído o seminário). Muitos pastores talentosos começaram
ministérios bem-sucedidos mesmo nunca tendo passado pelo
seminário, como Mark Driscoll ou Matt Chandler, dois pastores
com quem eu sirvo no conselho do ministério Atos 29 e que têm
tido grande influência pastoral. Precisamos cuidar para não elevar
demais o nosso padrão e assim acabarmos excluindo do ministé-
rio homens a quem Deus está genuinamente chamando.
Como deve a igreja determinar se um homem está ou não
sendo chamado ao ministério pastoral no que diz respeito às
habilidades dele? Há pelo menos dois testes que a igreja deve
levar em consideração. O primeiro envolve a compreensão que
esse homem tem das Escrituras. Perguntas que devem ser respon-
didas aqui podem incluir:
Um homem chamado 51

1. Ele tem um conhecimento adequado e prático da Bíblia como


um todo?
2. Ele é capaz de articular a história do evangelho ao longo da
Bíblia?
3. Ele tem uma compreensão apropriada dos versículos polêmicos
que causaram divisão na história da igreja (calvinismo vs. armi-
nianismo, métodos e modos de batismo, e assim por diante)?
4. Ele consegue explicar a natureza cristocêntrica da teologia cristã?

O segundo teste envolve investigar o fruto do ministério


dele. As perguntas que devem ser respondidas aqui podem incluir:

1. Ele é capaz de empolgar a igreja para missões?


2. Ele é capaz de moldar uma visão para a igreja e inspirar as pes-
soas a seguir essa visão junto com ele?
3. Ele é capaz de organizar a igreja para que ela alcance seus obje-
tivos?
4. Ele é capaz de organizar sistemas e estruturas que funcionem
independentemente da influência direta dele?

A famosa “analogia do ônibus”, de Jim Collins, se refere ao


trabalho do líder habilidoso. Ele diz que o trabalho de um líder é
“fazer com que as pessoas certas embarquem no ônibus, as pessoas
erradas desembarquem e as pessoas certas estejam nos assentos
devidos”.18 A igreja deve discernir se o candidato é capaz de cons-
truir algo que funcione por si mesmo em vez de depender dele
para funcionar.
Todas essas três confirmações — do coração, da mente e das
habilidades — precisam estar presentes no chamado genuíno. Os
pentecostais/carismáticos tendem a se concentrar no coração e
no chamado sobrenatural de Deus. Os reformados/evangélicos

18
Jim Collins, Good to great: why some companies make the leap and others
don’t, Nova York, HarperCollins, 2001, p. 13.
52 O homem

tendem a se concentrar na mente. As denominações históricas


muitas vezes se concentram nas habilidades. Mas no chamado
genuíno todos os três estão presentes.
Concluiremos este capítulo com algumas perguntas para os
aspirantes a pastor e plantador de igreja que os ajudarão a testar e
discernir o seu chamado:

1. Desejo intensamente o ministério pastoral? A ideia de fazer


alguma outra coisa com a minha vida é inimaginável?
2. Deus me concedeu convicções e ideias específicas sobre como
eu posso melhor servir a igreja com a minha vida?
3. Desejo entrar no ministério para me tornar renomado, provar
que sou alguém ou compensar faltas passadas? Estou pondo à
prova a minha motivação para o ministério e pedindo a Deus
que ele depure os meus desejos e pensamentos?
4. Tenho amor pelas pessoas? Desejo ajudá-las? Meu desejo de
entrar no ministério está ligado principalmente a mim mesmo,
ou principalmente a ajudar as outras pessoas direcionando-as
para Cristo?
5. Tenho prazer em aprender e em transmitir a verdade sobre
Deus às pessoas por meio da Bíblia? Estou disposto a ser disci-
plinado em meus hábitos de estudo como pastor?
6. Sou capaz de conduzir as pessoas rumo a um objetivo de manei-
ra eficaz? As pessoas conseguem me seguir? Estou disposto a
sofrer alguns reveses pelas decisões que eu tomo?
Se fôssemos, como nação, convocados a defender nossos lares e
famílias, não enviaríamos nossos meninos e meninas com espadas e
rifles em punho para enfrentar o adversário; tampouco deve a igreja
enviar todo novato, mesmo que eloquente, ou todo inexperiente,
mesmo que devoto, para defender a fé. (Charles Spurgeon).1

A conduta do prelado deve de tal maneira ultrapassar a conduta do


povo como a vida do pastor o distingue do rebanho [...]. É necessário,
portanto, ser puro no pensamento, exemplar na conduta, discreto
no silêncio, proveitoso na fala, amável como se de todos fosse
praticamente vizinho, elevado acima de todos na contemplação, um
companheiro humilde para os que vivem em retidão, e firme no zelo
pela justiça contra os vícios dos pecadores. (Cipriano).2

Melhor não ter presbíteros do que ter os presbíteros errados. ( Jon Zens).3

1
Charles sPurgeon, Lectures to my students, Grand Rapids, Zondervan, 1972,
p. 13.
Citado em William H. Willimon, Pastor: the theology and practice of or-
2

dained ministry, Nashville, Abingdon, 2002, p. 301.


3
Jon zens, The Major Concepts of Eldership in the New Testament, Baptism
Reformation Review 7, Summer 1978, p. 29, citado em Alexander straucH, Biblical
eldership: an urgent call to restore Biblical church leadership (Littleton: Lewis and
Roth, 1995), p. 83.
3

Um homem qualifi cado

M uitas pessoas se perguntam por que é necessário haver quali-


ficações para o pastor. Elas podem pensar: “Se alguém dese-
ja ser pastor, ele não deveria ter esse direito, não importando se
satisfaz ou não uma lista de critérios? E, além do mais, quem é
que decide quais são esses critérios?”. A rede Atos 29 é frequen-
temente criticada por ter um “foco excessivo” em avaliar as quali-
ficações dos plantadores de igreja em potencial.
A verdade, entretanto, é que todos nós enxergamos a neces-
sidade de critérios em outras profissões. Ninguém embarcaria
num avião se soubesse que o “piloto” adora aviões, mas não tem
um brevê. Ninguém gostaria de ser operado por um “cirurgião”
cuja principal credencial fosse o fato de ter um pai médico. Um
jovem casal não confiaria o projeto de sua casa dos sonhos a um
“arquiteto” cujo portfólio fosse a parte de trás de uma caixa de
Lego. As qualificações são importantes em todo trabalho, e quan-
to mais importante é o trabalho mais importante é a necessidade
de qualificações elevadas.
O Novo Testamento põe grande ênfase na importância
da designação de presbíteros qualificados para a igreja.4 Como
Alexandre Strauch observa, “O Novo Testamento oferece mais
instruções sobre os presbíteros do que sobre outros assuntos
importantes da igreja como a ceia do Senhor, o dia do Senhor, o

4
1Timóteo 3.1-7; Tito 1.5-9; 1 Pedro 5.1-4.
56 O homem

batismo ou os dons espirituais”.5 Além disso, há mais ensino no


Novo Testamento sobre as qualificações para o presbitério do que
sobre qualquer outro aspecto da liderança bíblica.6
A razão dessa ênfase forte é que os presbíteros são incum-
bidos da tarefa sagrada de cuidar das almas eternas por quem
Cristo morreu. Visto que o pastor tem o trabalho extremamente
importante de ensinar e cuidar de almas eternas, é importante
certificar-se de que os homens errados não sejam designados para
esse ofício. Quando um médico desqualificado realiza uma cirur-
gia, um piloto desqualificado pilota um avião ou um arquiteto
desqualificado constrói uma casa, pessoas se machucam e coisas
desmoronam. Na igreja não é diferente: as pessoas geralmente
acabam se machucando quando estão sob líderes desqualificados,
e tudo, desde os casamentos até a própria igreja como um todo,
provavelmente desmoronará.
O Novo Testamento permite grande flexibilidade quanto a
como exatamente os presbíteros devem operar na igreja. Somos
informados de que devemos ter presbíteros, mas não nos é dito
tudo sobre eles. O padrão para a liderança que o Novo Testamento
estabeleceu, porém, é de uma pluralidade de presbíteros.7 Os pres-
bíteros servem como supervisores da igreja, ensinam e pregam a
palavra, protegem a igreja de falsos mestres, exortam e admoestam
os santos na sã doutrina, oram pelos enfermos e julgam questões
doutrinárias.8 Os presbíteros são homens bem conhecidos pela
comunidade, de integridade e caráter comprovados, e são dou-
trinariamente sólidos. Os presbíteros precisam ser homens que
podem pastorear a si mesmos assim como aos outros, tendo auto-
disciplina e maturidade, assim como a habilidade de se relacionar
bem com os outros e de ensinar e cuidar deles. Na pluralidade,

5
Strauch, Biblical eldership, p. 103.
6
Cf. ibid., p. 68-72.
7
Atos 14.23; 15; 20.17,28; 1Timóteo 5.17; Filipenses 1.1; Tito 1.5; Tiago
5.14; 1Pedro 1.1; 5.1
8
Cf., de Strauch, Biblical eldership, p. 16.
Um homem qualificado 57

há prestação de contas e uma força que um homem sozinho não


possui. “Mas pobre do que estiver só e cair, pois não haverá outro
que o levante” (Ec 4.10, nvi).

As qualificações do presbítero no Novo Testamento


Há algumas listas diferentes de qualificações para o presbítero
no Novo Testamento, mas a mais extensa é a de 1Timóteo 3.1-7:

Esta palavra é digna de crédito: Se alguém almeja ser bispo, deseja


algo excelente. É necessário que o bispo seja irrepreensível, marido
de uma só mulher, equilibrado, tenha domínio próprio, seja res-
peitável, hospitaleiro, apto para ensinar; não dado ao vinho nem
à violência, mas amável, inimigo de discórdias, não ganancioso.
Deve governar bem a própria casa, mantendo os filhos em sujei-
ção, com todo o respeito (pois, se alguém não sabe governar a pró-
pria casa, como cuidará da igreja de Deus?); não deve ser novo na
fé, para que não se torne orgulhoso e venha a cair na condenação
do Diabo. Também é necessário que tenha bom testemunho dos
de fora, para que não seja envergonhado nem caia na armadilha
do Diabo.

Em certo aspecto, essa lista de qualificações é notável por ser


tão pouco notável. Quase tudo o que se exige aqui dos presbíte-
ros (ou dos bispos) também se exige de qualquer cristão em outras
passagens nas Escrituras. Por exemplo, a estipulação de que o pres-
bítero não deve ser apegado ao vinho não implica que os demais
cristãos possam imitar os garotos universitários e viver na bebe-
deira. Da mesma forma, o fato de que o presbítero não deve amar
o dinheiro não sugere que os não presbíteros na igreja possam fazer
do dinheiro o seu salvador operacional. Qualquer um que sirva a
Cristo não deve ser apegado à bebida ou amar o dinheiro. O que,
então, distingue os presbíteros dos demais cristãos?
Os presbíteros não são uma classe mais elevada de cristãos.
Antes, como o dr. D. A. Carson observa, “o que é exigido, de certa
58 O homem

maneira, de todos os cristãos, é exigido de forma peculiar dos líderes


dos cristãos”.9 Carson não poderia estar mais certo. Os presbíteros
são chamados a, de uma forma peculiarmente intensa, focar nas
virtudes às quais todos os cristãos aspiram e praticá-las.
O termo bispo vem do grego episcopos, que é usado de forma
intercambiável com o termo presbítero (Tt 1.5,7). Episcopos des-
creve a pessoa que cuida de, considera, examina, fornece cobertura
a algo ou alguém. Na sociedade grega antiga, o bispo [presbítero]
era um guardião, controlador, governante ou administrador.
O que um presbítero supervisiona? Os presbíteros supervi-
sionam pessoas — pessoas por quem Cristo morreu, pessoas pro-
fundamente amadas por Deus. Uma das razões por que é essencial
que os presbíteros sejam homens piedosos e tementes a Deus é
que, quando eles não o são, é muito difícil que as pessoas se tor-
nem piedosas e tementes a Deus. Como escreveu John McArthur,
“aquilo que os líderes são, é isso que as pessoas se tornam. Como
disse Oseias: ‘Tal o sacerdote, tal o povo’ (Os 4.9). Jesus disse,
‘todo o que for bem instruído será como o seu mestre’ (Lc 6.40).
A história bíblica demonstra que as pessoas raramente suplantam
o nível espiritual de sua liderança”.10
Embora a lista de Paulo não seja completa, e tenha sido
escrita para tratar de um conjunto particular de circunstâncias
num contexto específico, ela é bastante útil para discernir que
tipo de pessoa, segundo Paulo, pode se tornar um bom presbítero.
Examinemos a lista de qualificações de Paulo e vejamos que tipo
de indivíduo ele tem em mente para essa função.

Anepilemptos, “irrepreensível”
Esse termo descreve o homem cujo caráter é livre de qualquer mácu-
la séria, que é respeitado por aqueles que o conhecem e amplamente

9
D. A. Carson, The cross and Christian ministry, Grand Rapids, Baker, 1993,
p. 95, grifo do autor.
10
Citado em Strauch, Biblical eldership, p. 70.
Um homem qualificado 59

conhecido por viver uma vida de temor a Deus. Crisóstomo obser-


va: “Toda virtude está incluída nessa palavra”.11 William Mounce
argumenta que a qualidade de ser “irrepreensível” é, no fundo, a
fonte da qual fluem todas as demais qualidades: “esta se apresenta
como título sobre todas essas qualidades: o presbítero precisa ser
irrepreensível; tudo o que se segue enuncia as implicações desse
fato”.12 A qualidade mais básica e fundamental necessária em
um presbítero, portanto, é que ele seja irrepreensível; esse título
abarca tudo o que Paulo descreve aqui em 1Timóteo 3. Mark
Driscoll diz que “irrepreensível” é o termo que funciona como
uma gaveta geral em que Paulo reúne tudo o que significa ser
um homem qualificado.

Mias gunaikos aner, “marido de uma só mulher”


A mente e o coração dele são dedicados a sua mulher. Ele é um
“homem de uma só mulher”.
À primeira vista, pode parecer que Paulo está proibindo o
homem divorciado de ser presbítero.13 Mas o mais provável é que
ele esteja falando da devoção do homem a sua mulher e de sua
conexão com ela. Para ser qualificado, o homem precisa ser exclu-
sivamente devotado a sua mulher, tendo uma profunda conexão
emocional, social e sexual com ela.
Na prática, isso significa que o casamento do pastor preci-
sa ser sadio. Mais do que isso, parece indicar que a ausência de
intimidade emocional ou física num casamento impediria o pas-
tor em questão de exercer o ministério. Em outras palavras, isso
sugere que uma vida sexual insatisfatória impediria o homem de
ser um pastor qualificado. O pastor deve assumir a liderança na
conexão emocional, social e sexual com sua mulher. Como no caso

11
Citado em William D. Mounce, Word Biblical Commentary, vol. 46, Pastoral
epistles (Nashville: Nelson Reference and Electronic, 2000), p. 169.
12
Ibid., p. 152.
13
Confira a discussão em ibid., p. 170 ss.
60 O homem

de todas as demais qualificações, isso não significa que o pastor


ou seu casamento sejam perfeitos. Significa, antes, que esse é um
casamento digno de ser imitado. Significa que outros homens sol-
teiros e casados veem a maneira como o pastor ama e serve sua
mulher como um modelo para a devoção deles à própria mulher
ou à futura mulher.

Nephalios, “equilibrado” ou “moderado”


O pastor deve ter autocontrole (não ser dominado por emoções
ou concupiscências). Ele é livre dos excessos debilitantes ou do
comportamento impulsivo.
Essa qualificação diz respeito à vida emocional do homem.
Um pastor qualificado precisa ser um homem capaz de contro-
lar seus desejos e emoções por meio da submissão ao poder e
autoridade do Espírito Santo. A questão que Paulo parece estar
abordando aqui é que um homem qualificado é conduzido pelo
Espírito, não por suas emoções. Isso não significa que o pastor
precisa se tornar alguém morto por dentro, completamente inca-
paz de sentimentos e emoções. Significa, porém, que o homem
que se submete emocionalmente ao Espírito provavelmente evi-
tará pecados como infidelidade matrimonial, manuseio impróprio
das finanças e ira pecaminosa. A esperança é que ele também leve
a igreja que lidera a evitar esses pecados.
Considere a luta do pastor Bruce Wesley para controlar suas
emoções.14 Ele diz:

Plantar igrejas realmente revelou a minha disfunção emocional.


Olhando para aquela época da minha vida, lembro que eu sempre
estava bravo. Eu estava a ponto de explodir o tempo todo, todos
os dias. Eu justificava minha raiva dizendo a mim mesmo que eu
estava simplesmente focado em lutar pelo evangelho em minha
pequena área de responsabilidade. Mas a realidade diária em casa

Para mais informações sobre Bruce e sua igreja, visite http://www.clearcreek.org.


14
Um homem qualificado 61

era que minha mulher e meus filhos viviam pisando em ovos por
causa do meu comportamento imprevisível.
Dois anos depois de termos plantado a igreja Clear Creek,
comecei a reconhecer em mim um afastamento emocional bas-
tante distinto em relação a minha mulher e meus filhos. E o pior,
percebi que eu provavelmente era o último da família a percebê-lo.
Minha mulher e meus filhos já estavam se sentindo desconectados.
Eu me lembro de me perguntar um dia: “E se seu plantasse
uma igreja muito bem-sucedida, mas não soubesse como amar,
valorizar, proteger e me conectar com minha própria mulher e
meus filhos? E se eu chegasse ao fim da minha única vida, e minha
mulher e meus filhos não quisessem mais saber de mim?”.
Um amigo sábio e temente a Deus me ajudou a perceber
algumas coisas. Em primeiro lugar, ele me ajudou a ver que os
acessos de raiva são como mergulhar numa piscina segurando as
canelas, a famosa “bombinha”: você não sabe realmente o quão
longe a água vai espirrar, porque está se atirando nela de olhos
fechados. Minha raiva estava respingando em pessoas que eu nun-
ca havia pretendido atingir.
Em segundo lugar, ele me ajudou a perceber que eu estava
alavancando a minha energia emocional para me ajudar a permane-
cer comprometido num processo ou para lutar em situações difíceis,
o que pode ser uma coisa muito boa. Mas a minha emoção era a
raiva, e eu estava alvejando as pessoas com ela, especialmente aquelas
mais próximas de mim. Eu percebi que a minha raiva estava conecta-
da ao meu desejo exagerado de ser bem-sucedido. Qualquer um que
ficasse entre mim e os meus objetivos se tornava alvo de minha ira.
Mas eis que o evangelho me transformou. Certo dia meu
amigo me disse: “Nada do que você fizer pode levar Deus a amá-lo
mais, e nada do que você fizer pode levar Deus a amá-lo menos”.
Bem, eu havia dito isso umas centenas de vezes ao longo da minha
vida ministerial. Mas quando meu amigo me disse isso naquele
momento em particular, o Espírito de Deus abriu o meu coração
para ver novamente a vastidão da sua graça.
Percebi que eu estava tentando conquistar o amor de Deus
por meio do trabalho duro e do sucesso. Eu estava bravo porque
62 O homem

essa é uma tarefa interminável, improdutiva e completamente


fútil. E o resultado da minha idolatria e justiça própria era a raiva,
e o resultado dessa raiva era a distância crescente que havia entre
mim e as pessoas que me amavam. Foi quando aprendi a pregar o
evangelho a mim mesmo que o meu mundo emocional se trans-
formou. Debaixo da graça, à luz do evangelho, eu me tornei um
homem com autocontrole. Sou grato [...] e minha mulher e filhos
também são.

Sophron, “que tenha domínio próprio”


Ele deve ter uma mente sã (ter foco e não se distrair facilmente).
Deve ser capaz de julgar bem as coisas e ter bom senso.
Paulo ensina em Gálatas 5.22,23 que o domínio próprio é
resultado da obra do Espírito em nossa vida. No contexto dessa
passagem, Paulo parece indicar que o domínio próprio não resul-
ta da força de vontade, mas é fruto do poder de Deus enquanto
andamos no Espírito Santo e por ele somos conduzidos. Pare-
ce, portanto, que Paulo está dizendo que o pastor deve ser um
homem cuja vida é caracterizada pelo controle do Espírito Santo
sobre ele, resultando num homem cujo “eu” está sob controle.

Kosmios, “respeitável”
Isso significa ter uma vida bem ordenada (uma vida que não se
caracteriza pelo caos).
Essa qualificação parece tratar do caráter geral da vida do
pastor, algo como um medidor de decibéis de sua vida. Um dos
meus amigos pastores era um homem que não tinha a vida em
ordem. O carro dele nunca estava limpo por fora, e por dentro era
muito pior. O jardim e o quintal dele ficavam por conta da própria
natureza: era mato puro (ele dizia aos seus filhos pequenos que
eram flores). Não só o carro, a casa e o quintal dele eram mal-
cuidados, mas ele também era desgrenhado. Havia uma agitação
geral na maneira como ele se portava. Estava sempre afobado,
suas conversas eram sempre apressadas e o caos permeava todo
Um homem qualificado 63

ambiente em que ele se encontrasse. O resultado de tudo isso era


que ele não era respeitado, e isso porque ele não era respeitável.
Ser respeitável significa que o pastor lida bem com as responsabi-
lidades da sua própria vida, ao ponto de outros o verem não neces-
sariamente como um homem que tem o controle total dela, mas
como alguém capaz de suportar o seu peso e complexidade, o que o
qualifica para estar no controle das várias complexidades da igreja.

Philoxenos, “hospitaleiro”
Ele ama os estranhos. Ele não é dado a panelinhas.
Ao contrário do que geralmente se pensa, essa qualificação
não significa que o pastor e sua mulher devam sempre ter algo
preparado para comer em sua casa para todas as pessoas da igre-
ja. Nem significa que a casa do pastor deva ser uma porta gira-
tória para as pessoas da igreja virem se divertir, assistir à tv e
assim “viver em comunidade”. A palavra “hospitaleiro” se refere à
maneira como o pastor e sua família recebem as pessoas que não
são da fé. Em outras palavras, ser hospitaleiro é ser amigo dos
pecadores, e, assim, ser como Jesus.
Um excelente exemplo de hospitalidade centrada na comu-
nidade está na história de Alex Early, sobre como plantou a igreja
chamada Four Corners Church num lugar que ele denomina “um
bar americano de rock’n’roll gls”.15

Em janeiro de 2007, deixei um confortável emprego de igreja por


algo mais radical. Eu havia lido os Evangelhos repetidamente e vi
Jesus como um “amigo dos pecadores”. Olhei meus contatos no
telefone e a minha agenda. Fiquei chocado. Eu não tinha nenhum
amigo não cristão. Todo mundo na minha vida era cristão, branco,
de classe média alta, republicano. Eu não conhecia nenhum “peca-
dor”. Comecei a pensar: “Quem no cinturão da Bíblia não conhece

15
Para mais informações sobre a Four Corners Church, visite http://
fourcornersnewnan.org.
64 O homem

a Cristo, e por quê?”. Pensei na cena dos bares locais. Pensei na


comunidade homossexual.
Deus me disse para largar meu emprego de igreja e ir ao
centro, a um bar chamado Álamo, e arranjar um emprego ali. A
clientela é peculiar, e os funcionários têm os braços cobertos de
tatuagens e declaram numa boa que são ateus. Pensei comigo mes-
mo: “Perfeito”.
Arranjei um emprego como assistente de barman. Meu tra-
balho era manter os estoques nas geladeiras e limpar o estabe-
lecimento. Eu dava aulas como professor substituto das 7h45 às
15h15 e então ia ao Álamo, onde trabalhava das 16h às 2h. Fazia
isso quatro dias por semana. Comecei a conversar com os fregue-
ses e colegas de trabalho do Álamo, conhecendo-os melhor, e aos
poucos apareceram as oportunidades de compartilhar sobre a pes-
soa e obra de Cristo.
Acabei conquistando o interesse da dona do Álamo, Amy
Murphy. Amy, uma mulher homossexual de 37 anos e declara-
damente ateísta, descobriu que eu estava plantando uma igreja.
Certo dia me perguntou sobre isso, e quando eu disse que faria
uma reunião na sala da minha casa para as pessoas interessadas na
igreja, ela me perguntou se podia ir. “É claro”, eu disse. Para minha
surpresa, ela realmente veio.
Depois da reunião, Amy veio falar comigo. “Você precisa de
um lugar maior para a igreja”, ela disse. Eu ri e respondi: “Claro,
por que você não me cede o Álamo?”. Num momento de surpresa
repleto de graça, Amy disse: “OK. Feito”. E assim foi. Ela disse
que não precisaríamos pagar aluguel, e começamos a nos reunir no
Álamo no domingo seguinte.
Meses depois, Amy e eu estávamos sentados no quintal,
fazendo um churrasco, e ela disse: “Sinto como se eu tivesse um
novo coração. Eu fico orando o tempo todo e peço a Jesus que me
perdoe os meus pecados e me ajude a viver para ele no meu traba-
lho, porque é um trabalho tão insano. Quero dizer, eu tenho tido
a consciência nos últimos meses de que Deus está comigo, mas
agora eu sinto como se Deus realmente estivesse dentro de mim.
Isso é normal?”.
Um homem qualificado 65

Tive o imenso prazer, naquele momento, de contar a Amy


que Jesus a havia salvo, que o que ela estava sentindo e experimen-
tando era um dos principais benefícios da salvação, o Espírito de
Deus vivendo nela.
Desde então, Amy já abriu vários outros bares em Atlanta e
região metropolitana, e ela quer ajudar outras igrejas a plantar minis-
térios nos estabelecimentos dela, para que mais pessoas possam
conhecer a Cristo.

Didaktikos, “apto para ensinar”


Isso indica aptidão para o ensino.
Vamos investigar essa questão em mais detalhes em outro
capítulo, mas precisamos observar aqui que o pastor deve ser apto
para ensinar. Um pastor qualificado é capaz de usar as Escrituras e
ajudar as pessoas a entender o que elas significam em seu contexto
original e em sua aplicação contemporânea.

Me paroinos, “Não dado ao vinho”


Ele não tem nenhuma idolatria conhecida (vício).
Essa qualificação parece dizer respeito à válvula de escape
do pastor. Exercitar-se é uma forma legítima de descarregar a
pressão do dia. Brincar com os filhos é uma forma aceitável de
aliviar o estresse. Fazer amor com a esposa é uma forma bibli-
camente encorajada de se distrair das dificuldades do ministério.
Mas afundar-se na bebida não é. Como Mark Driscoll já disse
várias vezes, “Você sabe que tem problemas como pastor quando
os principais nomes do seu grupo de prestação de contas são Jim
Beam, Jack Daniels e Jose Cuervo”.16
Essa qualificação parece se referir ao vício em substâncias em
geral, não se limitando ao vinho. No meu treinamento e mento-
reamento de plantadores de igreja e pastores, fico chocado com o
grande número deles que ou é viciado em álcool ou está a caminho

16
Marcas conhecidas de uísque e tequila na América do Norte. N. do E.
66 O homem

desse vício. O mesmo se pode dizer, cada vez mais, quanto aos
medicamentos controlados. Um pastor que conheço não conse-
guia relaxar sem tomar várias cervejas depois do trabalho, e não
conseguia dormir sem o auxílio de um sonífero. Isso não é peri-
goso somente para o corpo, a mente e as emoções, mas também
é sinal de uma profunda falta de fé na capacidade de Deus de
satisfazer as nossas necessidades e prover a nossa força.

Me plektes, “não dado à violência”


Na arc, plektes é traduzido por “espancador”. Em outras palavras,
você não pode ser pastor se costuma sair no tapa com membros da
sua igreja ou pessoas não salvas da sua cidade. Conheci um pastor
que estava a caminho de ser desqualificado porque era brigão. Eu
estava realizando um ministério no distrito francês de Nova Orleans
durante a festa de Mardi Gras. Se você não conhece essa festa de rua
saiba que se trata de um dos eventos mais decadentes da América do
Norte. A Mardi Gras faz uma festa universitária parecer um jantar
dominical na casa bisavó. Durante o evento, eu mesmo vi pesso-
as fazendo sexo a céu aberto outras pessoas vomitando, não poucas
delas se embriagando depois e se aliviando na mesma rua. Obvia-
mente (que surpresa!), essa não era uma rua qualquer; era a infame
Bourbon Street.17 Por mais chocante que tenha sido presenciar toda
essa baixaria, foi um choque muito maior ver um dos pastores locais
literalmente nocauteando um dos farristas da Mardi Gras com um
único gancho de direita. Bom lutador, péssimo pastor. Em resumo,
você não pode ser pastor se tende a lidar com os conflitos da mesma
maneira como Mike Tyson “lidou” com Evander Holyfield. Basica-
mente, cuidar do rebanho com um soco-inglês é algo que a Bíblia
desaprova por completo.

17
A Bourbon Street em particular e o distrito francês em geral tinham um
cheiro peculiar — uma combinação de álcool, urina e vômito, que eu imaginei como
sendo o cheiro do pecado.
Um homem qualificado 67

Epieikes, “amável”
A palavra “amável” aqui não se refere àqueles homens passivos
e inertes, de aperto de mão macio, que precisam de um espelho
retrovisor implantado na testa de tanto que recuam. A amabi-
lidade nesse contexto significa ser flexível, ser disposto a ceder
quando houver a possibilidade. Essa palavra descreve um homem
que não precisa que as coisas sejam sempre como ele quer. Essa
qualificação diz respeito ao quociente de teimosia do homem. Os
homens qualificados não precisam que as coisas sejam sempre do
jeito deles. Eles estão dispostos, em prol da igreja, a não estar
sempre certos.

Amachos, “inimigo de discórdias”


Ele deve ser inimigo de discórdias (2Tm 2.24,25).
Você não pode ser pastor se o seu “aconselhamento pastoral”
produz mais calor do que luz. Em outras palavras, você não é um
homem qualificado se transforma a maioria das conversas em dis-
cussões acirradas. Há homens que adoram mais do que qualquer
outra coisa “assumir o lado oposto” e brincar de “advogado do dia-
bo”. Esse tipo de comportamento pode resultar em ibope para um
seminarista, mas vai desqualificar você para a função de pastor.

Aphilarguros, “não ganancioso”


Ele não deve amar o dinheiro mais do que ama a Deus (Hb 13.5;
1Tm 6.7-9).
Um homem que entende os desafios e recompensas de ser
livre do amor ao dinheiro é Jason Martin, que pastoreia a Journey
Church em Atlanta, Geórgia.18 No decorrer da sua vida de minis-
tério vocacional, Jason serviu igrejas que compensavam a ausência
de foco no evangelho com um bom salário e benefícios agradáveis

18
Para mais informações sobre Jason e a Journey Church, visite o seu site:
http://thejourney.org.
68 O homem

aos pastores. O Espírito Santo convenceu a Jason do seu erro em


se contentar com os confortos financeiros temporários que a igre-
ja fornecia em vez de desafiar as pessoas a promover os benefícios
eternos que só o evangelho pode produzir.
Quando Jason assumiu o risco ousado de replantar sua igreja,
colocando todos os seus recursos na formação de uma presença
centrada no evangelho na região oeste de Atlanta, a sua iniciativa
veio acompanhada de desvantagens financeiras.
A respeito dessa época, Jason diz: “Assumir um compro­misso
de unificar as pessoas e replantar a igreja foi, de uma pers­pectiva
financeira, uma péssima decisão. Deixei um salário polpudo
de tempo integral para ficar quase três anos sem receber nada
da igreja”. Ele acrescenta: “Acho que sou como a maioria dos
homens. Sempre quis oferecer à minha família a segurança e os
confortos de que muitas outras famílias usufruem. Mas levar a
transformação do evangelho às igrejas tem muitas vezes signifi-
cado que a minha família precisa aprender a viver com menos, e
não com mais”.
Embora os benefícios palpáveis possam não ser tão fartos
como antes, Jason revela que ele não mudaria coisa alguma.
“Nos últimos anos de replantação, temos testemunhado
Deus realizar coisas extraordinárias que compensam as pressões
financeiras pelas quais passamos. A satisfação temporária que o
dinheiro pode comprar e o prazer que proporciona, perdem a
importância diante da satisfação eterna proporcionada pelo evan-
gelho e das alegrias que acompanham o perdão dos pecados e
uma relação correta com Deus”, afirma Jason.
Para os pastores que amam o dinheiro, alguma hora esse
amor acabará vindo antes do bem da igreja. Eles tomarão decisões
visando garantir a segurança do seu próprio trabalho e o aumento
do seu salário, decisões que na maioria das vezes obstruirão o pro-
gresso do evangelho. Além disso, os pastores que amam o dinhei-
ro tendem a se apropriar dele indevidamente (usando o cartão de
crédito da igreja para aquisições pessoais, roubando o dinheiro
Um homem qualificado 69

das ofertas e aumentando o próprio salário sem a aprovação dos


presbíteros, só para citar alguns exemplos).

Proistemi, “deve governar [bem a própria casa]”


Isso significa colocar-se à frente de, governar, ser diligente (ser o
líder espiritual da família).
Os puritanos costumavam dizer que você não pode pasto-
rear a grande igreja (a sua congregação) se não consegue pastorear
a pequena igreja (a sua família). Se você não consegue ensinar
as Escrituras a seus filhos, não conseguirá ensiná-las à igreja.
Se você não é capaz de responder às questões teológicas de sua
mulher, não conseguirá ser aquele que responde às questões teo-
lógicas da igreja.
Proistemi também se refere ao homem que consegue man-
ter seus filhos sob controle com toda a dignidade — fazer com
que os filhos sejam obedientes de uma forma graciosa, em função
de um comportamento paternal amoroso e pastoral. É excessivo
o número de filhos de pastores que se comportam como diabi-
nhos rebeldes. Mas a culpa não é deles. Muitos pastores, embora
não poupem o traseiro dos filhos, não disciplinam a atitude deles,
que é o verdadeiro catalisador do mau comportamento. Isso não
signi­fica que os filhos do pastor devam invariavelmente ser per-
feitos e amáveis anjinhos, mas significa, antes, que eles devem
ser criados sob o controle amoroso de pais cuja disciplina cultiva,
dentro deles, um temor saudável a Deus.

Me neophutos, “não deve ser novo [na fé]”


Ele não deve ser alguém que tenha nascido para a fé recentemente
(um bebê espiritual). Essa qualificação diz respeito à maturida-
de espiritual do pastor, especificamente a sua longevidade como
cristão. Obviamente, essa qualificação, junto com as demais, é
subjetiva, e é por isso que a igreja local deve estar intimamente
envolvida quando se trata dela.
70 O homem

Marturia kale, “[que tenha] bom testemunho [dos de fora]”


Ele precisa ter uma boa reputação diante das pessoas de fora da
igreja; deve ser alguém que tem contato com não cristãos e é
respeitado pela sua fé. Isso implica, em primeiro lugar, que os
presbíteros tenham relacionamentos com não cristãos. Essa
quali­ficação não faz sentido de outra maneira. Os presbíteros
devem ser homens que são respeitados não apenas pela igreja,
mas também pelos não cristãos. Embora os presbíteros sejam
chamados a viver segundo um padrão bíblico, que é mais ele-
vado que o padrão do mundo, eles devem pelo menos atender ao
padrão de decência do mundo. Uma boa reputação diante dos
não cristãos também os protege de ataques ao seu caráter feitos
por pessoas de fora da igreja.
Os presbíteros qualificados exibem integridade no seu local
de trabalho e são conhecidos por trabalhar duro, de acordo com
Colossenses 3.22,23. Eles também buscam intencional­mente
desenvolver relacionamentos com os não cristãos e se dão a
conhecer às pessoas. Nesses relacionamentos, são honestos sobre
sua fé e vida.

Prosseguindo a partir daqui


Se enquanto você lê estes capítulos alguns “sinais de alerta” estão
piscando na sua mente em relação a aspectos aqui tratados, por
favor, não cometa a tolice de ignorá-los. Se o Espírito Santo o
está convencendo de algum problema em determinada área de
qualificação, é necessário abordar essa convicção. Embora alguns
de nós tenham uma consciência excessivamente sensível e pre­
cisem ser lembrados de que a única pessoa realmente qualificada
para o ministério é Jesus, outros de nós precisam passar um tem-
po significativo orando sobre essas questões, e não podem sim-
plesmente ignorá-las. Essas qualificações não são arbitrárias: elas
servem para proteger você, sua família e a igreja do fracasso, do
pecado e da dor. Seria muito melhor passar uma temporada fora
Um homem qualificado 71

do ministério do que ser desqualificado para ele.19 Se, ao ler sobre


essas qualificações, você percebeu que ainda não está qualificado
para o pastorado, quero lhe oferecer três encorajamentos.
Em primeiro lugar, é importante lembrar que as qualifica-
ções bíblicas para o ministério não são uma coisa do tipo agora
ou nunca. Em outras palavras, não ser qualificado para o minis-
tério não é necessariamente algo permanente. Se após ler sobre
essas qualificações você percebeu que não está qualificado para
o ministério, isso não significa que nunca mais poderá ser um
ministro. Se você é um jovem aspirante a pastor e está lutando
contra algum vício, por exemplo, talvez o Senhor deseje que obte-
nha algum progresso nessa luta antes de entrar no ministério,
para que depois possa ministrar de forma mais eficaz. Mas isso
não significa necessariamente que você nunca poderá ingressar no
ministério. Ou, se você é um pastor culpado de negligenciar a sua
família, isso pode significar que você precise passar um período
fora do ministério para reverter esse quadro, investindo na sua
família. Mas isso não significa necessariamente que você nunca
poderá exercer o ministério de novo.
Em segundo lugar, ser pastor não é a coisa mais importante
na sua vida. Seu primeiro chamado não é ser pastor, mas sim ser
cristão. Não devemos nunca idolatrar o ministério pensando que
não teríamos nenhuma importância sem ele. Precisamos olhar
para Cristo e sua obra na cruz em nosso favor para encontrar
nossa identidade e propósito mais profundos. Se tiver de escolher
entre continuar no ministério ou ser um cristão fiel, escolha a
segunda opção. Será muito melhor para você, sua família e a igreja
de Cristo.
Em terceiro lugar, ser pastor não é a única maneira de ser
valioso para a igreja. Se você passa um período fora do pastorado,

19
Para aqueles no ministério que estão lutando contra o pecado sexual, um bom
recurso é o livro de John H. Armstrong, The stain that stays: the Church’s response to
the sexual misconduct of its leaders (Ross-shire: Christian Focus Publications, 2000).
72 O homem

isso não quer dizer que está proibido de apoiar a igreja e sua lide-
rança, de servir a igreja como leigo ou de usar os seus dons espiri-
tuais para edificar o corpo. A sua disposição em se afastar por um
período será instrutiva aos outros quanto à necessidade da santi-
dade pessoal e à seriedade e ao peso do ofício pastoral. No fim,
o Senhor pode usar esse cenário para o bem dos seus propósitos.
Para todos nós, onde quer que estejamos na trajetória do
nosso chamado, essas qualificações são um desafio a que busque-
mos ser santos e irrepreensíveis em nossa vida pessoal, em nossos
relacionamentos e na nossa função pública. No fim das contas,
nenhum de nós é qualificado diante de Deus para servir o seu
povo. Como o apóstolo Paulo pergunta: “E quem está preparado
para essas coisas?” (2Co 2.16). Nossa esperança não está em nós
mesmos, mas em Cristo, que nos chama, nos purifica, nos equipa
e nos qualifica.20

20
Se você tem perguntas adicionais sobre a sua qualificação para o ministério,
a melhor coisa a fazer é pedir ajuda à liderança da sua igreja. Se essa opção não
for viável, considere a possibilidade de participar de um processo de avaliação
do ministério Atos 29. Você pode aprender sobre esse processo em http://www.
acts29network.org/plant-a-church/assessment-process.
Os homens dependem da bênção e da providência favoráveis de
Deus para o êxito em todos os afazeres, mas o êxito deste afazer em
particular depende de maneira mais diversa e imediata da influência
divina. Este ofício depende, de todas as formas, de Deus. É ele que
deve equipar e qualificar o ministro para o seu trabalho. É ele que lhe
deve conceder um coração que, sincera e seriamente, busque os fins
desse trabalho. É ele que deve assisti-lo em particular e em público.
É ele que deve dispor o ministro favoravelmente à sua congregação,
e é ele que deve inclinar o coração desta favoravelmente ao ministro,
desse modo influenciando a ambos, para que uma harmonia possa ser
conservada entre ministro e congregação, e que assim esteja livre o
caminho para o êxito do ministério dele. ( Jonathan Edwards).1

[O pastor] deve morrer para todas as paixões da carne, vivendo, agora,


uma vida espiritual. Ele precisa ter posto de lado a prosperidade do
mundo; não deve temer adversidade alguma, mas desejar apenas o que
é interior [...] Ele não está inclinado a cobiçar o bem dos outros, mas
é generoso em dar daquilo que é seu. Ele não demora a perdoar, pois
tem um coração compassivo [...] [Ele] se compadece das fraquezas dos
outros, e regozija-se, portanto, no bem [...] Ele estuda com afinco para
viver de modo a ser capaz de regar o coração ressequido dos outros [...]
Por sua prática e experiência na oração, ele já aprendeu que pode obter
do Senhor aquilo que pede. (Gregório Magno).2

1
Jonathan edwards, The salvation of souls, Wheaton, Crossway, 2002, p. 14-23.
2
Gregório Magno, Pastoral care, I.10, 38, citado em Andrew Purves, Pastoral
theology in the classical tradition (Louisville: Westminster John Knox, 2001), p. 67.
4

Um homem dependente

A lgo me chamou a atenção na academia recentemente. Parece


que há basicamente dois tipos de sujeitos que a frequentam.
Perto dos pesos e nos bancos de musculação, você vê os caras gran-
dões, praticamente sem pescoço, que passam a maior parte do tem-
po levantando pesos pesados. Esses sujeitos são enormes. A maioria
deles, contudo, não está em ótima forma, e você raramente os vê na
esteira ou fazendo abdominais. Então, nas esteiras, você encontra
os caras magrinhos, com praticamente zero de gordura corporal,
que conseguem correr como gazelas, mas muito raramente se arris-
cam nos pesos. Ambos os grupos tendem a permanecer na área na
qual se sentem mais confortáveis e evitar as áreas de fraqueza. Cer-
to dia, após uma excelente sessão de exercícios, senti que o Espírito
Santo estava me dizendo: Com os pastores é bem assim. Os pastores
tendem a permanecer na área em que são fortes e evitar as suas
fraquezas. Os pastores mais inclinados à reflexão teológica tendem
a passar muito tempo lendo e discutindo teólogos que já morreram.
Já os mais inclinados às missões tendem a passar bastante tempo
analisando a cultura contemporânea e tomando café com leite. Os
que gostam de pastorear tendem a passar muito tempo convivendo
com as pessoas e as aconselhando. Mas raramente vemos pastores
saírem das áreas dos seus pontos fortes e se arriscarem em suas
áreas de fraqueza. Por que isso acontece? Porque é desconfortável.
É difícil. É algo que deixa a nossa carne faminta.3

3
Biblicamente falando, a carne é aquela parte de nós que ainda precisa ser
entregue a Deus; cf. Romanos 8.7.
76 O homem

A razão pela qual menciono isso no começo deste capítulo


é que um dos grandes estímulos à dependência de Deus é deixar
a sua zona de conforto e os pontos fortes do seu ministério e se
arriscar nas suas áreas de fraqueza. Você se sentirá inadequado,
mas, de uma forma paradoxal, você se tornará mais forte do que
nunca para o reino de Deus, porque será forçado a depender mais
do poder dele que do seu próprio. E, no fundo, é só o poder de
Deus que faz com que cada um de nós consiga respirar, pensar e
andar, para não mencionar exercer o ministério.4
O que eu quero dizer neste capítulo, essencialmente, é que a
nossa eficácia no ministério depende diretamente da nossa dependência
do poder do Espírito Santo. A qualidade da sua caminhada com
Deus será a qualidade do seu ministério. É só quando estamos
vitalmente conectados a ele que podemos ser vitalmente úteis aos
outros. Como Spurgeon, de forma sublime, disse há muitos anos:
“A qualidade do trabalho no ministério cristão é diretamente pro-
porcional ao vigor da nossa natureza renovada”.5

Por que a dependência é importante?


A maioria dos rapazes que encontrei que tem a aspiração de ser-
vir a Deus no ministério vocacional está focada principalmente
nos aspectos pragmáticos do ministério: o aperfeiçoamento das
habilidades de pregação, o crescimento da igreja, o engajamento
cultural etc. É bom buscar a excelência nessas áreas. O paradoxo
do ministério cristão, todavia, é que o nosso melhor desempe-
nho na liderança, na pregação e no pastoreio tem a sua origem
fundamental em uma vida espiritual rica, e não nas habilidades
ministeriais em si. Tornar-se um melhor pregador, líder, pastor
ou exegeta cultural depende inteiramente da saúde e vitalidade da
vida espiritual do ministro.

4
“Sem mim nada podeis fazer”, diz Jesus em João 15.5.
5
Charles Spurgeon, Lectures to my students, Grand Rapids, Zondervan, 1972,
p. 17.
Um homem dependente 77

Não há dúvida de que, para conduzir bem uma igreja no sécu-


lo 21, é necessário ler autores contemporâneos tanto da esfera ecle-
siástica como da esfera empresarial.6 Como Mark Driscoll tem dito
repetidamente: “Os homens do ministério Atos 29 devem crer
no princípio sola Scriptura, mas não na Scriptura solo”.7 Por causa
da graça comum, podemos extrair alguns princípios também do
mundo empresarial — afinal, toda verdade é a verdade de Deus.
Porém, se quisermos aprender a dependência de Deus e experi-
mentar uma renovação interior pessoal, precisamos voltar alguns
séculos no tempo.
O que tenho observado é que grande parte da literatura
atual sobre espiritualidade é rasa e se concentra na modificação do
comportamento (embora, é claro, seja possível encontrar algumas
exceções). Grande parte da literatura devocional de épocas ante-
riores da história da igreja não era tão fascinada pelo “sucesso”,
nem tão tragada pelo entretenimento, e geralmente apresentava
uma reflexão mais profunda sobre o que constitui uma vida inte-
rior espiritual e vital. Infelizmente, hoje a maioria dos pastores
passa pouco tempo lendo os clássicos. Temos, portanto, uma ideia
incompleta, diminuída e empobrecida da espiritualidade. Nós nos
esquecemos de que a nossa mente e o nosso coração estão inextri-
cavelmente ligados, e nos esquecemos de que o mais importante
no nosso ministério é a nossa própria caminhada com Cristo.
John Wesley, que tinha o costume de passar duas horas por
dia em oração, escreveu: “Deus nada faz a não ser em resposta à
oração com fé”. A maioria das pessoas dirá: “Duas horas! Sou ocu-
pado demais para passar tanto tempo em oração!”. Mas Martinho

6
Algumas leituras essenciais que recomendo são Jim Collins, Good to great:
why some companies make the leap… and others don’t (New York: Harper Business,
2001); Michael Gerber, The e-myth: why most businesses don’t work and what to do
about it (New York: Ballinger, 1985).
7
Sola Scriptura era um dos princípios dos reformadores durante a reforma
protestante de 500 anos atrás. Ele se refere à convicção de que a Bíblia, e só ela, é a
nossa autoridade final em questões de teologia e vida.
78 O homem

Lutero disse algo que se tornou famoso: “Se deixo de passar duas
horas em oração a cada manhã, o diabo obtém a vitória durante
o dia. Tenho tantas coisas a fazer que não posso seguir adiante
sem passar três horas diárias em oração”. De acordo com Lutero,
estar ocupado é uma razão ainda maior para passar muito tempo
lutando com Deus em oração.
Richard Baxter, o pastor e teólogo puritano, aconselhou os que
pretendem servir no ministério pastoral com as seguintes palavras:

Quando a mente de vocês apresentar uma disposição santa e


ce­lestial, sua congregação estará inclinada a tomar parte nos frutos
dela. As orações, os louvores e a doutrina de vocês serão doces
e celestiais aos seus ouvintes. Muito provavelmente, eles sentirão
quando vocês passaram bastante tempo com Deus: aquilo que
mais ocupar o coração de vocês provavelmente é o que mais ocupará
os ouvidos deles.8

Baxter está nos lembrando de algo que muitas vezes esque-


cemos, mas que deveria ser bastante óbvio para nós: a nossa con-
gregação percebe quando estamos perto de Deus — e quando não
estamos. Isso aparecerá em nossos sermões, em nossas orações, na
forma como lideramos e até mesmo nas nossas conversas. Assim
como a face de Moisés resplandeceu diante dos israelitas após ele
ter estado com Deus, assim a nossa vida irradiará a presença de
Deus quando tivermos passado tempo com ele.9 O fato, no final
das contas, é que os pastores passam tempo demais falando e assim
não são capazes de guardar segredos! Quem somos diante de Deus
é algo que de nós flui constantemente.10

Richard Baxter, The reformed pastor, General Books llc, 2009, p. 61.
8

Êxodo 34.29-35.
9

10
Seremos sábios em atentar às palavras de Mateus 12.34, prestando atenção
em nossas palavras, porque elas revelam nosso coração.
Um homem dependente 79

Baxter prossegue:

Se nós mesmos deixarmos de nos alimentar, eles passarão fome;


isso logo ficará visível em sua esqualidez e no frouxo desempe-
nho de seus vários deveres. Se deixarmos o nosso amor esmorecer,
é improvável que inflamemos o amor deles. Se deixarmos nos-
so temor e preocupação santos enfraquecerem, nossa pregação
sofrerá: se não no conteúdo, então na maneira como pregamos. Se
nos alimentarmos de comida insalubre, sejam erros ou polêmicas
infrutíferas, nossos ouvintes provavelmente sofrerão por isso.11

Em outras palavras, não só a nossa congregação consegue


perceber onde estamos espiritualmente, mas também nós somos
um padrão para eles. Eles provavelmente não buscarão a santidade
com mais zelo do que nós. Eles provavelmente não compartilha-
rão a sua fé mais frequentemente e mais eficazmente do que nós.
Eles provavelmente não lutarão mais tempo em oração diante de
Deus do que nós.

O que é dependência?
Praticamente no centro do seu sermão mais famoso, o Sermão do
Monte, Jesus desafia seus seguidores com respeito à vida depen-
dente. As palavras dele têm implicações interessantes para aqueles
entre nós que desejam ingressar na vida do ministério público ou
já estão nela:

E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois gostam de


orar em pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vis-
tos pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam sua
recompensa. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechan-
do a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê o que
é secreto, te recompensará.12

11
Baxter, The reformed pastor, p. 61-2.
12
Mateus 6.5,6.
80 O homem

Jesus está expondo a tendência que os líderes religiosos têm


de parecerem homens de oração por falarem frequentemente sobre
Deus em público. Esses versículos desafiam aqueles entre nós que
estão no ministério público, ao nos fazer questionar: Do que eu gosto
mais — de orar em público ou de orar sozinho? Quanto mais valori-
zamos a oração pública em vez da oração privada, mais estamos
buscando a aprovação dos homens, e não de Deus. Para os líderes, é
muito mais fácil orar em público, porque é isso que se exige de nós
e porque frequentemente recebemos elogios por quão maravilhosas
e bem enunciadas são as nossas orações públicas. Percebo isso na
minha própria vida, quando me ouço orando na frente dos outros
e orando sozinho. Minhas orações públicas tendem a ser eloquen-
tes, ponderadas e fluidas. Minhas orações pessoais muitas vezes são
incoerentes, excessivamente emocionais e desordenadas.
Por que é tão fácil ser ótimo na oração pública e terrível na
oração privada? A lógica de Jesus em Mateus 6.5,6 explica essa
dicotomia: é uma questão de recompensa. Basicamente, somos
imediatamente recompensados por fazer uma boa oração em
público, mas não o somos pela oração privada. As orações públi-
cas frequentemente são elogiadas pelas pessoas ao nosso redor,
que ficam impressionadas com a nossa oratória. As orações públi-
cas muitas vezes são animadas pela empolgação do momento, em
vez de pela séria realidade eterna. Elas muitas vezes são animadas,
portanto, pela performance, não pela paixão; ou então pelas pes-
soas, não por Deus.
A oração privada é a que revela a verdadeira condição espiri-
tual do coração humano. Será que estamos orando em particular
apenas por aquilo que Deus pode fazer por nós, ou estamos real-
mente orando por um melhor entendimento de Deus? Será que
estamos orando apenas para que a nossa vida melhore (se torne
mais fácil, mais confortável), ou estamos orando para nos tornar-
mos mais próximos de Deus?
Além da oração, muitas outras práticas nos ajudam a cultivar
a dependência de Deus. Uma delas é o jejum. Jesus nos chama a
Um homem dependente 81

jejuar em privado, e ele também nos chama a orar em privado


(Mt 6.16-18). É interessante que o nosso Senhor diz quando
você jejuar, não se você jejuar (v. 16). Implicação: você deve jejuar.
Jejuar é uma maneira muito eficaz de reduzir as distrações, focar
em Deus e cultivar um senso de dependência dele. A maioria dos
pastores não jejua, o que fica claro pela expansão constante na
região da cintura deles.
Outra prática útil é a meditação. Defino meditar como refle-
tir sobre a palavra de Deus, fazer perguntas sobre a aplicação das
verdades dela, falar essas verdades a si mesmo e usar a palavra
de Deus na oração ao próprio Deus.13 A meditação permite que
o Espírito Santo aplique a verdade das Escrituras à nossa vida
durante a nossa devoção pessoal e leitura da Bíblia.
Há outras práticas que podem nos ajudar a cultivar a depen-
dência de Deus, como memorizar as Escrituras, a adoração pessoal,
tirar um “sábado” de descanso e servir aos outros. Nosso foco,
contudo, não deve estar naquilo que estamos fazendo, mas em
nos aproximar de Deus. “A tua mão esquerda não saiba o que faz a
direita” (Mt 6.3). Quando focamos numa lista de práticas, pode-
mos nos tornar legalistas, nos concentrando em quão bem ou em
quão mal estamos nos saindo, e acabamos perdendo de vista o
próprio sentido da coisa. Além disso, diferentes pessoas encontra-
rão proveito em diferentes práticas. Assim, cada um de nós precisa
aprender como melhor cultivar a dependência do Espírito Santo.
Não há fórmula: nosso objetivo deve ser simplesmente fazer o
que for preciso, seja o que for, para cultivar um senso maior de
dependência de Deus na nossa vida. Gosto da paráfrase que Jack
Deere faz de João 17.26: “Pai, concede-me o poder do Espírito
Santo para amar ao Filho de Deus assim como tu o amas”.14 Esse
deve ser o clamor de nosso coração.
13
O livro de Donald Whitney, Spiritual disciplines, é um bom recurso para
aprender mais sobre a meditação cristã (Colorado Springs: NavPress, 1997).
14
Jack Deere, Surprised by the power of the spirit: discovering how God speaks
and heals today, Grand Rapids, Zondervan, 1993, p. 201.
82 O homem

Na rede Atos 29 gostamos de dizer que somos “carismáti-


cos com cinto de segurança”. Nós cremos que os dons sobrena-
turais não cessaram e, portanto, devem ser buscados por todos os
cristãos (ver, p. ex., 1Co 14.1) e usados nas reuniões de adoração
(1Co 14.26). Para nós, todavia, ser aberto à obra sobrenatural do
Espírito Santo não significa apenas dar espaço para certos dons
espirituais. Também significa que todo o nosso ministério como
pastores cristãos deve ser caracterizado pelo sobrenatural — isto
é, por aquilo que não é possível sem a ajuda de Deus, por aquilo
que somos incapazes de realizar com nossas habilidades naturais.
Nós nos tornamos mais dependentes quando reconhecemos a
verdade do lema de Francis Schaeffer em nosso próprio ministé-
rio: “O que estamos fazendo não é apenas difícil — é impossível”.
Também há um aspecto relativo à batalha espiritual no nosso
ministério que precisa ser reconhecido. Se você acha que os demô-
nios não são reais, tente plantar uma igreja! Você não conseguirá
fazer o reino de Deus avançar bastante sem sentir a resistência do
inimigo. Como ocidentais modernos, muitas vezes nos esquecemos
de que temos um inimigo e de que ele se opõe a nós ativamente.
Tornar-se um homem dependente significa tornar-se mais cons-
ciente da batalha espiritual que está acontecendo ao nosso redor,
reconhecendo a nossa parte nessa realidade invisível (Ef 6.12; 2Co
10.3). Não somos chamados a derrotar o Diabo — Cristo já fez
isso na cruz e os dias até o seu triunfo final e completo sobre Sata-
nás já estão contados. O que somos chamados a fazer é resistir ao
Inimigo (Tg 4.7) e nos firmar em nossa fé (1Pe 5.9). Deus será fiel
para nos proteger e nos prover ajuda contra os ataques de Satanás.

Detectando a dependência
Para muitos de nós, responder à pergunta “Estou vivendo em
dependência de Deus?” é uma tarefa difícil. Parte da razão disso é
que muitas vezes não sabemos se estamos vivendo em dependên-
cia de Deus, e isso porque não estamos ativamente conscientes do
Um homem dependente 83

estado de nosso coração. Eis algumas perguntas que podem nos


ajudar a discernir a orientação de nosso coração:

1) O que eu quero mais — conhecer a Deus ou realizar coisas para


Deus? Alguns versículos para meditar: Filipenses 3.10; Êxodo
33.13; 1Timóteo 4.6-10.
2) Quando foi a última vez em que o Espírito Santo me impeliu a fazer
algo? Versículos para meditar: João 4.7-19; Atos 16.6-10.15
3) Estou sendo consistentemente convencido de pecados em minha vida?
Versículos para meditar: Hebreus 12.5-11; João 16.7,8; 1João 3.9.
4) Estou consistentemente aceitando o fato de que sou aceito por Deus
por meio de Cristo? Versículos para meditar: 2Coríntios 5.17,21.
5) Para onde vão os meus pensamentos quando não sou forçado a
pensar em algo em específico? Versículos para meditar: Salmos
63.1-4. Se sua mente vai imediatamente para o seu passatempo
favo­rito, algo está errado!

Não há uma fórmula certinha para desenvolver a dependên-


cia de Deus.16 A melhor forma de progredir é cultivar o desejo

15
A palavra “concluindo” em Atos 16.10 nos ajuda a enxergar que, embora
essas incitações sejam místicas, elas também estão conectadas ao pensamento estra­
tégico. Paulo teve dois impedimentos em seu espírito e uma visão clara, mas foi
somente depois de chegar a uma conclusão — relacionar todas essas coisas cogniti-
vamente — que ele soube aonde o Espírito o estava conduzindo.
16
Para aqueles entre nós que estão completamente esgotados, no entanto, o pri-
meiro passo provavelmente é tirar uma folga. Uma vez por mês eu tiro uma folga de
um dia. Uma vez a cada três meses tento tirar uma folga de dois dias. E uma vez por
ano tento tirar uma folga de uma semana. O propósito desses períodos é ter um tempo
de descanso, relaxamento e solitude com Deus. Alguns ministros são tão ocupados
que acabam impedindo o acesso de Deus ao seu coração. Ao diminuir o ritmo e passar
um tempo tranquilo fora da correria do ministério, podemos permitir que Deus fale
à nossa vida. Se você que está lendo isso estiver se sentindo totalmente exausto, con-
sidere a ideia de tirar um período sabático, um período de folga do ministério. Um
conselheiro me disse que os pastores deviam passar um período sabático de três meses
uma vez a cada sete anos, ou mesmo, se possível, um período sabático de seis meses.
Confie em Deus; confie que ele manterá o ministério durante a sua ausência. Você
estará mais capacitado para servir sua congregação quando estiver revigorado.
84 O homem

de conhecer e experimentar a Deus mais profundamente. Blaise


Pascal (1623-1662) foi um matemático e teólogo francês. Aos 31
anos, ele teve uma forte experiência da presença de Deus. Ele
nunca falou dela a ninguém, mas escreveu uma pequena anotação
no seu diário a respeito, que costurou em seu casaco para sempre
se lembrar da experiência. Concluiremos este capítulo lendo o
memorial de Pascal como um encorajamento para que busque-
mos a Deus dessa forma.

O memorial de Pascal:
No ano da graça de 1654, segunda-feira, 23 de novembro [...]
De cerca de dez e meia da noite até cerca de meia hora após
a meia-noite.
FOGO.
Deus de Abraão. Deus de Isaque. Deus de Jacó.
Não dos filósofos nem dos instruídos.
Certeza. Alegria. Certeza. Emoção. Visão. Alegria.
Esquecimento do mundo e de tudo fora de Deus [...]
O mundo não te conheceu, mas eu te conheci.
Alegria! Alegria! Alegria! Lágrimas de alegria [...]
Meu Deus, tu me abandonarás? Nunca me deixes ser sepa-
rado de ti.17

17
William L. Portier, Tradition and incarnation: foundation of Christian
theology, Mahwa, Paulist, 1994, p. 38-9.
Os homens mais irresolutos, tímidos, carnais e instáveis entre nós não
são bons candidatos ao púlpito. Há certos trabalhos de que jamais
devemos incumbir os espiritualmente inválidos ou deformados. Um
homem pode não ser qualificado para escalar edificações altas; talvez
sua cabeça seja muito fraca, e o trabalho numa altura elevada o ponha
em grande perigo. Sendo assim, que ele permaneça no nível do chão
e encontre algum trabalho útil no qual uma cabeça firme seja menos
importante. Há irmãos que têm deficiências espirituais análogas: eles
não podem ser chamados a um trabalho visível e elevado, porque sua
cabeça é muito fraca. (Charles Spurgeon).1

1
Charles sPurgeon, Lectures to my students, Grand Rapids, Zondervan, 1972,
p. 13.
5

Um homem habilidoso

O s olheiros da Liga Americana de Beisebol estão constantemente


à procura do “jogador de cinco habilidades” — aquele jogador
que consegue um alto rendimento (pontuação e força) tanto reba-
tendo quanto arremessando, pegando a bola ou correndo. Não é um
tipo de jogador fácil de encontrar. Eles estão por aí, mas são raros.
E como têm a habilidade de transformar um bom time num time
excelente, eles são inestimáveis para os donos e gerentes das equipes
de beisebol, bem como para seus colegas de time e fãs.
As habilidades necessárias para plantar uma igreja bem-suce-
dida também são inestimáveis. Ser um pastor/plantador de igreja
exige três habilidades básicas: liderar, ensinar e pastorear. E assim
como o jogador de cinco habilidades, o plantador ou pastor com
todas essas três habilidades é raro. Em termos gerais, para ser um
pastor/plantador de igreja eficaz, cuja igreja prevalece, você precisa
ter duas dessas três habilidades. E também em termos gerais, para
ter êxito em plantar ou fazer uma igreja crescer, você precisa ser
um líder forte. Se o seu dom principal é de sacerdote, você tenderá
a buscar contextos de ministério nos quais você possa interagir de
maneira relacional com as pessoas à sua volta, o que frequente-
mente funciona em igrejas menores, em igrejas estabelecidas ou
se você for o auxiliar de alguém que está plantando uma igreja.
Para ser o pastor principal numa igreja que está sendo planta-
da, no entanto, você precisa ser capaz de liderar — de propor e
propagar uma visão, criar energia, motivar, inspirar e desenvolver
sistemas. Embora possamos crescer e mudar nas nossas diversas
habilidades ministeriais, normalmente não mudamos naquilo que
88 O homem

Deus tinha em mente quando nos criou ou na maneira como ele


nos programou para trabalhar no ministério. É muito importan-
te, portanto, que o pastor — ou o plantador de igreja, mesmo
que ainda só o seja em potencial — reflita de forma cuidadosa e
honesta sobre o seu conjunto de habilidades ministeriais e sobre
onde ele pode funcionar melhor na igreja.
Neste capítulo, discutiremos as três habilidades principais do
ministério tomando como base os três ofícios de liderança espiri-
tual do antigo Israel (e três ofícios de Cristo) — profeta, sacerdote
e rei. Antes, porém, é preciso dizer algumas palavras sobre o ofício
ou a função de presbítero. Ocupar uma função eclesiástica apro-
vada pelo Novo Testamento não é a mesma coisa que participar
de um ministério. Em virtude da presença e do poder do Espírito
Santo que habita no cristão, todos os cristãos são chamados a se
envolver no ministério. O ministério é possível porque o Espírito
Santo dá dons a todos os cristãos para ajudá-los a servir a Deus
pelo bem da igreja.2 Uma função eclesiástica, contudo, não é um
ministério no mesmo sentido em que o são liderar um estudo
bíblico, ajudar no grupo de boas-vindas na igreja ou simplesmente
compartilhar a sua fé.
A função de presbítero é a função mais elevada na igreja de
Cristo. Um presbítero é único não porque ele é especificamente
chamado ao ministério, mas porque ele compartilha a autori­
dade e responsabilidade de supervisionar a igreja. São os presbí-
teros que têm a responsabilidade final de testar o ensino da igreja,
cotejando-o com o bom tesouro recebido dos apóstolos. Eles têm
a responsabilidade de assegurar que a igreja receba um cuidado
que beneficie o precioso povo de Deus. Embora exerçam mui-
tos dos papéis ministeriais associados ao cuidado e à instrução da
congregação, esses papéis não são exclusivos aos presbíteros. Os
presbíteros devem equipar a congregação, mas todos os membros

2
1Coríntios 12.7: “A manifestação do Espírito é dada a cada um para bene­
fício comum”.
Um homem habilidoso 89

da igreja devem usar os seus dons para edificar o corpo.3 Os pres-


bíteros devem cuidar da igreja, mas todos devem cuidar uns dos
outros.4 Os presbíteros têm a responsabilidade de se empenhar para
que todos usem os seus dons de forma apropriada no ministério.
O ensino é um exemplo particularmente significativo de
ministério que, embora seja central no trabalho dos presbíteros
qualificados, não se limita a eles. Os presbíteros precisam ser
capazes de ensinar (1Tm 3.2) e trabalhar diligentemente na pre-
gação e no ensino (1Tm 5.17). Paulo exorta Timóteo, um pres-
bítero, a ensinar diligentemente.5 Porém, o ensino também é um
dom que pode ser concedido de forma independente da função
de presbítero ou do gênero da pessoa.6 Muitos outros junto com
Paulo ensinavam a palavra do Senhor em Antioquia.7 Priscila e
Áquila instruíram Apolo.8 As contribuições às reuniões da igreja,
que incluem salmos, ensino, revelações, falar em línguas e inter-
pretações, não podem ser limitadas aos presbíteros (1Co 14.26).9
O Novo Testamento descreve a função de presbítero, bis-
po10 ou pastor como a mais elevada na igreja local. Essa estima

3
Efésios 4.11-16.
4
1Coríntios 12.25.
5
1Timóteo 4.11,13; 5.7; 6.2 etc.
6
Romanos 12.7; 1Coríntios 12.28.
7
Atos 15.35.
8
Atos 18.26.
9
A Segunda Confissão de Londres (1677) declara essa distinção com respeito
à pregação: “É incumbência dos bispos ou pastores das igrejas pregar a Palavra, dado
o seu ofício; não obstante, a tarefa de pregar a Palavra não se limita estritamente a
eles, mas se outros membros demonstram os dons e a capacitação do Espírito Santo
para isso, e são aprovados e chamados pela Igreja para tanto, estes também podem e
devem pregar” (xxvi, Seção 11).
10
Em geral, é consenso entre os protestantes que a Bíblia usa os termos “pres-
bítero” e “bispo” como maneiras diferentes de se referir à mesma função. Pastorear,
em contaste, é um ministério desempenhado tanto pelos presbíteros como por ou-
tros. O nome pastor veio a ser associado com a função de presbítero. O nome que
se dá à função não é algo crucial, como indicam as variações na terminologia de
Paulo. Todavia, não se deve permitir que isso obscureça as diferenças entre função e
ministério ou limite o ministério pastoral aos presbíteros.
90 O homem

pela função é óbvia quando discernimos as incumbências que


o Novo Testamento dá aos presbíteros. Funcionalmente, essas
sãos as três responsabilidades principais dos presbíteros na
igreja local:

1. Guardar e vigiar o ministério de ensino da igreja.


2. Garantir o cuidado espiritual da igreja.
3. Supervisionar a direção da igreja.

Examinemos cada uma dessas responsabilidades.

Profetas: os guardiões da verdade


“Preserva o modelo das sãs palavras que de mim ouviste na fé e
no amor que estão em Cristo Jesus; guarda o bom tesouro com
o auxílio do Espírito Santo, que habita em nós” (2Tm 1.13,14).
Os presbíteros são os principais mestres na igreja local.
Os profetas são pastores que guiam, guardam, protegem e
proclamam as verdades das Escrituras. Eles costumam fazer per-
guntas como “O que esse texto diz?” e “Em que direção a igreja
está indo?”. Os profetas muitas vezes são encarregados do minis-
tério de ensino da igreja, protegendo o púlpito das doutrinas
errôneas. Eles podem se sair excelentes mestres porque têm uma
grande estima pelas Escrituras, gostam de estudar a palavra de
Deus e compartilhar as percepções que encontram nela, ajudando
a esclarecer questões teológicas difíceis. Os presbíteros que são
preponderantemente profetas não se limitam a ler as Escrituras
— eles as expõem e ensinam, seguindo de perto o exemplo de
Esdras e dos levitas quando estes “explicaram o [...] sentido” da
Palavra.11 É justamente sobre isso que Paulo escreve a Timóteo:
“Enquanto aguardas a minha chegada, aplica-te à leitura [pública],
à exortação e ao ensino” (1Tm 4.13). Esses presbíteros carregam

11
Neemias 8.8.
Um homem habilidoso 91

o fardo esmagador da responsabilidade pela análise correta das


Escrituras e pelos princípios dela derivados, pelas aplicações for-
necidas e pelos julgamentos realizados na assembleia. Também
lhes é concedida a autoridade necessária para cumprir com essa
responsabilidade, incluindo a autoridade de delegar ou admoestar,
de encorajar ou silenciar.
Dito isso, não consideramos que nenhuma função ministe-
rial específica seja limitada aos presbíteros. É nesse sentido que
os presbíteros da igreja The Journey, bem como os presbíteros
de todas as igrejas da rede Atos 29, acreditam que o ministério é
algo para ambos os gêneros, mas o ofício de presbítero é para os
homens. Não cremos que qualquer dom ou ministério específico
esteja fechado às mulheres apenas pelo fato de serem mulhe-
res. A sabedoria, contudo, aconselha que determinados papéis
ministeriais da igreja sejam regularmente ocupados por presbí-
teros. Por exemplo, acreditamos que a posição de ensino central
deve ser ocupada pelos presbíteros, já que esse é um aspecto
central da função deles. O ministério do púlpito, portanto, deve
ser liderado e guiado pelos presbíteros. Isso parece implicar que,
a maior parte do tempo, a pregação fique por conta dos presbí-
teros na igreja local em que eles servem.
A necessidade de os presbíteros guardarem o ministério de
ensino da igreja é vista claramente no vívido e encorajador desafio
final de Paulo aos líderes da igreja de Éfeso em Atos 20.17-31. O
último versículo da passagem não só nos mostra o coração pastoral
de Paulo, mas também o coração que todos os pastores de igreja
local devem desenvolver: “Portanto, estai atentos, lembrando-vos
de que durante três anos não cessei, dia e noite e com lágrimas,
de aconselhar cada um de vós”. Paulo diz que todo dia, com lágri-
mas, ele lembrou esses presbíteros da importância de guardar o
ministério de sua igreja local. Ele dá aos seus companheiros de
presbitério vários princípios para guardar e proteger a igreja local
por meio do seu ministério de ensino.
92 O homem

Ensinando e pregando todo o propósito de Deus (At 20.20,27)


Durante anos, a igreja pregou usando como texto a Bíblia toda,
porque era isso que as pessoas esperavam. Elas vinham à igreja por-
que esperavam ouvir versículos sendo lidos e explicados. A maioria
das pessoas que vinha ao culto não esperava “obter grande coisa”
da mensagem que era pregada; elas eram deixadas à mercê de si
mesmas, do Espírito Santo e de sua aula de escola dominial para
descobrir como aplicar a mensagem dos sermões que ouviam.
Na década de 1970, o movimento de crescimento da
igreja, mais orientado para as necessidades dos que busca-
vam a igreja, trouxe uma correção de rota muito necessária à
forma como a igreja local realizava o ministério de ensino. Essa
mudança se concentrava no fato de que a mensagem precisa ter
uma aplicação. Sempre lembro a pergunta que ouvíamos muito
na época: “O que você quer que eles façam?”. O problema com
toda correção de rota, todavia, é que ela tende a se tornar exa-
gerada. Hoje, o que se vê em muitas igrejas é um repertório de
ensino limitado, que se concentra principalmente em ensinar os
membros a desenvolver o “potencial que eles receberam de Deus”
por meio da obtenção de habilidades ligadas a finanças pessoais,
educação dos filhos, casamento e resolução de conflitos.
Embora o ministério de pregação da igreja deva tratar dessas
e de muitas outras necessidades pessoais importantes, elas devem
ser abordadas junto com o restante do conteúdo da Bíblia. O bom
pastor/mestre oferece à igreja um cardápio espiritual saudável,
ensinando com base em toda a Bíblia com uma boa exposição das
passagens. Isso é feito versículo a versículo ao longo dos livros da
Bíblia, bem como lidando com tópicos pertinentes que edifiquem
a congregação.

Expondo as falsas doutrinas e mestres (v. 29)


Os presbíteros da igreja de Deus receberam de Paulo a incum-
bência não só de ensinar toda a palavra de Deus, mas também de
Um homem habilidoso 93

refutar e corrigir a falsa doutrina. Os presbíteros não só devem


ensinar a verdade de forma apaixonada e sistemática, mas tam-
bém devem refutar o erro de maneira consistente e direta. Os
seres humanos, além de estarem inclinados a suprimir e ocultar a
verdade, também tendem a buscar falsos mestres.12 Observei um
fato intrigante: os corações pecaminosos desejam o falso ensino, e
os falsos mestres ímpios procuram pessoas com um coração assim.
Muitas pessoas se sentem desconfortáveis com a ideia de que os
pastores devem refutar os falsos mestres e expor o falso ensi-
no. Talvez ajude lembrar que o falso ensino machuca as pessoas. O
médico que não corrigisse uma falsa ideia sobre como combater
determinada doença não seria um bom médico, porque mesmo os
bons pacientes seriam prejudicados. Da mesma forma, os pasto-
res devem se opor ao falso ensino, porque o falso ensino fere as
preciosas ovelhas pelas quais Cristo morreu para salvá-las. “Por-
que chegará o tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas,
desejando muito ouvir coisa agradáveis, ajuntarão para si mestres
segundo seus próprios desejos; e não só desviarão os ouvidos da
verdade, mas se voltarão para fábulas” (2Tm 4.3,4).

Sacerdotes: os pastores do rebanho


“Obedeçam a vossos líderes, sendo-lhes submissos, pois eles estão
cuidando de vós, como quem há de prestar contas; para que o façam
com alegria e não gemendo, pois isso não vos seria útil” (Hb 13.17).
Nenhum outro versículo na Bíblia começa de maneira tão
promissora para um pastor que está tentando liderar um grupo
heterogêneo de pessoas pecaminosas. Nada na Bíblia soa melhor
no que diz respeito à autoridade e ao apoio aos pastores do que
“Obedeçam a vossos líderes, sendo-lhes submissos”. Seria tão
bom se ele parasse aí. No entanto, poucas passagens bíblicas
são mais assustadoras para um pastor do que a segunda parte

12
Romanos 1.18: “Pois a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
injustiça dos homens, que impedem a verdade pela sua injustiça”.
94 O homem

de Hebreus 13.17. Os presbíteros precisam garantir que se esteja


zelando pelas almas da congregação, pois prestarão contas a Deus
sobre como cuidaram delas.
Os sacerdotes lideram a igreja identificando e ajudando a satis-
fazer as necessidades das pessoas. Eles costumam fazer pergun­tas
que começam com “Quem”. Eles são pastores. Os sacerdotes cui-
dam do rebanho, guiam e alimentam-no,13 não o subjugando com
a autoridade de sua posição sobre ele, mas sendo encorajadores,
apoiadores, servos, confrontadores amorosos, ouvintes, comuni-
cadores da verdade, sábios conselheiros e assim por diante.14 Os
pastores ajudam os fracos.15 Os pastores oram pelos enfermos.16
Os pastores apoiam, encorajam, protegem e guiam o rebanho. Eles
treinam o rebanho e o ajudam a se nutrir e amadurecer.
Os que lideram a igreja desempenhando esse papel alcançam
sua maior semelhança com Cristo quando exercem o ofício sacer-
dotal. Mais do que o profeta e o rei, o sacerdote enfatiza o cuidado
pessoal e íntimo que fortalece o indivíduo espiritualmente e o
ajuda a crescer nesse sentido.
Vários anos atrás, em alguma fita de sermão (lembra delas?),
ouvi Rick Warren dizer algo que nunca mais esqueci. Ele disse
que estava cansado dos jovens pastores que contavam o quanto
amavam pregar, mas se esqueciam de dizer o quanto amavam as
pessoas a quem estavam pregando. Nunca me esqueci dessa exor-
tação. O desafio de Warren vai ao âmago do que significa ser pres-
bítero na igreja local. Significa que você usa o seu dom de ensino
não para o seu próprio prazer, mas para a edificação e proteção
da igreja. Você não prega para ouvir a sua própria voz; você prega
para curar a igreja.
O pastor deve ser um excelente ouvinte. Um bom sacerdote
ajuda a pessoa a sentir que ela é a pessoa mais importante do
13
Atos 20.28
14
1Pedro 5.1-3.
15
Atos 20.35.
16
Tiago 5.14.
Um homem habilidoso 95

mundo quando está sendo aconselhada por ele. O pastor precisa


trabalhar para ajudar as pessoas a se sentirem compreendidas. Nós
de fato estamos assumindo o papel de diretor espiritual dos mem-
bros da nossa igreja. Como discutiremos no nosso capítulo sobre
o homem que pastoreia, a direção espiritual não deve ficar por
conta exclusivamente do pastor, mas ele precisa assumir a lide-
rança quando se trata de ser um modelo desse tipo de cuidado
espiritual. O pastor deve ser o principal encorajador do rebanho
no sentido de incentivá-lo à edificação da comunidade.

Reis: os edificadores da visão


“Os presbíteros que governam bem devem ser dignos de honra em
dobro, principalmente os que trabalham na pregação e no ensino”
(1Tm 5.17).
Os reis desenvolvem estratégias para levar a visão e a missão
de uma vida centrada em Cristo à realização. Eles tendem a fazer
as perguntas que começam com “Como”. Eles funcionam como os
executivos da igreja, porque empregam bastante tempo e energia
desenvolvendo e executando planos para manter a igreja saudável
e fazê-la crescer. Os pastores de inclinação régia, por assim dizer,
acrescentam significado ao termo “supervisor” conforme visto no
Novo Testamento: eles de fato “olham sobre” os incontáveis deta-
lhes do ministério da igreja local. E quando estão operando como
Cristo, eles o fazem a fim de realmente supervisionar a direção da
igreja. Especialmente em igrejas novas, recém-plantadas, os pres-
bíteros não se ocupam apenas com os departamentos de ministé-
rios específicos; eles se ocupam com o ministério da igreja toda.
Eles devem estar à frente da igreja, mantendo-a em sua missão,
por meio da qual ela cumpre o seu potencial redentor. Os pres-
bíteros trabalham em parceria com os diáconos para capacitar e
servir os membros, para que estes possam levar o evangelho à
cidade. Os diáconos lideram a igreja servindo-a; os presbíteros
servem a igreja liderando-a.
96 O homem

Os presbíteros garantem que a igreja está sendo bem lide-


rada quando são capazes de gerar novos presbíteros. “Não deixes
de desenvolver o dom que há em ti, que te foi dado por pro-
fecia, com a imposição das mãos dos presbíteros” (1Tm 4.14).
“O que ouviste de mim, diante de muitas testemunhas, trans-
mite a homens fiéis e aptos para também ensinarem a outros”
(2Tm 2.2). Os líderes assumem a responsabilidade pela direção
da igreja. Embora possam delegar alguma parte dessa responsa-
bilidade, não abdicam dela. Eles perdem o sono pensando sobre
o que a igreja deve ser, para onde deve ir e como deve funcionar.
Então, supondo que consigam adormecer, eles acordam pensando
sobre como executar esses planos.
Como a igreja exige uma liderança forte, nada mais lógico
que a necessidade de os presbíteros terem o dom da liderança.
Todos os cristãos precisam liderar em determinados contextos,
seja em seu papel como pais ou membros de uma comunidade,
seja como líderes de algum pequeno grupo de estudo bíblico, por
exemplo. Certamente todos os cristãos devem assumir a liderança
em situações de crise que aconteçam em meio aos não cristãos,
como fez o apóstolo Paulo durante um naufrágio.17 Dito isso,
as Escrituras parecem indicar que certas pessoas têm um dom
distinto de liderança.18 Em 1Coríntios 12.28, Paulo se refere ao
dom de administração (kubernesis) usando uma palavra grega que
pode ser traduzida por “governos” (ara). A palavra pode designar
a pessoa que pilota um navio ou alguém que tem uma responsa-
bilidade de liderança.
C. Peter Wagner escreve o seguinte sobre a liderança: “O dom
da liderança é a habilidade especial que Deus dá a certas pessoas do
corpo de Cristo de estabelecer objetivos de acordo com os propó­
sitos divinos para o futuro e de transmitir esses objetivos aos outros
de tal modo que eles trabalhem juntos, de maneira voluntária e

17
Atos 27.
18
Romanos 12.8
Um homem habilidoso 97

harmoniosa, na realização deles para a glória de Deus”.19 Chu-


ck Swindoll, falando sobre o mesmo dom, escreve: “O dom da
liderança se define assim: a habilidade de organizar e conduzir
projetos e de garantir a sua execução do começo ao fim, tendo
tato para lidar com as pessoas e provendo-lhes a visão para que
permaneçam na obra”.20
Mark Daniels escreve: “A liderança é o dom espiritual dos
cristãos capacitados por Deus para liderar a igreja e seus ministérios
no desempenho de sua missão”.21 O guru do tema liderança John
Maxwell escreve: “Os líderes têm duas características: a primeira é
que eles estão caminhando em direção a algum alvo, e a segunda é
que eles são capazes de persuadir as outras pessoas a ir com eles”.22
É importante observar que o dom da liderança não está limi-
tado a algum tipo específico de personalidade. Parece que Paulo,
Pedro e Tiago tinham todos o dom da liderança, embora apresen-
tassem personalidades radicalmente diferentes. Esse dom não se
baseia no fato de você ser introvertido ou extrovertido, ou em você
ser ou não detalhista.
O dom da liderança é descoberto e desenvolvido da mesma
maneira que os outros dons espirituais — por meio de experiência
de vida, de treinamento e do processo de amadurecimento. Muito
embora seja produto da presença do Espírito e da graça de Deus,
o dom de liderança, para ser exercido de forma eficaz, exige dili-
gência, fidelidade, trabalho duro e o comprometimento com os
propósitos de Deus.

19
C. Peter Wagner, Finding your spiritual gifts: Wagner-Modified Houts
Questionnaire, Glendale: Regal Books, 1995.
20
Charles R. Swindoll, 7 building blocks for leaders, Insights, February 2007,
p. 1, 3.
21
Esse é um post de Daniels em seu blog, que se chama Better living: thoughts
from Mark Daniels. O post, intitulado “Opening Your Spiritual Gifts”, pode
ser encontrado em http://markdaniels.blogspot.com/2006/12/opening–your–
spiritual–gifts–day–19.html.
22
John C. Maxwell, Leadership gold: lessons I’ve learned from a lifetime of
leading, Nashville: Thomas Nelson, 2008, p. 77.
98 O homem

Os perigos para os profetas, os sacerdotes e os reis


Assim como acontece com qualquer filosofia ministerial que veja
diferentes matizes nos dons e faça distinção entre eles, certas
tendên­cias devem ser evitadas quando consideramos os aspec-
tos profético, sacerdotal e régio do ministério. Já examinamos os
aspectos positivos dessas funções; precisamos, agora, passar algum
tempo examinando as ciladas que os profetas, os sacerdotes e os
reis maduros aprendem a evitar.23
Em primeiro lugar, qualquer igreja que esteja desenvolvendo
uma cultura de liderança que incorpore a filosofia de “profeta,
sacerdote e rei” precisa evitar a tentação de vê-la como um teste
de personalidade. Como Jesus foi o perfeito profeta, sacerdote e
rei, e visto que nós, como cristãos, estamos crescendo na nossa
semelhança com Cristo, devemos crescer em todas essas áreas. Os
líderes, especialmente os pastores, não devem prender as pessoas
(o que inclui eles próprios) tão firmemente em qualquer uma
dessas categorias que acabem limitando a utilidade dos dons que
Deus concedeu para a edificação da igreja. Por exemplo, como
Drew Goodmanson observa, o fato de uma pessoa ser emotiva
não significa que ela seja um sacerdote.24 Colocar uma pessoa
emotiva que não seja sacerdote num cenário de aconselhamento
pode facilmente causar mais mal do que bem. Estereotipar é
uma atitude simplista e limitadora demais para que possa ajudar
a igreja. Equipes de liderança em processo de amadurecendo
evitarão essa tentação.

23
O pastor Drew Goodmanson, da igreja Kaleo, que faz parte da rede Atos 29,
tem sido uma grande influência para mim quanto às tendências positivas e negativas
da filosofia ministerial do modelo triplo. Você pode obter mais informações sobre
Drew em http://www.goodmanson.com.
24
Ver http://www.goodmanson.com/20070-7/03/the-dangers-of-triperspec-
tivalism.
Um homem habilidoso 99

Profetas
Embora os profetas sejam excelentes guardiões da verdade, às
vezes eles focam tão intensamente na doutrina que acabam negli-
genciando a pregação da graça de Deus. Os profetas precisam evi-
tar a atitude de influenciar a mente em detrimento do coração das
pessoas. Os profetas também precisam lutar contra a arrogância,
o legalismo e o desprezo pelas pessoas que não compartilham suas
convicções e paixões.

Sacerdotes
Os sacerdotes que apresentam a semelhança de Cristo evitam
influenciar o coração das pessoas em detrimento de sua mente. Mas
se os profetas precisam combater a arrogância, muitos sacerdotes
precisam lutar contra a covardia. Como os sacerdotes muitas vezes
tendem a valorizar os sentimentos subjetivos mais que a verdade
objetiva, eles podem acabar fechando um olho para o pecado para
não complicar a vida de ninguém. O confronto pode às vezes não
ser a atitude preferida do sacerdote, mas é necessário quando a
verdade está sendo comprometida.

Reis
Os reis são excelentes líderes. Eles fazem as coisas acontecer. Eles
também desenvolvem sistemas que ajudam os outros a realizar as
coisas. E pelo fato de se concentrarem tanto em resultados, os reis
precisam cuidar para não acabarem excluindo o evangelho da gra-
ça, subordinando-o tão excessivamente a programas que ele acabe
morrendo. Os reis também tendem a detectar o que está quebrado
e precisa de conserto, o que pode ser extremamente útil na vida
da igreja. Mas eles devem lutar para manter elevado o moral da
congregação, e precisam reduzir o ritmo de vez em quando para
celebrar as vitórias ministeriais já conquistadas.
O pastor habilidoso é um supervisor, guardião teológico
e mestre de sólida doutrina que conhece suas qualidades e
100 O homem

as aperfeiçoa para edificar a igreja. O pastor habilidoso também


conhece suas fraquezas e limites, e parte de sua habilidade é arre-
banhar outros líderes ao seu redor para que supram o que ele
deixa de fazer. Como vimos no nosso exame do modelo ministe-
rial “profeta, sacerdote e rei”, os líderes não estão limitados a um
só tipo de personalidade. Para concluir este capítulo, proponho
algumas perguntas que o ajudarão a descobrir suas tendências
naturais de liderança no contexto do nosso modelo de perspec-
tiva tríplice. Lembre-se: os pastores mais habilidosos apresentam
uma combinação evidente desses três ofícios, mas todos os líderes
estão naturalmente mais inclinados para um deles em particular.

1. Você é um líder teologicamente motivado, tendo grande estima


pela pregação e pelo ensino? Você tende a ter uma visão mais
“preto no branco” em relação à verdade e ao comportamento
bíblicos? Você transmite a sua visão principalmente por meio da
escrita e/ou da sua plataforma de ensino? Você se pega fazendo
perguntas que começam com “O quê” ou “Onde”? Nesse caso,
talvez você se encaixe naturalmente na figura do profeta.
2. Você é um encorajador de pessoas? Você é bom em discernir as
necessidades delas? Quando um plano (ou estratégia) é imple-
mentado, a sua maior preocupação é a maneira como as pessoas
serão impactadas? Você se pega fazendo perguntas que come-
çam com “Quem”?. Nesse caso, talvez você se encaixe natural-
mente na figura do sacerdote.
3. Você é um pensador organizacional? Você é um solucionador
de problemas? Você é um pensador prático que também gos-
ta de pensar em novas formas de solucionar antigos proble-
mas? Você é bom em colocar as pessoas certas no lugar certo
em um contexto ministerial? Você se pega fazendo perguntas
que começam com “Como”? Nesse caso, talvez você se encaixe
naturalmente na figura do rei.
Os pastores estão dispostos a aguentar a dor e suportar o fardo das
ovelhas em prol das ovelhas. Os verdadeiros presbíteros não controlam
a consciência de seus irmãos, mas suplicam a seus irmãos a que sigam
a palavra de Deus com fidelidade. Por causa do amor, os verdadeiros
presbíteros sofrem e suportam o fardo das pessoas difíceis e dos
problemas complicados para que as ovelhas não se machuquem.
Os presbíteros suportam os equívocos e pecados das outras pessoas
para que a assembleia possa viver em paz. Perdem o sono para que
outros descansem. Fazem grandes sacrifícios pessoais de tempo e
energia pelo bem-estar dos outros. Eles se veem a si mesmos como
homens debaixo de autoridade. Dependem de Deus para que ele
lhes dê sabedoria e auxílio, não dependendo de seu próprio poder e
inteligência. Enfrentam os ataques cruéis dos falsos mestres. Protegem
a liberdade da comunidade em Cristo de modo que os santos sejam
encorajados a desenvolver os seus dons, a amadurecer e a servir uns aos
outros. (Alexander Strauch).1

Se Cristo de tal maneira amou as almas dos homens que a si mesmo


se entregou, e a si mesmo se negou em tal medida pela salvação [e
felicidade das almas], então também devem, decerto, os ministros de
Cristo estar prontos para empregar grande esforço, e em igual medida
negar a si mesmos e sofrer em favor da [salvação e felicidade das
almas]. Porquanto, como muitas vezes disse Cristo: “o servo não está
acima do seu mestre, nem o discípulo acima do seu senhor”
(Mt 10.24). ( Jonathan Edwards).2

Vai até eles tão logo ouvires da sua doença, sem esperar que enviem
alguém para te chamar. (Richard Baxter).3

1
Alexander straucH, Biblical eldership: an urgent call to restore Biblical
church leadership, Littleton, Lewis and Roth, 1995, p. 98.
2
Jonathan edwards, The salvation of souls, Wheaton, Crossway, 2002, p. 170.
3
Richard Baxter, The reformed pastor, General Books llc, 2009, p. 103.
6

Um homem que pastoreia

A Bíblia nos diz que, durante o seu ministério na terra, Jesus


teve compaixão das multidões que o seguiam porque elas
“eram como ovelhas que não têm pastor” (Mc 6.34). As ovelhas
sem pastor são extremamente vulneráveis — elas podem acabar
vagando para longe da comida e da segurança, arriscando ser ata-
cadas por animais ferozes cujo próprio instinto é matá-las. Elas
podem se perder do rebanho e, em sua confusão, correr grande ris-
co expondo-se ao ambiente estranho, à fome e a ferimentos graves.
Essa imagem comovente que o nosso Senhor usa para descrever as
pessoas no mundo deve não apenas nos lembrar de nossa própria
vulnerabilidade longe do nosso Pastor, mas também deve desper-
tar a nossa compaixão e nos lembrar do quão desesperadamente as
pessoas precisam de supervisão e ajuda na sua vida espiritual.

O coração de um pastor
Cristo ainda tem a mesma compaixão pelas pessoas de hoje, e ele
designou os líderes da sua igreja para servirem como pastores das
suas ovelhas escolhidas. Como pastores, devemos atender com
zelo e diligência as pessoas que Deus colocou sob o nosso cui-
dado. Precisamos ser como o homem que vai atrás de sua única
ovelha perdida e não sossega até encontrá-la e conduzi-la em
segurança até a sua casa.4 Precisamos ser como aquele que é o

4
Lucas 15.4.
104 O homem

maior Pastor de todos, aquele que sacrificou a própria vida pelas


ovelhas que amava.5 Richard Baxter descreve assim o ministério
de pastoreio:

Todo o nosso ministério precisa ser desempenhado em terno amor


pela nossa congregação. Eles precisam ver que nada nos agrada
senão aquilo que os favorece; e que aquilo que lhes faz bem, a nós
nos faz bem; e que nada nos aflige mais do que a dor deles. Deve-
mos sentir pela nossa congregação o que o pai sente pelos filhos:
sim, nem o mais terno amor de mãe deve superar o nosso. Precisa-
mos sofrer as próprias dores do parto até que Cristo seja formado
neles. Eles devem ver que não nos preocupamos com coisa exterior
alguma, sejam riquezas, liberdade, honra ou a própria vida mais
do que com a salvação deles; mas que de fato preferiríamos, como
Moisés, ter nosso próprio nome apagado do livro da vida, isto é,
ser removidos da multidão dos vivos, a que o nome deles não esteja
inscrito no livro da vida do Cordeiro.6

Por que o cuidado pastoral é necessário?


O cuidado pastoral — ou pastoreio — é necessário em nossas
igrejas por numerosas razões.
Porque as ovelhas são preciosas para Jesus, que as comprou com seu
próprio sangue.7
Não estamos lidando com objetos substituíveis, que podem
se tornar obsoletos, como um telefone celular; estamos lidando
com criaturas que são valiosas para Deus. Ainda que as ovelhas
muitas vezes mordam, elas não deixam de ser preciosas. Ainda que
venham a se sujar e cheirar mal e façam escolhas tolas, elas não
perdem o seu valor. Como Cristo ofereceu a sua vida infinitamente

5
João 10.11.
6
Baxter, The Reformed Pastor, p. 117.
7
Atos 20.28: “Portanto, tende cuidado de vós mesmos e de todo o rebanho
sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de
Deus, que ele comprou com o próprio sangue”.
Um homem que pastoreia 105

valiosa por essas ovelhas, cometemos um enorme pecado contra


ele quando somos relaxados no cuidado por elas, quando deixa-
mos de lutar contra os lobos vorazes ou quando não procuramos
as ovelhas que se perderam! Aquilo que é valioso para Cristo
também deve ser valioso para nós. Assim como Cristo deu a sua
vida pelas ovelhas, nós também devemos dar a nossa vida pelas
suas ovelhas.8
Porque os lobos estão presentes, e prontos para destruir as ovelhas.9
Onde há ovelhas, com certeza também haverá lobos, e quando
deixamos de afastá-los nossa congregação acaba sendo machu­
cada. Não é necessário haver um ataque físico para que a presença
do predador seja sentida. O medo do ataque leva à desconfiança
e a um comportamento temerário, o que obviamente leva a uma
vulnerabilidade maior. Não há nada mais cruel do que entregar a
nossa congregação aos lobos. Eles são uma presença muito real e
constituem um grande perigo para os nossos rebanhos. Somos os
principais protetores e supervisores da nossa congregação. Se não
a protegermos dos lobos, quem o fará?10
Porque os pastores prestarão contas a Deus pela maneira como
cuidaram do seu povo.11
Os pastores literalmente estarão diante de Cristo um dia
para prestar contas sobre como trataram as ovelhas por quem ele
morreu. Se você precisa sair à noite e contrata uma pessoa para
cuidar dos seus filhos, quando volta você não pede um relato sobre
como tudo correu? Quão aborrecido você fica se seus filhos são

8
1João 3.16.
9
Atos 20.29: “Eu sei que, depois da minha partida, lobos cruéis entrarão no
vosso meio e não pouparão o rebanho”.
10
É importante distinguir entre os lobos que tentam machucar as ovelhas de
maneira consciente e deliberada e os cristãos espiritualmente imaturos, que às vezes
machucam as ovelhas sem intenção maliciosa. É necessário confrontar ambos os
tipos de pessoas, mas pastores corajosos e habilidosos serão muito mais severos com
os lobos.
11
Hebreus 13.17: “Obedecei a vosso líderes, sendo-lhes submissos, pois eles
estão cuidando de vós, como quem há de prestar contas”.
106 O homem

prejudicados pela negligência dessa pessoa? Quanto mais não


incorreremos nós na disciplina de Cristo se negligenciarmos as
almas eternas por quem ele morreu! Como pastores, muitas vezes
somos tentados a evitar os conflitos ou as críticas, buscando agra-
dar as massas, e deixamos as situações perigosas simplesmente “se
resolverem por si próprias”. Mas como temos o conhecimento
de que um dia compareceremos em julgamento diante do Deus
Todo-Poderoso, seremos sábios em lembrar que o pastor deve
sempre ser destemido diante dos seus críticos e ter temor diante
do seu Deus. Que o mero pensamento de negligenciar as suas
ovelhas nos faça estremecer. Lembre-se de que, quando Cristo
nos julgar, ele nos julgará com um grau especial de rigor.12 Jonathan
Edwards, ele próprio um pastor, nos adverte: “As almas preciosas
que, confiadas ao nosso cuidado, se perderam pela nossa negli-
gência, se levantarão em julgamento contra nós e declararão de
que maneira as negligenciamos”.13
Porque os mercenários na igreja são muitos.14
Nem todo funcionário da igreja que apresente o título “pas-
tor” está de fato em condições de sê-lo. Cada vez mais as pessoas
que vêm à nossa igreja trazem feridas, sem mencionar um monte
de bagagem, por não terem sido bem pastoreadas por merce-
nários disfarçados de pastores em outras igrejas. Observei isso
na The Journey, a igreja que pastoreio. Boa parte dos membros
da nossa atual congregação, enquanto estava sob o cuidado de
suas igrejas anteriores, foi machucada por lideranças que vão de
fracas a terríveis. Segundo uma jovem da nossa igreja, a equipe
de presbíteros de sua igreja anterior tinha o hábito de ceder à

12
Tiago 3.1 diz: “Meus irmãos, muitos de vós não devem ser mestres, sabendo
que seremos julgados de forma mais severa”.
13
Edwards, The salvation of souls, p. 21.
14
João 10.12,13: “Mas o empregado, que não é pastor e a quem as ovelhas
não pertencem, quando vê o lobo se aproximar, abandona as ovelhas e foge. E o
lobo as ataca e dispersa. O empregado foge porque é empregado e não se importa
com as ovelhas”.
Um homem que pastoreia 107

influência de fofocas e boatos que se originavam de homens e


mulheres amargos e maldosos. O resultado foi que metade da
equipe pastoral abandonou a igreja, praticamente eliminando o
impacto e a reputação dela na comunidade. Sob muitos aspectos,
o pior resultado disso tudo foi que essa jovem ficou tão abatida
pela experiência que levou vários anos até ela se sentir saudável
o suficiente para frequentar outra igreja e passar a integrá-la.
Infelizmente, há inúmeras outras histórias que eu poderia com-
partilhar. Os pastores da The Journey e eu temos observado que,
geralmente, leva pelo menos seis meses de frequên­cia, e outros
seis desenvolvendo os relacionamentos, para que essas pessoas
— esses feridos ambulantes — se sintam prontas para confiar
de novo em alguém. É desnecessário dizer que é especial­mente
importante oferecer um bom pastoreio para as pessoas que
foram machucadas.
Ao longo da história, muitos pastores deixaram de cuidar do
povo de Deus. E a Bíblia é clara quanto ao fato de que Deus não
se agrada nem um pouco desses pastores negligentes. Jeremias
23.2 nos diz que, se os pastores não tomam conta do rebanho, o
próprio Deus cuidará dele. Em Zacarias 11.15-17, Deus declara
que o pastor inútil que abandona seu rebanho enfrentará a espada,
e dessa forma perderá o braço e a visão.
A prioridade de Deus, sem dúvida, é prover um excelente
pastoreio para as almas preciosas em sua igreja. “Porei sobre elas
pastores que as conduzam. Elas nunca mais temerão, nem ficarão
apavoradas, e nenhuma delas se perderá, diz o Senhor” ( Jr 23.4).
A igreja é de Deus, não nossa. Portanto, sirvamos nela fielmente,
e pratiquemos nosso pastoreio de uma forma que reflita o cuidado
compassivo de Cristo.

Os resultados do cuidado pastoral


O pastoreio fiel tem benefícios concretos, não só para a igreja,
mas também para o pastor.
108 O homem

O pastoreio prepara o pastor para a vida


Quando você lida com o pecado dos outros, torna-se mais cons-
ciente do seu próprio pecado. Quando você pastoreia os obsti-
nados, percebe a sua própria obstinação. Quando pastoreia os
egoístas, percebe o seu próprio egoísmo. Quando pastoreia os
abatidos, inevitavelmente percebe o seu próprio abatimento. Já
pelo lado positivo, quando você vê os outros obedecendo, também
quer obedecer. Quando vê os outros usando seus dons eficazmente,
você também deseja usar os seus da mesma maneira. Isso não
deve nos surpreender, já que é o Espírito Santo quem revela o
pecado, capacita para a obediência e concede dons. Tanto a pala-
vra grega como a hebraica para espírito significam “ar” ou “fôlego”.
A palavra espírito vem do latim spiritus, que também quer dizer
“ar” ou “fôlego”. É daí que vêm palavras como respirar e expirar
(o que acontece quando paramos de respirar). A palavra inspirar
também está entre elas. É como se, quando o Espírito está ope-
rando naqueles que aconselhamos, nós pastores fôssemos, pelo
mesmo Espírito, inspirados a nos arrepender, crer e obedecer com
os melhores dons que temos.15

O pastoreio prepara o pastor para a pregação


Quanto maior for o contato que você tiver com a congregação
e suas lutas, tanto maior será a sua eficácia na sua pregação aos
seus membros. Como é triste quando um pastor prega à sua igreja
e não faz ideia do que dizer a ela porque não está em contato
com o estado da alma do seu rebanho! Quanto mais tempo você
passar praticando o cuidado pastoral profundo com as pessoas
durante a semana, tanto mais saberá como contextualizar a sua
mensagem, abordar pecados específicos, confrontar a resistência
à verdade, expor os ídolos culturais e fazer aplicações concretas

15
Aprendi sobre essa conexão entre espírito e inspiração com Frederick
Buechner. Ele a menciona em seu livro Wishful thinking (São Francisco: Harper-
Collins, 1973), p. 110.
Um homem que pastoreia 109

da sua mensagem no domingo. Muitos de nós seríamos pregado-


res muito melhores se fôssemos conselheiros melhores.

O pastoreio aumenta a influência da sua pregação


O pastoreio torna você mais humilde e ainda elimina a justiça pró-
pria e o orgulho que impedem as pessoas de receber a sua procla-
mação do evangelho. Quando você passa um tempo significativo
com pessoas reais, desenvolve uma conexão emocional com os
seus ouvintes dominicais que afeta tanto a mente quanto o coração
deles. A verdade é que muitos pastores são como o Homem de Lata
— uma carapaça dura sem coração. Embora preguem a verdade,
não desenvolvem uma conexão com seus ouvintes. Mas quando os
membros da sua congregação sabem que você não está envolvido
só na parte superficial e agradável da vida deles, mas também nos
seus aspectos mais reais e desagradáveis, tendem a acreditar no que
você está dizendo. Provavelmente, eles até aplicarão — milagre dos
milagres — o que você está pregando. O pastoreio dá credibilidade
ao pregador, o que dá credibilidade à mensagem pregada. Quanto
mais tempo você passar sendo um autêntico pastor de almas, mais
as pessoas ouvirão as suas palavras e obedecerão às Escrituras.

Pastorear ajuda você a se manter perto de Jesus


Há algo na responsabilidade de lidar com a enormidade do
pecado das pessoas que exige que nos mantenhamos muito, mas
muito próximos de Deus. Na pregação, é fácil esconder uma falta
de conexão espiritual com Deus por meio da boa preparação e
da pura habilidade. Mas a imprevisibilidade e o mero conteúdo
emocional do trabalho pastoral confrontam você com a sua própria
necessidade de um Salvador. Na pregação, você pode preparar o
que vai dizer antecipadamente. Contudo, no trabalho pastoral há
um enorme espaço para a insegurança e a ansiedade enquanto você
luta com as questões, objeções e argumentos da sua congregação
em tempo real. É aterrorizante! Isso o leva a depender de Deus.
110 O homem

O pastoreio testa a genuinidade da nossa fé


A fornalha ardente do trabalho pastoral pode queimar as muitas
arestas brutas da sua personalidade, levando a um refinamento e
crescimento saudáveis. Acredito que o trabalho pastoral, a verda-
deira realidade envolvida em lidar com os conflitos cotidianos da
sua congregação, faz mais para humilhar e testar a espiritualidade
de um ministro do que o estudo em si jamais poderia fazer. Ouvi
Tim Keller dizer que pregar é como atirar a partir do destaca-
mento da artilharia. É um trabalho relativamente seguro e limpo,
porque os artilheiros não integram a linha de frente da batalha.
Mas o trabalho pastoral é como estar na infantaria. É um combate
corpo a corpo, olho no olho. Ser um bom pregador pode ou não
fazer de você um pastor de almas melhor, mas ser um bom pastor
de almas definitivamente fará de você um pregador melhor.

O dever do pastor
Até agora falei sobre a importância do pastoreio espiritual, mas
ainda não defini exatamente o que ele é. Richard Baxter, em seu
clássico The reformed pastor, oferece um retrato útil do que significa
ser um pastor de almas. Ele escreve: “[o] ministro não é um mero
pregador público, mas deve ser para eles o conselheiro da alma
deles, assim como o médico lhes é para o corpo, e o advogado, para
o patrimônio, de modo que todo homem que esteja em dúvida ou
em apuros possa levar o seu caso ao pastor para ser resolvido [...]
Não só devemos estar dispostos a assumir o fardo deles, mas deve-
mos atraí-lo a nós, convidando-os a virem ter conosco”.16
O pastor de almas, em outras palavras, é um médico espiritual.
Os pastores cuidam da saúde da alma das pessoas, assim como os
médicos cuidam da saúde do corpo delas. Os pastores, portanto,
combatem as doenças espirituais e encorajam a saúde espiri-
tual da congregação. Eles supervisionam o crescimento espiritual

16
Baxter, The reformed pastor, p. 96.
Um homem que pastoreia 111

holístico do rebanho por meio de pregação e ensino, discipulado,


ministração dos sacramentos, disciplina da igreja, admoestações,
encorajamento, comunhão e exemplo. Como líderes, eles tomam
a iniciativa no cumprimento das ordens de 1Tessalonicenses 5.14:
“aconselhar os indisciplinados, consolar os desanimados, amparar
os fracos e ter paciência para com todos”.
A realidade, entretanto, é que há ovelhas demais para pas-
torear. Um pastor pode pastorear em média cerca de 75 pessoas,
que não por coincidência é mais ou menos o tamanho médio das
igrejas na América do Norte. Portanto, a não ser que você quei-
ra uma igreja desse tamanho ou menor, você precisa aprender a
criar sistemas que promovam o cuidado pastoral em sua igreja local.
Nem mesmo Moisés era capaz de julgar todo o povo de Israel; ele
precisou estabelecer sistemas e estruturas para cuidar das pessoas.17
Nós que aspiramos ao pastorado precisamos considerar as pala-
vras de Jetro a Moisés em relação a seu chamado: “Com certeza,
tu e este povo que está contigo desfalecereis, pois a tarefa é pesada
demais; não podes fazer isso sozinho” (Êx 18.18).
Muitas de nossas igrejas esperam que o seu pastor seja a única
fonte de cuidado e aconselhamento pastorais. Essa expectativa é
não só extremamente irrealista (imagine um hospital sem uma
equipe competente de enfermeiros), mas também tem efeitos
devastadores sobre o pastor e sua família. Ela também ameaça a
longevidade do vigor da igreja, porque retarda o desenvolvi­mento
da liderança. Continuando com o paralelo médico, imagine um
hospital em que não há médicos internos e residentes treinando
para garantir que o cuidado dos pacientes prossiga mesmo quando
os médicos de longa data se aposentam. Nunca foi o propósito que
os pastores fossem os únicos a prestar cuidado e aconselhamento
na igreja local. A verdadeira mudança na congregação ocorre não
apenas como resultado dos dons e serviços do pastor, mas dos
dons e serviços de toda a igreja. O cuidado e o desenvolvimento

17
Êxodo 18.13-27.
112 O homem

espirituais não se limitam ao contato com o “ungido de Deus” —


aliás, em geral o crescimento acontece nos relacionamentos com
os “pessoas comuns de Deus”.
Tudo isso significa que, se aspiramos a ser pastores eficazes do
povo de Deus, precisamos fazer mais do que o mero pastoreio pessoal,
um a um. Também precisamos estabelecer sistemas de pastoreio
como pequenos grupos de estudo bíblico, grupos de comunhão
ou comunidades missionais. A triste verdade é que muitas igrejas
usam esses sistemas — escolas dominicais, grupos de comunhão e
assim por diante — como meras ferramentas de estudo bíblico, em
vez de como um meio de desafio e cuidado pastorais (e o estudo
bíblico certamente será um componente disso). As pessoas redu-
ziram o conceito de comunidade a coisas como aprender sobre
a Bíblia, cantar músicas e trocar generosidades superficiais. A
igreja está se contentando com programas que fornecem infor­
mação cognitiva, mas carecem de uma formação espiritual holís-
tica. A minha igreja, a The Journey, é uma igreja multilocal, isto é,
somos uma só igreja, mas que se reúne em muitos locais. Se você é
pastor, essa pode ou não ser a sua situação. Seja como for, os pres-
bíteros da The Journey perceberam que os grupos de comunhão
são um ministério essencial para qualquer campus (como cha-
mamos as diferentes instalações da igreja) que inauguramos. Isso
signi­fica que, se Deus nos concede uma oportunidade de começar
um novo campus, duas coisas precisam estar estabelecidas para que
um projeto possa ser considerado um campus de nossa igreja:

1) Precisamos ter um homem qualificado para servir como o pastor


do campus.
2) Precisamos ter pelo menos um grupo de comunhão ativo e ope-
rante antes da inauguração.

Sim, queremos cultos de adoração. Sim, queremos ministérios


infantis. Sim, queremos servir aos pobres e alimentar os famintos
e nos envolver com artistas e pessoas criativas em qualquer lugar
Um homem que pastoreia 113

onde estejamos buscando atuar. Mas acreditamos que, se as pes-


soas não estiverem exercendo um ministério de vida conjunta,
expondo suas dúvidas, conflitos, vitórias e progressos juntas sob
a luz do evangelho, esse campus será ineficiente na realização de
todos esses ministérios importantes que mencionei acima. Essa
filosofia é refletida na declaração de impacto da The Journey:
Amar a Deus. Conectar pessoas. Transformar o mundo. Cremos que
essas coisas só podem acontecer nessa ordem.
Uma das discussões mais engraçadas na disputa presiden-
cial americana de 2008 foi o debate sobre a carreira anterior do
presidente Obama como organizador comunitário. Ele recebeu
investidas bem sensatas dos conservadores, e foi questionado por
eleitores genuinamente indecisos, porque era difícil entender o que
exatamente Obama fazia nesse papel. É preciso se candidatar para
o emprego de organizador comunitário? Há listagens em sites de
busca de emprego para organizador de comunidade? Como disse
um sábio comentarista, você sabe o que faz um organizador comu-
nitário quando observa a comunidade. Da mesma maneira, você
sabe que um pastor pastoreia bem as ovelhas quando observa a
comunidade que ele está encorajando e ajudando a crescer.
Os bons pastores equipam os membros da igreja para pasto-
rearem uns aos outros no contexto de grupos pequenos. A igreja
primitiva era constituída por igrejas domésticas menores e mis-
sionais que precisamos imitar no século 21. A igreja precisa se
tornar menor à medida que vai se tornando maior.18 Aqui estão

18
Alguns apontariam para a prática de Richard Baxter de visitar e doutrinar
regularmente cada membro de sua igreja como um argumento contra a mera super-
visão dos ministérios de pastoreio. É verdade que os pastores devem se ocupar do
pastoreio pessoal além de supervisionarem os sistemas de pastoreio, mas precisamos
lembrar que o próprio Baxter também disse: “Se um capitão consegue fazer com
que os oficiais sob suas ordens cumpram seu dever, ele pode comandar os soldados
com muito mais facilidade do que se carregasse todo o trabalho sobre os próprios
ombros”. (The reformed pastor, p. 102). Além disso, essa abordagem tem fundamen-
tação bíblica nos acontecimentos de Êxodo 18 e é uma necessidade prática para as
igrejas grandes.
114 O homem

algumas perguntas essenciais que um bom pastor deve considerar:


As pessoas sob o seu cuidado estão amando a Deus tanto como
indivíduo quanto como corpo? Elas estão assumindo a respon­
sabilidade de conectar outras pessoas à comunidade da igreja?
Juntas, elas estão se mobilizando na direção da missão de Deus
para transformar o mundo? Um pastor eficaz fará tudo o que
puder para dar uma resposta afirmativa a essas perguntas.

O que deve acontecer nesses grupos?


Com base no “uns aos outros” que vemos em todo o Novo Testa-
mento, ofereço os seguintes princípios como uma forma de medir
o quociente comunitário em sua igreja:

Na comunidade bíblica, as pessoas ensinam e encorajam umas às


outras.19 Em um grupo de comunhão, as pessoas podem aplicar
e se comprometerem a viver a mensagem do sermão de manei-
ras que não podem ocorrer num culto de adoração como corpo.
É impossível falar de forma tão direta e detalhada em um ser-
mão como podemos falar em um grupo pequeno. Os pastores
que desenvolvem sistemas que prestam cuidado às pessoas e as
desafiam ajudam-nas a viver o que professam e a aplicar verdades
bíblicas gerais em situações de vida específicas.
Na comunidade bíblica, as pessoas servem e honram umas às
outras.20 Uma forma em que isso acontece é a prática dos dons
espirituais,21 alguns dos quais (palavras de sabedoria, hospitali­
dade, misericórdia etc.) inevitavelmente serão mais eficazes em
um contexto de grupo pequeno do que no culto de adoração.
Na comunidade bíblica, as pessoas compartilham umas com as
outras. Elas compartilham bens materiais (At 2.44-46; 4.32,33),

19
Colossenses 3.16 (“em toda sabedoria [...] ensinai e aconselhai uns aos
outros”); Romanos 14.19; Gálatas 6.1; Efésios 4.15; Hebreus 10.24.
20
João 13.14; Romanos 12.10; Gálatas 5.13; Filipenses 2.1-4.
21
1Coríntios 12.7; 1Pedro 4.10,11.
Um homem que pastoreia 115

fardos (Gl 6.2), lutas (Ef 4.25; Hb 3.13; Tg 5.16) e uma afeição
visível (Rm 16.16). Elas buscam ouvir umas às outras mais do que
falar (Tg 1.19), consideram umas às outras mais importantes do
que a si mesmas (Fp 2.3,4) e transbordam em amor umas pelas
outras (1Ts 3.12).
O pastor é alguém que une as pessoas como o velcro, por
assim dizer, para que elas possam pastorear umas às outras. O
papel do pastor é conectar pessoas indisciplinadas com outras que
sejam disciplinas e lhes ensinem a disciplina. É conectar as pes-
soas feridas com as que podem ajudá-las a se curar. É ajudar as
pessoas sem direção a obter orientação por meio de amigos sábios.
Em um sentido real, o trabalho do “pastoreador” é encorajar um
ambiente familiar no qual a igreja possa ajudar os cristãos a “criar”
uns aos outros em amor e verdade.

As tentações do pastor
Há muitas tentações e perigos com as quais precisamos tomar cuida-
do à medida que buscamos crescer em nossas habilidades pastorais.

Pastorear para se esconder de seus pecados


Muitos pastores usam seu ministério de pastoreio para se escon-
der de seus próprios pecados, deficiências e falhas. Ingressei numa
equipe de obreiros de igreja pela primeira vez quando eu tinha
apenas dezenove anos. Eu era o pastor de jovens, trabalhando
sob outro pastor que se interessou em me acompanhar. A ideia
de ser mentoreado e desafiado em meu caráter por alguém no
ministério realmente me atraía. Infelizmente, o que aconteceu foi
justamente o contrário. Estávamos na década de 1980, quando
muitas igrejas só tinham uma linha telefônica. Se você tirava o
tele­fone do gancho, às vezes ouvia a conversa de outra pessoa.
Certo dia, peguei o telefone e, por acaso, ouvi uma conversa bas-
tante imprópria entre esse pastor e uma mulher da igreja. Come-
cei a pesquisar um pouco e passei a suspeitar que o pastor estava
116 O homem

se envolvendo sexualmente com várias mulheres da igreja. Eu me


lembro da reunião em que confrontei o pastor na presença dos
diáconos da igreja. Sem hesitar, todos disseram que esse pastor
esteve presente toda vez que eles tinham estado no hospital, pas-
sado por alguma necessidade ou quando algum filho deles havia
estado doente. Eles basicamente disseram que, pelo fato de esse
pastor pastoreá-los tão bem, ignorariam sua imoralidade sexual.
Nesse momento, comecei a perceber que alguns pastores usam o
ministério de pastoreio para expiar seus próprios pecados e defi-
ciências em outras áreas.

Pastorear para manipular a igreja


Alguns pastores usam o ministério de pastoreio para forçar a igre-
ja a aceitar suas opiniões e projetos favoritos. Digamos que você
tem um projeto de construção e está disposto a forçar a barra para
que ele seja aceito. Você sabe que haverá uma grande oposição ao
projeto; portanto, usa suas habilidades de pastoreio para bajular as
pessoas de modo a conseguir delas o que deseja. A mesma coisa
pode acontecer com um item orçamentário ou a contratação ou
demissão de um membro da equipe da igreja. Os pastores que têm
o dom de pastoreio precisam tomar cuidado com a tentação de
usar seu dom para forçar a igreja a adotar seus programas.

Pastorear para encobrir suas fraquezas


Outro perigo para os pastores é pastorear para encobrir suas pró-
prias fraquezas. Conheço um pastor que se recusa a desenvolver
seu dom de pregação; em vez disso, ele usa seu dom de pastoreio
para encobrir sua fraqueza como pregador. Não é só que ele não
tem o dom de pregação: ele nem sequer se esforça para aperfeiçoar
suas habilidades nesse sentido, porque sabe que pode contar com
seu pastoreio para manter sua congregação feliz. Outros podem
se sentir tentados a evitar exercer uma liderança forte sobre todo
o rebanho, permanecendo na zona de conforto do seu papel de
Um homem que pastoreia 117

pastoreio a ovelhas individuais. Muitas pessoas evitam se envolver


ativamente na missão que Deus tem para elas a não ser que sejam
desafiadas, especialmente se sentirem que suas necessidades estão
sendo atendidas pelo pastor. Um bom pastor está preparado para
liderar tanto por meio de pregação e liderança fortes quanto por
meio de cuidado e aconselhamento amáveis.

Pastorear para superar problemas


Às vezes nos sentimos tentados a usar o ministério de pastoreio
a fim de obter um sentimento de realização pessoal. O que quero
dizer é que vemos a pessoa que estamos aconselhando como um
desafio, em vez de vê-la como uma pessoa que precisa de ajuda.
Muitos pastores, movidos por uma grande vontade de vencer,
continuam ministrando teimosamente a pessoas que há muito
deveriam ter sido encaminhadas a um conselheiro profissional.
William Willimon o expressa bem: “Não sabendo quando enca-
minhar (a pessoa a um conselheiro profissional), nós pastores
estamos em perigo de prejudicá-la em nossas tentativas equivoca-
das de ajudar. Tentamos fazer mais do que estamos capacitados a
fazer, desperdiçando um tempo valioso e privando outras ativida-
des pastorais de energia e foco necessários”.22

Pastorear para obter aceitação


Alguns pastores que conheço passam um tempo exagerado perto das
pessoas porque sua identidade pessoal está entretecida na sua
função de pastoreio. Qualquer dom ministerial pode se tornar
um ídolo, mas é enganosamente fácil idolatrar o pastoreio por-
que ele pode parecer uma atividade tão santa e amorosa. Nova-
mente, Willimon nos informa: “O ato de manipular os outros
pode vir de muitas formas. Às vezes o líder que aparenta ser um

22
William H. Willimon, Pastor: the theology and practice of ordained ministry,
Nashville, Abingdon, 2002, p. 179.
118 O homem

servo humilde, ocupando-se simplesmente de servir aos outros,


pode estar se valendo de um disfarce, manipulando a congregação
para que ela sirva ao servo suprindo-lhe a necessidade de adora-
ção, apreciação e afeição”.23 Precisamos nos perguntar: “Por que
passo tanto tempo com as pessoas? Estou pastoreando-as para a
glória de Deus e o bem delas ou para a minha autoafirmação?”.

Tornando-nos pastores segundo os padrões de Deus


Como podemos crescer em nossas habilidades de pastoreio e cul-
tivar os tipos de compaixão aos quais Cristo nos chama? Aqui vão
algumas dicas úteis que aprendi ao longo do tempo:

1) Identifique as áreas que o deixam desconfortável quando você


está perto de pessoas feridas. Pode ser que certos tipos de conflito o
lembrem das suas próprias falhas ou feridas do passado. Provavel-
mente é uma boa ideia buscar aconselhamento bíblico para tratar
de algumas dessas feridas. Muitas vezes acontece que, quando não
lidamos com nossas próprias feridas e não recebemos a cura do
Senhor, nossa capacidade de sentir compaixão profunda fica debi-
litada. Quando recebemos compaixão do Senhor, somos liberados
para estender essa mesma compaixão pelas pessoas ao nosso redor.
2) Pratique o ato de ouvir as pessoas. Em vez de ter sempre uma
resposta, simplesmente ouça as pessoas que estão machucadas.
Confie que o Espírito realizará a cura. É incrível o que ouvir de
verdade uma pessoa pode fazer (tanto para você quanto para ela).
3) Leve em conta a sua personalidade. Se você é bastante intro-
vertido, por exemplo, o problema pode ser o volume de pessoas
que você está tentando pastorear. Nesse caso, você precisa conhe-
cer seus limites e trazer outros para perto de você para o ajudarem.
4) Identifique os seus ídolos. Muitas pessoas não têm compai-
xão pelos outros porque estão obtendo sua aprovação das pesso-

23
Ibid., p. 68.
Um homem que pastoreia 119

as ou usando as pessoas para promover seus próprios objetivos


ministeriais. O problema disso é que o foco do ministro está
principal­mente em si mesmo, e não nas pessoas sob o seu cuidado.
Essa idolatria é extremamente ofensiva para Deus e destrutiva
para as pessoas.
5) Olhe para a cruz. Considere o que Cristo fez com seu amor
infindável por você ao ficar dependurado na cruz. Lembre-se dos
espinhos em sua testa, dos vergões em suas costas, dos pregos em
seus pulsos e pés, de suas costas rasgadas pelas lascas da madeira
crua, do escárnio das multidões, da deserção de seus amigos mais
próximos, da vergonha da cruz, da morte lenta por asfixia e — o
pior de tudo — da ira do Pai. Considere os resultados de seu
amor: salvar você da eternidade no inferno para que possa passar
a eternidade na presença dele. No fim das contas, para pastorear
bem você deve aplicar o evangelho que prega aos outros ao seu
próprio coração.
Quanto mais você entender o que Cristo, o seu Pastor, fez
por você, mais se tornará um pastor segundo os padrões de Deus e
compassivo com os outros.
Estamos buscando preservar o mundo, salvá-lo da maldição de
Deus, aperfeiçoar a criação, alcançar os fins da morte de Cristo, salvar
a nós mesmos e a outros da condenação, vencer o diabo e demolir
o seu reino, para estabelecer o reino de Cristo e para conquistar e
conduzir outros ao reino da glória. E por acaso essas tarefas devem ser
realizadas com uma mente desatenta, ou com uma mão preguiçosa?
Ó, certifiquem-se, então, de que essa tarefa seja realizada com toda a
sua força! (Richard Baxter).1

Os que estão prestes a assumir esse trabalho devem realizá-lo com


a maior seriedade, e com plena consideração da vasta importância
dessa obra, de quão grande coisa é ter o cuidado das almas preciosas
a eles confiado; devem, também, ter a devida preocupação em
mente, considerando as grandes dificuldades, perigos e tentações que
acompanham seu labor. Este é comparado a ir à guerra
(1Co 9.7; 1Tm 1.18). ( Jonathan Edwards).2

1
Richard Baxter, The reformed pastor, General Books llc, 2009, p. 12.
2
Jonathan edwards, The salvation of souls, Wheaton, Crossway, 2002, p. 51-2.
7

Um homem determinado

O apóstolo Paulo escreveu aos coríntios: “Estejam vigilantes,


mantenham-se firmes na fé, sejam homens de coragem, sejam
fortes” (1Co 16.13, nvi). Paulo sabia que a vida cristã exige uma
determinação perseverante, obstinada. Se essa é uma exigência
para os cristãos, quanto mais não o deve ser para aqueles que lide-
ram igrejas locais, que serão julgados de acordo com um padrão
mais severo.3 Se o soldado deve ser valente, quanto mais não o
devem ser o capitão ou o general!

A ordem para ser um homem determinado


Infelizmente, firmeza e determinação são qualidades muitas vezes
ausentes nos plantadores de igrejas e pastores. É inacreditável o
número de pastores que acabam divorciados, ou o de seminaristas
graduados que abandonam o ministério nos primeiros cinco anos.
A permanência média de um pastor na igreja é de cerca de três
anos (e menos de dois no caso dos pastores de jovens).4 Embora
existam, é claro, exceções admiráveis, a triste verdade é que a maio-
ria dos pastores não persevera até o fim.
Uma igreja sofre grande prejuízo quando o pastor, carecendo
de determinação, sai dela prematuramente. Para Eugene Peterson,

Tiago 3.1.
3

Michael kowalson, We’re not called to quit, originalmente publicado


4

em 15 de fevereiro de 2007; http://mondaymorninginsight.com/index.php/site/


comments/were_not_called_to_quit.
122 O homem

esse ato consiste basicamente em violentar a igreja: “A impa­


ciência, a recusa em perseverar, é para o caráter do pastor o que a
mineração a céu aberto é para a terra — a espoliação gananciosa
daquilo que se pode obter pelo menor custo, seguida do abando-
no e da busca por um novo lugar a ser pilhado”.5 Muitas vezes, um
pastor só alcança o seu maior impacto sobre a igreja depois de ter
estado nela por vários anos. Quando os pastores deixam de perse-
verar no ministério, eles interrompem esse impacto drasticamente.
Sob muitos aspectos, sua influência no ministério só será profunda
na medida em que o for a sua determinação diante de Deus de
perseverar, uma determinação que é capacitada pela graça divina.
Se você é um pastor ou plantador de igreja, enfrentará mui-
tos momentos em que estará pronto para se desplugar e desis-
tir do bom combate. As perguntas são: Como você será capaz de
fazer isso? Onde você encontrará a força para continuar? Se você
per­ma­necer fiel no ministério até o fim, não será por causa das
suas ambições, força de vontade ou desejo de não decepcionar os
outros. Em meio aos reveses do ministério, essas motivações uma
hora acabam esmorecendo. A única forma de perseverar no minis-
tério é determinar-se a fazê-lo por meio da força prevalecente do
Espírito Santo. A realidade pouco atraente do pastoreio é que ele
envolve trabalho duro — o emprego pesado, ingrato e inflexível
de toda a sua pessoa em prol da igreja. O ministério pastoral exige
uma determinação obstinada e implacável, e essa determinação só
pode vir de uma fonte — o próprio Deus. Neste capítulo, vamos
refletir sobre o que significa ser um pastor determinado.

As motivações de um homem determinado


Como, então, podemos cultivar em nós a determinação e a fir-
meza necessárias para perseverar no ministério até o fim? Come-

5
Eugene H. Peterson, The contemplative pastor: returning to the art of
spiritual direction, Grand Rapids, Eerdmans, 1989, p. 49. [Edição em português: O
pastor contemplativo, 2. ed., trad. Neyd Siqueira, Rio de Janeiro: Sepal, 2004].
Um homem determinado 123

cemos com algumas palavras de motivação do último versículo


de 1Corínitios 15: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e
constantes, sempre atuantes na obra do Senhor, sabendo que nele
o vosso trabalho não é inútil” (v. 58).

Lembre-se do amor de Deus e da sua promessa


É interessante quantos mandamentos de Paulo à igreja estão
associadas às suas lembranças da posição que a igreja ocupa. Em
outras palavras, os imperativos (o que fazer por Cristo) fluem dos
indicativos (o que é verdade para nós em Cristo). Por exemplo,
em Colossenses 3.1-3 Paulo ordena que os colossenses busquem
as coisas do alto, que pensem nas coisas do céu. Mas ele os motiva
a fazê-lo porque eles foram ressuscitados com Cristo, o que sig-
nifica que a posição deles diante de Deus em Cristo está segura,
porque eles literalmente foram escondidos com Cristo à vista de
Deus. Esse também é o método de Paulo em sua carta aos cristãos
de Éfeso. Nos três primeiros capítulos, Paulo lembra a igreja de
quem ela é em Cristo, e então, nos últimos três, ele a desafia a
realizar na prática (a aplicar) o evangelho em sua vida. Os impe-
rativos fluem dos indicativos.
Vemos esse padrão com bastante clareza em 1Coríntios
15.58. Leia o versículo mais uma vez: “Portanto, meus amados
irmãos, sede firmes e constantes, sempre atuantes na obra do
Senhor, sabendo que nele o vosso trabalho não é inútil”. Paulo
soa como um treinador, durante o intervalo do jogo, falando
ao time que está perdendo a partida. Ele ordena a igreja a ser
firme, constante, nunca parando de atuar. A imagem que surge
na minha mente aqui é a de um soldado que se recusa a ficar
entrincheirado não importa quantas balas estejam voando pelo
ar no campo aberto. Em si, essa exortação talvez motive uma
mera irrupção de energia ministerial ou alguma mudança de
comportamento de pouca duração. Todavia, Paulo não está ten-
tando ser um guru piegas de autoajuda ou um treinador esportivo
124 O homem

inflamado. Ele baseia esse desafio em dois indicativos, ou afir­


mações de realidade.
Em primeiro lugar, Paulo se dirige a eles chamando-os de
“meus amados irmãos”. Aqui, assim como em 2Tessalonicenses
2.13, ele está lembrando a igreja de sua posição em Cristo diante de
Deus Pai. Somos amados independentemente do nosso desempe-
nho e do nosso histórico moral. Mais do que isso, somos amados
por Deus, e ele tem prazer em nós, por causa da obra de Cristo
e do histórico dele. Precisamos nos lembrar dessa realidade vez
após vez se quisermos progredir como cristãos, sem mencionar
perseverar no ministério.
Em segundo lugar, o apóstolo escreve: “sabendo que nele o
vosso trabalho não é inútil”. Nosso trabalho tem um impacto que
literalmente durará para sempre (cf. 2Co 4.17) — não por causa
dos nossos dons e habilidades, mas porque nosso trabalho é “no
Senhor”. Se Deus nos chamou ao ministério e estamos buscando
ser fiéis a esse chamado, então Deus nos está usando para expan-
dir o seu reino. Esse é um pensamento encorajador, e é a única
maneira em que permaneceremos fiéis e constantes.

Lembre-se da ressurreição
Esse desafio de Paulo conclui seu extraordinário tratado sobre
a realidade e as implicações da ressurreição corpórea de Jesus
Cristo. Ao longo de todo o capítulo, o apóstolo defende que a
ressurreição é a base da nossa fé e esperança como cristãos. É por
causa da ressurreição que temos a capacidade de realizar o nosso
trabalho até o fim; é por isso que o versículo 58 começa com a
palavra portanto. Um dos meus mentores em exegese dizia que
toda vez que você depara com a palavra portanto deve verificar
a que ela se refere. Em geral, quando a palavra portanto ocorre
no Novo Testamento ela nos lembra de voltar atrás e verificar o
contexto para podermos compreender o versículo ou a passagem.
O contexto, neste caso, é a realidade de que Cristo ressuscitou dos
Um homem determinado 125

mortos. Assim, visto que Cristo foi ressuscitado, portanto perse-


verem até o fim.
De que maneira a ressurreição nos provê um fôlego perse-
verante? Romanos 8.11 é útil aqui: “Se o Espírito daquele que
ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que res-
suscitou Cristo Jesus dentre os mortos há de dar vida também
aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito, que em vós habi-
ta”. Esse versículo certamente se aplica à superação de pecados
pessoais como luxúria, ganância e mentira. Mas ele também dá
encorajamento e força permanente àqueles que estão exaustos no
ministério. O mesmo poder que ressuscitou Cristo dos mortos
está operando na sua vida e no seu ministério. Você tem à sua dis-
posição uma fonte milagrosa de poder que é infinitamente maior
que você. O mesmo Espírito que deu vida a Cristo habita em
você. “Por isso não nos desanimamos. Ainda que o nosso exterior
esteja se desgastando, o nosso interior está sendo renovado todos
os dias” (2Co 4.16). Viver à luz da ressurreição de Cristo significa
poder confiar que Deus realizará milagres no nosso ministério,
poder ter esperança mesmo quando tudo parecer desanimador e
poder contar com um poder maior que o nosso. Somos impelidos
a abandonar a confiança em nós mesmos e depositar a nossa fé
naquele “que é capaz de fazer infinitamente mais do que tudo o
que pedimos ou pensamos, de acordo com o seu poder que atua
em nós” (Ef 3.20, nvi).

Trabalhe pela sua recompensa celestial


Antes, em 1Coríntios 15, o apóstolo Paulo escreve: “Se, em
absoluto, os mortos não ressuscitam [...] por que nos expomos
também a perigos a toda hora? Morro todos os dias! Eu afirmo,
por causa de vós, que sois a minha glória em Cristo Jesus, nosso
Senhor. Se, como um simples homem, lutei com feras em Éfeso,
de que me adianta isso? Se os mortos não ressuscitam, comamos
e bebamos, porque amanhã morreremos” (v. 29-32). Paulo era
126 O homem

realista. Se não há recompensa futura no céu, ele conclui, então


esqueçam a coisa toda — abandonemos o ministério como todos
os outros. A premissa espantosa aqui parece ser que o ministério
pastoral simplesmente não vale a pena a não ser que você leve em conta
o céu. A não ser que o céu seja real, é melhor esquecer a igreja e ir
jogar videogame.
Podemos ver essa ênfase no céu ao longo das cartas de Paulo.
Perto do fim de sua vida, o apóstolo escreve: “Combati o bom
combate, terminei a carreira, guardei a fé. Desde agora a coroa
da justiça me está reservada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará
naquele dia, e não somente a mim, mas a todos os que amarem
a sua vinda” (2Tm 4.7,8). Às vezes os cristãos veem a atitude de
traba­lhar por uma recompensa celestial pessoal como errada ou
egoísta. No entanto, John Piper demonstrou que trabalhar visando
à nossa alegria pessoal em Deus e à promessa do céu não é apenas
permitido — é essencial.6 Encontrar nosso mais profundo prazer
e deleite em Cristo, e no pensamento de ver a face de Cristo um
dia no céu, não irá minimizar nosso impacto ou nos tornar egoís-
tas — justamente o contrário. Como C. S. Lewis disse: “Almeje o
Céu e você obterá a terra como ‘brinde’; almeje a terra e você não
obterá nenhum dos dois”.7
Martinho Lutero tem algumas palavras de brutal honesti-
dade, bastante proveitosas para nós, sobre como ele aplicou essa
verdade à sua própria vida:

Muitas vezes fico tão irritado e impaciente com nossos campone-


ses, moradores da cidade e nobreza que eu penso que nunca mais
desejo pregar outro sermão; pois eles se portam de maneira tão
vergonhosa que uma pessoa se sente inclinada a ter desgosto pela
vida. Além disso, o diabo não para de me importunar por dentro

6
John Piper, Desiring God: meditations of a Christian hedonist, Sisters,
Multnomah, 2003.
7
C. S. Lewis, The complete C. S. Lewis signature classics, São Francisco:
HarperSanFrancisco, 2002), p. 75.
Um homem determinado 127

e por fora. Portanto, quase tenho vontade de dizer: que outro seja
pregador em meu lugar. Deixarei que as coisas sigam o seu rumo,
pois nada logro senão o ódio e a inveja do mundo e todo tipo de
importunações do diabo. Portanto, minha carne e meu sangue se
revoltam, e minha natureza humana fica abatida e desanimada.
Nessa condição, devo buscar os conselhos da Palavra de Deus [...]
“Bem-aventurados sois, quando vos insultarem, perseguirem e,
mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Ale-
grai-vos e exultai, pois a vossa recompensa é grande; porque assim
perseguiram os profetas que viveram antes de vós” (Mt 5.11). A
essas palavras eu me apego.8

Quando você é motivado pelo evangelho no poder da res-


surreição e visando o futuro, é capacitado a fazer algumas das
coisas no ministério que, quando não são feitas, tendem a fazer
os outros desistir.

As práticas de um homem determinado


Para falar em termos mais práticos, há várias práticas que vim a
considerar essenciais para o cultivo de um ministério de longo
prazo e sustentável.

Enfrente a realidade
A maioria dos pastores vive num mundo de conto de fadas. Eles
se recusam a enfrentar a realidade brutal em que o ministério con-
siste, optando, em vez disso, por um mundo seguro e artificial
que nunca envolve conversas difíceis ou decisões radicais. Dan
Allender aponta:

Escolher é algo que os líderes fazem todo dia, mas o verdadeiro


peso que eles têm nos ombros é a necessidade de decidir. E não

8
Martinho Lutero, citado em Thomas C. Oden, Classical pastoral care:
ministry through word and sacrament, vol. 2 (Grand Rapids: Baker, 1987), p. 13-4.
128 O homem

existem decisões fáceis. Decidir exige uma morte, exige morrer


para centenas de opções, pôr de lado um sem-fim de possibilida-
des para escolher apenas uma. De-cidir. Homi-cídio. Sui-cídio.
A raiz da palavra “decidir” significa “cortar fora”. Todas as deci-
sões nos cortam fora; nos separam de infinitas opções anteriores
ao nos decidirmos por um único caminho. E toda decisão que
tomamos obtém para nós o bem-querer de alguns e o desprezo
de outros.9

Muitos pastores ficam o mais longe possível das linhas de


frente e, portanto, não vivem a realidade, ainda que dediquem
várias horas de sua semana a acompanhar os reality shows. É pre-
ciso ter bastante coragem para encarar os fatos brutais de frente
e lidar com a realidade de uma forma que honre a Deus. Isso
significa que é preciso motivar os membros passivos da equipe da
igreja. Os presbíteros e diáconos que têm algum pecado devem
ser confrontados. Os membros que causam divisão devem ser
repreendidos. Ninguém gosta de fazer essas coisas (se você gosta,
não tem vocação para pastor!), mas elas são necessárias se quiser-
mos ter uma igreja saudável a longo prazo. Se você permitir que
a passividade, a preguiça e o pecado infectem o ambiente, logo
passará a desprezar a igreja que pastoreia.

Use seu tempo sabiamente


“Aproveitem bem o tempo porque os dias em que vivemos são
maus” (Ef 5.16, blh). “Aproveitar bem” traduz uma palavra grega
que significa “redimir”. Paulo está literalmente dizendo: “Comprem
o tempo de volta”. Como você compra tempo? A única maneira
de recuperar o tempo é escolher sabiamente. No con­texto minis-
terial, isso envolve o compromisso de não perder tempo. Jonathan
Edwards, o grande pastor e teólogo do século 18, tomou nume-

9
Dan Allender, Leading with a limp: turning your struggles into strengths,
Colorado Springs: Waterbrook, 2006, p. 14.
Um homem determinado 129

rosas resoluções pessoais diante de Deus como expressão de sua


determinação no ministério. A quinta resolução dizia respeito ao
uso sábio do tempo: “Estou resolvido a jamais desper­diçar qual-
quer momento, mas a usá-lo da maneira mais proveitosa que me
for possível”.10
Os homens determinados levam o tempo a sério, e o usam
de maneira muito intencional. Isso não quer dizer que nunca des-
cansemos — longe disso! Mas significa, de fato, que devemos ser
intencionais com respeito a quando e como descansamos. Para a
maioria de nós, por exemplo, redimir o tempo provavelmente não
significa passar horas toda noite na frente da televisão ou assistindo
a vídeos no YouTube. Essas atividades podem parecer relaxantes
na hora, mas muitas vezes sugam enormemente nossa energia e
capacidade de servir bem a Deus e às pessoas. Para a maioria de
nós, redimir o tempo significa fazer um sério esforço de eliminar
os sugadores de tempo desnecessários da nossa semana, planejar
um sistema eficaz para responder aos e-mails, pensar sobre nossa agenda
e prioridades semanais com antecedência e assim por diante. Você
ficará impressionado com o quanto essa disciplina e intencionali-
dade “edwardianas” lhe darão energia e renovarão seu ministério
a longo prazo.

��
A Jonathan Edwards reader, ed. John E. Smith, Harry S. Stout e Kenneth P.
Minkema (New Haven: Yale University Press, 1995), p. 275. Às vezes, a verdadeira
determinação exige que se se assuma esses compromissos, alianças, votos e/ou resolu-
ções diante de Deus. Embora alguns cristãos vejam a realização de votos como algo
legalista, na verdade fazer votos é algo completamente bíblico. Nas Escrituras, o sal-
mista faz votos diante de Deus (p. ex., Sl 22.25; 56.12; 61.8; 76.11; 116.14), o apóstolo
faz votos (At 18.18), o povo de Deus faz votos (p. ex., Gn 28.20; 50.25; 1Sm 1.11) e o
próprio Deus faz todo tipo de votos, juramentos e alianças (p. ex., Gn 17.7; Sl 132.11;
Jr 31.31). Outros cristãos podem sentir que essa ênfase valoriza demais as decisões e
os esforços humanos. É interessante, porém, observar que Edwards era totalmente
calvinista, tendo uma profunda compreensão da soberania de Deus. Sua crença na
soberania divina não diminuiu em nada a determinação de seus esforços por Deus.
130 O homem

Assuma a responsabilidade pelo seu bem-estar físico


A vigésima resolução de Edwards era: “Estou determinado a pra-
ticar a mais estrita moderação quanto ao comer e ao beber”.11 Os
homens determinados são homens fisicamente saudáveis. Não
estou dizendo que devamos todos aspirar à capa da Men’s Fitness,
mas estou dizendo que devemos estar em forma. Por quê? Porque
quanto mais em forma você estiver fisicamente, mais energia terá
para fazer o que Deus o chamou a fazer. Deus nos fez criaturas
físicas e, se negligenciarmos nosso corpo, nossa vida espiritual e
emocional será afetada. Os homens determinados são cuidado-
sos com o que comem e bebem e na maneira como se exercitam,
porque sabem que isso fará grande diferença em seu ministério, e
possivelmente na duração dele.

Ouça conselheiros sábios


Provérbios 11.14 diz: “Quando não há uma direção sábia, o povo
cai, mas na multidão de conselheiros há segurança”. Provérbios
24.6 acrescenta: “Porque podes fazer a guerra com conselhos pru-
dentes; e a vitória está na multidão de conselheiros”. Provérbios
12.15 afirma: “O caminho do insensato é correto aos seus pró-
prios olhos, mas quem dá ouvidos ao conselho é sábio”. Final-
mente, Provérbios 15.22 nos diz: “Onde não há conselho, os
projetos se frustram, mas com muitos conselheiros eles se esta-
belecem”. Para sobreviver a longo prazo, você precisa ter pessoas
ao seu redor que não trabalham para você, não precisam da sua
aprovação e não o idolatram, e que estão dispostas a demonstrar
seu amor por você dizendo-lhe a verdade. A maioria dos pas­tores
não conta com essas pessoas, mas elas são indispensáveis se você
quiser permanecer no jogo. Não seja arrogante a ponto de pensar
que não precisa das opiniões e conselhos de outras pessoas.

11
Ibid.
Um homem determinado 131

Descanse no sábado
O descanso sabático é outro princípio bíblico que a maioria dos
pastores ignora. Embora seja verdade que os cristãos não estão
sujeitos ao quarto mandamento da mesma maneira que os antigos
israelitas, ele continua sendo no mínimo um princípio bíblico com
o qual podemos aprender bastante. Como os pastores trabalham
no domingo, muitos deles nunca tiram um dia de descanso. Essa é
uma receita para o desastre e a exaustão. Todos precisam descansar
e se recuperar de vez em quando.12 Uma pergunta útil que pode-
mos fazer é: Eu posso recomendar tranquilamente o meu estilo de
vida a um rapaz mais jovem que está ingressando no ministério?
Martinho Lutero escreveu: “Aqueles que cuidam das almas são
dignos de todo o cuidado”.13 Você está cuidando de si mesmo?

Passe tempo com sua família


Sua mulher e seus filhos (se você os tem) são as distrações santi-
ficadas que Deus lhe deu para que você não idolatre o ministério.
Gosto muito da história do pastor Chan Kilgore sobre a
maneira dramática como Deus o fez voltar sua atenção e afeição
pastorais a sua família.14

Durante a fase inaugural da plantação da igreja de Crosspointe,


Deus me agraciou com um momento definitivo de arrependimento
pelos meus hábitos pouco saudáveis de trabalho e minhas longas
horas longe da família.
Poucas semanas depois de ter trazido minha mulher, Stacy
— então grávida de nosso terceiro filho —, e minhas duas filhas

12
Para um tratamento mais aprofundado do descanso do sábado, ver meu ser-
mão intitulado “Rest”, que faz parte de uma série maior intitulada “Rhythms”; http://
www.journeyon.net/sites/default/files/audio/rest-tg-1-11-09.mp3. [Mantivemos a
indicação da fonte, apesar de o site não mais estar disponível na Internet. N. do E.]
13
Martinho Lutero, citado em Oden, Classical pastoral care: ministry through
word and sacrament, p. 7.
14
Chan Kilgore é o pastor fundador da Crosspointe Church em Orlando,
Flórida. Ele também é membro do conselho da rede Atos 29. Visite o site da
Crosspointe em http://www.xpointe.com.
132 O homem

a Orlando, para plantar uma igreja que só existia na minha cabe-


ça, eu estava numa reunião importantíssima com o grupo central
recém-formado. Nessa noite de domingo eu estava bastante inspi-
rado ao discorrer sobre os valores fundamentais que definiriam a
nossa igreja. Já discursava fazia uns trinta minutos quando percebi
minha mulher sentada entre o grupo. Reparei imediatamente que
ela não estava se sentindo bem. Apresentava os sintomas óbvios
de algum mal-estar repentino, e eu não conseguia desviar os olhos
dela. Tenho certeza de que meu pequeno discurso sobre o evan-
gelho começou a fazer cada vez menos sentido à medida que meu
foco saía das minhas palavras e se voltava para minha mulher.
Agora, o que você precisa saber sobre Stacy é que ela é uma
mulher muito temente a Deus e não é uma pessoa dada a reclamar.
Ela me disse muitas vezes ao longo dos anos que uma de suas manei-
ras de me ajudar é “não atrapalhar” o que Deus está fazendo em mim
e por meio de mim. Enquanto olhava para ela naquela reunião, ouvi
o Espírito me falando muito claramente em favor dela. “Leve-a para
casa... AGORA!”, ele disse. É como se o Espírito estivesse falando
em nome da minha mulher, que naquele momento não interrompe-
ria a minha proclamação do evangelho para falar por si mesma.
Hesitei. No meu interior, respondi ao Espírito: “Mas isto
é importante”. Estou bem certo de que não poderia haver res­
posta mais estúpida ao Deus Todo-poderoso que a minha naquele
momento. Imediatamente veio a resposta de Deus: “Mais impor-
tante do que o quê?”.
Resisti por alguns segundos. Então, bem no meio do meu
discurso, simplesmente parei. Deus havia rompido a barreira.
Confessei ao grupo que minha mulher não estava se sentindo bem,
que eu precisava levá-la para casa, e que Deus estava, exatamen-
te naquele momento, me convencendo da minha negligência em
relação a Stacy ao preferir correr atrás dos ídolos do ministério.
Ainda disse ao grupo que, se eu fosse pastoreá-los, precisava pas-
torear direito a minha família antes.
Deixei o restante da reunião a cargo de meu coplantador, Jay, e
levei Stacy para casa. No caminho, ela derramou lágrimas de grati-
dão pelo fato de Deus ter falado diretamente a mim em defesa dela.
Um homem determinado 133

Basicamente, o que quero dizer aqui é que os pastores precisam


prestar atenção em suas necessidades espirituais, físicas, relacionais e
emocionais. Pastores tendem a não ter uma visão holística de si pró-
prios. Alguns têm um bom foco em sua vida espiritual, mas não em
sua vida familiar. Outros, embora deem atenção à vida familiar, são
negligentes quanto ao próprio bem-estar físico. E assim por diante.
O que necessitamos é uma atitude holística, de orientação prática,
motivação teológica e totalmente implacável em relação à saúde do
nosso ser como um todo.15

Algumas perguntas
Concluiremos com algumas perguntas práticas que todos nós faría-
mos bem em considerar cuidadosamente:

1) Estou abordando os problemas que surgem na igreja de forma


direta e corajosa, ou estou permitindo que os problemas e disfunções
cresçam e infectem a igreja?
2) Estou fazendo um uso sábio do tempo que Deus me deu?
Tenho algum hobby ou hábito indigno de um cristão que preciso
eliminar da minha agenda para que meu ministério seja mais eficaz?
3) Estou prestando atenção em como cuido de meu corpo?
Estou praticando hábitos de sono e alimentação dignos de um cris-
tão? Estou tendo um descanso sabático?
4) Há qualquer área na minha vida que exija que eu faça um
voto diante do Senhor?
5) Estou me cercando de influências agradáveis a Deus, que
tornarão meu ministério sustentável a longo prazo? Disponho de
conselheiros sábios e de amizades masculinas próximas a quem

15
Uma história impactante de um pastor que lutou com a depressão e expe­
rimentou ajuda e superação divinas é o testemunho de Tommy Nelson, pastor da
Denton Bible Church, no Texas. Você pode ouvir o testemunho de Tommy em
http://www.focusonthefamily.com/radio.aspx?ID={1A0F9D4F-C845-46AD-
B196-41C170EFCE27}.
134 A mensagem

posso recorrer? Estou construindo um casamento e uma vida fami-


liar segundo os padrões de Deus?
6) Estou aplicando o evangelho que prego aos outros à minha
própria vida? Eu creio de fato que, por meio de Cristo, Deus é por
mim e não contra mim?
7) A que ou a quem recorro quando me sinto desanimado?
Cristo é, na prática, minha esperança e fonte de renovação ao longo
do dia?
8) Estou dependendo do poder do Espírito Santo? Estou con-
fiando que Deus fará o impossível, ou estou dependendo de minha
própria força?

Todas essas práticas de determinação só podem ser realizadas


em dependência consciente do Espírito Santo (Ef 5.18). O homem
determinado não é um homem meramente conduzido por sua pró-
pria vontade, mas um homem capacitado pelo Espírito. Agora que
você está concluindo este capítulo, passe um tempo em oração e peça
ao Espírito Santo que ele o encoraje e fortaleça no ministério ao qual
Deus o chamou.
Passamos a primeira parte deste livro examinando, de muitos
ângulos diferentes, o que significa ser um homem que honra a Deus
com uma vida dedicada a seu reino e seu povo. Já reconhecemos que
a primeira qualificação para o pastor e líder de igreja é admitir sua
necessidade de ser resgatado e depender da obra de Cristo para que
ele providencie esse resgate. Esse homem também deve receber o
fardo e desafio especiais de servir à igreja de Deus como uma voca-
ção. Vimos os padrões bíblicos para os homens que aspiram à função
mais elevada na igreja local, bem como algumas das habilidades que
mais ajudarão a igreja e o homem. Finalmente, vimos o que significa
pastorear bem as ovelhas colocadas sob o cuidado do pastor, e a
determinação que uma vida agradável a Deus e que reflete o amor
dele pelo seu povo exige. Quando esses elementos se combinam,
o resultado é um homem apto para levar a mensagem de Jesus ao
mundo. Agora, voltaremos nossa atenção a essa mensagem.
yy A MENSAGEM
A grande dificuldade é fazer com que os ouvintes modernos
percebam que você está pregando o cristianismo tão somente porque
de fato acredita que ele é verdadeiro; eles sempre pensam que você
o está pregando porque simpatiza com ele, considera-o bom para a
sociedade ou algo do tipo. (C. S. Lewis).1

Havia por volta dessa época Jesus, um homem sábio, se é que é lícito
chamá-lo homem; pois foi realizador de obras maravilhosas, um
mestre dos homens que recebem a verdade com alegria. Ele atraiu
para si muitos dentre os judeus bem como dentre os gentios. Ele era
[o] Cristo. E quando Pilatos, por sugestão dos principais homens
entre nós, o condenou à cruz, aqueles que o tinham amado desde o
começo não o abandonaram; pois ele lhes apareceu novamente vivo
no terceiro dia, tendo os divinos profetas predito essa e dez mil outras
maravilhas a seu respeito. E a tribo dos cristãos, derivando dele o seu
nome, até hoje não se extinguiu. ( Josefo, historiador judaico
do século primeiro d. C.).2

1
Citado em Michael Horton, Christless Christianity: the alternative Gospel
of the American church, Grand Rapids, Baker, 2008, p. 97.
2
Josefo, Antiguidades judaicas, p. 63-4.
8

Uma mensagem histórica

O evangelho é uma história verdadeira, baseada em eventos his-


tóricos. Ele fala de um Criador-Redentor que entrou em um
mundo arruinado e pecaminoso para resgatar as suas criaturas ao
literalmente se tornar uma delas. O Criador-Redentor entrou
neste mundo como um bebezinho chorão e pegajoso numa man-
jedoura suja e malcheirosa, tomada pelo odor de feno e de excre-
mento. No maior paradoxo de toda a história, Deus, que é um ser
de espírito, tornou-se um ser de carne. Permanecendo um ser de
poder infinito, tornou-se fraco e sentiu fome, e experimentou dor.
Ele passou do Deus do céu que está lá para ser o Senhor da terra
que está bem aqui. Deus tomou a teoria do seu amor pelo seu povo
e a envolveu em pele e sangue e cartilagem e osso.

Os fatos
Jesus, o Deus-homem, cresceu e se submeteu perfeitamente aos
seus pais terrenos. Ele trabalhou com seu pai como carpinteiro,
sem dúvida trabalhando duro sob o sol e apresentando, portanto,
braços fortes, e uma ética de trabalho mais forte ainda.3 Finalmen-
te, com cerca de trinta anos, depois de seu batismo público, no qual
Deus Pai afirmou a sua filiação e o Espírito Santo o capacitou para
a grande missão de Deus, Jesus começou o seu ministério público.

3
Gosto muito da cena n’A paixão de Cristo, de Mel Gibson, na qual se vê o
prazer de Jesus em construir mesas e cadeiras.
138 A mensagem

Ele curou os doentes, exorcizou demônios, pregou as boas-novas,


repreendeu os hipócritas e iniciou uma revolução. As Escrituras
nos dizem que Jesus foi totalmente humano, e portanto estava
sujeito a todas as provações e tentações que nós experimentamos
como seres humanos (Hb 2.17,18). Isso significa que tentação,
solidão, frustração, angústia e dor não foram sentimentos estra-
nhos a ele, como não o seriam a muitos homens na Palestina do
primeiro século. Contudo, em toda a sua vida, em meio à dor e à
tentação, ele nunca pecou. Ele realizou seu ministério da mesma
maneira como viveu sua vida — perfeitamente.
Mas apesar de sua perfeição moral e de seus feitos miraculo-
sos, ele não foi bem recebido pelos líderes religiosos e políticos da
época. E isso é uma forma suave de dizê-lo. Ele foi acusado fal-
samente pelos líderes judaicos, capturado por soldados romanos,
traído por um de seus melhores amigos, abandonado por todos os
seus discípulos, zombado por Herodes e condenado por Pôncio
Pilatos a morrer numa cruz romana (Mt 26.47—27.56; Mc 15.1-
41; Lc 23.1-56). John Stott oferece uma descrição de como foi a
crucificação de Jesus:

Se tivéssemos de depender exclusivamente dos Evangelhos, não


saberíamos o que aconteceu. Outros documentos da mesma época,
porém, nos descrevem o processo da crucificação. Primeiro o prisio-
neiro era despido e humilhado publicamente. Então ele era deitado
de costas no chão, suas mãos estando pregadas ou atadas ao braço
horizontal da cruz (o patibulum), e seus pés, ao poste vertical. A cruz
então era erguida e encaixada num buraco escavado para recebê-la
no chão. Em geral, providenciava-se uma estaca ou um assento rudi-
mentar para receber parte do peso do corpo da vítima, de modo que
ela não se rasgasse nos pregos, soltando-se da cruz. Mas ali ficava
dependurado, exposto à dor física intensa, à humilhação pública, ao
calor do dia e ao frio da noite. A tortura durava vários dias.4

4
John Stott, The cross of Christ, Downers Grove, InterVarsity, 1986, p. 48.
[Edição em português: A cruz de Cristo, São Paulo: reimp., Vida, 1992, p. 41].
Uma mensagem histórica 139

Esse evento terrível foi resultado tanto do plano predetermi-


nado de Deus quanto das ações perversas de seres humanos. Ele
ocorreu na história, mas também foi desdobramento do conse-
lho eterno de Deus. Pedro, em seu sermão no dia do Pentecostes,
uniu essas duas ênfases quando declarou a seus ouvintes judai-
cos: “Homens israelitas, escutai estas palavras: Jesus, o Nazareno,
homem aprovado por Deus entre vós com milagres, feitos extraor-
dinários e sinais, que Deus realizou entre vós por meio dele, como
bem sabeis; ele, que foi entregue pelo conselho determinado e pela
presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pelas mãos de
ímpios” (At 2.22,23).5 O cristianismo é uma religião histórica. Dife-
rentemente de todo o esoterismo e escapismo das heresias cristãs
primitivas e atuais, o Novo Testamento insiste em que Jesus viveu,
morreu e ressuscitou em um cenário histórico específico.6
Lembro-me de almoçar com um dos líderes da igreja emer-
gente, Spencer Burke. Ex-pastor de uma megaigreja na Califórnia,
Spencer começou a questionar não só a estrutura da igreja, mas
também a sua teologia. Ele fundou o TheOoze, um periódico online
que ajudou a conectar e capacitar os primeiros adeptos da igreja
emergente. Eu estava gostando muito de poder me encontrar com
o homem que me ajudou a processar muitas das minhas questões
sobre a igreja e a cultura enquanto eu me preparava para plantar a
The Journey. Só para constar, Spencer Burke é uma das pessoas
mais agradáveis que já conheci, e eu o considero um amigo.
Spencer havia acabado de escrever seu livro A heretic’s guide
to eternity [Um guia sobre a eternidade para hereges], e como eu não
o tinha lido, pedi-lhe que me desse uma versão “de almoço” do

5
Stott comenta o paradoxo das palavras de Pedro: Jesus “não morreu; ele foi
morto. Devo, todavia, contrabalançar essa resposta com o seu inverso. Ele não foi
morto; ele morreu, entregando-se voluntariamente para fazer a vontade do Pai”.
Ibidem, p. 53.
6
Ver, por exemplo, Lucas 2.1,2, que situa acontecimentos na vida de Jesus no
contexto de acontecimentos mais amplos no Império Romano, tais como um decreto
de César Augusto e um registro sob Quirino, governador da Síria.
140 A mensagem

livro.7 Ele começou a falar, e eu subitamente perdi o apetite.


Sem entrar nos detalhes de tudo o que foi dito, as seguintes
palavras saíram da boca de Spencer na frente de dois outros pas-
tores: “Não importa realmente se Jesus veio em corpo — o que
importa é a ideia de Jesus”. Muitas emoções, pensamentos, ver-
sículos e até mesmo alguns golpes de sufocamento do ufc vie-
ram à minha mente. Pressionei Spencer a respeito, na esperança
de que ele houvesse se expressado mal ou de que eu não tivesse
compreendido seu vernáculo de surfista do sul da Califórnia. No
entanto, quanto mais eu insistia em que ele esclarecesse a necessi-
dade de um Jesus histórico, mais claro ficava que Spencer estava
totalmente a caminho de personificar o título de seu livro recente,
como definido pelo Novo Testamento.8 Espero que Spencer e
outros como ele venham perceber o perigo dessa posição e vol-
tem para a convicção história e ortodoxa de que “Jesus Cristo
veio em corpo” (1Jo 4.2).
O Novo Testamento insiste em que o Deus eterno entrou
na história e agiu. Deus agiu na história: a eternidade entrou no
tempo; o Infinito se tornou finito. Aquele por meio de quem o
universo foi criado, e em quem todas as coisas subsistem, assu-
miu um corpo e nasceu na terra.9 Esses eventos históricos ser-
vem como o fundamento para a história do evangelho. Graeme
Goldsworthy não está sendo hiperbólico quando afirma: “O
evangelho de Jesus é a revelação definitiva da mente de Deus à
humanidade e o fato definitivo da história humana. A pessoa e

7
Para uma boa crítica da teologia de Spencer, consulte a resenha de Scott
McKnight sobre A heretic´s guide to eternity em http://blog.beliefnet.com/jesuscre-
ed/2006/07/heretics–guide–to–eternity–1.html. [Mantivemos a indicação da fonte,
apesar de o site não mais estar disponível na Internet.]
8
“Amados, não acrediteis em qualquer espírito, mas avaliai se os espíritos vêm de
Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo. Assim conheceis o Espírito
de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em corpo é de Deus; e todo
espírito que não confessa Jesus não é de Deus, mas é o espírito do anticristo, a respeito
do qual tendes ouvido que havia de vir, e agora já está no mundo” (1Jo 4.1-3).
9
João 1.1,14; Colossenses 1.15-20.
Uma mensagem histórica 141

a obra de Jesus nos dão o ponto focal singular para compreender


a realidade”.10
Em 1Coríntios 15.3-6, Paulo fundamenta os eventos da cruz
na história, dizendo que Jesus morreu de acordo com as Escrituras
e foi sepultado.11 Paulo então afirma que Jesus “ressuscitou ao ter-
ceiro dia”, o que nos mostra que o apóstolo não estava falando de
uma mera ressurreição espiritual, mas de uma ressurreição física. A
seguir ele menciona que quinhentas pessoas viram o Cristo ressur-
reto. Como 1Coríntios era um documento público num mundo em
que a Pax Romana12 permitia que as pessoas realmente conhecessem
essas testemunhas oculares, Paulo estava desafiando os céticos do
primeiro século a corroborar a ressurreição, visto que ela acontecera
na história e fora presenciada por pessoas que ainda estavam vivas.
Em outras palavras, se qualquer pessoa quisesse negar a validade da
ressurreição, ela teria de ignorar o fato de que quinhentas pessoas
haviam literalmente visto um homem que ressuscitara dos mortos.

O anúncio
A mensagem do evangelho estava fundamentada na história, mas
qual é a natureza da mensagem? A palavra euangelion (“evangelho”)
ou euangelizomai (“declarar/anunciar o evangelho”) ocorre tantas
vezes no Novo Testamento que, “claramente, o termo ‘evangelho’
é uma espécie de código para muitos autores do Novo Testamento;
o termo resumia de forma bastante básica aquilo em que, para
os cristãos primitivos, consistia essencialmente a fé cristã”.13 O
termo grego euangelion distinguia a mensagem cristã da miríade

10
Graeme Goldsworthy, Gospel-centered hermeneutics, Downers Grove,
InterVarsity, 2006, p. 21.
11
Ver, p. ex., Isaías 53.4-9.
12
A Pax Romana foi um longo período de relativa paz e estabilidade em todo o
Império Romano aproximadamente durante os dois primeiros séculos d.C.
13
James V. Brownson, Speaking the truth in love: New Testament resources for
a missional hermeneutic, Christian Mission and Modern Culture Series, Harrisburg,
Trinity, 1998, p. 31.
142 A mensagem

de outras ideias religiosas presentes no primeiro século. Um “anjo”


era um euangel, arauto, ou mensageiro celestial que trazia notí-
cias de um acontecimento real que havia ocorrido na história, um
evento com implicações específicas, diretas e dramáticas para os
ouvintes da mensagem.
Os exemplos mais comuns na literatura grega desses “euan-
gels” são de arautos que proclamavam a entronização de um novo
rei ou uma vitória dramática numa batalha crucial. Quando os
cristãos escolheram o termo euangelion para expressar a essência
de sua fé, eles deixaram de lado as palavras que as religiões hele-
nistas usavam no mesmo sentido, como “iluminação” (photismos)
e “conhecimento” (gnosis), ou as palavras empregadas pelo judaís-
mo, como “instrução” ou “ensino” (torah) e “sabedoria” (hokmah).14
Obviamente todas essas palavras também são usadas para comu-
nicar aspectos da mensagem cristã, mas euangelion é o termo
dominante usado no Novo Testamento. Parece que o Espírito
Santo inspirou os seus autores a usar uma palavra que significava
mais do que uma experiência extática privada, que confinaria o
evangelho à pessoa que tem a experiência. Euangelion é o anúncio
daquilo que Deus realizou objetivamente na história, não ape-
nas a experiência subjetiva de uma pessoa. O evangelho, assim,
é fundamentalmente um anúncio: não se trata apenas de quem
Deus é ou do que ele pode fazer, mas daquilo que Deus realizou na
história. O evangelho não nos dá conselhos sobre como podemos
alcançar a Deus; ele é, antes, uma declaração daquilo que Deus já
fez para nos alcançar aqui embaixo. Ele consiste nas boas-novas
sobre um acontecimento histórico que muda tudo!
Essa declaração exige uma resposta. Pelo fato de Jesus Cristo
ter entrado na história, o evangelho tem uma aplicação univer-
sal — Cristo é o caminho, a verdade e a vida, o único meio de
os humanos serem perdoados e redimidos.15 Ele literalmente é

14
Ibid., p. 46.
15
João 14.6; Atos 4.12.
Uma mensagem histórica 143

boas-novas para todas as pessoas, em todos os lugares e em todas


as épocas. O evangelho “identifica a fé cristã como uma notícia que
tem uma importância para todas as pessoas, para o mundo todo, e
não como uma mera compreensão ou percepção esotérica”.16 Como
Tim Keller escreve: “O evangelho, portanto, é uma notícia sobre o
que Deus realizou na história para nos salvar, em vez de um guia
sobre o que devemos fazer para alcançar a Deus. O evangelho é a
notícia de que a vida, a morte e a ressurreição de Jesus na história
conquistaram a nossa salvação. Nós não a conquistamos, apenas a
aceitamos. Jesus não apenas traz boas-novas; ele é as boas-novas”.17
Qual é a resposta apropriada a essa mensagem? Não é espe-
cular, debater ou conversar a respeito. Visto que o evangelho é uma
revelação sobre o que Deus fez na história, precisamos responder
com fé, não com incerteza ou conjeturas. Quando percebemos que
o evangelho não é uma declaração privada, mas uma declaração
pública do que Deus realizou na história para se aproximar de nós,
somos capacitados a responder em fé, crendo que Jesus é Salvador e
Senhor.18 O evangelho é um tipo diferente de mensagem e, portanto,
exige um tipo diferente de resposta. Ele está mais para um discurso
do que um simples comunicado. Deus está se dirigindo a nós com o
evangelho, e exige que respondamos.

A história em chamas
O evangelho é a mais bela história na trajetória da humanidade.
Aliás, a razão pela qual outras histórias são belas — a razão pela

16
Brownson, Speaking the truth in love, p. 46.
17
Tim Keller, Keller on Preaching to a Post-modern City II: Preaching
to Create Spiritually Inclusive Worship; http://pt.scribd.com/doc/13385894/
Preaching-in-a-PostModern-City. [Mantivemos a indicação da fonte, apesar de o
site não mais estar disponível na Internet. N. do E.]
18
Romanos 10.8-10: “Mas que diz? A palavra está perto de ti, na tua boca e
no teu coração; isto é, a palavra da fé que pregamos. Porque, se com a tua boca con-
fessares Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre
os mortos, serás salvo; pois com o coração é que se crê para a justiça, e com a boca
se faz confissão para a salvação”.
144 A mensagem

qual amamos filmes, romances e biografias permeados por temas de


redenção — é o fato de elas serem um eco dessa história básica; todas
essas histórias são um eco daquela que é a história. Todas as boas his-
tórias seguem o mesmo enredo básico do evangelho: o conflito entre
o bem e o mal, antes de um inevitável triunfo do bem sobre o mal.
Tensão, então harmonia. Redenção. Sacrifício. Traição. Amor. Sofri-
mento. Vitória. Os roteiristas cooptaram a história do evangelho para
literalmente faturar bilhões de dólares. Pare um momento e pense
sobre quantos enredos de filme plagiaram a história do evangelho.
Há uma razão para isso. A história da redenção captura o coração
humano, convidando-nos e nos desafiando a fazer parte de algo
maior do que nós mesmos. É uma história sob medida para os fil-
mes, e que traz em si a natureza dos mitos. C. S. Lewis se converteu,
deixando o ateísmo, porque foi arrebatado pela beleza da história do
evangelho, chamando-a de um “mito verdadeiro”.19
É interessante observar que a palavra gospel [evangelho], no
inglês, deriva da antiga palavra godspell, que era uma combinação das
palavras good [bom] e spell [feitiço]. Aparentemente, nos dias anti-
gos, você sabia que uma história era boa quando, ao ouvi-la, tinha a
impressão de que o narrador o havia enfeitiçado. O evangelho cer-
tamente faz isso com seus ouvintes, porque o supremo contador de
histórias e lançador de encantos é o próprio Deus. Desse modo, o
evangelho não se resume a fatos históricos frios e impessoais — ele
é a fala perene de Deus ao homem.20 O evangelho é a história em
chamas. Embora se baseie solidamente em acontecimentos históri-
cos, a história do evangelho, como todas as Escrituras, é viva e ativa,
penetrando até os nossos ossos.21
Muitas pessoas não foram capazes de navegar o paradoxo do
evangelho como “história em chamas”. O evangelho é tanto objetivo

19
Um bom relato da conversão de Lewis pode ser lido em: Alan Jacobs, The
Narnian: the life and imagination of C. S. Lewis, Nova York: HarperCollins, 2005.
20
Ver Systematic theology de Louis Berkhof (Grand Rapids: Eerdmans, 1996),
p. 142.
21
Cf. Hebreus 4.12; Jeremias 20.9.
Uma mensagem histórica 145

quanto subjetivo, tanto histórico quanto experiencial. Ele acon­teceu


na história passada, mas continua a impactar o mundo todo dia,
porque a ressurreição aconteceu e, portanto, Jesus ainda está vivo.
Como o cristianismo é objetivo, ele rejeita as tentativas de integrá-lo
indiscriminadamente ao rol das religiões extáticas, subjetivas e exclu-
sivamente pessoais. As religiões esotéricas confinam a experiência
esotérica ao subjetivo, o que enfraquece qualquer aplicação universal
de qualquer mensagem religiosa; tudo se torna puramente pessoal, e
portanto relativo. Mas o evangelho também se recusa a consistir em
meros acontecimentos objetivos, separados e históricos sem nenhum
impacto no presente. Embora a mensagem do evangelho seja objeti-
va e se situe fora de nossa experiência, ela também é subjetiva, porque
Deus se revelou a si mesmo de tal maneira que podemos conhecê-lo
pessoalmente ao experimentarmos a realidade do evangelho.22
Muitos pensadores tiveram uma perspectiva ambivalente quanto
ao aspecto histórico do cristianismo. Os pensadores do iluminismo,
por exemplo, estabeleceram uma divisão entre o mundo da história
e o mundo da fé. O filósofo alemão Immanuel Kant distinguiu entre
o mundo como nós o observamos (o fenômeno) e o mundo como ele
é em si mesmo (o númeno), criando um abismo que muitos pensa-
dores posteriores não foram capazes de atravessar. O filósofo e autor
Gotthold Lessing falou de um grande e terrível fosso entre a história
e a ciência, declarando que as verdades acidentais da história jamais
podem se tornar as provas das verdades necessárias da razão.23
Mesmo antes do Iluminismo, heresias cristãs primitivas nega-
vam a realidade física e a plena humanidade de Jesus. O docetismo
se baseava numa visão de mundo segundo a qual a matéria era má:

22
É útil aqui fazer a distinção entre verdade exaustiva e verdade suficiente.
Cf., de D. A. Carson, The gagging of God: Christianity confronts pluralism (Grand
Rapids: Zondervan, 1996), p. 103ss. Embora o nosso conhecimento seja sempre
limitado e parcial, podemos ter conhecimento verdadeiro de Deus e do mundo, por-
que Deus graciosamente condescendeu conosco e revelou a verdade de uma forma
que a possamos entender.
23
Cf., de Lesslie Newbigin, Proper confidence: faith, doubt, and certainty in
Christian discipleship (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), p. 71.
146 A mensagem

Deus, portanto, que era completamente santo, jamais poderia ter


assumido um corpo real, sujeito à mudança e sendo afetado pelo
mundo. Como resultado dessa visão, os docetistas afirmavam que
Jesus apenas parecia ter um corpo humano; na verdade, ele era um
espírito. O apolinarismo defendia que Cristo não tinha uma natureza
completamente humana. Embora tivesse um corpo humano, ele não
tinha uma alma humana ou uma vontade humana. Assim, segundo
essa heresia, sua experiência não foi plena e completamente humana,
visto que sua natureza divina dominava sobre muitos aspectos de
seu ser. Todas essas heresias (que foram condenadas por concílios
da igreja primitiva24) e outras várias formas de gnosticismo sofriam
de uma visão não bíblica segundo a qual a matéria é essencialmente
má. Ao desprezar o seu caráter histórico, essas heresias privavam o
cristianismo de seu vigor.
Mas a historicidade e a natureza física de Jesus precisam ser
defendidas, porque um cristianismo não fundamentado na história
nem chega a ser cristianismo. Se Deus verdadeiramente agiu na his-
tória, isso muda tudo. Se o Deus eterno — que é razão, que é verdade,
que é tudo o que é bom — verdadeiramente entrou no nosso mundo,
então precisamos reconsiderar todas as coisas à luz desse acontecimen-
to. Como disse Lesslie Newbigin: “Se, por assim dizer, a própria Ideia
do Bem de fato adentrou a sala e se pronunciou, precisamos interrom-
per a discussão que estamos tendo e dar ouvidos a ela”.25
Continuando nesse sentido, precisamos “dar ouvidos” à manei-
ra como o evangelho demonstra a realização da nossa salvação por
meio da vida perfeita e da morte sacrificial de Jesus.

24
Os concílios da igreja primitiva consistiram em reuniões de bispos da igreja
do mundo inteiro cujo propósito era discutir e definir a doutrina cristã. O erro
do apolinarismo, por exemplo, foi condenado pela igreja no Primeiro Concílio de
Constantinopla, que ocorreu em 381 d.C.
25
Newbigin, Proper confidence, p. 11.
O evangelho é o fato de que Jesus viveu a vida que você deveria ter
vivido, e morreu no seu lugar a morte que você deveria ter morrido,
para que Deus pudesse receber você não por aquilo que você fez e é,
mas por aquilo que ele fez e é. (Tim Keller).1

Pois a essência do pecado é o homem colocando-se no lugar de Deus,


ao passo que a essência da salvação é Deus colocando-se no lugar do
homem. O homem declara-se contra Deus e coloca-se onde apenas
Deus merece estar; Deus sacrifica-se a si mesmo pelo homem
e coloca-se onde apenas o homem merece estar. ( John Stott).2

Superficialmente, nada parece mais simples que o perdão, ao


passo que, se o examinarmos mais profundamente, nada é mais
misterioso e mais difícil. (B. F. Westcott).3

1
Tim keller, Keller on Preaching to a Post-modern City II: Preaching
to Create Spiritually Inclusive Worship; http://pt.scribd.com/doc/13385894/
Preaching-in-a-PostModern-City.
2
John stott, The cross of Christ, Downers Grove, InterVarsity, 1986, p. 160.
[Edição em português: A cruz de Cristo, São Paulo: reimp., Vida. N. do E.: Para maior
clareza, a citação foi traduzida diretamente do original em inglês, e não extraída da
versão em português da obra A cruz de Cristo, p. 144].
3
stott, The cross of Christ, p. 110. N. do E.: A citação foi traduzida direta-
mente do original em inglês, e não citado da versão da obra A cruz de Cristo em
português, pois esta contém um erro evidente de tradução.
9

Uma mensagem que


resulta em salvação

O evangelho não é meramente inspirador, perceptivo ou inte-


ressante (embora certamente seja todas essas coisas). A men-
sagem do evangelho é uma mensagem ativa, por meio da qual
Deus realmente efetua a salvação. O evangelho realmente salva,
porque no evangelho o Deus do universo age. Essa obra de sal-
vação foi prometida por Deus e aguardada pelo seu povo por um
longo tempo. Ela começou com o prolegomenon (a primeira pre-
gação do evangelho), em que Deus, falando à serpente depois da
Queda da humanidade, declarou: “Porei inimizade entre ti e a
mulher, entre a tua descendência e a descendência dela; esta te
ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”.4 A história humana
deveria ter terminado quando Adão e Eva pecaram contra Deus.
Podemos presumir que a perfeita justiça de Deus teria sido plena-
mente demonstrada se ele tivesse escolhido exterminar a huma-
nidade no jardim.

4
Gênesis 3.15. De acordo com o Novo Testamento, o plano de salvação de
Deus remonta até mesmo a antes de Gênesis 3; ele é o conselho eterno de Deus.
Paulo, por exemplo, afirma que Deus nos salvou “devido ao seu propósito e à graça
que nos foi concedida antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9).
150 A mensagem

Em vez disso, no entanto, Deus graciosamente permitiu que


a nossa espécie continuasse e povoasse o planeta. Ele até mesmo
agiu de forma providencial para preservar a nossa espécie da des-
truição5 e separar um povo por meio do qual ele prometeu um dia
abençoar o mundo inteiro.6 Então, exatamente no momento certo
da história humana,7 Cristo veio para cumprir o plano predeter-
minado do Pai em favor de seu povo.8 O próprio Deus invadiu o
nosso espaço para nos salvar. O ato que remediaria nossa enfermi-
dade foi realizado por um outro. Ao longo do Antigo Testamento,
Deus havia prometido fazer algo quanto aos dois inimigos impes-
soais da humanidade — o pecado e a morte.9 Em sua morte e res-
surreição, Cristo derrotou nossos inimigos e efetuou a salvação do
pecado e da morte para seu povo. Como diz Graeme Goldsworthy:
“O evangelho é o evento (ou a proclamação desse evento) de Jesus
Cristo, que começa com sua encarnação e vida terrena e termina
com sua morte, ressurreição e ascensão para estar à direita do Pai.
Esse evento histórico é interpretado por Deus como seu plano
pré-ordenado para a salvação do mundo”.10
Que tipo de salvação Cristo realizou? Essa é a questão de
que trato neste capítulo. A essência da obra da salvação efetuada
por Cristo está no fato de que ele morreu numa cruz pelos nossos
pecados para que pudéssemos ser reconciliados com Deus. Mas

5
Romanos 6—9.
6
Gênesis 12.1-3.
7
Gálatas 4.4: “Vindo, porém, a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho,
nascido de uma mulher, nascido debaixo da lei”.
8
Atos 2.22-24: “Homens israelitas, escutai estas palavras: Jesus, o Nazareno,
homem aprovado por Deus entre vós com milagres, feitos extraordinários e sinais,
que Deus realizou entre vós por meio dele, como bem sabeis; ele, que foi entregue
pelo conselho determinado e pela presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-
o pelas mãos de ímpios; e Deus o ressuscitou, quebrando as algemas da morte, pois
não era possível que fosse detido por ela”.
9
Nós também temos um inimigo pessoal — o próprio Satanás, por meio de
quem o pecado e a morte entraram no mundo ( Jo 10.10; 1Pe 5.8; Ap 12.10).
10
Graeme Goldsworthy, Gospel-centered hermeneutics, Downers Grove, Inter-
Varsity, 2006, p. 58.
Uma mensagem que resulta em salvação 151

de que maneira morrer numa cruz afeta o nosso relacionamento


com Deus? A resposta está no conceito bíblico de expiação. “A
expiação é a obra de Deus em Cristo na cruz por meio da qual
ele cancelou a dívida do nosso pecado, aplacou sua ira divina
contra nós e conquistou para nós todos os benefícios da salvação”.11
A expiação é necessária tanto para preservar a justiça de Deus como
para estender a salvação aos pecadores.

Por quem Jesus morreu?


Efésios 5.2 sublinha o fato de que a morte de Jesus teve aspectos
tanto verticais como horizontais. Paulo escreve: “... Cristo, que
também nos amou e se entregou por nós a Deus como oferta e
sacrifício com aroma suave”. Verticalmente, Jesus morreu para
satisfazer a justiça e a ira de Deus. Mas Cristo também mor-
reu para salvar aqueles com quem ele compartilhou a natureza
humana. Jesus foi um sacrifício por nós e um sacrifício a Deus.
Cristo morreu para Deus, mas também pelos pecadores. Esse fato
está ligado à encarnação de Jesus como o Deus-homem. Aliás, foi
só como o Deus-homem que Jesus pôde servir como o cordeiro
sacrificial “sem defeito e sem mancha”,12 aquele que “deu sua vida
por nós”.13
Também é importante esclarecer que, como Deus encar-
nado, o Pai, o Filho e o Espírito Santo estavam completamente
unidos na obra de sustentar a perfeição da justiça e da miseri-
córdia de Deus. Afirmar que Jesus morreu como um sacrifício
não significa que o Pai e o Filho estivessem em desacordo entre
si. Jesus não morreu simplesmente para apaziguar um Pai irado.
Vemos no Evangelho de João que o Pai e o Filho estão unidos. O

11
John Piper, For whom did Christ die? & What did Christ actually achieve on
the cross for those for whom he died?”; http://www.monergism.com/thethreshold/
articles/piper/piper_atonement.html.
12
Êxodo 12.5; 1Pedro 1.19.
13
1João 3.16.
152 A mensagem

próprio Jesus declara: “O Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que


ele mesmo faz” ( Jo 5.20). Alguns capítulos adiante, contra a ideia
de que haja qualquer indício de desunião na Trindade, Jesus afirma:
“Por isso o Pai me ama, porque dou a minha vida para retomá-la”
( Jo 10.17). Embora a justiça da divindade deva ser satisfeita, isso
ocorre sem implicação alguma de uma ruptura entre o Pai e o Filho.
Para responder à pergunta de por quem Cristo morreu, pri-
meiro falaremos sobre Jesus como um sacrifício a Deus, e então
olharemos para ele como um resgatador dos pecadores.

Jesus morreu para Deus


Por chocante que possa parecer, a segunda pessoa da Trindade se
tornou homem e morreu para satisfazer a primeira pessoa da Trin-
dade. Essa satisfação dizia respeito às exigências justas de Deus,
que foram reveladas na lei do Antigo Testamento. O ponto cru-
cial da lei é que nós, como criaturas, devemos amar nosso gene­
roso Criador com todo o nosso coração, alma e forças — isto é,
com todo o nosso ser e em todo o tempo.14 O problema é que nós,
seres humanos, não apenas falhamos em amar a Deus como ele
exige, mas também tendemos a criar outros deuses, deuses substi­
tutos, para adorar no lugar de Deus.15 Essa é a essência daquilo
de que precisamos ser salvos: o pecado. A essência do pecado é
a idolatria, por meio da qual removemos Deus do altar do nosso
coração e o substituímos por deuses funcionais de nossa própria

14
Cf. o shemá de Israel, chamado por Jesus de o maior mandamento, encon-
trado em Deuteronômio 6.5: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração,
com toda a tua alma e com todas as suas forças”.
15
Cf. Jeremias 2.12,13: “Espantai-vos disso, ó céus, e horrorizai-vos! Ficai
verdadeiramente desolados, diz o Senhor. Porque o meu povo cometeu dois delitos:
eles me abandonaram, a fonte de águas vivas, e cavaram para si cisternas, cisternas
furadas, que não retêm água”. Gosto muito dessa metáfora porque ela se refere tanto
à natureza quando ao resultado da idolatria — nós criamos um deus e damos a ele
nosso coração, nossa alma e nossas forças, o que acaba nos tornando não só desobe-
dientes à lei e nos levando a desonrar a Deus, mas também a ficar desapontados com
o ídolo e a nos sentir vazios, já que Deus é a única cisterna verdadeira.
Uma mensagem que resulta em salvação 153

escolha. O que significa ser salvo? Significa que Jesus veio para
satisfazer as exigências justas da lei, para que pecadores e idólatras
pudessem ser reconciliados à comunhão com Deus.
Na nossa cultura, a ideia de que Jesus morreu para satisfazer
a justiça de Deus causa desconforto em muitas pessoas. A raiz
desse problema, muitas vezes, está numa incompreensão da seve-
ridade do pecado. Ele não é uma ofensa menor que pode ser facil-
mente removida, como um mosquito irritante num dia quente de
verão. O pecado é a ofensa mais séria que pode existir, porque é
cometida contra o mais sério, o mais glorioso dos seres.
A palavra hebraica para “glória” é kabod [pronuncia-se
kavod]. Ela vem de kabed, “pesado”. O uso original dessa palavra
se referia às coisas pesadas num sentido literal, físico. Assim, por
exemplo, a Bíblia descreve Eli como “pesado”,16 uma forma edu-
cada de dizer que ele era corpulento. A palavra kabed também era
usada, de maneira mais figurada, para descrever coisas de gran-
de importância. Assim, a Bíblia diz que Abraão era “pesado” não
porque ele precisasse melhorar o seu cardiograma, mas porque ele
era rico. “Abraão havia se tornado muito ‘pesado’ em animais e em
prata e ouro”.17
Não é difícil, portanto, ver por que a palavra hebraica para
“pesado” veio a ser usada para designar qualquer pessoa merecedora
de honra ou reconhecimento — generais, reis, juízes e outras posi-
ções de influência e poder. Nos filmes de máfia e de gângsteres, os
cobradores ou matadores são chamados de heavies [“pesados”], por-
que o peso físico e psicológico das incumbências que eles carregam
exige respeito. Em hebraico, diríamos deles que eram kabod; isto é,
pessoas a quem se deve prestar o máximo respeito.
A palavra do Novo Testamento para “glória” tem um signifi-
cado semelhante. Trata-se da palavra grega doxa, que originalmente

16
1Samuel 4.18.
17
Comentários sobre Gênesis 13.14 em Matthew Henry’s concise Commentary,
Nashville: Thomas Nelson, 2000.
154 A mensagem

se referia a “ter uma opinião”. Ela passou a significar ter uma alta
estima por uma grande pessoa, como um rei. Render glória a uma
pessoa era conceder-lhe a honra que sua reputação exigia.
Vemos, assim, por que a Bíblia usou essas palavras — a palavra
hebraica para “pesado” e a palavra grega para “honra” — e as aplicou
a Deus. Deus é aquele que tem a posição mais elevada, que tem
mais poder e a mais grave reputação em todo o universo. Deus é “o
pesado”. Ele é um peso-pesado. Aliás, ele é O peso-pesado.
Portanto, ofender a Deus equivale a comprar uma briga com
Muhammad Ali, um jovem Mike Tyson e Fedor Emelianenko
fundidos num só lutador e multiplicados ao infinito. Em outras
palavras, ofender a Deus é o maior crime no universo e merece
punição eterna.
Como John Piper brilhantemente articula: “O pecado não é
pequeno, porque não é contra um soberano pequeno. A seriedade
do insulto aumenta de acordo com a dignidade daquele que é
insultado. O Criador do Universo é infinitamente digno de res-
peito, admiração e lealdade. Portanto, falhar em amá-lo não é algo
trivial”.18 Se não conseguimos entender a profundidade dos apu-
ros em que, como pecadores, nós nos encontramos, a morte de
Cristo nos parecerá desnecessária e supérflua. Mas se aceitamos
a nossa verdadeira situação como pecadores diante de um Deus
santo, a morte de Cristo se torna bela e preciosa para nós.
O texto bíblico que aborda mais claramente a expiação e
sua ligação com a justiça e a retidão de Deus é Romanos 3.25,26.
Nele, Paulo afirma que Deus “ofereceu [a Cristo] como sacri­
fício propiciatório, por meio da fé, pelo seu sangue, para demons­
tração da sua justiça. Na sua paciência, Deus deixou de punir
os pecados anteriormente cometidos; para demonstração da sua
justiça no tempo presente, para que ele seja justo e também justi-
ficador daqueles que têm fé em Jesus”. Paulo está descrevendo a

18
John Piper, The passion of Jesus Christ: fifty reasons why he came to die,
Wheaton, Crossway, 2004, p. 21.
Uma mensagem que resulta em salvação 155

justificação do caráter de Deus por causa da morte de Cristo. Teria


sido injusto, segundo Paulo, se Deus sancionasse nossa redenção
simplesmente ignorando o pecado. Sem a morte brutal de seu
Filho, Deus deixaria de ser o justo governador moral do universo.
A maldição do pecado precisa ser sofrida, e a dívida do pecado
precisa ser paga.
Uma pergunta típica relacionada à expiação é: por que Jesus
teve de morrer para nos salvar? Por que Deus não poderia sim-
plesmente nos perdoar? Afinal, Deus não ordena que perdoemos
uns aos outros sem exigir punição? Mas pense em alguma vez que
você ou alguém que você ama foi seriamente prejudicado. Você ou
essa pessoa conseguiram simplesmente ignorar a ofensa ou rejei-
tá-la sem sofrimento? É claro que não! Quando você é verdadei-
ramente ofendido, há duas escolhas. Você pode ou exigir vingança
e fazer com que a pessoa que o prejudicou pague pelo que fez, ou
pode perdoá-la, absorvendo em si mesmo a dor do dano que ela
causou. Por um lado, você pode causar a dor para se libertar a si
mesmo; por outro, você pode receber a dor do perdão e libertar
o outro. Se você pensa que o perdão não é doloroso, você nunca
perdoou alguém que o machucou profundamente. Seja por meio
da vingança ou do perdão, alguém sempre paga pela injustiça.
Lembro-me de “emprestar” dinheiro a um dependente
químico em nossa igreja. Vou chamá-lo de Bob. Bob não teria
como dar comida a sua esposa e filhos sem os trezentos dólares
que ele estava me pedindo, ou pelo menos era isso que ele dizia.
Assim, da bondade do meu coração pastoral, eu lhe emprestei o
dinheiro. Ele nunca devolveu. Agora, eu poderia ter me vingado
e lhe dado uma retribuição (vandalizando seu carro ou impondo
minhas mãos sobre ele de uma maneira não bíblica — duas coi-
sas, a propósito, que meu maldoso coração de pastor me levou
a cogitar), ou eu poderia enfrentar o processo de perdoar Bob e
absorver aquele déficit de trezentos dólares. Contudo, não havia
como simplesmente perdoar Bob e apagar aquela dívida de tre-
zentos dólares — eu precisava absorver essa perda. Perdoar Bob
156 A mensagem

significava eliminar a dívida de trezentos dólares que ele tinha


comigo. Eu precisava estar disposto, num sentido muito real, a
pagar eu mesmo essa dívida.
Se nossas interações com os outros seres humanos, pessoas
imperfeitas e pecadoras como nós, já são assim, como poderíamos
esperar que Deus, nosso Criador e Juiz, desse de ombros para o
pecado e desviasse seu olhar de nossas transgressões? No fim das
contas, a objeção segundo a qual Deus deveria deixar passar o
nosso pecado, com uma piscadela e um sorriso, ignora a diferença
fundamental entre nós, na condição de seres criados, e Deus, na
condição de Criador e governador moral. John Stott oferece algu-
mas palavras úteis aqui:

Argumentarmos que “perdoamo-nos uns aos outros incondicio-


nalmente, que Deus faça o mesmo por nós” revela não sofisticação,
mas superficialidade, visto que deixa de lado o fato elementar de
que não somos Deus. Somos indivíduos particulares, e os peque-
nos delitos das outras pessoas são danos pessoais. Contudo, Deus
não é um indivíduo particular e o pecado tampouco é mero dano
pessoal. Pelo contrário, o próprio Deus é o criador das leis que
quebramos, e o pecado é rebeldia contra ele.19

Se você ainda está tendo dificuldade com essa ideia, pense


nela assim: a Bíblia ensina que Deus é absolutamente santo e justo
e, portanto, não pode tolerar nenhum mal. Como Deus é nosso
Criador, e como as leis morais se baseiam na sua boa natureza,
nossos pecados suscitaram o justo juízo de Deus. Assim como
Bob me devia trezentos dólares e um pedido de desculpas, nós
também estamos devendo a Deus — só que a nossa dívida é infi-
nitamente maior que a de Bob, e um simples pedido de desculpas
não será suficiente. Somos literalmente incapazes de pagar toda
a retribuição que devemos a Deus. Mas Deus, em sua grande

19
Stott, A Cruz de Cristo, p. 78.
Uma mensagem que resulta em salvação 157

misericórdia, enviou Cristo para absorver a nossa dívida e pagar


a pena do nosso pecado. Isso é o que Deus fez por nós em Cristo.
Ele não podia simplesmente perdoar — ele teve de absorver a
nossa dívida ao tomar o nosso lugar; o Credor se tornou o deve-
dor. “E a vós, quando ainda estáveis mortos nos vossos pecados
[...] Deus vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os
nossos pecados; e, apagando a escrita de dívida, que nos era con-
trária e constava contra nós em seus mandamentos, removeu-a do
nosso meio, cravando-a na cruz” (Cl 2.13,14).
Esse entendimento da expiação costuma ser chamado de
doutrina da substituição penal — penal porque Jesus foi legal-
mente punido pelos nossos pecados, e substituição porque ele fez
isso em nosso lugar. Muitas outras perspectivas sobre a expiação
foram defendidas ao longo da história da igreja. Muitos cristãos
antigos sustentavam que a morte de Cristo foi um pagamento a
Satanás. Outros cristãos compreendiam a morte de Cristo como
um exemplo a ser seguido pelos cristãos. Outros a veem como
uma forma de Deus influenciar o mundo para o bem, demons-
trando seu amor e benevolência para levar as pessoas a se arre-
penderem. Para outros, a morte de Cristo é uma forma de Deus
restaurar a harmonia em um universo que foi desestruturado pelo
pecado. Outros ainda veem a morte de Cristo na cruz como sua
maneira de desarmar e derrotar Satanás.20
Há vislumbres da verdade em algumas dessas visões, ao passo
que outras são claramente não bíblicas. Por exemplo, as Escrituras
de fato ensinam que Cristo triunfou sobre Satanás e suas hostes
por meio de sua morte e ressurreição.21 E a morte de Cristo

20
Se você estiver interessado em aprender um pouco mais a respeito das di-
ferentes teorias sobre a expiação, recomendo o texto breve, porém útil, de Leon
Morris, “Theories of the Atonement”; http://www.monergism.com/thethreshold/
articles/onsite/atonementmorris2.html. [Publicado em português como “Teorias da
expiação” em Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã, reimp. em um volume,
São Paulo, Vida Nova, 2009, p. 141-5].
21
Colossenses 2.15.
158 A mensagem

certamente é um exemplo para os cristãos.22 Entretanto, o ponto


central do ensino da Bíblia sobre a obra de Cristo é a substituição
penal.23 Em Colossenses 2.15, por exemplo, a derrota de Satanás
infligida por Cristo parece derivar da sua morte penal em Colos-
senses 2.13,14.24 Lovelace o resume bem: “A expiação substitutiva
é a essência do evangelho, e isso porque ela dá a resposta para o
problema de nossa culpa, escravidão e separação de Deus”.25

Jesus morreu pelos pecadores


Uma das metáforas que a Bíblia usa para descrever o amor de
Cristo por aqueles por quem ele morreu é o relacionamento entre
um marido e sua noiva. Na sua morte, Cristo demonstrou como
ele ama a sua noiva, a igreja.26 Esse relacionamento marido-noiva
realça o fato de que Jesus morreu não apenas por amor à sua igreja,
mas também como um protetor apaixonado de sua amada. Jesus,
o Noivo da igreja, é um apaixonado amante e defensor da sua noiva.
Para os homens que leem isto, essa descrição abertamente femi-
nina da igreja como uma noiva pode deixá-los desconfortáveis.
Que esse desconforto não o distraia do poder dessa mensagem:
Jesus morreu por você! Ele não morreu de má vontade. Ele não

22
1Pedro 2.21.
23
Isaías 53.5,12; Romanos 4.25; 5.8; Gálatas 3.13; 1Pedro 3.18.
24
Para uma defesa extensa e proveitosa da doutrina da substituição penal, ver,
de Steve Jeffery, Mike Ovey e Andrew Sach, Pierced for our transgressions: rediscove-
ring the glory of penal substitution (Wheaton: Crossway, 2007). Encontra-se aí, por
exemplo, uma afirmação útil sobre a importância prática da substituição penal na pá-
gina 153: “Uma compreensão de substituição penal da cruz nos ajuda a compreender
o amor de Deus e a apreciar sua intensidade e beleza. As Escrituras magnificam o
amor de Deus ao se recusarem a diminuir a nossa situação de pecadores que merecem
a ira divina e ao retratarem a cruz, de forma fiel e sem concessões, como o lugar onde
Cristo sofreu essa punição em lugar de seu povo. Se embotamos as pontas afiadas da
cruz, tiramos o brilho do diamante do amor de Deus”.
25
Richard F. Lovelace, Dynamics of spiritual life: an evangelical theology of
renewal, Downers Grove, InterVarsity, 1979, p. 97.
26
Efésios 5.25.
Uma mensagem que resulta em salvação 159

morreu de forma desapaixonada.27 Não, Jesus morreu uma morte


tremendamente dolorida para protegê-lo de maneira veemente e,
ao perdoá-lo, mostrar seu amor extraordinário por você.
Outra metáfora usada para descrever o relacionamento de
Jesus com seu povo é a de um pastor. Jesus se refere a si mesmo
como o “bom pastor” e ao seu povo como “ovelhas”, afirmando:
“O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para
que tenham a vida, e a tenham com plenitude. Eu sou o bom
pastor; o bom pastor dá a vida pelas ovelhas” ( Jo 10.10,11). Em
sua morte, Cristo atuou para conquistar a salvação para a igreja,
sua noiva, seu rebanho, resgatando-a da destruição e da morte e
dando-lhe vida abundante.
As bênçãos que Cristo obteve para nós por meio de sua
morte e ressurreição são imensuráveis. Por meio de sua obra
da cruz, Cristo nos proveu reconciliação com Deus,28 perdão
dos pecados,29 propiciação,30 a capacidade de viver para Deus,31
vida eterna,32 justificação,33 herança no céu,34 justiça,35 cura,36
ressurreição corporal,37 intercessão pelos incapacitados,38 paz,39
liberdade,40 união entre os cristãos,41 um exemplo,42 redenção,43

27
Hebreus 12.2.
28
2Coríntios 5.19
29
Colossenses 2.13.
30
Romanos 3.25.
31
2Coríntios 5.15.
32
João 3.16.
33
Romanos 4.25.
34
Efésios 1.11.
35
Filipenses 3.9,10.
36
1Pedro 2.24
37
1Coríntios 15.22
38
Hebreus 7.25.
39
Isaías 53.5.
40
Gálatas 5.1
41
Efésios 2.11-22
42
1Pedro 2.21.
43
Romanos 3.24.
160 A mensagem

defesa,44 libertação do medo da morte,45 esperança,46 sabedoria,47


regeneração,48 acesso à presença de Deus49 e, por fim, todas as
coisas.50 Em suma, a morte de Cristo deu a nós o próprio Deus.
Trata-se literalmente da diferença entre a angústia e a destruição
eternas, separados de Deus, e a vida e a felicidade eternas com
Deus. A obra de Cristo, portanto, é algo que devemos estimar,
valorizar, honrar, estudar e proclamar. Especialmente em nossos
dias, em que há muita confusão sobre a morte de Cristo, não
devemos omitir esse aspecto da mensagem do evangelho. Fazê-lo
seria privar os pecadores das bênçãos que podem receber por meio
dessa mensagem e obscurecer a beleza do evangelho para eles.

O que a morte de Cristo significa?


Vimos a motivação dupla para a morte de Jesus. Jesus morreu
para Deus (isto é, sua morte aplacou a ira de Deus) e pelos
pecadores (isto é, nós somos os beneficiários do sacrifício per-
feito de Cristo). O que precisamos agora é entender as impli-
cações desse sacrifício.

Ele tomou sobre si o nosso pecado


Há uma imputação dupla na cruz: nós recebemos a justiça de
Deus, e Cristo recebe o nosso pecado. “Daquele que não tinha
pecado Deus fez um sacrifício pelo pecado em nosso favor, para
que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21). Martinho
Lutero chamou isso de “a grande troca”. Ele orou: “Senhor Jesus,
tu és a minha justiça, e eu o teu pecado. Levaste sobre ti o que era

44
1João 2.1.
45
Hebreus 2.14,15.
46
Romanos 5.1-11.
47
1Corintios 1.30.
48
1Pedro 1.3.
49
Hebreus 10.19.
50
Romanos 8.32.
Uma mensagem que resulta em salvação 161

meu; mas depuseste sobre mim o que era teu. Tu te tornaste o que
não eras, para que eu pudesse me tornar o que eu não era”.51
Deve ter sido algo terrível para Cristo absorver o nosso
pecado. A agonia física da cruz foi horrível e inimaginável (como
dissemos no último capítulo), mas não foi nada perto da agonia
espiritual de se tornar pecado e suportar a ira de Deus. Nos relatos
dos Evangelhos lemos que, enquanto Cristo pendia da cruz, trevas
cobriram a terra (Mt 27.45). Durante essa escuridão, Jesus bradou:
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46).
Essa citação de Salmos 22.1 expressou algo da agonia que Jesus
suportou; num sentido muito real, Deus literalmente abandonou
Jesus na cruz. Embora eles tivessem amado um ao outro eterna-
mente, Deus Pai deu as costas a Deus Filho. Na cruz, Jesus ergueu
os olhos para o céu e só viu escuridão. Jesus bradou ao Pai e a única
resposta foi o silêncio. E pior, o Pai derramou em Jesus toda a sua
ira pelo pecado. Ele puniu Jesus com a vingança de um Deus santo
e justo contra toda a maldade cometida por todos os que creem.
A ira de Deus não foi nem um pouco mitigada ou suavizada. Ela
foi despejada em Jesus, que se tornou nosso pecado e foi punido em
nosso lugar. “Deus o fez na carne, condenando o pecado e envian-
do o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado e como
sacrifício pelo pecado” (Rm 8.3).
Tudo isso aconteceu embora Jesus nunca houvesse peca-
do. Em sua vida, ele obedecera a Deus perfeitamente e, desde a
eternidade, desfrutara de um relacionamento amoroso com o Pai.
Tudo isso aconteceu embora Jesus fosse o Deus eterno. Ele era
digno de adoração infinita, mas recebeu infinita ira. Ele deveria
ter ostentado uma coroa de joias reluzentes; em vez disso, puse-
ram-lhe sobre a cabeça uma coroa de espinhos. Ele deveria ter
sido enaltecido como rei, mas foi executado como um vergonhoso
marginal. Aquele que era adorado por legiões de anjos tornou-se
o indivíduo mais desprezado a já ter existido no universo.

51
Citado em Stott, A Cruz de Cristo, p. 180.
162 A mensagem

Embora não possamos imaginar exatamente o que Jesus


experimentou na cruz, o seguinte comentário de Lutero pode
nos dar alguma ideia da seriedade do seu sofrimento: “Visto
que [ Jesus Cristo] se tornou um substituto para todos nós, e
tomou sobre si os nossos pecados, para que pudesse sofrer a
terrível ira de Deus contra o pecado e expiar a nossa culpa, ele
necessariamente sentiu o pecado do mundo inteiro, junto com
toda a ira de Deus, e depois disso a agonia da morte por causa
desse pecado”.52 Mark Driscoll resume muito bem a impor-
tância prática de tudo isso: “Do início das Escrituras Sagradas
(Gn 2.17) ao fim (Ap 21.8), a pena para o pecado é a morte.
Portanto, se pecamos, devemos morrer. Mas é Jesus, aquele que
não tem pecado, que morre em nosso lugar ‘por nossos pecados’.
As boas-novas do evangelho são que Jesus morreu para tomar
sobre si a pena do nosso pecado”.53

Ele nos deu sua justiça


“A grande troca” que acontece entre Cristo e os cristãos na cruz
é tão vantajosa para nós quanto é desvantajosa para Cristo. Ele
recebeu nosso pecado, enquanto nós recebemos sua justiça. Sua
perda foi nosso ganho, seu sofrimento, nosso regozijo. “Sendo
rico, tornou-se pobre por vossa causa, para que fôsseis enrique-
cidos por sua pobreza” (2Co 8.9). Assim como nosso pecado foi
imputado a Cristo na cruz, assim a sua justiça foi imputada a
nós.54 Isso significa que Deus literalmente vê os cristãos como
possuindo toda a justiça de Cristo e, assim, enxerga neles toda
a reputação e todos os direitos de Cristo em suas vidas. Citando
Timothy George, Mark Devine certa vez me disse: “A realida-
de da justiça imputada significa que a nossa reputação diante de

52
Citado em Mark Driscoll, Death by love: letters from the cross (Wheaton:
Crossway, 2008), p. 119.
53
Ibid., p. 20.
54
2Coríntios 5.21.
Uma mensagem que resulta em salvação 163

Deus é como se possuíssemos a mesma reputação de Cristo; isso


permite ao Pai dizer a nosso respeito o que ele disse sobre o Filho:
‘Este é o meu filho amado em quem eu me agrado’”.55
Na morte de Cristo nós recebemos a propiciação (o paga-
mento da pena do nosso pecado) e a expiação (a purificação da
mácula desse pecado).56 Mas a mensagem do evangelho não para
por aí. A nossa ficha com Deus não só foi totalmente limpa, mas
foi estabelecida para nós uma posição positiva diante dele. Na
morte de Cristo somos revestidos com a própria justiça dele. Isso
significa que a nossa posição diante de Deus consiste em estar-
mos tão seguros e sermos tão amados quanto o seu próprio Filho.
Cristo se torna para nós “sabedoria, justiça, santificação e reden-
ção” (1Co 1.30). Jesus Cristo é o homem de quem Jeremias falou:
“O Senhor, nossa Justiça” ( Jr 23.6).
Essa justiça que recebemos de Cristo é perfeita porque é
uma justiça que vem de Deus. “Como Deus, ele efetuou a satis-
fação, ao mesmo tempo em que obedeceu e sofreu como homem;
e sendo Deus e homem em uma só pessoa, ele obteve uma jus-
tiça plena, perfeita e suficiente para todos aqueles a quem ela
seria imputada”.57

E a ressurreição?
Talvez você tenha percebido que, ao longo deste capítulo, tentei me
referir tanto à ressurreição quanto à morte de Cristo. Eu o fiz porque
não há como separar as duas coisas. Embora a morte de Cristo seja
central para a realização por parte de Deus da nossa salvação em
Cristo, ela não estaria completa sem a ressurreição. “Bendito seja o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos regenerou para

55
Meu antigo professor, hoje meu amigo, Mark Devine, fez essa observação
durante uma conversa que tivemos sobre o impacto da imputação.
56
Driscoll, Death by love, p. 137: “A propiciação está ligada à nossa pena pelo
pecado, enquanto a expiação está relacionada à nossa purificação do pecado”.
57
George Whitefield, citado em Jeffery, Ovey e Sach, Pierced for our
transgressions, p. 193.
164 A mensagem

uma viva esperança, segundo a sua grande misericórdia, pela ressurrei-


ção de Jesus Cristo entre os mortos”.58
A ressurreição é a prova de que a dívida do pecado foi paga e de
que a nossa salvação foi garantida. Jesus não é apenas um Salvador que
morreu pelo pecado; é um Rei que triunfou sobre o pecado. Ele não
é meramente um homem que experimentou a morte; é um Deus em
carne derrotando a morte. Jesus não é apenas um servo de Deus que
foi ferido por Satanás, mas o Senhor que destruiu o poder de Satanás
sobre a natureza humana. A ressurreição é a vindicação de todas as
reivindicações de Jesus e a salvação que é oferecida por ele. Ela com-
pleta a obra do nosso Senhor e mostra além de qualquer dúvida e
argumento que a salvação que ele oferece é real.
Recentemente realizamos na The Journey uma série de sermões
apologéticos intitulada “Duvidando de suas dúvidas”. Preguei um
sermão sobre a ressurreição de Cristo no qual expus as implicações
de Romanos 8.11 para as pessoas da nossa igreja que estavam lutan-
do com dúvidas. Nesse versículo, Paulo afirma que o mesmo Espírito
que ressuscitou Cristo dos mortos está operando na vida e nas lutas
dos cristãos, para nos fortalecer em nossa fragilidade e nos dar pro-
pósito em meio à nossa confusão. Mesmo os críticos mais hostis do
cristianismo confessam que, se a ressurreição de Jesus é real, ela é um
acontecimento de poder e significado inigualáveis, com implicações
que afetam profundamente todas as esferas da nossa vida. Há um
poder transformador de vida na ressurreição, e Paulo diz que o mes-
mo poder que ressuscitou Jesus dos mortos está disponível àqueles
que seguem a Jesus. Isso é parte da salvação que Deus oferece. Tudo
o que a morte de Cristo nos proveu é eficazmente aplicado à nossa
vida por meio do poder da ressurreição de Cristo.
A ressurreição certamente tem implicações para a renovação
deste mundo material, como veremos na próxima seção, mas o fato
de que Jesus retornou dos mortos é a prova definitiva de que a morte
de Cristo realizou a nossa salvação. Ela põe fim às nossas dúvidas e

58
1Pedro 1.3. Cf. também Atos 13.30; Romanos 4.25; 2Timóteo 2.8.
Uma mensagem que resulta em salvação 165

evasões e argumentos. Ninguém pode debater com uma pessoa que


voltou dos mortos. Se Jesus está vivo, ele vence o debate.

Sumário
O evangelho literalmente significa “boas-novas”. O evangelho con-
siste em boas novas porque Cristo realmente salva pecadores. A ira
de Deus para com o pecado não está mais apontada para aqueles que
creem em Jesus como Senhor. Em vez disso, Jesus Cristo realizou
tudo o que era exigido para a nossa salvação do pecado.
Os autores do Novo Testamento se referem à vida obediente,
morte sacrificial e expiatória e ressurreição poderosa de Jesus como
novas/notícias porque eles estão relatando eventos reais que ocor-
reram na história e que, tanto objetiva como subjetivamente, nos
libertam do domínio mortal do nosso pecado. Jesus nos liberta obje-
tivamente porque ele morreu em nosso lugar. Nas palavras de Paulo
em 2Coríntios 5.21, “Deus tornou pecado por nós aquele que não
tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus” (nvi).
Por causa da obra salvadora de Cristo, nós temos uma ficha limpa,
uma posição correta perante um Deus santo.
Jesus nos liberta subjetivamente do pecado ao revelar a nature-
za incompleta e inadequada das coisas a partir das quais formamos
nossa identidade à parte da nossa filiação em Cristo. Não precisamos
mais perseguir uma identidade, uma justiça; ela foi trazida a nós.
Estamos livres da culpa, da vergonha, da amargura e da decepção,
porque cremos que nossa identidade e destino repousam seguramen-
te na obra concluída de Jesus na cruz.
Num sentido real, então, quando falamos do evangelho nós fala-
mos de Jesus. A existência do evangelho depende completamente da
pessoa e da obra de Cristo. Sem Cristo não há nova alguma sobre uma
mudança na nossa posição e condição diante de Deus. Sem Cristo não
há nenhuma coisa boa da qual possamos falar, porque não há resgate
da escravidão do nosso pecado. Sem Cristo não há evangelho, porque
o evangelho não é apenas sobre Jesus. Jesus é o evangelho.
Pregue a Cristo, sempre e em toda parte. O evangelho todo consiste
nele. Sua pessoa, ofícios e obra devem ser o nosso grande tema,
o tema que abarca todos os temas. (Charles Spurgeon).1

Sem Cristo, a Bíblia é um livro fechado. Leia-a com ele no centro, e


eis a maior história já contada. (Michael Horton).2

No devido contexto, toda passagem apresenta um ou mais dos quatro


focos ligados à redenção. O texto pode prever a obra de Cristo,
preparar a obra de Cristo, refletir a obra de Cristo e/ou resultar
da obra de Cristo. (Bryan Chapell).3

1
Charles sPurgeon, citado em Sydney greidanus, Preaching Christ from the
Old Testament: a contemporary hermeneutical method (Grand Rapids: Eerdmans,
1999), p. 2.
2
Michael Horton, Christless Christianity: the alternative Gospel of the
American church, Grand Rapids, Baker, 2008, p. 142.
3
Bryan cHaPell, Christ-centered preaching: redeeming the expository sermon,
Grand Rapids, Baker, 2005, p. 282.
10

Uma mensagem
centrada em Cristo

A mensagem do evangelho está centrada na pessoa e na obra


de Jesus Cristo.4 No primeiro capítulo desta seção, vimos
como a mensagem do evangelho diz respeito ao que Deus rea-
lizou na história por meio de Cristo. No último capítulo, vimos
como Deus, no evangelho, de fato efetua a salvação por meio
de Cristo. Neste capítulo, consideraremos brevemente de que
maneira o evangelho está, de Gênesis a Apocalipse, arraigado
na promessa, pessoa e obra de Jesus Cristo. Cristo é o centro da
Bíblia, da história, da igreja e da vida cristã, e é nesses termos
que devemos proclamá-lo.

Cristo é o centro da Bíblia


A História centrada em Cristo
A história humana começou tão bem. O Deus trino, em perfeita
comunhão consigo mesmo desde a eternidade passada, decidiu

4
Tenho uma grande dívida para com Graeme Goldsworthy pelas informações
que são a base deste capítulo e recomendo fortemente o seu excelente livro Preaching
the whole Bible as Christian scripture: the application of Biblical theology to expository
preaching, Grand Rapids, Eerdmans, 2000.
168 A mensagem

em um conselho eterno criar os seres humanos, que compartilha-


riam sua imagem e semelhança. Esses seres humanos foram cria-
dos para conhecer a Deus e desfrutar de sua presença. Adão e Eva
usufruíam de perfeita comunhão com Deus e um com o outro.
Sabemos disso porque nem Adão nem Eva vestiam roupas. Essa é
a forma de a Bíblia dizer que eles não tinham nada a ocultar. Não
havia barreiras entre ambos, e não havia barreiras entre eles e seu
Deus. A ausência de roupa resultava da ausência de pecado. Em
outras palavras, as coisas iam muito bem.
Infelizmente, daí em diante foi só ladeira abaixo. A história
humana entrou em parafuso quando Adão e Eva decidiram ser
os seus próprios deuses, deixando de confiar no seu Pai, estabele-
cendo suas próprias regras e exercendo sua própria autoridade ao
comer da fruta que Deus havia proibido. Em vez de se regozijar
em Deus e usufruir de seu encorajamento para comer livremente,
nossos primeiros pais se concentraram na proibição de Deus e se
rebelaram, o que tem sido a prática da raça humana desde então.5
Deus confrontou Adão — que é o que Adão, como o cabeça de
sua família, deveria ter feito com a serpente —, perguntando-lhe,
essencialmente, por que havia separação em seus relacionamentos
tanto com sua mulher quanto com ele, o próprio Deus.6 Adão,
sendo um típico marido, prontamente acusou Eva pelo pecado,
muito embora ele tivesse assistido a tudo passivamente enquanto
sua esposa falava com Satanás e comia do fruto proibido.7 Eva,
então, seguiu covardemente o marido e culpou a serpente por
tentá-la.8 Deus, que sempre vê além da racionalização humana,

5
Adão e Eva, como os pais da igreja observaram, tinham a capacidade de não
pecar. Ninguém desde então teve esse privilégio, exceto Jesus, que o Novo Testa-
mento chama de “o segundo Adão”.
6
Gênesis 3.9: “Mas o Senhor Deus chamou o homem, perguntando:
Onde estás?”.
7
Gênesis 3.12: “Respondeu então o homem: A mulher que me deste deu-me
da árvore, e eu comi”.
8
Gênesis 3.13: “E o Senhor perguntou à mulher: Que foi que fizeste? E ela
respondeu: A serpente me enganou, e eu comi”.
Uma mensagem centrada em Cristo 169

rejeitou as desculpas de nossos primeiros pais pelo pecado e pro-


nunciou julgamentos sobre eles. Ele disse a Adão que seu trabalho
seria árduo, que o solo se rebelaria contra ele como ele se rebela-
ra contra Deus. A Eva ele disse que seus filhos lhe trariam dor,
exatamente como ela causara dor a Deus ao se afastar dele. Deus
também pronunciou uma maldição sobre a serpente, e é aqui que
vemos o Protoevangelho, a primeira pregação do evangelho, em
que Deus prometeu que um dos descendentes da mulher esmaga-
ria a cabeça da serpente.
Esse descendente era Cristo, que nasceu na história exata-
mente na hora certa.9 Jesus encarnou entre nós, isto é, tornou-se
um de nós.10 E ser homem não quer dizer que ele tenha renun-
ciado a ser Deus.11 Tornar-se humano não exigiu o abandono de
sua divindade. “Permanecendo o que era, Jesus se tornou o que
não era”.12 Em sua vida, Jesus, o segundo Adão, fez o que Adão
deveria ter feito. Ele viveu sua vida em perfeita submissão ao seu
Pai, desfrutando plenamente da presença dele, como todos nós
fomos criados para fazer. Ainda que Jesus, como um ser humano
limitado à terra, não tenha exercido todos os seus atributos divi-
nos, ele foi um exemplo daquilo que um ser humano deve fazer:
submeter-se holisticamente a Deus e ser plenamente controlado
pelo Espírito Santo.
Porque Jesus se tornou encarnado, ele era capaz de enten-
der a condição humana sem pecar.13 Como o Deus-homem, ele
é qualificado para ser o mediador entre nós e o Pai, o único que

9
Gálatas 4.4 observa que Deus enviou seu Filho quando veio “a plenitude
dos tempos”.
10
João 1.14: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, pleno de graça e
verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai”.
11
Filipenses 2.7 ensina que Cristo renunciou a seus direitos como Deus,
voluntariando-se livremente a não exercer todos os atributos divinos. Ele não dei-
xou, contudo, de ser Deus.
12
Os pais da igreja chamavam esse paradoxo de união hipostática — uma
pessoa, duas naturezas.
13
Hebreus 2.17; 4.15.
170 A mensagem

poderia remover, como de fato removeu, o nosso pecado.14 Como


mediador, Jesus ficou dependurado numa cruz e enfrentou a ira
do Pai para que o Pai nos pudesse receber. Ele suportou as trevas
da Sexta-Feira da Paixão para que pudéssemos caminhar à luz da
Páscoa. Ele morreu uma morte na qual carregou o nosso pecado
e absorveu a ira divina, uma morte brutal. Três dias depois Jesus
ressuscitou da sepultura, triunfando sobre o pecado, a morte e
Satanás. Esse acontecimento é o centro da história humana.

As Escrituras centradas em Cristo


Quando Cristo apareceu aos discípulos na estrada para Emaús,
ele abriu a mente deles para o verdadeiro propósito e natureza das
Escrituras, mostrando-lhes como todas elas estavam relacionadas a
ele próprio.15 Assim, segundo a interpretação de Cristo, todo o
Antigo Testamento está centrado na promessa de sua vida, morte e
ressurreição. No fim das contas, não compreenderemos as Escri-
turas a não ser que as leiamos através das lentes do Cristo encar-
nado, crucificado e ressurreto.16 Como afirma Anthony Thiselton:
“Os autores do Novo Testamento veem Cristo como uma chave
interpretativa para a interpretação e a compreensão do Antigo
Testamento, [e veem] o Antigo Testamento como um quadro de
referência para compreender Cristo”.17 Sidney Greidanus escreve:
“Cristo é a soma e a verdade nas Escrituras”.18
Outro texto que ensina como as Escrituras estão essencial-
mente centradas em Cristo é 1Coríntios 2.2. Aqui Paulo lembra

14
1Timóteo 2.5,6; 1João 3.5.
15
Lucas 24.13-35.
16
“Afirmamos que a Pessoa e a obra de Jesus Cristo são o foco central de
toda a Bíblia”, Artigo III, Declaração de Hermenêutica Bíblica de Chicago; http://
www.churchcouncil.org/ICCP_org/Documents_ICCP/English/02_Biblical_
Hermeneutics_A&D.pdf.
17
Anthony C. Thiselton, New horizons in hermeneutics: the theory and practice
of transforming Biblical reading, Grand Rapids, Zondervan, 1992, p. 150.
18
Greidanus, Preaching Christ from the Old Testament, p. 120.
Uma mensagem centrada em Cristo 171

aos coríntios que, quando estava com eles, resolveu não saber nada
a não ser Cristo, e este crucificado. Paulo não estava dizendo que
não fizera nada a não ser lhes apresentar o “plano da salvação”,
simplesmente enfatizando o caminho para ser salvo. O que ele
estava dizendo é que essa mensagem — a morte de Cristo pelo
nosso pecado — era o centro de tudo o que ele pregava. Paulo via
a obra de Cristo na cruz como o fundamento de todas as coisas
— tanto para a salvação quanto para a santificação; tanto para a
entrada na vida cristã quanto para o crescimento nela.19
Ao longo de suas cartas, Paulo constantemente associa seus
assuntos práticos a Cristo e sua obra de salvação. Por exemplo,
quando Paulo trata da questão das doações e da generosidade
com o dinheiro em 2Coríntios 8, ele recorre à obra de salvação
de Cristo como exemplo.20 Quando desafia os maridos a ama-
rem suas esposas em Efésios 5.25-33, ele imediatamente discute o
relacionamento de Cristo com a igreja. Do mesmo modo, quando
precisa confrontar os coríntios por sua idolatria ao conhecimento
e ao poder, Paulo aponta para Cristo, que é o poder e a sabedoria
de Deus.21 Assim, para o apóstolo, dinheiro, amor e poder — três
dos principais motivadores físicos, espirituais e emocionais do
coração humano — encontram todos sua expressão mais verda-
deira em Cristo. É só em Cristo que estão a riqueza, a intimidade
e o poder verdadeiros. Paulo responde às preocupações práticas de
igrejas repletas de pecadores imperfeitos e feridos conectando-os
de volta a Cristo.

19
Wayne Grudem define a santificação assim: “A santificação é uma obra pro-
gressiva de Deus e do homem que nos torna mais e mais livres do pecado e mais
semelhantes a Cristo na nossa vida”. Wayne Grudem, Systematic Theology, Grand
Rapids, Zondervan, 1994, p. 746. [Edição em português: Teologia Sistemática, São
Paulo: Vida Nova, 1999].
20
2Coríntios 8.9: “Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo,
que, sendo rico, tornou-se pobre por vossa causa para que fôsseis enriquecidos por
sua pobreza”.
21
1Coríntios 1.30: “Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual, da parte de
Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção”.
172 A mensagem

Centrado em Cristo = centrado no evangelho


A Bíblia não está centrada em Cristo pelo fato de tratar sobre Jesus
de uma maneira geral. Ela está centrada em Cristo porque o principal
propósito da Bíblia, do início ao fim, é apontar para a vida, morte
e ressurreição de Jesus para a salvação e santificação dos pecadores.
Jesus lia toda a Bíblia associando-a à sua vida, morte e ressurreição.
Essa é a verdade central, o fio condutor, o “E grande” do teste de
visão no oftalmologista, quando se trata de entender a Bíblia.
Às vezes o foco em sermos centrados em Cristo pode acabar
deteriorando, passando a consistir em vermos Cristo primaria-
mente como um exemplo a ser seguido para o aperfeiçoamento
moral. Essa não é apenas uma prática hermenêutica míope, defei-
tuosa e enganosa em relação ao pleno impacto de Cristo no mun-
do; na verdade é também uma visão muito perigosa. Aqueles que
veem Cristo primariamente como um exemplo moral deixam de
vê-lo como aquele que pode salvá-los de seu pecado. Vale a pena
observar que, na estrada para Emaús, Jesus delineou aos discípulos
o seu sofrimento conforme profetizado ao longo da Bíblia. Parece
que Jesus estava tentando ajudá-los (e nos ajudar também) a enten-
der que ele é, antes de tudo, um Salvador. Ele não estava tentando
levá-los a sofrer como ele sofreu; ele estava tentando fazê-los enten-
der que eles não poderiam sofrer como ele sofreu e que a incapaci-
dade fundamental deles de expiar o próprio pecado era o motivo
pelo qual Jesus devia sofrer. Jesus lhes disse: “Ó tolos [...] Acaso o
Cristo não tinha de sofrer essas coisas?”.22 O sofrimento dele era
necessário, Jesus estava dizendo, porque nem você nem eu pode-
mos prover a nossa própria salvação do pecado. Mais do que dizer
“Vou mostrar como vocês devem viver”, Jesus está dizendo “Vou
mostrar por que eu morri”. Greidanus escreve:

Antes de adotar Cristo como seu exemplo, você o reconhece e


aceita como dádiva de Deus a você; de modo que, quando você o

22
Lucas 24.25,26.
Uma mensagem centrada em Cristo 173

vê ou ouve em qualquer uma de suas obras ou sofrimentos, você


não duvida, mas crê que ele, o próprio Cristo, com essa sua obra
ou sofrimento, é no mais verdadeiro sentido posse sua, e dele você
pode depender com tal confiança como se você mesmo tivesse rea-
lizado a obra.23

Jesus é em primeiro lugar Salvador, e só então ele é nosso exem-


plo. Em termos práticos, isso significa que precisamos reconhecer
nossa necessidade de ser salvos de nosso pecado antes de podermos
seguir seu exemplo. Do mesmo modo, o segredo para seguir o seu
exemplo diariamente é lembrar todo dia que tão somente ele é o
nosso Salvador, que ele tomou nosso pecado e nos deu sua justiça.24
Isso contrasta diretamente com o que se prega na igreja contem-
porânea. É muito comum, na igreja atual, só ouvirmos exortações
no sentido de nos concentrarmos em seguir a Jesus de maneiras
práticas. Não surpreende, portanto, que grande parte da pregação
contemporânea basicamente consista numa tentativa de levar os
ouvintes a se perguntarem: “O que Deus está fazendo em mim?”.
O que estou tentando dizer, essencialmente, é que o poder para
responder ao que Deus está fazendo por mim no presente está em
entender o que Deus fez por mim no passado. É isso que a Bíblia
ensina. Graeme Goldsworthy o diz de forma sucinta: “Fica claro
no Novo Testamento que o exemplo ético de Cristo é secundário,
e dependente de sua obra única e principal por nós”.25 A essência
dessa obra de salvação não está nos ensinamentos éticos de Jesus,
mas em sua vida e morte obedientes, e em sua gloriosa ressurreição
e ascensão para estar à direita de Deus nas alturas.26
Na década de 1990, certas miudezas gospel vendidas à subcul-
tura cristã se tornaram populares. Os braceletes wwjd [“What
Would Jesus Do?”, “O Que Jesus Faria?”] explodiram na cena

23
Greidanus, Preaching Christ from the Old Testament, p. 119.
24
2Coríntios 5.21.
25
Goldsworthy, Preaching the whole Bible as Christian scripture, p. 4.
26
Ibid., p. 6.
174 A mensagem

da moda, com figuras como Justin Timberlake e Allen Iverson


ostentando esses populares acessórios de pulso. Costumo despre-
zar quase tudo que emerge da máquina de marketing da subcultu-
ra cristã,27 mas até que achei essa história de wwjd bacana.
Como pastor de jovens, o wwjd vinha bem a calhar na hora
de falar com os jovens sobre seu relacionamento com Cristo.
Ao levá-los a pensar no que Jesus realmente faria se estives-
se no lugar deles, essa tendência do wwjd levou meus alunos
e inúmeros outros jovens a pensar mais em Cristo. Para falar
a verdade, até cheguei a usar um desses braceletes (e não três,
como Iverson!), e achei que ele era um grande lembrete para
viver como Cristo tinha vivido.28 Contudo, o wwjd faz com que
nos concentremos em Jesus como um exemplo, mas não aponta
por que ele fez o que fez. Talvez também devesse ter havido um
bracelete com outra mensagem: em vez de “O Que Jesus Faria?”,
um bracelete que perguntasse “Qual Era a Motivação de Jesus?”.
Entender a motivação de Jesus nos leva a ter uma consciência
adequada do evangelho, uma consciência daquilo que realmente
nos capacita a fazer o que Jesus faria se estivesse em nosso lugar.
Qual era a motivação de Jesus? Em seu batismo, ele ouviu a voz
do Pai: “E uma voz do céu disse: Este é o meu Filho amado, de
quem me agrado” (Mt 3.17). Antes de levantar um dedo sequer
para tocar um corpo ferido, ou de proferir qualquer palavra para
transformar um espírito machucado, antes de realizar qualquer
ministério, Jesus sabia no fundo do seu ser que ele contava com
a aprovação do seu Pai. Sua motivação para sua vida e ministé-
rio era a gratidão que ele tinha, gratidão pela aprovação do Pai
independentemente do seu desempenho.
A maioria das pessoas pensa que cristianismo é sinônimo
de fazer: elas olham para a Bíblia ou para a vida de Cristo e
basicamente se esforçam bastante para viver como Jesus. Mas o

27
Por exemplo, os adesivos de carro que trazem o dizer “Deus é meu copiloto”.
28
1João 2.6 nos lembra de que amar a Deus é viver como Jesus viveu.
Uma mensagem centrada em Cristo 175

cristianismo na verdade é sinônimo de feito: aquilo que Cristo já


fez é o que permite que vivamos uma vida de obediência.29
Nosso problema é que confundimos o modo indicativo
(aquilo que é real) com o imperativo (aquilo que se deve fazer).
Como Bryan Chapell costuma dizer: “Colocamos o ‘faz’ antes
do ‘quem’”.30 A verdade sobre nós em Cristo está no indicativo.
Somos amados e aceitos em virtude do que Cristo fez por nós.
O imperativo é aquilo que fazemos em obediência por amor a
Cristo. O segredo da vida cristã é viver a partir dessa realidade de
quem somos para podermos fazer aquilo que Deus revelou nas
Escrituras.31

Uma pregação centrada em Cristo


Essa atitude de nos lembrarmos constantemente da identidade
que temos no evangelho é o segredo para pregar o verdadeiro
evangelho da graça e evitar falsificações de pregação do evange-
lho. Greidanus escreve: “Podemos definir ‘pregar a Cristo’ como
pregar sermões que automaticamente associem a mensagem do
texto que está sendo pregado ao clímax da revelação de Deus
na pessoa, obra e/ou ensino de Jesus como revelados no Novo
Testamento”.32 Sem esse foco e esquema, o pregador é deixado
com uma Bíblia fragmentada e sermões que não se baseiam em
nada além de suas próprias ideias e preferências.33

29
Ouvi essa distinção fazer/feito em uma palestra de Bill Hybels anos atrás.
30
Ouvi o dr. Chapell usar essa frase em numerosas preleções e conversas. Não
a encontrei em seus escritos.
31
Como Richard Lovelace escreveu: “Poucos sabem o suficiente para começar
o dia baseando-se totalmente na plataforma de Lutero: você é aceito, olhando para
fora de si pela fé e reivindicando a justiça totalmente exterior de Cristo como o
único fundamento da sua aceitação, repousando naquela qualidade de confiança que
haverá de produzir uma santificação crescente na medida em que a fé for ativa em
amor e gratidão”. Dynamics of spiritual life: an evangelical theology of renewal (Downers
Grove: InterVarsity, 1979), p. 101.
32
Greidanus, Preaching Christ from the Old Testament, p. 10.
33
Goldsworthy, Preaching the whole Bible as Christian scripture, p. 99.
176 A mensagem

Para esclarecer melhor esse ponto, vejamos algumas alter-


nativas populares à pregação centrada em Cristo: o moralismo, o
relativismo, a autoajuda e o ativismo.34

O moralismo
O moralismo pode ser definido como a tentativa de apaziguar a
ira de Deus contra o nosso pecado com nossas boas obras. Ele é
um inimigo do evangelho porque afirma, na melhor das hipó-
teses, que Salvação = Jesus + Meus esforços morais. Na pior das
hipóteses, ignora completamente a obra expiatória de Jesus. No
moralismo, entregamos nossa ficha moral a Deus e exigimos que
ele nos abençoe em virtude da nossa sujeição à sua lei. A pregação
moralista, portanto, tende a pôr a ira e a santidade de Deus acima
do seu amor e da sua graça.35
A pregação moralista impõe uma pressão sobre a vontade da
pessoa para que ela se sujeite à lei de Deus. Esse tipo de pregação
produz pessoas hiper-rígidas e excessivamente críticas. Richard
Lovelace escreve:

Os cristãos que não têm mais certeza de que Deus os ama e acei-
ta em Jesus, independentemente de suas realizações espirituais,
são, sem que o saibam, pessoas radicalmente inseguras — muito
mais inseguras que os não cristãos, porque têm luz demais para
poder descansar sob os constantes anúncios que recebem, no seu
ambiente cristão, da santidade de Deus e da retidão que os cristãos
devem ter. Sua insegurança se manifesta no orgulho, em asserções
veementes em defesa de sua própria justiça e em críticas defensi-
vas direcionadas aos outros. Eles naturalmente acabam odiando
outros estilos culturais e outras raças para fortalecer seu próprio

34
Estou ciente de que há muitas outras falsificações que eu poderia abordar
aqui. Estou me concentrando naquelas que considero as maiores tentações para os
pastores jovens.
35
Isso é verdade, mas sob outro aspecto o moralismo e o legalismo enfraque-
cem a lei de Deus, reduzindo-a ao nosso próprio nível de obediência.
Uma mensagem centrada em Cristo 177

senso de segurança e descarregar sua raiva reprimida. Eles se ape-


gam desesperadamente a uma justiça legalista e farisaica, mas a
inveja, os ciúmes e outros ramos da árvore do pecado são nutridos
pela sua insegurança fundamental.36

A pregação centrada em Cristo não descarta a santidade de


Deus. Ela honra essa santidade mais do que a pregação moralista,
porque a pregação centrada em Cristo afirma que não podemos
ser santos o suficiente — apenas Cristo o foi. Ela afirma que só
somos santos na prática quando entendemos e vivemos na rea-
lidade da nossa santidade posicional em Cristo.37 Ela nos leva a
meditar na livre graça de Deus em Cristo e a ter prazer nela, e isso
nos motiva a viver uma vida de santidade prática.

O relativismo
Embora o relativismo seja considerado o oposto do moralismo,
eles na verdade são dois lados da mesma moeda falsa. Enquanto o
moralismo ensina que Deus é fundamentalmente um juiz severo,
e que devemos nos aproximar dele com nossos melhores esforços
pessoais, o relativismo ensina que a verdade é determinada por
nós mesmos, e que devemos nos aproximar de Deus (se de fato
ele existe) com aquilo que nos parecer melhor. No relativismo,
nós criamos nosso próprio Deus e obedecemos à nossa própria
lei. A pregação relativista, dessa forma, eleva o amor e a graça
de Deus acima de sua ira e santidade. Esse tipo de pregação tem
um apelo emocional, encorajando as pessoas a seguir o seu pró-
prio coração. A pregação relativista produz pessoas sentimentais
e pusilânimes. Um pastor pós-moderno com quem conversei me
disse que seu principal objetivo na pregação não era declarar a
verdade da Bíblia, mas dialogar com sua comunidade para que
seus ouvintes pudessem evoluir para o verdadeiro caminho de

36
Lovelace, Dynamics of spiritual life, p. 212.
37
Ver Efésios 2.6; Colossenses 3.1-3; 2Coríntios 5.17.
178 A mensagem

Jesus. Curiosamente, esse pastor estava certo de que a verdade


nem sequer podia ser conhecida.
A pregação centrada em Cristo não minimiza o amor e a
graça de Deus; ela os engrandece, porque afirma que o amor e a
graça Deus custaram a Jesus a vida dele. Ela faz com que deixe-
mos a nossa “lei” subjetiva, motivando-nos a obedecer à lei reve-
lada de Deus por amor a Cristo, que lhe obedeceu perfeitamente.

A autoajuda
A autoajuda é atraente para a vontade das pessoas, porque as desa-
fia a aplicar os princípios bíblicos sem necessariamente desafiá-las
a aplicar o evangelho ao próprio coração. Na autoajuda, Cristo
como exemplo é elevado acima de Cristo como Salvador. A pre-
gação de autoajuda, portanto, concentra-se no exemplo de Cristo
e se esquece do fato de que ele é Salvador. Esse tipo de pregação
não leva a sério o verdadeiro grau de disseminação do pecado,
porque presume que as pessoas querem e podem obedecer, e só
precisam que lhes seja dito como fazê-lo.38 Esse tipo de pregação
não é bíblico, porque desconsidera totalmente a realidade de que
o ser humano tende naturalmente a resistir à obediência a Deus.39
A pregação de autoajuda costuma apresentar os personagens
bíblicos de um ângulo “pessoas como nós”. Nós somos Davi, nos-
sos problemas são Golias e assim por diante. Traça-se uma linha
reta entre a vitória ou o conflito do personagem e a nossa vida,
sem que nada disso seja conectado à pessoa e obra de Cristo.40

38
Isso é o contrário do que Romanos 1.18 diz sobre os seres humanos, que
“impedem a verdade pela sua injustiça”.
39
Cf. Romanos 1.18.
40
Goldsworthy lamenta: “Os textos são tirados do contexto; e as aplicações são
feitas sem a devida preocupação com o que o autor bíblico, que em última análise é o
Espírito Santo, está tentando comunicar por meio do texto. A pregação centrada em
problemas e temas se torna a norma, e a análise dos personagens trata os heróis e as
heroínas da Bíblia como exemplos isolados de como viver”. Goldsworthy, Preaching
the whole Bible as Christian scripture, p. 16.
Uma mensagem centrada em Cristo 179

Esse tipo de pregação, portanto, produz pessoas consumistas


e superficiais, porque não as leva a ter um encontro com Deus
face a face. Como Edmund Clowney observa: “A pregação que
[...] vez após vez iguala Abraão a nós, os conflitos de Moisés aos
nossos, a negação de Pedro à nossa infidelidade, que só procede
de maneira ilustrativa, não traz a palavra de Deus e não permite
que a igreja veja a glória da obra de Deus; ela só prega o homem,
o homem pecador, buscado, redimido, piedoso, mas não prega a
Jesus Cristo”.41 Quando tentamos ser relevantes, podemos acabar
nos tornando irrelevantes: “Podemos, muitas vezes, perder de vista
a complexidade das inter-relações entre os temas e as doutrinas da
Bíblia quando permitimos, na esperança de sermos considerados
pastores relevantes, que nossa pregação se concentre em situações
e problemas práticos”.42
A pregação centrada em Cristo recusa-se a fazer aplicações
apressadas sem dar aos ouvintes uma base na realidade do evange-
lho: somos completamente pecaminosos, mas plenamente aceitos
em Cristo. Ela nos mostra que não podemos nos ajudar a nós
mesmos, porque estamos cheios de pecado. Ela nos mostra que,
em se tratando das nossas próprias forças, não há nada que pos-
samos fazer. Mas ela também nos dá esperança, porque a obra de
Cristo e o poder do seu Espírito estão operando em nossa vida.43
A pregação centrada em Cristo vai muito além das meras suges-
tões sobre como devemos viver; ela nos aponta a própria fonte
de vida e de sabedoria, e explica como e por que temos acesso a
ele, Cristo. As necessidades das pessoas são situadas no contexto
do evangelho; desse modo, a mensagem cristã não é reduzida a
fazer com que nos sintamos melhor a nosso próprio respeito.44

41
Citado em ibid., p. 3.
42
Ibid., p. 73.
43
Gálatas 2.19,20: “Já estou crucificado com Cristo. Portanto, não sou eu
quem vive, mas é Cristo quem vive em mim. E essa vida que vivo agora no corpo,
vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”.
44
É importante pregar o texto como ele está escrito, isto é, considerar o seu
gênero (profecia, narrativa, salmo, epístola etc.) como um guia para a pregação.
180 A mensagem

Assim, a pregação centrada em Cristo impede que imponhamos


o nosso sermão ao texto e permite que simplesmente exponhamos
o sentido da passagem, deixando que Cristo fale a partir dela.
John Stott observa: “Quer [o texto] seja longo ou breve, nossa
responsabilidade como expositores é esclarecê-lo de tal modo que
ele transmita a sua mensagem de maneira clara, simples, fiel e
relevante, sem acréscimo, subtração ou falsificação”.45

O ativismo
O sermão que estimula ao ativismo é outra forma de sermão falso.
Trata-se da antiga mensagem do “evangelho social” do liberalis-
mo protestante, hoje em dia reavivada em muitas igrejas urbanas
que estão sendo forçadas a lidar com os problemas da pobreza e
da injustiça. O ativismo se concentra na renovação corporativa
de Cristo à custa da obra de salvação pessoal de Cristo, enfati-
zando a obra corporativa do reino de Deus, mas concentrando-se
muito pouco na obra pessoal do Rei. A pregação ativista pro-
duz pessoas comprometidas com causas, mas cuja vida não está
centrada em Cristo. No final das contas, essa abordagem mina
a capacidade da igreja de realizar uma transformação social ver-
dadeira, porque a verdadeira transformação social começa com
um coração transformado. Ajudar os necessitados, por exemplo,
é muito importante,46 mas não deve ser separado de Jesus Cristo
e da mensagem de salvação pessoal conectada a sua vida, morte e
ressurreição. Devemos trabalhar pelo bem das nossas cidades, ser-
vir os necessitados e combater a injustiça e a opressão, fazendo-o
como um sinal do reino vindouro e de que nós conhecemos o
Rei. Mas a pregação centrada em Cristo não renuncia à natureza
pessoal do evangelho para simplesmente se concentrar nos seus
aspectos corporativos. Em vez disso, ela fornece a base e o contexto

45
John Stott, Preaching between two worlds: the challenge of preaching today,
Grand Rapids, Eerdmans, 1994, p. 126. [Edição em português: Eu creio na pregação,
trad. Gordon Chown, São Paulo: Vida, 2003].
46
Ver Tiago 1.27; 1João 3.17.
Uma mensagem centrada em Cristo 181

mais amplo para uma compaixão evangelicamente motivada pelos


pobres e oprimidos.47

Uma visão geral


Todas essas formas falsas de sermão têm seus atrativos. O mora-
lismo e a autoajuda são atraentes para a nossa vontade, o relati-
vismo, para o nosso coração, e o ativismo, para as nossas mãos.
Mas no final das contas, só a pregação centrada em Cristo pode
motivar as pessoas a amar a Cristo, ao seu povo e ao seu reino de
uma forma holística (mente, coração e mãos).
O segredo da pregação do evangelho também é o segredo
para uma verdadeira vida baseada no evangelho. Para que o evan-
gelho seja central no púlpito, ele precisa estar no centro do cora-
ção do pregador. O poder do evangelho aparece quando ele está
no centro. Se você se contenta com o moralismo ou a autoajuda,
pode até ajudar as pessoas a reformar o seu comportamento, mas
isso só produzirá a justiça própria (“Eu sou melhor que aquela
pessoa!”) e a insegurança total perante Deus (“Estou sendo fiel
o suficiente?”). Essa pregação produzirá mudanças externas, mas
não trará transformação interna. A pregação liberal e relativista ele-
vará a autoestima das pessoas, mas não as desafiará a morrer para si
mesmas a fim de que possam viver verdadeiramente. Semelhante-
mente, a pregação ativista pode melhorar o tecido cultural e social
de sua cidade, mas as pessoas permanecerão não regeneradas, e
portanto destinadas à eternidade sem Cristo.
Muitas pessoas não se dão conta disso, mas Jesus tinha
uma Bíblia. A Bíblia de Jesus era o que chamamos de Antigo
Testamento. E Jesus lia sua Bíblia de uma perspectiva cen-
trada no evangelho. De acordo com Lucas 24.45,46 (entre
outras passagens), Jesus disse que o Antigo Testamento inteiro, se

47
Na minha igreja, a The Journey, nós começamos um ministério de justi-
ça social para nossa cidade chamado Mission St. Louis. Você pode conferi-lo em
http://missionstl.org.
182 A mensagem

entendido corretamente, é sobre ele. E como sabemos que ambos


os Testamentos foram inspirados pelo sopro divino, podemos dizer
com segurança que a Bíblia toda trata de Jesus, de sua vida, morte
e ressurreição.48 Por meio de sua vida de perfeita obediência, de sua
morte brutal e de sua poderosa ressurreição, Jesus é o herói de toda
a Bíblia. Nós não somos o tema principal da Bíblia; Jesus é. O evan-
gelho é um anúncio do que Deus fez por nós em Cristo.

O evangelho está dizendo que aquilo que o homem não pode


fazer para ser aceitável a Deus, isso o próprio Deus fez por nós na
pessoa de Jesus Cristo. Para sermos aceitáveis a Deus, precisamos
apresentar a ele uma vida de obediência perfeita e ininterrupta à
sua vontade. O evangelho declara que Jesus fez isso por nós. Para
que Deus seja justo, ele precisa lidar com o nosso pecado. Isso ele
também fez por nós em Jesus. A lei santa de Deus foi plenamente
vivida por nós por Cristo, e Cristo pagou a pena dela em nosso
lugar. Esse viver e morrer de Cristo por nós, e isso apenas, é a base
da nossa aceitação por Deus.49

Concluiremos este capítulo com uma longa citação de


Tim Keller, que aborda como nós precisamos, mesmo no Antigo
Testamento, ler a Bíblia e pensar sobre Cristo:

Jesus é o verdadeiro e superior Adão, que passou no teste no jar-


dim e cuja obediência nos é imputada.
Jesus é o verdadeiro e superior Abel, que, embora tenha sido
morto inocentemente, tem o sangue que agora clama, não pela
nossa condenação, mas pela nossa absolvição.
Jesus é o verdadeiro e superior Abraão, que respondeu ao
chamado de Deus para deixar tudo o que era confortável e familiar
e partir rumo ao desconhecido, não sabendo aonde ia, para criar
um novo povo de Deus.
Jesus é o verdadeiro e superior Isaque, que não só foi ofertado
pelo seu pai no monte, mas que foi verdadeiramente sacrificado por

2Timóteo 3.16.
48

Graeme Goldsworthy, Gospel and kingdom, Carlisle, Paternoster, 1994, p. 86.


49
Uma mensagem centrada em Cristo 183

nós. Deus disse a Abraão: “Agora sei que você me ama, porque não
negou seu filho, seu único filho, que você ama, a mim”; nós, agora,
podemos olhar para Deus enquanto ele leva seu filho ao topo do
monte, ali o sacrificando, e dizer: “Agora sabemos que tu nos amas,
porque não negaste teu Filho, teu único Filho, que tu amas, a nós”.
Jesus é o verdadeiro e superior Jacó, que lutou e levou o golpe
da justiça que nós merecíamos, para que, como Jacó, apenas rece-
bêssemos as feridas da graça para nos despertar e nos disciplinar.
Jesus é o verdadeiro e superior José, que, à direita do rei, per-
doa aqueles que o traíram e venderam e usa seu novo poder para
salvá-los.
Jesus é o verdadeiro e superior Moisés, que ocupa a brecha
entre o povo e o Senhor e que medeia uma nova aliança.
Jesus é a verdadeira e superior Rocha de Moisés, que, golpea-
da com o cajado da justiça de Deus, agora nos dá água no deserto.
Jesus é o verdadeiro e superior Jó, o verdadeiro sofredor ino-
cente, que então intercede por nós e salva seus amigos tolos.
Jesus é o verdadeiro e superior Davi, cuja vitória se torna a
vitória de seu povo, embora não tenham jamais levantado uma
pedra sequer para conquistá-la.
Jesus é a verdadeira e superior Ester, que não apenas se arris-
cou a deixar um palácio terreno, mas perdeu o palácio supremo e
celestial; que não apenas arriscou sua vida, mas deu sua vida para
salvar seu povo.
Jesus é o verdadeiro e superior Jonas, que foi lançado à tem-
pestade para que pudéssemos ser salvos dela.
Jesus é a verdadeira Rocha de Moisés, o verdadeiro Cordeiro
da Páscoa, inocente, perfeito, desamparado, que foi morto para
que o anjo da morte passasse pela nossa porta sem nos atingir.
Ele é o verdadeiro templo, o verdadeiro profeta, o verdadeiro
sacerdote, o verdadeiro rei, o verdadeiro sacrifício, o verdadeiro
cordeiro, a verdadeira luz, o verdadeiro pão.
O tema principal da Bíblia realmente não é você — é ele.50

50
A citação é de uma palestra que Tim Keller deu na Resurgence Conference
de 2006.
Quando incapazes de pregar a Cristo, e ele crucificado, pregamos a
humanidade, e ela aperfeiçoada. (Will Willimon).1

O clérigo que minimiza o pecado não tem como preservar seu devido
papel em nossa cultura. (Karl Menninger).2

A cruz [...] significa, como nada mais o poderia significar, a terrível


seriedade do nosso pecado, e portanto a profundidade e a natureza da
penitência que se exige de nós, e que só pode ser gerada em
nós se nos lembrarmos da cruz e nos apropriarmos de seu
significado. ( John Knox).3

Em certa ocasião, tomei chá com Martyn Lloyd-Jones em Ealing,


Londres, e decidi lhe fazer uma pergunta sobre uma questão pessoal.
“Dr. Lloyd-Jones”, eu disse, “como posso saber se estou pregando na
energia da carne ou no poder do Espírito?”. “Isso é muito fácil”,
Lloyd-Jones respondeu, enquanto eu me encolhia, temeroso. “Se
estiver pregando na energia da carne, você se sentirá exaltado e
entusiasmado. Se estiver pregando no poder do Espírito, você sentirá
reverência e humildade”. (Edmund Clowney).4

1
Citado em Sidney greidanus, Preaching Christ from the Old Testament
(Grand Rapids: Eerdmans, 1999), p. 34.
2
Citado em John stott, The cross of Christ, p. 91. [N. do E.: Várias citações
de Stott, A cruz de Cristo, deste capítulo são traduzidas diretamente do original para
expressar melhor o sentido pretendido pelo autor].
3
Citado em greidanus, Preaching Christ from the Old Testament, p. 5.
4
Edmund clowney, Preaching Christ in all of Scripture, Wheaton, Crossway,
2003, p. 55.
11

Uma mensagem que


expõe o pecado

U m dos aspectos da fé cristã que me fazia sentir atração e


repulsa ao mesmo tempo era a doutrina do pecado. Quando
comecei a estudar as Escrituras, percebi que um dos elementos
principais da mensagem cristã era a demonstração, detalhada
e vívida, da feiura do pecado e das maneiras como ele destrói
os seres humanos feitos à imagem de Deus. Eu era um jovem
rebelde e cheguei à conclusão de que, se o cristianismo era ver-
dadeiro, isso queria dizer que Deus, por causa do meu pecado
contra ele, tinha um grande problema comigo. E se Deus tinha
um grande problema, eu também tinha um grande problema: a
ira de Deus.

O que é a ira?
No primeiro capítulo de sua carta à igreja romana, Paulo entra em
detalhes específicos sobre a origem do pecado e a atitude de Deus
em relação a ele. Ele descreve a reação de Deus à injustiça, à des-
crença e ao pecado humanos como ira. Paulo diz em Romanos 1
que, quando Deus dá aos seres humanos o que eles querem — a
liberdade para se entregar às concupiscências e desejos que no
186 A mensagem

fim acabam os destruindo — ele está executando sua ira.5 Mas a


ira não se resume às consequências passivas do nosso pecado;6 ela
também se refere ao julgamento ativo de Deus. A ira de Deus é “o
seu antagonismo contínuo, incessante, incansável e intransigente
para com o mal em todas as suas formas e manifestações”.7 Deus
sente ira pelo pecado e rebelião humanos porque ele é absoluta-
mente santo, e sua santidade o constrange a rechaçar e se opor a
todo o mal. A Bíblia ensina que todo aquele que não recebeu a
misericórdia de Deus é objeto da sua ira.8
A ira não deve ser comparada a alguma história de justiça
poética ou de vingança como as que se veem em filmes televi-
sivos medíocres. A ira também não consiste em alguma espécie
de acesso de raiva vingativa que ocasionalmente tomaria conta de
Deus. Stott explica: “Não há nenhuma animosidade ou sentimen-
to de vingança pessoal em Deus; na verdade, há nele um amor
pelo transgressor [...] A santidade de Deus expõe o pecado, e a sua
ira se opõe a ele”.9 A ira existe porque o mal e o pecado existem.
Foi o pecado que separou a criação do Criador, e foi o pecado que
tornou necessária e acabou por causar a morte de Cristo. O pecado
é uma questão séria para Deus, e é por isso que a disposição divina

5
Cf. especialmente Romanos 1.24-32.
6
Alguns argumentariam que muitas vezes se usa o termo “ira” de maneira
impessoal, isto é, separadamente de Deus. Stott, em A Cruz de Cristo, p. 94,95, traz
algumas reflexões úteis nesse sentido: “É certo que às vezes a palavra é usada sem
referência explícita a Deus, e com ou sem o artigo definido, mas a frase [sic] comple-
ta ‘a ira de Deus’ também é usada, aparentemente sem embaraço algum, tanto por
Paulo como por João […] Talvez o motivo de Paulo ter adotado expressões impessoais
não seja a fim de afirmar que Deus jamais se enraivece, mas enfatizar que sua ira
não possui nenhum matiz de malícia pessoal […] E assim como charis representa
a atividade pessoal graciosa do próprio Deus, da mesma forma orge representa sua
hostilidade à impiedade, igualmente pessoal”.
7
Stott, The cross of Christ, p. 173.
8
“Quem crê no Filho tem a vida eterna; quem, porém, mantém-se em desobe-
diência ao Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” ( Jo 3.36).
9
Stott, The cross of Christ, p. 106.
Uma mensagem que expõe o pecado 187

em relação ao pecado é de ira.10 Como Jack Miller afirma: “A


existência total do homem é inglória. Como imagem de Deus,
ele foi criado para refletir de forma fiel o esplendor de Deus. Mas
agora ele vive tão somente para o louvor e a honra de si próprio e
das criações idólatras da sua mente e das suas mãos. Ninguém está
excluído dessa condenação”.11

O que é o pecado?
Há um sem-fim de razões para a enorme impopularidade da
mensagem do evangelho. A principal delas é a dolorosa realidade
de que as Escrituras vez após vez definem o que é bom e o que é
mau, como um árbitro apitando pontos e faltas numa partida de
esporte. Os autores de Provérbios, por exemplo, frequentemente
se referem às pessoas que incorrem em certos pecados específi-
cos com adjetivos que não primam pelo “politicamente correto”:
“prostituta”, “preguiçoso”, “insensato” e por aí vai.12 A Bíblia está
cheia de exemplos de coisas que estão ou dentro ou fora dos limi-
tes em várias áreas da vida humana; sexualidade, dinheiro e poder
são algumas delas. Embora fique claro ao longo de toda a Palavra
de Deus que o Senhor ama seu povo intensamente, esse mesmo
amor intenso não permite que ele ignore nosso pecado.
Mas isso tudo nos leva à pergunta: o que exatamente é o peca-
do? Não é preciso ser graduado pela Universidade de Harvard para
perceber que algo está terrivelmente errado no nosso mundo.
Para tentar explicar essa situação, numerosos culpados já foram

10
Muitos hoje têm dificuldade em entender como Deus pode ser comple-
tamente bom e ao mesmo tempo sentir ira em relação ao mal. A bondade e a ira,
contudo, não são incompatíveis. Quando os pais sentem ira ao descobrirem que seu
filho foi maltratado, eles não o fazem apesar de serem boas pessoas, mas justamente
porque o são. É por causa de sua bondade que eles sentem repulsa pelo mal que foi
cometido contra seu filho. Da mesma maneira, Deus sente ira justamente porque ele
é completamente santo, justo e bom. Se ele não sentisse ira, não seria Deus.
11
C. John Miller, Repentance and the 20th century man, Ft. Washington,
Christian Literature Crusade, 1998, p. 73.
12
Por exemplo, cf. Provérbios 6.6-9; 6.26; 19.24; 10.10; 12.16 etc.
188 A mensagem

sugeridos — o enfraquecimento da família, a ausência de educa-


ção, as guerras, a má liderança governamental são alguns exem-
plos. Os problemas sistêmicos nessas áreas contribuem para a
miríade de aspectos nos quais nosso mundo está desordenado.
Mas qual é, afinal, a raiz dos nossos problemas aqui no terceiro
planeta do Sistema Solar? Simples: é o pecado.
O Novo Testamento tem um termo que descreve a natureza
do pecado no indivíduo: a carne. “A carne” não se refere mera-
mente ao nosso corpo físico; trata-se, antes, daquela parte de nós
que ainda não se submeteu à lei de Deus.13 O Novo Testamento
também tem um termo para a natureza corporativa do pecado: o
mundo. O versículo 16 de 1João 2 talvez contenha a melhor des-
crição do mundo: “Porque tudo o que há no mundo, o desejo da
carne, o desejo dos olhos e o orgulho dos bens, não vem do Pai,
mas sim do mundo”. O mundo é o produto de numerosos indiví-
duos vivendo na carne e não se submetendo a Deus. Na “carne” e
no “mundo” nós vemos o impacto e o resultado do pecado. Sabe-
mos, portanto, que o pecado é individual (privado) e corporativo
(público), mas ainda precisamos definir o que exatamente signifi-
ca pecar contra Deus.

O pecado consiste em viver independentemente de Deus


Muito já se especulou sobre o que exatamente levou Adão e Eva
a deixarem a perfeição pela imperfeição, a passarem de amigos de
Deus a seus inimigos. Em geral, concorda-se que a manifestação
da rebeldia deles ocorreu no ato desobediente de comer do fru-
to proibido, mas há divergências quanto à verdadeira motivação
subjacente desse ato. Uma forma de ver o gesto de Adão e Eva é
considerar o seu desejo por independência. Sua escolha de comer
do fruto e desobedecer a Deus foi precedida pela escolha de
viver independentemente de Deus. Desde então, esse tem sido o

13
Cf. Romanos 8.7: “A mentalidade da carne é inimiga de Deus, pois não está
sujeita à lei de Deus, nem pode estar”.
Uma mensagem que expõe o pecado 189

nosso problema fundamental como seres humanos — nosso dese-


jo e tentativa de viver independentemente de Deus. Como Stott
afirma: “Rejeitamos a posição de dependência que nossa condi-
ção de criaturas inevitavelmente envolve, e decidimos apostar
na independência”.14 Num sentido real, todo ser humano disse:
“Deus, obrigado por me criar e por me dar mandamentos para
que eu possa me deleitar em ti e na vida, mas deixa pra lá. Vou
assumir o controle agora. Estabelecerei os meus próprios padrões,
obedecerei às minhas próprias regras e serei o meu próprio deus”.
Na essência do pecado está o sentimento de que os mandamentos
de Deus são um fardo contra o qual devemos nos rebelar, em vez
de uma bênção a ser obedecida.15
Outra palavra que podemos usar para falar sobre esse desejo
de viver independentemente de Deus é orgulho. Vemos a origem
do orgulho no jardim do Éden. Adão e Eva consideraram Deus e
sua palavra insuficientes. Escolheram, em vez disso, ouvir a serpen-
te, confiando em seus próprios instintos e desejos para definirem o
bem e o mal e para serem os árbitros finais da verdade. O orgulho
equivale à autossuficiência: a constante recusa em reconhecer e se
submeter a Deus.16
Quando Adão e Eva pecaram, eles perderam sua inocência, o
que se demonstra pelo fato de que imediatamente se cobriram com
folhas de figueira. Em vez de irem a Deus para se arrependerem
de seu pecado e buscarem o perdão e a ajuda divinas, eles tentaram
cobrir o seu pecado e expiá-lo com seus próprios esforços: com rou-
pas íntimas feitas de folha de figueira. Eles fugiram de Deus com a
expectativa de poderem salvar a si mesmos de seu pecado. Isso é a

14
Stott, The cross of Christ, p. 90.
15
A ideia de que os mandamentos de Deus são um fardo e difíceis demais é,
obviamente, uma mentira. 1João 5.3 diz: “Porque o amor de Deus está nisto: em guar-
darmos os seus mandamentos, e seus mandamentos não são um peso”. Tiago 1.25
promete que aquele que pratica a palavra de Deus “será abençoado”. Não há forma
mais satisfatória e feliz de viver do que seguir os mandamentos de Deus (Sl 1.1,2).
16
O salmista descreve a pessoa autossuficiente: “Por causa do seu orgulho, o
ímpio não o busca. Deus não está em nenhum de seus planos” (Sl 10.4).
190 A mensagem

justiça própria: a busca e a presunção de justiça à parte de Deus.


O orgulho frequentemente se expressa na justiça própria.17

O pecado é uma forma de autoproteção


As folhas de figueira não só ajudaram Adão e Eva a se esconder
de Deus, mas também a se esconder um do outro. As folhas de
figueira formaram uma barreira que não devia haver ali. Eles se
cobriram para não precisarem admitir o pecado, mas esse ato
também os separou um do outro. O pecado é uma autoprote-
ção. A autoproteção é a consequência do pecado na comunida-
de humana. Em vez de compartilharmos livremente tudo o que
somos — nossos desejos, feridas e preocupações —, nós nos guar-
damos porque tememos a rejeição, o julgamento e/ou a incom-
preensão. Isso é pecado, porque viola a intenção de Deus para a
comunidade humana autêntica, exprimida na ordem no Novo Tes-
tamento, de permitir que os outros carreguem os nossos fardos.18
Quando Deus confrontou Adão sobre seu pecado, ele culpou
a sua esposa por tê-lo tentado e culpou o seu Deus por, em pri-
meiro lugar, ter colocado Eva em sua vida.19 Isso é interessante,
porque Adão acabara de compor a primeira canção de amor da
história humana, celebrando Eva e agradecendo a Deus por sua
dádiva extraordinária de uma esposa.20 Eva, quando confrontada
quanto ao seu pecado, culpou Satanás.21 Desde o princípio, vemos
que o pecado é algo que nos engana; algo que faz com que veja-
mos a nós mesmos como vítimas e culpemos tudo e todos, menos
a nós mesmos, pelos nossos erros.

17
“Pois todos os que são das obras da lei estão debaixo de maldição. Porque
está escrito: Maldito todo aquele que não permanece na prática de todas as coisas
escritas no livro da lei. É evidente que ninguém é justificado diante de Deus pela lei,
porque: O justo viverá pela fé” (Gl 3.10,11).
18
Gálatas 6.2.
19
Gênesis 3.12.
20
Gênesis 2.23.
21
Gênesis 3.13.
Uma mensagem que expõe o pecado 191

O pecado consiste em transgredir a lei de Deus


Na essência do pecado está a escolha de transgredir deliberada-
mente o mandamento revelado de Deus. Robert Peterson escreve:
“Apesar da aversão moderna ao uso de categorias legais da reli-
gião, a Bíblia descreve Deus como Juiz, e o pecado como violação
de sua lei”.22 “O pecado é toda ausência de conformidade à lei
de Deus ou transgressão dela”.23 O pecado é uma rebelião contra
Deus por meio da negligência voluntária de sua lei. É interessante
o fato de que o próprio Webster´s Dictionary define pecado como
“qualquer transgressão voluntária da lei divina, ou violação de um
mandamento divino; um ato mau; iniquidade”.
O Novo Testamento usa vários termos para descrever a reali-
dade do pecado. Um deles é hamartia, que significa “errar o alvo”. É
esse o termo que Tiago usa para descrever o pecado quando escreve:
“Portanto, aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete
pecado” (Tg 4.17).24 Outro termo comum é adikia, que significa
“injustiça”. O apóstolo usa esse termo em Romanos 1.18 quando
escreve: “Pois a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade
e injustiça dos homens, que impedem a verdade pela sua injustiça”.25
Ainda outro termo é paraptoma, que significa “transgredir, ultra-
passar um limite conhecido”. O apóstolo Paulo usa esse termo para
descrever o pecado de Adão quando escreve que “pela transgressão
de um muitos morreram” (Rm 5.15).26 Um último termo para o
pecado é anomia, que significa “ausência de lei, violação de uma
lei conhecida”. Paulo o usa quando pergunta: “que sociedade tem a
justiça com a injustiça?” (2Co 6.14).27 Dizendo de uma forma bem
simples, pecar é transgredir a lei justa e revelada de Deus.

Robert Peterson, Hell on trial: the case for eternal punishment, Phillipsburg,
22

P&R Publishing, 1995, p. 47.


23
Breve Catecismo de Westminster, pergunta 14.
24
Cf. também Mateus 12.31; João 8.11; Romanos 5.12; 1João 3.4.
25
Cf. também João 7.18; 2Tessalonicenses 2.12.
26
Cf. também Romanos 5.20; 11.12.
27
Cf. também Romanos 6.19; 1João 3.4.
192 A mensagem

Pecado é paixão mal canalizada


Em certa ocasião, Jesus foi desafiado quanto à natureza da lei de Deus,
que é explicada nos Dez Mandamentos. Ele resumiu os primeiros
quatro mandamentos dizendo aos hiperfundamentalistas de sua época
que amassem a Deus de todo o seu coração, alma e mente. Ele então
resumiu os últimos seis mandamentos dizendo-lhes para amarem ao
próximo assim como amavam a si mesmos. Nesse resumo, Jesus está
nos dizendo algo importante sobre a natureza do pecado. Pecado é
quando amamos algo ou alguém mais do que amamos a Deus e ao
próximo. Pecado é quando falhamos em amar a Deus com tudo o que
somos. Pecado é quando somos mais apaixonados por qualquer outra
coisa do que o somos por Deus. Pecado é quando não amamos a Deus
como ele exige ser amado e quando não amamos as pessoas como elas
merecem ser amadas, como pessoas criadas à imagem de Deus.
O resultado de nossa paixão mal canalizada não é que meramen-
te falhamos em amar a Deus, mas que também começamos a amar
outras coisas no lugar de Deus. É isso que Søren Kierkegaard diz,
essencialmente, em seu livro The sickness unto death [A doença para a
morte] (que é uma leitura bastante árdua). Trataremos dessa ideia mais
detalhadamente no próximo capítulo, mas é importante mencionar
aqui que pecado é quando dependemos de algo ou alguém que não
Jesus Cristo para obter o sentido principal e a segurança básica da
nossa vida. Nossa tendência humana é depender de alguma pessoa,
produto, estilo de vida ou hobby para extrair daí a nossa sensação
de que somos indivíduos pessoalmente significativos, emocional-
mente conectados e socialmente satisfeitos. Começamos a experi-
mentar uma desordenação das nossas paixões, como Santo Agostinho
observou. Nossa paixão nos afasta de Deus, mas nos leva a algo ou
a alguém que precisa funcionar como Deus para que possamos nos
sentir tranquilos.28 Como eu disse há pouco, veremos essa ideia em

28
Quando digo tranquilo, não me refiro a uma tranquilidade realmente tran-
quila, mas a uma tranquilidade idólatra. Agostinho acertou em cheio quando disse
que “nosso coração anda inquieto enquanto não encontra descanso em ti”.
Uma mensagem que expõe o pecado 193

mais detalhes no próximo capítulo, mas o que precisamos saber por


enquanto é que, em sua proclamação do evangelho, a igreja precisa
orientar as pessoas de volta ao primeiro amor. Uma pregação que
realize isso exige não só que a graça e a misericórdia de Deus rece-
bam uma boa dose de exposição, mas que nosso fracasso em guardar
os maiores mandamentos e nossa incapacidade de fazê-lo também
sejam fartamente expostos.

Pregando uma mensagem que expõe o pecado


Quando se trata do que Deus ama e do que ele odeia, as Escrituras
são abundantemente claras. É por isso que a Bíblia é extremamente
ofensiva para as pessoas. Jesus nos adverte de que essa ofensa muitas
vezes será tão forte que levará as pessoas a nos perseguirem quan-
do ouvirem nossa mensagem.29 Ainda que na maioria dos países do
mundo você não seja ferido ou morto pelo governo por pregar o
evangelho, a verdade é que, de uma maneira ou outra, você será per-
seguido. Na cultura ocidental, praticamente qualquer conversa sobre
pecado é recebida com zombaria, escárnio e difamação. Na verdade,
a única coisa que a nossa cultura considera “pecado” e expõe como tal
é o ato de afirmar que algo seja pecado.
No entanto, está claro que devemos pregar as Escrituras, expon-
do dessa forma tanto o pecado da igreja quanto o pecado da nossa
cultura. Se o coração pecaminoso dos ouvintes não está sendo desa-
fiado, não se está pregando o evangelho. Se o perdão dos pecados não
é algo que causa espanto neles, não se está pregando o evangelho.
Se eles não sentem alegria por causa da vitória de Cristo sobre o
pecado interior, não se está pregando o evangelho. A pregação con-
temporânea tende a suavizar a ofensa do evangelho para tornar a sua

29
Mateus 5.11,12: “Bem-aventurados sois, quando vos insultarem, persegui-
rem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Alegrai-vos e exul-
tai, pois a vossa recompensa no céu é grande; porque assim perseguiram os profetas
que viveram antes de vós”.
194 A mensagem

mensagem mais palatável à sensibilidade moderna.30 Minimizamos


o pecado para minimizar a ofensa do evangelho. Mas, ao fazê-lo,
subvertemos a palavra de Deus com palavras humanas, cometemos
o pecado da idolatria e privamos as pessoas da alegria do perdão que
há no evangelho.
Ao dizer que devemos pregar as leis de Deus, não estou dizen-
do que as devamos pregar de uma forma legalista. A lei de Deus31
tinha muitas funções. Essa Lei protegeu a nação de Israel ao ajudá-la
a se separar moralmente das nações pagãs, e assim ser um testemu-
nho a elas.32 A lei desencorajava os malfeitores quanto ao pecado e
refreava o mal na sociedade israelita. A lei também nomeia o nosso
pecado33 ao despertar a nossa rebeldia profunda e expor a profundi-
dade da corrupção do nosso coração;34 quanto a isso, não diferimos
muito do meu filho pequeno que, tendo claramente ouvido a “minha
lei” de que a descarga do vaso sanitário não é brinquedo, três minutos
depois estava brincando com ela. A lei também nos revela o coração
de Deus e o padrão que o cristão deve ter para a sua vida. Finalmente,
a lei faz com que busquemos a Jesus.35
No final das contas, a lei nos dá uma surra e tira as nossas espe-
ranças, porque nos mostra a nossa incapacidade de viver à altura do
padrão de Deus.36 Embora a lei nos ensine sobre o coração de Deus
e sobre como viver de forma sábia e justa em um mundo corrupto,

30
Isso lembra bastante a situação que Paulo previu em 2Timóteo 4.3: “Porque
chegará o tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, desejando muito ouvir
coisas agradáveis, ajuntarão para si mestres segundo seus próprios desejos”. Não
transforme sua igreja no cumprimento dessa profecia.
31
Na tradição reformada, a Lei do Antigo Testamento é subdivida em três
categorias — civil, cerimonial e moral. Essa é uma forma de entender a relevância
contínua da lei para os cristãos modernos. Quanto aos usos da Lei, em geral a tra-
dição reformada se concentra em três deles: (1) a lei expõe o pecado; (2) a lei refreia
o mal; e (3) a lei é um guia para os cristãos.
32
Deuteronômio 4.6-8.
33
Romanos 7.7.
34
Romanos 7.8.
35
Gálatas 3.23,24.
36
Romanos 3.23.
Uma mensagem que expõe o pecado 195

a verdade é que, devido ao nosso pecado, jamais somos capazes de


segui-la completamente. Essa realidade é evidenciada pelo fato de
que o mesmo Deus que entregou a lei também forneceu o sistema
sacrificial para lidar com a nossa falta de obediência a ela. Pregar com
base na lei, portanto, inevitavelmente trará à tona a nossa necessida-
de de um Salvador.37
Se você não sabe o quanto está sujo, não sentirá a necessidade
de tomar um banho. Se você não sabe o quanto é pecador, não sentirá
a necessidade da salvação. “Só aquele que conhece a grandeza da ira
poderá se sujeitar à grandeza da misericórdia”.38 Uma pregação que
expõe o pecado ajuda as pessoas a realmente encarar o seu pecado e
a sua grande necessidade de um Salvador.
Uma pregação que expõe o pecado opera junto com o Espírito
Santo na vida do ouvinte, produzindo convicção do pecado e arre-
pendimento. É importante observar as três dinâmicas interiores que
ocorrem quando um indivíduo é confrontado com a lei. Alguns sim-
plesmente se sentem culpados — isto é, eles se sentem mal, mas
não se sentem quebrantados. Outros se sentem condenados, ou seja,

37
Essa perspectiva precisa ser levada em conta na hora de escolher os textos
bíblicos para a pregação. Como a Bíblia inteira é a palavra de Deus, não devemos
evitar os textos difíceis, mas devemos permitir, antes, que eles nos corrijam. William
H. Willimon, em Pastor: the theology and practice of ordained ministry (Nashville:
Abingdon, 2002), p. 126, oferece algumas palavras úteis a esse respeito: “Devemos
ler a Bíblia de uma maneira mais cuidadosa e respeitosa do que aquela que consiste
em revirar o texto bíblico e escolher uma ou outra passagem com base naquilo que
consideramos possível e permissível dentro do nosso contexto presente. Fazer isso
não é alinhar nossa vida com o testemunho dos santos; antes, nas palavras de Barth,
fazê-lo é ‘adornar-se com a plumagem deles’. Somos tentados a descartar aquilo
que nos causa desconforto ou o que não se encaixa facilmente em nosso presente
esquema de coisas. Uma questão hermenêutica apropriada, portanto, não seria sim-
plesmente ‘O que significa esse texto?’, mas antes ‘De que maneira esse texto está
me pedindo para mudar?’ ”.
38
Eis a citação inteira: “[É] em parte porque o pecado não provoca nossa pró-
pria ira que não cremos que ele provoque a ira de Deus” […] “onde se ignora a ideia
da ira de Deus, aí também não haverá compreensão do conceito central do evan-
gelho: a singularidade da revelação no Mediador”. De igual modo, “só aquele que
conhece a grandeza da ira será conquistado pela grandeza da misericórdia” (Stott,
The cross of Christ, p. 109).
196 A mensagem

sentem-se quebrantados, mas se sentem sem esperança. A convicção,


por outro lado, traz ao coração uma verdadeira contrição, mas corteja
o coração com a alegria que acompanha o ato de aceitar a Cristo e
abandonar o pecado.39
A mensagem do evangelho expõe nosso pecado, mas ela não
para por aí. Kierkegaard uma vez se queixou de que a pregação que
ouvia em sua época era como se alguém lesse um livro de receitas a
uma pessoa morrendo de fome.40 Se tudo o que fizermos na prega-
ção consistir em expor o pecado, a crítica de Kierkegaard também se
aplicará a nós. Precisamos nos lembrar de apontar Cristo às pessoas,
bem como o perdão e a cura que ele traz. Se expusermos o pecado
sem engrandecer a Cristo, teremos fracassado. “A consciência culpa-
da é uma grande bênção, mas só quando nos leva a voltar para casa”.41
O objetivo de uma pregação que expõe o pecado é ajudar as pessoas a
deixarem o pecado e trazê-las para a alegria e o perdão que só podem
ser encontrados no evangelho.

39
Ibid, p. 101: “Recobrar os conceitos de pecado humano, responsabilidade,
culpa e restituição sem recobrar também a confiança na obra divina da expiação é
um desequilíbrio trágico. É um diagnóstico sem receita, a futilidade da autossalva-
ção no lugar da salvação de Deus; é alçar a esperança apenas para jogá-la no chão
mais uma vez”.
40
Willimon, Pastor, p. 148.
41
Stott, The cross of Christ, p. 98.
O contrário do evangelho é a idolatria. (Mark Driscoll).1

Quando tentamos encaixar Deus no filme da nossa vida, o enredo fica


todo desacertado — e não só desacertado, mas banal. Quando somos
tirados do nosso próprio drama e escalados como personagens no
enredo dele, que ainda está se desenrolando, passamos a fazer parte da
maior história de todos os tempos. (Michael Horton).2

O coração humano é uma fábrica de ídolos. ( João Calvino).3

1
Mark driscoll, Death by love: letters from the cross, Wheaton, Crossway,
2008, p. 92.
2
Michael Horton, Christless Christianity: the alternative Gospel of the
American church, Grand Rapids, Baker, 2008, p. 94.
3
João calvino, As institutas da religião cristã, 1.11.
12

Uma mensagem que


estilhaça os ídolos

C omo discutimos no capítulo anterior, as Escrituras são bas-


tante claras em sua definição e denúncia do pecado. Mas
podemos levar isso um pouco adiante — que tipo de pecado (ou
pecados) em particular a Bíblia denuncia? Talvez se pense que o
pecado sexual, a injustiça ou o assassínio sejam os pecados mais
seriamente censurados pela Bíblia. Embora esses pecados sejam
frequentemente confrontados e desafiados nas Escrituras, o peca-
do que elas denunciam com maior frequência e severidade é o
pecado da idolatria.4
Ao longo de toda a Bíblia, somos advertidos sobre os perigos da
(nossa tendência à) criação de ídolos. Para citar só alguns exemplos:

y Levítico 19.4: “Não vos volteis para os ídolos, nem façais deuses
de metal para vós. Eu sou o senHor vosso Deus”.

4
“Na Bíblia não há acusação mais séria do que a de idolatria. A idolatria exigia
a punição mais severa, suscitava as polêmicas mais carregadas de desprezo, ocasio-
nava as medidas mais extremas de isolamento imposto e era considerada a principal
e mais emblemática característica daqueles que eram a própria antítese do povo de
Deus.” Brian S. rosner, “Idolatry”, em New dictionary of Biblical theology: exploring
the unity and diversity of Scripture, ed. T. Desmond Alexander, Brian S. Rosner,
D. A. Carson e Graeme Goldsworthy (Downers Grove: InterVarsity, 2000), p. 570.
200 A mensagem

yy Isaías 42.8: “Eu sou o Senhor; este é o meu nome. Não darei a
minha glória a outro, nem o meu louvor às imagens esculpidas”.
yy Jonas 2.8: “Os que se apegam aos ídolos inúteis afastam de si a
misericórdia”.
y y Habacuque 2.18: “Para que serve a imagem esculpida por
um artífice? E a imagem de fundição, que ensina mentiras?
Pois o artífice confia na sua própria obra, mas faz ídolos mudos”.
yy 1Coríntios 10.14: “Portanto, meus amados, fugi da idolatria”.

As raízes da idolatria remontam ao princípio da humani-


dade. Adão e Eva foram criados para servir e adorar apenas a
Deus. Eles não foram criados porque Deus estivesse sozinho ou
porque precisasse deles; eles foram criados para amar e desfrutar
a Deus. A vida deles não foi criada para que vivessem numa ado-
ração meramente vertical a Deus. Deus os criou para que eles o
adorassem de uma maneira horizontal; para que, sob a autoridade
de Deus, tivessem domínio sobre a criação dele.5
Um dia, enquanto Adão e Eva amavam a Deus e se regozi-
javam nele, Satanás, o enganador, aproximou-se de nossos pri-
meiros pais e essencialmente lhes disse: “No fundo, não dá para
confiar em Deus. Ele é tão restritivo. Ele é tão controlador. Ele
está absorto em seus próprios planos. Vocês precisam confiar em
mim e assumir o controle de sua vida se quiserem garantir sua
própria felicidade”.6 Tragicamente, nossos primeiros pais deci-
diram que não poderiam confiar seu bem-estar e felicidade a
Deus; eles decidiram, antes, assumir o controle de sua própria
vida, confiando no “pai da mentira”7 em vez de confiarem no
“Pai das luzes”.8

5
Gênesis 1.26,28.
6
Gênesis 3.1-5.
7
João 8.44.
8
Tiago 1.17.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 201

Os teólogos costumam dar a essa rebelião original o nome de


“a Queda”.9 Embora eu não me oponha a essa terminologia, ela
pode ser um pouco simplista em sua compreensão da natureza do
pecado. Não é como se Adão e Eva tivessem simplesmente caído
no pecado como alguém que resvala para a sarjeta. Eles também
não contraíram o pecado da mesma maneira que se contrai, diga-
mos, a gripe suína. Fizeram, antes, uma escolha fundamental que
levou à ruptura do relacionamento entre eles e Deus. Essa escolha
foi o seu primeiro ato de idolatria: Adão e Eva voluntariamen-
te depositaram sua própria confiança, importância, identidade,
segurança e futuro em alguma outra coisa que não Deus. Quan-
do Paulo descreve a raiz da rebeldia humana, ele fala do pecado
não apenas como uma transgressão da lei, mas antes como uma
substituição na adoração: “[Eles] substituíram a glória do Deus
incorruptível por imagens”.10

A idolatria consiste em substituir o objeto


apropriado da adoração
A expressão mais clara do desejo e das orientações de Deus para
o seu povo está nos Dez Mandamentos. Essas regras que tratam
da moralidade humana são as leis de Deus, a conduta por meio
da qual cultivamos nosso relacionamento de aliança com ele. É
interessante observar que três dentre os Dez Mandamentos tra-
tam do pecado da idolatria. O primeiro mandamento afirma que
Deus exige adoração exclusiva, porque ele é o Senhor da Terra;
isso contrariava a visão, então predominante no Oriente Próximo,
de que as divindades só serviam a nações ou regiões particulares.
“Não adore a outros deuses porque eu sou o Deus dos deuses”, diz

9
Historicamente, os cristãos têm se referido à desobediência de nossos pri-
meiros pais desde a época dos pais da igreja. Louis Berkhof, Systematic Theology
(Grand Rapids: Eerdmans, 1932, reed. 1996), p. 219, observa que “a ideia de que [o
pecado] se originou no ato de transgressão voluntária e na queda de Adão no paraíso
já se encontra nos escritos de Ireneu”.
10
Romanos 1.23.
202 A mensagem

Javé.11 O segundo mandamento é uma advertência contra criar e


adorar algum deus da forma como desejaríamos que ele fosse, em
vez de adorar ao Deus verdadeiro da forma como ele é.12 O último
mandamento diz, efetivamente, que não devemos cobiçar — não
deseje a casa do seu vizinho, as coisas do seu vizinho, a mulher do
seu vizinho, seja o que for do seu vizinho mais do que você deseja
a Deus.13 O Novo Testamento claramente associa a cobiça à ido-
latrai, o pecado maior.14 Todos esses três mandamentos, portanto,
estão relacionados à tentação de aceitar os “deuses impostores”
(falsos deuses — pessoas e coisas) e colocá-los no lugar de adora-
ção que é reservado exclusivamente a Deus.
As coisas que colocamos no lugar de Deus capturam nossa
imaginação e nosso coração, e acabamos nos tornando servos dos
nossos objetos de adoração. A palavra worship [adoração] deriva
de uma expressão do inglês antigo, worth shape [“forma de valor”],
implicando que o objeto da nossa adoração necessariamente nos
moldará (moldará o nosso valor) de uma forma abrangente. Nosso
objeto de adoração será sempre a principal influência em nossos
pensamentos, emoções, ações e, é claro, na nossa vida. É por isso
que não podemos ser servos de Deus e também dos ídolos. No
fim, ou adoramos a Deus ou adoramos os ídolos. Como o salmis-
ta declara: “Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem poderá
permanecer no seu lugar santo? Aquele que é limpo de mãos e

11
Êxodo 20.3: “Não terás outros deuses além de mim”.
12
Êxodo 20.4,5: “Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do
que há em cima no céu, nem embaixo na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não
te curvarás diante delas, nem as cultuarás, pois eu, o Senhor teu Deus, sou Deus
zeloso. Eu castigo o pecado dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração da-
queles que me rejeitam”.
13
Êxodo 20.17: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher
do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumen-
to, nem coisa alguma do teu próximo”.
14
Colossenses 3.5: “Portanto, eliminai vossas inclinações carnais: prostituição,
impureza, paixão, desejo mau e avareza, que é idolatria”. Cf também Efésios 5.5:
“Porque bem sabeis que nenhum devasso, ou impuro, ou avarento, que é idólatra,
tem herança no reino de Cristo e de Deus”.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 203

puro de coração; que não entrega sua vida à mentira”15 — isto é,


a um ídolo.
Os salmistas muitas vezes associam a adoração à glória.16 Ado-
rar significa glorificar alguma coisa. Falamos antes sobre a palavra
hebraica kabod (glória), que contém a ideia de peso, substância ou
de importância suprema. Os ídolos são objetos ou pessoas a quem
damos uma atenção imoderada. Ídolos são aquelas coisas às quais
damos glória, mas que não são Deus. Um ídolo é qualquer coisa
que recebe mais glória, mais peso, mais importância aos nossos
olhos do que Deus. A essência do pecado está em sacrificarmos
nosso amor por Deus (e o amor dele por nós) ao corrermos para
os braços de falsos amantes.17
Os ídolos são retratados em muitos versículos como mulhe-
res sedutoras que nos atraem para um estado de completa embria-
guez, escravidão e dependência.18 Eles usurpam o amor que
deveríamos dirigir tão somente a Deus. Mas isso não nos livra
da responsabilidade pelas nossas escolhas trágicas. Na idolatria,
voluntariamente trocamos aquilo que nosso coração deveria amar
por uma prostituta desprezível. Como nosso objeto de adoração é
sempre aquilo que captura nosso coração e mente, inevitavelmen-
te nos tornamos amantes daquilo que adoramos. Se é Deus quem
captura nosso coração e mente, então nós adoramos e amamos a
ele. Mas se é alguma outra coisa que os captura, então é a ela que
adoraremos e amaremos.

15
Salmos 24.3,4.
16
Ver, p. ex., Salmos 8.1; 24.7; 26.8; 29.1; 57.11; 66.2; 71.8; 145.11.
17
“Portanto, dize à casa de Israel: Assim diz o Senhor Deus: Convertei-vos e
deixai os vossos ídolos; desviai o rosto de todas as vossas abominações” (Ez 14.4-6,
esp. o v. 6). “[A]dulteraram com os seus ídolos” (Ez 23.37). “Assim diz o Senhor
Deus: Por teres desperdiçado a tua cobiça e descoberto a tua nudez nas tuas prosti-
tuições com os teus amantes; por causa também de todos os ídolos das tuas abomi-
nações...” (Ez 16.36).
18
P. ex., Salmos 106.36: “Serviram seus ídolos, que se transformaram em
arma­dilha para eles”.
204 A mensagem

Idolatria é adorar as coisas criadas em vez


de adorar a Deus
No primeiro capítulo de Romanos, Paulo afirma que a idola-
tria consiste em adorarmos as coisas criadas em vez de ao nosso
Criador.19 Em nossa idolatria, nós “inflamos alguma coisa que
não é Deus na intenção de que ela opere como seu substituto”.20
A idolatria, portanto, consiste em inverter o propósito de Deus
na criação. Em vez de adorar a Deus e ter domínio sobre a
criação, adoramos a criação e somos dominados por ela. Onde
deveríamos ser administradores fiéis, nós nos tornamos geren-
tes injustos. Onde deveríamos ser mestres, nós nos tornamos
escravos, porque somos necessariamente dominados por aquilo
que adoramos. Aquilo que situamos no centro do nosso coração
torna-se o moldador de nossos valores e o principal diretor de
nossa vida.21
Segundo a linha de raciocínio de Paulo em Romanos 1, a
adoração é inevitável para os seres humanos. Quando deixamos
de adorar a Deus, não deixamos de adorar de todo. O que ocorre,
antes, é que passamos a adorar alguma espécie de substituto em vez
de adorarmos a Deus. Isso quer dizer que todas as pessoas, no fun-
do, são adoradoras. Fomos simplesmente criados para situar algu-
ma coisa exterior a nós mesmos no centro da nossa vida. Como
Mark Driscoll escreve, “Todo mundo é um adorador, pelo simples
fato de que fomos criados por Deus para adorar e não conse-
guimos evitar fazê-lo”.22 O fato da nossa adoração não muda; só
mudam os deuses que adoramos.
19
Romanos 1.25: “[S]ubstituíram a verdade de Deus pela mentira e adoraram
e serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito eternamente. Amém”.
20
Os Guinness e John Seel, eds., No god but God: breaking with the idols of
our age, Chicago, Moody, 1992, p. 32.
21
Muito obrigado a Tim Keller por todas as suas percepções tão perspicazes
ao longo dos anos, tanto em seu ensino como em conversas pessoais, incluindo uma
a respeito da idolatria. Ele, mais do que qualquer outra pessoa, moldou minha com-
preensão desse grave pecado.
22
Driscoll, Death by love, p. 92.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 205

Essa é uma realidade radical: todo ser humano neste planeta


é um adorador. Os humanos fazem de coisas como conhecimento,
poder, fama, música, dinheiro, sexo, esportes, hobbies, trabalho e
brinquedos seu objeto de adoração, seu principal foco e a fonte
de sua identidade central. Em outras palavras, eles estão sempre
adorando alguma coisa — seja Deus, seja algo ou alguém no lugar
de Deus. Martin Lloyd-Jones define um ídolo como “qualquer
coisa em minha vida que ocupe o lugar que apenas Deus deveria
ocupar. Um ídolo é qualquer coisa que detenha tal posição con-
troladora em minha vida, que me mova, me excite e me atraia a
tal ponto que eu não me importe em lhe dar meu tempo, minha
atenção, minha energia e meu dinheiro”.23
Como o coração humano foi criado para adorar alguém
exterior a si próprio, ele está continuamente à procura de um
lugar para repousar. Ele procura um objeto no qual possa depo-
sitar sua esperança. Simplesmente precisamos buscar alguém ou
alguma coisa para nos sentirmos em paz. As Escrituras ensinam
que nós, seres humanos, basicamente dependemos ou de Deus
ou de alguma outra coisa — sejam realizações, relacionamentos,
família, status, popularidade ou mesmo um hobby — para nos
sentirmos socialmente conectados, pessoalmente significativos e
emocionalmente seguros.
E esse algo — seja o que for — do qual dependemos, que
buscamos, ao qual somos fiéis acaba direcionando todas as coisas
na nossa vida. É por isso que a Bíblia não trata a idolatria como um
pecado como a glutonaria, a luxúria ou a mentira. Não. Ela trata
a idolatria como a única alternativa a adorar e amar o único Deus
verdadeiro. O pecado ocorre porque o valor que damos aos nossos
ídolos é maior do que o nosso amor por Deus. Se não amamos
ativamente a Deus, então amamos ativamente alguma outra coisa.
Quando Deus não é o centro da nossa vida, alguma outra coisa o é.

23
Martin Lloyd-Jones, Life in Christ: studies in I John, Wheaton, Crossway,
1994, p. 729.
206 A mensagem

A idolatria é o pecado por trás da


maioria dos pecados
Lembro-me de ouvir esse conceito de “pecado por trás do pecado”
enquanto ouvia uma das centenas de sermões de Tim Keller que
ouvi ao longo dos anos.24 Tertuliano, um dos pais da igreja anti-
ga, chegou a dizer que todo pecado tem sua origem na idolatria.
A interpretação de Martinho Lutero dos Dez Mandamentos ecoa
essa perspectiva.25 O raciocínio de Lutero era que, como só há
Dez Mandamentos, e como os dois primeiros tratam da idolatria
— não terás outros deuses, não farás imagens esculpidas —, então
Deus está querendo dizer alguma coisa com isso. Parece que os
outros mandamentos estão todos relacionados à idolatria. Se
desobedecemos aos mandamentos 3 a 10 — se roubamos, deson-
ramos nossos pais, nos envolvemos em atividade sexual fora da
aliança do casamento e assim por diante —, é porque desobedece-
mos aos mandamentos 1 e 2. O verdadeiro problema é a idolatria.
Todos os pecados fluem do ato de dar maior valor a alguma outra
coisa do que damos a Deus.
David Powlison, em seu artigo (maravilhosamente esclare-
cedor) “Idols of the heart in vanity fair” [“Ídolos do coração na
feira das vaidades”], foi o primeiro a trazer à minha atenção o
fato de que João conclui sua primeira epístola (no último dos seus

24
Gosto de dizer que Tim Keller está para os pastores como Johnny Cash para
os músicos — todos o imitam, mas poucos lhe dão o devido crédito.
25
Ver o texto “Talking about Idolatry in a Postmodern Age”, de Tim Keller;
http://www.monergism.com/postmodernidols.html.
Keller escreve: “Lutero entendeu o fato de que a lei veterotestamentária con-
tra os ídolos e a ênfase do Novo Testamento na justificação apenas pela fé são essen­
cialmente a mesma coisa. Ele afirmou que os Dez Mandamentos começam com
dois mandamentos contra a idolatria. Isso porque o problema essencial da trans-
gressão da lei é sempre a idolatria. Em outras palavras, jamais transgredimos os
demais mandamentos sem primeiro transgredir a lei contra a idolatria. Lutero com-
preendeu que o primeiro mandamento realmente trata basicamente da justificação
pela fé, e deixar de crer na justificação pela fé é idolatria, que é a raiz de tudo o que
desagrada a Deus”.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 207

105 versículos) com o seguinte desafio: “guardai-vos dos ídolos”.26


É interessante observar que não há menção aos ídolos nos 104
versículos anteriores! Em outras palavras, João não havia falado
de idolatria (ao menos diretamente) em toda a carta até então. As
duas possibilidades para essa inserção peculiar do tema no último
versículo são: (1) João está mudando de tema bem no fim da car-
ta, ou (2) João está resumindo o tema da epístola. Seria um tanto
estranho se ele estivesse mudando de assunto a essa altura. João,
como todo autor cuidadoso, está ajudando os destinatários a com-
preender aquilo de que ele falou ao longo de sua carta inspirada
pelo Espírito Santo.
Do que João estava falando?
1João 1.5-7: Depois de estabelecer que a luz de Deus simbo-
liza seu conhecimento e pureza, João exorta os seguidores de Jesus
a andarem na luz.27 Andar na luz significa buscar o conhecimento
de Deus por meio do relacionamento com ele e buscar uma vida
santa no relacionamento com os outros cristãos.
1João 2.3-6: João agora explica que a vida santa é, na ver-
dade, um subproduto de se conhecer a Deus. Afirmar que se
conhece a Deus e continuar desobedecendo aos seus manda-
mentos é mentir.
1João 3.16-18: João resume a vida cristã comparando-a dire-
tamente à vida, e especificamente à morte, de Cristo. Viver como
Cristo, diz João, é se sacrificar como Cristo se sacrificou — dando
a sua própria vida para que outros pudessem saber que o amor e o
poder de Deus são reais.
Se entendermos o último versículo da epístola como o resu-
mo da carta, então o mandamento de João de andar na luz, guar-
dar os mandamentos de Deus e amar o próximo é, no final das
contas, uma admoestação a que nos mantenhamos livres de ídolos.

26
David Powlison, Idols of the heart in vanity fair, The Journal of Biblical
Counseling, 13, (2): p. 35, Winter 1995.
27
Introduction to 1 John, ESV Study Bible, Wheaton, Crossway, 2008.
208 A mensagem

Sermos livres da idolatria parece ser uma coisa que dá força à


nossa obediência. Portanto, se você tem algum problema quanto
a “andar na luz” ou a “dar [a] vida pelos irmãos”, isso significa que
você tem um problema ligado à idolatria. O grande tema da carta
de João é simples: ame a Deus e ame as pessoas de acordo com o
resumo que Cristo fez dos Dez Mandamentos,28 que é a própria
essência do cristianismo. O que João parece estar dizendo é que
os ídolos são o obstáculo fundamental que impede os cristãos de
amarem a Deus e o próximo. Os ídolos são o solo fértil no qual o
pecado cresce, e o pecado nos impede de amar a Deus. Eles são a
raiz e o combustível das coisas que levam o comportamento peca-
minoso a se desenvolver e se fortalecer.

Perguntas que expõem os ídolos


As perguntas a seguir podem ajudar a expor os nossos ídolos, demons-
trando qual é realmente a nossa principal fonte de confiança.29

yy Com o que eu mais me preocupo?


yy Qual coisa, se eu fracassasse nela ou fosse privado dela, tiraria
minha própria vontade de viver?
yy Onde busco meu conforto quando as coisas estão mal ou
ficam difíceis?
yy O que me ajuda a encarar as coisas? Quais são minhas válvulas
de escape? O que faço para me sentir melhor?
yy O que mais ocupa a minha mente? O que me faz sonhar
acordado?
yy Onde é que eu mais busco o meu valor próprio? Do que eu
mais me orgulho? Pelo que eu quero ser conhecido?
yy De que maneira eu inicio as minhas conversas?

28
Mateus 22.37-39.
29
Essas questões foram adaptadas do capítulo 7 do livro de David Powlison,
Seeing with new eyes (Phillipsburg: P & R, 2003). Powlison as chama de “questões
raio X”.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 209

yy Qual é a primeira coisa que eu quero que as pessoas saibam ao


meu respeito?
yy Qual oração, se não fosse respondida, me levaria a pensar seria-
mente em me afastar de Deus?
yy O que eu realmente quero e espero da vida? O que realmente
me faria feliz?
yy Qual é minha esperança para o futuro?

As respostas a essas perguntas revelam em que a pessoa real-


mente deposita a sua confiança, não importa quem ela professe
adorar. Elas descrevem o que a pessoa elevou ao lugar de Deus em
sua vida — revelam qual é, na prática, o seu senhor.

Definições que expõem os ídolos


Numerosos autores já tentaram classificar os ídolos separando-os
em diferentes categorias.30 Vários anos atrás, ouvi uma palestra
de Dick Kaufman em uma de nossas conferências do ministério
Atos 29. Kaufman descreveu duas categorias de ídolos, “distantes”
e “próximos”, conceito que admitiu ter emprestado de Dick Keyes.
Ao longo dos anos eu li Keyes e outros a respeito desse tema,
mas achei essas categorias confusas demais para o meu modesto
cerebrozinho. Sendo assim, numa tentativa de entender melhor
as definições fornecidas por Kaufman, renomeei essas categorias
como “ídolos-fonte” e “ídolos de superfície”.

Ídolos de superfície
Das duas categorias de ídolos, os ídolos de superfície31 são mais
fáceis de reconhecer porque estão, afinal, mais próximos da super-
fície. Muitas pessoas os reconhecem, portanto, como a causa de
grande parte dos problemas em seu relacionamento com Deus e

30
Por exemplo, Dick Keyes em No god but God e David Powlison em “Idols of
the heart in vanity fair”.
31
Kaufman, seguindo Keyes, os chama de ídolos próximos.
210 A mensagem

com o próximo. Jack Miller chama esse tipo de idolatria de “peca-


dos-ramo”, porque eles são simplesmente ramos de pecados-raiz
menos observáveis.32 Esses ídolos de superfície incluem:

Idolatria da imagem: “A vida só faz sentido/eu só tenho valor


se eu tiver um tipo determinado de visual ou imagem corporal”.
Idolatria da ajuda: “A vida só faz sentido/eu só tenho valor se
as pessoas dependerem e precisarem de mim”.
Idolatria da dependência: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se houver alguém para me proteger e me manter seguro”.
Idolatria da independência: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu estiver completamente livre de obrigações ou da res-
ponsabilidade de cuidar de alguém”.
Idolatria do trabalho: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu estiver sendo altamente produtivo e concluindo mui-
tos projetos”.
Idolatria da realização: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu estiver sendo reconhecido por minhas realizações, se
estiver sobressaindo em minha carreira”.
Idolatria do materialismo: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu tiver certo nível de riqueza, de liberdade financeira e
de posses altamente desejáveis”.
Idolatria da religião: “A vida só faz sentido/eu só tenho valor
se eu estiver aderindo aos códigos morais da minha religião e rea-
lizando devidamente as atividades dela”.
Idolatria de uma pessoa individual: “A vida só faz sentido/eu
só tenho valor se determinada pessoa estiver em minha vida e
estiver feliz ali e/ou feliz comigo”.
Idolatria da irreligião: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu sentir que sou completamente independente da reli-
gião organizada e que tenho uma moralidade própria”.

32
C. John Miller, Repentance and the 20th century man, Ft. Washington, Chris-
tian Literature Crusade, 1998, p. 38.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 211

Idolatria racial/cultural: “A vida só faz sentido/eu só tenho


valor se minha raça e cultura tiverem ascendência e forem reco-
nhecidas como superiores”.
Idolatria da panelinha: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu puder fazer parte de determinado grupo social, pro­
fissional ou algum outro tipo de grupo”.
Idolatria da família: “A vida só faz sentido/eu só tenho valor
se meus filhos e/ou meus pais estiverem felizes e de bem comigo”.
Idolatria do relacionamento: “A vida só faz sentido/eu só
tenho valor se o amor da minha vida estiver apaixonado/apaixo-
nada por mim”.
Idolatria do sofrimento: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu estiver sofrendo e passando por algum problema; só
então eu me sinto nobre ou digno de amor ou consigo lidar com
a culpa”.
Idolatria da ideologia: “A vida só faz sentido/eu só tenho valor
se minha causa ou partido social ou político estiver progredindo e
crescendo em influência ou poder”.

Ídolos-fonte
Enquanto os ídolos de superfície são, para muitas pessoas, mais
fáceis de entender e mesmo de reconhecer, os ídolos-fonte, por sua
própria natureza, são mais subversivos. De acordo com Kaufman,
os ídolos-fonte incluem conforto, aprovação, controle e poder.33
Esses são os ídolos por trás de todas as demais idolatrias em nossa
vida. Esses ídolos se coadunam com os ensinamentos de Jesus34
e com a teoria da personalidade desenvolvida por Alfred Adler.35

33
Kaufman, seguindo Keyes mais uma vez, os denomina ídolos distantes.
34
Cada um desses temas, por exemplo, figura de forma proeminente no
Sermão do Monte de Jesus (Mt 5—7). Grande parte dos ensinamentos de Jesus
trata de necessidades humanas fundamentais de aprovação, (5.3-10; 6.2-4,14,15),
poder (6.19-24), controle (6.25-34) e conforto (7.7-11).
35
Um dos derivados do trabalho de Adler é o perfil de personalidade disc;
http://www.discprofile.com/whatisdisc.htm.
212 A mensagem

A tabela de Kaufman descreve: (1) aquilo que que nós bus-


camos (o ídolo-fonte); (2) o preço que estamos dispostos a pagar
para obter esse ídolo; (3) nosso maior pesadelo e como os outros
se sentem quando estamos operando por meio do ídolo; e (4) a
emoção-problema que revela o nosso ídolo. As palavras “A vida
só faz sentido/eu só tenho valor se...” é um pouco hiperbólica,
mas atinge o objetivo de fazer com que os leitores examinem o
próprio coração.
Para tornar esses ídolos-fonte mais pessoais, vou examiná-
los da perspectiva de uma figura bem conhecida de todos nós — o
dinheiro. Em cada ídolo-fonte listado abaixo, observaremos o que
realmente se busca por meio do ídolo, o preço que estamos dis-
postos a pagar para continuar na adoração a ele, os maiores medos
que alimentam esse ídolo, o impacto que tem sobre as pessoas
próximas, as emoções-problema associadas a ele e o papel que
desempenha no contexto da nossa metáfora do dinheiro.
Idolatria do conforto: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu tiver determinado tipo de experiência de prazer, se
tiver determinada qualidade de vida”.
O que buscamos: conforto (privacidade, ausência de estresse,
liberdade).
Preço que estamos dispostos a pagar: produtividade reduzida.
Pior pesadelo: estresse, exigências.
Os outros muitas vezes se sentem: machucados.
Emoção-problema: tédio.
A metáfora do dinheiro: as pessoas que idolatram o confor-
to adquirem e gastam seu dinheiro na tentativa de se isolar das
necessidades alheias e das exigências da vida cotidiana. Elas evi-
tam o tédio a todo custo; para driblá-lo, estão sempre adquirin-
do novos gadgets, brinquedos e jogos. Elas investem pesado em
hobbies e em outras distrações da vida cotidiana. Os adoradores
do conforto veem os outros, mesmo as pessoas próximas, como
obstáculos em potencial ao seu conforto. Não é de surpreender
que os relacionamentos autênticos não apareçam com facilidade
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 213

na vida dessas pessoas; por causa disso, elas só investem em rela-


cionamentos se estes proverem um grau adequado de isolamento
dos incômodos que elas buscam evitar.
Idolatria da aprovação: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu for amado e respeitado por ____________________”.
O que buscamos: aprovação (confirmação e elogios, amor,
relacionamento).
Preço que estamos dispostos a pagar: menos independência.
Pior pesadelo: rejeição.
Os outros muitas vezes se sentem: sufocados.
Emoção-problema: covardia.
A metáfora do dinheiro: todos nós fomos criados com um
desejo de ser amados. Esse desejo é saudável e natural. O proble-
ma para as pessoas que têm um ídolo de aprovação, todavia, é que
elas não estão realmente satisfeitas com o amor que Deus tem por
elas e buscam amor e confirmação nas pessoas que consideram
importantes. Assim, as pessoas que idolatram a aprovação farão
quase tudo para deixar aqueles que elas amam felizes, o que inclui
gastar em excesso na tentativa de literalmente comprar a acei-
tação alheia. Elas também podem usar seu potencial de ganhar
dinheiro como maneira de conquistar o orgulho das pessoas que
veem como importantes na vida delas. Os adoradores da apro-
vação muitas vezes assumem compromissos, prometem coisas
e fazem afirmações que vão além do razoável para conquistar a
aprovação alheia. Essas pessoas são radicalmente inseguras quan-
to à sua identidade em Cristo, e seu temor da rejeição alheia é
maior que seu temor bíblico ao ódio que Deus tem pelo pecado.
É comum as pessoas próximas da pessoa que idolatra a aprovação
alheia se sentirem sufocadas, porque o desejo que essa pessoa idó-
latra tem de ser amada não pode ser satisfeito de forma realista
por um mero ser humano.
Idolatria do controle: “A vida só faz sentido/eu só tenho
valor se eu conseguir dominar minha vida na seguinte área:
___________________”.
214 A mensagem

O que buscamos: controle (autodisciplina, certeza, padrões).


Preço que estamos dispostos a pagar: solidão, espontaneidade.
Pior pesadelo: incerteza.
Os outros muitas vezes se sentem: censurados.
Emoção-problema: preocupação.
A metáfora do dinheiro: as pessoas que idolatram o controle
frequentemente são obcecadas em fazer com que as coisas ocor-
ram exatamente como elas planejaram, e muitas vezes pagam por
isso com profundos sentimentos de ansiedade e preocupação. O
mantra do verdadeiro adorador do controle é “Se quero que seja
feito direito, preciso fazê-lo eu mesmo”, embora muitas vezes ele
também possa simplesmente dizer “É do meu jeito ou nada”. Isso
pode ser visto na maneira como essas pessoas veem o próprio
dinheiro. Os idólatras do controle sabem para onde vai cada cen-
tavo, e muitas vezes desprezam as pessoas que parecem ter menos
controle das próprias finanças. Seja rico ou pobre, o ídolo do con-
trole gera preocupação no idólatra. “Vou ganhar o suficiente?” ou
“Estou guardando o suficiente?” são perguntas que ele se faz com
frequência. As marcas da idolatria do controle vêm à tona mais
obviamente quando alguma mudança ou acontecimento inespe-
rado, como uma recessão econômica, ameaça arruinar os planos
desse tipo de idólatra.
Idolatria do poder: “A vida só faz sentido/eu só tenho valor
se eu tiver poder e influência sobre outras pessoas”.
O que buscamos: poder (sucesso, vencer, ter influência).
Preço que estamos dispostos a pagar: ficar sobrecarregados, res-
ponsabilidades.
Pior pesadelo: humilhação.
Os outros muitas vezes se sentem: usados.
Emoção-problema: raiva.
A metáfora do dinheiro: a pessoa que idolatra o poder deriva
sua identidade da competição — quanto mais intenso for o desa-
fio, melhor. Não há nada de errado com a competição; ela pode
ser bastante útil, especialmente, eu penso, na vida dos homens.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 215

Mas lembre-se de que toda idolatria consiste em tomar uma coisa


boa que Deus nos deu como dádiva e fazer dela a fonte supre-
ma da nossa identidade. Neste caso, essa coisa boa é o desafio
e a competição; mais precisamente, é a vitória. Outra afirmação
que descreve os idólatras do poder, no entanto, é que a principal
motivação da vida deles é não tanto ganhar quanto evitar perder.
Quanto ao dinheiro, o idólatra do poder é estimulado a ganhar
mais e está determinado a gastar mais do que qualquer outra
pessoa. O jogo, por exemplo, pode se tornar um vício para essas
pessoas; é comum elas terem prazer no próprio desafio inerente às
escolhas do jogo. As coisas vão bem para os adoradores do poder
enquanto eles estão vencendo. Perder, contudo, os expõe à sua
profunda insegurança. A derrota desperta a raiva nesses idólatras,
raiva muitas vezes acompanhada de abuso verbal ou mesmo físico.
A derrota, nesses idólatras, pode gerar a raiva de si próprios e o
desdém pelas pessoas que lhes “custaram” a vitória. Não é raro as
pessoas próximas do idólatra do poder se sentirem usadas, subes-
timadas e esgotadas devido ao ciclo de ascensão e queda das vitó-
rias e derrotas em que consiste a vida dele.
Em qualquer momento você pode estar operando a partir
de um ou vários desses ídolos-fonte; no fundo, todavia, creio que
costuma haver um ídolo central, um ídolo que estimula a maior
parte dos demais pecados e ídolos na vida do idólatra. Os ídolos-
fonte são a raiz, e os ídolos de superfície são o fruto.

Arrependendo-se dos ídolos


Quando Jesus veio e começou a declarar o reino de Deus, ele
proclamou a todos que o ouviriam na Galileia: “Arrependei-vos
e crede no evangelho”.36 Essa é a essência do que significa ser
um seguidor de Cristo: arrepender-se e crer no evangelho. Essa é
a chave para remover os ídolos da sua vida e instalar Cristo no

36
Marcos 1.15.
216 A mensagem

centro do seu ser. Creio que, a esta altura, um recurso visual será
útil para entendermos como podemos destronar a idolatria e exal-
tar a Cristo na nossa vida.37

Figura 12-1

Sou completamente Sou completamente


pecaminoso aceito
AR
RE
PE
ND

Ídolo de

Veja o seu pecado Jesus viveu por mim
IME

Admita o seu pecado superfície Jesus morreu por mim


NT

Afaste-se do pecado Deus vê Jesus em mim


O

Jesus vive em mim

Ídolo-fonte

Sou mais pecador do Ele é mais Salvador


que eu pensava do que eu pensava

No topo da figura da cama elástica, vemos os dois pilares do


evangelho: somos completamente pecadores e incapazes de remediar
nossa própria condição, mas somos completamente aceitos por Deus
por causa da obra de Cristo.38 As duas linhas diagonais representam
como podemos nos apropriar do evangelho em nossa vida — arre-
pendendo-nos do pecado e pondo nossa fé em Cristo.

37
Delineei esse modelo enquanto ouvia a descrição de Kaufman sobre como
se arrepender e crer no evangelho é como pular numa cama elástica.
38
Lutero se referia a essa realidade como simul justus et peccator — justo e
pecador ao mesmo tempo. Isso se refere à realidade que, quando estamos em Cristo,
temos na nossa vida o pecado dentro de nós, mas ao mesmo tempo estamos vestidos
com a justiça de Cristo.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 217

No arrependimento há três coisas que precisamos fazer em


relação ao pecado: vê-lo, admiti-lo e afastarmo-nos dele. Ver nosso
próprio pecado de maneira específica é compreender que ele é grave
para Deus e hostil à sua lei.39 Para admitir nosso pecado específi-
co, precisamos não só ver que o pecado é errado em geral, mas que
pecamos de forma específica e concreta. É não só assumir a nossa
responsabilidade pela transgressão da lei, mas reconhecer que somos
transgressores dela. Finalmente, precisamos nos afastar do pecado;
isto é, abandoná-lo.40 A idolatria ocorre quando damos as costas a
Deus e entregamos o nosso ser inteiro ao pecado. Já o arrependimen-
to ocorre quando damos as costas aos nossos ídolos e entregamos
todo o nosso ser a Deus.41
Continuando com a figura, o arrependimento é muito semelhan-
te a um “salto duplo” na cama elástica — quando você aterrissa fundo
nela para dar maior impulso ao salto de outra pessoa que está com
você na cama elástica. Quando você quer mandar seu amigo para as
alturas — ou para a sala de emergência —, você precisa cair fundo
na cama elástica, esticando-a o máximo possível. Com o arrependi-
mento é a mesma coisa. Nós precisamos ir fundo, para nos afastar-
mos não só dos nossos pecados e ídolos de superfície, mas também
dos nossos ídolos-fonte, daquelas coisas que estão por trás de grande
parte dos demais pecados e idolatrias em nossa vida. Um dos sinais
de que estamos progredindo de verdade no arrependimento é perce-
bermos que somos mais pecadores do que pensávamos. Em outras
palavras, as más notícias são piores do que imaginávamos.
Contudo, as boas-novas também são melhores do que imaginá-
vamos. Embora vejamos, no arrependimento, que nosso pecado era

39
Romanos 8.7: “A mentalidade da carne é inimiga de Deus, pois não está
sujeita à lei de Deus, nem pode estar”.
40
A palavra grega para arrependimento, metanoia, literalmente significa “mu-
dar de ideia”.
41
Gosto muito das palavras de Jack Miller sobre o arrependimento: “Deus
não nos chamou para sermos nossos próprios advogados de defesa, mas para sermos
pedintes humilhados diante do trono da graça, recusando-nos a deixá-lo até rece-
bermos pão”. Repentance and the 20th century man, p. 35.
218 A mensagem

maior que a concepção que tínhamos dele, por meio da fé no evange-


lho vemos que Jesus é mais Salvador do que imaginávamos. “O arre-
pendimento só pode ser genuíno e duradouro quando o transgressor
vê que a misericórdia de Deus está disponível para ele.”42
Quando começamos a abraçar nossa aceitação em Cristo, vemos
que não precisamos ser perfeitos nesta vida porque Cristo foi perfeito
na vida dele por nós. Não precisamos tolerar as condenações de
Satanás ou pensar que Deus está nos punindo pelo nosso pecado,
porque Cristo morreu e levou toda a ira e punição de Deus por nós.
Assim, visto que estamos em Cristo,43 sua vida perfeita e morte expia-
tória substituem constantemente nossa vida imperfeita e punição
merecida. Por causa dessa realidade, quando Deus olha para nós vê o
seu Filho, porque nossa vida está “escondida com Cristo em Deus”,44
e nós vivemos nossa vida contínua com Deus pela fé enquanto Cristo
vive sua vida por meio de nós.45
A forma de lidar com o pecado e a idolatria é arrepender-se deles
e crer no evangelho.46 A principal tentação de Satanás é nos con-
vencer de que somos metade dos pecadores que realmente somos e
que temos metade da aceitação de Cristo que realmente temos.47 Na
sua primeira carta aos tessalonicenses, Paulo os elogia pela maneira
como eles se converteram “dos ídolos a Deus, para servir[em] ao
Deus vivo e verdadeiro”.48 Que o mesmo possa ser dito sobre nós e
nossas igrejas à medida que nos arrependemos e cremos no evan-

42
Ibid., p. 77.
43
“Em Cristo” é a designação frequente de Paulo (p. ex., Rm 8.1; 1Co 15.58;
2Co 5.17; Gl 3.26) para a união com Cristo.
44
Colossenses 3.3.
45
Gálatas 2.20.
46
“A tentação permanente é o cristão permitir que pecados preencham a sua
vida e resvalar para o antigo hábito da autoafirmação e da autoconfiança. Quando
isso acontece, é frequente que os seus “arrependimentos” percam o poder, porque a
autoconfiança o levou a ter um fundamento legalista como base da sua aceitação por
Deus. Sem fé em Cristo, o arrependimento se torna um remorso que causa calafrios
na alma.
47
Ibid., p. 103.
48
1Tessalonicenses 1.9.
Uma mensagem que estilhaça os ídolos 219

gelho.49 Concluiremos este capítulo e esta seção com as palavras do


falecido Jack Miller: “Quanto mais você sabe que está manchado até
os ossos com impulsos egoístas, quanto mais sabe que resiste contra a
vontade do Senhor, mais você irá a Cristo como um pecador sedento,
que encontra purificação mais profunda, mais vida e maior alegria
por meio do Espírito”.50

49
Na The Journey realizamos uma série sobre a idolatria no outono de 2007.
Eu o encorajo a ouvir esses sermões para mais reflexões sobre este tema. Você pode
encontrá-los em http://journeyon.net/media/transformation.
50
Miller, Repentance and the 20th century man, p. 55.
yy A MISSÃO
É só pelo fato de que Jesus veio até este mundo confuso com o
objetivo de acabar com a confusão que somos capazes de ver
a situação de forma ampla, panorâmica. Ele trocou o céu por um
ventre, um estábulo, um deserto e uma cruz para que o mundo fosse
salvo por meio dele. Podemos amar e buscar a cura de pessoas
confusas porque Jesus fez isso primeiro — como amigo de cobradores
de impostos, pecadores, cafetões e prostitutas, tornando muitos
deles seus apóstolos! (Scott Sauls).1

1
Scott sauls, Gospel (ainda não publicado).
13

O cerne da missão:
compaixão

N unca me esquecerei de quando ouvi o pastor da primeira


igreja de que participei pregar uma mensagem sobre a neces-
sidade de alcançar os que estavam longe de Deus. Ele fez uma
pergunta interessante: “Qual é o único ato de obediência que você
pode realizar na terra mas não no céu?”. O próprio pastor respon-
deu: “No céu podemos adorar, falar com Deus e ler nossa Bíblia,
mas não podemos compartilhar o evangelho com nossos amigos
perdidos”. Lembro-me de ficar impactado e chocado por essa rea-
lidade. Ela me fez recordar que eu havia sido um dos perdidos
apenas alguns meses antes, mas fora encontrado por Jesus por
meio de dois amigos.
Embora a rede Atos 29 seja completamente reformada em
sua compreensão da natureza da salvação, somos ávidos em nosso
desejo de compartilhar o evangelho com todos os povos, para que
sejam salvos.2
Homens que são qualificados, chamados e armados com a
mensagem do evangelho estão numa missão com Jesus, que veio
para procurar e salvar os perdidos.3 É importante chamar atenção

2
Romanos 10.14-17.
3
Lucas 19.10; cf. 5.31,32.
224 A missão

para a missão de Cristo, mas também é essencial falar sobre o


motivo dela. Verifique se você consegue discernir a razão por trás
dessa missão nos versículos seguintes.
Mateus 9.20-22: “E certa mulher, que por doze anos sofria de
uma hemorragia, aproximou-se por trás de Jesus e tocou-lhe a bor-
da do manto; porque dizia consigo mesma: Se eu tão somente tocar
o seu manto, ficarei boa. Mas Jesus, voltando-se e vendo-a, disse:
Ânimo, filha, a tua fé te salvou. E desde aquela hora a mulher
ficou boa”.
Mateus 9.35,36: “Jesus percorria todas as cidades e povoa-
dos, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e
curando todo tipo de doenças e enfermidades. Vendo as multi-
dões, compadeceu-se delas, porque andavam atribuladas e abati-
das, como ovelhas que não têm pastor”.
Mateus 14.14: “Ao desembarcar, ele viu uma grande multi-
dão, teve compaixão dela e curou os enfermos”.
Mateus 15.30: “E numerosas multidões foram até ele, levan-
do mancos, aleijados, cegos, mudos e muitos outros; e os coloca-
ram aos seus pés; e ele os curou”.
Mateus 15.32: “Então, Jesus chamou os discípulos e disse:
‘Tenho compaixão desta multidão, porque já faz três dias que está
comigo; eles não têm o que comer, e não quero mandá-los embora
sem comer, para que não desfaleçam pelo caminho’”.
Marcos 1.40,41: “Aproximou-se dele um leproso, que lhe
suplicou, de joelhos: Se quiseres, podes purificar-me. Jesus,
movido por compaixão, estendeu a mão, tocou-o e disse: Quero;
fica purificado”.
Marcos 10.20,21: “Ele, porém, lhe respondeu: Mestre, tudo
isso tenho guardado desde a minha juventude. Olhando para ele,
Jesus o amou e disse-lhe: Uma coisa te falta; vai, vende tudo o que
tens e dá-o aos pobres; e terás um tesouro no céu; depois vem e
segue-me”.
A partir dessas passagens, fica claro que a compaixão moti-
vava o ministério de Jesus. Em seu livro Love walked among us,
O cerne da missão: compaixão 225

Paul Miller observa que a compaixão é o sentimento dominante


que os autores dos Evangelhos atribuem a Cristo.4
Jesus demonstrou compaixão quando ressuscitou dos mortos
o único filho de uma mulher em Naim.5 Ele não apenas ressus-
citou o rapaz, mas também consolou a mãe. O compassivo Jesus
não ficou tão distraído pela cura sobrenatural do filho a ponto de
ignorar o coração ferido da mãe.6 Estar na missão é ter um coração
cheio de compaixão pelas pessoas — é vê-las como Jesus as via.7
Sou muito grato pela invenção do TiVo, que torna possível
eliminar totalmente os comerciais de televisão, porque detesto a
maioria deles. Você já parou para pensar em quão desconfortável
é assistir àquelas propagandas do tipo “doe alimentos para crian-
ças carentes”? É muito desconfortável — confesso que raramente
vejo uma até o final, e não apenas por causa do TiVo. Há uma
razão mais profunda para eu evitar assistir a comercias que real-
çam a fome de crianças reais, com seus estômagos inchados e sub-
nutridos: não quero testemunhar necessidades humanas urgentes
quando estou urgentemente tentando escapar da realidade huma-
na. Observar uma criança faminta me tiraria do meu modo con-
sumista e me poria em meu modo compassivo. Como cristão, a

4
Paul Miller, Love walked among us. Colorado Springs: NavPress, 2001.
[Edição em português: O amor andou entre nós, trad. Eulália Pacheco Kregness, São
Paulo: Vida Nova, 2011.]
5
Lucas 7.11-17.
6
Miller, Love walked among us, p. 28.
7
Há um debate entre teólogos sobre se Deus “sente” ou não emoções como
nós sentimos, o que impacta diretamente o que se pensa sobre um Deus compas-
sivo. Acredito que as Escrituras defendem intensamente a passibilidade de Deus.
Wayne Grudem se mostra útil aqui: “A ideia de que Deus não tem nenhuma pai-
xão ou emoção está nitidamente em conflito com boa parte [...] das Escrituras [...]
Em vez disso, a verdade é bem o contrário, pois Deus, que é a origem das nossas
emoções e que de fato as criou, certamente também sente emoções: Deus se alegra
(Is 62.5). Ele se entristece (Sl 78.40; Ef 4.30). O seu furor arde contra os seus
inimigos (Êx 32.10). Compadece-se dos seus filhos (Sl 103.13). Ama com amor
perene (Is 54.8; Sl 103.17). É um Deus cujas paixões devemos imitar para toda a
eternidade, quando nós, como nosso Criador, odiarmos o pecado e nos alegramos
na justiça” (Teologia sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 114).
226 A missão

qualquer momento em que vir alguém em sofrimento você irá (no


sentido de precisar) sentir compaixão, a não ser que faça a escolha
de virar o rosto e endurecer o coração. Os autores dos Evangelhos
descrevem Jesus com um olhar compassivo para pessoas quase
quarenta vezes, o que indica que isso era algo frequente.8
Na parábola do bom samaritano, vemos quão fácil é para
pessoas religiosas evitar olhar para a dor dos outros. Tanto o levi-
ta quanto o sacerdote se recusaram a olhar, porque não tinham
compaixão. O samaritano, por outro lado, teve piedade da pessoa
ferida; viu o homem e não evitou olhar.
Quando nós olhamos — não apenas voltamos os olhos,
mas de fato olhamos —, enxergamos a pessoa, e não o problema.
Quando olhamos para o indivíduo, vemos que ele importa para
Deus e deve importar para nós. Quando olhamos, vemos alguém
a ser amado, não um problema a ser resolvido. Apenas quando
olhamos podemos experimentar compaixão.
Estar na missão significa ter olhos abertos à procura daqueles
que sofrem — o casal vizinho que está lutando contra a infertili-
dade; o universitário que mascara seu alcoolismo com a afirma-
ção “mas isso é a vida na faculdade”; a garçonete, mãe solteira,
que serve você no restaurante sem ter ideia de como ela e o filho
comerão no dia seguinte depois que as gorjetas só comprarem
comida para aquela noite.
Abrir os olhos é arriscar-se a perder sua vida e viver com um
coração quebrantado por amor ao próximo. Como C. S. Lewis nos
lembra, a alternativa a um coração compassivo é um coração morto:

Amar é ser vulnerável. Ame qualquer coisa e seu coração ficará


apertado e, possivelmente, despedaçado. Se quiser ter certeza de
que ele ficará intacto, não deve dá-lo a ninguém, nem mesmo a um
animal. Embrulhe-o cuidadosamente em hobbies e pequenos luxos,
evite todas as complicações, tranque-o seguramente no caixão de

8
Miller, Love walked among us, p. 31.
O cerne da missão: compaixão 227

seu egoísmo. Mas nesse caixão — seguro, escuro, inerte, abafado


— ele vai se transformar. Não será quebrantado, todavia se tornará
inquebrável, impenetrável, irredimível.9

Compaixão é o motivo da missão. Unimo-nos a Jesus em sua


missão não porque queremos fazer nossa igreja crescer, porque
desejamos compartilhar conhecimentos apologéticos com céti-
cos ou mesmo porque gostamos de estar com não cristãos. Abra-
çamos a missão do Salvador porque compartilhamos o coração
compassivo daquele que vê as pessoas como ovelhas sem pastor.

Os inimigos da compaixão
Ativismo
Quando entrei no ministério de tempo integral, tive a sensação
extraordinária de que estava vivo pela primeira vez. Eu estava
totalmente consumido com ensinar, pastorear, liderar e aconse-
lhar, a ponto de negligenciar outras responsabilidades para exercer
o ministério. Não conseguia imaginar não gostar do ministério.
Ao longo dos anos, tenho percebido que os prazeres de minis-
trar a pessoas muitas vezes são sufocados pela agenda exigente
das atividades. Percebo que posso ficar tão imerso no ativismo do
ministério a ponto de perder o prazer de estar ali.
Um dos primeiros sinais de que o ativismo está ameaçando
destruir o prazer é uma ausência de compaixão por aqueles que
Deus pôs sob os cuidados do pastor. Tenho visto isso em meu
próprio ministério. Muitas vezes sentei-me frente a frente a uma
mesa de restaurante, uma escrivaninha ou uma mesa de jantar
com uma pessoa ou um casal devastado pelos efeitos de seu peca-
do e/ou do pecado de outros contra eles e, em vez de ouvir com
“ouvidos espirituais” e esperar o direcionamento do Espírito, eu
me desligava de quem estava falando e começava a me preocupar

9
C. S. Lewis, The four loves, Eugene: Harvest House, 1971, p. 121.
228 A missão

com as 25 tarefas que não seriam concluídas por causa daquele


encontro. Ainda piores são as vezes em que não apenas estou afli-
to pelas atividades que preciso concluir, mas estou irritado com as
pessoas com quem me encontro por serem pecadoras! Em situa-
ções como essas, em vez de ter um coração cheio de compaixão,
tenho um coração cheio de presunção, contemplando minha pró-
pria agenda, minhas preocupações, minhas necessidades, meus
desejos, meu nível de conforto... meu... meu... meu... meu... meu.
Para ficar claro: um pastor (ou qualquer outro líder espiritual)
não é obrigado a ficar atento a cada problema que seu rebanho
enfrenta. Mas quando as necessidades das pessoas persistente-
mente o deixam irritado, quando você evita indivíduos porque
teme que possam precisar de algo, quando frequentemente se
desliga das situações de aconselhamento... você precisa saber que
não está mais se preocupando com as pessoas. Você e eu podemos
dar desculpas, mas não há desculpa para não oferecer cuidado à
ovelha quando somos pastores do rebanho. E uma consequência
desse ativismo é que regularmente perdemos uma das maiores
bênçãos que Deus concede aos pastores: o prazer de saber que
você foi as mãos e os pés de nosso Salvador para alguém em um
momento de grande necessidade.

Pressa
Há uma diferença entre simplesmente estar ocupado e estar com
pressa. Estar ocupado se refere às tarefas que você precisa realizar.
Estar com pressa é o estado espiritual, mental e emocional em
que você se encontra quando tenta realizar as tarefas que precisa.
Você pode estar ocupado sem estar com pressa. No início do meu
ministério pastoral, eu não conseguia entender uma anotação fei-
ta em um diário como esta:

Estou cansado, Senhor. Completamente esgotado. Estou cansado


de uma mesa constantemente bagunçada e um calendário abar-
rotado. Estou cansando de problemas que não consigo resolver e
O cerne da missão: compaixão 229

feridas que não posso curar. Estou cansado de prazos e decisões


— tarefas realizadas sem nenhum prazer. Não consigo me lembrar
da última vez em que andei descalço lá fora ou fiz uma pausa para
sentir o cheiro do ar depois da chuva. Não consigo me lembrar da
última vez em que percebi o cheiro do café e parei para desfrutá-lo.
Eu quero sentir. Eu quero rir. Eu quero chorar. Eu quero viver a
vida ao máximo. Eu quero amar e ser amado.10

Depois de poucos anos nas trincheiras, eu estava escrevendo


anotações como essa. A pressa é como um vento forte que sopra
nas águas do seu coração. Se as ondas são muito altas, você se
esquece dos outros e se concentra em sua própria sobrevivência,
tornando a compaixão para com o próximo impossível.

Justiça própria
Há um aspecto vertical da justiça própria: eu estou tentando ser justo
perante Deus por meio de minhas boas obras, não pelas de Cristo. Mas
também há um aspecto horizontal da justiça própria: eu estou ten-
tando ser justo perante Deus porque comparo meu pecado com o de outros.
A forma horizontal da justiça própria é uma das muitas
razões por que as pessoas não perdoam pessoas próximas a elas e
muito menos são compassivas para com indivíduos que não são
próximos. Miroslav Volf, que presenciou o assassínio e estupro
de sua família e seus amigos na guerra nos Bálcãs na década de
1990, diz de forma muito perspicaz: “O perdão agoniza quando
excluo meu inimigo da comunidade dos humanos e me excluo da
comunidade dos pecadores”.11
Aqui acredito que Volf liste os dois principais motivos que
impedem as pessoas de exercer compaixão para com as outras.

Richard Exley, The rhythm of life, Tulsa: Honor Books, 1987, p. 37.
10

Miroslav Volf. Exclusion and embrace: a theological exploration of identity,


11

otherness, and reconciliation, Nashville: Abingdon, 1996, p. 124.


230 A missão

1. Acreditar que os outros são menos do que humanos (em minha


mente, estão excluídos da comunidade dos humanos).
2. Acreditar que eu sou mais do que humano (em minha mente,
estou excluído da comunidade dos pecadores).

A compaixão cresce no coração humano e irrompe em dire-


ção a outros quando compreendemos que os demais são huma-
nos criados à imagem de Deus e que somos pecadores perante
o Senhor.

Autoproteção
Uma das coisas mais difíceis de superar ao amar pessoas em sofri-
mento é absorver sua dor, rejeição e vergonha sem recuar emocio-
nalmente. A raiz da palavra compaixão significa “estar junto [com]
à dor de alguém [paixão]”.12 Assim, demonstrar compaixão para
com uma pessoa é concordar naquele momento em adentrar no
sofrimento com ela, escolher participar de sua realidade — espe-
ranças, sonhos, pecados e rebeldia. Se o seu coração está obstruí­do,
como forma de proteger a si mesmo, você não conseguirá partici-
par do sofrimento de outras pessoas, porque todas as suas energias
se concentrarão em evitar a dor. A compaixão é a única maneira
de não se concentrar em seu próprio conforto. Compaixão é o
sentimento concedido por Deus que permite que nos distraiamos
de nossos desejos e nos concentremos nas necessidades de outros.
Uma descrição interessante está embutida na palavra hebrai-
ca racham. No Antigo Testamento, o termo racham normalmente
é traduzido por amar ou ter compaixão.13 O interessante é que
ela é derivada da palavra rechem, normalmente traduzida por

12
Ronald A. Heifetz e Marty Linsky, Leadership on the line: staying alive
through the dangers of leading, Boston: Harvard Business School Publishing, 2002,
p. 235.
13
David Patterson, Hebrew language and Jewish thought, Nova York: Routledge,
2005, p. 21.
O cerne da missão: compaixão 231

ventre/útero. Creio que não seja uma estranha coincidência que o


vocábulo compaixão esteja enraizado no útero de uma mãe. Assim
como o amor que uma mãe sente por seu bebê provém do mais
profundo do seu ser, assim a compaixão deve vir do fundo do
coração dos servos de Jesus. Há uma compaixão especial que uma
mãe tem por seu filho, que ultrapassa até mesmo a do pai, e igual-
mente deve haver uma compaixão especial facilmente reconheci-
da na vida de um seguidor de Cristo.
A compaixão, com toda certeza, está profundamente enrai-
zada em nós como seguidores de Jesus. Sabemos disso porque
o mesmo Espírito que conduziu Cristo com compaixão vive em
nós. E o mesmo Espírito anseia por nos levar à compaixão, assim
como ele leva pregadores a pregar e líderes a liderar. Do mesmo
modo que precisamos da condução do Espírito para nos revelar
verdades nas Escrituras, necessitamos da ação dele para regu-
larmente fazer brotar compaixão em nós. Quando se revelou a
Moisés, Deus descreveu a si mesmo como compassivo.14 No fim
das contas, não aproveitar essa fonte de compaixão é uma questão
que deverá ser tratada com o próprio Senhor. Considere as pala-
vras de Teresa de Ávila:

Cristo não possui corpo na terra a não ser o teu,


Nem mãos a não ser as tuas, e pés senão os teus.
Teus são os olhos por meio dos quais
A compaixão de Cristo o mundo olhará;
Teus são os pés com os quais ele andará fazendo o bem;
E tuas são as mãos com as quais agora ele nos abençoará.

14
Êxodo 34.5-7: “O Senhor desceu numa nuvem e, pondo-se junto a ele, pro-
clamou o nome do Senhor. Tendo o Senhor passado diante de Moisés, proclamou:
Senhor, Senhor, Deus misericordioso e compassivo, tardio em irar-se e cheio de
bondade e de fidelidade; que usa de bondade com milhares; que perdoa a maldade,
a transgressão e o pecado; que de maneira alguma considera inocente quem é cul-
pado; que castiga o pecado dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até a terceira
e quarta geração”.
A igreja é a igreja para o bem do mundo. (Hans Küng).1

A igreja existe pela missão como o fogo existe pela


combustão. (Emil Brunner).2

Missão é o assunto da Bíblia. Poderíamos falar de forma


igualmente significativa da base missional da Bíblia como a base
bíblica da missão. (Christopher Wright).3

1
Citado em Randy Wilson coffin, The collected sermons of William Sloane
Coffin, vol. 1. Louisville: Westminster John Knox, 2008.
2
Citado em Wilbert R. sHenk, Write the vision, Harrisburg: Trinity, 1995, p.
87.
3
Christopher J. H. wrigHt, The mission of God, Downers Grove: InterVarsity,
2006, p. 29.
14

A casa da missão:
a igreja

M ateus 16.18: “E digo-te ainda que tu és Pedro, e sobre esta


pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela”.
Efésios 3.10: “[P]ara que agora a multiforme sabedoria de
Deus seja manifestada, por meio da igreja, aos principados e
poderios nas regiões celestiais”.
Eu estava trabalhando como ministro de campus em um
ministério universitário paraeclesiástico. Passava meus dias ensi-
nando, discipulando e aconselhando estudantes. Eu tinha prazer
no ministério, mas havia desistido da igreja. Estava cansado da
falta de vida, do legalismo e da falta de desenvolvimento da lide-
rança que havia experimentado na igreja. Quando eu ia a um cul-
to, não era inspirado ou desafiado. Quando estava com pastores,
ficava irritado e deprimido. Olhando para trás, eu era claramente
um jovem arrogante e prepotente, que devia ter se submetido e
servido em uma igreja local. Foi por volta dessa época que fiquei
sabendo do ministério da Willow Creek Community Church e
comecei a ficar esperançoso em relação à igreja.
Eu li sobre “a Willow Creek” pela primeira vez na revista
Christianity Today. O pastor Bill Hybels era o destaque da capa,
234 A missão

com o título “Selling out the house of God?”4 [“Vendendo/Train-


do a casa de Deus?” 5) — que eu agora sei que era um jogo de
palavras (a Willow Creek estava explodindo em crescimento, mas
também sendo questionada sobre possivelmente estar compro-
metendo o evangelho).6 Nessa entrevista, Hybels falou sobre ser
uma igreja que edificava cristãos e alcançava não cristãos. Ele con-
quistou meu coração. Era para isso que eu havia sido chamado:
fundar igrejas que preparassem o povo de Deus para amar Jesus
e compartilhar essa vida com os perdidos, vivendo entre eles.
Desde então, tenho uma visão gloriosa do que a igreja pode e
deve ser: o veículo da bênção de Deus a todo o mundo. A igreja é
o plano A de Deus para redimir o mundo. E ele não tem plano B.
Na universidade, eu havia ministrado a uma estranha combi-
nação de pessoas — atletas (porque era isso o que eu era) e artistas
(porque era isso o que minha namorada e futura, primeira e única
esposa era). Percebi que eu queria plantar uma igreja para todos
os tipos de pessoa, não apenas para uma esfera demográfica limi-
tada. Eu desejava uma congregação em que o mais esportista dos
esportistas e o mais artista dos artistas pudessem adorar juntos. E
passei a crer que a igreja devia ser uma comunidade multiforme
de pessoas que amam Jesus e abraçam a sua missão.
À medida que passei a compreender mais sobre como a igre-
ja era a principal ferramenta de Deus para executar sua missão,
comecei a estudar sua natureza com mais seriedade. A palavra
técnica para esse estudo é eclesiologia, que simplesmente signifi-
ca estudo da igreja — o que a igreja é e como deve funcionar no
mundo e executar sua missão. Definir a igreja é uma tarefa con-

4
Entrevista de Bill Hybels, “Selling Out the House of God?” Christianity
Today, July 18, 1994.
5
N. do R.: em inglês, a expressão forma um trocadilho com duplo sentido,
uma vez que sell out pode significar vender ou trair uma causa.
6
Para saber mais sobre a autovaliação da Willow Creek, ver a Reveal Study
Series de Greg Hawkins e Cathy Parkinson, publicada pela Willow Creek Asso-
ciation ou, para uma crítica externa, ver, de G. A. Pritchard, Willow Creek seeker
services: evaluating a new way of doing church (Grand Rapids: Baker, 2005).
A casa da missão: a igreja 235

fusa e repleta de nuanças, visto que há tantas opiniões a respeito


do que ela é exatamente.7 Infelizmente, poucos líderes trabalham
a partir de uma definição sólida.8 É muito importante definir e
compreen­der o que a igreja é, biblicamente, antes de tentar plan-
tar, liderar e servir congregações locais. Se não compreendermos
o que estamos servindo ou liderando ou o que estamos iniciando,
não apenas será pouco provável que tenhamos êxito, mas nem
mesmo saberemos o que é êxito.

Com que a igreja se parece?


A Bíblia usa muitas imagens para comunicar a natureza da igreja.9
Ela é chamada de o templo do Deus vivo (1Co 3.16,17).10 Mas com
o que a igreja realmente se parece? O que a distingue de outros
grupos e outras instituições?
Em seu livro Vintage church, Mark Driscoll e Gerry Breshears
discutem de forma profunda e ampla a definição e a natureza de
uma igreja do Novo Testamento:

A igreja local é uma comunidade de cristãos regenerados que con-


fessam Jesus como Senhor. Em obediência às Escrituras, eles se
constituem sob uma liderança qualificada, reúnem-se regularmente

7
Alguns estimam que o número de denominações protestantes ultrapasse
trinta mil. Cf., de David Barret; George Kurian e Johnson Todd, World Christian
Encyclopedia, 2. ed. (Nova York: Oxford University Press, 2001).
8
Essa tem sido minha experiência, assim como a de Mark Driscoll. Ver Mark
Driscoll e Gerry Breshears, Vintage church (Wheaton: Crossway, 2008), p. 35.
9
Eu adaptei o texto a seguir de D. J. Tidball, Church, New dictionary of bibli-
cal theology: exploring the unity and diversity of Scripture, ed. T. Desmond Alexander,
Brian S. Grosner, Graeme Goldsworthy, D. A. Carson (Downers Grove: InterVarsity,
2000), p. 410.
10
A igreja também é chamada de a nova humanidade (Ef 2.15), um corpo
com muitas partes e membros importantes (1Co 12.12-31), a noiva de Jesus Cristo
(Ef 5.25-33), lavoura de Deus (1Co 3.9) e uma nação santa (1Pe 3.9). A igreja co-
meça com a nação de Israel, como a descendência de Abraão (Gn 17.7) e o povo da
aliança de Deus (Êx 19.5,6) e continua hoje como os verdadeiros filhos de Abraão,
os que creram em Cristo (Gl 3.7; Fp 3.3).
236 A missão

para a pregação e a adoração, observam os sacramentos bíblicos


do batismo e da comunhão, são unificados pelo Espírito e disci-
plinados para a santidade e se espalham para cumprir o Grande
Mandamento e a Grande Comissão como missionários ao mundo
— para a glória de Deus e a alegria deles.11

Essa definição contém oito qualificações que são úteis na


compreensão do significado de igreja local.

Membresia regenerada
Isso simplesmente significa que a igreja é formada por pessoas
que pararam de tentar salvar a si mesmas e passaram a crer em
Jesus como Salvador e Senhor.12 Obviamente há pessoas não
cristãs frequentando os cultos de adoração e outras atividades na
igreja, assim como crianças que ouvirão o evangelho e esperamos
que crerão em Cristo e participarão da vida da igreja. Resumindo,
membresia regenerada significa que os que são membros da igreja
foram regenerados pelo Espírito Santo, resultando tanto em fé
salvadora como em fé perseverante.

Liderança qualificada13
A igreja foi edificada sobre os profetas e os apóstolos.14 Esses, então,
designaram presbíteros15 e puseram em funcionamento o diaconato.16
Os dois ofícios (ou funções/posições) de liderança da igreja são
os de presbíteros e diáconos.17 Presbíteros constituem o ofício mais

11
Driscoll e Breshears, Vintage church, p. 38-9.
12
Atos 2.38: “Pedro então lhes respondeu: Arrependei-vos, e cada um de vós
seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão de vossos pecados; e recebereis
o dom do Espírito Santo”.
13
Ver mais explicações sobre a base bíblica para presbíteros e diáconos no
capítulo 3, Um homem qualificado, deste livro.
14
Efésios 2.20.
15
Atos 14.23.
16
Atos 6.1-4.
17
Filipenses 1.1.
A casa da missão: a igreja 237

elevado no ambiente eclesiástico. Eles são responsáveis por servir


a igreja mediante a liderança.18 Os diáconos devem liderar a igreja
mediante o serviço.19 Além disso, líderes leigos servem sem ocupar
uma posição ou ofício. Eu pessoalmente não gosto do termo equipe
se ele está desconectado do ofício de presbítero ou diácono. Equipe é
um termo que não encontramos nas Escrituras e suas qualificações
tendem a estar divorciadas em muitas igrejas das claras qualificações
bíblicas para presbíteros e diáconos. O que eu descobri em uma
grande quantidade de igrejas contemporâneas é que as qualificações
para a equipe não correspondem diretamente às qualificações para o
presbítero ou o diácono explícitas nas Epístolas Pastorais.

Pregação e adoração
As trezentas primeiras pessoas na nova igreja de Jerusalém se tor-
naram cristãs porque ouviram o evangelho sendo pregado.20 Essa
não foi uma experiência única, visto que esses primeiros converti-
dos continuaram a manter a disciplina de ouvir a Palavra de Deus
e responder em adoração. As igrejas cristãs primitivas continua-
ram a se reunir para adoração, instrução e edificação mútua.21

Sacramentos corretamente ministrados


A igreja é incumbida com a responsabilidade de ministrar o batis-
mo e a ceia do Senhor.22 Nesses sacramentos, a presença de Cristo
é ministrada às pessoas.

Unidade do Espírito
A igreja de Jesus Cristo ecoa a oração de Jesus, que pediu a Deus
Pai “para que todos sejam um; assim como tu, ó Pai, és em mim, e

18
1Timóteo 3.1-7.
19
1Timóteo 3.8-13.
20
Atos 2.41.
21
1Coríntios 14.26.
22
Mateus 28.19,20; 1Coríntios 11.23-26.
238 A missão

eu em ti, que também eles estejam em nós, para que o mundo creia
que tu me enviaste”.23 Isso não significa que cristãos piedosos não
possam discordar em questões específicas de doutrina ou método,
mas que todos os cristãos ortodoxos compartilham de uma unidade
fundamental em sua identidade e missão — ambas essenciais.

Santidade
Visto que a igreja foi santificada posicionalmente,24 ela busca
manter santidade prática ao se arrepender do pecado e crer nas
promessas do evangelho, e isso se mostra na obediência às Escri-
turas. A igreja repreende os que são descobertos em algum peca-
do25 e disciplina os que pecam sem se arrepender.26 A igreja deve
se destacar como diferente do mundo porque ela é santa.27

O grande mandamento de amar


Jesus resumiu a essência do desejo de Deus no que tange à for-
ma como tratamos outros seres humanos em seu segundo maior
mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.28 As
epístolas do Novo Testamento tornam esse mandamento mais
palpável quando ordenam aos cristãos que mostrem hospitalidade
a outros (Rm 12.13).29 Sempre que essas atitudes estão presentes,
aí há igreja. Onde elas estão ausentes, não há igreja.

23
João 17.21.
24
2Coríntios 5.17; Efésios 1.3.
25
Gálatas 6.1.
26
Mateus 18.15-17.
27
Filipenses 2.15.
28
Mateus 22.39.
29
Também se ordena aos cristãos para que suportem uns aos outros (Rm 15.1),
edifiquem uns aos outros (1Co 14.26), restaurem uns aos outros (Gl 6.1), perdoem
uns aos outros (Ef 4.32), submetam-se uns aos outros (Ef 5.21), considerem uns aos
outros superiores a si mesmos (Fp 2.3), digam a verdade uns aos outros (Cl 3.9),
compartilhem uns com os outros (Hb 13.16), confessem pecados uns aos outros
(Tg 5.16) e tenham unidade de pensamento uns com os outros (1Pe 3.8).
A casa da missão: a igreja 239

A Grande Comissão para evangelizar e discipular a igreja


A igreja é um lugar em que os perdidos são encontrados por Deus
por meio da proclamação e da demonstração claras do evangelho.
A igreja não só leva pessoas à conversão; ela faz discípulos, ao ensi-
nar aos seus membros como fazer tudo o que Jesus determinou.30

De onde a igreja veio?


Para responder a essa pergunta, você precisa voltar à eternidade
passada. O Deus único sempre existiu como uma comunidade de
pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essa comunidade divina era
uma comunidade em missão. Antes do início dos tempos, esse
Deus trino planejou a igreja como um povo que ele adotaria por
meio de Jesus Cristo.31 Na Criação, o Deus trino formou Adão e
Eva para dominar e reinar sobre tudo o que foi feito na esfera ter-
restre em nome de Deus.32 Em outras palavras, a primeira família
na História do mundo era uma comunidade em missão.
Quando as coisas desandaram,33 Deus julgou o mundo
com um dilúvio,34 humilhou o orgulho humano35 e então deci-
diu começar novamente com uma outra família, Abraão e sua
descendência,36 que formariam outra comunidade em missão.37
Então chegamos ao Novo Testamento, e pela primeira vez é men-
cionada a igreja (Mt 16.18). Aqui Jesus descreveu “os escolhidos”,
que estão numa missão para fazer estremecer as portas do infer-
no. A igreja é parte do plano de Deus desde a eternidade e está
conectada à missão de Deus desde a Criação. Como Christopher

30
Mateus 28.18-20.
31
Efésios 1.4,5.
32
Gênesis 1.27,28.
33
Gênesis 6.5.
34
Gênesis 7.23.
35
Gênesis 11.
36
Gênesis 12.1-3.
37
Isaías 49.6: “Também te porei [a Israel] para luz das nações, para seres a
minha salvação até a extremidade da terra”.
240 A missão

Wright estabelece: “A missão não foi criada para a igreja; a igreja


foi criada para a missão — a missão de Deus”.38 O próprio Deus
sempre foi uma comunidade em missão e sempre capacitou seu
povo a ser uma comunidade em missão.

O que a igreja faz?


Ao mesmo tempo que eu estava lendo sobre a igreja de Willow
Creek e observando a necessidade de igrejas voltadas para artistas
e atletas, comecei a ler o livro de Atos. Atos 2.41-47, em particu-
lar, me fascinou:

Desse modo, os que acolheram a sua palavra foram batizados; e


naquele dia juntaram-se a eles quase três mil pessoas. Eles per-
severavam no ensino dos apóstolos e na comunhão, no partir do
pão e nas orações. Em cada um havia temor, e muitos sinais e
feitos extraordinários eram realizados pelos apóstolos. Todos os
que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam
suas propriedades e bens, e os repartiam com todos, segundo a
necessidade de cada um. E perseverando de comum acordo todos
os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam com alegria e
simplicidade de coração, louvando a Deus e contando com o favor
de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava a cada dia os que
iam sendo salvos.

Não é exagero dizer que esses versículos arruinaram minha


vida. Eu comecei a perceber que o ministério paraeclesiástico era
uma reação ao fato de a igreja não estar realizando seu trabalho.
Comecei a ver como a igreja local é o plano eterno de Deus tanto
para edificar o seu povo quanto para evangelizar o mundo. Nesses
versículos comecei a ver tudo o que a igreja deve e pode ser:

yy cristãos edificados pelo ensino claro das Escrituras (v. 42);

38
Wright, The Mission of God, p. 62.
A casa da missão: a igreja 241

yy cristãos orando juntos fervorosamente (v. 42);


yy cristãos em temor por causa do poder sobrenatural do Espírito
Santo (v. 43);
yy cristãos não permitindo que distinção de classes os dividissem
(v. 44);
yy cristãos compartilhando suas posses com os necessitados (v. 45);
yy cristãos vivendo juntos em comunidade (v. 46);
yy não cristãos atraídos e convertidos a Cristo (v. 47).

Infelizmente, ao longo de sua história, a igreja tem dado peso


maior a uma dessas funções, em detrimento das outras. Ou seja,
infelizmente a igreja de Jesus Cristo muitas vezes vive bem abai-
xo de seu mandato divino e de sua rica identidade. Vamos agora
considerar alguns modelos de diferentes igrejas contemporâneas.

Quais são alguns modelos da igreja?39


A igreja focada no ensino (orientada para a doutrina)
A igreja do ensino concentra sua atenção no comprometimento
com o “ensino dos apóstolos” (At 2.42). Nesse modelo, o pas-
tor tem um alto título de seminário e é um ótimo mestre. Essas
igrejas se vangloriam da proclamação da doutrina e assumem a
responsabilidade de ensinar todo o propósito da Palavra de Deus.
Lecionam-se numerosas classes teológicas e pequenos grupos
operam em sintonia com o objetivo principal de educação teoló-
gica em vez de relacionamentos pessoais.
Os aspectos positivos desse modelo são que se ensina doutri-
na sólida à igreja e se encoraja os membros a estudar as Escrituras
por conta própria e pensar sobre verdades profundas por meio de
reflexão teológica consistente. O ponto fraco desse modelo é que
ele tende a produzir fariseus que são orgulhosos de seus conheci-
mentos teológicos, mas deixam de exercer compaixão com os de

39
Esta subseção é fortemente orientada pelo ensino de Richard Lovelace. Um
recurso útil é seu Dynamics of spiritual life (Downers Grove: ivp, 1979).
242 A missão

fora. Do mesmo modo, igrejas do ensino tendem a ficar presas


numa época,40 o que faz com que resistam a adaptar seu minis-
tério para alcançar a cultura emergente. Isso garante que o único
crescimento que eles têm seja biológico, originando-se de trans-
ferências de outras igrejas.41

A igreja focada na devoção (orientada para a adoração)


A igreja da devoção está comprometida com a oração, a adoração
e a demonstração do poder do Espírito Santo. O pastor é enérgico
e muitas vezes lidera na adoração corporativa e na oração, que é
o foco da igreja. Essas igrejas deleitam-se na presença de Deus,
muitas vezes com cultos que duram mais de três horas, repletos de
música, oração e palavras proféticas.42
Em virtude de sua natureza experiencial, o aspecto positivo
desse modelo de igreja é que seus membros são encorajados a ir
a Deus para buscar sua própria santificação.43 Outra grande qua-
lidade das igrejas da devoção é que elas tendem a ter uma diver-
sidade racial maior do que outras. O ponto fraco desse modelo é
que muitas vezes se conduz a igreja a um relacionamento místico
com Deus que não está fundamentado em doutrina sólida, resul-
tando em palavras proféticas e outras experiências sobrenaturais
que muitas vezes são elevadas acima das Escrituras.

40
Ed Stetzer diz que muitas tradições eclesiais estão perfeitamente contextua-
lizadas para 1954! Ouvi isso em uma conferência do ministério Atos 29 em outubro
de 2006.
41
Larry Osbourne chama essa migração de uma igreja para outra para ensino
mais profundo de “migração de maturidade”.
42
Para uma boa compreensão desse dom, ver Wayne Grudem, The gift of
prophecy in the New Testament and today, Wheaton, Crossway, 2000. [Edição em
português: O dom de profecia: do Novo Testamento aos dias atuais, trad. Emirson
Justino, São Paulo: Vida, 2004].
43
A santificação, nesse caso, é a obra progressiva de Deus e do homem, que nos
torna cada vez mais livres do pecado e mais como Cristo em nossa vida cotidiana. Ver
The gift of prophecy in the New Testament and today, Wheaton: Crossway, 2000.
A casa da missão: a igreja 243

A igreja focada na comunidade (orientada para a comunidade)


A igreja comunitária se dedica à comunhão no corpo por meio
de relacionamentos que frequentemente transcendem as barreiras
econômicas. Pastores nas igrejas comunitárias tendem mais para o
ministério de capacitação do que de ensino da Palavra. A começar
pelos pastores e a liderança, todos os membros são chamados a
“serem igreja” e não dependerem de ministros assalariados para
realizar o trabalho do ministério.44
O aspecto positivo dessas igrejas é que o ministério e os
relacionamentos são descentralizados em grupos pequenos, o
que resulta em uma vibrante “vida de corpo”. Do mesmo modo,
fica-se ciente rapidamente das necessidades dos membros, e elas
são plenamente satisfeitas na igreja comunitária. O ponto fraco
dessas igrejas é que é difícil para pessoas de fora, especialmente
não cristãs, conseguirem entrar na comunidade. Com respeito à
tomada de decisões, é quase impossível para o pastor liderar numa
igreja comunitária, porque todos se sentem habilitados a dar algu-
ma sugestão em quase toda decisão.

A igreja focada nas pessoas em busca (orientada para o evangelismo)


A igreja para pessoas em busca se dedica a compartilhar o evan-
gelho com os perdidos, tanto em particular quanto coletivamente,
para que o Senhor possa acrescentar à igreja diariamente os que
estão sendo salvos. Igrejas para pessoas em busca utilizam tecno-
logia de última geração em seus cultos de adoração para ajudar
os não cristãos a entender os princípios básicos do evangelho. Os
pastores nessas igrejas são apaixonados pelo evangelismo, e essa
paixão transborda em todo aspecto da programação da igreja.
O aspecto positivo da igreja para pessoas em busca é que
ela é muito acessível aos sem igreja e aos “desigrejados”,45 e está

A base teológica para essa ideia é o sacerdócio universal de todos os crentes.


44

As pessoas “desigrejadas” são as pessoas que fizerem parte de uma igreja


45

formalmente, mas não mais frequentam, diferentemente das pessoas sem igreja.
244 A missão

disposta a inovar para responder à cultura em constante mudança.


O ponto fraco desse modelo é que, por causa da ênfase em ser-
mões práticos, temáticos, do tipo “como fazer”, a igreja tende a
ter um quilômetro de largura e um centímetro de profundidade.
Muitas vezes “verdades difíceis” são ignoradas a fim de atender as
necessidades percebidas das pessoas.

A igreja focada na justiça social (orientada para as questões sociais)


A igreja da justiça social se dedica a servir as pessoas marginali-
zadas. Os pobres são valorizados e servidos e encoraja-se a que as
raças se reconciliem. Essa igreja muitas vezes desenvolve diferen-
tes organizações de desenvolvimento comunitário sem fins lucra-
tivos. O pastor nesse modelo tende a ser mais um plantador de
ministérios do que um capacitador dos santos.
O aspecto positivo desse tipo de igreja é que ela desafia seus
membros a amar “os mais pequeninos”, abandonando a tendência
da igreja contemporânea de se orientar por afinidade.46 A igreja
da justiça social promove um estilo de vida simples entre seus
membros, para que possam se identificar com os pobres e mar-
ginalizados. Ela também desenvolve o ministério que se esten-
de além das quatro paredes das dependências da igreja. O ponto
fraco desse modelo é que ele tende a se concentrar nos aspectos
corporativos do evangelho, em detrimento dos pessoais.47
Todos esses modelos têm qualidades, mas nenhum deles é
tudo o que a igreja deve ser. Atos 2 nos mostra que a igreja não
deve se orientar por uma função particular, mas precisa ser uma
comunidade em missão, voltada ao ensino e à oração, inspirada
pelo temor, sem segregação de classes e que compartilha as posses.

46
Afinidade é quando nos cercamos de pessoas como nós.
47
Para um recurso útil a uma melhor compreensão desse ponto fraco,
ver o artigo escrito por Steve Boyer e os presbíteros da Capitol Hill Baptist
Church in Washington, D.C., What does Scripture say about the poor?; http://sites.
silaspartners.com/partner/Article_Display_Page/0,,PTID314526|CHID598014|
CIID2376562,00.html#vi.
A casa da missão: a igreja 245

Como a igreja se reproduz?


O livro de Atos revela uma igreja centrada no evangelho por meio
do ensino (que pregava Cristo como o ápice e o herói de todo tex-
to) e missional na sua prática (que proclamava e vivia a fé cristã de
modos que eram compreensíveis a não cristãos). Visto que a igreja
do Novo Testamento está centrada na vida e na obra de Jesus, ela
leva os mandamentos dele a sério.
Consequentemente, as igrejas cristocêntricas e missionais do
século 21 devem imitar as igrejas no livro de Atos na plantação
de novas congregações aonde quer que o Espírito Santo as con-
duza. Infelizmente, ao longo do caminho a igreja parou de plan-
tar igrejas. Isso fez com que parassem de crescer e se tornassem
antiquadas, perdendo seu impacto missionário e abandonando
sua intenção original.48 Ela se distraiu da missão ao concentrar
seu foco em sua própria estrutura. Essa tentação é tão séria agora
quanto o foi na história da igreja. Driscoll escreve sabiamente
que “uma igreja precisa estar tão formalmente organizada quan-
to necessário para abraçar sua missão e continuar nela, e nada
mais”.49 Quando a igreja perde sua missão, ela perde seu alicerce,
seu poder e sua influência.
Na época do Novo Testamento, igrejas plantavam igrejas. E
elas tanto repeliam quanto atraíam não cristãos.50 Visto que igrejas
desse tipo concentram o seu foco em Jesus, não na política, no
legalismo ou no simples ativismo, os frequentadores conseguem
responder a Cristo sem serem distraídos. E como seus membros
entendem que são salvos por pura graça (não contribuíram em
nada para sua salvação), eles podem viver sua fé com segurança,

48
James Brownson expressou isso melhor: “O movimento da igreja primitiva
que produziu e canonizou o Novo Testamento era um movimento com um caráter
missionário específico”, em seu livro Speaking the truth in love: New Testament
resources for a missional hermeneutic. Christian Mission and Modern Culture
Series (Harrisburg: Trinity, 1998), p. 14.
49
Driscoll and Breshears, Vintage church, p.145.
50
Atos 5.13; 9.31.
246 A missão

sabendo que a vida perfeita de Cristo exerce substituição por sua


vida perante Deus constantemente. Do mesmo modo, os mem-
bros são humildes porque estão completamente conscientes de
suas próprias falhas e sabem que foi por seu pecado que Deus
sacrificou seu Filho. Essa segurança humilde51 é muito atrativa
aos de fora da comunidade cristã. Os que espiam por cima do
muro para analisar o cristianismo observam essas pessoas, que
são como eles, mas mesmo assim diferentes, que são seguras mas
não moralistas, que são humildes mas não deprimidas. Discípu-
los assim são atraentes porque não exalam uma imagem “eu sou
melhor do que você”, mas exatamente o oposto — uma imagem
“eu provavelmente sou pior do que você, mas Deus salva pessoas
ruins como nós”. Esse tipo de discípulo é cultivado no solo da
igreja local. É aí então que ela começa a ser povoada com não
cristãos que vêm para descobrir de onde essas pessoas vêm e por
que elas têm essa esperança. Uma vez que isso começa a aconte-
cer, tem-se uma igreja do Novo Testamento, em que se edificam
cristãos e se evangelizam os perdidos. Esse tipo de igreja plantará
novas igrejas.

51
Eu aprendi esse conceito pela primeira vez de Tim Keller.
Contextualização tem a ver com tornar a igreja o mais culturalmente
acessível e possível sem comprometer a verdade da fé cristã. O que se
busca nesse processo é a verdade atemporal e métodos temporais.
Em outras palavras, contextualizar não é tornar o evangelho
relevante, mas mostrar a relevância do evangelho. (Mark Driscoll).1

Nós reconhecemos agora que a cultura ocidental não é a esfera da


cristandade que precisa ser levada ao restante do mundo como
parte da missão de Deus; antes, é necessário apresentar o evangelho
de modos novos a uma cultura ocidental que já não compreende
ou discerne mais a atividade graciosa de Deus no mundo.
( James V. Brownson).2

Para que a mensagem cristã seja significativa para as pessoas, ela


precisa chegar a elas em linguagem e categorias que façam sentido na
sua cultura e situação de vida particulares. (Dean E. Flemming).3

Toda declaração do evangelho em palavras é condicionada pela


cultura da qual essas palavras fazem parte, e todo estilo de vida
que alega personificar a verdade do evangelho é culturalmente
condicionado. Nunca poderá haver um evangelho livre da cultura.
(Leslie Newbigin).4

1
Mark driscoll e Gerry BresHears, Vintage church, Wheaton, Crossway,
2008, p. 228.
2
James V. Brownson. Speaking the truth in love: New Testament resources
for a missional hermeneutic, Harrisburg: Trinity Press International, 1998, p. 4.
3
Dean E. fleMMing, Contextualization in the New Testament: patterns for
theology and mission, Downers Grove, InterVarsity, 2005, p. 13.
4
Lesslie newBigin, The Gospel in a pluralist society, Grand Rapids, Eerd-
mans, 1989, p. 306.
15

Os meios da missão:
contextualização

A té agora vimos que Deus chama homens preparados em seu


caráter e seus dons para viver e pregar o evangelho. Entretan-
to, um indivíduo chamado, qualificado e equipado com o evan-
gelho simplesmente não é o que basta. Ele precisa ser capaz de
pregar sua mensagem de um modo que os ouvintes possam com-
preendê-la. Isso não significa que o evangelho não tenha poder
em si mesmo e por si mesmo, como alegam alguns críticos da
contextualização;5 apenas reconhece que toda proclamação das
boas-novas de Cristo ocorre em um contexto e que é necessá-
rio explicá-las de maneiras que as pessoas imersas nesse contexto
possam entender.6

5
Para um exemplo de alguns críticos da contextualização, cf. http://teampyro.
blogspot.com, especialmente este artigo: http://teampyro.blogspot.com/2008/03/
context-and-contextualization.html.
6
Tim Keller, em “Contextualization: wisdom or compromise?” (Connect
Conference, Covenant Seminary, 2004), p. 3, escreve: “A estratégia missionária con-
siste em duas partes: a) Por um lado, certifique-se de não remover nenhum dos
aspectos essenciais da mensagem do Evangelho, tais como o ensino sobre o pecado,
a necessidade de arrependimento, a perdição dos que estão fora de Cristo e assim
por diante. b) Por outro lado, certifique-se de remover qualquer linguagem ou prá-
tica não essenciais que confundam ou ofendam a sensibilidade das pessoas que está
tentando alcançar. A chave para a missão eficaz é saber a diferença entre o essencial
e o não essencial”.
250 A missão

O que é a contextualização?
A palavra contextualização foi usada originalmente por missioná-
rios para descrever o processo de levar o evangelho a diferentes
culturas. A contextualização é a maneira que a igreja emprega
para responder com o evangelho à cultura.7 É simplesmente levar
as imutáveis boas-novas a uma cultura em frequente mudança, ao
reafirmar o significado do evangelho de um modo que seja com-
preensível àqueles que o ouvem.8
A contextualização não é uma rejeição da verdade absoluta e
objetiva do evangelho em favor da última tendência do relativis-
mo. D. A. Carson expressa isso melhor: “Nenhuma verdade que os
seres humanos possam articular poderá jamais ser articulada de um
modo transcendente à cultura, mas isso não significa que a verdade
assim articulada não transcenda a cultura”.9 Carson está mostrando
a simples realidade de que, toda vez que transmitimos verdade, faze-
mos isso em um contexto. O que significa que, embora haja apenas
um único evangelho imutável, não há somente um único modo de
transmiti-lo. Transmitir o evangelho de um modo único e estático,
sem considerar língua, costumes, política e sistemas de crença de
uma cultura, resultaria em miná-lo, subcontextualizando-o.
Entretanto, a contextualização pode ser um empreendimen-
to arriscado. Do mesmo modo que há o perigo de permitir que o
medo da cultura conduza a uma subcontextualização do evange-
lho, também há o risco de supercontextualizá-lo — submetendo-o
à autoridade da cultura. A última metade da citação de Carson
aponta para a realidade de que, embora as boas-novas existam em
um contexto, sua verdade transcende, ou ultrapassa, esse contexto.
Ele está certo. A verdade de Deus é extralocal, o que significa que
ela é a verdade para todas as épocas, em todos os lugares e para
7
Cf. http://www.pcusa.org/calltomission/presented–papers/young.htm.
8
Graeme Goldsworthy. Gospel centered hermeneutics, Downers Grove,
InterVarsity, 2006, p. 26.
9
D. A. Carson. Maintaining scientific and Christian truths in a postmodern
world, Science & Christian Belief, vol. 14 (2): 107-22, outubro, 2002; www.
scienceandchristianbelief.org/articles/carson.pdf.
Os meios da missão: contextualização 251

todas as pessoas. Acreditar que o evangelho é menos do que isso


é supercontextualizá-lo. Assim, tanto o super como o sub, com
respeito à contextualização, resultam em ministério ineficaz.
Tim Keller escreveu de forma brilhante e abrangente nessa
área. Ele diz:
Contextualizar é adaptar o ministério do evangelho de uma cul-
tura para outra ao 1) mudar os aspectos que são culturalmente
condicionados e 2) manter os aspectos que são imutáveis e bibli-
camente exigidos. A contextualização “encarna” a fé cristã em uma
cultura particular. É o processo por meio do qual apresentamos o
evangelho às pessoas com uma visão de mundo particular, de for-
ma que os “ouvintes-receptores” possam compreendê-lo.10

A definição de Keller demonstra o equilíbrio frágil na contex-


tualização. O ministério do evangelho fiel consiste tanto em firmeza
quanto em flexibilidade. Por um lado, nós “lutamos pela fé entre-
gue aos santos de uma vez por todas” ( Jd 3). Devemos permanecer
firmes e fiéis até mesmo quanto às doutrinas cristãs mais difíceis e
impopulares. Por outro lado, contextualizamos o evangelho, como
Paulo fez: “Tornei-me tudo para com todos, para de todos os meios
vir a salvar alguns” (1Co 9.22).11 Os dois componentes são cruciais.
Muitos críticos da contextualização a rotulam como con-
cessão — como se fosse simplesmente uma modificação do
evangelho para agradar a cultura.12 Essa é uma compreensão
equivocada da natureza desse princípio bíblico vital. Contextua­
lizar é falar às pessoas com seus termos, não em seus termos.
Como Keller estabelece: “Contextualizar não é ‘dar às pessoas o
que elas querem’, mas, antes, é dar as respostas de Deus (que elas não
querem!) a perguntas que estão fazendo e de maneiras que possam

10
Keller, Contextualization: wisdom or compromise?, p. 1.
11
Eu ouvi Ed Stetzer usar os termos lutar e contextualizar em um evento de
treinamento que realizamos juntos em Springfield, Missouri, em 2005.
12
Você pode assistir a alguns críticos da contextualização em http://www.
youtube.com/lanechaplin. [Mantivemos a indicação da fonte, apesar de o site não
mais estar disponível na Internet. N. do E.]
252 A missão

compreender”.13 Em outras palavras, há uma ofensividade atrativa


na contextualização. A atratividade de contextualizar o evangelho
é que de fato ouvimos as perguntas que as pessoas estão fazendo.
Somos capazes de ouvir pacientemente as esperanças, os desafios e
os medos que indivíduos numa cultura expressam por meio da arte,
do teatro, da literatura e do cinema e transmitir o evangelho de um
modo que se conecte com essas esperanças, esses desafios e medos.
Muitos não cristãos em nosso cenário cultural serão atraídos ao
evangelho à medida que compreenderem como ele se conecta a eles
das formas mais profundas possíveis. A cultura começa a enxergar
a igreja como um lugar de profundidade e honestidade, e muitos
darão ouvidos às afirmações de Cristo. Assim, as pessoas são, de
fato, atraídas à igreja em vez de repelidas por ela.
A contextualização expõe a atratividade do evangelho, mas
também revela o seu caráter ofensivo.14 Entramos na cultura para
ouvir, mas não damos nossas respostas — damos as respostas de
Deus, que, na maior parte do tempo, como Keller observa, não
são o que as pessoas querem ouvir! Assim, embora muitos sejam
atraídos ao caráter, à conduta e ao estilo de vida das pessoas na
igreja, são repelidas por causa do Salvador da igreja. À medida
que a igreja extrapola as categorias de liberal ou conservador e
outros rótulos reducionistas, ela remove pedras de tropeço à fé
cristã. Isso faz com que as pessoas se defrontem com a pedra de
tropeço, que é o próprio Jesus Cristo.15

13
Keller, Contextualization: wisdom or compromise?, p. 2.
14
1Coríntios 1.18.
15
1Pedro 2.6-8. Obviamente, os não cristãos sempre se ofenderão com os
próprios cristãos — sua conduta, suas palavras, seu estilo de vida. Assim como as
pessoas odiaram Daniel por orar três vezes ao dia (Dn 6), e assim como Pedro e
João foram perseguidos por curar e por pregar o evangelho (At 4.1-22), os cristãos
de hoje sofrerão perseguição em virtude de sua vida correta. O que quero dizer é
que, quando a igreja remove os elementos desnecessários da sua cultura, os não
cristãos conseguem lidar mais diretamente com o próprio evangelho. Em vez de ver
conservadores ou liberais, eles veem o próprio Jesus Cristo. Desse modo, Cristo, e não
a igreja, torna-se o derradeiro e maior motivo de ofensa.
Os meios da missão: contextualização 253

Dean Flemming atinge o âmago da questão quando escre-


ve: “A contextualização é o processo dinâmico e abrangente por
meio do qual o evangelho se encarna numa situação histórica ou
cultural concreta”.16 Essa definição demonstra o tipo de flexibili-
dade necessária para contextualizar apropriadamente. Adaptar o
ministério do evangelho a uma cultura requer argúcia, flexibilida-
de e criatividade. Um bom pregador, por exemplo, precisa saber
fazer a exegese não apenas do texto, mas também da cultura dos
ouvintes, a fim de ser um missionário fiel e frutífero. Devemos
levar o evangelho por meio da igreja ao mundo e evitar que o
mundo influencie a igreja e corrompa o evangelho.
Essa definição também aponta para a profundidade e a
abrangência exigidas na contextualização. Ela precisa ser ampla.
Isso envolve examinar todo o aspecto do texto pregado e a ver-
dade explicada pelos olhos daqueles que estão ouvindo essa ver-
dade.17 É por isso que um pastor missional deve sempre pregar
como se houvesse não cristãos na plateia. Ele nunca deve pressu-
por que seus ouvintes consistam apenas naqueles já convencidos
da verdade e do poder do evangelho. Precisamos literalmente
considerar tudo que fazemos pelas lentes do não cristão, sempre
fazendo a pergunta: “Como isso vai chegar aos ouvidos do não
cristão?”.18
Minhas ideias sobre levar o texto a um contexto se cristali-
zaram em uma conferência realizada no Covenant Theological
Seminary em 2004, chamada Connect Conference. Durantes o
evento, Tim Keller apresentou um artigo intitulado “Contextua-
lization: wisdom or compromise?” [“Contextualização: sabedo-
ria ou concessão?”). Esse artigo não apenas ajudou a definir a

16
Flemming, Contextualization in the New Testament: patterns for theology
and mission, p. 19.
17
Um grande recurso para essa tensão é o livro de John Stott, Between two
worlds: the challenge of preaching (Grand Rapids: Eerdmans, 1994). [Edição em
português: Eu creio na pregação, trad. Gordon Chown, São Paulo: Vida, 2003.]
18
Cf. a preocupação de Paulo em 1Coríntios 14.24,25.
254 A missão

contextualização, mas também delineou as tensões que resultam


de tentar levar o evangelho imutável a culturas mutáveis.
Nesse artigo, Keller afirma que “não há nenhuma forma de
expressão do cristianismo universal e descontextualizada”.19 Seu
ponto central, para desespero de certos cristãos fundamentalistas,20
é que a igreja sempre se mistura com a cultura. É simplesmente
impossível para a igreja não permitir que alguns aspectos da cul-
tura entrem em sua adoração ou programação.21 Ele explica:

No instante em que começamos a ministrar, precisamos “encar-


nar”, exatamente como Jesus encarnou. Práticas cristãs genuínas
precisam ter tanto forma ou contornos bíblicos quanto forma ou
contornos culturais. Por exemplo, a Bíblia claramente nos ordena
a usar a música para adorar a Deus. Mas tão logo escolhemos um
estilo musical a ser usado, participamos de uma cultura. Logo que
escolhemos uma linguagem, um vocabulário, um tipo particular
de expressão e intensidade emocional e, até mesmo, uma ilustra-
ção como um exemplo para um sermão, estamos nos dirigindo ao

19
Keller, Contextualization: wisdom or compromise?, p. 1. Brownson, em
Speaking the truth in love, p. 64, faz a mesma observação: “Não há nenhum relato não
contextualizado da narrativa do evangelho”.
20
Por “fundamentalistas”, refiro-me a pessoas que são anticultura e que ten-
dem a ver as relações igreja vs. cultura em categorias puramente preta e branca e que
acreditam que seu “tipo de igreja” tem o equilíbrio perfeito.
21
Keller cita um exemplo prático e cultural disso: “Os cristãos coreanos têm
uma grossa pré-camada de cultura confucionista (que faz da tradição humana um
ídolo e adora os ancestrais). Assim, quando eles leem a Bíblia, veem a ênfase em
submissão à autoridade, em lealdade e comprometimento. Os cristãos americanos
têm uma grossa pré-camada de individualismo ocidental (que transforma os sen-
timentos e necessidades individuais em ídolos). Assim, quando eles leem a Bíblia,
veem a ênfase na liberdade e nas decisões pessoais. Mas os cristãos coreanos poderão
encontrar no texto sagrado a fobia que os cristãos americanos têm por compromis-
so e a aversão por autoridade (isto é, onde eles se tornam seletivos com respeito à
verdade bíblica) e os cristãos americanos poderão encontrar a tendência dos cristãos
coreanos ao autoritarismo em suas instituições e à conservação de suas tradições
humanas de um modo farisaico (isto é, onde eles se tornam seletivos com respeito à
verdade bíblica). É simplesmente impossível para a igreja não ser influenciada, em
algum aspecto, pela cultura em que ela está inserida”. Keller, Contextualization:
wisdom or compromise?, p. 2.
Os meios da missão: contextualização 255

contexto social de certas pessoas e nos afastando do contexto social


de outras. No Pentecostes, todos ouviram o sermão em sua própria
língua ou dialeto. Mas desde o Pentecostes, nós nunca podemos
ser “tudo para com todos” ao mesmo tempo. Desse modo, a adap-
tação à cultura é inevitável.22

A contextualização é um processo de duas vias.23 Visto que


esse processo inclui declarar a verdade imutável de Deus, gran-
de parte da contextualização consiste em repreender os ídolos
da cultura. Do mesmo modo, quando os cristãos encarnam em
outra cultura, eles veem seus próprios ídolos. Como missionários
têm mostrado por séculos, o cruzamento de culturas é um gran-
de catalisador na santidade pessoal e eficácia ministerial deles.
O processo de contextualização permite ao missionário discer-
nir seus próprios preconceitos culturais que violem a verdade do
evangelho. Keller ressalta:

Ao passo que a Bíblia não pode ser corrigida pelas culturas não
cristãs, os cristãos podem. (Se você se recusa a permitir que seu
cristianismo seja corrigido, com isso está dizendo que pressupõe
que seu cristianismo seja perfeitamente bíblico.) Uma filosofia não
cristã pode mostrar algo que seja uma percepção bíblica, mas que
os cristãos não notaram. Esse processo nos mostra qual parte de
nossa própria estrutura é bíblica e qual parte é composta por nossa
própria bagagem cultural ou emocional.24

Keller continua: “A contextualização é o equilíbrio entre


aceitar e rejeitar, participar e questionar”.25 Há partes da cultura
que podemos aceitar e das quais podemos participar por causa da
graça comum de Deus, sustentadora e preservadora, concedida a

22
Ibid., p. 1.
23
Ibid., p. 2.
24
Ibid.
25
Ibid., p. 3.
256 A missão

todos os povos e todas as culturas. Por exemplo, em nosso cená-


rio cultural, os valores de comunidade (devemos viver a vida em
conjunto) e a justiça social (devemos servir os pobres) são valo-
res profundos para muitas pessoas que não são da fé cristã. Esses
são valores bíblicos. A igreja pode aceitar e participar do desejo
humano de se conectar e ajudar os menos favorecidos, porque tan-
to viver em comunidade26 quanto servir os pobres27 são elementos
bíblicos. Essa ênfase na comunidade e no serviço é uma das cha-
ves que explicam o crescimento de muitas igrejas da rede Atos 29
no solo duro dos ambientes urbanos. Envolvemo-nos na cultura
sabendo que ela é tanto corrompida quanto bela porque provém
do coração das pessoas — e as pessoas são criadas à imagem de
Deus, mas são pecadoras. Portanto, a cultura contém elementos
de que se pode participar, como o desejo de comunidade e justiça.
A igreja, ao compreender que é uma entidade missionária,28
precisa perceber que é indispensável que o evangelho trate das
convicções profundas que as pessoas na cultura têm sobre suas
vidas, se o objetivo é que elas ouçam o cristianismo. Para alcançar
as pessoas com o evangelho, precisamos tratar da visão de uma
pessoa sobre a natureza da verdade, da história, da ciência e, às
vezes, da política. O compartilhamento do evangelho e a prega-
ção que não tratam dos aspectos cognitivos da cultura pode mexer
um pouco com as emoções, mas talvez não transforme a visão de
mundo dessa pessoa.
Do mesmo modo, o compartilhamento do evangelho e a
pregação precisam interagir com os valores da pessoa na cultu-
ra. Isso inclui penetrar nos valores centrais dos indivíduos. Um
bom missionário examinará os elementos segundo os quais cada

26
P. ex., Atos 2.42-47.
27
P. ex., Provérbios 14.31: “Quem oprime o pobre insulta seu Criador, mas
dá-lhe honra quem se compadece do necessitado”. Cf. Gálatas 2.10.
28
Para uma boa descrição da igreja sendo enviada a um contexto, ver The
missional church in context: helping congregations develop contextual ministry, ed.
Craig Van Gelder (Grand Rapids: Eerdmans, 2007).
Os meios da missão: contextualização 257

um orienta sua vida — como investe seu tempo, seu dinheiro e sua
energia. Ele analisará as perguntas que a cultura está fazendo, a con-
tribuição que elas têm a oferecer e os elementos que transcendem
as barreiras sociais normais. Em meu contexto, isso ocorre com o
beisebol. As pessoas em St. Louis, Missouri, amam o time do St.
Louis Cardinals. Eles são cidadãos orgulhosos da Cardinal Nation.
Fico cada vez mais admirado diante de como todo esse seg-
mento da sociedade vai ao templo do St. Louis, que é o Bush Sta-
dium. Artistas, mães ocupadas com os interesses esportivos de seus
filhos, hipsters urbanos, fãs da Nascar e todos os outros grupos entre
eles são bem-informados e apaixonados pelos Cardinals. É algo
que une as pessoas em minha cidade, como se vê no tempo, no
dinheiro e na energia que devotam a isso. Um modo de contextua-
lizar em St. Louis, Missouri, é se informar a respeito de seu time de
beisebol profissional. A igreja precisa estar disposta a participar da
Cardinal Nation, equipada com um conhecimento útil do jogo, e,
especificamente, do time — que molda a paixão de tantos.
Há fatos que precisamos aceitar sobre uma cultura à medida
que o evangelho avança para dentro dela. Obviamente, há ele-
mentos na cultura que precisamos rejeitar e questionar. Os valores
ocidentais do relativismo (toda verdade é subjetiva e pessoal) e sua
prima próxima, a tolerância (não se podem julgar as convicções
de outra pessoa), são exemplos de valores que devemos rejeitar e
questionar. Contextualizar apropriadamente é discernir as con-
vicções essenciais da cultura e então levar a verdade de Deus a
interagir com elas, confrontando-as e expondo-as, além de desa-
fiar as pessoas a aceitar Cristo.
“Contextualizar é participar, questionar e recontar os ‘enredos’
e as ‘narrativas culturais’ básicos da cultura”.29 Toda cultura tem uma
história, uma trama e uma resposta às seguintes perguntas:

1) Como as coisas deveriam ser?

29
Keller, Contextualization: wisdom or compromise?, p. 4.
258 A missão

2) O que deu errado? Qual é o principal problema das coisas?


3) Qual é a solução? Ela é praticável?30

A resposta a essas perguntas forma a visão de mundo dos


indivíduos e, assim, o ethos cultural. Uma grande parte da contex-
tualização envolve conectar as respostas a essas questões funda-
mentais à pessoa e obra de Cristo. Isso é o que o apóstolo Paulo
parece estar fazendo com a igreja mais desestruturada do Novo
Testamento, a de Corinto: “Pois, enquanto os judeus pedem
sinais, e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos Cristo cruci-
ficado, que é motivo de escândalo para os judeus e absurdo para
os gentios. Mas para os que foram chamados, tanto judeus como
gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus”.31
Os judeus viam o poder como a resposta para muitas de suas
perguntas culturais. Mas a cruz era absoluta fraqueza, e ainda
ofensiva. Os gregos almejavam alcançar a sabedoria como sua tra-
ma cultural. Mas a cruz era um completo absurdo. Paulo desafia
as narrativas culturais de poder e sabedoria e então direciona as
pessoas a Cristo, que personifica o verdadeiro poder e a verdadei-
ra sabedoria.32 Na verdadeira contextualização, há tanto um sim
quanto um não, tanto uma afirmação quanto uma negação. As
perguntas que as pessoas fazem são ouvidas e tratadas, mas elas
são desafiadas pelas respostas fornecidas pelo evangelho.

Exemplos bíblicos de contextualização


Pentecostes, a Babel reversa
Muito possivelmente alcançamos o ápice da estupidez e rebelião
humanas quando tentamos construir uma torre até o céu. Deus
interrompeu esse monumento ao potencial humano confundindo
as línguas dos habitantes de Babel e, assim, criou uma multidão
30
Ibid.
31
1Coríntios 1.22-24.
32
Keller, Contextualization: wisdom or compromise?, p. 4.
Os meios da missão: contextualização 259

de culturas.33 Antes unida pela língua, a raça humana agora estava


dispersa por causa dela. Desse modo, Deus escolheu um homem
que pode ter sido um construtor de torres para ser o homem que
o Senhor abençoaria e usaria para construir uma nação que serviu
como uma luz refletindo e apontando novamente para Deus por
intermédio daqueles dispersos por Deus em Babel. Muitas vezes,
lemos a Bíblia como se a missão tivesse começado com a Grande
Comissão, em Mateus 28. A realidade é que a Bíblia é missional
desde o início. Já em Gênesis 12.1-3, Deus chama Abraão e o envia
para ser um missionário. A missão começa no Antigo Testamento,
visto que a nação de Israel deveria ser um agente missionário às
nações vizinhas.34 Mas no fim das contas, seria a igreja, o novo
Israel, que reverteria os eventos da torre de Babel.
Em Atos 2, Deus empregou línguas novamente. O Espírito
Santo encheu os discípulos e os capacitou a falar em línguas que
não haviam aprendido. Essas línguas não eram aleatórias, mas
línguas específicas das pessoas que haviam se reunido para a festa
do Pentecostes, o que possibilitou que os ouvintes entendessem as
“grandezas de Deus” em seu próprio idioma (v. 11). Esse evento
sobrenatural levou a multidão a prestar atenção ao apóstolo Pedro
quando ele pregou o sermão que resultou em três mil convertidos,
os primeiros da igreja.
Em Babel, Deus dividiu as pessoas por meio da língua. No
Pentecostes, Deus as uniu por meio da língua. O propósito da
fala em línguas em Atos não era simplesmente demonstrar o
poder do Espírito Santo (embora ela certamente tenha feito
isso). A significância maior do Pentecostes na história da reden-
ção é que Deus usou a queda das barreiras culturais e linguísticas
como um modo de lançar e estabelecer a direção e o método de
sua igreja. O Senhor permitiu que seu povo falasse de modo
33
Gênesis 11.1-9.
34
Cf. Deuteronômio 4.6-8; 1Reis 8.41-43. Para mais sobre Israel como um
missionário às nações, cf. Walter C. Kaiser Jr.. Mission in the Old Testament: Israel
as a light to the nations (Grand Rapids: Baker, 2000).
260 A missão

transcultural. Entretanto, esse evento aconteceu apenas uma vez


na história humana. Normalmente, os missionários precisam se
esforçar muito para aprender a gramática básica de uma nova
língua e, ainda mais, as nuanças do uso cultural dela. Embora o
Pentecostes tivesse um único poder espiritual, não tinha um único
foco missional. Visto que vivemos na era da igreja, uma era em
que Deus nos chama para levar o evangelho para que cruze fron-
teiras linguísticas e culturais, precisamos realizar a difícil tarefa de
contextualizar a mensagem, para que ela possa ser compreendida
na transmissão de uma cultura/língua para outra.

A natureza do Novo Testamento


Alguns argumentam que, em vez de contextualizar, tudo o que
precisamos fazer é “pregar a Bíblia”. Mas essa maneira de com-
preender a realidade ignora o fato de que a própria Bíblia é um
ato de contextualização. A Bíblia foi escrita em línguas especí-
ficas em cenários históricos e culturais determinados. Deus é o
contextualizador-mor. Ele se ajusta às nossas categorias e aos
nossos pensamentos finitos para que possamos compreendê-lo.
Cada livro do Novo Testamento, por exemplo, foi escrito a fim
de ser inteligível a um grupo específico que vivia em uma situa-
ção e uma época determinadas.35 Ao longo do Novo Testamento,
vemos autores inspirados pelo Espírito Santo declararem o evan-
gelho imutável por meio de várias metáforas, narrativas e imagens
direcionadas aos diversos cenários dos ouvintes. Como Flemming
estabelece: “Cada livro do Novo Testamento representa uma ten-
tativa do autor de apresentar a mensagem cristã de um modo que
alcance um grupo particular de ouvintes em um dado ambiente
sociocultural”.36

35
Esse também é o caso no Antigo Testamento, que se comunica com Israel
com costumes e expressões idiomáticas específicos e conceitos historicamente espe-
cíficos que eram inteligíveis àqueles aos quais ele era escrito.
36
Flemming, Contextualization in the New Testament, p. 15.
Os meios da missão: contextualização 261

A tabela de Mark Driscoll que mostro a seguir nos ajuda a


compreender com clareza ainda maior o modo com que os auto-
res de cada evangelho estavam intensamente conscientes de seu
grupo de leitores e como Deus inspirou cada homem com o mes-
mo conteúdo essencial, mas com linguagens e ênfases diferentes
— dependendo do contexto de cada um deles.37
Flemming diz também: “Os escritos de Paulo não são tanto
uma coleção de estudos doutrinários quanto uma série de conver-
sas teológicas entre o apóstolo e seus diversos grupos de leitores
nas circunstâncias da vida deles”.38 Vemos isso em Gálatas, em que
a metáfora da redenção que Paulo emprega combate diretamente
um falso evangelho, que enfatizava exageradamente a circuncisão
e a adesão à Lei. Vemos isso também em 1Coríntios, em que Pau-
lo ataca uma cultura que exaltava a habilidade retórica e os recursos
filosóficos, afirmando que o evangelho era absurdo para os gregos
e uma pedra de tropeço aos judeus. Em Filipenses, proclama-se o
evangelho por meio da linguagem política e militar, adequada a
Filipos, uma colônia romana. Em sua carta pessoal a seu principal
discípulo, Timóteo, Paulo emprega uma linguagem contábil ao
se referir ao evangelho como um “tesouro”, que se harmonizava
bem com a ideia de um jovem pastor lidando com cristãos que
estavam desperdiçando ou empregando inapropriadamente a sua
riqueza.39 Até mesmo em epístolas semelhantes, como Gálatas e
Romanos, Paulo argumenta e enfatiza pontos análogos de manei-
ras diferentes, por causa da situação na igreja a que ele está se diri-
gindo. Em Gálatas, seu tom é estridente, e ele concentra a atenção
especialmente no ponto em que seus destinatários erraram. Já em

37
Mark Driscoll, The radical reformission, Grand Rapids, Zondervan, 2004,
p. 56-7. [Edição em português: Mark Driscoll, Reformissão: como levar a mensa-
gem sem comprometer o conteúdo. Niterói: Tempo de Colheita, 2009.]
38
Flemming, Contextualization in the New Testament, p. 105.
39
William D. Mounce, em Word biblical commentary: Pastoral Epistles
(Nashville, Nelson Reference & Electronic, 2000), p. 371, observa que o termo
tesouro de Paulo (usado, p. ex., em 1Tm 6.20) refere-se a uma “propriedade valiosa
confiada a uma pessoa para cuidado seguro”.
262 A missão

Figura 15.1

Mateus Marcos Lucas João

Autor Cristão de Cristão de Médico Cristão de


origem judai- origem cristão origem judaica
ca; antes judaica, gentio e o discípulo
cobrador de primo de mais novo de
impostos Barnabé Jesus
menospre-
zado

Primeiros Judeus Romanos Gentios Gregos


destinatários
Retrato de Messias e rei Servo fiel Homem Deus
Jesus dos judeus perfeito

Genealogia Remonta a Sem genealo- Remonta a Jesus como a


de Jesus Abraão e gia, visto que Abraão, para Palavra eterna
Davi, mostra as realizações mostrar que de Deus
Jesus como o de Jesus, e Jesus era
cumprimento não sua famí- plenamente
da profecia do lia, são o que humano
Antigo Testa- importa aqui
mento

Caracterís- Aproximada- O Evangelho Aproximada- Aproximada-


ticas mente 60% mais curto; mente 50% mente 90%
notáveis do livro são poucas do livro são do conteúdo
palavras de citações palavras de é exclusivo a
Jesus com do Antigo Jesus; são deste Evan-
base no seu Testamento; menciona- gelho; sem
ensino como explica das treze parábolas ou
rabino; cerca palavras e mulheres, exorcismos;
de cinquenta costumes omitidas sete afirma-
citações do judaicos a nos outros ções “Eu sou”
Antigo não judeus; Evangelhos; de Jesus
Testamento 150 verbos costumes provam que
no presente, judaicos são ele é Deus
o que enfatiza explicados;
as ações de foco nos pri-
Jesus; 35 meiros anos
milagres; 40% e na vida
do livro são emocional
palavras de de Jesus
Jesus
Os meios da missão: contextualização 263

Romanos, o apóstolo procede mais sistematicamente, devido às


distinções teológicas que existiam entre os judeus e os gentios em
Roma. Paulo, o teólogo, é sempre Paulo, o apóstolo/missionário,
e suas cartas nunca podem ser divorciadas das particularidades
concretas de seu contexto.
Não são apenas os escritos de Paulo que foram contex-
tualizados. Tiago escreve “às doze tribos que se encontram na
Dispersão” (1.1), empregando linguagem e conceitos judaicos.
Pedro, ao escrever aos perseguidos por Nero, explica o evange-
lho particularmente em termos da esperança que ele fornece em
meio à perseguição do primeiro século. Judas desafiou seus lei-
tores a “lutar pela fé entregue aos santos de uma vez por todas”,
para que a igreja resistisse aos hereges que haviam se infiltrado
nela. As cartas do Novo Testamento, na perspectiva maior, eram
divinamente inspiradas e tinham um propósito específico, e, no
nível básico, eram contextualizadas. Acredito que essa dualidade
de distinções realmente contribui para a atemporalidade e a tem-
poralidade das Escrituras.

O exemplo de Jesus e Paulo


A Bíblia, entretanto, não é o ato máximo de contextualização.
O maior ato de contextualização de Deus é a encarnação. “E o
Verbo se fez carne e habitou entre nós, pleno de graça e de ver-
dade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai”
( Jo 1.14). Quando Jesus se tornou homem, encarnou como um
judeu do primeiro século e de fala aramaica. “Embora ele ofe-
recesse um ensino radicalmente diferente, não criou uma nova
língua para expressá-lo”.40 Jesus era praticamente indistinguível
de outros homens em seu contexto histórico. Ele vestia as mes-
mas roupas, comia a mesma comida e usava a mesma língua que
o judeu comum do primeiro século. Como afirma Mark Driscoll,

40
Flemming, Contextualization in the New Testament, p. 21.
264 A missão

“Jesus é o maior missionário que já viveu ou jamais viverá. De


fato, a encarnação de Jesus, sob muitos aspectos, foi uma missão
conduzida e capacitada pelo Espírito Santo”.41
Por causa disso, o ministério de Jesus serve de modelo para
como nós devemos fazer missão. Assim como Jesus contextuali-
zou, viveu entre pessoas e falou a língua delas, assim também a
igreja deve fazê-lo. “Desse modo, pode haver dois tipos de igre-
ja. Uma diz à sua comunidade: ‘Você pode vir a nós, aprender
a nossa língua, os nossos interesses e satisfazer as nossas neces-
sidades’. O outro tipo diz à sua comunidade: ‘Nós iremos até
você, aprenderemos a sua língua, conheceremos os seus interesses,
satisfaremos as suas necessidades’. Qual dessas abordagens imita a
encarnação?”.42 As igrejas que imitam Jesus são aquelas que estão
dispostas a encarnar o evangelho ao irem ao encontro das pessoas
onde elas estiverem. Na minha igreja-mãe, The Journey, nosso
ministério Midrash (http://midrashstl.com) se dedica a interagir
com a cultura por meio de noites mensais com exibição de filmes,
assim como fóruns mensais sobre política, ética e outros temas de
interesse da cultura mais ampla. Também estabelecemos o The
Luminary Center para a arte como um modo de restabelecer a
relação entre a igreja e os artistas em St. Louis (http://thelumi-
naryarts.com). Muitas igrejas da rede Atos 29 fazem o mesmo.43
Vemos o mesmo princípio no ministério do apóstolo Paulo.
Ele era tão zeloso para ganhar pessoas para Cristo que estava dis-
posto a adaptar seus métodos e seu estilo de vida, a fim de ser
tão cativante quanto possível. Ele também tomou grande cuidado

41
Driscoll e Breshears, Vintage church, p. 19.
42
Keller, Contextualization: wisdom or compromise?, p. 4.
43
A igreja da rede Atos 29 Sojourn Community Church, em Louisville, está
alcançando os artistas por meio do The 930 Art Center. The 930 se epenha em
produzir renovação cultural por meio das artes, recebendo exibições e concertos
artísticos, segundo a doutrina da imago Dei — cada um é criativo pelo fato de que
cada um é criado à imagem do Deus Criador. Para mais informação, ver http://
sojournchurch.com/site–management/the–930. [Mantivemos a indicação da fonte,
apesar de o site não mais estar disponível na Internet. N. do E.]
Os meios da missão: contextualização 265

para adaptar seu estilo de sermão para alcançar diferentes gru-


pos de pessoas de modo mais eficaz. Visto que estava pregando
em cenários radicalmente diferentes, Paulo adaptava e transmitia
a mensagem do evangelho de maneiras diferentes em seus dife-
rentes sermões. É interessante, por exemplo, comparar os dife-
rentes sermões de Paulo em Atos. Em Atos 13, Paulo pregou o
evangelho direta e claramente aos judeus em Antioquia, usando o
Antigo Testamento como um elemento que aponta para as boas-
novas.44 Já no capítulo seguinte, ele levou o evangelho imutável
aos gentios pagãos em Listra.45 Nesse sermão, o apóstolo implo-
rou aos habitantes da cidade que não adorassem a ele e Barnabé,
meros seres humanos, declarando-lhes que Deus não é uma parte
da criação, mas é o Criador. Ele, então, apelou a algo que todos
entendiam. Em vez de usar a verdade revelada de Deus (o Antigo
Testamento), do qual eles não tinham conhecimento algum, apelou
à sua experiência da graça de Deus por meio da chuva, que fazia
com que eles pudessem plantar, alimentar seus animais e comer.
Em Atos 17, Paulo encontrou mais um grupo singular de
pessoas que precisavam ouvir o evangelho em seu vernáculo. Ape-
sar de ficar profundamente perturbado com o pecado e a idolatria
em Atenas,46 ele penetrou na visão de mundo altamente espiritua-
lizada — mas destituída do evangelho — dos moradores da cidade
grega, ao se dirigir ao epicentro do debate religioso, o areópago.47
Paulo não simplesmente argumentou na sinagoga, como fez em

44
Paulo cita o Antigo Testamento cinco vezes durante o sermão.
45
Para um ótimo material sobre Paulo e o paganismo, ver Peter Jones,
Capturing the pagan mind: Paul’s blueprint for thinking and living in the new global
culture (Nashville: Broadman & Holman, 2003).
46
Atos 17.16: “Enquanto Paulo esperava por eles em Atenas, sentia grande
indignação, vendo a cidade cheia de ídolos”.
47
Matthew P. Ristuccia define o areópago como “a versão do primeiro século
do conselho editorial do The New York Times: um grupo de formadores de opinião
incrivelmente influentes sobre o que era considerado urbano, inteligente e chique. O
areópago vestia o manto de grandes gregos, como Platão, Sócrates e Aristóteles”. Cf.
“Mere Christianity in Athens”; http://web.princeton.edu/sites/chapel/Sermon%20
Files/2005_sermons/050105athens.htm.
266 A missão

Atos 13, nem simplesmente foi às ruas, como fez em Atos 14.
Em vez disso, procurou uma nova plataforma48 em Atenas, para
pessoas que “não tinham outro interesse a não ser contar ou ouvir
a última novidade”.49 Paulo falou a língua desses hipsters pluralis-
tas ao citar de memória dois poetas/dramaturgos/filósofos gregos:
“Nele vivemos, nos movemos e existimos, como também alguns
dos vossos poetas disseram: Pois dele também somos geração”.50
Paulo não estava apenas despejando alguns nomes aleatórios
a fim de obter certa credibilidade perante eles. Um dos filóso-
fos que ele citou foi Epimênides, que cem anos antes havia sido
chamado para ajudar Atenas durante uma terrível praga. Supos-
tamente foi seu conhecimento acerca do deus desconhecido que
levou à cura da cidade.51 Paulo, bem versado em exegese bíblica,
também era um dedicado exegeta cultural e conhecia o suficiente
de história ateniense para citar o próprio homem que apresentou
seu Deus desconhecido a eles.52 Paulo se empenhou intensamente
em declarar que Deus era Criador (v. 24), autossuficiente (v. 25)
e soberano (v. 26). Mas também dedicou-se de modo igualmente
intenso para ajudar com muita compaixão esses atenienses espiri-
tualizados — mas perdidos — a enxergar que Deus estava próximo

48
Meu amigo Jonathan McIntosh me ajudou com muitas percepções a respei-
to de Atos 17. Ele define plataforma como “permissão cultural”.
49
Atos 17.21.
50
Atos 17.28. Essas citações são de Epimênides de Creta e Arato, respec-
tivamente.
51
Cf., de Don Richardson, Eternity in their hearts: startling evidence of belief
in the one true God in hundreds of cultures throughout the world (Ventura: Regal,
2006), p. 17. [Edição em português: Fator Melquisedeque: o testemunho de Deus nas
culturas através do mundo, 1. ed., trad. Neyd Siqueira, São Paulo: Vida Nova, 1986,
com seguidas reimpressões.]
52
Cf. Mark Driscoll: “Como missionário, você precisará assistir a programas
de televisão e filmes, ouvir música, ler livros, ler revistas, participar de eventos, in-
tegrar organizações, navegar por sites e ser amigo de pessoas de quem você talvez
não goste a fim de melhor compreender indivíduos que Jesus ama” (The radical re-
formission, p. 103). [Edição em português: Mark Driscoll, Reformissão: como levar
a mensagem sem comprometer o conteúdo. Niterói, Tempo de Colheita, 2009.]
Os meios da missão: contextualização 267

deles e podia ser conhecido em Cristo.53


Paulo explica sua filosofia de contextualização nesta impor-
tante passagem em 1Coríntios:

Pois, sendo livre de todos, tornei-me escravo de todos para ganhar


o maior número possível: para os judeus, tornei-me judeu, para
ganhar os judeus. Para os que estão debaixo da lei, como se eu
estivesse debaixo da lei (embora eu não esteja), para ganhar os que
estão debaixo da lei. Para os que estão sem lei, como se estivesse
sem lei (não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei
de Cristo), para ganhar os que estão sem lei. Para os fracos tornei-
me fraco, para ganhar os fracos. Tornei-me tudo para com todos,
para de todos os meios vir a salvar alguns. Faço tudo por causa do
evangelho, para dele me tornar coparticipante (9.19-23).

O evangelho é a mensagem da nossa missão, e a contextua-


lização é o método da nossa missão. Se, como Paulo, amamos o
evangelho (v. 23), também vamos, como Paulo, contextualizá-lo
(v. 19-23). Levamos o evangelho imutável à cultura em perma-
nente mudança para que pessoas em uma época específica e uma
cultura específica possam compreender a verdade do evangelho e
ser salvas por ele.

53
Jonathan McIntosh ajudou-me a entender que, como a cultura envolve seres
humanos que são gloriosos em virtude da imagem de Deus neles, e ainda assim
corrompidos por causa do pecado, é fácil ou rejeitar completamente ou absorver
completamente a cultura. Em outras palavras, é fácil ou focar inteiramente na glória
(imagem de Deus) dos seres humanos ou inteiramente no aspecto maculado dos
seres humanos (depravação). Os conservadores tendem a focar na depravação e os
liberais, na imago Dei. Missionários eficazes conseguem manter a tensão que resulta
de se reconhecer tanto a beleza quanto a degradação.
16

As mãos da missão:
o cuidado

Q uando me mudei para St. Louis, fiquei perplexo com a beleza


dessa grande cidade. Sendo uma cidade antiga e com uma
rica história, St. Louis possui uma bela arquitetura e um esti-
lo europeu. Mas, como muitos outros municípios do cinturão da
ferrugem,1 St. Louis foi sugada para dentro do redemoinho de
expansão urbana que havia deixado a cidade dizimada, abandona-
da e imersa em tensão racial.2 Percebi que plantar uma igreja num
local com esse tipo de história e destruição exigiria um compro-
metimento com o evangelho como Palavra, mas também com o
evangelho traduzido por ações.

A grande “co-missão”
O Evangelho segundo Mateus termina com a ordem de Jesus
a seus seguidores para continuarem a obra que ele iniciou, ins-
truindo-os a:

1
N. do R.: O cinturão da ferrugem é uma região do Nordeste dos Estados
Unidos, entre as cidades de Chicago e Nova York, cuja economia se baseia especial-
mente na indústria pesada e de manufatura.
2
Cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Urban_sprawl para uma definição de “ex-
pansão urbana” em inglês.
As mãos da missão: o cuidado 269

1. Fazer discípulos de todas as nações (28.19).


2. Batizar esses discípulos em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo (28.19).
3. Ensinar os discípulos a guardar tudo que Jesus ensinou (28.20).

Não há como saber se Jesus foi tão sucinto em seu discur-


so de despedida quanto revela a versão de Mateus. Mas nosso
Senhor sabia como compactar muito significado em poucas pala-
vras, de modo que esse pode ter sido seu pronunciamento final em
sua totalidade. Se você alguma vez estiver confuso sobre qual é o
propósito de Cristo para você e a igreja, reveja as últimas palavras
de Jesus nesse Evangelho.
Aqui ele resume o papel que seus seguidores devem desem-
penhar. Precisamos fazer discípulos de todos os povos, por meio
de nosso ensino e nossa vida. Visto que as verdades do evangelho
se aplicam a todos os homens, mulheres e crianças de todas as
nações, e visto que o céu é o epítome da diversidade, o resultado
de nossa reunião de discípulos deve parecer, soar e ter cheiro de
grande diversidade.
Depois que recebemos os novos discípulos, devemos batizá-
los sob a autoridade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Isso
significa, em poucas palavras, que Jesus quer que seus seguidores
exibam exteriormente a transformação que ocorreu interiormen-
te, o que começa com o sacramento do batismo. Até aí, Jesus não
ordenou nada absurdamente controverso ou além de nossa com-
preensão. É isso que deve fazer todo seguidor de Cristo e toda
igreja que carrega seu nome.
É no terceiro ponto que um pouco de confusão parece ter
se infiltrado na igreja. A terceira instrução de Jesus é ensinar aos
discípulos tudo o que ele ordenou. Mas ensinar o quê? Especifi-
camente, Jesus diz para ensinarmos os discípulos a “guardar” tudo
o que ele ordenou. Alguns aspectos sobressaem nessa instrução.
Em primeiro lugar, observe que Jesus está chamando a igreja
a direcionar as pessoas ao evangelho antes de fazer qualquer coisa
270 A missão

com respeito ao seu comportamento. O papel da igreja não é criar


uma sociedade de indivíduos bem-intencionados e moralmente
superiores. De acordo com Jesus, ela deve promover o evangelho
e deixar o Espírito Santo realizar o trabalho de transformar cada
um de dentro para fora. Para muitas igrejas americanas, o foco
tem sido quase que exclusivamente converter pessoas a um código
de conduta cristã com a esperança de que elas se “comportem”
adequadamente para a sua própria salvação. Nada poderia estar
mais longe da intenção do evangelho da graça.
Em segundo lugar, Jesus está chamando seus discípulos a
aprenderem a guardar tudo o que ele ordenou. A palavra guardar
aqui significa obedecer (nvi, a21).3 Jesus não almeja que seus dis-
cípulos busquem uma mente cheia de conhecimentos teológicos;
ele quer que seus seguidores realmente obedeçam ao ensino reve-
lado na Palavra de Deus, isto é, que pratiquem o ensino e vivam
de acordo com ele. E a que ele deseja que obedeçamos? O que
significa guardar tudo o que ele ordenou? Jesus resumiu isso com
dois mandamentos.
Em Marcos 12.30,31, ele sintetiza a Lei ao explicar os dois
mandamentos mais importantes. “Amarás o Senhor, teu Deus, de
todo o coração, de toda a alma, de todo o entendimento e de todas
as forças. E o segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mes-
mo. Não há outro mandamento maior do que esses”. Guardar tudo
o que Jesus ordenou consistirá principalmente em amar a Deus e
as pessoas. Em outras palavras, Jesus está chamando a igreja a fazer
algo, executar a missão de Deus como sendo as mãos e os pés do
Senhor do céu e da terra ressurreto e, agora, ascendido. E não ape-
nas como um bando de renegados ministeriais. Jesus está indicando
que ele quer que a igreja, o corpo unificado de todos os cristãos,
estrategicamente busque, alcance, ensine e sirva as pessoas.
A história que conclui esta seção é sobre como a igreja The
Journey está tentando amar o Senhor nosso Deus e os nossos

3
Nota de estudo na esv Study Bible, Wheaton, Crossway Bibles, 2008.
As mãos da missão: o cuidado 271

próximos como a nós mesmos. Essas tentativas são lideradas


pelo pastor Josh Wilson, que, antes de ser ministro ordenado, era
estagiário na Journey, com um coração cheio de compaixão para
exercer o ministério da misericórdia com os pobres urbanos de St.
Louis. Grande objetivo, difícil tarefa. O que se segue é como ele,
de relutante e ingênuo estagiário, passou a fundador e diretor exe-
cutivo da Mission: St. Louis. No processo, ele se tornou um dos
líderes mais respeitados e influentes na Journey. Durante a leitura,
por favor entenda, especialmente o leitor que está tentando tratar
de questões semelhantes em seu contexto, que nossas tentativas
não são perfeitas. Nós não resolvemos os problemas de pobreza,
estabilização de bairros em conflito, desemprego e subemprego,
segregação racial séria, tráfico de drogas, de sexo e de seres huma-
nos, e os altos índices de criminalidade. Nem mesmo chegamos
perto de resolvê-los. O que fizemos foi desenvolver relacionamen-
tos com aqueles mais necessitados do poder de cura do evangelho e,
nesse processo, também prendemos a atenção de muitos de nossos
membros da Journey que trocaram sua agradável e confortável bus-
ca individual de Deus por uma oportunidade de entrar no âmago
do que significa amar seus próximos como a si mesmos.

O início
O que é servir a cidade? Essa foi a pergunta que motivou o estágio
do pastor Josh quando ele chegou à Journey. Depois de dois anos
trabalhando com crianças no centro antes de começar seu está-
gio, ele viu diretamente os efeitos da pobreza em St. Louis. Com
o peso de sua experiência, iniciou um ministério de auxílio, em
julho de 2006, na Journey. Ele e a equipe que reuniu começaram
a tentar “consertar tudo”. O próprio Josh conta: “Nós estávamos
envolvidos em todo tipo de atividade típica imaginável relacio-
nada a servir os pobres na cidade — de sopões e abrigos para
mulheres a andar pelas ruas do centro tarde da noite em busca de
pessoas desabrigadas para evangelizar, e muito mais”.
272 A missão

Depois de três meses intensos de atividades bem-intencio-


nadas, porém sem foco, Josh percebeu que sua equipe estava ten-
tando fazer uma grande quantidade de coisas boas. E eles estavam
fracassando miseravelmente. “Não tínhamos desenvolvido rela-
cionamento algum, não tínhamos compartilhado conflitos, car-
regado fardos ou realmente amado o próximo da maneira que
deveríamos. Achávamos que sabíamos do que os pobres precisa-
vam sem realmente ouvi-los, identificarmo-nos com eles ou mes-
mo conhecer qualquer um deles”, diz Josh. Ele continua: “Apesar
de todo o nosso ativismo, na verdade não estávamos realizando
nada. Não estávamos gerando mudança econômica, social ou algo
que possibilitasse o desenvolvimento deles. Nossos antes zelosos
voluntários estavam esgotados. Depois de tentar consertar a cida-
de sem uma visão ou uma missão, na verdade havíamos feito mais
mal do que bem. Nós não conhecíamos de fato aqueles que está-
vamos servindo e não sabíamos o que a Mission: St. Louis era ou
para onde estávamos indo”.

O momento da virada
Não satisfeito em cruzar os braços, Josh realizou uma introspec-
ção profunda sobre seu chamado e a missão que Deus havia posto
diante dele. Iniciou um diálogo com outros líderes em quem ele
confiava e começou um processo de crítica radical de seus esforços
ministeriais. Josh orou ao Senhor que mostrasse a ele e a sua equi-
pe bem claramente em que direção ele queria que a Mission: St
Louis seguisse. De maneira típica, a resposta de Deus surpreen­
deu Josh e a equipe.
O momento da virada veio no meio de outro projeto —
um transporte de suprimentos escolares para várias escolas ele-
mentares, incluindo a Adams Elementary, no bairro Forest Park
Southeast, localizado a menos de um quilômetro do campus-sul
da Journey na cidade. Josh relata o dia em que entregou os supri-
mentos à escola Adams:
As mãos da missão: o cuidado 273

“No dia em que entregamos os suprimentos, fomos recep-


cionados com gratidão e hospitalidade que nos impressionaram.
Depois de deixar suprimentos em algumas outras escolas, tivemos
um sentimento muito forte de que Deus queria que voltássemos
à Adams”. E, assim, começou um relacionamento entre a Adams
Elementary School e a Mission: St. Louis. Josh perguntou aos
responsáveis pela Adams sobre seus sonhos para a escola. Eles
ficaram mais que felizes em compartilhar.
A primeira resposta da diretora da escola, Jeanetta Stegall,
foi que eles achariam ótimo que a Mission: St. Louis continuas-
se ajudando com suprimentos no ano seguinte. Josh pressionou
um pouco mais, perguntando: “Se você pudesse ter qualquer coisa
que quisesse, o que seria?”. A resposta veio imediatamente. Ela
sonhava com uma escola onde as crianças (seus bebês, como ela os
chamava) fossem capazes de ler e tivessem o apoio da família em
casa para ajudá-las a aprender a ler. Ela sonhava com a presença
de homens como exemplos e modelos no bairro para ensinar os
garotos a serem homens e as garotas a exigirem ser tratadas como
mulheres. Sonhava com uma escola onde as famílias não fossem
forçadas a se mudar por causa do aluguel cada vez mais caro e da
valorização da região. Basicamente, seus sonhos eram os mes-
mos de qualquer outro administrador de escola — que a Adams
Elementary fosse um lugar onde toda criança tivesse mais do que
uma chance decente de realizar seu potencial.
A diretora Stegall continuou revelando não apenas suas sérias
preocupações com os baixos índices de alfabetização no bairro,
mas também reconheceu o aumento dos índices de deslocamento
familiar, visto que a valorização do bairro estava atingindo seu
auge. No final de 2006, Forest Park Southeast testemunhou casas
reformadas sendo derrubadas numa média de duas por dia, o que
forçou famílias que haviam passado toda a sua vida no bairro a se
mudar para um complexo subsidiado pelo governo, no programa
conhecido como Section 8, em uma área completamente diferen-
te da cidade. Stegall também chamou a atenção para a falta de
274 A missão

homens no bairro, comentando que “os únicos exemplos mascu-


linos que meus meninos e meninas veem são os traficantes nas
esquinas e os cantores de hip hop na tv”.
Enquanto ouvia, Josh começou a perceber que havia muito
mais nesse relacionamento do que ele tinha percebido inicial-
mente. Descobriu-se que a Adams Elementary era o “centro
nervoso” do bairro Forest Park Southeast. Quando havia um
evento na região, era essa a escola que promovia e sediava. Se
alguém quisesse saber os reais problemas das famílias do bairro,
era só perguntar aos professores e administradores da Adams.
Em outras palavras, se alguém quisesse causar um impacto
naquela região, teria de começar causando um impacto na
Adams Elementary.
Munidos de novo direcionamento e entusiasmo, Josh e
Mission: St. Louis decidiram pôr todos os seus ovos no mesmo
cesto. Em vez de diluir sua influência por toda a cidade, opta-
ram por investir todos os seus recursos financeiros e humanos
na Adams Elementary e em Forest Park Southeast, com a espe-
rança de que contribuiriam para a transformação daquele bairro,
depois para a transformação do bairro próximo àquele e assim
por diante.
“Tínhamos encontrado uma escola receptiva e um bairro
que estava enfrentando questões difíceis, como pobreza e valo-
rização da região”, diz Josh. “Começamos a estudar e aprender
como servir de um modo que fosse diretamente à raiz desses pro-
blemas. Paramos com todos os trabalhos que estávamos fazendo
de forma aleatória em toda a cidade e começamos a concentrar
o nosso foco e aplicar todos os nossos recursos numa comuni-
dade específica. Precisávamos de um lugar em que desenvol-
vêssemos um relacionamento, em que realmente tivéssemos a
oportunidade de conhecer as pessoas e suas necessidades e em
que pudéssemos trabalhar em direção ao verdadeiro desenvol-
vimento comunitário. Para nós, foi isso o que se tornou Forest
Park Southeast”.
As mãos da missão: o cuidado 275

Forest Park Southeast (fpse)


O primeiro obstáculo para a Mission: St. Louis foi o fato de que
os participantes sabiam muito pouco sobre o seu ambiente minis-
terial recém-encontrado. Conheciam a localização e os limites
físicos que definiam o bairro e entendiam que estavam desenvol-
vendo o que parecia ser um relacionamento muito fecundo com
a Adams Elementary. Mas era só isso, e isso não era o suficiente
para realizar um ministério eficaz orientado pelo evangelho. A
equipe começou a fazer sua lição de casa. Foi às ruas para con-
versar com os peritos do bairro — os seus moradores. Mais espe-
cificamente, procuraram pessoas que estavam morando em fpse
havia muito tempo. Coletaram informações relatadas e observa-
das, assim como dados de censos e resultados de pesquisa de fun-
cionários do Estado e da Cidade. As informações forneceram a
Josh e sua equipe uma visão reveladora do bairro no qual Deus os
havia chamado para servir.
“Cem anos atrás, St. Louis era uma cidade em constan-
te expansão populacional, com 575 mil habitantes — uma das
maiores do país”, diz Josh. Ele está certo. Durante a década de
1950, a população do município atingiu seu ápice com 857 mil
habitantes. Entretanto, o êxodo branco da maioria dos centros
populacionais americanos não foi diferente em St. Louis. Famí-
lias das classes média e alta saíram do centro urbano a fim de
desenvolver os subúrbios tanto no aspecto comercial quanto no
residencial, deixando para trás muitos habitantes de baixa ren-
da. A pobreza aumentou e os níveis de criminalidade subiram.
Os índices populacionais em 2000 atingiram novos recordes de
queda, baixando para 348 mil moradores. Hoje essa tendência
começou a mudar, com a população urbana aumentando 0,7%
entre 2000 e 2007, um fato significativo se considerarmos os
cinquenta anos anteriores de rápido declínio. Ainda assim, St.
Louis enfrenta níveis de criminalidade e de pobreza maiores do
que o estado como um todo e, em 2006, a rede de televisão cbs
276 A missão

noticiou que a cidade havia sido classificada como a mais peri-


gosa dos Estados Unidos.4
Em muitos aspectos, o bairro fpse é um microcosmo de St.
Louis. De acordo com os dados do censo de 2000, 70% dos habi-
tantes do bairro são negros. A idade média dos moradores de fpse
no ano 2000 era de 22 anos, catorze a menos do que na cidade
como um todo (36 anos). O mesmo censo mostrava que a maior
parte da área residencial ocupada em fpse era alugada (66%). Esse
índice de ocupação por aluguel é maior do que os índices cor-
respondentes tanto da cidade quanto do estado, de 53% e 30%,
respectivamente. Essas estatísticas, embora não sejam necessa-
riamente constrangedoras por si mesmas, fornecem um esboço
básico do bairro. Outras estatísticas vão mais a fundo.
Um dos índices mais chocantes que Josh e a Mission: St.
Louis revelaram forneceu uma visão assombrosa da deteriora-
ção econômica de fpse. O nível de pobreza no bairro é de 36%,
maior do que o da cidade de St. Louis, de 25%, e o do estado,
de 12%. “Em 2007, fpse tinha uma população de 3.670 indiví-
duos, 36% dos quais estavam abaixo da linha de pobreza. Nosso
alvo são os 1.321 que vivem nessa faixa, embora estejamos cientes
de que uma mudança real no nível da comunidade exigirá tam-
bém o envolvimento dos outros 2.349 habitantes. No último ano,
servimos mais de 585 pessoas, que representam mais de 44% da
população-alvo”, diz o pastor Josh.
O que torna os dados ainda mais preocupantes é o fato de
que 25% dos moradores de fpse acima de 35 anos de idade não
concluíram o ensino médio, um índice duas vezes maior do que o
do estado. As necessidades de estabilidade econômica e elevação do
nível de educação ficaram claras imediatamente. Além disso, uma
pesquisa conduzida durante o semestre do outono de 2003 pelo
Missouri Department of Elementary and Secundary Education

4
Estudo compilado por Mario Quinto Press e noticiado por cbs News; http://
www.cbsnews.com/stories/2006/10/30/national/main2135998.shtml.
As mãos da missão: o cuidado 277

[Departamento de Educação Elementar e Secundária do estado


do Missouri] fez aos pais uma série de perguntas sobre eles mes-
mos, bem como sobre sua vida familiar e o desempenho escolar de
seus filhos. A pesquisa em Adams Elementary School, localizada
no coração do bairro, foi preenchida por 189 responsáveis pelos
alunos: 82% dos participantes da pesquisa eram mães, 6% eram
pais, 3% eram avós e 8% eram outros parentes. Essas estatísticas
pareciam confirmar os relatos colhidos por Josh e sua equipe, que
indicavam que os pais (homens) de fpse não podiam ser achados
ali. Aqui estão mais algumas informações comprobatórias de que
as famílias de fpse estão seriamente necessitadas:

yy 57% dos lares contam com apenas um indivíduo assalariado e


16% não têm nenhum;
yy 25% dos pais dizem que seus filhos assistem a mais do que
quatro horas de tv diariamente;
yy 62% dos lares têm a presença de apenas um dos pais;
yy 61% das famílias não têm computador em casa;
yy 68% das famílias não têm acesso à Internet em casa;
yy 90% dos alunos se enquadram em programas de almoço gra-
tuito ou a preço reduzido.

Não é de admirar que as necessidades acadêmicas dos alu-


nos sejam enormes. A Adams Elementary faz parte da St. Louis
Public Shool System [Rede Pública de Educação de St. Louis].
Funcionários da escola relatam anonimamente que ela não alcan-
çou o Adequate Yearly Progress (ayp) [Progresso Anual Adequado]
por três anos seguidos. As pontuações em testes representam o grau
em que os alunos não estão atingindo seu potencial. Os da sexta
série tiveram uma pontuação de 15% na seção de matemática do
exame do Missouri Assessment Program (map) [Programa de Ava-
liação de Missouri] em 2007, enquanto a média do estado era de
49%. Além disso, esses mesmos alunos obtiveram uma pontuação
de apenas 5% na seção de artes comunicativas, enquanto a média
do estado era de 44%. As necessidades acadêmicas dos alunos da
278 A missão

Adams Elementary não são satisfeitas, o que os põe em risco de


baixo desempenho e, posteriormente, de evasão escolar. “Juventu-
de em risco”,5 como definida pela National Association for Gifted
Children [Associação Nacional para Crianças Capacitadas], des-
creve “alunos cujas necessidades econômicas, físicas, emocionais ou
acadêmicas não são satisfeitas ou servem como barreiras ao reco-
nhecimento de talento ou desenvolvimento, realidade essa que os
põe em perigo de baixo desempenho ou evasão escolar”. Os alunos
da Adams Elementary School se enquadram nessa definição.
Com uma compreensão muito clara de algumas das neces-
sidades mais urgentes em fpse, a Mission: St. Louis começou a
desenvolver estratégias para satisfazê-las.

Satisfazendo as necessidades
A soma de todas as evidências apontou três áreas específicas que
precisavam de atenção em fpse. A Mission: St. Louis começou a
desenvolver estratégias e programas para tratar da subeducação,
da capacitação centrada no evangelho e da instabilidade econô-
mica. O resultado agora é que a Mission: St. Louis dirige pro-
gramas baseados em indicadores de êxito mensuráveis e com as
melhores práticas, assegurando, assim, uma maior probabilidade
de alcançar os resultados mais próximos do ideal. A seguir está
um vislumbre de como a Mission: St. Louis vem lidando com
algumas das necessidades mais urgentes em fpse.6

Educação
Programa de leitura matinal
O Mourning Reading Program (mrp) [Programa de Leitu-
ra Matinal] foi planejado pelo especialista em leitura de nível

5
Cf. http://www.nagc.org, http://txgifted.org/gifted–glossary, em inglês.
6
Para mais informação detalhada sobre esse e outros ministérios da Mission:
St. Louis, cf. http://www.missionstl.org.
As mãos da missão: o cuidado 279

universitário e membro da Journey, Brandy Greiner, em conversa


com os auxiliares de alfabetização nas escolas públicas de St.
Louis. O programa usa os seis pilares da alfabetização: percepção
de fonemas, fonética, fluência, vocabulário, ritmo e compreensão
de leitura. Os voluntários passam a maior parte dos vinte e cinco
a trinta minutos lendo com as crianças e, uma vez por mês, dão
a cada aluno um livro para ler em casa. Durante o tempo res-
tante com os alunos, os voluntários se concentram em ensinar
percepção fonética e habilidades de compreensão de nível mais
elevado, que os alunos talvez não recebam em casa nem com tanta
frequên­cia na sala de aula.

Adote uma sala de aula


Esse programa é resultado direto de um pedido por parte de
professores e administradores na Adam Elementary para aju-
dar nas salas de aula. Visto que as pesquisas mostram de forma
convincente que salas menores produzem melhor aprendizado,
Adopting-a-Classroom [Adote-uma-sala-de-aula] provê aos
professores um voluntário dedicado a uma sala de aula específica
por ao menos uma hora por semana.7

Capacitação
Um Natal acessível
O evento de capacitação que é a marca registrada da Mission:
St. Louis é An Affordable Christmas [Um Natal Acessível]. Nos
anos anteriores, a Journey participava em programas associados
aos feriados que se baseavam inteiramente em doações. Os volun-
tários traziam os donativos e os entregavam às famílias, como pre-
sentes. O pastor Josh percebeu algo que não estava bem certo
numa dessas entregas. “Eu notei que as crianças, as mães e as avós

7
F. Mosteller, The Tennessee study of class size in the early school grades,
The future of children: critical issues for children and youths, vol. 5 (2): 113-27, 1995.
280 A missão

ficavam extasiadas — sorrindo, rindo, chorando, demonstrando


todas as emoções. Mas os pais, se por acaso estivessem lá, procu-
ravam a melhor maneira de fugir pela porta dos fundos”, diz. O
que Josh constatou foi vergonha. Embora a doação fosse útil em
proporcionar um Natal decente a muitas crianças, ela era terrível
quanto ao aspecto de edificar e capacitar as pessoas em geral e os
homens em particular.
Inspirado por um programa desenvolvido por Bob Lupton,8
Josh começou a mudar as coisas. Em parceria com o Department
of Family Services [Departamento de Serviços para a Família], a
fim de identificar lares de baixa renda em fpse e bairros vizinhos
e usando centenas de doações feitas por membros da Journey e
participantes regulares, o An Affordable Christmas se concentra
em capacitação em vez de em doações. Ele provê aos pais de baixa
renda uma oportunidade de comprar e adquirir presentes para seus
filhos a um baixo custo. O Natal se transformou, para essas famílias,
de um feriado repleto de temor, preocupação e decepção em uma
data de esperança, alegria e orgulho. E todo o dinheiro coletado
com a venda dos brinquedos volta diretamente para o bairro. Em
2008, o terceiro An Affordable Christmas serviu oitenta famílias e
trezentas crianças, com a ajuda de 605 voluntários.

Cruze a rua
Dois dias por semana, os voluntários andam pelo bairro para conhe-
cer pessoas por meio de um programa chamado Cross the Street
(cts) [Cruze a Rua]. Os seis a oito voluntários se reúnem em uma
casa do bairro e, por aproximadamente noventa minutos, envolvem
membros da comunidade em uma conversa real e significativa.

8
Robert D. Lupton, Compassion, justice and the Christian life: rethinking min-
istry to the poor, Ventura: Regal Books, 2007. Anteriormente publicado como And
you call yourself a Christian.
As mãos da missão: o cuidado 281

Estudo bíblico comunitário


Depois de andar pelo bairro durante o Cross the Street, os voluntá-
rios se encontram para o Community Bible Study — cbs [Estudo
Bíblico Comunitário]. E estudo bíblico é feito em casas de família
em fpse e é liderado por pessoas locais sempre que possível. Nesses
encontros semanais, são estudados livros inteiros da Bíblia, trecho
por trecho, com o auxílio de líderes voluntários da Journey.

Desenvolvimento econômico
À medida que Josh trazia as necessidades de fpse à nossa aten-
ção, buscávamos abordagens originais para satisfazê-las. Uma
das ideias que surgiram dessa reflexão foi levar nossos pequenos
grupos para fazer missão em fpse. Começamos um novo culto
em um espaço recentemente reformado em nosso campus-sul da
cidade e convidamos quinze de nossos grupos para se comprome-
terem com esse culto. O propósito era que participassem, juntos,
no culto normal, em três finais de semana por mês, e servissem no
culto em fpse no quarto fim de semana. Queríamos poder dizer
uma vez por mês: “A igreja saiu do templo”.
O primeiro Commmunity Working Day [Dia de Trabalho
Comunitário] foi um sucesso extraordinário. Depois de conversar
com uma creche local, que tinha uma lista enorme de necessidades
de melhorias, a agenda foi estabelecida. Mais de 150 voluntários
trabalharam todo aquele domingo substituindo janelas, pintando
salas, instalando tapetes, limpando o jardim e construindo um par-
quinho de diversões para a creche. No total, mais de trinta mil dóla-
res em trabalho e materiais foram doados naquele dia. As melhorias
não somente produziram um sentimento de satisfação nos voluntá-
rios e nos moradores de fpse, mas muitos que não tinham conexão
anterior com o bairro viram pessoalmente as necessidades dessa
comunidade carente. O dia de trabalho também enviou a mensa-
gem de que fpse é uma região de pessoas que estão lutando para
revitalizar e cuidar de sua comunidade.
282 A missão

No futuro, estão agendados mais dias de trabalho para ajudar


os proprietários de imóveis a manter suas casas e melhorar o bairro
por meio de projetos de embelezamento. Enquanto escrevo, há
planos em andamento para estabelecer um comércio de café e ros-
quinhas no bairro, a fim de prover empregos e um abrigo seguro
para que se desenvolvam autênticos relacionamentos comunitá-
rios. O objetivo final é capacitar os bairros a serem comunidades
economicamente saudáveis e sustentáveis.

Amor a Deus e ao próximo


A Mission: St. Louis não é perfeita. Foram necessários anos
de tentativas fracassadas realizando todo tipo de ministério de
auxílio antes que percebêssemos que algo mais específico era
necessário, não apenas para fpse, mas também para a Journey.
“Precisávamos de foco, de direcionamento”, diz Josh. “O nosso
coração estava voltado para o mundo todo, mas não tínhamos
olhos para ver o que estava em nosso próprio quintal. Uma vez
que Deus ligou a luz para nós e começamos a enxergar que nos-
sos recursos são mais bem empregados em relacionamentos de
longo prazo, temos conseguido ao menos atrair a atenção para
as dificuldades que as pessoas têm para viver em fpse. Também
temos conseguido servir algumas famílias a partir de uma moti-
vação centrada no evangelho”.
As igrejas se sentem tentadas a concentrar seu foco ou na
justiça social ou no evangelismo. Afinal de contas, os cristãos se
inclinam naturalmente para um ou outro lado como a principal
expressão do evangelho. Mas o evangelho promove ambos; ele é
evangelismo e justiça social. É amar a Deus e amar ao próximo.
É uma linha na qual é difícil se equilibrar sem pender para um
lado. A Mission: St. Louis tem se mantido firme nessa tensão,
ao empregar pessoas que representam ambas as extremidades do
espectro. Alguns membros da equipe são mais orientados pelo
evange­lismo, enquanto outros são mais orientados pela justiça
As mãos da missão: o cuidado 283

social. Os resultados têm sido promissores. Ao terminarmos esta


seção sobre a missão de Deus, quero que você conheça um mora-
dor de longa data de fpse. O senhor Ben Jefferson (nome alte-
rado a pedido) é um homem não muito diferente do apóstolo
Paulo em muitos aspectos. É um homem cuja vida foi marcada
pela hostilidade ao evangelho e àqueles que o promoviam. Era
um rebelde que não prestava contas a ninguém e fazia o que
queria, quando queria.
Então ele conheceu Jesus. Esta é sua história.
A história, na verdade, começa não com Ben Jefferson, mas
com um voluntário da Mission: St. Louis chamado James Allen.
James se juntou à Mission: St. Louis porque gostou da ideia de
entrar na área deteriorada da cidade e tinha esperanças de par-
ticipar de sua restauração. Entrou em fpse como um voluntário
do Cross The Street [Cruze a Rua], com uma visão de minis-
tério quase “polianesca”, além de óculos cor-de-rosa firmemente
grudados ao rosto. Como um homem branco de meia-idade que
ganha a vida como comerciante, James é, sob muitos aspectos, a
última pessoa que se esperaria ver andando pelas ruas de fpse.
Se a cor da pele não o destacava, certamente seu porta-canetas
de bolso chamaria a atenção para ele (sim, ele realmente usa um
acessório desses!).
Mas James aprendeu rapidamente que uma coisa é valori-
zar o desenvolvimento comunitário em sua mente e outra total-
mente diferente é valorizá-lo com seus pés andando para cima e
para baixo em algumas das ruas mais perigosas da cidade. “James
me disse que estava aterrorizado quando começou a andar pelas
ruas de fpse”, conta o pastor Josh. “Ele estava temendo por sua
segurança física, sem dúvida, e, depois de conhecer Ben Jefferson,
passou a temer por sua segurança espiritual”, Josh comenta rindo.
Mas na época James não estava achando graça. Ele conheceu
Ben Jefferson em uma de suas duas caminhadas semanais pelo
bairro. Ben era uma presença temida no bairro. Com sessenta e
poucos anos, era conhecido por sua personalidade forte, o que é
284 A missão

uma forma educada de dizer que ele tinha a boca de um marujo


francês e xingava qualquer um que chegasse muito perto de sua
propriedade. Como um velho centurião mal-humorado, Ben se
sentava em sua varanda durante toda a primavera e todo o verão,
tomando conta de sua propriedade, fazendo descer vodca e gim
puros garganta abaixo e fumando cigarros da marca Kool. Inva-
sores em potencial também eram mantidos afastados pelo portão
trancado na calçada em frente à sua casa.
Enquanto se familiarizava com o bairro, James percebeu que
Ben estava sempre em sua varanda, não importava o dia ou o
horário em que passasse por ali. Decidiu então iniciar uma con-
versa com Ben. “Olá. Meu nome é Jim. Eu gostaria de falar com
você sobre Deus”, ele disse. Foi uma frase inicial ousada, recebida
por uma resposta ainda mais ousada de Ben. “Você não quer falar
comigo sobre Deus”, bradou, “porque eu sou o Diabo!”. James
quase borrou as calças, mas mesmo naquele momento de medo e
desconforto sabia que voltaria.
Ao pedir a outros moradores do bairro mais informações
sobre Ben, James descobriu que a esposa o havia deixado fazia
pouco tempo. Ele tinha seis ou sete filhos e mais de vinte netos.
Era viciado em crack havia pelo menos vinte anos e também abu-
sava do álcool. Estava desempregado, escravizado por maus hábi-
tos e escolhas ainda piores, e irritado. James continuou passando
pela casa de Ben duas vezes por semana e toda vez tentava con-
versar com Ben sobre Deus. Ele era recebido com insultos e, uma
vez, com uma garrafa vazia de gim arremessada em sua direção.
James não se deixou intimidar e continuou tentando puxar uma
conversa significativa com esse homem.
Passados três meses, James se surpreendeu certo dia, em
que Ben lhe deu permissão para abrir o portão e entrar em seu
jardim. James agarrou a oportunidade. Ele não teve permissão
de subir à varanda, mas, em sua mente, uma vitória, mesmo que
menor, era ainda assim uma vitória. Os dois homens iniciaram
uma conversa vaga sobre o propósito de James de estar no bairro
As mãos da missão: o cuidado 285

e assuntos gerais relacionados à espiritualidade e à Bíblia. James


foi embora animado. Na visita seguinte, Ben convidou James para
a varanda e, enquanto os dois conversavam, James pôde compar-
tilhar a história da transformação de seu próprio coração em seu
encontro com Jesus. No decorrer da conversa, viu o comporta-
mento de Ben suavizar e sua linguagem se tornou mais pessoal e
vulnerável, o que permitiu a James espiar dentro da confusão da
vida desse homem intratável. Foi um momento belíssimo!
James descobriu que Ben era um homem profundamente
ferido. Sentia falta de sua esposa. Estava muito desapontado e
gravemente preocupado com a segurança física e a saúde de seus
filhos, atolados no tráfico de drogas. Ele queria ter um emprego
novamente. Estava cansado de ser escravo do crack e do álcool.
Em resumo, sentia-se miserável. Seu exterior rude e bruto era o
resultado de más escolhas, rebeldia, amargura, vícios, raiva, ceti-
cismo e desesperança e, quanto mais ele falava, mais James per-
cebia que Ben precisava mais do que de um amigo, de um bom
conselho e de um ouvido aberto. Essas coisas eram importantes,
mas o que Ben precisava era de um resgate. Mais especificamen-
te, o que Ben precisava era de um Resgatador.
Assim, James compartilhou o evangelho — o verdadeiro evan-
gelho da graça. Falou sobre como podemos experimentar libertação
de nossos pecados e de nossas más escolhas por causa do que Jesus
fez na cruz. Explicou que o cristianismo não tem a ver com o quan-
to podemos acumular a fim de agradar a Deus; antes, tem a ver com
Aquele que viveu uma vida perfeitamente obediente por causa da
nossa incapacidade de fazê-lo, Aquele que morreu uma morte em
nosso favor para que pudéssemos objetivamente conhecer o amor
de Deus por nós e subjetivamente experimentar o perdão.
No meio da conversa, em algum lugar no fundo de sua men-
te e ainda mais fundo em seu coração, Ben desistiu. Ele chegou ao
fim de si mesmo. Desceu da exaustão do esforço próprio, admitiu
sua maldade e, como uma criança que precisa de conforto quando
esfola o joelho, aceitou o abraço de urso de seu Pai.
286 A missão

As coisas começaram a mudar rapidamente para Ben. A


chama do evangelho não só acendeu no seu coração e na sua
mente, mas ela de fato acendeu os seus ossos. Como Jeremias,
foi chamado para fazer algo com a salvação que ele havia expe-
rimentado. Em quatro meses, estava completamente sóbrio
(e ainda está!), sua esposa havia voltado para casa, ele estava
empregado e frequentando a Journey, além de ler a Bíblia avida-
mente. “Eu já tinha ouvido falar de Gênesis e Apocalipse”, disse
com um sorriso, “mas nada do que está entre um e outro!”.
Ben também estabeleceu uma conexão imediata entre seu
novo amor por Jesus e seu amor de longa data por seu bairro. Ele
veio com uma proposta para a Mission: St. Louis. “Precisamos
mudar esse estudo bíblico para a minha casa”, disse resolutamente
certo dia a Josh. Assim, foi o que aconteceu. Acabara de nascer ali
um líder local e ele passou a receber dez pessoas toda terça-feira
para um estudo bíblico em sua casa. Começou com Ben, alguns
vizinhos e um bando de garotos brancos do seminário. Certa noite,
depois de mais alguns vizinhos do FPSE terem aceito o convite de
Ben, ele falou ao grupo como um profeta inspirado. “O que nós
estamos fazendo aqui não faz nenhum sentido se essas pessoas
brancas continuarem vindo aqui e indo às ruas para conhecer
pessoas e nós não fizermos a mesma coisa”. Ele havia lançado o
desafio. Em alguns meses, a casa de Ben já não comportava todos
os que a frequentavam nas noites de segunda-feira. “Havia pessoas
em pé na varanda, ouvindo e olhando através das janelas abertas”,
descreve o pastor Josh. “Era algo muito bonito”. Enquanto escre-
vo, o estudo bíblico em FPSE tem 75 frequentadores nas noites
de segundas e terças-feiras.
Desde essa conversa, a vida não tem sido fácil para Ben.
Sua saída do reino da morte para o reino da luz não resultou
numa vida confortável e totalmente bem resolvida. O casamento
às vezes ainda é uma luta. Ele continua sóbrio, mas seus filhos
não necessariamente abandonaram os vícios. Ben até mesmo
foi repreendido por alguns voluntários da Mission: St. Louis
As mãos da missão: o cuidado 287

por ser duro demais com alguns dos bandidos que está tentando
alcançar — isso é que é ironia! A vida não é perfeita para Ben.
Mas é vida. Vida real, com propósito, relacionamentos significa-
tivos, libertação e perdão dos pecados e contentamento que vem
com a percepção de que suas más escolhas, e até mesmo suas
boas ações, não têm a última palavra sobre como tudo termina.
A última palavra pertence a Jesus. E Ben pertence a ele.
17

A esperança da missão:
transformação da cidade

M eu amigo Matt Carter1 e eu muitas vezes falamos sobre nosso


desejo de sermos “bons pregadores em ótimas igrejas” em
vez de apenas sermos “ótimos pregadores em uma boa igreja”.
Essa distinção é o desejo do coração dos homens no ministério
Atos 29: mostrar a beleza do evangelho por meio da igreja, não
apenas as habilidades de comunicação do pastor.2 Nessa mesma
linha, desejamos não apenas ter ótimas igrejas, mas ter cidades
melhores. “Sua cidade se lamentaria se sua igreja deixasse de exis-
tir?”. Essa é uma das perguntas mais cruéis e desafiadores que
processei ao longo dos últimos anos. Muitas de nossas igrejas
indicam em suas declarações de missão que seu desejo é ser uma
igreja não apenas na cidade, mas para a cidade.
A realidade é que algumas cidades derramariam lágrimas se
nossas igrejas deixassem de existir — lágrimas de alegria! Elas
não veem a igreja, mesmo em sua forma mais pura, como uma
bênção para a cidade, mas sim como uma maldição. Essa é a rea-
lidade que Paulo e Silas enfrentaram quando foram a Tessalôni-
ca. Aos judeus que haviam se reunido na sinagoga, Paulo pregou

1
Matt é o pastor de uma igreja da rede Atos 29 chamada Austin Stone Com-
munity Church; http://www.austinstone.org.
2
Cf. Efésios 3.10: “... para que agora a multiforme sabedoria de Deus seja
manifestada, por meio da igreja, aos principados e poderios nas regiões celestiais”.
A esperança da missão: transformação da cidade 289

o foco do Antigo Testamento — o sofrimento e a ressurreição


de Cristo.3 Muitos abraçaram a fé nesse dia por causa da exege-
se centrada no evangelho a partir das Escrituras, o que acontece
regularmente quando se expõe a Cristo como o herói da Bíblia.
Outra consequên­cia dessa pregação claramente centrada no evan-
gelho, entretanto, foi que um tumulto resultou do fato, e muitas
pessoas naquela grande cidade queriam matar os dois.4
Eu certamente reconheço que, quando uma igreja proclama
nitidamente a verdade da Palavra de Deus, muitas pessoas em nos-
sas grandes cidades nos odiarão e desejarão nosso fim por causa
de nossa pregação das boas-novas. Meu propósito neste capítulo é
falar sobre o outro lado da equação: embora o anúncio do evange-
lho possa incitar tumulto na nossa cidade, nossa proclamação do
evangelho pela demonstração pode de fato atrair pessoas a ele.

A realidade das cidades


Vamos examinar alguns fatos sobre como as cidades funcionam
em nossos dias ao redor do globo. O crescimento delas é uma das
mudanças mais notáveis nos últimos cem anos.
Cerca de metade da população mundial vive em cidades. Em
1880, apenas 3% da população do mundo vivia em áreas urbanas.5
Mais de 160 mil pessoas se mudam para as cidades todos os dias.6
Há apenas dois séculos, havia somente duas cidades com mais
de um milhão de habitantes no mundo — Londres e Pequim. Em
1950 havia oitenta; hoje há mais de trezentas. A maioria dessas
cidades se situa na África, na Ásia e na América Latina e mui-
tas têm populações que foram multiplicadas por dez desde 1950.
Brasília, a capital do Brasil, não existia em 1950 e agora tem mais
de dois milhões de habitantes.

3
Atos 17.1-4.
4
Atos 17.5-10.
5
Ver http://www.prb.org/Educators/TeachersGuides/HumanPopulation/
Urbanization.aspx.
6
Ver http://www.unep.org/geo2000/english/0049.htm.
290 A missão

Megacidades com mais de dez milhões de habitantes são um


fenômeno recente. A primeira cidade a alcançar esse tamanho foi
Nova York, por volta de 1940. Havia doze megacidades em 1990
e, no momento da publicação deste livro, há 25. Por volta de 2015,
os especialistas acreditam que o número de megacidades globais
será de quase quarenta, 23 das quais na Ásia. Em contraste com
isso, em 1800 a população média das cem maiores cidades do
mundo era de menos de 200 mil habitantes, mas agora é de mais
de cinco milhões.7
Embora algumas pessoas enxerguem essa tendência à urba-
nização como um fenômeno ruim e as cidades como inerente-
mente sujas e perigosas, a migração para elas na verdade é um
aspecto positivo da globalização. A concentração das pessoas em
cidades provê oportunidades para melhorar a saúde e a qualidade
do ambiente. A urbanização é ambientalmente e economicamen-
te muito mais eficiente.8

Postura urbana
Quando o povo de Deus se viu em uma terra estrangeira por cau-
sa de seu pecado, sentiu-se tentado a não se envolver na cidade, a
evitar um possível contágio e por isso a se afastar da cultura e das
pessoas que viviam nela.

Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os


que estão no exílio, aos quais deportei de Jerusalém para a Babi-
lônia: Edificai casas e habitai nelas; plantai pomares e comei do
seu fruto. Casai-vos com mulheres e gerai filhos e filhas; também
tomai esposas para vossos filhos e dai vossas filhas em casamento
para que tenham filhos e filhas. Multiplicai-vos ali e não venhais

7
Cf. http://www.ippnw.org/Resources/MGS/V6N2Schubel.html, em in-
glês. [Mantivemos a indicação da fonte, apesar de o site não mais estar disponível
na Internet. N. do E.]
8
Cf. http://www.pubmedcentral.nih.gov/articlerender.fcgi?artid=1118907,
em inglês.
A esperança da missão: transformação da cidade 291

a diminuir. Empenhai-vos pela prosperidade da cidade, para onde


vos exilei, e orai ao Senhor em favor dela; porque a prosperidade
dela será a vossa prosperidade ( Jr 29.4-7).

A partir dessa passagem, penso que podemos reunir alguns


princípios que nos ajudarão no nosso empenho de levar o evange-
lho a nossas respectivas cidades.

Finque raízes profundas na cidade


Por meio dos profetas, Deus instrui seu povo em uma cidade
estrangeira a construir casas em que eles vão morar, a plantar jar-
dins e a comer das suas colheitas. Leva muito tempo construir
uma casa. Leva muito tempo plantar e cultivar um jardim. Parece-
me que Deus está ordenando a seu povo que se envolva profunda-
mente na estrutura daquela cidade pecaminosa.
Construir uma casa é escolher ser vizinho de pessoas da
cidade. Uma das coisas mais trágicas que tenho ouvido repetida-
mente é que cristãos são péssimos nas gorjetas. Tenho falado com
muitos garçons e garçonetes ao longo dos anos que confirmaram
que as pessoas de quem eles menos gostam são os cristãos, porque
tendem a ser rudes, exigentes e mesquinhos. Se isso é verdade
sobre nós quando comemos por duas horas em um restaurante,
como não devemos ser no local em que moramos na maior parte
das horas de nossos dias? Se não exercemos a generosidade nas
gorjetas, que tipo de vizinho somos?
É estranho que muitos cristãos doem tanto dinheiro todos
os anos a empreendimentos missionários no exterior sem
jamais considerarem a necessidade de serem missionários em
sua própria vizinhança. O que aconteceria se realmente come-
çássemos a nos ver como missionários às pessoas que vivem
perto de nós ao sermos bons vizinhos? Como seria se todos
na vizinhança soubessem que, caso houvesse a necessidade de
reconciliação, compaixão, hospitalidade ou refúgio, poderiam
vir a nossa casa para encontrar tudo isso? O que aconteceria se
292 A missão

realmente tentássemos ser sal e luz9 às pessoas que vivem perto


de nós?
A instrução de plantar um jardim poderia se aplicar à nossa
própria necessidade de participar em “produzir” para a cidade. Uma
aplicação disso é que nós realmente podemos contribuir para os
bens cultuais da cidade ao nos envolvermos no solo do que faz a
cidade ser cidade. Como Richard Mouw observa, “o mandamento
de ‘encher a terra’ (Gn 1.28) não é essencialmente um mandamento
reprodutivo. ‘Encher’ a terra é uma atividade cultural”.10 Esse man-
damento nos ordena a cultivar os materiais brutos da terra e a sub-
jugá-los e exercer domínio sobre eles no desenvolvimento de uma
cultura que glorifique a Deus. Este é o âmago do que significa ser
cristão numa cultura: participar na criação e no desenvolvimento de
relacionamentos, organizações, associações acadêmicas, sindicatos
e negócios que glorifiquem a Deus.
Considere as implicações disso. Quando há cristãos abrindo
negócios, podemos prover empregos a pessoas na cidade assim
como bens e serviços necessários que lhes possibilitem desfrutar
a vida juntos. Quando há cristãos trabalhando nas universida-
des, podemos influenciar jovens que serão os transformadores e
influenciadores da cidade nas gerações futuras. Quando há cris-
tãos trabalhando em corporações e na mídia, podemos estar no
centro daquilo que exerce grande influência em nossas cidades.
Produção cultural se equivale a influência cultural. “A cultura,
então, é qualquer e todo empenho e labor empregados sobre o
cosmo para revelar seus tesouros e suas riquezas e trazê-los ao
serviço do homem para o enriquecimento da existência humana
com vistas à glória de Deus”.11
Temos a oportunidade de entrar no próprio solo em que
crescem os catalisadores culturais de nossas cidades quando nos

Cf. Mateus 5.13-16.


9

10
Citado em Henry R. Van Til. The Calvinistic concept of culture (Grand
Rapids: Baker, 1972), p. xiii.
11
Ibidem. p. 29-30.
A esperança da missão: transformação da cidade 293

envolvemos em todas as diversas esferas da cultura. Isso significa


que as pessoas em nossas igrejas devem ser professores em univer-
sidades locais, pesquisadores e médicos em nossos hospitais locais,
músicos em bandas locais, artistas em galerias locais, escritores na
mídia local e políticos no governo local. Quando participamos da
cultura, obtemos o poder de que agora desfrutam muitos que são
hostis à igreja. A probabilidade de que muitos na cidade ouçam
a mensagem da igreja aumentará porque os membros investiram
tanto de si mesmos e de forma tão profunda na cidade. Podemos
passar de só e sempre protestar contra tudo o que está errado na
cidade a de fato produzir justiça nela. Podemos passar do grupo
dos muitos que são conhecidos como fuçadores de problemas na
cidade ao grupo daqueles que são reconhecidos como os solucio-
nadores dos problemas na cidade.

Multiplique-se na cidade
No que tem sido chamado de o mandato cultural, Adão e Eva
foram chamados a frutificar, multiplicar e encher a terra — a gerar
filhos que amem a Deus e a desenvolver uma cultura que o glorifi-
que.12 Certamente esse mandato era singular e restrito em alguns
aspectos a Adão e Eva, como os primeiros pais da raça humana, e
não deve ser compreendido como uma implicação para que toda
família tenha muitos filhos. Entretanto, é interessante que Deus
instrua seu povo por meio de Jeremias a ter filhos em uma cidade
hostil como um modo de influenciá-la para o bem. Não seria o
caso de pensarmos nisso — ter mais filhos — como uma, dentre
outras muitas possibilidades, com que poderíamos influenciar a
nossa cidade? E não apenas mais filhos, mas filhos que amem a
Deus e sirvam a cidade?13

12
Gênesis 1.28.
13
Não estou dizendo que todos devem ter certo número de filhos ou que você
é mais espiritual se tiver filhos. Para uma boa discussão sobre a questão de controle
de natalidade, ver o item Question 9 em Religion saves, de Mark Driscoll, Wheaton:
Crossway, 2009.
294 A missão

Anteriormente, Ethan Burmeister, pai de dois filhos, teria dito


isso, mas dois anos depois de um “procedimento”, Deus lhe falou
sobre as bênçãos dos filhos e agora ele celebra com a esposa e seus
quatro filhos a alegria da bênção de Deus. Aqui está sua história:
A Bíblia diz que os filhos são uma bênção. Eu havia reco-
nhecido esse fato intelectualmente e teologicamente depois de
ter dois filhos, mas não acreditava nisso de fato. Meu modo de
agir, minha estrutura fundamental de pensamento e meus padrões
essenciais de funcionamento mostravam que eu era na verdade
um secularista e acreditava que filhos eram uma maldição. Eu
tinha dois filhos fantásticos. Lindos olhos azuis, cachos loiros,
e espoletas. Isso era suficiente. O sonho americano. Por que ter
mais? Se alguém analisasse as minhas razões práticas, como tem-
po e dinheiro, concluiria que isso era absolutamente normal. Mas
eu estava enxergando através de uma lente que, na realidade, se
baseava em conveniência pessoal, tranquilidade e, francamente,
eu queria limitar meus incômodos.
Estava casado havia quatro anos com uma bela esposa, tínha-
mos dois filhos, um financiamento de casa para pagar, tínhamos
plantado uma nova igreja fazia pouco tempo e estávamos ocupa-
dos. Quando minha mulher me perguntou quantos filhos mais
eu queria, devolvi a pergunta. Ela disse que até gostaria de adotar
uma criança algum dia, mas se sentia muito bem como estáva-
mos. E eu pensei comigo mesmo: “Ainda temos a cobertura do
plano de saúde da igreja anterior, então por que não dar um jeito
‘naquilo’”? Alguns amigos nos disseram que era a chave para o
bom sexo. Fim das preocupações, dos incômodos, das dúvidas,
da proteção contra a gravidez ... mas tudo parecia tão duradouro.
Marquei uma consulta. Disseram-me que era um proce-
dimento rápido. Você vem como está, 45 minutos depois está
depilado, cortado, empacotado em gelo e indo para casa... com
uma bengala. Na manhã da intervenção, minha esposa disse:
“Você tem certeza? Eu tenho dúvidas”. Esposas podem ser mui-
to temperamentais. Ela estava obviamente tendo uma reação
A esperança da missão: transformação da cidade 295

emocional e nós devíamos manter a decisão que havíamos toma-


do semanas antes.
Acidentalmente ser golpeado na genitália durante um even-
to esportivo é uma coisa. Todo homem sabe o que quero dizer: o
passe atingindo você de surpresa — baixo demais —, o impac-
to. Então — espere, ainda não, AGORA — a dor lancinante se
espalhando pelo seu sistema nervoso, o reflexo involuntário de se
cobrir segundos tarde demais e o efeito posterior de uma sensa-
ção corrosiva de náusea enquanto sua visão fica cinza e você não
sabe se vai desmaiar. Acidentes são uma coisa, eles chegam de
surpresa e você não sabe quando vão acontecer. Voluntariamente
ir de encontro a um massivo golpe de facas na virilha é outra.
Sou o tipo de pessoa que nem mesmo gosta de chaves de carro
em meu bolso por causa da proximidade. Eu lembro estacionar o
carro não apenas sabendo o que aconteceria, mas pedindo a eles que
o fizessem a mim, e ainda pagando-lhes para fazê-lo. Eu estava
louco? “Eu realmente amo a minha esposa”, disse a mim mesmo
enquanto entrava na clínica.
Fui levado a uma sala banhada com luz branca. Era como
um jantar na casa de Hannibal Lecter. Uma mesa de aço inoxidá-
vel coberta com linho branco especialmente para mim, o convi-
dado, estava preparada com os utensílios da refeição prestes a ser
consumida. A enfermeira me intimidou. Ela era velha o suficiente
para ser minha avó. Andava de um modo afetado, como Steve
McQueen em Sete homens e um destino. Pelo que me recordo, ela
mostrava os dentes. “Suba na mesa”, ela disse. Torci para que ela
me tratasse de maneira adequada. Ela fez todo o “trabalho pre-
paratório”. O medo me paralisou enquanto me sentia tentado a
largar tudo, e eles começaram a apontar todas as luzes para o meu
baixo ventre. Comecei a suar frio.
Orei honestamente naquele momento por proteção con-
tra as forças malignas. Eu sentia que estava afundando quando
tudo começou, mas me rendi como um cervo se rende ao bando de
caçadores enquanto cortam sua carne. Os enfermeiros conseguiram
296 A missão

perceber minha apreensão e começaram a bater papo sobre o


clima e outras amenidades. Por que eles fazem isso? Alguma
disciplina de cuidados dos pacientes trata disso? Notícia urgen-
te: falar sobre o clima ou golfe não ajuda em nada para melhorar
a cirurgia em suas partes íntimas. O médico até mesmo come-
çou a contar piadas enquanto começava a cauterizar os vasos e a
fumaça começava a subir e se avolumar no ar. Meus olhos esta-
vam me iludindo? Era a medicação? Minha virilha estava quei-
mando! Eu me considerava um bom amante para minha esposa,
mas nada nunca tinha sido como aquilo. Depois manquei até o
estacionamento e, suavemente — muito suavemente — sentei
no banco do carro.
Dois anos depois, eu estava em meu escritório estudando o
relato da Criação em Gênesis. Deus criou o mundo em esplen-
dor e majestade. Ele pôs nosso pai Adão no jardim com todos os
animais, mas não se achou nenhum auxiliador adequado. E Deus
deu a seu filho uma bela esposa. Ele comissionou o casal e emitiu
o mandato cultural à humanidade, ordenando que fossem frutí-
feros e se multiplicassem. A palavra “frutíferos” saltou da página.
Momentos como esse, com tanta clareza e poder, não acontecem
todo dia. Mas eu percebi uma mensagem pessoal nas ideias que
vieram à minha mente. “Eu me importo com filhos. Eles são uma
bênção, e não uma maldição. A decisão que você tomou não resul-
tou de oração e fé, mas de conveniência. Você cortou fora um dos
principais meios para minha bênção em sua vida”. Não penso que
essa seja a aplicação para todo casal em toda situação e não rece-
bemos a vida numa caixa com um manual de instruções — Deus
estava falando comigo pessoalmente. Eu estava paralisado, com
vergonha e esperança ao mesmo tempo. Quando disse à minha
esposa o que havia sentido, ela chorou e disse: “Eu tenho me sen-
tido do mesmo modo há meses, mas estava esperando Deus falar
com você, porque você precisava ouvir dele”.
Uma coisa é se arrepender e admitir que você cometeu um erro,
outra é ter que pagar milhares de dólares e ser operado em sua área
A esperança da missão: transformação da cidade 297

mais vulnerável para mostrar o fruto de seu arrependimento. Nós


conseguimos exatamente a quantia de que precisávamos para a
reversão na restituição do imposto de renda daquele ano e encon-
tramos um especialista mundialmente famoso, que “por acaso”
atendia a algumas quadras de nossa casa.
Quando eu consagrei nossa filha Ana na igreja um ano
depois, expliquei que Ana significa “Deus é gracioso”. E também
temos um filho chamado Samuel, que significa “Deus ouve”.
Quatro filhos são uma carga considerável num contexto
urbano e a vida não se tornou mais fácil, mas estou tomado de
uma alegria inexprimível pela decisão que tomamos e pelas bên-
çãos de Deus porque o seguimos. Jim Elliot disse que os filhos são
flechas numa aljava e eles devem ser treinados como missionários
e atirados no Diabo. Minha esperança é que meus dois meninos
e minhas duas meninas sejam notáveis para Deus como extensões
do Reino a um mundo perdido e moribundo.

Seja uma bênção na cidade


“Empenhai-vos pela prosperidade da cidade, para onde vos exilei,
e orai ao Senhor em favor dela; porque a prosperidade dela será a
vossa prosperidade” ( Jr 29.7).
Pedro, em sua primeira epístola, desafiou seus leitores, que
estavam sendo perseguidos por causa da sua fé, a aceitar a realida-
de de que eram residentes estrangeiros, visitantes na hostil capital
do Império, Roma. Eles eram “peregrinos e estrangeiros”, o que
significava que deviam se manter fiéis às suas distinções de fé no
contexto da cultura em que se encontravam. Deviam permanecer
fiéis à verdade, mas se concentrar no bem da cidade. Vemos esse
paradoxo aqui:

Amados, exorto-vos como a peregrinos e estrangeiros a vos abster-


des dos desejos carnais, que combatem contra a alma. Seja correto
o vosso procedimento entre os gentios, para que naquilo de que
falam mal de vós, como se fôsseis praticantes do mal, ao observa-
298 A missão

rem as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação


(1Pe 2.11,12).

Pedro está ordenando a igreja a se abster dos desejos da carne


(sem dúvida despertados e encorajados pela cidade) por meio de
uma conduta santa entre as pessoas locais. Ele está desafiando a
igreja a não ser absorvida pela cultura, mas a ser contracultural e
distinta em toda a sua conduta. Visto que a igreja está vivendo um
estilo de vida distintamente cristão, ela será perseguida, assim como
aquele que estão tentando imitar. Não importa quão puras sejam
as nossas motivações, não importa quantas boas ações realizemos,
não importa quão benevolente e compassivo seja o nosso serviço,
a igreja será perseguida do mesmo modo que seu Salvador o foi.14
Pedro também está dizendo que um dos modos de o evange-
lho avançar em uma cidade hostil é quando a igreja realiza “boas
obras”. No contexto, “boas obras” parecem se referir a ser bons
cidadãos na cidade. Pedro está afirmando que quando a igreja vive
uma vida do Reino corajosa, generosa e virtuosa, os cidadãos da
cidade podem querer conhecer o Rei que inspirou essas obras.15
Isso significa que, quando deparamos com a cultura, devemos
buscar ser uma bênção ao povo na cultura. Temos uma identidade
única e distinta como aqueles que foram banhados na graça; por-
tanto, buscaremos banhar a cidade com graça enquanto servimos
e trabalhamos nela com entrega sacrificial.
Jeremias parece estar dizendo que, pelo fato de o povo de
Deus buscar a prosperidade ou o shalom da cidade, será beneficia-
do pela cidade. Isso quase certamente se refere a benefícios sociais
e econômicos. Assim, Jeremias não está apenas afirmando que
devemos buscar a prosperidade espiritual da cidade, mas também

14
Para mais informações sobre a igreja perseguida, ver http://www.persecu-
tion.com, em inglês.
15
Richard Mouw observa que, por causa da graça comum, até mesmo os não
redimidos possuem “impulsos para a justiça e empenhos pelo bem comum”. Van
Til, The calvinistic concept of culture, p. xiii.
A esperança da missão: transformação da cidade 299

sua prosperidade financeira e social. O que Jeremias e Pedro pare-


cem estar dizendo é que o povo de Deus deve ser formado por
ótimos cidadãos de suas cidades pecaminosas. Eles podem fazê-lo
porque são estrangeiros — distintos e separados dos valores anti-
bíblicos da cidade, mas envolvidos e conectados com os elementos
da graça comum dentro dela, esperando fazer dela um excelente
lugar de moradia para todos os seus habitantes.
Ser uma bênção na cidade não significa adotar a cultura e
simplesmente assemelhar-se ao estilo de vida da cidade. Esse era
o plano babilônico para o povo de Deus no Exílio. O plano deles
torna-se muito claro no caso de Daniel e seus amigos. Os babi-
lônios tentaram fazer com que Daniel e seus amigos adotassem
sua cultura, fornecendo-lhes excelente comida e doutrinando-os
em sua filosofia e religião.16 Os babilônios mudaram os nomes de
Daniel e seus três amigos.

Figura 17-1
Daniel: Deus é meu Juiz Beltessazar: Guardião dos tesouros de Bel
Hananias: Javé é Deus Sadraque: Inspiração do sol (adoração do sol)
Misael: Aquele que Mesaque: Da deusa Shaca
pertence a Deus (adoração de Vênus)
Azarias: Javé auxilia Abednego: Servo do fogo

Não só aconteceu que os nomes desses três homens de Deus


foram mudados, mas eles foram mudados para os nomes de deu-
ses babilônios. Isso sem dúvida era uma tática para fazê-los perder
sua identidade espiritual como adoradores do único Deus verda-
deiro e começar a formar sua identidade com base em divindades
pagãs. De modo muito semelhante, a cidade nos pressionará a

16
Daniel 1—2.
300 A missão

adotar sua cultura, suas doutrinas e seus deuses. As boas-novas


do evangelho são que nós não precisamos comprometer a verdade
bíblica para sermos bênção para a cidade.
Ser bênção para a cidade não significa que formamos um
enclave e nos separamos da cidade a fim de sermos puros. Esse
era o plano dos falsos profetas para o povo de Deus no Exílio
em Jeremias 28, quando Hananias profetizou falsamente que o
Exílio duraria apenas dois anos (e não setenta como Jeremias pro-
fetizou). Essa falsa profecia desencorajaria o povo de Deus a fin-
car raízes profundas na cidade, como Deus ordenou. Do mesmo
modo, haverá tremenda pressão sobre nós para que simplesmente
criemos uma subcultura na cidade e assim evitemos sua dor e seus
problemas. As boas-novas do evangelho são que podemos parti-
cipar da cultura da cidade e nos tornar agentes de transformação.
Ser bênção para a cidade significa que levamos a sério os pro-
blemas dela. O evangelho precisa ser expresso não apenas em
palavra, mas também em ações.17 Com toda certeza precisamos ser
fiéis aos credos que definem a ortodoxia histórica, mas também
precisamos de atos motivados pelo evangelho se quisermos pro-
clamá-lo fielmente. Richard Stearns argumenta que, quando Jesus
reinterpretou a profecia messiânica de Isaías 61 em Lucas 4.18,19,
estava dizendo que a mensagem não era menos que a proclamação
das boas-novas para a conversão pessoal, mas que era muito mais.
Ela envolve ajudar os enfermos, “restaurar vista aos cegos”, reali-
zar justiça, “pôr em liberdade os oprimidos”. Stearns, presidente da
Visão Mundial, expressa essa afirmação deste modo:

Proclamar o evangelho todo [...] inclui compaixão tangível pelos


enfermos e pelos pobres, bem como justiça bíblica, esforços para
corrigir os erros que são tão prevalentes em nosso mundo. Deus
se interessa pelas dimensões espiritual, física e social de nosso
ser. O evangelho todo é de fato boas-novas para os pobres e é o

17
2João 3.18.
A esperança da missão: transformação da cidade 301

fundamento para uma revolução social que tem o poder de trans-


formar o mundo. E se isso era a missão de Jesus, também é a mis-
são de todos os que afirmam segui-lo. É a minha missão, é a sua
missão e é a missão da igreja.18

A base para o desejo cristão de que a cidade seja renova-


da nos seus âmbitos cultural, social e espiritual está enraizada no
passado, na ressurreição de Jesus Cristo e na futura ressurreição
de todos os que creem nele. A ressurreição é um antegosto do
que Deus quer fazer. Ele não simplesmente joga fora o antigo e
introduz algo novo. Ele faz algo novo por meio da restauração do
antigo. Jesus não sacrificou seu corpo e os cristãos não sacrificarão
seus corpos em favor de algo novo, mas o antigo corpo é restaura-
do e melhorado. A mesma coisa ocorre com este mundo material.
“Deus não planeja destruir completamente o mundo presente e
construir um mundo completamente novo a partir do nada. Em
vez disso, ele planeja uma renovação radical para o mundo em
que vivemos hoje. A Bíblia nunca diz que tudo será queimado
e substituído. Antes, ela diz que tudo será depurado com fogo
e restaurado”.19 Portanto, quando demonstramos misericórdia e
justiça não apenas testemunhamos de nossas vidas transformadas
por causa da ressurreição, mas estamos direcionando as pessoas
à consumação da ressurreição, que é a renovação deste mundo
material. Quando vivemos uma vida distinta e generosa, testemu-
nhamos que Jesus ressuscitou no passado, mas está continuamen-
te trabalhando no mundo, o que pode ser visto em nossas obras
como a igreja de Deus.

18
Richard Stearns, The hole in our Gospel: what does God expect of us? The
answer that changed my life and might just change the world, Nashvile: Thomas
Nelson, 2009, p. 22.
19
Tullian Tchividjian. Unfashionable: making a difference in the world by
being different. Sisters, Multnonah, 2009, p. 52. Tullian usa como fonte o estudo
de Thomas Schreiner sobre 2Pedro 3.10 na esv Study Bible da Crossway, p. 2422-3,
para o fundamento desse ponto.
302 A missão

As três partes deste livro são intituladas O Homem, A Men-


sagem e A Missão. E nós examinamos cuidadosamente o que cada
uma dessas seções significa para aqueles suficientemente cora-
josos (ou suficientemente loucos) para enfrentar os desafios do
ministério, suficientemente fortes para não desistir e suficiente-
mente fracos para saber que não há a possibilidade de realizá-lo
sem o poder absoluto de Deus trabalhando em nós e por meio
de nós. Mas, antes de concluir, é importante considerar mais um
significado para esses três títulos de seção.
Jesus é O Homem. A nossa capacidade de nos tornarmos os
homens que Deus nos chamou a ser depende de nossa entrega ao
Homem que possui caráter perfeito. Tudo o que esperamos dos
homens que lideram nossas igrejas é encontrado na vida perfeita
de nosso Senhor.
Jesus é A Mensagem. O poder para outros mudarem está
enraizado no evangelho, que tanto resgata o pecador quanto edi-
fica o santo. Tudo o que precisamos conhecer, experimentar e pro-
clamar encontra-se na pessoa e na obra de Cristo.
Jesus é A Missão. A esperança que temos para que este mun-
do mude está enraizada na ressurreição, que tanto capacita a igreja
para viver e proclamar o evangelho como também prenuncia ao
mundo como Deus faz novas todas as coisas. Nossa única espe-
rança para um mundo destruído e desestruturado é a restauração,
e nossa única esperança para a restauração é encontrada naquele
que derrotou para sempre os efeitos radicais do pecado por meio
da sua ressurreição.
O apóstolo Paulo expressa isso muito bem em sua carta
encorajadora à igreja filipense. Todo o seu propósito na vida e
todo o seu propósito para o ministério estavam na ressurreição:
“...para conhecer Cristo, e o poder de sua ressurreição, e a par-
ticipação nos seus sofrimentos, identificando-me com ele na sua
morte, para ver se de algum modo consigo chegar à ressurreição
dos mortos” (Fp 3.10,11).
A esperança da missão: transformação da cidade 303

A ressurreição permite que o homem seja qualificado, ela


autentica a mensagem. Por meio da ressurreição transparece a
esperança de que este mundo pode ser renovado e será restaurado.

Sonhando com a cidade


E se nossas cidades fossem cheias de novas igrejas em cada bairro?
E se os pastores realmente pusessem o evangelho e a igreja acima
de seu conforto, seu ego e suas preferências? O que aconteceria se
gastássemos menos energia tentando fazer as pessoas se sentirem
confortáveis e mais energia tornando o evangelho claro? O que
aconteceria se intrépidos e bem capacitados homens e mulheres
de Deus fossem encorajados a usar seus dons na igreja, sabendo
que Deus é capaz de escrever direito sobre linhas tortas? E se os
pastores realmente fossem aprovados no seu caráter? O que acon-
teceria se o povo de Deus realmente tivesse alguém para observar
e imitar? E se o povo de Deus compreendesse que o papel do
pastor é equipá-los para exercer o ministério em vez de exercer o
ministério por eles? Quantos empreendimentos sem fins lucrati-
vos não seriam iniciados pelo povo de Deus para cuidar de áreas
destruídas da cidade? Quantas crianças em situação de risco não
seriam tutoreadas e quantos adolescentes órfãos não seriam men-
toreados? Quantas mães solteiras não seriam auxiliadas? Quantos
imigrantes não veriam a igreja como um lugar de ajuda e esperan-
ça? Quanto da graça de Deus não seria compreendido se sacrifi-
cialmente servíssemos os pobres e os marginalizados? Quantas
pessoas perdidas e destruídas não deixariam de ser seu próprio
salvador e passariam a confiar em Jesus?
Concluo com uma história que ouvi de um amigo, Dave
Ferguson, pastor da Christ Community Church, em Chicago.
Em uma conferência em que palestramos juntos, ele compar-
tilhou comigo uma conversa que tivera com o célebre guru de
crescimento de igreja Lyle Shaller. Essa conversa o fizera sen­
tir-se tremendamente humilhado. Dave estava (como uma pessoa
304 A missão

esperta deve fazer) colhendo conselhos sábios com o mais velho e


experiente Shaller sobre como sua igreja poderia alcançar Chica-
go com o evangelho de forma mais eficaz. Enquanto Dave estava
articulando sua visão, Shaller o interrompeu. “Dave”, ele pergun-
tou, “por que eu tenho um sonho maior para sua igreja em sua
cidade do que você?”.
Assim como aconteceu com Dave, meu coração foi tomado
de convicção profunda quando ouvi a pergunta de Shaller. Isso
era claríssimo para mim. De algum modo, por medo ou inse-
gurança, eu tinha deixado murchar os sonhos para nossa igreja.
Tinha parado de pensar sobre as coisas ilimitadas que Deus podia
fazer e tinha sido distraído pelas minhas próprias limitações. Orei
ali mesmo para que Deus me perdoasse por minha mentalidade
pequena. Pedi ao Senhor que me perdoasse por minha falta de fé
em que ele pudesse usar um homem como eu para levar a men-
sagem do evangelho por meio de nossa igreja missionária à nossa
cidade perdida. Supliquei a Deus que renovasse o meu coração e
a minha mente com uma visão para nossa cidade mais parecida
com a de Cristo.
Se você está lendo isto, talvez esteja no mesmo barco. Quer
você esteja pastoreando uma igreja há anos, quer seja um futuro
plantador de igreja olhando para uma cidade necessitada do evan-
gelho, todos podemos aprender com o desafio de Shaller. Una-se
a mim nas orações de arrependimento e renovação para que o
evangelho seja pregado e vivido em nossas cidades por meio de
nossas igrejas. Amém.

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