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Prado Neto, B.

–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 1 Formatado: Português (Brasil)


Formatado: Português (Brasil)
1
Solipsismo - do Tractatus às Bemerkungen

Bento Prado Neto (UFSCar)

Introdução

Os capítulos V a VII (segundo o recorte de R. Rhees) formam uma notável

unidade. De fato, no primeiro desses capítulos, o tema tractariano do solipsimo e de

suas relações com o realismo e o idealismo é retomado, numa nova formulação, que

(sem mencionar o horizonte fenomenológico, alheio à primeira obra) agora o vincula à

questão do tempo: a caracterização da "experiência presente" como a única realidade

"parece conter a consequência última do solipsismo" (PB 54). No capítulo V das PB,

portanto, o solipsismo se apresenta como solipsismo "instantaneísta"; os dois capítulos

seguintes irão desdobrar o primeiro, tratando respectivamente de cada um desses dois

temas assim entrelaçados: o capítulo VI enfoca o "eu" do solipsista, o VII se debruça

sobre o tempo (fenomenológico ou primário) ao qual o primeiro está vinculado.

Para abordar a nova versão do solipsismo que é apresentada no contexto do

projeto fenomenológico, cabe medir a distância entre o Tractatus e as PB, em que esse

mesmo tema é tratado de diferentes formas. Isso já foi enfocado pelo primeiro ensaio,

de M. Engelmann, e farei apenas algumas observações adicionais2, destacando aspectos

que podem interessar mais diretamente ao tema do solipsismo instantaneísta tal como

tratado pelas PB, e ao modo de expressá-lo. Para tanto, na secão 1, retomo o tema da

análise completa no Tractatus, caracterizando algo que poderia ser chamado de


1
Este ensaio e os dois seguintes foram escritos com o suporte financeiro do CNPq e também da FAPESP.
As secões 1-3 retomam algumas ideias exploradas de forma mais detalhada no capítulo introdutório
PRADO NETO 2003.
2
Nesses pontos adicionais, a minha leitura diverge um pouco da de M. Engelmann, tanto no que diz
respeito ao Tractatus quanto ao projeto fenomenológico.
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"linguagem completamente analisada", a saber, a concretização de uma análise

completa da linguagem ordinária sob a forma de um simbolismo especial (composto

apenas por nomes simples, com suas possibilidades combinatoriais inteiramente

especificadas, mais o único "indefinível" da lógica, o operador N), como precursora

(em parte) da linguagem fenomenológica, destacando o que me parecem ser aspectos

de sua relevância filosófica. A seguir, na secão 2, apresento um duplo contraste entre

esse simbolismo (que "obedece à sintaxe lógica") e outros dois simbolismos - a nossa

linguagem comum e o simbolismo da mecânica; como veremos, esse contraste se

transformará, nas PB, num único contraste, entre a linguagem fenomenológica e "a

nossa linguagem comum, fisicalista" (cf., p. ex., PB 57). Na seção 3, procuro

caracterizar a relevância, no contexto do Tractatus, do que chamei de "linguagem

completamente analisada" para a expressão da "verdade do solipsismo" (T 5.62), e

sugiro que isso permite lançar alguma luz sobre a retomada (com modificações) desse

tema no contexto das PB. Finalmente, na seção 4, apresento a estrutura geral do capítulo

V, que entrelaça os temas do eu e do tempo na formulação instantaneísta do solipsismo,

temas aos quais as PB dedicam (na divisão de R. Rhees) respectivamente os capítulos

VI e VII, que serão tratados nos dois próximos ensaios.

1) Um modo de concretizar a análise completa no Tractatus: uma "linguagem

completamente analisada

No ensaio 1, Mauro Engelmann já mostrou como, em alguma medida, a

constituição de uma "linguagem fenomenológica" equivale à realização de uma análise

completa da linguagem ordinária (com, obviamente, o acréscimo da tomada de posição


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fenomenológica, ausente no Tractatus) ; ali, M. Engelmann mostra que tal projeto (de

constituição de uma linguagem especial, em que ocorram tão somente indefiníveis) só

passa a apresentar relevância propriamente lógica a partir do momento em que

Wittgenstein descobre que as particularidades dos indefiníveis não-lógicos podem

repercutir sobre a própria lógica (especificando inferências que não repousam sobre as

tabelas de verdade tradicionalmente concebidas), portanto, após o abandono de "teses"

fundamentais do Tractatus. De fato, nesta primeira obra, a lógica está inteiramente

esclarecida antes de uma análise completa, antes de determinar quais as formas

particulares das proposições elementares - a lógica não depende, em nada, de sua

aplicação - e, do ponto de vista estrito da lógica, parece absolutamente fútil determinar

se pode haver proposições elementares que são funções de, digamos, cinco argumentos.

Não obstante, cumpre notar de imediato que, se não a efetividade, ao menos a

possibilidade de tal análise é um dos pilares da concepção da lógica do Tractatus: "o

postulado da possibilidade dos sinais simples é o postulado do caráter determinado do

sentido" (T 3.23). Cabe lembrá-lo, em primeiro lugar, porque o reconhecimento da

impossibilidade de uma linguagem fenomenológica, dada a equivalência entre essa

linguagem e a realização de uma análise completa, parece, à primeira vista, ser também

equivalente ao abandono do postulado da plena determinação do sentido4, o que seria

um abalo ainda mais profundo no edifício tractariano, já bastante remodelado (como

mostrou M. Engelmann). Cabe também lembrá-lo, no que diz respeito ao trecho das PB


3
Essa equivalência (parcial, no sentido de que a constituição de uma Linguagem Fenomenológica
equivale à realização de uma análise completa da nossa linguagem - análise preconizada, mas não
realizada, pelo Tractatus -, sem que se possa inverter essa equação e dizer que, no Tractatus, uma análise
completa redundaria numa linguagem fenomenológica) é fartamente documentada; veja-se, por exemplo,
PB 1 (e o comentário de M. Engelmann, Ensaio 1, seção 1), ou, especialmente, SRLF, pp. 29-31
(voltaremos a discutir esses dois primeiros parágrafos do artigo) .
4
As PB não são inteiramente claras acerca da questão da plena determinação do sentido; por outro lado,
o texto insiste, obsessivamente, na manutenção daquilo que, no Tractatus, lhe é equivalente: a ideia de
análise completa; cf. PB, §§ 1, 38 (primeiro e últimos parágrafos), 46 (último parágrafo) e também,
talvez, § 56, último parágrafo.
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que nos interessa, porque essa possibilidade estará em jogo na discussão sobre o tempo

desenvolvida no capítulo VII. Assim, do ponto de vista estrito da lógica, apenas a

possibilidade, mas não a concretização efetiva de uma análise completa é crucial. Por

outro lado, a concretização de uma tal análise oferece alguns benefícios filosóficos que

talvez não sejam inteiramente desprezíveis. Para tentar mostrá-lo, vou começar por

caracterizar o resultado dessa análise completa como um simbolismo especial.

Se analisarmos completamente as proposições de nossa linguagem, chegaremos

a proposições elementares, que são concatenações de nomes simples (T 4.22-4.24), os

"indefiníveis" não-lógicos. Levando essa análise até o fim, portanto, acabaríamos por

constituir uma linguagem5 composta apenas pelos indefiníveis "não lógicos" (os nomes

simples) mais o operador N, na qual todas as proposições de nossa linguagem poderiam

ser traduzidas ou analisadas: essa linguagem seria determinada pela totalidade das

proposições elementares (a totalidade das conexões permitidas de nomes simples), mais

o que delas se pode obter com o operador N. Os nomes substituiriam os "objetos

simples" e as proposições elementares representariam combinações possíveis desses

objetos; aqui, a uma concatenação permitida de nomes simples, corresponderia sempre

um estado de coisas.

Em primeiro lugar, gostaria de sustentar que um tal simbolismo mostraria algo

que a "notação do Tractatus" não é capaz de mostrar. De fato, um tal simbolismo, caso

incluísse um sinal de relação com 27 argumentos (cf. T 5.5541), mostraria que há

relações desse tipo; ou ainda: aquilo que "cumpriria ao 'Axiom of Infinity' dizer" se

mostraria no fato de que essa linguagem conteria "uma infinidade de nomes com

significados diferentes (T 5.535)." Mas, mais do que isso, caso se leve a sério o


5
De fato, se a análise completa me leva a proposições elementares, dado o holismo semântico do
Tractatus, eu teria de poder especificar integralmente os sinais que as compõem, o que arrasta a totalidade
do espaço lógico, e, portanto, a totalidade da linguagem.
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aforismo 2.0233, que parece supor a possibilidade de dois objetos não possuírem a

mesma forma lógica, um tal simbolismo mostraria, nas possibilidades combinatoriais

(sintáticas) de nomes simples, as possibilidades combinatoriais "ontológicas" de cada

objeto simples, "a possibilidade de seu aparecimento em estados de coisas", isto é, "a

forma do objeto" (T. 20141). E, finalmente, se lembrarmos, além disso, que "Espaço,

tempo e cor (ser colorido) são formas dos objetos" (T 2.0251), o resultado é que um tal

simbolismo exibiria, na superfície de sua gramática, a estrutura lógica do espaço, do

tempo, e do ser colorido - curiosamente, os temas primeiros da análise fenomenológica

de 1929. Como o Tractatus, por princípio, não se pronuncia sobre a aplicação da lógica,

não se pode ver (diretamente) nisso uma antecipação da "fenomenologia" no Tractatus,

mas apenas a possibilidade de exibir a forma dos objetos por meio da forma gramatical

de seus nomes (se esses objetos pertencem ao campo fenomênico ou não, isso não é

uma questão para o Tractatus, qualquer que seja a posição in petto de Wittgenstein, à

época).

Em segundo lugar, um tal simbolismo explicitaria integralmente o seu sentido,

eliminando toda a ambiguidade e aparente imprecisão da linguagem ordinária. Para

além da vantagem de, trocando o enunciado em miúdos, não deixar margens a dúvidas

(vantagem contrabalançada pelo aspecto pouco prático da eliminação dos "acordos

tácitos" de nossa linguagem, que são "enormemente complicados", cf. T. 4.002), uma

tal notação, que exibisse imediatamente, na superfície dos sinais, a "lógica de nossa

linguagem" (em que gramática superficial e gramática lógica coincidissem), eliminaria

a "maioria das questões e proposições filosóficas [que provêm] de não entendermos a

lógica de nossa linguagem"(4.003).

Não parece ser outra a ideia evocada pelo aforismo 3.325 de uma "notação (...)

que obedeça à gramática lógica - à sintaxe lógica". A referência à "ideografia de Frege


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e Russell" pode levar a pensar que se trata apenas do simbolismo dos conectivos e

quantificadores (portanto, o simbolismo que, como disse M. Engelmann basta para a

lógica). Mas esse simbolismo que obedece à gramática lógica, nos diz o 3.325, não deve

empregar "superficialmente da mesma maneira sinais que designem de maneiras

diferentes", ao contrário do que ocorre na "linguagem corrente", em que duas palavras

que designam de maneira diferente são "empregadas (...) superficialmente do mesmo

modo". Aqui, a exigência se estende claramente às constantes não-lógicas (como o

indica, aliás, o exemplo de "Rosa" como nome e como adjetivo). Essa notação que

"obedece à gramática lógica" deve, portanto, alcançar não apenas os conectivos e

quantificadores, mas a totalidade das palavras, inclusive as constantes não lógicas, e,

portanto, só pode ser conquistada após uma análise completa de nossa linguagem.

Deve-se notar, de fato, que essa notação é evocada no grupo 3 de aforismos, que têm

como cerne a ideia de análise completa. O "benefício filosófico", portanto, é o de

estancar a fonte de que "nascem facilmente as confusões mais fundamentais (de que

toda a filosofia está repleta)" (3.324).

É possível sugerir que uma tal notação (e, talvez, apenas uma tal notação)

permitiria o pleno exercício6 do "método correto da filosofia" (6.53), que consiste em,

diante de uma proposição metafísica, mostrar que o interlocutor "não conferiu

significado a certos sinais em suas proposições": de fato, como mostrar, a alguém que

enuncia a sentença heracliteana, que ele "não conferiu significado a certos sinais" sem

dispor de uma análise do verbo "fluir", por exemplo? O que é certo, é que, dispondo de

uma tal notação, um contrassenso filosófico se despiria forçosamente de sua aparente


6
É claro que o que M. Engelmann chamou de "simbolismo do Tractatus" (e que não inclui a
especificação das formas das proposições elementares, mas apenas aquilo que segue da "forma geral da
proposição"), basta para saber, de antemão, que qualquer proposição filosófica é um contrassenso; mas
isso por si só não me fornece instrumentos para mostrar ao interlocutor (com pretensões filosóficas) em
que ponto ele violou as regras da gramática lógica - apenas que ele deve tê-lo feito em algum lugar.
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gramaticalidade (ou de sua gramaticalidade superficial), ele não poderia sequer ser

formulado em tal notação, embora sua formulação não viole as regras explícitas da

gramática da linguagem corrente: "O mundo é meu mundo" ou "Apenas a experiência

presente é real" são, do ponto de vista da gramática do português, sentenças bem

construídas; no entanto, a análise dessas proposições revela - e apenas ela o faz plena e

claramente - que são contrassensos que, numa linguagem cuja gramática coincidisse

com a gramática lógica, não poderiam revestir sequer essa aparência de

gramaticalidade7. Na última seção, pretendo ilustrar isso com o exemplo do solipsismo.

2) A linguagem completamente analisada, linguagem corrente e a "forma de

descrição" da mecânica.

Essa "linguagem completamente analisada" se opõe, portanto, à nossa

linguagem comum por manifestar, na superfície da sua gramática, a gramática

profunda, a gramática lógica; ela o faria explicitando os "acordos tácitos" de nossa

linguagem, refazendo o caminho das definições implícitas na utilização das palavras

comuns. Mas há, no Tractatus, um outro tipo de simbolismo que, como a linguagem

comum, possui uma forma que não coincide com a forma daquilo que ele simboliza: as

mecânicas. Não caberia, aqui, uma discussão mais aprofundada do estatuto da mecânica

no Tractatus8; basta, para nossos propósitos, mostrar que uma "mecânica" deve ser

entendida antes como uma "linguagem" do que como um corpo de proposições. Para

isso, é preciso começar por notar que a mecânica deve ser claramente distinguida


7
Cabe notar que os dois parágrafos introdutórios de SRLF descrevem exatamente a tarefa de constituição
de um tal simbolismo (produto de uma análise completa da nossa linguagem) como cumprindo essa
última tarefa: a sintaxe da linguagem ordinária não é adequada ao propósito de excluir estruturas
contrassensuais, como "vermelho é mais alto que verde" ou "o real, embora seja um em si deve ser capaz
de se tornar um para mim", e, por isso, deve-se levar a cabo uma análise dessa linguagem (SRLF, p. 29).
Vale cotejar esse texto com os aforismos 3.324-5, dado que ele os retoma de forma quase literal, e
evocando exemplos de contrassensos que nada têm a ver com as novas formas de inferência que escapam
à lógica do Tractatus.
8
Discussão que, aliás, não foi levada a cabo por nenhum comentador que eu conheça.
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daquilo que, no Tractatus, se chama "ciência". Esta última é a totalidade das

proposições verdadeiras, ela é antes de mais nada um corpo de proposições

(verdadeiras); aquela, de outro lado, se caracteriza antes de mais nada pela forma de

descrição ambicionada: uma "forma unitária de descrição" do mundo (6.341) e uma

forma que, como veremos, é em certa medida "arbitrária" ou "convencional": escolher

uma mecânica é determinar "uma forma de descrição do mundo" (ibidem, grifo nosso)9.

O exame, ainda que rápido, dessa contraposição pode ser útil, na medida em que a

"linguagem comum, físicalista" das PB tem como fulcro a "hipótese", que não é

verificável (nem, portanto, falseável), assim como as mecânicas, no Tractatus, também

não são verdadeiras nem falsas: são antes "formas de descrição" (eine Form der

Weltbeschreibung; cf. 6.341), comparáveis às "hipóteses" das PB, que determinam uma

"modo de representação" (Art der Darstellung10) e que "mantêm com a realidade como

que uma conexão mais frouxa que a da verificação" (PB, 227).

O aforismo 6.341 compara a mecânica newtoniana com diferentes sistemas de

representação de uma mancha numa folha de papel: a mesma mancha pode ser descrita

usando tanto uma rede de malhas triangulares quanto uma de malhas hexagonais (mas

dependendo das peculiaridades da mancha eu terei de estreitar a malha escolhida para

consegui-lo). A forma escolhida é assim arbitrária, no sentido de que eu poderia ter

utilizado outra forma "com o mesmo sucesso". A escolha da mecânica newtoniana para

descrever o mundo é, portanto, numa certa medida "arbitrária" (é, em outro vocabulário,

"convencional"), porque seria possível, com o mesmo sucesso, escolher outras formas

de representação, outras mecânicas. Se uma mecânica pode ser utilizada qualquer que

seja o mundo efetivo, isso significa que, nela mesma, ela é tão somente um método de


9
Sobre o caráter "convencionalista" do tratamento das mecânicas no Tractatus, cf. Notebooks, p. 37:
"Exemplo característico para a minha teoria do significado da descrição física da natureza: as duas teorias
do calor, de um lado o calor concebido como um material, de outro como um movimento".
10
Cf. MS 105, p. 108.
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representação, um sistema de notação, que receberá diferentes modos de aplicação

(diferentes interpretações) conforme as características dos dados observados. O que

legitima a escolha de uma mecânica não é, portanto, a possibilidade de que o mundo

seja descrito por ela: ela não é nem "verdadeira" nem "falsa" - qualquer que seja o

mundo, ele sempre poderá ser descrito pela mecânica escolhida: "não diz nada sobre o

mundo a possibilidade de descrevê-lo por meio da mecânica newtoniana"(6.342). A

mecânica, tomada nela mesma, isto é, enquanto forma de descrição, não especifica o

que ela descreve, é preciso acrescentar o "modo de aplicação"11, uma maneira

específica de usar o simbolismo da mecânica para que ela represente um mundo

determinado: "diz algo sobre [o mundo] a possibilidade de que seja descrito por meio

dela [da mecânica newtoniana] precisamente como vem a ser o caso" (ibidem - minha

ênfase).

E o critério de escolha entre esses sistemas "convencionais" de representação

igualmente aptos a descrever os fatos observados (os dados científicos) irá consistir na

simplicidade - mas não uma simplicidade intrínseca ao sistema de representação (tal

como na postura convencionalista costumeiramente vinculada a Poincaré), e sim na

simplicidade "extrínseca" do modo de aplicação: "também diz algo sobre o mundo a

possibilidade de descrevê-lo mais simplesmente por meio de uma mecânica do que por

meio de outra" (ibidem - minha ênfase). Retomando a tópica clássica da discussão sobre

o convencionalismo, podemos dizer que, qualquer que seja a mecânica escolhida, é

sempre possível, acrescentando ‘epiciclos’ adequadamente escolhidos, chegar a uma

representação correta dos fatos constatados. Se cabe escolher uma mecânica de

preferência a outra, é porque sua "aplicação" é mais simples, requer uma quantidade


11
Cf. Notebooks, p. 67: "A proposição física [physikalische Satz] sem a indicação de sua aplicação é
obviamente sem sentido. Que sentido teria dizer 'F = m.a'? //Portanto, a proposição física completa
[vervollstandigte] trata de coisas, relações, etc (Como era propriamente de esperar)" (minha ênfase).
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menor de "epiciclos". Você só abandona uma mecânica quando a trama de epiciclos

que ela requer para a sua aplicação a torna pouco prática comparativamente a alguma

outra mecânica; vale cotejar essa ideia com o que Wittgenstein diz acerca da troca de

hipóteses nas PB, 226: "Minha experiência depõe em favor de que esta hipótese poderá

representá-la, ela e a experiência posterior, de modo simples. Caso se torne manifesto

que uma outra hipótese represente mais simplesmente o material da experiência, é o

método mais simples que eu escolho" (ênfases minhas): aquilo que vale, no Tractatus,

para as "mecânicas" vale, nas PB, para cada hipótese.

A "linguagem" da mecânica (isto é, a mecânica tomada sem um modo de

aplicação determinado), portanto, tem características que a diferenciam tanto da

linguagem comum (já por sua ambição de sistematicidade, já porque ela procura

veicular apenas as proposições verdadeiras), quanto daquilo que chamamos de

linguagem completamente analisada. Ou, tomando as coisas pela outra ponta, à

linguagem completamente analisada, cuja gramática espelha imediatamente a forma

daquilo que é representado, se contrapõem, no Tractatus, tanto a linguagem comum,

"traje que disfarça o pensamento", quanto a linguagem da mecânica, "traje" cuja forma

é compatível com toda e qualquer massa de fatos constatáveis. Se a distância entre

"traje" e o sentido pode, no primeiro caso (nossa linguagem comum) ser,

aparentemente, franqueada graças à explicitação dos "acordos tácitos", pensados como

os dois tipos de definição (não explícitas) evocadas por Mauro Engelmann no primeiro

ensaio (definição direta ou contextual), no caso da mecânica, qualquer definição que se

oferecesse estaria vinculada a uma certa massa determinada de fatos observados (que

determinaria o "modo preciso" pelo qual a mecânica newtoniana descreve o mundo do

6.342), e retiraria dessa mecânica a possibilidade (avançada pelos aforismos 6.341 e


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6.342) de descrever o mundo seja lá como ele for . Essa dupla oposição do Tractatus

será substituída por uma única oposição, entre a linguagem fenomenológica (herdeira

da linguagem completamente analisada), e a "nossa linguagem comum, fisicalista" (em

que a "linguagem corriqueira" do Tractatus receberá tintas do "modo de descrição" da

mecânica tal como caracterizada pelo Tractatus).

Essa aproximação que propusemos entre certos aspectos da caracterização

tractariana da mecânica e o caráter essencialmente "hipotético" da "linguagem comum,

fisicalista" das PB merece claramente algumas ressalvas. A primeira delas, bastante

óbvia, é que no Tractatus há uma nítida distinção entre linguagem comum e física (ou

mecânica), distinção que vem a ser borrada pelo duplo epíteto da linguagem que se

contrapõe à fenomenológica: comum, fisicalista; mas também pelo fato de que

Wittgenstein, ao tratar das "hipóteses" transita, por vezes sem maiores advertências, das

proposições da linguagem comum para as teorias (por ex., WWK, p. 99-100). A

segunda observação, diz respeito a um problema de tradução: physikalische pode ser

traduzido tanto por "fisicalista" quanto por "física"; na primeira acepção13, o epíteto faz

claramente referência ao âmbito do discurso da física (o que favorece a aproximação

com a "forma de descrição" da mecânica); na segunda, ele indica a linguagem como

algo pertencente ao objeto daquele discurso: uma realidade tão pertencente ao mundo

da física quanto, digamos, uma cadeira; como veremos, no capítulo VII há claramente

um uso de physikalische nessa segunda acepção (sem que a primeira desapareça: a

linguagem fisicalista descreve objetos físicos, como cadeiras, etc) - e isso será muito


12
A questão da definição dos termos de uma mecânica (Tractatus) ou de uma linguagem
fisicalista/secundária (PB) pode ser iluminada pela discussão, por Ramsey, acerca da possibilidade de
definir os termos de uma teorias (que é tomada como equivalente à questão de saber se uma "teoria" é
realmente uma "linguagem") no texto "Theories" (aliás, escrito em 1929, e testemunho de suas discussões
com Wittgenstein); cf RAMSEY 2003, p. 255-276.
13
É a acepção em que "physikalische" é empregada nos Notebooks quando aposto a "proposição"(p. 67)
ou "modo de expressão" (p. 81).
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importante para compreender este capítulo. Acredito que se deva procurar manter essa

ambiguidade, na tradução, tanto quanto possível.

Um terceiro ponto poderia ser levantado: a "linguagem" da mecânica tem por

ambição veicular apenas proposições verdadeiras, o que dificilmente poderia ser

atribuído à nossa "linguagem comum", ainda que "fisicalista". A impressão que pode

surgir daí é a de que na "linguagem da mecânica" não haveria possibilidade de enunciar

proposições falsas14; essa impressão é natural, quando se esquece que a mecânica tem

a ambição de expor sistematicamente todas as proposições da ciência (os fatos

observados); a distância entre essa ambição e sua efetiva realização é (em parte)

colmatado pela probabilidade: esta se aplica num campo em que as leis causais são

compatíveis tanto com a ocorrência quanto com a não ocorrência de uma determinada

classe de fatos. A descrição, nessa linguagem, de um desses fatos pode ser tanto

"verdadeira" quanto "falsa"15, o que não retira a essas proposições isoladas o seu

comprometimento com a "linguagem" em que elas são moldadas - elas são, portanto,

suscetíveis às mesmas instabilidades da mecânica a que pertencem.

É possível pensar que essa junção entre a linguagem comum e a linguagem

física seja o resultado da tomada de posição "fenomenológica" e, portanto, um

desdobramento, mais ou menos natural, de uma decisão posterior (se não

cronologicamente, pelo menos logicamente) ao Tractatus. Por outro lado, talvez se

possa pensar também que a nossa linguagem comum, independentemente de uma

tomada de posição fenomenológica, envolve elementos que nos remetem ao escopo da

física (favorecendo a fusão entre as duas linguagens, sem propriamente realizá-la). De


14
Isso corresponde em certa medida à impressão, também equivocada, de que, nas PB, pelo fato de que
as "proposições comuns" são caracterizadas como "hipóteses", não se poderia dizer que algo como "o
livro está sobre a mesa" é verdadeiro ou falso.
15
Por outro lado, a distribuição total das ocorrências deve se coadunar com a teoria das probabilidades -
ou então devemos sair em busca de uma causa (ainda não detectada em nossa teoria/mecânica) para essa
distribuição anômala.
Prado Neto, B.–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 13 Formatado: Português (Brasil)
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fato, os objetos "macroscópicos" a que nossa linguagem comum se refere e descreve,

como mesas, cadeiras, etc, são objetos que são dificilmente separáveis de uma teia de

relações causais que servem como critério (parcial) de identificação desses objetos;

uma chama de fogo que não queime não será reconhecida como tal, embora a conexão

causal (a chama de fogo queima) seja, segundo o Tractatus, uma "superstição"

(5.1361); sob o pano de fundo da denúncia da causalidade, as propriedades causais,

como critérios (parciais) de identificação dos objetos macroscópicos, parecem

inviabilizar qualquer tentativa de tomá-los como "objetos simples"16 .

3) O solipsismo do Tractatus e a linguagem completamente analisada: passagem

ao solipsismo nas PB.

Prometi, no final da seção 2, mostrar como a "linguagem completamente

analisada" poderia exercer um ofício filosófico, tomando o exemplo do solipsismo. O

interesse dessa observação reside no fato de que ela permite ver como natural a

retomada do tema num livro que se propõe a levar a cabo uma análise completa da

linguagem. O ponto de partida é o "livro" evocado pelo aforismo 5.631; vamos

examiná-lo primeiro de um ponto de vista estritamente tractariano e, depois,

acrescentando a posição fenomenológica.

O aforismo mencionado evoca um livro intitulado "O mundo tal como o

encontro". Se eu o escrevesse, nos diz Wittgenstein, eu poderia falar sobre tudo,

inclusive meu corpo, e "minha vontade", apenas o "eu" (o sujeito) não seria

contemplado pela descrição. A execução desse livro constituiria um "método" para


16
Esta (a denúncia da causalidade como superstição, fundada, em última instância, na independência
lógica das proposições elementares) é, aliás, uma das razões que torna o campo dos fenômenos um
melhor candidato para fornecer os "objetos simples" do que os objetos usuais da nossa linguagem
(pondo-se de lado "inobserváveis", como os "pontos materiais"), muito embora o Tractatus, por
princípio, possa silenciar - e tenha de fazê-lo - a esse respeito: "O que vem com a aplicação, a lógica não
pode antecipar"(5.557).
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"isolar o sujeito", isto é, "para mostrar que, num sentido importante, não há sujeito

algum" (5.631). Ora, a redação de um tal livro (que descrevesse tudo o que eu sei do

mundo), se efetuada na nossa linguagem comum, corriqueira, incluiria certamente

várias descrições daquilo que, nessa linguagem, eu chamo de "eu" - e dentre as

inúmeras pessoas que se dedicam a esse tipo de literatura, a maioria sai profundamente

convencida da realidade e da importância desse "eu" assim descrito. Aquilo, portanto,

que se deveria "mostrar" só seria exibido ao custo de uma análise dessas proposições

que me revelaria que aquilo que eu costumeiramente chamo de "eu" não corresponde

ao que essa palavra pretende significar "num sentido importante" (ibidem). O livro só

realizaria claramente a tarefa proposta - e nesse caso o faria inevitavelmente - se fosse

escrito numa linguagem completamente analisada: a palavra "eu", com todas as suas

particularidades gramaticais, desapareceria, as frases em que ela ocorre sendo

substituídas por proposições que são funções de verdade de proposições elementares

que mencionam apenas os "objetos simples". Assim, a constituição de uma linguagem

completamente analisada mostraria, na superfície dos seus sinais, que não há algo como

um "eu" que "pensa" - esse seria um resultado, por assim dizer, imediato, da

constituição de um tal simbolismo17.

O fato é que, no aforismo em questão, Wittgenstein não faz referência (ao

menos explícita) a esse sistema de notação. O que é claramente evocado é algo

diferente, a saber, a descrição do mundo do ponto de vista do sujeito (o mundo, mas tal

como o encontro): é a tentativa de descrever o mundo da perspectiva solipsista que,

corretamente levada a cabo (levando o solipsismo "às últimas consequências"- 5.64),

deve resultar no seu contrário, no "realismo". Se eu procuro reduzir o mundo ao


17
Sobre a importância, para a lógica do Tractatus, desse eu irrepresentável, e sobre as razões para assim
caracterizá-lo, cf. CUTER 2006.; o que procuramos fazer aqui é tão somente, assumindo esse resultado
(a inexistência do eu que pensa, representa), indicar como isso pode ser "mostrado".
Prado Neto, B.–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 15 Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Português (Brasil)

fenômeno (enendendo por essa expressão o mundo tal como o encontro, isto é, tal como

ele me aparece), irei descobrir que o eu para o qual o fenômeno é fenômeno, isto é, se

manifesta, esse eu, por princípio, não se manifesta: tudo o que poderei descrever são

esses fatos (fenomênicos) que aparecem "para mim"; só "eu" não serei descrito. O

"livro" concentra assim o movimento geral do tratamento do solipsismo no Tractatus:

adota a perspectiva do solipsismo e, na tentativa de enunciá-lo, redunda no seu oposto.

É interessante notar que podemos encontrar, nos manuscritos que deram origem

ao "miolo" do cap. VII (e conservados praticamente na íntegra no livro) uma espécie

de versão "ilustrada" ou "por extenso" desse movimento tractariano que leva do

solipsismo ao realismo, na forma de uma descrição do "espaço tal como o encontro18.

O trecho em questão procura descrever "os fenômenos do espaço visual enquanto tais,

isolados" (PB, §70), e o resultado desse esforço pormenorizado de descrição é

consignado obsessivamente nessas poucas páginas: "o espaço visual, por essência, não

tem proprietário" (§71), "o que é essencial é que a representação [Darstellung] do

espaço visual representa [darstellt] um objeto, e não faz nenhuma alusão a um

sujeito"(§71); "Agora, quer isto dizer que a imagem visual, apesar de tudo, contém ou

pressupõe essencialmente um sujeito? // Ou não seria antes o caso de que essas

tentativas [sc. de descrever o espaço tal como eu o "vejo"] só me oferecem informações

geométricas.// Isto é, informações que invariavelmente dizem respeito ao objeto.//

Informações objetivas sobre a Realidade" (§73). O esforço ("jene Versuche") por

descrever o espaço "tomado subjetivamente" (tal como o encontro), redunda em um

espaço inteiramente "objetivo" (ainda que não coincida, de modo algum, com o espaço

tal como descrito pela física - no qual "eu" estou situado e no qual "eu" posso me


18
Essa restrição ao domínio do que é espacial será comentada adiante, em seu devido momento; por ora,
nos interessa esse elemento de continuidade entre a exibição do solipsismo no Tractatus e nas PB.
Prado Neto, B.–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 16 Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Português (Brasil)

locomover, cf. o final do §73). Nesse esboço de descrição fenomenológica (portanto,

numa linguagem completamente analisada) do espaço visual enquanto tal,

reencontramos a estrutura geral dos aforismos sobre o solipsismo do Tractatus, e, ao

mesmo tempo, algo como uma ilustração de dois de seus elementos: o livro evocado

pelo 5.631 e a evocação, pelos aforismos 5.633-5.6331 da estrutura do campo visual (a

exclusão do globo ocular da estrutura do campo visual, efetuada pelo aforismo 5.6331,

é retomada detalhadamente ao longo do trecho dos §§ 70-74).

Esse trecho (ainda que restrito à dimensão visual dos fenômenos, como

dissemos) mostra perfeita continuidade com o tratamento do solipsismo no Tractatus.

Uma descrição em linguagem fenomenológica - a versão que as PB oferecem de uma

linguagem completamente analisada - revela que "o eu que pensa não existe". Se esse

é apenas um indício (por enquanto, apenas isso) de que a postura acerca do solipsismo

não mudou entre uma obra e outra, por outro lado, isso nos mostra, creio eu, alguns

pontos importantes: i) uma notação composta apenas de indefiníveis basta para mostrar

o que o solipsista tenta, desastradamente, dizer (e que é o oposto daquilo que ele acaba

por dizer); ii) uma notação desse tipo, com o acréscimo da tomada de posição

fenomenológica, tem como uma de suas principais tarefas mostrar essa verdade do

solipsismo desaguando no realismo. Esses dois pontos são importantes para a discussão

do capítulo VI, no qual, mais recentemente, D. Stern19 viu um distanciamento com

relação à posição do Tractatus.

Mas, ao lado desse indício de continuidade, há também duas claras rupturas: i)

os capítulos V e VI foram claramente redigidos após o abandono definitivo do projeto

de uma linguagem fenomenológica (herdeira da linguagem completamente analisada);

portanto, o expediente de utilizar essa linguagem (acima esboçado em linhas


19
STERN 2010.
Prado Neto, B.–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 17 Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Português (Brasil)

tractarianas) não está mais disponível; ii) o solipsismo, nas PB é atrelado à questão do

tempo (o que não ocorre no Tractatus): a forma mais radical de solipsismo, agora, é o

solipsismo instantaneísta, que diz que "só minha experiência presente é real".

Um último ponto merece nossa atenção, no que diz respeito à continuidade entre

o Tractatus e as PB com relação ao tema do "eu". O locus privilegiado para entender

as razões que levam Wittgenstein a sustentar a inexistência do "eu" talvez se encontre

menos no grupo 5.6 de aforismos do que no grupo 5.54. Ali, sustentando a tese da

extensionalidade (uma proposição complexa é uma função de verdade de suas

componentes), Wittgenstein se debruça sobre enunciados epistêmicos ("formas

proposicionais da psicologia"), que parecem ser um contra-exemplo dessa tese. O alvo

primeiro da crítica é a análise de "A acredita que p é o caso" em termos de uma relação

entre um objeto (o sujeito) e uma proposição. Para uma exposição das razões da recusa

dessa análise, remeto o leitor aos textos de Cuter 20; o que nos interessa aqui, é que esse

tema - do sujeito que pensa, representa - é vinculado de um lado à psicologia ("formas

proposicionais da psicologia": T. 5.541, "psicologia superficial de hoje": T. 5.5421), de

outro, à teoria do conhecimento ("a moderna teoria do conhecimento", de Russell e

Moore; T. 5.541). Essa dupla referência é, na verdade, uma única referência, se

lembrarmos da caracterização da Erkenntnistheorie como "filosofia da psicologia" (T.

41121). Uma correta filosofia da psicologia/teoria do conhecimento teria, portanto,

como tarefa dissipar a aparência de que há um "eu que pensa, representa". O que é

notável, é que a fenomenologia de 1929 é caracterizada justamente como

Erkenntnistheorie em, p. ex., PB 58 ("Erkenntnistheorie oder Phänomenologie"). A

essa Erkenntnistheorie, sobretudo, SRLF, irá atribuir a tarefa de uma análise completa


20
CUTER 1999.
Prado Neto, B.–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 18 Formatado: Português (Brasil)
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das proposições, guiada pelos fenômenos: "Cabe à teoria do conhecimento encontrá-

las [as proposições atômicas]" (p. 29).

4) O solipsismo instantaneísta das PB

Não seria insensato ver nos capítulos II a XIX uma reescritura do Tractatus,

visando uma sua reformulação que desse conta das dificuldades encontradas no

momento da "aplicação da lógica" (com o primeiro capítulo servindo de introdução ao

projeto fenomenológico, mas já levando em conta a remodelação do esquema

tractariano esboçada nesses capítulos), e preparando, sobre novas bases, a tarefa

propriamente "fenomenológica", executada nos capítulos XX a XXII (análise do espaço

visual, teoria fenomenológica das cores, relação entre hipótese e fenômeno). Os

capítulos II a IX reformulariam a teoria tractariana da proposição (figuração e

verifuncionalidade), enquanto os capítulos X a XIX dariam um novo tratamento à

matemática. Nesse esquema, o bloco que nos interessa agora (capítulos V a VII)

ocupariam uma posição relativamente similar àquela ocupada pelo tratamento do

solipsismo no Tractatus: ao final do tratamento da "forma geral da proposição" (ainda

no grupo 5 de aforismos), antes do exame da matemática (já no grupo 6 de aforismos)21.

Desse bloco de capítulos (V a VII), o primeiro, apresentando o solipsismo como

instantaneísta (vinculando o eu solipsista ao tempo primário), serve claramente de

introdução aos dois seguintes, que desenvolverão separadamente esses dois temas (eu

e tempo). Como pretendo tratar de cada um desses temas em ensaios diferentes, cumpre

esboçar a estrutura geral desse bloco, em que ambos os temas estão entrelaçados.

Podemos dividir o capítulo "introdutório" (cap. V) da seguinte forma:


21
Cada um dos autores do presente livro apresenta uma diferente caracterização da estrutura das PB;
creio que, apesar das fortes diferenças, elas são antes complementares do que incompatíveis.
Prado Neto, B.–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 19 Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Português (Brasil)

(a) A seção 47 faz uma apresentação do "idealismo" (a idéia de que a realidade

é constituída pelos fenômenos), seguida de uma dupla crítica, de caráter desigual, aos

contendores: o realista é criticado por reduzir o âmbito do qual não podemos nem

queremos sair (o real, o dado, o fenômeno) ao estatuto de uma "imagenzinha vista de

esguelha", portanto, por distorcer a forma do mundo; o idealista é criticado por ceder à

tentação de querer delimitar essa forma, de dizer o que não pode ser dito.

(b) A essa seção introdutória, se segue um longo trecho (PB 48 a 52) cujo tema

principal é a natureza do tempo primário, sua estrutura paradoxal, seu contraste com o

tempo da física, as dificuldades que ele impõe à descrição do mundo primário. Esse

trecho contém parte substancial do material textual que subsidia os comentadores na

questão da concepção wittgensteiniana do "tempo primário" nas PB.

(c) As seções 53 e 54, segundo a leitura que propomos, introduzem um elemento

fundamental para os dois primeiros blocos: a impossibilidade de uma linguagem

fenomenológica, que repercute na possibilidade de - não dizer, obviamente - mas

mostrar tanto a "verdade" do solipsismo, quanto a natureza do tempo primário (ou sua

síntese: o solipsismo instantaneísta). Que o mundo é "meu mundo" ou que "tudo flui"

não apenas não pode ser dito, como tampouco pode ser exibido por um sistema de

notação privilegiado (não há mais tal sistema): isso se revela na aplicação enquanto tal

de um sistema de notação, qualquer que ele seja.

(d) Finalmente, as seções restantes (55 e 56) retomam temas em parte já

abordados (a natureza lógica, e não factual, da investigação fenomenológica, a oposição

entre realismo e idealismo - levando em conta sua dimensão temporal - e sua dupla

rejeição) assim como temas que serão abordados no capítulo seguinte (como a questão

das relações entre o eu e o corpo).


Prado Neto, B.–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 20 Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Português (Brasil)

Desses dois temas, entrelaçados no capítulo V, o eu e o tempo, o capítulo VI irá

desenvolver "em separado" o primeiro. A divisão que proponho (para estruturar meu

comentário) é a seguinte:

(a) A seção 57 introduz o tema geral do capítulo: a expressão "eu" e os

equívocos a que ela pode conduzir, se empregada na fenomenologia.

(b) A seção 58 apresenta um "argumento" que chamou fortemente a atenção dos

comentadores - a "linguagem do déspota" - e que constitui um campo de estudo

privilegiado para o tratamento do tema do solipsismo nas PB por seu

(comparativamente) longo e estruturado desenvolvimento.

(c) Reúno, como "terceira parte", todas as seções restantes (59 a 66), que tratam

da assimetria lógica entre o uso de "eu" e "ele" quando referido aos "sense data" (a dor

de dente é o exemplo incontornável); ali, Wittgenstein insiste tanto no caráter

assimétrico desses usos, quanto no fato de que essa assimetria é de natureza

propriamente lógica (e não factual).

Finalmente, o capítulo VII tem como tema principal o tempo primário (com um

intermezzo dedicado ao espaço visual, que já mencionamos e ao qual retornaremos) e

se divide claramene em três partes:

(a) As seções 67 a 69 introduzem uma tentativa de constituição de uma

linguagem fenomenológica que acaba resultando num fracasso, numa linguagem que

é, a despeito de tudo, "física" ou "fisicalista". Parece bastante claro que a raiz desse

fracasso (qualquer que seja seu estatuto) é remetida à estrutura do tempo primário.

(b) A seguir, nas seções 70 a 74, Wittgenstein oferece uma "descrição

fenomenológica" do espaço visual, introduzida como um limite ao resultado negativo

alcançado na primeira parte.


Prado Neto, B.–- Ensaio 5: Solipsismo - do Tractatus às Philosophische Bemerkungen 21 Formatado: Português (Brasil)
Formatado: Português (Brasil)

(c) Por fim, na seção 75, Wittgenstein retoma o tema das relações entre

linguagem fenomenológica e tempo primário, com um resultado que parece novamente

frustrante.

Como dissemos, iremos desenvolver esses dois fios separadamente, explorando

os textos correspondentes do capítulo V em cada um dos dois próximos ensaios.

Segundo a leitura que propomos, o capítulo VII tem uma posição central nesse bloco,

na medida em que ele avança a impossibilidade de uma linguagem fenomenológica

com base nas peculiaridades da estrutura do tempo primário; isso não significa

necessariamente que esta seja a razão do abandono desse projeto, mas apenas que essas

peculiaridades já bastam para inviabilizar algo que uma linguagem fenomenológica

deveria realizar, que é a explicitação integral da determinação temporal (pela

impossibilidade de uma "métrica" para o tempo primário); de fato, a explicitação

integral do sentido das proposições através da exibição da forma lógica - que inclui a

determinação temporal - era uma das tarefas que atribuímos, na seção 1 deste ensaio, a

uma linguagem que, como a fenomenológica, fosse "completamente analisada." Mas,

na seção 3 do presente ensaio, procuramos mostrar como a "verdade do solipsismo" só

poderia ser claramente mostrada por meio de uma tal linguagem; na sua

impossibilidade, a exibição do solipsismo deve ser transferida de uma "notação

especial" para outro campo: o campo da aplicação da linguagem (qualquer que seja a

notação escolhida); é com base nisso que procurarei analisar a "linguagem do déspota"

do capítulo VI.

Formatado: Português (Brasil)

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