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A casuarina
Col. Nobel
Vol. N° 86
W. Somerset Maugham
A casuarina
Tradução de Leonel Vallandro
Editora Globo
Rio de Janeiro – Porto Alegre – São Paulo
Título do original: The casuarina tree
1951
Direitos exclusivos de tradução, em língua portuguesa, da
Livraria do Globo S. A.
Porto Alegre
Brasil.
Índice
A casuarina
Antes da festa
O navio do Oriente
O posto avançado*
A força das circunstâncias
Atavismo
A carta**
Post-scriptum
Nos dois dias seguintes ela quase não viu Mr. Gallagher, que passava o
tempo na sala de fumar. Devido a uma greve o vapor não tocaria em
Colombo. Os passageiros prepararam-se para uma agradável travessia do
Oceano Índico. Entretinham-se com jogos de convés, bisbilhotavam a
respeito uns dos outros, flertavam. A proximidade do Natal lhes deu uma
ocupação, pois alguém tinha sugerido um baile à fantasia e as senhoras
trataram de fazer os seus costumes. A primeira classe reuniu-se em
assembleia para resolver se deviam convidar os passageiros da segunda e,
apesar do calor, a discussão foi animada. As senhoras achavam que os
passageiros de segunda classe iam sentir-se constrangidos. No dia de Natal
era de esperar que eles se excedessem na bebida e podiam surgir
incidentes desagradáveis. Todos os opinantes fizeram questão de frisar que
não pretendiam fazer distinção de classes; ninguém era tão esnobe que
pensasse existir alguma diferença entre passageiros de primeira e de
segunda classe como tais, mas realmente seria mais generoso não colocar
estes últimos numa posição falsa. Eles se divertiriam muito mais se
tivessem uma festa à parte no seu salão. Por outro lado ninguém queria
ofendê-los, e está claro que nesta época era preciso ser democrata (isto foi
dito em resposta à esposa de um missionário da China, a qual afirmara ter
viajado durante trinta e cinco anos nos navios da P. & O. e nunca ter
ouvido falar em convidar os passageiros de segunda classe para um baile
no salão de primeira) , e ainda que eles não se divertissem talvez
desejassem vir. Mr. Gallagher, arrancado muito a contragosto A mesa de
jogo porque se previa uma votação parelha, foi solicitado pelo cônsul a dar
sua opinião. Levava consigo para a pátria, na segunda classe, um homem
que fora seu empregado na plantação. Ergueu o corpo maciço do canapé
em que estava sentado.
— Pessoalmente, só tenho uma coisa para dizer: trago comigo o
homem que tomava conta das nossas máquinas. É um esplêndido rapaz e
tão digno quanto eu de comparecer à festa dos senhores. Mas não virá,
porque eu pretendo embebedá-lo de tal maneira no dia de Natal que por
volta das seis horas ele estará imprestável e não terá outro remédio senão
ir para a cama.
Mr. Jephson, o cônsul, sorriu com um lado s6 da cara. Devido à sua
posição oficial fora escolhido para presidir à reunião e desejava que se
levasse o assunto a sério. Costumava dizer que tudo que merece ser feito
merece ser bem feito.
— Depreendo das suas observações — disse ele com certa acrimônia
— que a questão debatida por nós não lhe parece ter grande importância.
— Acho que ela não vale uma pitada de tabaco — respondeu
Gallagher, com os olhos a cintilar.
Mrs. Hamlyn riu. Afinal fizeram o plano de convidar os passageiros de
segunda classe, dirigindo-se, porém, em particular ao capitão e apontando-
lhe a conveniência de negar seu consentimento a que eles entrassem no
salão da primeira. Foi na noite desse mesmo dia que Mrs. Hamlyn, depois
de vestir-se para o jantar, subiu para o convés ao mesmo tempo que Mr.
Gallagher.
— Chegou bem na hora do coquetel, Mrs. Hamlyn — disse ele
jovialmente.
— Aceitaria um com prazer. Para falar a verdade, estou precisando de
um estimulante.
— Por quê? — sorriu ele.
Mrs. Hamlyn achou atraente o seu sorriso mas não quis responder à
pergunta.
— Já lhe disse no outro dia — falou em tom alegre. — Estou com
quarenta anos.
— Nunca vi uma mulher que insistisse tanto nesse fato.
Entraram no bar e o irlandês pediu um martini seco para ela e um gin
pahit para si. Tinha vivido muito tempo no Oriente para beber outra coisa.
— O Sr. está com soluços — observou Mrs. Hamlyn.
— Sim, passei toda a tarde com isto — respondeu ele negligentemente.
— É interessante, começaram assim que perdemos a terra de vista.
— Sem dúvida passarão depois do jantar.
Tomaram os coquetéis, o segundo sino bateu e eles desceram para o
salão de refeições.
— A Sra. não joga bridge? — perguntou Gallagher ao se separarem.
— Não.
Mrs. Hamlyn não notou que dois ou três dias se passaram sem que ela
visse Gallagher. Estava muito ocupada com os seus pensamentos.
Acorriam-lhe em multidão enquanto costurava; introduziam-se entre ela e
o romance com que procurava enganar-lhes a insistência. Tinha esperado
que quando o navio a afastasse da cena da sua infelicidade aquele
tormento teria alívio; mas pelo contrário, cada dia que a aproximava mais
da Inglaterra aumentava a sua angústia. Pensava com terror no vazio
desolado da existência que a aguardava; depois, desviando o espirito
exausto de uma perspectiva que a consternava, punha-se a considerar,
como o já tinha feito inúmeras vezes, a situação de que se evadira.
Fazia vinte anos que estava casada. Era muito tempo e por certo não
podia esperar que o marido ainda estivesse doidamente apaixonado por
ela; não o estava por ele, mas eram bons amigos e compreendiam-se muito
bem. Em confronto com a média dos casais podiam considerar-se bastante
felizes. Mas de repente descobriu que ele estava enamorado. Não teria
feito objeção a um flerte; aliás ele já tivera alguns e ela costumava caçoar
com ele a esse respeito; Mr. Hamlyn não se aborrecia com isso, sentia-se
até um pouco lisonjeado, e ambos riam juntos dessas inclinações que não
eram profundas nem sérias. Mas o caso agora era diverso. Ele estava tão
apaixonado quanto um rapaz de dezoito anos. E tinha cinquenta e dois!
Aquilo era ridículo, indecente. Ele amava sem bom senso nem prudência:
quando ela chegou a tomar conhecimento daquele horror já nenhum
estrangeiro em Yokohama o ignorava. Após o primeiro choque de espanto
e raiva, pois ninguém teria esperado dele semelhante loucura, Mrs.
Hamlyn tentou convencer-se de que poderia ter compreendido, e portanto
perdoado, se ele se tivesse enamorado de uma moça. Os homens maduros
amiúde perdem a cabeça por garotas, e após ter passado vinte anos no
Extremo Oriente ela sabia que a quadra dos cinquenta é a idade perigosa
para os homens. Mas ele não tinha justificação. Estava enamorado de uma
mulher oito anos mais velha do que Mrs. Hamlyn. Isso era grotesco e fazia
com que ela, sua mulher, parecesse completamente ridícula. Dorothy
Lacom estava à beira dos cinquenta. Havia dezoito anos que ele a
conhecia, pois Lacom, como Mr. Hamlyn, era negociante de sedas em
Yokohama. Durante todo esse tempo tinham-se visto três ou quatro vezes
por semana, e uma vez em que por acaso se encontraram juntos na
Inglaterra tinham compartilhado uma casa à beira-mar. Mas quê! Até um
ano atrás não houvera entre eles mais que uma amizade brincalhona. Era
incrível! Não se podia negar que Dorothy era uma mulher vistosa; tinha
bonita figura, talvez um tanto opulenta mas ainda cheia de garbo; ousados
olhos negros, boca vermelha e cabelos magníficos; mas tudo isso ela
tivera há muitos anos. Estava com quarenta e oito. Quarenta e oito!
Mrs. Hamlyn pediu logo explicações ao marido. A princípio ele jurou
que não havia uma palavra de verdade naquilo de que o acusavam, porém
ela tinha as suas provas; ele encasmurrou-se e acabou confessando aquilo
que já não podia negar. Disse então uma coisa surpreendente:
— Que importância tem isso para ti?
Ela se enraiveceu. Replicou-lhe com irado desdém. Foi loquaz,
encontrando na sua amargura íntima coisas ofensivas para dizer. Ele
escutou-a com calma.
— Não fui tão mau marido para ti durante os vinte anos em que
estivemos casados. Já faz muito tempo que não somos mais do que
amigos. Tenho-te grande afeição e esta em nada se alterou. Não estou
roubando nada para dar a Dorothy.
— Mas que motivo de queixa encontras em mim?
— Nenhum. É impossível haver melhor esposa do que tu.
— Como podes dizer isso enquanto tens a coragem de me tratar com
tanta crueldade?
— Não é que eu queira ser cruel, mas não posso proceder de outro
modo.
— Mas a troco de que foste enamorar-te dela?
— Como posso saber? Acaso pensas que eu o queria?
— Não podias ter resistido?
— Tentei fazê-lo; creio que ambos tentamos.
— Falas como se tivesses vinte anos. Mas se tanto um como o outro já
andam na casa dos cinquenta. Ela tem oito anos mais do que eu. Isso me
transforma numa perfeita idiota.
Ele não respondeu. Mrs. Hamlyn não compreendia as emoções que
tumultuavam no seu peito. Seria o ciúme que a sufocava, a cólera ou
simplesmente o orgulho ferido?
— Não permitirei que isso continue. Se se tratasse apenas de vocês
dois eu me divorciaria, mas há também o marido dela e os filhos. Santo
Deus, não vês que se fossem moças em vez de rapazes ela já poderia ser
avó?
— É muito provável.
— Que sorte não termos filhos!
Ele estendeu uma mão afetuosa como para acariciá-la, mas ela recuou
com horror.
— Tu me tornaste o alvo de riso de todas as minhas amigas. No
interesse de todos nós estou disposta a silenciar, mas só com a condição de
que isto termine de uma vez e para sempre.
Ele baixou os olhos e pôs-se a brincar pensativamente com um bibelô
japonês que estava em cima da mesa.
— Repetirei a Dorothy o que me disseste — respondeu por fim.
Mrs. Hamlyn fez-lhe um pequeno cumprimento, sem proferir palavra,
e saiu do quarto. Estava demasiado furiosa para notar que a sua atitude era
um tanto melodramática.
Ficou à espera de que o marido lhe contasse o resultado da sua
conversa com Dorothy Lacom, mas ele não tornou a referir-se ao
incidente. Mostrava-se calmo, polido e silencioso; afinal ela foi obrigada a
interpelá-lo.
— Esqueceste o que eu te disse no outro dia? — perguntou em tom
frígido.
— Não. Falei com Dorothy. Ela me pediu para te dizer que lamenta
profundamente ter-te causado tamanho sofrimento. Desejaria vir ver-te
mas receia que isso não te agrade.
— Qual foi a decisão a que chegaram?
Ele hesitou. Estava muito sério, mas a sua voz tremia um pouco.
— Temo que seja inútil fazer uma promessa que nós não poderíamos
cumprir.
— Nesse caso o assunto está resolvido — respondeu ela.
— Devo dizer-te que se intentasses um processo de divórcio nós
seríamos obrigados a contestar. Não conseguirias as provas necessárias e
perderias a demanda.
— Não pensava em fazer isso. Vou voltar à Inglaterra e consultar um
advogado. Hoje em dia essas coisas podem-se arranjar facilmente e eu
apelarei para a tua generosidade. Não duvido que possas restituir-me a
liberdade sem envolver Dorothy Lacom no assunto.
Ele suspirou.
— Que confusão medonha, não é mesmo? Eu não desejo que te
divorcies de mim, mas está claro que farei o possível para que se cumpra a
tua vontade.
— Mas que é que tu esperas? — exclamou ela com um novo ímpeto de
cólera. — Esperas que eu me resigne a fazer papel de tola?
— Lamento imenso ter de colocar-te numa posição humilhante. —
Olhou-a com uma — expressão torturada. — Estou certo de que nós não
fizemos nada para nos apaixonar um pelo outro. Nem eu nem ela
esquecemos a nossa idade: Dorothy, como dizes, já poderia ser avó, e eu
sou um cavalheiro calvo e gordo de cinquenta e dois anos. Quando a gente
se enamora aos vinte anos, pensa que o seu amor durará eternamente, mas
aos cinquenta conhece-se muito bem a vida e o amor e sabe-se que ele só
pode durar pouco. — Falava em voz baixa e pesarosa. Dir-se-ia que estava
vendo em imaginação a tristeza do outono e as folhas a desprender-se das
árvores. Olhou gravemente para ela. — E nesta idade a gente sente que
seria loucura repelir o ensejo de felicidade que o destino caprichoso nos
dá. É certo que isto estará terminado dentro de cinco anos, talvez dentro de
seis meses. A vida é monótona e cinzenta, e a felicidade é tão rara! A
morte dura tanto tempo!
Mrs. Hamlyn sentiu uma dor pungente ao ouvir o marido, homem
positivo e prático, falar num tom que lhe era completamente novo.
Adquirira ele de súbito uma personalidade ardente e trágica que ela não
conhecia. Os vinte anos de existência em comum não tinham nenhum
poder sobre ele e Mrs. Hamlyn via-se impotente em face da sua resolução.
O único remédio era ir embora. E assim, cheia de ressentimento e decidida
a obter o divórcio com que o tinha ameaçado, achava-se agora a caminho
da Inglaterra..
O mar liso, que brilhava ao sol como uma folha de vidro, era tão vazio
e hostil como a vida em que não havia lugar para ela. Pelo espaço de três
dias nenhuma outra embarcação violou aquela solidão infinita. De quando
em quando a sua superfície igual era momentaneamente perturbada pela
fuga precipitada de algum peixe voador. O calor era tamanho que os mais
intrépidos passageiros tinham abandonado os jogos de convés e nessa hora
(era depois do almoço) aqueles que não descansavam nos seus camarotes
estavam estendidos nas espreguiçadeiras. Linsell caminhou em direção a
ela e sentou-se.
— Onde está Mrs. Linsell? — perguntou Mrs. Hamlyn.
— Oh, não sei. Anda por aí.
A sua indiferença a exasperava. Seria possível que ele não visse que
sua mulher e o médico começavam a interessar-se demais um pelo outro?
E contudo, não havia muito tempo atrás ele não teria suportado isso. Fora
um casamento romântico. Quando se tornaram noivos, Mrs. Linsell ainda
estava na escola e ele era pouco mais que um menino. Deviam ter formado
um belo e encantador casal, a sua mocidade e o seu amor recíproco sem
dúvida eram muito tocantes. E eis que ao cabo de tão pouco tempo
estavam cansados um do outro. Era de cortar o coração. como fora mesmo
que o seu marido tinha dito?
— Sem dúvida a senhora pretende residir em Londres? — perguntou
Linsell preguiçosamente, para dizer alguma coisa.
— Acho que sim — respondeu Mrs. Hamlyn.
Era-lhe difícil conformar-se com o fato de não ter para onde ir e de não
interessar a ninguém que ela fosse viver aqui ou ali. Uma associação de
ideias qualquer fê-la pensar em Gallagher. Invejava-lhe a ansiedade com
que voltava à sua terra natal e sentia-se tocada, achando graça ao mesmo
tempo, ao lembrar-se da exuberante imaginação com que ele descrevera a
casa onde pretendia morar e a mulher com que tencionava casar. As suas
amigas de Yokohama, a quem confiara a decisão de divorciar-se, tinham-
lhe garantido que ela tornaria a casar. Não desejava tentar segunda vez
uma coisa que tanto a decepcionara, e além disso a maioria dos homens
teria vacilado em propor casamento a uma mulher de quarenta anos. Mr.
Gallagher, por exemplo, idealizava uma jovem de formas roliças.
— Onde está Mrs. Gallagher? — perguntou ela ao submisso Linsell. —
Há uns dois dias que não o vejo.
— Então não sabia? Ele está doente.
— Coitado! Que é que ele tem?
— Tem soluços.
Mrs. Hamlyn riu. — Mas soluço é doença?
— O médico de bordo está bem preocupado. Tem tentado todos os
meios, mas não consegue fazê-los parar.
— Que coisa esquisita!
Não pensou mais nisso, mas no dia seguinte de manhã, encontrando-se
por acaso com o médico de bordo, perguntou-lhe como ia Mr. Gallagher.
Ficou surpreendida ao ver aquele rosto alegre e juvenil anuviar-se e
assumir uma expressão de perplexidade.
— Receio que o pobre homem esteja muito mal.
— Com soluços? — exclamou ela, assombrada. Era uma indisposição
que realmente não se podia levar a sério.
— É que ele não pode conservar o alimento no estômago. Não
consegue dormir. Está numa exaustão horrível. Tentei todos os meios de
que pude lançar mão. — O médico hesitou. — A menos que eu consiga
deter esses soluços muito depressa... não sei o que acontecerá.
Mrs. Hamlyn assustou-se. — Mas ele é tão forte! Pareceu-me tão cheio
de vida!
— Queria que o visse agora.
— Ele não se incomodaria se eu o fosse ver?
— Venha comigo.
Gallagher fora removido do seu camarote para a enfermaria de bordo.
Ao aproximar-se desta ouviram um alto soluço. É um som que, talvez por
estar associado à ideia de bebedeira, tem qualquer coisa de cômico. Mas o
aspecto de Gallagher produziu um choque em Mrs. Hamlyn. Emagrecera
muito e a pele do seu pescoço pendia em dobras flácidas. O rosto, sob o
bronzeado do sol, estava pálido. Os olhos, outrora cheios de riso e de
alegria, pareciam desvairados e torturados. Seu grande corpo era
incessantemente sacudido pelos soluços e estes já nada tinham de
cômicos; a Mrs. Hamlyn, sem que ela soubesse por que razão, eles
pareceram singularmente terrificantes. Gallagher sorriu ao vê-la entrar.
— Sinto muito vê-lo nesse estado — disse ela.
— Mas fique sabendo que não vou morrer — respondeu ele com um
arfar. — Hei de chegar às verdes plagas de Erin, ora se não.
Ao lado dele estava sentado um homem que se ergueu quando Mrs.
Hamlyn e o médico entraram.
— Este é Mr. Pryce — disse o médico. -Era o encarregado das
máquinas na propriedade de Mr. Gallagher.
Mrs. Hamlyn inclinou a cabeça. Era esse o passageiro de segunda
classe a quem Gallagher se referira quando haviam discutido a festa que
pretendiam dar no dia de Natal. Era um homem de pequena estatura, mas
vigoroso, com uma fisionomia impudente e simpática e um ar seguro de
si.
— Está contente de voltar para a sua terra? — perguntou Mrs. Hamlyn.
— E não haveria de estar, dona? — respondeu ele.
A entonação destas poucas palavras revelou a Mrs. Hamlyn que se
tratava de um cockney e, reconhecendo esse tipo prazenteiro, bem-
humorado, sensato e despreocupado, sentiu-se tomada de simpatia por ele.
— O senhor não é irlandês? — perguntou sorrindo.
— Eu não, miss. Minha terra é Londres, e lhe garanto que não ficarei
triste por tornar a vê-la.
Mrs. Hamlyn nunca se ofendia quando lhe davam o tratamento de
"miss".
— Bem, patrão, vou andando — disse ele a Gallagher, esboçando um
gesto em direção a um boné que não tinha na cabeça.
Mrs. Hamlyn perguntou ao doente se podia fazer alguma coisa por ele
e dentro de um ou dois minutos retirou-se em companhia do médico. O
pequeno cockney esperava-a na porta.
— Posso lhe falar um instante, miss?
— Claro que sim.
A enfermaria ficava à ré. Ambos se encostaram na amurada e olharam
lá embaixo o "poço", onde os marinheiros indígenas e os criados de bordo
fora de serviço descansavam em cima das coberturas das escotilhas.
— Não sei bem como começar — disse Pryce, hesitante, com a
fisionomia vivaz e jovial estranhamente demudada numa expressão grave.
— Há quatro anos que trabalho com Mr. Gallagher e é preciso caminhar
muito para encontrar um homem melhor do que ele.
Tornou a hesitar. — Isso não me agrada nem um pouco, essa é que é a
verdade.
— O que não lhe agrada?
— Bem, se quer que eu lhe diga, ele está perdido e o médico não sabe.
Eu já disse a ele, mas não quer me escutar.
— Não desanime, Mr. Pryce. É verdade que o doutor é moço, mas eu o
acho muito competente e, como sabe, ninguém morre de soluços. Tenho
certeza de que Mr. Gallagher estará melhor dentro de um ou dois dias.
— Sabe quando isso começou? Assim que perdemos a terra de vista.
Ela disse que ele não chegaria a ver seu país.
Mrs. Hamlyn virou-se para encará-lo. Media três boas polegadas mais
do que ele.
— O que quer dizer com isso? — A minha opinião é que lhe puseram
feitiço, se é que me entende. De nada adianta a medicina. A senhora não
conhece essas mulheres malaias como eu as conheço.
Mrs. Hamlyn passou por um momento de susto, mas justamente por se
ter assustado deu de ombros e riu.
— Ora, Mr. Pryce, isso são tolices! — Foi o que o doutor disse quando
eu lhe falei. Mas pode escrever o que estou lhe dizendo: ele vai morrer
antes de avistarmos terra outra vez.
O homem falava com tanta seriedade que Mrs. Hamlyn, vagamente
inquieta, sentiu-se impressionada mau grado seu.
— Mas por que motivo haviam de ter posto feitiço em Mr. Gallagher?
— Bom, isso é uma coisa meio pau de contar a uma senhora.
— Conte-me, por favor!
Pryce estava tão embaraçado que em qualquer outra ocasião Mrs.
Hamlyn teria tido dificuldade em ocultar o seu divertimento.
— Mr. Gallagher viveu muitos anos num fim de mundo. Naturalmente
é uma vida muito cacete e a senhora sabe como são os homens, miss.
— Estive vinte anos casada — respondeu ela sorrindo. — Perdão,
madame. Pois o fato é que ele tinha uma moça malaia em casa. Não sei
quanto tempo isso durou, acho que uns dez ou doze anos. Bom, quando ele
resolveu voltar para a terra ela não disse nada. Ficou sentada no mesmo
lugar, sem dar um pio. Mr. Gallagher pensava que ela ia dar o estrilo, mas
não... Deixava-a bem amparada, é claro. Deu-lhe uma casinha e
providenciou para que lhe pagassem uma mesada. Ele não era sovina, é
preciso que se reconheça, e a mulher já sabia há algum tempo que ele ia
embora. Não chorou nem nada. Quando ele encaixotou todas as suas coisas
e mandou despachar, ela viu levarem tudo sem se mexer do seu lugar. E
quando ele vendeu a mobília aos chins ela não disse uma palavra. Ele lhe
daria tudo que ela precisasse. E quando chegou a hora de Mr. Gallagher ir
tomar o vapor ela ficou sentada nos degraus da varanda, olhando, sem
falar. Ele quis lhe dizer adeus, como qualquer um teria feito, mas a
senhora acredita que ela nem se mexeu? "Você não quer me dizer adeus?"
perguntou ele. A mulher fez uma cara esquisita, e sabe o que ela disse?
"Você vai", disse ela; esses nativos têm um jeito engraçado de falar, não
falam como nós; "você vai", disse ela, "mas eu lhe digo: você não chegará
até o seu país. Quando a terra se sumir no mar a morte virá para o seu
lado, e antes que aqueles que forem com você tornem a ver terra a morte o
terá levado consigo." Fiquei com uma impressão!
— E que foi que Mr. Gallagher disse? — perguntou Mrs. Hamlyn.
— Oh, a senhora sabe como ele é. Achou graça, nada mais. "Então
passar muito bem", disse ele; saltou para o carro e pisamos no mundo.
Mrs. Hamlyn via a estrada ensolarada avançar por entre as plantações
de borracha com as suas árvores verdes e garbosas, muito bem espaçadas,
com o seu silêncio, depois serpentear por uma encosta acima e tornar a
mergulhar na selva emaranhada. O automóvel corria, guiado por um
malaio afoito, com os seus passageiros brancos, passando diante de casas
malaias afastadas da estrada, entre coqueiros, isoladas e taciturnas, e
atravessando movimentadas aldeias com os seus mercados apinhados de
gente pequena, de pele escura e vestida com sarões de cores alegres.
Depois, por volta do anoitecer, alcançava a cidade moderna e vistosa, com
os seus clubes e os seus campos de golfe, a sua população branca e a sua
estação onde os dois homens podiam tomar o trem para Singapura. E a
mulher continuava sentada nos degraus do bangalô, vazio até que o novo
administrador viesse ocupá-lo, e observava a estrada, via o carro ganhar
velocidade e não tirava os olhos dele senão quando se perdia nas trevas da
noite.
— Que tipo tinha ela? — perguntou Mrs. Hamlyn.
— Bem, para mim todas essas mulheres malaias se parecem —
respondeu Pryce. — Naturalmente já não era muito moça, e a senhora sabe
como são essas nativas; engordam que é um horror.
— Gorda?
Esta ideia, inexplicavelmente, encheu Mrs. Hamlyn de consternação.
— Mr. Gallagher sempre levou uma vida farta, se é que me entende.
A ideia de corpulência restituiu Mrs. Hamlyn imediatamente ao bom
senso. Sentia-se aborrecida consigo mesma porque durante um instante
estivera a ponto de aceitar a explicação do pequeno cockney.
— Isso é completamente absurdo, Mr. Pryce. Uma mulher gorda não
pode lançar feitiço sobre ninguém a mil milhas de distância. O fato é que
as mulheres gordas têm uma vida cheia de dificuldades.
— Ria quanto quiser, miss, mas tome nota do que estou dizendo: se
não se tomar uma providência qualquer o patrão está perdido. E não é a
medicina que vai salvá-lo, pelo menos a medicina dos brancos.
— Faça uso do bom senso, Mr. Pryce. Essa senhora gorda não tinha
nenhum motivo de queixa contra Mr. Gallagher. De acordo com os hábitos
do Oriente ele parece tê-la tratado muito bem. Por que quereria mal a ele?
— A gente não sabe de que modo elas encaram essas coisas. Um
homem pode viver vinte anos com uma dessas nativas, mas pensa que ele
é capaz de compreender aquela alma negra? Nunca!
Mrs. Hamlyn não pôde sorrir desta linguagem melodramática, pois
Pryce falava com uma intensidade que impressionava. E ninguém sabia
melhor do que ela que o coração dos seres humanos, seja a sua pele
amarela, parda ou branca, é impenetrável.
— Mas ainda que ela estivesse furiosa com ele, ainda que o Odiasse e
quisesse matá-lo, o que poderia fazer? — Era estranho que Mrs. Hamlyn,
com as suas perguntas, estivesse inconscientemente procurando
tranquilizar-se. — Não existe veneno que comece a produzir efeito depois
de seis ou sete dias.
— Eu não disse que era veneno.
— Desculpe, Mr. Pryce — sorriu ela —, mas não me fará acreditar em
feitiços, sabe?
— A senhora vive no Oriente?
— Há vinte anos, por temporadas.
— Bem, se a senhora sabe do que eles são capazes e do que não são, é
mais entendida do que eu. — Cerrou o punho e deu um soco na amurada
com uma violência furiosa e repentina. — Estou farto dessa maldita terra.
Ela me deu nos nervos. Nós, brancos, não podemos com eles, essa é que é
a verdade. Se me dá licença, acho que vou tomar uma pinga. Estou muito
nervoso.
Fez um cumprimento abrupto com a cabeça e deixou-a. Mrs. Hamlyn
observou o homenzinho atarracado e metido numa velha roupa cague,
enquanto se afastava raspando com os pés no chão, descia a escotilha para
o convés do meio e, atravessando-o com a cabeça curvada, desaparecia no
bar da segunda classe. Não saberia explicar por que motivo ele a deixara
presa de uma vaga inquietação. Não conseguia apagar na imaginação
aquele quadro de uma mulher corpulenta, que já não era jovem, com um
sarong, uma blusa colorida e adornos de ouro, sentada nos degraus de um
bangalô e contemplando uma estrada deserta. O seu rosto maciço estava
pintado, mas os olhos grandes e secos não tinham expressão. Os homens
que iam no automóvel eram como colegiais que fossem passar as férias
em casa. Gallagher soltava um suspiro de alívio. Na manhãzinha, sob o
céu límpido, ele fervilhava de animação. O futuro parecia uma estrada
ensolarada que vagueava através de uma vasta planície coberta de árvores.
Mais tarde, nesse mesmo dia, Mrs. Hamlyn perguntou ao médico como
ia o seu doente. O médico sacudiu a cabeça.
— Não posso mais. Não sei mais o que fazer. Franziu o sobrolho,
desgostoso. — É mesmo pouca sorte dar com um caso destes. Até na
Inglaterra seria um caroço, e a bordo então nem se fala...
Era de Edimburgo, mas formara-se havia pouco e estava fazendo
aquela viagem a título de férias, antes de se instalar na clínica. Sentia-se
vítima de uma injustiça. Queria divertir-se, mas aquela misteriosa doença
o preocupava mortalmente. Faltava-lhe experiência, por certo, mas estava
fazendo tudo quanto era possível e exasperava-se por suspeitar que os
passageiros o julgassem um ignorante.
— Sabe o que Mr. Pryce pensa? — perguntou Mrs. Hamlyn. — Nunca
ouvi asneira igual. Disse ao capitão e ele está danado. Não quer que se fale
nisso. Acha que pode perturbar os passageiros.
— Pode contar com a minha discrição. O médico perscrutou-a com o
olhar. — Sem dúvida não acredita que possa haver a menor dose de
verdade nessas tolices?
— Claro que não. — Ela olhou para o mar que brilhava por todos os
lados, azul, oleoso e imóvel. — Vivi muito tempo no Oriente. Acontecem
lá coisas esquisitas.
— Isto está começando a me atacar os nervos — disse o médico.
Ali perto dois pequenos japoneses jogavam malha no convés. Estavam
muito corretos e asseados com as suas camisas de tênis, calças brancas e
sapatos de bocaxim. Pareciam muito europeus, até anunciavam a
contagem um ao outro em inglês, e no entanto Mrs. Hamlyn sentiu-se
vagamente perturbada ao observá-los nesse momento. Pelo fato de usarem
um travesti com tanta facilidade, havia nessas criaturas qualquer coisa de
sinistro. Também ela não estava boa dos nervos.
E de repente, ninguém saberia dizer como, espalhou-se por todo o
navio o boato de que Gallagher estava enfeitiçado. As senhoras, sentadas
nas cadeiras do convés, tagarelavam à meia-voz enquanto cosiam os trajes
de fantasia para o baile do Natal e os homens, na sala de fumar,
comentavam o assunto diante dos seus coquetéis. Bom número de
passageiros que tinham vivido largo tempo no Oriente extraíam casos
estranhos e inexplicáveis dos escaninhos da memória. Era, por certo,
absurdo acreditar seriamente que Gallagher estivesse sendo vítima de um
sortilégio maligno. Essas coisas eram impossíveis; e contudo, havia tais e
tais fatos que ninguém conseguira explicar. O médico teve de confessar-se
incapaz de apontar uma causa para o estado de Gallagher. Podia dar uma
explicação fisiológica, mas por que motivo ele fora atacado de súbito por
aqueles pavorosos espasmos? Isso ele não dizia. Sentindo-se vagamente
exposto à censura, procurava defender-se.
— Casos como este um médico pode passar a vida inteira sem
encontrar um só. Que azar!
Comunicava-se pelo rádio com os navios próximos e recebia daqui e
dali sugestões para o tratamento.
— Já experimentei tudo que eles me aconselham — dizia com
irritação. — O médico do vapor japonês fala em adrenalina. Como diabo
vou arranjar adrenalina no meio do Oceano Índico?
Havia qualquer coisa de impressionante na ideia daquele navio a
singrar um mar deserto enquanto mensagens invisíveis lhe chegavam de
todas as partes. Naquele momento ele parecia ser o centro do mundo,
apesar de estar singularmente só. Na enfermaria, o doente, sacudido pelos
implacáveis espasmos, arfava em luta com a morte. Então os passageiros
perceberam que a rota do navio fora alterada e ouviram dizer que o capitão
tinha resolvido aportar a Adem. Gallagher seria posto em terra e
conduzido ao hospital, onde lhe podiam dispensar cuidados que a bordo
eram impossíveis. O chefe das máquinas teve ordem de acelerar a marcha
do navio. Este, que era velho, começou a tremer todo sob o esforço. Os
passageiros tinham-se acostumado ao ruído e à vibração das máquinas,
mas o aumento dessa vibração lhes sacudia os nervos, dando-lhes uma
sensação nova. Ao invés de passar ao subconsciente, fustigava-lhes a
sensibilidade, de modo que cada um deles ganhou um interesse pessoal no
caso. Entretanto, o mar imenso continuava órfão de embarcações e eles
pareciam estar atravessando um mundo vazio. Então a vaga inquietação
que descera sobre o navio e que ninguém queria reconhecer converteu-se
num positivo mal-estar. Os passageiros ficaram irritadiços e começaram a
explodir disputas em torno de assuntos que em outra ocasião qualquer
teriam parecido insignificantes. Mr. Jephson dizia as suas rançosas piadas,
mas já ninguém o recompensava com um sorriso. Os Linsell tiveram uma
altercação e Mrs. Linsell foi ouvida tarde da noite a filar voltas pelo
convés como marido, proferindo em voz baixa e tensa uma torrente de
censuras impetuosas. uma noite, a respeito de uma partida de bridge,
houve uma discussão violenta na sala de fumar e a subsequente
reconciliação foi acompanhada de uma bebedeira geral. Pouco falavam em
Gallagher, mas este raramente saía dos pensamentos. Examinavam a carta
marítima. O médico dizia agora que Gallagher não podia viver mais de
dois ou três dias e os passageiros discutiam com acrimônia sobre o tempo
mais curto em que seria possível alcançar Adem. O que lhe acontecesse
após o desembarque não lhes interessava; apenas não queriam que ele
morresse a bordo.
Mrs. Hamlyn visitava Gallagher todos os dias. Com a mesma rapidez
com que após uma chuva primaveril, nos trópicos, a gente vê a erva
crescer diante dos seus olhos, ela o via finar-se agora. Já a pele lhe pendia
flácida em volta dos ossos e a sua papada semelhava uma papada de peru.
As faces estavam encovadas. Notava-se agora o quanto era grande a sua
armadura óssea, que, debaixo do lençol, lembrava o esqueleto de algum
gigante pré-histórico. Estava geralmente com os olhos cerrados, no torpor
da morfina, mas sacudido sempre pelas terríveis convulsões, e quando de
tempos a tempos abria os olhos estes tinham um tamanho sobrenatural,
encarando vagamente as pessoas, perplexos e perturbados, do fundo das
órbitas ossudas. Mas quando reconhecia Mrs. Hamlyn, ao sair do seu
estupor, obrigava os lábios a entreabrir-se num sorriso de bravura.
— Como vai, Mr. Gallagher? — perguntava ela. -- Vou indo, vou indo.
Hei de ficar bom quando nos livrarmos deste maldito calor. Meu Deus,
como estou aflito por dar um mergulho no Atlântico! Daria tudo por uma
boa meia hora de nado. Quero sentir no peito o mar frio e cinzento de
Galway.
Mas um soluço sacudia-o do alto da cabeça até as solas dos pés. Mr.
Pryce e a enfermeira revezavam-se em cuidar dele. A fisionomia do
pequeno cockney já não tinha aquela expressão de jovialidade impudente;
estava, ao invés, bastante casmurra.
— O capitão mandou me chamar ontem — disse ele a Mrs. Hamlyn
quando se viram a sós. — Passou-me uma jiribanda daquelas.
— A que respeito? — Diz ele que não quer ouvir falar nessas histórias
de feitiço. Que isso estava assustando os passageiros e que eu tivesse tento
na língua, senão ia justar contas com ele. A culpa não é minha. Eu nunca
disse uma palavra, a não ser à senhora e ao doutor.
— Todo o navio anda falando disso. — Eu sei. Pensa que sou só eu que
o digo? Todos esses malaios e chineses sabem o que ele tem. Pensa que
nós podemos ensinar muita coisa a essa gente? Eles sabem que não é uma
doença natural.
Mrs. Hamlyn ficou calada. Sabia, pelas criadas de alguns passageiros,
que ninguém no navio, a não ser os brancos, duvidava de que a mulher a
quem Gallagher tinha deixado no distante Estado de Selantan o estava
matando pouco a pouco com a sua magia. Todos tinham a convicção de
que ao avistarem os penhascos escalvados da Arábia a alma do irlandês.
separar-se-ia do seu corpo.
— Diz o capitão que se ouvir contar que eu andei tentando alguma
mandinga ele vai mandar me fechar na cabina durante o resto da viagem
— falou Pryce de repente, com um ar mal-humorado.
— Que quer dizer com mandinga?
Ele a considerou um instante com ferocidade, como se ela também
fosse alvo da cólera que sentia contra o capitão.
— O doutor já experimentou tudo o que sabe, passou radiogramas para
todos os lados, e que adiantou isso? Faça o favor de me dizer. Então ele
não vê que o homem está à morte? Agora só temos um meio de salvá-lo.
— Que meio?
— Ele está morrendo por obra de magia e só com a magia pode ser
salvo. Oh, não me diga que isso é impossível. Já vi com os meus olhos. —
Sua voz alteou-se, irritada e estridente. — Já vi um homem arrancado das
goelas da morte, como quem diz, quando mandaram chamar um pawang,
isso que nós chamamos um curandeiro, e ele começou a fazer as suas
tricas. Estou lhe dizendo que vi com os meus olhos!
Mrs. Hamlyn ficou calada. Pryce lançou-lhe um olhar penetrante.
— Um desses marinheiros nativos é curandeiro, tal qual os pawang dos
Estados Malaios. Ele diz que fará a coisa. Só precisa de um animal vivo.
Um galo serve.
— Para que quer ele um animal vivo? — perguntou Mrs. Hamlyn,
franzindo levemente o sobrolho.
O cockney olhou-a com viva desconfiança. — Se quer ouvir o meu
conselho, faça que não sabe de nada. Mas uma coisa eu lhe digo: não
deixarei pedra por virar enquanto não tiver salvo o patrão. E se o capitão
souber disso e me mandar trancafiar na cabina, paciência.
Nesse momento Mrs. Linsell aproximou-se e Pryce foi embora,
fazendo aquele seu curioso gesto de saudação. Mrs. Linsell queria que
Mrs. Hamlyn lhe ajustasse o costume que estava fazendo para o baile à
fantasia, e enquanto desciam à cabina referiu ansiosamente à possibilidade
de que Mr. Gallagher morresse no dia de Natal. Nesse caso não seria
possível dar o baile. Tinha dito ao médico que nunca mais lhe falaria se tal
coisa acontecesse e ele prometera manter o homem com vida, fosse lá
como fosse, até depois do Natal.
— Seria muito bom para ele também — disse Mrs. Linsell.
— Para quem? — perguntou Mrs. Hamlyn.
— Para o pobre Mr. Gallagher. Naturalmente ninguém gosta de morrer
no dia de Natal, não é mesmo?
— Na verdade, não sei — respondeu Mrs. Hamlyn.
Essa noite, após um sono breve, ela acordou a chorar. Ficou
consternada ao ver que estivera chorando enquanto dormia. Era como se a
fraqueza da carne a dominasse e, com a vontade vencida, ela se
encontrasse indefesa em face do sofrimento. Revolveu na mente, como já
havia feito tantas vezes, os pormenores do desastre que tão profundamente
a afetara. Repetiu as conversas com o marido, desejando ter dito isto e
censurando-se porque dissera aquilo. Quem lhe dera ter permanecido na
tranquila ignorância daquela paixão! Não teria sido melhor meter o
orgulho no bolso e fechar os olhos à dolorosa verdade? Era uma mulher
experiente e bem sabia que ao separar-se do marido perdia muito mais do
que o seu amor: perdia uma posição sólida e segura, de amplos recursos, e
o apoio de uma situação oficial. Tinha notícia de muitas mulheres
separadas dos maridos, a viver equivocamente de pequenos rendimentos, e
sabia quão depressa as pessoas amigas se cansavam delas. E estava só, tão
só quanto o navio que cruzava às pressas aquele mar despovoado, tão só
quanto o homem sem amigos que agonizava na enfermaria de bordo. Mrs.
Hamlyn compreendeu que os seus pensamentos a tinham levado de
vencida e que já não lhe seria fácil dormir. Fazia muito calor dentro da
cabina. Olhou o relógio: era entre quatro e quatro e meia. Tinha de esperar
ainda duas intermináveis horas antes que o dia lhe trouxesse o seu pouco
de conforto.
Enfiou um quimono e subiu para o convés. A noite era sombria e
embora não houvesse nuvens as estrelas não estavam visíveis. O velho
navio, ofegante e trêmulo, avançava a todo vapor no meio das trevas. O
silêncio tinha algo de sobrenatural. Mrs. Hamlyn caminhava de pés
descalços pelo convés, lentamente, às tateadas. Estava tão escuro que ela
não podia distinguir nada. Chegou à extremidade do tombadilho de passeio
e encostou-se à amurada. De súbito estremeceu e a sua atenção fixou-se
num ponto, uma claridade bruxuleante que avistara no convés de baixo.
Debruçou-se com cautela. Era uma pequena fogueira e Mrs. Hamlyn via
apenas o clarão porque as chamas eram ocultadas pelos troncos nus de
alguns homens acocorados ao seu redor. A beira do círculo ela adivinhou
uma figura atarracada, de pijama. Os demais eram nativos, mas esse era
um europeu. Devia ser Pryce, e ela imediatamente compreendeu que se
estava realizando alguma tenebrosa cerimônia de exorcismo. Aguçou o
ouvido e distinguiu uma voz baixa que resmuneava um rosário de palavras
desconhecidas. Pôs-se a tremer. Embora os sentisse demasiado absortos na
sua prática para suspeitar que alguém os pudesse estar observando, não se
atrevia a mexer-se. De repente, cortando o silêncio da noite como um
pedaço de seda que se rasgasse em dois, ouviu-se o canto de um galo. Mrs.
Hamlyn quase deixou escapar um grito. Mr. Pryce tentava salvar a vida do
seu amigo e patrão com um sacrifício aos estranhos deuses do Oriente. A
voz continuava, baixa e insistente. Notou-se então um movimento no
círculo escuro; estava acontecendo alguma coisa que ela não sabia o que
fosse; o galo cacarejou, furioso e assustado, e seguiu-se um som estranho e
indescritível. O mágico estava degolando a ave. Silêncio, depois alguns
gestos vagos que ela não pôde acompanhar, e dentro em pouco lhe pareceu
que alguém apagava as brasas com os pés. As figuras indistintas
dissolveram-se na noite e tudo voltou à tranquilidade. Ela tornou a ouvir a
vibração regular das máquinas.
Mrs. Hamlyn ainda ficou alguns instantes sem se mover, presa de
estranha emoção, depois caminhou lentamente pelo convés. Encontrou
uma espreguiçadeira e estendeu-se nela. Ainda estava trêmula. Não podia
fazer senão conjeturas sobre o que havia acontecido. Não saberia dizer
quanto tempo ficou ali, mas finalmente sentiu que não tardaria a
amanhecer. Ainda não era dia, mas também já não era noite. Já podia
distinguir a amurada do navio contra a escuridão da noite. Avistou então
um vulto que caminhava na sua direção. Era um homem de pijama.
— Quem é? — gritou, nervosa.
— Não é ninguém, é o médico — respondeu uma voz amiga.
— Ah! Que está fazendo aqui a estas horas?
— Estava com Gallagher. — O doutor sentou-se ao lado dela e acendeu
um cigarro. — Dei-lhe uma hipodérmica bem forte e ele se aquietou.
— Estava muito mal?
— Julguei que fosse expirar. Estava observando-o. De repente ele
sentou-se na cama e começou a falar em malaio. Não entendi coisa
alguma, é lógico. Ele repetia sem cessar a mesma palavra.
— Talvez fosse um nome, o nome de uma mulher.
— Queria sair da cama. Ainda tem força como o diabo. Caramba, tive
de lutar com ele! Receava que ele se atirasse ao mar. Parecia pensar que
alguém o estava chamando.
— Quando foi isso? — perguntou Mrs. Hamlyn devagar.
— Entre quatro e quatro e meia. Por quê?
— Nada.
Mrs. Hamlyn teve um arrepio.