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C o leç ão

HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA

Antoine Prost

Doze lições sobre a história

TRADUÇÃO

G uilherm e João de Freitas Teixeira

autêntica
T ítu lo o rig in a l: " D o u z e le ç o n s s u r l'h is t o ir e " , d e A n t o in e Pro st.

C o p y r ig h t © É d itio n s d u S e u il, 1 9 9 6

COORDENADORA DA CO LEÇÃ O HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA


Eliana de Freitas Dutra

PROJETO GRÁFICO DE CA PA c a p a : S o b re im a g e m de
Teco de Souza P u vis d e C h a v a n n e s . Le Bois sacré
(d e ta lh e ). G r a n d A m p h it h é â t r e d e la.
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
A r c h iv e s G ir a u d o n . S o rb o n n e , Paris
Tales Leon de M arco

REVISÃO
A iko M ine

REVISÃO TÉCN ICA


Vera Chacham

EDITORA RESPONSÁVEL
Rejane Dias

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D a d o s In t e rn a c io n a is de C a t a lo g a ç ã o na P u b lic a ç ã o (CIP)
(C â m a ra B ra sile ira d o Livro)

Prost, A n to in e , 1 9 3 3 - .
D o ze liçõ e s sobre a h istória / A n to in e Prost ; [tra d u çã o de G u ilh e rm e
João de Freitas Teixeira]. — Belo H o rizo n te : A u tê n tic a Editora , 2 0 0 8 .
T ítu lo o riginal: D o u ze le ço n s sur l'h isto ire .
B ib lio g ra fia .

ISBN 9 7 8 - 8 5 - 7 5 2 6 - 3 4 8 - 8
1. H is to rio g ra fia 2. H istória - M e to d o lo g ia I. Título.

0 8 -0 7 5 2 8 C D D -9 0 7 .2

Índices para c a tá lo g o sistem á tico:

1. H is to rio g ra fia 9 07 .2
i i I I l II < » V

O s tempos da história

Poderíam os ter escrito, provavelm ente, as páginas precedentes, sem


introduzir qualquer modificação, se nosso tem a tivesse sido a sociologia:
bastaria ter substituído as palavras história, historiador e histórico por sociolo­
gia, sociólogo e sociológico, respectivam ente. C o m efeito, todas as disciplinas
interessadas, de perto ou de longe, pelos hom ens que vivem em socieda­
de fom iulam às fontes — a partir de u m grupo profissional e de determ i­
nada sociedade — questões que têm tam bém u m sentido pessoal para seu
form ulador. O que distingue a questão do historiador, situando-a à parte,
da questão formulada pelo sociólogo ou pelo etnólogo é u m aspecto que
ainda não abordamos: sua dim ensão diacrônica.
O profano não se engana ao reconhecer os textos históricos pelo fato
de apresentarem datas; aliás, com alguma ironia, Lévi-Strauss cham ou a
atenção para esse aspecto.

12. - Claude Lévi-Strauss: N ão há história sem datas


Não há história sem datas; para convencermo-nos disso, basta veri­
ficar como o aluno consegue aprender história, reduzindo-a a um
corpo descarnado, cujo esqueleto é formado por datas. Não foi
sem motivo que se reagiu contra esse método maçante, mas, caiu-
se, frequentemente, no extremo oposto. Se a história não é feita
unicamente por datas que nem são seu aspecto mais interessante,
elas constituem o aspecto sem o qual a própria história deixaria de
existir já que sua verdadeira originalidade e especificidade encon-
tram-se na apreensão da relação entre um “antes” e um “ depois” , a
qual seria votada a se dissolver se —pelo menos, virtualmente —seus
termos não pudessem ser datados.

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( )ra, .1 aulilii ,»v.io >mnológh .t div.imula tnnti w m i i v / . i muito n u i s ■u m v r/, d i|,i | *. v»ilth i" "ii i * tlr M . iio d r 11}(>H passam bastante* i aptd.imen
plcxu elo c|Lic sc imagina, i | U .i ik I o a s datns ila história sào concebidas tc' i > Instou idni ia - i toiit.tgcm , as vezes, eni n ú m ero de dias, até mes
sob a forma de uma simples série linear. (I i;vi- S i rauss, 1990, p. 342)
mo, de lioias; r outras vezes, em meses, anos ou períodos mais longos.
N o entanto, tais flutuações no desenrolar do tem po da história são coleti­
A questão do historiador é form ulada do presente em relação ao
vas; independentes da psicologia de cada um , é possível objetivá-las.
passado, in cid in d o sobre as origens, evolução e itinerários no tem po,
identificados através de datas. A história faz-se a partir do tem po: u m Aliás, é lógico que o tempo da história esteja em harmonia com o pró­
tem po com plexo, construído e m ultifacetado. O que é, p o rtanto, esse prio objeto da disciplina. Ao estudar os homens que vivem em sociedade - e
tem po caracterizado pelo fato de que, ao servir-se dele, a história simulta­ voltaremos ao assunto a história se serve de um tem po social, ou seja, de
neam ente o constrói, além de constituir um a de suas particularidades fun­ referências temporais que são com uns aos m em bros da mesma sociedade.
dam entais? N o entanto, o tem po não é o mesmo para todas as sociedades: para os histo­
riadores atuais, é o de nossa sociedade ocidental contemporânea. E o resulta­
A história do tempo do de um a longa evolução, de um a conquista secular. Seria impossível, nos
limites deste ensaio, delinear sua história completa, tanto mais que, em gran­
Um tem po so cia l de parte, ela ainda está por escrever; no mínimo, é indispensável colocar as
Prim eira característica que não será m otivo de surpresa: o tem po da principais balizas e deduzir as grandes linhas dessa conquista.1
história é, precisam ente, o das coletividades, sociedades, Estados e civili­
zações. Trata-se de um tem po que serve de referência co m u m aos m em ­
A unificação do tem po: a era cristã
bros de u m grupo. O tem po de nossa história está ordenado, ou seja, tem um a origem
e um sentido. N este aspecto, ele desem penha um a prim eira função, es­
A observação é tão banal que, para com preender seu alcance, con­
sencial, de colocar em ordem , perm itindo classificar os fatos e os aconte­
vém identificar o que ela exclui. O tem po da história não é o tem po
cim entos de m aneira coerente e com um . Essa unificação fez-se co m a
físico, n e m o tem po psicológico; tam pouco é o dos astros ou dos relógios
chegada da era cristã, ou seja, nosso tem po está organizado a partir de um
de quartzo, divisível ilim itadam ente, em unidades rigorosam ente idênti­
cas. Apesar de ser sem elhante no que diz respeito à continuidade linear e acontecim ento fundador que o unifica: o nascim ento do Cristo. E eixo-
à divisibilidade em períodos constantes - séculos, anos, meses, dias —, é neam ente datado na m edida em que, segundo os críticos, o Cristo teria
diferente p o r não ser um a m oldura extem a, disponível para todas as ex­ nascido alguns anos, antes ou depois, de Jesus Cristo: eis o que consolida
periências. “ O tem po histórico, diferentem ente da reta geom étrica que é 0 caráter abstrato e simbólico dessa referência, apesar de tudo, indispen­
com posta p o r um a infinidade de pontos, não é form ado p o r um a infini­ sável, e que funciona com o um a origem algébrica, incluindo um a datação
dade de fatos” (Ariès, 1986, p. 219). O tem po da história não é um a anterior e posterior (a.C. e d.C.) a esse evento.
unidade de medida: o historiador não se serve do tem po para m edir os Será necessário esperar o século X I para que a era cristã, portanto,
reinados e com pará-los entre si - essa operação não teria qualquer senti­ datada a partir do nascim ento do Cristo, se tom e predom inante na cris-
do. O tem po da história está incorporado, de alguma forma, às questões, tandade; além disso, será imposta ao m undo inteiro, com o referência co­
aos docum entos e aos fatos; é a própria substância da história. m um , pela expansão dos impérios coloniais — espanhol, holandês, britâ­
O tem po da história tam bém não é a duração psicológica, im pos­ nico e francês. N o entanto, essa conquista foi lenta e incom pleta.
sível de m edir, dotada de segm entos, cuja intensidade e espessura são A generalização da era cristã im plicou o abandono de um a concep­
variáveis; em determ inados aspectos, é com parável a essa duração p o r ção circular do tem po que estava extrem am ente disseminada, inclusive,
seu caráter de experiência vivida. C in q ü en ta e dois meses de guerra em
1914-1918 m an têm certa analogia com as semanas passadas entre a vida
1 Sem esquecer a citação anterior de P. Ariès, indicam os, essencialmente, ao leitor as obras de G U É N E E
e a m o rte em u m hospital. O tem po da guerra é m u ito longo... P o r sua (1990); PO M 1A N (1984); K O SEL LE C K (1990) e M IL O (1991).

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na C hina e no J;ipac>, rogiòes em que .\ d.it.içao se l.r/ia poi .iiios J u inn.t .ms 11 ni i.!<. , 11i i m !.* • *itílin..!• In» .ns Aiml.i hoje, subsistem vestígios
do do Im perador: a data origem 6 o início do reino. N o entanto, os reinos dessa pi.itn.i, » m im . .-..i pl.i» ,t lix.ul.» na l.u hada da igreja parisiense de
se encadeavam em dinastias ou eras, cada um a das quais segue a mesma N.imi L iiennr dn M oni que cham a a atenção do passante para o fato de
trajetória, desde a fundação por u m soberano prestigioso até sua decadência que sua construção loi iniciada no reinado de Francisco I o e term inou no
e mina. Cada dinastia correspondia a um a das cinco estações, um a virtude reinado de Luis XIII. P or sua vez, os mortais com uns viviam u m tem po
cardeal, um a cor emblemática, u m dos cinco pontos cardeais; assim, o tem ­ estruturado pelo trabalho agrícola e pela liturgia: tem po cíclico p o r exce­
po fazia parte da própria ordem das coisas (B o u rg o n , 1991, p. 71-80).2 lência que não avança, nem recua. As diferenças referem -se à situação,
O tem po cíclico era tam bém , p o r excelência, o do Im pério Bizanti­ relativamente ao ciclo, de determ inado m om ento: o Pentecostes é dife­
rente do A dvento, mas a m esma seqüência repete-se anualm ente.
no. C o m efeito, tendo retom ado do Im pério R o m an o u m ciclo fiscal de
quinze anos, a indicção, os bizantinos estabeleceram a datação em refe­ D uas razões relevantes explicam que a pluralidade desses tem pos
rência a esse ciclo, a partir da conversão de C onstantino (ano 312). As cíclicos tenha vindo, finalm ente, inserir-se n o calendário único da era
indicções se sucediam e se enum eravam de tal m odo que um a data era o cristã. A prim eira refere-se à vontade de encontrar um a concordância en­
ano de determ inado ciclo: p o r exem plo, o terceiro ano da 23a indicção. tre os diversos tem pos, classificar os reinados dos soberanos das diversas
N o entanto, apesar de saberem em que indicção se encontravam , os con­ partes do m u n d o conhecido, uns em relação aos outros: é a lenta tomada
tem porâneos n em sem pre se preocupavam , ao datarem u m docum ento, de consciência da unidade da hum anidade, a em ergência da noção de
em indicar seu nú m ero exato; aliás, a exem plo do que ocorre conosco história universal. Esse prim eiro m om ento é datado p o r P. Ariès no sécu­
que, ao datar nossas cartas, n e m sem pre m encionam os o ano. D e algum lo III de nossa era:
m odo, tratava-se de um a espécie de tem po circular. A idéia de uma história universal, incluindo todos os tempos e todos
N o O cid en te, os rom anos estabeleciam a data p o r referência aos os espaços em um único conjunto, não ocorreu ao helenismo, tam­
cônsules; em seguida, de um a form a mais côm oda, p o r referência, ao pouco à latinidade. Em contato com a tradição judaica, o mundo
início do governo dos im peradores. O Evangelho de Lucas nos fornece romano, cristianizado, descobriu que o gênero humano tinha uma
um bom exem plo dessas práticas ao datar o com eço da vida pública do história solidária, uma história universal: esse momento capital, que
deve ser reconhecido como a origem do sentido moderno da Histó­
Cristo: “ N o décim o q uinto ano do im pério de T ib ério César, quando
ria, situa-se no século III de nossa era. (1986, p. 100)
Pôncio Pilatos era governador da Judéia, H erodes tetrarca da Galiléia, seu
irm ão Filipe, tetrarca da Ituréia [...], enquanto Anás e Caifas eram sumos Nessa conjuntura, convém sublinhar, a história desem penhou um papel
sacerdotes” (Lc 3,1). A o citar sucessivamente os governos, ao apresentar a decisivo: havia necessidade de historiadores ou, no m ínim o, de cronistas,
lista dos cônsules, os historiadores haviam calculado um a cronologia a para fazer emergir essa idéia de um a com unidade formada pela hum anida­
partir da fundação de R o m a , ab urbe condita; ao m esm o tem po, erudito e de inteira. E m vez de ser dada na consciência imediata, ela é a obra de um a
precário, esse cálculo não chegou a entrar nos hábitos com uns. Após o vontade recapitulativa, cuja primeira fom ia será o quadro de concordâncias.
desm oronam ento do Im pério, as datas foram estabelecidas p o r referência A aparição da era cristã respondeu a u m segundo m otivo: a necessi­
às diversas autoridades. O s soberanos datavam a partir do mício de seus dade de fazer coincidir o calendário solar, herdado dos rom anos, com o
reinados; p o r sua vez, os m onges referiam-se à fundação de sua abadia ou calendário lunar, oriundo do judaísm o, e que organizava a vida litúrgica.
ao período da perm anência do abade. O s cronistas aceitavam essa divisão C o m efeito, a principal festa do cristianismo, a Páscoa, não ocon-e, anual­
que permitia introduzir sucessões ordenadas, mas era com o se cada reina­ m ente, na m esm a data. Daí, as enorm es dificuldades para datar a partir da
do, ou cada abadia, fosse um a região com seu próprio mapa, escala e sím­ Paixão do Cristo, com o os cristãos já haviam com eçado a fazer, segundo a
bolos; de resto, durante m uito tem po, m anteve-se a datação por referência lógica: co m o h a rm o n izar a sucessão dos anos, cujo início o corre em
diferentes m om entos? Será necessária um a verdadeira ciência de conta­
2 Os cinco pontos correspondem aos nossos pontos cardeais, incluindo o centro. gem dos anos, do cálculo e do calendário. Foi u m m onge inglês, Beda,

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o V ulnerável, qu em o p to u , n o início tio século VIII, p o r um (.iltiilo < I N o r o |t i í i *> I íii il >■ li i i i j h i i Io-, I i o i i k*ir. t*l,l o t|,i t\ \ p t '< l.ltIV .t t Io I f l o i l l o

baseado no nascim ento do Cristo. T em os de elogiar sua audácia que vai de I ir. um 11 Hi|" 1 ‘ m t •.pc-.stiia, nem consislvncia própria. “ Vos não
ao p o n to de inventar o cálculo antecipado de m odo que a data mencionada sabeis nem o dia, nem .1 hora...” Deus era o único senhor do tem po. Por­
é anterior ao evento de referência: “N o sexagésimo ano antes da Encarnação tanto, nada podei ia ocorrer de verdadeiram ente im portante na passagem
do Senhor, Caius Julius Caesar foi o primeiro rom ano a declarar guerra aos dos dias, nada de verdadeiram ente novo para os indivíduos, nem para as
britânicos” .3 N o Continente,4 o primeiro docum ento datado a partir do ano sociedades. O tem po cíclico continuava a habitar a era cristã. Apesar de ser
da encarnação rem onta a 742, mas será necessário esperar pelo século X I para diferente do idoso, o hom em jo v em deixará de se distinguir dele quando,
se verificar a generalização da era cristã (G u én ée , 1980, p. 156). por sua vez, se tom ar velho. N ada a esperar do tem po que se escoava, salvo
A inclusão do calendário litúrgico e civil na era cristã constituiu um a o final dos tempos, o retom o do Cristo. O tem po estava, de algum m odo,
m udança capital. A cristandade tinha preocupações relativas ao calendário estagnado, era estático. N ada há de novo debaixo do sol... dizia o Eclesiastes,
porque era necessário dividir o ano em períodos litúrgicos. N o entanto, filho do rei David. O reform ador alemão, M elanchton, continuava a ins-
p o r ser cíclico, o calendário não implicava a era que, por sua vez, é linear, crever-se nesse tem po estático quando, no início do século XVI, afirmava:
contínua, regular e orientada. E nquanto a datação se fazia a partir dos “O m undo perm anece tal com o ele é: eis por que as ações perm anecem as
reinos e pontificados, a narrativa histórica desenvolveu-se segundo um a mesmas no m undo, embora as pessoas m orram ” (K o s e lle c k , 1990, p. 19).
lógica aditiva, a dos anais e das crônicas que se contentavam em situar os Nessa textura tem poral pré-m oderna que deixaria o lugar à tem po-
fatos relatados, sem hierarquizá-los necessariamente, fazendo referência a ralidade propriam ente histórica, os hom ens de todas as idades eram, de
aco n tecim en to s tan to naturais (inundações, in v ern o rigoroso), q u anto algum m odo, contem porâneos. O s mestres fabricantes dos vitrais m edie­
políticos (batalhas, bodas e óbitos da realeza). A história supõe um a lógica vais, com o os pintores do Quattrocento, não vêem qualquer dificuldade
em form a de narração, causai, que liga os fàtos uns aos outros: a era fom e- em fazer figurar u m generoso doador em traje contem porâneo 110 m eio
ce-lhe um a m oldura indispensável. N o entanto, ela ainda não é plena­ dos santos ou pastores da Natividade: eles pertenciam ao m esm o m undo
m ente o tem po dos hom ens porque continua sendo o tem po de Deus. e ao m esm o tem po. N este sentido, R . Koselleck (1990, p. 271) com enta
u m célebre quadro de Altdorfer, A batalha de Alexandre, pintado em 1529
Um tem po orientado para o duque de Baviera e conservado na Pinacoteca de M unique: os
P ro p o r u m tem po que chegue até nós é um a pretensão inaudita: persas assem elham -se aos turcos que, nesse m o m e n to , cercam V iena,
trata-se, exatam ente, de um a laicizaçao do tem po. Ao tentarem transfor­ enquanto os m acedônios parecem -se com os soldados da infantaria alemã
m ar o início da R epública no acontecim ento fundador de um a era nova, da batalha de Pavia.3 H á um a superposição de A lexandre e M aximiliano.
suplantando o nascim ento do Cristo, os prom otores da R evolução troca­ E m seu quadro, Altdorfer indica o núm ero dos com batentes, dos m ortos
ram, além da origem do tem po, seu tem io. E substituíram o tem po que e dos prisioneiros, sem m encionar a data por ser irrelevante: entre ontem

leva ao fim do in undo p o r u m tem po que chega até eles; por si só, tal e hoje, não há diferença.

postura constituía um a m udança capital que, na época, se to m o u possível O tem po m oderno é portador, pelo contrário, de diferenças irreversí-
p o r ter sido desencadeada pelo p ró p rio m o v im en to da sociedade e da veis; ele torna o “ depois” irredutível ao “antes” . Trata-se de um tem po
cultura “m odernas” . fecundo, prenhe de novidade, que nunca se repete e cujos m om entos são
únicos; ele supõe um a espécie de revolução mental que se fez lentamente.
Para a cristandade — e, pelo menos, até o R enascim ento — o fim do
m undo era, com efeito, o único verdadeiro desfecho do tem po. Entre o O hum anism o e o renascim ento constituíram um a prim eira etapa.
Ao reencontrarem a A ntigüidade e seus mestres, na literatura, na esteira

3 Historia ecclesiastica gentis anglorum, cerca de 726. V er M IL O , 1991, cap. 5: “ Esquisse d’une histoire de
l’Ère chrétienne” .
5 D errota do rei francês Francisco I o que é feito prisioneiro pelas tropas de Carlos V, em 24 de fevereiro
4 R eferência ao “c o n tin e n te ” europeu relativam ente à situação insular da G rã-B retanha. (N .T.). de 1525. (N .T .).

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de PetrarCâ, assim co m o na arte, os humanistas tia segunda m etade do so< iedadt > um u m p o m rntlenli . ali,is, t onvulados a ulili. ai uma iria
século X V operaram um recorte tia história em três épocas: entre a A nti­ para u pn m m i Io. o aUluos m un a desenham uma linha ailiatada ou
descendentr " Apes.u tios desm entidos concretos e tia ausência de ne
güidade e seu tem po, estendia-se u m período interm ediário, um a media
cessidade lógica, perm anecem os fiéis ao tem po do progresso, aquele que
cetas, nossa Idade M édia, espécie de buraco negro m arcado negativam en­
tleve conduzir necessariam ente para algo de m elhor; para se convencer
te pela perda de tudo o que havia feito a excelência da Antigüidade. Os
disso, basta observar o uso dos term os “regressão” ou “m archa à ré” para
reform adores com partilhavam essa visão; daí, sua tentativa em rem ontar
designar tudo o que desm ente essa norm a.
às fontes de um a fé prim itiva, corrom pida mais tarde.
Assim, nossa sociedade m ove-se nesse tem po ascendente, criador
N o entan to , os hum anistas, os reform adores e, de um a form a mais
de novidades e surpresas; no en tan to , para ser utilizado, é subm etido
geral, os hom ens do R en ascim en to continuavam a p erceber u m tem po
pelos historiadores a algumas transformações.
estacionário: os m odernos esperavam en contrar o nível dos antigos, mas
não superá-los. Apenas em m eados do século X V I, co m eçou a em ergir A construção do tempo pela história
a idéia de u m possível progresso. Para Vasari, p o r exem plo — au tor de
um a história dos pintores, escultores e arquitetos (1550) —, a m ensagem
da A ntiguidade havia sido com pletam en te esquecida; os m odernos vol­
Tempo , história e m em ória
taram a descobri-la, mas são capazes de elaborar obras mais perfeitas. O Para identificar as particularidades do tem po dos historiadores, é
reto rn o às fontes era um a superação; o que havia sido círculo, tornava- esclarecedor confrontá-las com o tem po de nossos contem porâneos, tal
se espiral ascendente. co m o é possível ap reendê-lo pelos etnólogos. Eis, p o r exem plo, M i-
not, aldeia do departam ento de B orgonha, objeto de um a pesquisa apro­
É possível acom panhar, n o d ecorrer dos séculos X V II e X V III, os
fundada ( Z o n a b e n d , 1980). N esta investigação, os etnólogos encontram ,
progressos dessa idéia constitutiva de nossa percepção m o d ern a da te m -
exatam ente, a tem poralidade m oderna: em vez de se assemelhar ao pas­
poralidade. Esse foi o caso, p o r exem plo, de Fontanelle que, em 1688,
sado, o presente é diferente e m elhor. Ele opõe-se a u m passado indis­
declarou o seguinte: “ N u n c a haverá degeneração entre os hom ens e as
tinto sem datas, n e m pontos de referência, nem etapas. A clivagem en­
sucessivas percepções positivas de todos os espíritos ilustres irão acres­
tre u m “ antes” e u m “ depois” é bastante nítida, mas o “ antes” é um
centar-se sem pre umas às outras” ( P o m i a n , 1984, p. 119). Eis o que p o ­
tem po im óvel que não se pode rem ontar.
dia ser afirm ado, so b retu d o , em relação aos h o m en s do Ilum inism o,
tais com o T u rg o t e sua obra Tableau philosophique des progrès successifs de O tem po da história e a tem poralidade m oderna constituem , p o r
Vesprit humain (1750). P o r últim o, a R e v o lu ção forneceu-lhe um a acele­ sua vez, um p roduto da história. E m seu livro, R . G. C ollingw ood (1946,
ração form idável: a representação m o d erna do tem po im pôs-se, então, p. 325-326) imagina um a sociedade de pescadores em que, na seqüência
de u m progresso tecnológico, a pesca diária passaria de dez para vinte
com o um a evidência. O filósofo K ant insurgiu-se, p o r exem plo, contra
peixes. N o seio dessa com unidade, a avaliação dessa m udança seria dife­
a tese de que tudo perm anecerá com o sem pre foi; o futuro será diferen­
rente entre jovens e idosos: estes invocariam, com nostalgia, a solidarie­
te, o u seja, m elhor. O tem po da história, nosso tem po, triunfante nesse
dade im posta pela antiga técnica; p o r sua vez, os jovens sublinhariam o
m o m en to , era o do progresso.
ganho em tem po livre. O s julgam entos coincidem co m u m m o d o de
Após o trágico século X X , sabemos que o futuro poderá ser pior,
vida específico de cada um desses grupos; para com parar os dois m odos
pelo m enos provisoriam ente; portanto, não podem os com partilhar o oti­ de vida e as duas técnicas, convém com eçar p o r fazer a história de ambos.
m ism o do século X IX que não deixa de subsistir, im plicitam ente, nas Eis p o r que, prossegue nosso autor, os revolucionários só p o d em julgar
representações de nossos contem p o rân eo s ao sentirem dificuldade para
conceber que o progresso possa inteiTom per-se, que o nível de vida ces­
r’ V er N icole Sadoun-L autier, 1992, cap. 3. O tem po é representado pelos alunos seja por uma flecha que
se de aum entar e que os Direitos H um anos co ntinuem sendo ignorados sobe, seja por u m traçado sinuoso 011 em patamares, mas igualm ente ascendente, e nunca p o r um a reta
p o r u m grande n úm ero de governos. O tem po no qual se m ove nossa horizontal ou descendente.

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