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DADOS

DE COPYRIG HT

Sobre a obra:

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com o obj etivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêm icos, bem com o o sim ples teste da qualidade da obra, com o fim
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais


lutando por dinheiro e

poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

Sumário

Folha de Rosto

Sum ário

Créditos

Prólogo
Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21
Capítulo 22

Capítulo 23

Redes Sociais

Destrua-m e

Tahereh Mafi

Tradução

Maria Angela Am orim De Paschoal

Saiba Mais

Estilhaça-me

Juliette nunca se sentiu com o um a pessoa norm al.

Nunca foi com o as outras m eninas de sua idade. O

m otivo: ela não podia tocar ninguém . Seu toque


era capaz de ferir e até m atar.

Durante anos, Juliette feriu e, segundo seus pais, arruinou o que estava à sua
volta com um sim ples

toque, o que a levou a ser presa num a cela.

Todo dia era escuro e igual para Juliette até a

chegada de um com panheiro de cela, Adam .

Dentro do cubículo escuro, Juliette não tinha

notícias do m undo lá fora. Adam ia atualizando-a de tudo.

Juliette não entendeu bem o que estava

acontecendo quando foi retirada daquela cela e

supostam ente libertada, ao lado de Adam , e se vê

em um a encruzilhada, com a possibilidade de

retom ar sua vida, m as por cam inhos tortuosos e

totalm ente desconhecidos.

“Estilhaça-m e” é um rom ance fantástico, que

intriga, angustia e prende o leitor até a últim a página com um a história surreal
que m istura

am or, m edo, aventura e m istério e traz um

desfecho surpreendente.

Liberta-me (lançamento)
Liberta-m e é o segundo livro da trilogia de

Tahereh Mafi. Se no prim eiro, Estilhaça-m e,

im portava garantir a sobrevivência e fugir das

atrocidades do Restabelecim ento, em Liberta-m e

é possível sentir toda a sensibilidade e tristeza que em anam do coração da


heroína, Juliette.

Abandonada à própria sorte, im possibilitada de

tocar qualquer ser hum ano, Juliette vai procurar

entender os m ovim entos de seu coração, a

m aneira com o seus sentim entos se confundem e

até onde ela pode realm ente ir para ter o controle

de sua própria vida. Um a m etáfora para a vida de

j ovens de todas as idades que tam bém enfrentam

um a espécie de distopia m oderna, em que dúvidas

e m edos cam inham lado a lado com a esperança,

o desej o e o am or.
A bela escrita de Tahereh Mafi está de volta ainda

m ais vigorosa e extasiante.

Copy right © 2012 by Tahereh Mafi

Copy right © 2013 Editora Novo Conceito

Todos os direitos reservados.

Esta é um a obra de ficção. Nom es, personagens, lugares e acontecim entos


descritos são produtos da im aginação do autor. Qualquer sem elhança com nom
es, datas e acontecim entos reais é m era coincidência.

Edição: Edgar Costa Silva

Preparação de Texto: Alline Salles

Diagram ação ePUB: Brendon Wierm ann

Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mafi, Tahereh

Destrua-m e / Tahereh Mafi; [tradução Maria Angela Am orim de Paschoal]. —


Ribeirão Preto, SP: Novo Conceito Editora, 2012.

Título original: Destroy m e

ISBN 978-85-8163-029-8
Ficção norte-am ericana I. Título.

12-00226 CDD-813

Índices para catálogo sistem ático:

Ficção: Literatura norte-am ericana 813

Rua Dr. Hugo Fortes, 1.885 — Parque Industrial Lagoinha

14095-260 — Ribeirão Preto — SP

www.editoranovoconceito.com .br

Prólogo

Atiraram em m im .

E por incrível que pareça, um ferim ento a bala dói m uito m ais do que eu havia
im aginado.

Minha pele está fria e pegaj osa, estou fazendo um esforço enorm e para respirar.
A dor no m eu braço direito é excruciante, e tenho dificuldade em m e
concentrar. Tento fechar os olhos com força, ranger m eus dentes, e m e forço a
prestar atenção.

O caos é insuportável.

Várias pessoas estão gritando e m uitas delas estão m e tocando, e desej o que
alguém rem ova aquelas m ãos do m eu corpo. Elas não param de gritar —
Senhor! — com o se ainda estivessem esperando por m im para lhes dar ordens,
com o se não soubessem o que fazer sem m inha aj uda.

Perceber isso m e deixa exausto.

— Senhor, pode m e escutar? — Outro grito. Mas desta vez, um a voz que não
detesto.

— Senhor, por favor, está m e escutando...

— Levei um tiro, Delalieu. — É o que consigo balbuciar. Abro m eus olhos. Vej
o seus olhos m arej ados. — Não estou surdo.

De repente todo o barulho desaparece. Os soldados se calam . Delalieu m e olha.


Preocupado.

Dou um suspiro.

— Me leva de volta — digo a ele, m e m exendo um pouco. Parece que o m


undo está rodando, m as de repente se estabiliza. — Alerte os m édicos e peça
que preparem um leito para a nossa chegada. Enquanto isso suspenda m eu
braço, e continue a pressionar diretam ente no ferim ento.

A bala trincou ou quebrou algum a coisa e vou precisar de cirurgia.

Delalieu não diz nada por um m om ento longo dem ais.

— É bom saber que está bem , senhor. — Sua voz parece nervosa, trêm ula. — É
bom ver que o senhor está bem .

— Isso foi um a ordem , tenente.

— Claro — ele responde prontam ente, com a cabeça curvada. — Certam ente,
senhor. Com o devo instruir os soldados?

— Encontre-a — digo a ele. Está ficando cada vez m ais difícil falar. Respiro
com dificuldade e passo um a m ão trêm ula pela m inha testa. Estou
transpirando copiosam ente, e esse fato não m e passa despercebido.

— Sim , senhor. — Ele tenta m e levantar, m as eu seguro seu braço.

— Um a últim a coisa.

— Senhor?

— Kent — digo, m inha voz parece desigual agora. — Faça com que eles o
deixem vivo para m im .

Delalieu ergue os olhos, arregalados.

— O soldado Adam Kent, senhor?


— Sim . — Olho dentro de seus olhos. — Eu m esm o quero lidar com ele.

Capítulo 1

Delalieu está parado aos pés da m inha cam a com um a prancheta na m ão.

Sua visita é a segunda que recebo esta m anhã. A prim eira foi dos m eus m
édicos, que confirm aram que correu tudo bem na cirurgia. De acordo com eles,
se eu ficar em repouso esta sem ana, as novas m edicações que m e deram devem
acelerar o processo de cura. Tam bém disseram que eu poderia retornar às m
inhas atividades diárias em breve, m as iria precisar usar um a tipoia por um m
ês, no m ínim o.

Disse a eles que era um a teoria interessante.

— Minhas calças, Delalieu. — Estou sentado, tentando estabilizar m inha cabeça


devido aos enj oos provocados pelos rem édios. Meu braço direito não serve para
nada agora.

Ergo m eus olhos. Delalieu está m e encarando sem piscar. Seu pom o de adão
está se m ovendo para cim a e para baixo.

Seguro um suspiro.

— O que é? — Uso m eu braço esquerdo para m e apoiar no colchão e m e


obrigo a m e endireitar.

Reúno toda a energia que m e sobrou e consigo m e segurar na beirada da cam a.


Faço um sinal com a m ão para afastar Delalieu e evitar que ele venha m e aj
udar; fecho os olhos para não sentir a dor e a tontura. — Conte o que aconteceu
— digo a ele. — Não faz sentido prolongar as m ás notícias.

Sua voz hesita ao declarar:

— O soldado Adam Kent escapou, senhor.

Meus olhos piscam e fica tudo branco sob m inhas pálpebras.

Respiro fundo e tento passar a m ão boa pelos m eus cabelos. Eles estão ásperos
e cobertos pelo que parece ser terra m isturada com m eu próprio sangue. Fico
tentado a dar um soco na parede com o punho que m e restou.

Ao invés disso, faço um a pausa para m e recom por.

De repente percebo com m ais nitidez tudo o que se passa à m inha volta, os
cheiros, os pequenos ruídos e os passos do lado de fora da porta. Detesto essas
calças de algodão áspero que colocaram em m im . Detesto não estar usando m
eias. Quero tom ar um banho. Quero m e trocar.

Quero colocar um a bala na coluna vertebral de Adam Kent.

— Pistas — exij o. Vou em direção ao banheiro e estrem eço só em sentir o ar


gelado em contato com m inha pele; ainda estou sem cam isa. Tento m e m anter
calm o. — Não m e diga que m e trouxe essa inform ação sem fornecer nenhum
a pista.

Minha m ente parece um arm ário onde estão, cuidadosam ente, organizadas as
em oções hum anas. Quase posso ver m eu cérebro funcionando, arm azenando
pensam entos e im agens.

Ponho de lado as coisas que não m e são úteis. Me concentro apenas no que
precisa ser feito: os com ponentes básicos de sobrevivência e a infinidade de
coisas que preciso fazer durante o dia.

— É claro — Delalieu responde. O m edo em sua voz m e incom oda um pouco;


tento deixar isso

de lado. — Sim , senhor — ele diz —, nós acreditam os saber para onde ele deve
ter ido e tem os m otivo para acreditar que o soldado Kent e a — e a garota —
bem , com o o soldado Kishim oto tam bém fugiu — tem os razão para acreditar
que eles estão j untos, senhor.

Os com partim entos do m eu cérebro estão rangendo para se abrir. Lem branças.
Teorias.

Sussurros e sensações.

Em purro tudo para longe.

— Claro que sim . — Sacudo a cabeça. Me arrependo. Fecho m eus olhos novam
ente para evitar a tontura repentina. — Não m e dê um a inform ação que eu m
esm o j á deduzi — consigo dizer. —

Quero algo concreto. Me dê um a pista real, tenente, ou só m e procure quando


tiver um a.

— Um carro — ele com pleta rapidam ente. — Notificaram o roubo de um


carro, senhor, e conseguim os rastreá-lo a um local desconhecido, m as então ele
desapareceu do radar. Foi com o se tivesse deixado de existir, senhor.

Ergo os olhos. Estou atento ao que ele diz.

— Seguim os as pistas que ele deixou no nosso radar — ele diz, falando com m
ais calm a agora —

e elas nos levaram a um trecho isolado, a um enorm e terreno baldio. Vasculham


os a área e não encontram os nada.

— É algum a coisa, pelo m enos. — Massageio o pescoço, lutando contra a


fraqueza que sinto dentro dos m eus ossos. — Encontro você na Sala L em um a
hora.

— Mas, senhor — ele com enta, os olhos presos no m eu braço —, o senhor vai
precisar de assistência m édica — está em tratam ento — vai precisar de aj uda
para se recuperar...

— Está dispensado.

Ele hesita.

Então concorda:

— Sim , senhor.

Capítulo 2

Consigo tom ar banho sem desm aiar.

Foi um banho de gato, com a esponj a, m as m esm o assim m e sinto m elhor.


Tenho um a tolerância extrem am ente baixa para a desordem ; ela ofende m eu
ser. Tom o banho diariam ente. Faço seis refeições ao dia. Dedico duas horas
todos os dias para treinam ento e exercícios físicos. E detesto andar descalço.

No entanto, estou aqui parado agora, nu, fam into, cansado e descalço no m eu
closet. Isso não é nada bom .

Meu closet é separado em várias seções. Cam isas, gravatas, calças, blazers, e
botas. Meias, luvas, cachecóis e casacos. Tudo arrum ado de acordo com a cor, e
depois com os tons de cada cor.

Cada peça de roupa guardada aqui foi escolhida m eticulosam ente, e feita sob m
edida para servir perfeitam ente no m eu corpo. Não m e sinto eu m esm o até
estar com pletam ente vestido; faz parte de quem eu sou e de com o com eço o
dia.

Agora não tenho a m ínim a ideia do que devo vestir.

Minhas m ãos trem em ao pegar um vidrinho azul que m e deram essa m anhã.
Coloco duas das pílulas quadradas na m inha língua e as deixo dissolver. Não
tenho certeza para que elas servem ; só sei que aj udam a recuperar o sangue que
perdi. Me encosto na parede até m inha cabeça clarear e sentir m ais força nos
pés.

Isso, um a tarefa tão sim ples. Está sendo um obstáculo que eu não esperava.

Prim eiro coloco as m eias; um prazer sim ples que exige m ais esforço do que
atirar num hom em .

Por um instante penso no que os param édicos fizeram com as m inhas roupas.
As roupas, digo a m im m esm o, apenas roupas; estou m e concentrando apenas
nas roupas agora.

Nada m ais. Nenhum outro detalhe.

Botas. Meias. Calças . Suéter. Meu casaco m ilitar com tantos botões.

Tantos botões que ela arrancou.

É um pequeno lem brete, m as o suficiente para m e atingir.


Tento afastar essas lem branças, m as elas não querem ir em bora, e quanto m ais
eu tento ignorá-

las, m ais elas se m ultiplicam num m onstro que não pode ser subj ugado. Não
percebo que caí de encontro à parede, até sentir a friagem subindo pela m inha
pele; estou respirando com dificuldade e apertando os olhos com força para
afastar a repentina onda de hum ilhação.

Eu sabia que ela estava assustada, até m esm o apavorada, m as nunca pensei que
esses sentim entos fossem relacionados diretam ente a m im . Eu tinha acom
panhado sua evolução durante aquele tem po que passam os j untos; à m edida
que as sem anas passavam ela parecia cada vez m ais à vontade. Mais feliz.
Tranquila.

Tinha chegado a pensar que ela havia vislum brado um futuro para nós dois; que
ela desej ava estar ao m eu lado, m as sim plesm ente achava isso im possível.

Nunca tinha suspeitado que o m otivo por trás de sua recém -descoberta
felicidade estivesse

relacionado a Kent.

Passei a m ão na ferida do m eu rosto; cobri m inha boca. As coisas que eu havia


dito a ela.

Um a respiração entrecortada.

O m odo com o a toquei.

Meu rosto enrij ece.

Se fosse apenas um a atração sexual, tenho certeza que não sentiria um a hum
ilhação tão insuportável. Mas eu queria m uito m ais do que apenas seu corpo.

De repente im ploro para m inha m ente se concentrar apenas nas paredes.


Paredes. Paredes brancas. Blocos de concreto. Côm odos vazios. Espaços
abertos.

Construo paredes até que elas com eçam a desm oronar, e então m e forço a
construir outras para ocuparem seu lugar. Construo e construo e fico sem m e m
over até m inha m ente estar lim pa, desinfetada, não contendo nada m ais que
um pequeno côm odo branco. Um a única lâm pada pendurada no teto.

Lim po. Intocado. Intacto.

Pisco para afastar a avalanche que está prestes a inundar o pequeno m undo que
construí; engulo com força o m edo que sobe pela m inha garganta. Em purro as
paredes criando m ais espaço no côm odo, para poder respirar com m ais
facilidade. Até ser capaz de ficar em pé.

Às vezes desej o sair por uns instantes do m eu corpo. Quero poder deixar para
trás esse corpo cansado, m as m inhas correntes são tantas, a carga pesada dem
ais. Essa vida é tudo o que m e sobrou. E eu sei que não serei capaz de m e olhar
no espelho pelo resto do dia.

Subitam ente fico revoltado com igo m esm o. Tenho que sair daqui o m ais
rápido possível, ou m eus pensam entos irão se rebelar contra m im . Tom o um a
decisão apressada pela prim eira vez, presto pouca atenção ao que estou
vestindo. Coloco um par de calças lim pas e saio sem cam isa. Enfio m eu braço
sadio na m anga de um blazer e deixo o outro om bro cobrir a tipoia que segura
m eu braço ferido. Estou ridículo vestido assim , m as am anhã encontrarei um a
solução.

Antes tenho que sair desse quarto.

Capítulo 3

Delalieu é a única pessoa que não m e odeia.

Ele ainda passa a m aior parte do tem po na m inha presença se curvando de m


edo, m as, de certa form a, não está a fim de m e derrubar. Posso sentir isso,
apesar de não entender. Provavelm ente ele é a única pessoa neste prédio que
está feliz por eu não ter m orrido.

Levanto a m ão para afastar os soldados que se apressam em m inha direção


quando abro a porta.

É preciso m uita concentração para que m eus dedos não trem am quando lim po
o brilho da transpiração que cobre m inha testa, m as não vou m e perm itir um
m om ento de fraqueza. Esses hom ens não tem em pela m inha segurança; eles
querem apenas olhar m ais de perto o triste espetáculo que m e tornei. Eles
querem ser os prim eiros a ver as rachaduras na m inha sanidade.

Mas eu não tenho a m enor vontade de virar um obj eto de curiosidade.

Meu trabalho é liderar.

Levei um tiro; não será fatal. Há outras coisas para serem resolvidas; eu irei
resolvê-las.

Esse ferim ento será esquecido.

O nom e dela não m ais será m encionado.

Meus dedos cerram e descerram enquanto cam inho em direção à Sala L. Nunca
havia percebido com o esses corredores eram com pridos e a quantidade de
soldados que se alinhavam nos saguões. Não há com o evitar os olhares curiosos
e sua decepção pelo fato de eu não ter m orrido.

Nem preciso olhar para eles para saber o que estão pensando. Mas saber com o
eles se sentem m e deixa ainda m ais determ inado a viver um a vida longa.

Não vou dar a satisfação da m inha m orte a ninguém .

— Não — recuso o chá e o café pela quarta vez. — Não bebo cafeína, Delalieu.
Por que você sem pre insiste em servir isso às refeições?

— Pensei que o senhor pudesse m udar de ideia, senhor.

Ergo os olhos. Delalieu está dando aquele sorriso estranho, vacilante. E eu não
tenho certeza, m as acho que ele acabou de fazer um a piada.

— Por quê? — Estendo a m ão para pegar um pedaço de pão. — Sou perfeitam


ente capaz de ficar de olhos bem abertos. Só um idiota iria depender da energia
de um grão ou de um a folha para ficar acordado durante todo o dia.

Delalieu não está m ais sorrindo.


— Sim — ele diz. — Com certeza, senhor. — E olha para sua própria com ida.
Vej o quando ele afasta sua xícara de café com os dedos.

Coloco o pão de volta no m eu prato.

— Minhas convicções — digo para ele, num tom m anso dessa vez — não
deveriam influenciar as suas com tanta facilidade. Você deve defender suas
ideias, Delalieu. Form ular argum entos claros e lógicos. Mesm o que eu
discorde.

— Claro, senhor — ele m urm ura. Ele não diz nada por alguns segundos, m as
então vej o que ele pega a xícara de café novam ente.

Delalieu.

Acho que ele é m eu único parceiro para conversas.

Ele foi designado para esse setor pelo m eu pai e, desde então, recebeu ordens
para continuar aqui até que não sej a m ais capaz de trabalhar. E em bora ele sej
a provavelm ente uns quarenta e cinco anos m ais velho do que eu, ele insiste em
trabalhar diretam ente sob m eu com ando. Conheço Delalieu desde que eu era
criança; costum ava vê-lo em nossa casa, participando das m uitas reuniões que
aconteciam lá nos anos anteriores ao Restabelecim ento tom ar o controle.

Havia incontáveis reuniões na m inha casa.

Meu pai estava sem pre planej ando coisas, fom entando discussões e conversas
sussurradas das quais nunca pude participar. Os hom ens que com pareciam
àqueles encontros são os que estão no poder do m undo agora, então, quando
olho para Delalieu não consigo deixar de pensar por que ele nunca am bicionou
coisas m ais im portantes. Ele fez parte desse regim e desde o início, m as, de
certa form a, parece satisfeito em m orrer com o sem pre foi. É sua escolha
continuar subserviente, m esm o quando lhe dou a oportunidade de expressar sua
opinião; ele se recusa a ser prom ovido, m esm o quando lhe ofereço um aum
ento de salário. E em bora aprecie sua lealdade, sua dedicação m e enerva. Ele
parece não alm ej ar nada que j á não possua.

Eu não deveria confiar nele.

Ainda assim , eu confio.


Mas com ecei a enlouquecer por falta de um papo am igo. Não posso m anter
nada m ais além de um a distância fria dos m eus soldados, não apenas porque
eles querem m e ver m orto, m as tam bém porque tenho responsabilidades com
o líder, e tenho de tom ar decisões im parciais. Estou condenado a um a vida de
solidão, um a na qual não tenho com panheiros, e viver apenas na m inha m ente.
Procurei construir em m im m esm o um líder tem ido, e fui bem -sucedido;
ninguém questionará m inha autoridade ou expressará um a opinião contrária à
m inha. Ninguém fala com igo a não ser com o o com andante-chefe e regente do
Setor 45. Am izade não é um a coisa que eu j á vivenciei. Nem com o criança,
nem agora.

Exceto.

Há um m ês, abri um a exceção a essa regra. Houve um a pessoa que m e olhava


diretam ente nos olhos. A m esm a pessoa que falava com igo sem censura,
alguém que não tinha m edo de expressar raiva e sentim entos verdadeiros e
puros na m inha presença; a única que j á ousou m e desafiar, que j á levantou a
voz para m im ...

Aperto os olhos com força pelo que parece ser a décim a vez num só dia. Solto
m eu punho em volta do garfo e o deixo cair sobre a m esa. Meu braço com eçou
a latej ar novam ente e tento alcançar as pílulas que estão guardadas no m eu
bolso.

— O senhor não deveria tom ar m ais do que oito com prim idos num período de
vinte e quatro horas, senhor.

Abro a tam pa e j ogo m ais três pílulas na boca. Realm ente gostaria que m
inhas m ãos parassem de trem er. Meus m úsculos estão contraídos, tensos dem
ais. Muito esticados.

Não espero as pílulas derreterem . Mastigo um a a um a, triturando seu am argor.


Tem algo de noj ento nelas, um sabor m etálico que m e aj uda a concentrar.

— Me fale sobre Kent.

Delalieu derruba sua xícara de café.

Os aj udantes da sala de j antar haviam se retirado a m eu pedido; Delalieu não


recebe aj uda de ninguém quando se atrapalha para lim par a bagunça. Fico
recostado na cadeira, olhando para a parede atrás dele, calculando os m inutos
que perdi hoj e.

— Deixe o café.

— Eu... sim , é claro, desculpe, senhor.

— Pare com isso.

Delalieu deixa cair os guardanapos ensopados. Suas m ãos estão paralisadas,


pairando sobre seu prato.

— Fale.

Observo sua garganta se m exer quando ele engole em seco e hesita.

— Não sabem os, senhor — ele m urm ura. — Deveria ser im possível encontrar
aquele prédio, m uito m enos entrar lá. Ele está trancado e suas travas enferruj
adas. Porém , quando o encontram os — ele diz —, quando o encontram os,
estava... a porta havia sido destruída. E não tem os certeza com o conseguiram
fazer isso.

Me sento.

— O que você quer dizer com destruída?

Ele sacode a cabeça.

— Foi... m uito estranho, senhor. A porta havia sido... destroçada. Com o se um


anim al a tivesse dilacerado com suas garras. Sobrou apenas um enorm e buraco
no m eio da arm ação.

Me levanto rápido dem ais, segurando na m esa para m e apoiar. Mal consigo
respirar ao pensar nisso, na possibilidade do que deve ter acontecido. E não
posso evitar o prazer doloroso de lem brar seu nom e um a vez m ais, porque eu
sei que deve ter sido ela. Ela deve ter feito algo extraordinário, e eu nem estava
lá para testem unhar.

— Cham e o transporte — ordeno a ele. — Encontrarei você no Quadrante em


exatam ente dez m inutos.
— Senhor?

Já estou saindo pela porta.

Capítulo 4

A porta está estraçalhada ao m eio. Exatam ente com o se feito por um anim al. É
verdade.

Para um observador despreparado, essa seria a única explicação, m as nem assim


isso faria sentido. Nenhum anim al vivo poderia destroçar todas essas cam adas
de aço reforçado sem am putar seus próprios m em bros.

E ela não é um anim al.

Ela é um a criatura m eiga e m ortal. Gentil, tím ida e assustadora. Ela está com
pletam ente fora de controle e não tem nem ideia do que é capaz de fazer. E m
uito em bora m e odeie, não consigo deixar de estar fascinado por ela. Estou
encantado pela sua pretensa inocência; até m esm o invej oso do poder que ela
detém tão despretensiosam ente. Queria tanto fazer parte do seu m undo. Quero
saber o que se passa na sua m ente, sentir o que ela sente. Deve ser um peso
terrível de se carregar.

E agora, ela está solta lá fora, em algum lugar, liberta na sociedade.

Que belo desastre.

Deslizo m eus dedos pelas bordas farpadas do buraco, com cuidado para não m e
cortar. Não houve nenhum planej am ento naquilo, nenhum a prem editação.
Som ente um fervor angustiante, aparentem ente pronto a destruir essa porta.
Fico im aginando se ela sabia o que estava fazendo quando tudo aconteceu, ou se
foi sim plesm ente tão inesperado para ela com o naquele dia que rom peu aquela
parede de concreto para chegar a m im .

Tenho que segurar um sorriso. Im agino o que ela se lem bra daquele dia. Todo
soldado com o qual trabalhei passou por um a sim ulação sabendo exatam ente o
que esperar, m as, propositadam ente, ocultei os detalhes dela. Acreditava que a
experiência deveria ser a m ais realista possível; esperava que os elem entos
realistas disponíveis fossem conferir autenticidade ao evento. Mais do que
qualquer outra coisa, queria que ela tivesse um a oportunidade para explorar sua
verdadeira natureza — exercitar sua força num espaço seguro — e, devido ao
seu passado, eu sabia que um a criança seria a m otivação perfeita. Mas nunca
poderia ter previsto resultados tão revolucionários. Seu desem penho foi além de
todas as m inhas expectativas. E em bora eu quisesse discutir os efeitos com ela
m ais tarde, quando a encontrei ela j á estava planej ando sua fuga.

Meu sorriso fraquej a.

— Gostaria de entrar, senhor? — A voz de Delalieu m e traz de volta ao


presente. — Não há m uito para se ver lá dentro, m as é interessante perceber
que o buraco é do tam anho exato para alguém poder passar. Parece claro para m
im , senhor, qual era o obj etivo.

Aceno com a cabeça, distraído. Meus olhos catalogam cuidadosam ente as dim
ensões do buraco; tento im aginar com o deve ter sido para ela estar aqui,
tentando abrir passagem . Desej o desesperadam ente conversar com ela sobre
tudo isso.

Meu coração dá um salto repentino.

Lem bro m ais um a vez que ela não está m ais com igo. Ela não vive m ais na
base.

A culpa por ela ter partido é m inha. Acreditei que ela estava finalm ente indo
bem , e isso atrapalhou m inha avaliação. Eu deveria estar prestando m ais
atenção aos detalhes. Aos m eus soldados. Perdi a noção de quais eram m eus
obj etivos e m inha m aior razão; o verdadeiro m otivo de trazê-la para a base.
Fui um idiota. Descuidado.

Mas a verdade é que eu estava distraído.

Por ela.

Quando ela chegou, era tão teim osa e infantil, m as à m edida que as sem anas
passaram ela pareceu se adaptar; parecia m enos ansiosa, e de certo m odo estava
m enos assustada. Tento m e lem brar de que seus progressos não tiveram nada a
ver com igo.

Tinham a ver com Kent.


Um a traição que de algum m odo parecia im possível. Que ela fosse m e trocar
por um ser robótico, um idiota sem sentim entos com o o Kent. Seus pensam
entos são tão vazios, tão sem sentido; é com o conversar com um a lâm pada de
m esa. Não entendo o que ele pode ter oferecido a ela, o que ela deve ter visto
nele, a não ser com o um instrum ento de fuga.

Ela ainda não entendeu que não há futuro para ela no m undo das pessoas com
uns. Ela não tem lugar na com panhia de pessoas que nunca a entenderão. E eu
tenho que pegá-la de volta.

Só percebo que disse essas últim as palavras em voz alta quando Delalieu diz:

— Tem os tropas por todo o setor procurando por ela — ele explica. — E j á
alertam os os setores vizinhos, no caso do grupo deles atravessar...

— O que? — Dou m eia volta, m inha voz baixa e am eaçadora. — O que você
acabou de dizer?

O rosto de Delalieu se transform ou num a m áscara branca.

— Fiquei inconsciente por um a noite! E vocês j á alertaram os outros setores


dessa catástrofe...

— Im aginei que o senhor quisesse encontrá-los, senhor, e pensei, se eles forem


buscar refúgio em algum outro lugar...

Faço um a pausa para respirar, para m e concentrar.

— Sinto m uito, senhor, achei que seria m ais seguro...

— Ela está com dois dos m eus próprios soldados, tenente. Nenhum deles é tão
burro a ponto de levá-la para outro setor. Eles não têm nem as ferram entas, nem
a perm issão para poder atravessar a fronteira do setor.

— Mas...

— Eles partiram há um dia. Estão terrivelm ente feridos e precisam de aj uda.


Estão viaj ando a pé e com um veículo roubado fácil de ser rastreado. Qual a
distância — pergunto a ele, a frustração aparecendo na m inha voz — que eles
devem ter percorrido?
Delalieu não diz nada.

— Você enviou um alerta nacional. Notificou m últiplos setores, o que significa


que o país todo sabe agora o que aconteceu. Isso significa que as Capitais
receberam a notícia. O que significa isso? — Cerro os punhos. — O que acha
que isso significa, tenente?

Por um instante ele não consegue dizer nada.

Então:

— Senhor — ele fala sobressaltado. — Por favor, m e perdoe.

Capítulo 5

Delalieu m e segue até m inha porta.

— Junte as tropas no Quadrante am anhã às dez horas — digo a ele com o form
a de despedida. —

Terei que fazer um pronunciam ento sobre esses acontecim entos recentes o m
elhor que puder.

— Sim , senhor — Delalieu responde. Ele não ergue os olhos. Ele não m e olha
nos olhos desde que saím os do depósito.

Tenho outras coisas com que m e preocupar.

Sem contar a estupidez de Delalieu, existe um a infinidade de outras coisas que


preciso cuidar no m om ento. Não posso m e perm itir m ais problem as, e não
posso m e distrair. Não por ela. Não por Delalieu. Nem por ninguém . Tenho que
m e concentrar.

Esse é um m om ento horrível para ter um ferim ento à bala.

Notícias da nossa situação j á se espalharam em nível nacional. Civis e setores


vizinhos agora estão cientes da nossa pequena rebelião, e tem os que abafar os
rum ores o m ais rápido possível.

De algum m odo, tenho que neutralizar os alertas que Delalieu j á enviou e, sim
ultaneam ente, suprim ir qualquer tipo de revolta entre os cidadãos. Eles j á estão
ansiosos para resistir, e qualquer fagulha de controvérsia irá reacender seu
fervor. Muitos deles j á m orreram e eles ainda parecem não entender que ficar
contra o Restabelecim ento é atrair ainda m ais destruição. Os civis devem ser
pacificados.

Não quero guerra no m eu setor.

Agora, m ais do que nunca, preciso estar no controle de m im m esm o e de m


inhas responsabilidades. No entanto, m eu cérebro está disperso, m eu corpo
cansado e ferido. O dia todo estive prestes a desabar, e não sei o que fazer. Não
tenho ideia de com o consertar essa bagunça. Essa fraqueza é algo desconhecido
para o m eu ser.

Em apenas dois dias um a garota conseguiu m e incapacitar.

Já tom ei m ais algum as daquelas pílulas noj entas, m as m e sinto ainda m ais
fraco do que m e sentia essa m anhã. Pensei que poderia ignorar a dor e a
inconveniência de um om bro ferido, m as as com plicações se recusam a ceder.
Agora estou totalm ente dependente do que vai m e acom panhar nessas próxim
as sem anas de frustração. Rem édios, m édicos, horas na cam a.

Tudo isso por um beij o.

É quase insuportável.

— Estarei no escritório o resto do dia — digo a Delalieu. — Mande m inhas


refeições para m eu quarto, e não m e perturbe, a m enos que haj a algum novo
acontecim ento.

— Sim , senhor.

— Isso é tudo, tenente.

— Sim , senhor.

Nem tinha percebido com o estava m e sentindo doente até a porta do quarto se
fechar atrás de m im . Vou cam baleante até a cam a e m e agarro na beirada para
não cair. Estou transpirando novam ente e decido tirar o casaco extra que estava
usando lá fora para nosso passeio. Arranco o blazer que tinha j ogado
descuidadam ente por cim a do m eu om bro ferido e caio de costas na cam a. De
repente estou gelado. Minha m ão trem e enquanto procuro apertar o botão para
cham ar o m édico.

Preciso que alguém troque os curativos do m eu ferim ento. Preciso com er algo
m ais substancial.

E, m ais do que nunca, preciso de um banho de verdade, o que parece im


possível.

Alguém está parado ao m eu lado.

Pisco os olhos várias vezes, m as só consigo visualizar o perfil da pessoa. Um


rosto fica entrando e saindo de foco várias vezes até que finalm ente desisto.
Meus olhos se fecham . Minha cabeça parece que vai explodir. A dor está
dilacerando m eus ossos e subindo pelo m eu pescoço; tons verm elhos, am
arelos e azuis se m esclam sob m inhas pálpebras. Percebo apenas trechos de um
a conversa perto de m im .

— parece que está surgindo uma febre...

— talvez sedá-lo...

— quantas ele tomou?...

Eles vão m e m atar, eu percebo. É a oportunidade perfeita. Estou fraco e incapaz


de m e defender, e alguém finalm ente chegou para m e elim inar. É isso. Meu m
om ento. Chegou. E de certo m odo não consigo aceitar o fato.

Dou um a pancada forte em direção às vozes; um som inum ano escapa da m


inha garganta. Algo duro bate no m eu punho e cai no chão. Mãos estranhas
agarram m eu braço direito e m e seguram no lugar. Algum a coisa está m e
prendendo em volta dos tornozelos, do m eu punho. Estou m e debatendo contra
essas novas am arras e chutando o ar com o um louco. A escuridão parece estar
descendo sobre m eus olhos, m eus ouvidos, m inha garganta. Não consigo
respirar, escutar ou enxergar com clareza, e o sufoco desse m om ento é tam
anho e tão apavorante que tenho certeza que enlouqueci.
Algum a coisa fria e pontuda belisca m eu braço.

Só tenho um m om ento para refletir naquela dor antes que ela tom e conta de m
im .

Capítulo 6

— Juliette — m urm uro. — O que está fazendo aqui?

Estou parcialm ente vestido, m e preparando para m eu dia, e ainda é m uito cedo
para visitas.

Essas horas anteriores ao nascer do sol são m eus únicos m om entos de paz, e
ninguém deveria estar aqui. Parece im possível que ela tenha conseguido burlar a
vigilância e ter acesso aos m eus aloj am entos particulares.

Alguém deveria tê-la im pedido.

Ao invés disso, ela está parada na m inha porta, m e olhando. Já a havia visto
tantas vezes, m as dessa vez é diferente — estou sentindo um a dor quase física
só de olhar para ela. Mas de certo m odo ainda m e sinto atraído, desej ando estar
perto dela.

— Me desculpe — ela diz, e está torcendo as m ãos e evitando m e olhar de


frente. — Sinto tanto, tanto.

Observo suas roupas.

É um vestido verde-escuro com m angas j ustas; um corte sim ples feito de


algodão com ly cra que m olda as curvas m acias do seu corpo. Ele com bina
com os tons de verde dos olhos dela de um j eito que eu não esperava. É um dos
m uitos vestidos que escolhi para ela. Achei que iria gostar de ganhar algum as
coisas bonitas depois de ter ficado tanto tem po engaiolada com o um anim al. E

não sei bem se consigo explicar, m as sinto um orgulho estranho de ela estar
vestindo algo que eu m esm o escolhera.

— Desculpe — ela diz, pela terceira vez.

Mais um a vez fico aturdido em pensar com o ela conseguiu chegar aqui. No m
eu quarto. Olhando para m im enquanto ainda estou sem cam isa. Seu cabelo é
tão longo que cai até o m eio das costas; tenho que m e segurar para conter m
inha vontade de passar as m ãos sobre eles. Ela é tão linda.

Não entendo por que está se desculpando.

Ela fecha a porta atrás de si. Cam inha em m inha direção. Meu coração bate
descom passado agora, e não é algo natural para m im . Não costum o reagir
desse m odo. Não costum o perder o controle. Eu a vej o todos os dias e consigo
m anter um a aparência de dignidade, m as tem algum a coisa errada; isso não
está certo.

Ela está tocando m eu braço.

Está deslizando seus dedos pela curva do m eu om bro, e o toque da sua pele em
contato com a m inha m e dá vontade de gritar. A dor é intolerável, m as não
consigo falar; estou paralisado.

Tenho vontade de dizer para ela parar, para ir em bora, m as um pedaço de m im


está em conflito.

Estou feliz em tê-la perto de m im , m esm o que isso doa, m esm o que isso não
faça nenhum sentido. Mas eu não consigo alcançá-la, não posso abraçá-la com o
sem pre quis fazer.

Ela olha para m im .

Ela m e exam ina cuidadosam ente com seus olhos azuis-esverdeados e de


repente m e sinto

culpado, sem entender o porquê. Porém , tem algo em seu olhar que m e faz
sentir insignificante, com o se ela houvesse percebido que sou vazio por dentro.
Ela descobriu as rachaduras nessa arm adura que venho usando há anos, todos os
dias, e isso m e deixa petrificado.

Essa garota sabia exatam ente com o m e destruir.

Ela pousa as m ãos no m eu om bro.

E então agarra m eu om bro, enfia seus dedos na m inha pele com o se estivesse
tentando rasgá-la.

A agonia é tão cega que, dessa vez, chego realm ente a gritar. Caio de j oelhos à
sua frente e ela torce m eu braço, girando-o para trás até eu ficar sem fôlego,
tentando perm anecer calm o, lutando para não m e entregar à dor.

— Juliette — falo ofegante —, por favor...

Ela passa a m ão livre pelos m eus cabelos, j oga m inha cabeça para trás para
que eu sej a forçado a encarar seus olhos. E então se curva e se aproxim a dos m
eus ouvidos, seus lábios quase tocando m eu rosto.

— Você m e am a? — ela sussurra.

— O que? — Respiro fundo. — O que você está fazendo?

— Você ainda m e am a? — ela pergunta novam ente, seus dedos agora


deslizando pelos contornos do m eu rosto, pela linha do m eu m axilar.

— Sim — digo a ela. — Ainda a am o.

Ela sorri.

É um sorriso inocente, tão m eigo que fico realm ente chocado quando suas m
ãos se apertam em torno do m eu braço. Ela torce m eu om bro para trás a tal
ponto, que tenho certeza que o deslocou.

Meus olhos veem faíscas quando ela diz:

— Está quase acabado agora.

— O que? — pergunto, desesperado, tentando olhar em volta. — O que está


quase acabado...

— Só um pouco m ais e eu vou em bora.

— Não — não, não vá —, onde está indo...

— Você vai ficar bem — ela declara. — Eu prom eto.

— Não — estou respirando com dificuldade —, não...


Subitam ente ela m e em purra para frente e eu acordo tão rápido que m e falta o
ar.

Pisco várias vezes até perceber que eu tinha acordado no m eio da noite. Um a
escuridão com pleta m e envolve por todos os cantos do quarto. Meu peito está
arfando; m eu braço está preso e latej ando, e eu percebo que o efeito dos m
edicam entos contra a dor j á passou. Tem um pequeno controle rem oto preso
debaixo da m inha m ão; aperto o botão para liberar m ais um a dose.

Dem oro alguns m inutos para m e estabilizar. Meus pensam entos lentam ente se
recuperam do pânico.

Juliette.

Não posso controlar um pesadelo, m as seu nom e vai ser a única coisa que vou
m e perm itir recordar quando estiver acordado.

A hum ilhação que sinto não m e perm ite m ais que isso.

Capítulo 7

— Bom , isso é em baraçoso. Meu filho, am arrado com o um anim al.

Estou quase convencido que estou tendo outro pesadelo. Abro m eus olhos
lentam ente; olho para o teto. Não faço nenhum m ovim ento brusco, m as posso
sentir a força das correias em volta dos m eus punhos e nos dois tornozelos. Meu
braço ferido ainda está na tipoia e apoiado no m eu peito.

E em bora a dor no m eu om bro ainda estej a lá, j á dim inuiu bastante. Me sinto
m ais forte. Até m inha m ente está m ais clara, m ais alerta. Mas então sinto o
gosto de algo am argo na boca e im agino há quanto tem po estou nessa cam a.

— Você realm ente achou que eu não ficaria sabendo? — ele pergunta, divertido.

Ele se aproxim a da m inha cam a, seus passos reverberando dentro de m im .

— Você fez Delalieu choram ingar desculpas por m e incom odar, suplicando
para m eus hom ens culpá-lo pela inconveniência dessa visita inesperada. Sem
dúvidas, você apavora aquele velho, que está sim plesm ente fazendo o trabalho
dele, quando a verdade é, eu teria descoberto tudo, m esm o sem ele ter m e
contado. Isso — ele diz — não é o tipo de trapalhada que se pode esconder. Você
é um idiota por pensar o contrário.

Sinto um leve puxão nas m inhas pernas e percebo que ele está soltando as am
arras. O toque da sua m ão na m inha pele é abrupto e inesperado, e isso m exe
algum a coisa dentro de m im , algo obscuro e profundo que m e faz sentir
fisicam ente m al. Sinto o gosto do vôm ito no fundo da m inha garganta. É
preciso todo o m eu autocontrole para não vom itar em cim a dele.

— Sente-se m eu filho. Você deve estar bem m elhor agora. Não descansou
quando deveria, e agora isso foi corrigido. Você está inconsciente há três dias, e
eu cheguei aqui há vinte e sete horas. Agora, levante-se. Isso é ridículo.

Ainda estou olhando para o teto. Respirando com dificuldade.

Ele m uda de tática.

— Sabe — ele diz com cuidado —, na verdade eu ouvi um a história bem


interessante sobre você.

— Ele se senta na beirada da m inha cam a; o colchão range e estala sob o peso
dele. — Gostaria de ouvi-la?

Minha m ão esquerda com eça a trem er. Cerro os dedos sobre os lençóis.

— Soldado 45B-76423. Fletcher, Seam us. — Ele faz um a pausa. — O nom e


lhe é fam iliar?

Aperto m eus olhos com força.

— Im agine m inha surpresa — ele continua — quando escuto que m eu filho


finalm ente fez a coisa certa. Que ele finalm ente tom ou a iniciativa e dispensou
um soldado traiçoeiro que andava roubando dos nossos depósitos de suprim
entos. Fiquei sabendo que você lhe deu um tiro na testa.

— Um a risada. — Dei os parabéns para m im m esm o. Disse que você tinha


finalm ente se j untado aos seus, que finalm ente aprendeu a liderar corretam
ente. Fiquei quase orgulhoso. Por isso, fiquei ainda m ais surpreso ao saber que a
fam ília de Fletcher ainda está viva. — Ele bateu suas m ãos um a na outra com
força. — É surpreendente, é claro, porque você, entre todos os dem ais deveria
saber as regras. Traidores vêm de fam ílias de traidores, e um a traição significa

m orte para todos.

Ele apoia sua m ão no m eu peito.

Estou levantando m uros no m eu cérebro novam ente. Paredes brancas. Blocos


de concreto.

Côm odos vazios e espaços abertos.

Não existe nada dentro de m im . Nada lá dentro.

— É engraçado. — Ele continua pensativo agora. — Porque eu disse a m im m


esm o que esperaria para discutir isso com você. Mas, de certo m odo, esse m om
ento parece bem adequado, não acha? — Posso ouvir o sorriso dele. — Dizer a
você com o estou desapontado. Muito em bora não possa dizer que estej a
surpreso. — Ele dá um suspiro. — Num único m ês você perdeu dois soldados,
não conseguiu controlar um a garota clinicam ente dem ente, abalou um setor
inteiro, e encoraj ou a revolta entre os cidadãos. E, por incrível que pareça, não
estou absolutam ente surpreso.

Suas m ãos se m ovem ; se dem oram nos m eus om bros.

Paredes brancas, penso.

Blocos de concreto.

Côm odos vazios. Espaço aberto.

Nada existe dentro de m im . Nada lá dentro.

— Mas o pior de tudo — ele continua — não é o fato de você ter conseguido m
e hum ilhar ao subverter a ordem que eu tinha finalm ente conseguido
estabelecer. Nem que, de algum m odo, você conseguiu levar um tiro durante os
acontecim entos. Mas que dem onstrasse sim patia pela fam ília de um traidor —
ele diz, rindo, sua voz num tom feliz e alegre. — Isso é im perdoável.

Meus olhos estão abertos agora, piscando sob a forte luz fluorescente acim a da
m inha cabeça, concentrado nos pontos brancos que borram m inha visão. Não
vou m e m over. Não vou falar.

Suas m ãos se fecham em torno da m inha garganta.

O m ovim ento é tão abrupto e violento que quase fico aliviado. Um a parte de m
im sem pre espera que ele vá fazer isso algum dia; que talvez ele realm ente m e
deixe m orrer dessa vez. Mas isso nunca acontece. Nunca dura o bastante.

Tortura nunca é tortura quando existe algum a esperança de alívio.

Ele m e solta logo e consegue exatam ente o que quer. Dou um salto para cim a,
tossindo e espirrando, finalm ente em itindo um som que reconhece sua presença
nesse quarto. Meu corpo todo está trem endo agora, m eus m úsculos estão enrij
ecidos pelo ataque e por ter perm anecido im óvel por tanto tem po. Estou
suando frio; m inha respiração é difícil e dolorida.

— Você tem m uita sorte — ele declara, suas palavras suaves dem ais. Ele está
em pé agora, não m ais tão perto do m eu rosto. — Sorte que eu estava aqui para
acertar as coisas. Sorte que eu tive tem po de corrigir seu erro.

Fico paralisado.

O quarto com eça a girar.

— Consegui localizar a esposa dele — ele diz. — A esposa de Fletcher e seus


três filhos. Acho que eles lhe m andaram lem branças. — Um a pausa. — Bom ,
isso foi antes que os m andasse

m atar, então acho que isso não im porta m uito agora, m as m eus hom ens
disseram que eles lhe m andaram um alô. Parece que ela se lem brava de você —
ele diz, rindo baixinho. — A esposa.

Ela disse que você lhe fez um a visita antes de todo esse... aborrecim ento
ocorrer. Disse que você estava sem pre visitando os com plexos. Se inform ando
sobre os civis.

Murm uro apenas as duas palavras que consigo balbuciar.

— Saia daqui.
— Esse é o m eu garoto! — ele diz, acenando a m ão na m inha direção. — Um
tolo dócil e patético. Às vezes fico tão revoltado com você que tenho vontade de
eu m esm o lhe dar um tiro.

Mas então penso que deve ser isso o que gostaria que eu fizesse, não é? Poder m
e culpar pela sua própria derrota? E eu penso que não, é m elhor deixá-lo m orrer
pela sua própria estupidez.

Olho para frente sem com preender, m eus dedos crispados sobre os lençóis.

— Agora m e conte — ele pede —, o que aconteceu com seu braço? Delalieu e
os outros hom ens parecem não ter ideia do que aconteceu.

Não digo nada.

— Envergonhado dem ais para adm itir que foi ferido por um de seus próprios
soldados, então?

Fecho m eus olhos.

— E quanto à garota? — ele indaga. — Com o ela conseguiu escapar? Fugiu


com um de seus hom ens, não foi?

Agarro os lençóis com tanta força que m eus punhos com eçam a trem er.

— Me diga — ele diz, se aproxim ando dos m eus ouvidos. — Com o você
lidaria com um traidor desse tipo? Vai visitar a fam ília dele tam bém ? Ser gentil
com a esposa dele?

Não queria dizer isso em voz alta, m as não consigo m e segurar dessa vez.

— Vou m atá-lo.

Ele dá um a sonora gargalhada que m ais parece um uivo. Bate a m ão na m inha


cabeça e bagunça m eu cabelo com os m esm os dedos que há pouco apertavam
o m eu pescoço.

— Muito m elhor. Agora levante. Tem os trabalho a fazer.

E eu penso que sim , não m e im portaria de fazer o tipo de trabalho que


desapareceria com Adam Kent desse m undo.

Um traidor desse tipo não m erece viver.

Capítulo 8

Estou no chuveiro há tanto tem po que perdi a noção do tem po.

Isso nunca m e aconteceu antes.

Tudo está fora de lugar, desequilibrado. Estou inseguro quanto às m inhas


decisões, duvidando de tudo que achei que acreditava, e pela prim eira vez na
vida, estou genuinam ente exausto, acabado.

Meu pai está aqui.

Estam os dorm indo sob o m esm o teto; algo que eu esperava não ter que
vivenciar novam ente.

Mas ele está aqui na base, hospedado em seus próprios aloj am entos até estar
bem seguro antes de partir. O que significa que ele vai resolver nossos problem
as, causando estragos no Setor 45. O

que significa que estarei reduzido a ser seu fantoche e m enino de recados,
porque m eu pai nunca aparece para ninguém , a não ser para aqueles que está
prestes a m atar.

Ele é o com andante suprem o do Restabelecim ento e prefere im por suas ordens
anonim am ente.

Ele viaj a para todos os lugares, sem pre com o m esm o grupo selecionado de
soldados, se com unica apenas através dos seus hom ens, e som ente em raríssim
as circunstâncias se afasta da Capital.

Notícias da sua chegada no Setor 45 j á se espalharam pela base, e m uito


provavelm ente apavorou m eus soldados. Porque sua presença, real ou im
aginária, significa apenas um a coisa: tortura.
Há m uito tem po não m e sentia um covarde.

Mas isso, isso é um a bênção. Esse m om ento dem orado — essa ilusão — de
força. Estar fora da cam a e ser capaz de tom ar um banho: é um a pequena
vitória. Os m édicos envolveram m eu braço ferido num tipo de plástico im perm
eável para o chuveiro, e eu finalm ente m e sinto capaz de ficar em pé sozinho.
Os enj oos passaram , a tontura foi em bora. Eu deveria ser capaz de pensar com
m ais clareza agora, no entanto, m inhas ideias ainda parecem m uito confusas.

Me forço para não ficar pensando nela, m as estou com eçando a perceber que
não sou forte o bastante; ainda não, e principalm ente quando ainda estou ativam
ente procurando por ela. Isso se tornou um a im possibilidade física.

Hoj e, preciso voltar ao quarto dela.

Preciso procurar nas suas coisas por algum a pista que m e aj ude a encontrá-la.
Os beliches e os arm ários de Kent e de Kishim oto j á foram vasculhados; nada
incrim inador foi encontrado. Mas ordenei aos m eus hom ens que deixassem o
quarto dela — o quarto de Juliette — exatam ente com o estava. Ninguém , a não
ser eu m esm o, tinha perm issão para entrar naquele espaço. Não até que eu
olhasse tudo antes.

E isso, de acordo com m eu pai, seria m inha prim eira tarefa.

— Isso é tudo, Delalieu. Se precisar de m ais algum a coisa eu lhe inform o.

Ele está m e seguindo por todos os lugares, m ais do que habitualm ente.
Aparentem ente ele veio m e procurar quando não com pareci à reunião que eu
m esm o havia agendado há dois dias, e teve o prazer de m e encontrar delirante
e enlouquecido. Não sei com o, m as ele conseguiu se culpar por tudo isso.

Se fosse outra pessoa, eu o teria rebaixado.

— Sim , senhor. Desculpe, senhor. E por favor, m e perdoe — nunca pretendi


causar nenhum problem a adicional...

— Está tudo bem , tenente.


— Sinto m uito, senhor — ele m urm ura. Seus om bros caem . Sua cabeça se
curva.

Suas desculpas estão m e deixando incom odado.

— Faça as tropas se reagruparem às 13 horas. Devido a esses novos acontecim


entos, preciso m e dirigir a eles.

— Sim , senhor — ele diz. Acena com a cabeça sem levantar o olhar.

— Está dispensado.

— Senhor. — Ele faz continência e desaparece.

Estou sozinho em frente à porta do quarto dela.

Engraçado com o fiquei acostum ado a visitá-la aqui; com o sentia um a


sensação estranha de aconchego ao saber que ela e eu estávam os vivendo no m
esm o prédio. Sua presença aqui na base m udou tudo para m im ; as sem anas
que ela passou aqui foram as prim eiras em que eu realm ente tive prazer em m
orar nesses aloj am entos. Eu aguardava ansiosam ente por suas explosões. Seus
ataques de raiva. Seus argum entos ridículos. Gostava quando ela gritava com
igo; eu a teria parabenizado se ela tivesse chegado a m e dar um tapa na cara.
Estava sem pre a provocando, brincando com suas em oções. Queria que ela
entrasse em contato com a garota que havia dentro dela, aprisionada pelo m edo.
Queria que ela se libertasse das suas próprias am arras.

Porque apesar de ela aparentar tim idez dentro dos lim ites do seu isolam ento,
aqui fora — no m eio do caos, destruição — eu sabia que ela se tornaria algo
com pletam ente diferente. Estava apenas à espera. Cada dia esperando
pacientem ente que ela entendesse a dim ensão do seu novo potencial; sem
nunca ter percebido que a havia deixado aos cuidados do único soldado que
poderia roubá-la de m im .

Eu deveria m e m atar por isso.

Ao invés disso, abro a porta.

Quando atravesso o um bral, o painel desliza e se fecha às m inhas costas. Me


vej o sozinho, parado aqui, no últim o lugar que ela tocou. A cam a está desfeita
e bagunçada, as portas do arm ário escancaradas, a j anela quebrada, tem
porariam ente fechada com fita crepe. Sinto um a dor profunda e nervosa no m
eu estôm ago que prefiro ignorar.

Concentração.

Entro no banheiro e exam ino seus artigos de higiene, os arm ários, até m esm o
dentro do chuveiro.

Nada.

Volto para a cam a e passo a m ão sobre o edredom am arrotado, os travesseiros


em pelotados.

Dem oro um pouco para avaliar a evidência de que ela esteve presente nesse
quarto, e arranco as roupas da cam a. Lençóis, fronhas, edredom e colcha; tudo j
ogado ao chão. Exam ino m inuciosam ente cada centím etro dos travesseiros, do
colchão, e da estrutura da cam a, e novam ente não encontro nada.

A m esinha de cabeceira. Nada.

Debaixo da cam a. Nada.

As lum inárias, o papel de parede, cada peça de roupa no seu arm ário. Nada.

Som ente quando estou m e dirigindo à porta é que toco algo com m eus pés.
Olho para baixo. Ali, preso debaixo da m inha bota está um retângulo grosso,
desbotado. Um caderninho sim ples e despretensioso que cabia na palm a da m
inha m ão.

E fico tão surpreso que por um m om ento não consigo nem m e m exer.

Capítulo 9

Com o posso ter esquecido?

Este caderninho estava no seu bolso no dia que ela estava preparando a fuga. Eu
o tinha encontrado um pouco antes de Kent colocar um a arm a na m inha
cabeça, e em algum m om ento durante aquele caos, devo tê-lo deixado cair. E
chego à conclusão que era isso o que estava procurando aquele tem po todo.
Me curvo para pegá-lo, retirando cuidadosam ente as lascas e os cacos de vidro
das suas páginas.

Minha m ão não está firm e, m eu coração está m artelando nos m eus ouvidos.
Não tenho ideia do que ele pode conter. Fotos. Mensagens. Pensam entos em
baralhados e ideias ainda m alform adas.

Podia ser qualquer coisa.

Viro o caderninho na m inha m ão, m eus dedos se lem brando da superfície


áspera e gasta. A capa tem um tom de m arrom apagado, m as não posso afirm ar
se foi m anchado pelo uso ou pelo tem po, ou se sem pre foi dessa cor. Im agino
há quanto tem po ela o possui. Onde será que ela o adquiriu.

Dou um passo em falso para trás, m inhas pernas batem na cam a. Meus j oelhos
cedem , e m e seguro na ponta do colchão. Respiro fracam ente e fecho m eus
olhos.

Eu tinha visto um a film agem do período que ela passou no hospício, m as foi
com pletam ente inútil. A ilum inação era m uito fraca; a pequena j anela m al
conseguia clarear os cantos escuros do quarto dela. Ela era frequentem ente
apenas um a form a indistinta; um a som bra escura que poderia passar sem ser
notada. Nossas câm eras só serviam para detectar seus m ovim entos — e talvez
num m om ento de sorte, quando o sol a ilum inava pelo ângulo certo —, m as
ela raram ente se m ovia. Na m aior parte do tem po ela ficava sentada parada, m
uito quieta, na sua cam a ou num canto escuro. Ela quase nunca falava. E quando
o fazia, nunca era com palavras. Ela falava som ente em núm eros.

Contando.

Havia algo de surreal nela, sentada ali. Não conseguia nem ver seu rosto; não era
capaz de discernir o contorno do seu corpo. Mesm o assim ela m e fascinava.
Que ela pudesse ser tão calm a, tão quieta. Ela se sentava num lugar durante
horas de um a vez, im óvel, e sem pre im aginei o que se passava em sua m ente,
o que ela poderia estar pensando, com o ela podia existir num m undo assim
solitário. Mais do que qualquer outra coisa, eu queria que ela falasse.

Estava desesperado para ouvir sua voz.

Sem pre desej ei que ela falasse um a língua que eu pudesse entender. Pensei que
poderíam os com eçar com algo sim ples. Talvez algo ininteligível. Mas a prim
eira vez que a peguei falando frente à câm era, não consegui afastar m eu olhar
dela. Fiquei sentado ali, parado, com os nervos tensionados, quando ela tocou a
parede com a m ão e contou.

4.572.

Observei enquanto ela contava. Até 4.572.

Dem orou cinco horas.

Só m ais tarde percebi que ela estava contando suas próprias respirações.

Não consegui deixar de pensar nela depois disso. Eu estava disperso bem antes
de ela chegar à base, constantem ente pensando no que ela estava fazendo e se
ela iria falar novam ente. Se estava contando em voz alta, ou estava contando na
sua cabeça. Será que ela j á havia pensado em letras? Sentenças com pletas?
Estava com raiva? Triste? Por que ela parecia tão calm a para um a garota que
havia sido considerada um anim al perturbado e tem peram ental. Era um truque?

Eu tinha visto todos os relatórios docum entando os m om entos críticos de sua


vida. Tinha lido todos os detalhes dos seus históricos m édicos e policiais; tinha
colocado em ordem as reclam ações da escola, as anotações dos m édicos, sua
sentença oficial em itida pelo Restabelecim ento, e até m esm o o questionário
do hospício respondido por seus pais. Sabia que ela tinha sido retirada da escola
aos 14 anos, que havia passado por um a série de testes e sido forçada a tom ar
várias — e perigosas — drogas experim entais, além de se subm eter a sessões
de eletrochoque. Em dois anos ela havia entrado e saído de nove diferentes
centros de detenção j uvenil e foi exam inada por m ais de cinquenta m édicos
diferentes. Todos eles a descreveram com o um m onstro.

Cham aram -na de um perigo para a sociedade e um a am eaça à hum anidade.


Um a garota que iria destruir nosso m undo e j á tinha com eçado assassinando
um a criança pequena. Aos 16 anos, seus pais sugeriram que ela fosse internada.
E foi o que aconteceu.

Nada disso fazia sentido para m im .

Um a garota rej eitada pela sociedade, pela sua própria fam ília — ela devia ter
m uitos sentim entos reprim idos. Raiva. Depressão. Ressentim ento. Onde
estava tudo isso?

Ela não era nada parecida com os outros pacientes do hospício — aqueles que
eram realm ente perturbados. Alguns passavam horas se lançando contra a
parede, quebrando osso e fraturando crânios. Outros eram tão perturbados que
rasgavam a própria pele até tirar sangue, literalm ente se rasgando em pedaços.
Alguns conversavam consigo m esm os em voz alta, dando risadas, cantando e
discutindo. A m aioria rasgava as próprias roupas, satisfeitos em dorm ir e ficar
despidos na sua própria suj eira. Ela era a única que tom ava banho com
regularidade ou lavava as próprias roupas. Fazia suas refeições calm am ente,
sem pre com endo tudo que lhe ofereciam . E

passava a m aior parte do tem po olhando pela j anela.

Ela ficou trancafiada por 264 dias e não perdeu seu senso de hum anidade.
Queria saber com o ela conseguiu reprim ir tanta coisa; com o ela adquiriu tanta
calm a exterior. Pedi um a análise do seu com portam ento em relação aos outros
pacientes, porque queria fazer um a com paração. Queria saber se seu com
portam ento era norm al.

Não era.

Observei o perfil m odesto dessa garota que eu não podia ver nem conhecer, e
senti um respeito enorm e por ela. Passei a adm irá-la e invej ar sua calm a —
sua tranquilidade perante tudo a que foi forçada a enfrentar. Não sei se entendi
exatam ente o que era que estava sentindo naquela época, m as sabia que a
queria toda para m im .

Queria conhecer seus segredos.

E então um dia, ela se levantou na sua cela e cam inhou até a j anela. Era de m
anhã bem cedo, o sol havia acabado de nascer; pela prim eira vez pude vislum
brar seu rosto. Ela pressionou a palm a da m ão na j anela e sussurrou duas
palavras, só um a vez.

Me perdoa.

Aperto o botão para retroceder a fita várias vezes.


Nunca poderia contar a ninguém que estava incrivelm ente fascinado por ela.
Tinha que inventar falsos m otivos, um a indiferença aparente — um a
arrogância — em relação a ela. Ela seria nossa arm a e nada m ais, apenas um
instrum ento de tortura inovador.

Um detalhe que não m e im portava nem um pouco.

Minha pesquisa m e havia levado de encontro aos seus arquivos por puro acaso.
Coincidência.

Não fui atrás dela à procura de um a arm a; nunca fui. Bem antes de eu ter visto
seu film e, e bem , bem antes de ter trocado um a só palavra com ela, estava
pesquisando outra coisa. Para outro fim .

Meus m otivos eram só m eus.

Usá-la com o arm a foi um a história que criei para o m eu pai; precisava de um
a desculpa para ter acesso a ela, para ter a perm issão necessária para estudar
seus arquivos. Foi um a charada que tive que inventar para m e j ustificar perante
m eus soldados e para a centena de câm eras que m onitoram m inha existência.
Não a trouxe para a base para explorar suas habilidades. E

certam ente não esperava m e apaixonar por ela no m eio disso tudo.

Mas essas verdades e m inha verdadeira m otivação vão para o túm ulo com igo.

Caio na cam a com força. Bato a m ão na testa, e a esfrego pelo m eu rosto.


Nunca teria m andado Kent ficar com ela se eu m esm o tivesse podido fazer
isso. Cada j ogada m inha foi um erro. Vi cada esforço calculado falhar. Eu
apenas queria ver com o ela interagia com outra pessoa.

Im aginava se ela seria diferente; se as expectativas que eu havia criado em


relação a ela se acabariam ao vê-la conversando naturalm ente com alguém .
Porém , vê-la conversar com outra pessoa m e deixou m aluco. Estava com ciúm
es. Ridículo. Queria que ela soubesse quem eu era; queria que ela conversasse
comigo. E foi então que percebi: essa sensação estranha e inexplicável de que
talvez ela fosse a única pessoa do m undo pela qual eu poderia realm ente m e im
portar.

Me forço a m e sentar. Arrisco um olhar para o caderno ainda preso em m inha m


ão.

Eu a perdi.

Ela m e odeia.

Ela m e odeia e eu a rej eito, e talvez nunca m ais a verei, e a culpa é toda m
inha. Esse caderninho talvez sej a a única coisa que m e restou dela. Minha m ão
ainda está pairando sobre a capa, tentando abri-lo, para poder encontrá-la novam
ente, m esm o que sej a só por um instante, m esm o que sej a apenas no papel.
Mas parte de m im está com m edo. Talvez isso não acabe bem . Talvez não sej a
o que eu gostaria de ver. E m e acudam se isso for algum tipo de diário contendo
seus pensam entos e sentim entos pelo Kent, posso até m e j ogar pela j anela.

Coloco o punho cerrado de encontro à m inha testa. Respiro fundo e dem oradam
ente.

Finalm ente o abro. Meus olhos descem para a prim eira página.

E só então com eço a perceber a im portância do que encontrei.

Continuo a pensar que devo permanecer calma, que tudo isso é fruto da minha
imaginação, que tudo vai ficar bem e alguém vai abrir a porta e me deixar sair.
Continuo a pensar que isso vai acontecer porque esse tipo de coisa não acontece
pura e simplesmente. Isso não acontece. As pessoas não são esquecidas desse
modo. Não são abandonadas assim.

Isso simplesmente não acontece.

Meu rosto está coberto de sangue de quando eles me jogaram no chão, e minhas
mãos estão tremendo, mesmo quando escrevo isso. Essa caneta é minha válvula
de escape, minha única voz, porque não tenho ninguém com quem conversar,
nenhuma mente além da minha para mergulhar e todos os botes salva-vidas
estão ocupados e todas as boias estão quebradas e não sei nadar, não consigo
nadar não consigo nadar e está cada vez m ais difícil. É com o se houvesse um m
ilhão de gritos presos dentro do m eu peito , mas tenho que mantê-los presos lá
dentro porque para que gritar se não tem ninguém para escutar seus gritos e
ninguém vai me escutar aqui. Ninguém jamais me ouvirá novamente.
Aprendi a ficar olhando para as coisas.

As paredes. Minhas mãos. As rachaduras na parede. As linhas nos meus dedos.


Os tons de cinza no concreto. O formato de minhas unhas. Escolho uma coisa e
fico olhando horas para ela. Conto as horas na minha cabeça contando os
segundos à medida que eles passam. Conto os dias que passam enumerando-os.
Hoje é o dia dois. Hoje é o segundo dia. Hoje é um dia.

Hoje.

Está muito frio. Está tão frio está tão frio.

Por favor por favor por favor

Fecho o caderno com força.

Minha m ão está trêm ula novam ente, e dessa vez não consigo evitar. Dessa vez
o trem or está vindo do fundo do m eu ser, de um a percepção profunda do tenho
nas m ãos. Esse diário não é do tem po que ela passou aqui. Não tem nada a ver
com igo, ou Kent, ou ninguém . Esse diário é um docum ento dos seus dias
passados no m anicôm io.

E, de repente, esse pequeno e desgastado caderno é m ais im portante para m im


do que qualquer outra coisa que eu j á tenha possuído.

Capítulo 10

Nem eu m esm o sei com o consigo voltar tão depressa para m eu quarto. Tudo
que sei é que tranquei a porta do quarto, destranquei a porta do escritório só para
m e trancar lá dentro, e agora estou sentado aqui na m inha m esa, pilhas de
papel e m aterial sigiloso são colocadas de lado, e fico olhando para aquela capa
esfarrapada de algo que tenho m uito m edo de ler. Existe algo pessoal nesse
diário; parece que contém sentim entos de solidão, os m om entos m ais
vulneráveis da vida de alguém . Ela escreveu o que está nessas páginas no m om
ento m ais lúgubre de sua vida de 17 anos, e estou prestes a conseguir exatam
ente o que sem pre quis.

Um olhar na sua m ente.

E em bora essa espera estej a acabando com igo, tam bém estou terrivelm ente
ciente de com o isso pode ter um resultado negativo. De repente não tenho m ais
certeza se realm ente quero saber. No entanto, sei que quero. Definitivam ente
sim .

Então, abro o livro, e viro para a página seguinte. Dia três.

Hoje começo o dia gritando.

E aquelas quatro palavras m e atingem m ais fundo do que qualquer dor física.

Meu peito está subindo e descendo, m inha respiração resfolegante. Tenho que m
e forçar a continuar a ler.

Logo percebo que as páginas estão fora de ordem . Parece que ela voltou para o
com eço depois que chegou ao final do diário, e percebeu que não tinha m ais
espaço. Ela escreveu nas m argens, sobre os parágrafos, com letras m inúsculas e
quase ilegíveis. Existem núm eros rabiscados por cim a de tudo, às vezes o m
esm o núm ero se repete várias e várias vezes. Algum as vezes a m esm a palavra
é escrita e reescrita, circulada e sublinhada. E quase todas as páginas têm
sentenças e parágrafos quase que inteiram ente riscados.

É um com pleto caos.

Meu coração se contrai ao perceber isso, com essa prova do que ela deve ter
passado. Havia im aginado com o ela deve ter sofrido durante todo esse tem po,
trancada em condições som brias e pavorosas. Mas ver isso pessoalm ente —
queria não estar certo.

E agora, m esm o quando tento ler em ordem cronológica, descubro que sou
incapaz de acom panhar o m étodo que ela usou para num erar tudo; o sistem a
que ela criou nessas páginas é algo que só ela seria capaz de decifrar. Posso
apenas folhear o m aterial e procurar trechos que estão escritos com m ais
coerência.
Meus olhos ficam presos a um a passagem em particular.

É um a coisa estranha, não conhecer a paz. Saber que não im porta onde você for,
não existe um santuário. Que a am eaça da dor est ará sempre ali bem perto. Não
estou protegida dentro dessas quatro paredes, nunca me senti protegida ao sair
de minha casa, e nunca consegui estar segura nos catorze anos que vivi dentro
de casa. O hospício mata pessoas todos os dias, o mundo já aprendeu a me
temer, e meu lar é o mesmo lugar onde meu pai me prendia no quarto todas as
noites e minha mãe gritava comigo por ser a aberração que ela foi forçada a
criar.

Ele sempre disse que era meu rosto.

Havia alguma coisa no meu rosto, minha mãe dizia, que ela não conseguia
suportar. Algo nos meus olhos, no modo como eu olhava para ela, o simples fato
de eu existir. Ela sempre dizia para eu parar de olhar para ela. Ela costumava
gritar isso para mim. Como se eu fosse atacá-la. Pare de me olhar, ela gritava.
Você pare de olhar para mim, ela gritava.

Uma vez ela colocou minha mão no fogo.

Só para ver se iria queimar, ela disse. Só para verificar se era uma mão comum,
ela dizia.

Eu tinha 6 anos então.

Me lembro disso, pois era meu aniversário.

Joguei o caderno no chão.

Me levanto num instante, tentando acalm ar m eu coração. Passo a m ão pelos


cabelos, m eus dedos seguram as raízes. Essas palavras m e tocam , m e são tão
fam iliares. A história de um a criança m altratada pelos pais. Trancada e j ogada
fora. É algo que eu entendo bem .

Nunca li nada parecido antes. Nunca havia lido nada que tocasse direto no m eu
coração. E eu sei que não deveria. Sei que de algum m odo isso não vai aj udar,
não vai m e ensinar nada, não vai m e dar nenhum a pista sobre onde ela pode ter
ido. Já sei que ler tudo isso vai m e enlouquecer.

Mas não consigo deixar de pegar o diário dela m ais um a vez.

Abro-o novam ente.

Será que j á estou louca?

Será que isso j á aconteceu?

Com o saberei um dia?

Meu interfone toca tão repentinam ente que quase caio da cadeira, e tenho que m
e segurar na parede por trás da m inha m esa. Minhas m ãos não param de trem
er; m inha testa está coberta de suor. Meu braço ferido com eça a queim ar, e m
inhas pernas de repente estão fracas dem ais para m e aguentar de pé. Tenho que
focar toda a m inha energia em parecer norm al quando receber a m ensagem .

— O quê? — pergunto.

— Senhor, estava pensando, se o senhor ainda estava... bem , a reunião, senhor, a


m enos é claro que eu entendi o horário errado. Desculpe, não deveria tê-lo
incom odado...

— Oh, pelo am or de Deus, Delalieu. — Tento afastar o trem or da m inha voz.


— Pare de se desculpar. Estou a cam inho.

— Sim , senhor — ele diz. — Obrigado, senhor.

Desligo o aparelho.

E então seguro o caderno, o enfio no m eu bolso e vou em direção à porta.

Capítulo 11

Estou parado na borda do pátio sobre o Quadrante, olhando para m ilhares de


rostos m e encarando. Esses são m eus soldados. Parados em fila em seus
uniform es de reunião. Cam isas pretas, calças pretas, botas pretas.

Sem arm as.

Punhos esquerdos pressionados aos peitos.

Faço um esforço para m e concentrar — e m e im portar — com a tarefa à m


inha frente; m as de um j eito ou de outro não consigo evitar sentir a presença
daquele caderno guardado no m eu bolso, seu volum e pressionando m inha
perna e m e torturando com seus segredos.

Não sou eu m esm o.

Meus pensam entos estão em aranhados em palavras que não são m inhas.
Respiro fundo para clarear m inha cabeça; flexiono os dedos da m ão.

— Setor 45 — proclam o, falando diretam ente no m icrofone.

Eles se m ovem im ediatam ente, abaixando a m ão esquerda e colocando o


punho direito de encontro ao peito.

— Tem os um a série de coisas im portantes para discutir hoj e — digo a eles. —


A prim eira de todas é bem aparente. — Faço um gesto com m eu braço. Estudo
seus rostos cuidadosam ente desprovidos de em oção.

Seus pensam entos traiçoeiros são óbvios.

Eles pensam que sou um a criança m aluca. Não m e respeitam ; não são leais a
m im . Eles estão desapontados que estou ali frente a eles; zangado; revoltado
até, m as não fui m orto por causa desse ferim ento.

Mas eles tem em a m im .

E isso é tudo de que preciso.

— Fui ferido — digo — enquanto perseguia dois de nossos soldados desertores.


Soldado Adam Kent e Soldado Kenj i Kishim oto planej aram sua fuga num
esforço para sequestrar Juliette Ferrars, nosso m ais novo e im portante ativo
para o Setor 45. Eles foram acusados do crim e de capturar e deter a Srta. Ferrars
contra a sua vontade. Porém , e m ais im portante, eles foram devidam ente
condenados por traição contra o Restabelecim ento. Quando forem encontrados
serão executados sum ariam ente.

O terror, eu percebo, é um dos sentim entos m ais fáceis de se identificar. Até m


esm o no rosto estoico de um soldado.

— Em segundo lugar — digo, dessa vez m ais lentam ente —, num esforço para
apressar o processo de estabilizar o Setor 45, acalm ar seus cidadãos, e o
subsequente caos resultante desses recentes acontecim entos, o com andante
suprem o do Restabelecim ento se j untou a nós na base.

Ele chegou — inform o a eles — a m enos de trinta e seis horas.

Alguns hom ens abaixaram os punhos. Esqueceram por um m om ento de si m


esm os. Seus olhos

estão arregalados.

Petrificados.

— Vocês irão recepcioná-lo — digo.

Eles caem de j oelhos.

É estranho deter esse tipo de poder. Gostaria de saber se m eu pai está orgulhoso
do que criou. Ser capaz de fazer m ilhares de hom ens caírem de j oelhos com
apenas algum as palavras; apenas ao m e ouvirem dizer o seu título. É o tipo de
coisa horrorosa e viciante.

Conto cinco com passos na m inha cabeça.

— Levantar.

Eles levantam . E então m archam .

Cinco passos para trás, para frente, parados no lugar. Levantam seus braços
esquerdos, curvam os dedos e form am punhos, e se aj oelham num j oelho só.
Dessa vez não perm ito que se levantem .
— Preparem -se, cavalheiros — digo a eles. — Não descansarem os até que
Kent e Kishim oto sej am encontrados e que a Srta. Ferrars sej a trazida de volta
à base. Vou m e reunir com o com andante suprem o nas próxim as vinte e quatro
horas; nossa m ais nova m issão será claram ente definida. Nesse ínterim vocês
têm que entender duas coisas: prim eiro, irem os neutralizar a tensão que se criou
entre os cidadãos e nos esforçar para lem brarm os a eles de suas prom essas para
nosso novo m undo. E em segundo lugar, garantirem os encontrar os soldados
Kent e Kishim oto. — Paro. Olho em volta, m e concentrando em seus rostos. —
Deixe que o destino deles sirva com o exem plo para vocês. Não aceitam os
traidores no Restabelecim ento. E

nós não perdoam os.

Capítulo 12

Um dos hom ens do m eu pai está m e esperando do lado de fora da m inha


porta.

Olho de relance em sua direção, m as não o suficiente para reconhecer suas


feições.

— Diga qual o assunto, soldado.

— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe inform ar que o com andante
suprem o solicita sua presença em seus aloj am entos para o j antar às vinte
horas.

— Considere sua m ensagem recebida. — Dou um passo para abrir m inha porta.

Ele dá um passo à frente, bloqueando m inha passagem .

Viro o corpo para olhar para ele.

Ele está parado a alguns passos de distância de m im : um ato im plícito de


desrespeito; um nível de intim idade que nem m esm o Delalieu se perm ite. No
entanto, ao contrário dos m eus hom ens, os baj uladores que cercam m eu pai se
consideram especiais. Ser um m em bro da guarda de elite do com andante
suprem o é considerado um privilégio e um a honra. Eles se reportam diretam
ente a ele.
E nesse exato m om ento, esse soldado está tentando provar que é superior a m
im .

Ele tem invej a de m im . Pensa que sou indigno de ser o filho do com andante
suprem o do Restabelecim ento. Isso está praticam ente escrito no rosto dele.

Tenho que segurar m eu im pulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos
cinza e o buraco negro que é sua alm a. Ele tem as m angas enroladas na altura
do cotovelo, suas tatuagens m ilitares claram ente definidas e à m ostra. Os
círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em
verm elho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de
patente elevada. É um ritual doentio do qual sem pre fiz questão de m e recusar a
participar.

O soldado ainda está m e encarando.

Inclino m inha cabeça em sua direção, ergo m inhas sobrancelhas.

— Recebi ordens — ele declara — de esperar um a resposta oral aceitando esse


convite.

Dem oro um pouco, pensando nas m inhas escolhas, m as não havia nenhum a.

Eu, com o todos os fantoches desse m undo, sou com pletam ente subserviente
aos desej os do m eu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que
nunca serei capaz de enfrentar o hom em que tem seus punhos cerrados em volta
da m inha espinha vertebral.

Isso m e faz odiar a m im m esm o.

Encaro os olhos do soldado e im agino, por um breve m om ento, qual o nom e


dele, antes de perceber que não m e im porto com isso.

— Considere-o aceito.

— Sim , s...

— E da próxim a vez, soldado, não se aproxim e a m enos de um m etro e m eio


de distância de m im , sem pedir perm issão.

Ele pisca os olhos, confuso.

— Senhor, eu...

— Você está confuso — o interrom po. — Acredita que trabalhar com o com
andante suprem o lhe dá im unidade das regras que governam a vida dos outros
soldados. Vej a, você está errado.

Seu rosto se enrij ece.

— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu em


prego, eu o teria. E

não se esqueça de que o hom em que você serve tão ansiosam ente é o m esm o
hom em que m e ensinou a atirar com um a arm a de fogo quando eu tinha
apenas nove anos de idade.

Suas narinas se dilatam . Ele olha direto para frente.

— Entregue sua m ensagem , soldado. E então relem bre isso e nunca m ais fale
com igo novam ente.

Os olhos dele agora estão presos num ponto diretam ente atrás de m im , seus om
bros rígidos.

Espero.

Seu m axilar ainda está rígido. Lentam ente ele levanta sua m ão em saudação.

— Está dispensado — digo.

Tranco a porta do m eu quarto e m e encosto nela. Preciso de apenas um m om


ento. Pego o vidrinho que está na m esinha de cabeceira e tiro duas pílulas
quadradas; as j ogo na boca, fechando m eus olhos enquanto se dissolvem .

A escuridão atrás das m inhas pálpebras é um alívio reconfortante.

Até que a lem brança do rosto dela se im põe à m inha percepção.


Me sento na cam a e deixo a cabeça cair na m inha m ão. Não deveria estar
pensando nela agora.

Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do m eu pai para


aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alm
a.

Fecho m eus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as
paredes que com certeza lim pariam m inha m ente. Mas dessa vez elas não
funcionam . O rosto dela insiste em surgir subitam ente, seu diário m e
provocando lá no fundo do m eu bolso.

E com eço a perceber que tem um a pequena parte de m im que não desej a
afastar os pensam entos dela. Um a parte de m im gosta da tortura.

Essa garota está m e destruindo.

Um a garota que passou o últim o ano internada num sanatório de loucos. Um a


garota que tentou m e m atar porque eu a beij ei. Um a garota que fugiu com
outro hom em só para se afastar de m im .

É claro que essa é a garota por quem eu iria m e apaixonar.

Coloco a m ão na boca.

Estou perdendo a cabeça.

Tiro m inhas botas. Me enfio na cam a e deixo a cabeça cair nos travesseiros.

Ela dorm iu aqui, penso. Ela dorm iu na m inha cam a. Ela acordou na m inha
cam a. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.

Falhei.
Perdi.

Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do
rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada num a tentativa de
entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar,
em bora não consiga im aginar onde.

Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de
lhe dizer.

Ao invés disso, abro seu diário e leio.

Às vezes fecho m eus olhos e pinto essas paredes com cores diferentes.

Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo.
Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para
longe da tortura da minha própria mente.

Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar
minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero
fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa
cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá
para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa
fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo
fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas
então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos
que não param de me sufocar sufocar sufocar...

Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.

Minha mente, espero, logo será descoberta.

O diário cai da m inha m ão e bate no m eu peito. Passo a m ão pelo rosto, pelo


m eu cabelo.

Massageio o pescoço e m e puxo com força para cim a a ponto de bater a cabeça
na cabeceira da
cam a, e na verdade fico grato a isso. Me dem oro um pouco sentindo a dor.

E viro a página.

Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se
eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o
que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se
alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do
que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder
respirar o ar fresco novamente.

Imagino tantas outras coisas.

Às veze s fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro.
Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos.
Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente
e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha
cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.

Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para
desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A
única coisa com a qual sempre sonhei.

Sempre desejei ter um amigo.

Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter
alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar
minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui
colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.

Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.

Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço
para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e
desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.

Imagino como seria ter um amigo.


E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão
vindo os outros gritos.

Imagino se estão vindo de mim.

Tento m e concentrar, dizendo a m im m esm o que são palavras vazias, m as


estou m entindo.

Porque, de algum m odo, sim plesm ente ler essas palavras é dem ais; e pensar
nela sofrendo está m e deixando agoniado.

Saber que ela vivenciou isso.

Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e m altratada a
vida inteira.

Em patia é um a em oção que eu não conhecia, m as agora tom a conta de m im ,


m e levando para um m undo que eu não sabia que podia penetrar. E em bora
sem pre tenha acreditado que ela e eu tivéssem os m uita coisa em com um , não
sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.

Isso está m e m atando.

Fico em pé. Com eço a andar pelo quarto até acalm ar m eus nervos para
continuar a leitura. Então respiro fundo.

E viro a página.

Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.

Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte
de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas
do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.

Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para
lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus
braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e
eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou
enjaulada. E isso está acabando comigo.

Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e


passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se
tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era
capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.

E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com
raiva.

Não sei o que está acontecendo comigo.

— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.

E caio de j oelhos.

— Cham e o transporte im ediatam ente. — Preciso sair. Preciso sair daqui


agora.

— Senhor? Isso é, sim , senhor, é claro... m as onde...

— Tenho que visitar os com plexos — digo. — Tenho que fazer m inhas rondas
antes do m eu

com prom isso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto m entira. Porém agora
estou disposto a fazer qualquer coisa que m e afaste desse diário.

— Ah, certam ente, senhor. Gostaria que o acom panhasse?

— Isso não será necessário, tenente, m as obrigado pela oferta.

— Eu... se-senhor — ele gaguej a. — É claro, é u-um a honra servi-lo, senhor, aj


udá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É m
uito provável que o pobre hom em vá ter um infarto agora.

— Estarei pronto para sair em dez m inutos — interrom po.

Ele com eça a gaguej ar, m as para. Então diz:

— Sim , senhor. Obrigado, senhor.

Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.

Capítulo 13

Tínhamos lares. Antes.

De todos os tipos diferentes.

Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.

Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a


andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3
andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos
mudar.

Vivemos nesses andares por algum tempo.

Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço
que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que
redirecionou nossa vida.

Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos
realmente.

Comí amos coisas que não deveríamos, gastáva mos dinheiro quando não
podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos
desperdiç áva mos desperdiçáva mos tudo.

Comida. Água . Recursos.


Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais
ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no
nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida
desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos
pedaços.

O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam


nossa sociedade.

Ao invés disso, eles nos destroç aram.

Gosto de visitar os com plexos.

É um lugar estranho para se buscar refúgio, m as sinto algum a coisa ao ver


tantos civis num espaço tão vasto e aberto que m e faz lem brar da m inha m
issão. Fico tanto tem po preso nos lim ites dos m uros do quartel-general do
Setor 45, que frequentem ente m e esqueço dos rostos daqueles por quem lutam
os e daqueles com quem estam os lutando.

Gosto de m e lem brar.

Geralm ente, visito cada aglom erado dos com plexos; cum prim ento os m
oradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar
curioso em saber com o é a vida deles agora. Porque enquanto o m undo se
transform ou inteiram ente para eles, m eu m undo continuou o m esm o.
Disciplinado. Isolado. Desolador.

Houve um tem po quando as coisas foram m elhores, quando m eu pai não era
tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costum ava m e fazer sentar em seu
colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que m eu
argum ento fosse bem convincente. Era seu j eito de brincar.

Mas tudo isso foi antes.

Aperto m eu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas m inhas costas.


Vacilo sem querer.

A vida que tenho agora é a única que im porta. O sufoco, o luxo, as noites m al
dorm idas, e os corpos dos m ortos. Sem pre m e ensinaram a m e concentrar no
poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lam ento nada.

Aceito tudo.

É o único m odo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo m altratado.


Esvazio m inha m ente das coisas que m e infestam e sobrecarregam m inha alm
a, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à m inha frente. Não
sei o que é ter um a vida norm al; não sei com o sim patizar com os cidadãos que
perderam suas casas. Não faço ideia de com o era a vida deles antes de o
Restabelecim ento tom ar o poder.

Por isso gosto de passear pelos com plexos.

Gosto de ver com o as outras pessoas vivem ; gosto de ter o poder de fazer com
que respondam às m inhas perguntas. Do contrário não teria com o saber.

Mas o m om ento é errado.

Não prestei m uita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol
estava se pondo.

A m aioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos
curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encam inhavam em direção aos
aglom erados de m etal que dividem com pelo m enos outras três fam ílias.

As casas im provisadas são construídas com containers de navios de doze m


etros quadrados; eles são em pilhados lado a lado e um em cim a do outro,
agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com
duas j anelas e um a porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de
cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que
fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.

É algo do qual m uito m e orgulho.

Porque foi m inha ideia.

Quando estávam os procurando por abrigos tem porários para os civis, sugeri
reform ar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os
portos do m undo. Não apenas eram baratos, facilm ente reaproveitados, e altam
ente adaptáveis, m as podiam ser em pilhados, eram portáteis e construídos
independentem ente do clim a do lugar. Eles exigiam o m ínim o de construção
e, com a equipe certa, m ilhares de unidades habitacionais poderiam estar
prontas em alguns dias.

Dei essa ideia para m eu pai, pensando que essa seria a opção m ais eficiente; um
a solução tem porária que seria m enos desum ana do que barracas; algo que
ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o
Restabelecim ento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que
costum ava ser um lixão, assentam os m ilhares de containers; aglom erados de
cubos retangulares e desbotados que são fáceis de m onitorar e vigiar.

As pessoas ainda acreditam que essa é um a solução tem porária. Que um dia
voltarão para as lem branças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e
brilhantes novam ente. Mas tudo isso é

m entira.

O Restabelecim ento não tem planos de m udá-los de onde estão.

Os civis devem perm anecer nessas áreas regulam entadas; esses containers se
tornaram suas prisões. Tudo foi num erado. As pessoas, suas casas, seu grau de
im portância para o Restabelecim ento.

Aqui, eles se tornaram parte de um enorm e experim ento. Um m undo no qual


trabalham para m anter as necessidades de um regim e que faz prom essas que
nunca serão cum pridas.

Essa é a m inha vida.

Esse triste m undo.

Na m aior parte do tem po, m e sinto com o um civil; e é provavelm ente por isso
que vim até aqui.

É com o se estivesse indo de um a prisão para outra; num a existência onde não
há escape, não há refúgio. Quando até m esm o m inha m ente m e trai.

Eu deveria ser m ais forte do que isso.

Tenho treinado há m ais de um a década. Tenho trabalhado todos os dias para


aprim orar m inhas forças física e m ental. Tenho 1 m etro e 79 de altura e 77
quilos de m úsculos. Fui preparado para sobreviver, para m axim izar a
resistência e a energia, e fico perfeitam ente à vontade segurando um a arm a.
Posso desm ontar, lim par, recarregar, desarm ar e rem ontar m ais de 150 tipos
de arm as de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticam ente qualquer
distância. Posso quebrar o pescoço de um a pessoa com a lateral da m ão. Posso
paralisar tem porariam ente um hom em com apenas os nós dos m eus dedos.

No cam po de batalha, sou capaz de m e desconectar dos m ovim entos que


aprendi a m em orizar.

Criei a reputação de ser alguém frio, um m onstro que não tem e nada nem
ninguém .

Mas tudo isso é ilusório.

Porque a verdade é que não passo de um covarde.

Capítulo 14

O sol está se pondo.

Logo vou ter que retornar à base, onde vou m e sentar quieto e ouvir m eu pai
falar, em vez de m andar bala na sua boca aberta.

Então tento ganhar tem po.

Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem ,


enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o
bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecim ento na verdade
estão rastreando todos seus m ovim entos. Que o dinheiro que seus pais recebem
pelo trabalho em algum a das m uitas fábricas existentes ali é m onitorado de
perto. Essas crianças crescerão e finalm ente entenderão que tudo que elas fazem
está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir m urm úrios de
rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e
que cada arquivo é bem grosso com docum entação das suas am izades,
relacionam entos, e hábitos de trabalho; até m esm o com o gostam de passar seu
tem po livre.

Sabem os tudo sobre todo m undo.


Dem ais.

Tanto é verdade que raram ente m e lem bro que estam os lidando com gente de
verdade, seres vivos, até vê-los nos com plexos. Sei de cor o nom e de quase
todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na m inha j urisdição,
não im porta se são soldados ou civis.

Foi assim que tom ei conhecim ento, por exem plo, que o soldado Seam us
Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.

Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele
estava deixando sua fam ília passar fom e. Monitorei os dólares REST que ele
gastava nas nossas centrais de abastecim ento e observei atentam ente a fam ília
dele no com plexo. Sabia que seus três filhos tinham m enos de 10 anos e não
com iam há sem anas; sabia que eles haviam estado inúm eras vezes no posto m
édico do com plexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em m
achucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e
cortou o lábio dela, fraturou o m axilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e
soube que sua esposa estava grávida. Tam bém fiquei sabendo que certa noite ele
bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na m anhã seguinte.

Eu sei por que estava lá.

Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas


sobre sua saúde e com o estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de
trabalho e se algum m em bro de suas fam ílias precisaria estar de quarentena.

Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado
e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu
corpo era tão m agro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se
quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os m achucados, ela
evitou m eus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia
perdido a criança que carregava e conseguiu tam bém quebrar o nariz no
acidente.

Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder m inhas


perguntas.

E então convoquei um a reunião.


Estou ciente que a m aioria dos m eus soldados rouba dos arm azéns dos nossos
com plexos. Analiso os relatórios cuidadosam ente e sei que tem suprim entos
desaparecendo o tem po todo. Mas perm ito essas pequenas infrações porque
elas não perturbam o sistem a. Alguns pães ou pedaços de sabão a m ais deixam
m eus soldados m ais anim ados; eles trabalham m ais se estiverem saudáveis, e
a m aioria deles m antém esposa, filhos e parentes. Então essa é um a concessão
que faço.

Mas algum as coisas não posso perdoar.

Não m e considero um m oralista. Não filosofo sobre a vida ou m e im porto com


as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a
diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E
às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.

Seam us Fletcher estava m atando sua fam ília. E eu lhe dei um tiro na testa
porque achei que assim seria m enos doloroso do que destroçá-lo com m inhas
próprias m ãos.

Mas m eu pai com pletou o trabalho que Fletcher havia com eçado. Meu pai m
andou m atar os três filhos dele e sua m ulher, tudo por causa de um bêbado
cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o m arido dela, e a
razão de eles terem tido um a m orte tão brutal e inesperada.

E alguns dias eu im agino por que insisto em continuar vivendo.

Capítulo 15

De volta à base, sigo direto em frente.

Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à m
istura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que
havia tom ado esse cam inho ao chegar à base; m as m eu corpo parece saber m
ais do que m inha m ente, do que precisa agora.

Meus passos são pesados; regulares, o som das m inhas botas ecoa ao longo do
piso de pedras conform e chego aos andares de baixo.

Não venho aqui há quase duas sem anas.


O quarto fora reform ado desde a últim a vez em que estive aqui; o painel de
vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a últim a
pessoa a usar esse quarto.

Eu m esm a a havia trazido aqui.

Em purro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adj acente ao
deque de sim ulação.

Minha m ão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam um a vez antes


de se acenderem .

Um zum bido m onótono de eletricidade vibra nesses côm odos vastos. Tudo
está quieto, abandonado.

Exatam ente com o eu gosto.

Tiro m inhas roupas o m ais rápido que consigo, devido aos ferim entos. Ainda
tenho duas horas antes do esperado j antar com m eu pai, então eu não deveria
estar tão ansioso assim , m as m eus nervos não estão aj udando. Tudo parece
estar vindo para cim a de m im de um a vez só. Meus fracassos. Minha covardia.
Minha estupidez.

Às vezes fico tão cansado dessa vida.

Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no m eu braço, detestando


com o esse ferim ento m e deixa constantem ente para baixo. Pego o shorts
guardado no m eu arm ário e o visto o m ais rapidam ente possível, m e
encostando à parede para m e apoiar. Quando finalm ente fico ereto, fecho a
porta do arm ário e entro no côm odo ao lado.

Aperto m ais um interruptor, e o sistem a operacional principal com eça a


funcionar. Os com putadores em item um sinal sonoro e uns flashes se acendem
enquanto o program a se prepara; passo os dedos pelo teclado.

Costum am os usar esses côm odos para sim ulações.

Manipulam os a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas


na m ente hum ana.
Não apenas som os capazes de criar o cenário, m as tam bém podem os controlar
os m ínim os detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O program a foi
originalm ente criado para aj udar soldados em m issões específicas, e tam bém
para aj udá-los a superar m edos que, do contrário, iria incapacitá-los no cam po
de batalha.

Eu o uso para m eus próprios fins.

Costum ava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era m eu
porto seguro; m inha

única fuga do m undo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniform e.


Esse short é engom ado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é
forrado com um a quím ica especial que reage com a m inha pele e alim enta o
sensor com inform ações; m e aj udam a m e situar na experiência e m e perm
itirá correr por quilôm etros sem precisar correr de verdade, m uros físicos no m
eu am biente real. E para que o processo sej a o m ais eficiente possível, tenho
que vestir quase nada. As câm eras são hipersensíveis ao calor do corpo, e
funcionam m elhor quando não entra em contato com m ateriais sintéticos.

Espero que esse detalhe fique anotado para a próxim a geração do program a.

A central m e solicita dados; rapidam ente entro com o código de acesso que m e
garante perm issão para levantar o histórico das últim as sim ulações. Olho para
o alto por sobre m eu om bro enquanto o com putador processa os dados; olho de
relance pelo recém -consertado espelho de duas faces que vê o côm odo
principal. Ainda não acredito que ela quebrou um a parede inteira de vidro e
concreto e continuou a cam inhar sem um arranhão.

Inacreditável.

A m áquina bipa duas vezes; m e viro novam ente. Os program as que solicitei
estão carregados e prontos para serem executados.

O arquivo dela é o prim eiro da lista.

Respiro fundo; tento afastar as lem branças. Não m e arrependo de tê-la feito
passar por um a experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se perm
itido perder o controle — finalm ente habitar seu próprio corpo — se eu não
tivesse encontrado um m odo eficiente de provocá-la.
Ultim am ente realm ente acredito que isso a aj udou, exatam ente com o eu
pretendia. Mas eu desej aria que ela não tivesse apontado um a arm a na m inha
cara e saltado pela j anela logo depois.

Suspiro devagar m ais um a vez, acalm ando m inha respiração.

E seleciono a sim ulação que m e m otivou a vir até aqui.

Capítulo 16

Estou parado no côm odo principal.

Me encarando.

Essa é um a sim ulação bem sim ples. Não precisei trocar de roupa nem m exer
no m eu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar um a
duplicata de m im m esm o e lhe entregar um a arm a.

Ele não para de m e encarar.

Um .

Ele curva ligeiram ente a cabeça.

— Você está pronto? — Um a pausa. — Está com m edo?

Meu coração bate em disparada.

Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.


— Não se preocupe — ele diz. — Está quase term inado agora.

Dois.

— Só um pouco m ais e eu vou em bora — ele diz, apontando a arm a para a m


inha testa.

Minhas m ãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.

— Você vai ficar bem — ele m ente. — Prom eto.

Três.

Bum m m .

Capítulo 17

— Tem certeza de que não está com fom e? — m eu pai pergunta, ainda m
astigando. — Isso está realm ente m uito bom .

Me m exo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que
estou usando.

— Hum ? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.

Estou intensam ente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele
sem pre os m antém perto de si, e sem pre em constante com petição uns com os
outros. Sua prim eira tarefa era determ inar qual era o elo m ais fraco dentre os
onze. Aquele com o argum ento m ais convincente poderia dispor do seu alvo.

Meu pai acha essas práticas divertidas.

— Receio não estar com m uita fom e. Os rem édios — m into — acabam com
m eu apetite.

— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na


m esa. — É claro.
Que inconveniência.

Não digo nada.

— Podem se retirar.

Duas palavras e seus hom ens se dispersam em questão de segundos. A porta se


fecha atrás deles.

— Olhe para m im — ele ordena.

Levanto o olhar, m eus olhos cuidadosam ente desprovidos de em oção. Odeio


seu rosto. Não suporto olhar m uito tem po para ele; não gosto da experiência de
observar com o ele é desum ano.

Ele não se tortura pelo que faz ou pelo m odo que vive. Na verdade ele gosta
disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê com o um a entidade invencível.

E, de certo m odo, não está errado.

Passei a crer que o hom em m ais perigoso do m undo é aquele que não sente
rem orso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão.
Porque no final, são nossas em oções que nos torna fracos, não nossas ações.

Viro o rosto.

— O que encontrou? — ele pergunta sem preâm bulos.

Minha m ente vai im ediatam ente para o diário que está guardado no m eu
bolso, m as não faço nenhum com entário. Nem pisco. As pessoas raram ente
percebem que, na m aioria das vezes, m entem com os lábios e dizem a verdade
com os olhos. Coloque um hom em num côm odo com algo que ele tenha
escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai
dizer que você pegou a pessoa errada; m as quase sem pre ele vai olhar na
direção certa. E

agora m eu pai está m e exam inando, esperando ver para onde vou olhar, o que
direi a seguir.

Mantenho m eus om bros relaxados e respiro devagar, im perceptivelm ente, para


am ansar m eu coração. Não respondo. Finj o estar perdido em m eus pensam
entos.

— Filho?

Ergo o olhar. Finj o surpresa.

— Sim ?

— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoj e?

Solto o ar. Sacudo a cabeça quando m e recosto na cadeira.

— Vidros quebrados. Um a cam a desarrum ada. O arm ário dela, escancarado.


Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algum as roupas extras e
roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era m entira.

Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.

Sinto o contorno do caderninho dela queim ando m inha perna.

— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?

— Apenas sei que ela, Kent e Kishim oto devem estar j untos — explico a ele.
— Delalieu diz que roubaram um carro, m as as pistas desapareceram na entrada
de um enorm e terreno baldio.

Fizem os as tropas vasculharem aquela área durante dias, m as não encontram os


nada.

— E onde — ele pergunta — planej a procurar a seguir? Você acha que eles
cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.

Olho seu rosto sorridente.

Ele só está m e fazendo essas perguntas para m e testar. Ele tem suas próprias
respostas, sua solução j á preparada. Ele quer m e ver falhar ao responder
incorretam ente. Está tentando provar que, sem ele, eu tom aria as decisões
erradas.

Ele está se divertindo às m inhas custas.


— Não — digo a ele, com a voz sólida e firm e. — Não acho que vão fazer algo
tão idiota com o atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, m eios ou
capacidade para isso. Am bos os hom ens estão severam ente feridos, perdendo
sangue rapidam ente, e estão distantes de qualquer aj uda de em ergência.
Provavelm ente estão m ortos agora. A garota talvez sej a a única sobrevivente, e
ela não pode ter ido m uito longe, pois não conhece com o andar por aquelas
áreas.

Ela ficou isolada m uito tem po; tudo nesse lugar é com pletam ente estranho
para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir
um veículo, teríam os sido inform ados da propriedade roubada. Se levarm os em
consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicam ente
m uito rápido, e a falta de acesso à com ida, água e atenção m édica, ela deve
estar desm aiada num raio de dez quilôm etros desse suposto terreno baldio. Tem
os que encontrá-la antes que m orra congelada.

Meu pai pigarreia.

— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras


circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo
de m e falar do detalhe m ais im portante.

Olho nos olhos dele.

— Ela não é norm al — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a
única da sua espécie.

Meu coração acelera. Pisco rápido dem ais.

— Ah, vam os lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhum a hipótese? —
Ele ri. — Parece

im possível, estatisticam ente, que ela sej a a única desse tipo que foi produzida
pelo nosso m undo.

Você sabia disso, m as não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é
verdade. — Ele curva a cabeça ligeiram ente em m inha direção. Dá um sorriso
largo e vibrante. — Existem m uitos deles. E eles a recrutaram .

— Não. — Solto o ar.


— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu m eio em segredo. E agora
roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe com o esperam m
anipulá-la em seu próprio benefício.

— Com o pode ter tanta certeza? — indago. — Com o sabe que eles
conseguiram levá-la com eles? Kent estava m eio m orto quando o deixei...

— Preste atenção, filho. Estou lhe afirm ando que eles não são norm ais. Eles
não seguem suas regras; não há nenhum a lógica que os oriente. Você não tem
ideia das esquisitices de que são capazes. — Um a pausa. — Além do m ais,
tenho conhecim ento j á há algum tem po, de um grupo deles que vive disfarçado
nessa área. Mas durante todo esse tem po eles sem pre se m antiveram afastados.
Eles não interferem em m eus m étodos, e achei m elhor deixá-los m orrer
sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você
entende, é claro — ele diz. —

Afinal de contas, é m uito difícil conter pelo m enos um deles. Eles são a coisa m
ais bizarra de se ver.

— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calm o. — Você sabia da


existência deles, durante todo esse tem po, e assim m esm o não fez nada? Não
disse nada?

— Não j ulguei necessário.

— E agora? — exij o.

— Agora parece pertinente.

— Inacreditável! — Levanto as m ãos para o alto. — Que você escondesse de m


im tal inform ação! Quando sabia dos m eus planos para ela... quando sabia o
sacrifício que foi trazê-la aqui...

— Acalm e-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de um a perna
no j oelho da outra. — Vam os encontrá-los. Esse terreno abandonado que
Delalieu m encionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o
nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devem os
encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os terem os
punido, e evitam os que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.

— Os civis escutam tudo. E, no m om ento, estão vibrando com um novo tipo de


energia. Estão se sentindo m otivados ao perceberem que um deles conseguiu
escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem
fracas e fáceis de serem penetradas. Precisam os destruir essa percepção
reequilibrando a balança. O m edo irá retornar tudo para seu devido lugar.

— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus hom ens. Eles vasculham a
área todos os dias e ainda não encontraram nada. Com o pode ter certeza que
irem os descobrir algum a coisa, afinal de contas?

— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque
de recolher,

enquanto os civis dorm em . Você não vai interrom per as buscas durante o dia;
não vai dar a eles m otivo para terem o que falar. Aj a em silêncio, m eu filho.
Não m ostre suas j ogadas. Vou perm anecer na base e supervisionar suas
responsabilidades com m eus hom ens; vou dar ordens a Delalieu se for
necessário. E nesse ínterim , você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los
o m ais rápido possível. Essa loucura j á está durando tem po dem ais — ele diz
— e eu não estou m ais a fim de ser generoso.

Capítulo 18

Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito.
Sinto muito. Sinto muito.

Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito.
Sinto muito. Sinto muito.

Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito.
Sinto muito. Sinto muito.

Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito.
Sinto muito. Sinto muito.

Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito.
Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.

Foi um acidente.

Me perdoe

Por favor me perdoe

Há pouca coisa que eu perm ito que as pessoas descubram a m eu respeito. Há


ainda m enos coisas que estou disposto a partilhar sobre m im m esm o. E entre
as m uitas coisas que nunca discuti com ninguém , é esta.

Gosto de tom ar banhos dem orados.

Sem pre tive um a obsessão por lim peza desde que era pequeno. Sem pre fui tão
focado em m orte e destruição que acho que com penso isso m e m antendo o m
ais intacto possível. Tom o chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio
dental nos dentes pelo m enos três vezes ao dia.

Corto m eu cabelo toda sem ana. Esfrego m inhas m ãos e unhas antes de m e
deitar e assim que acordo. Tenho um a preocupação doentia em usar apenas
roupas que acabaram de ser lavadas. E

todas as vezes que passo por algum a em oção m ais forte, a única coisa que
acalm a m eus nervos é um banho bem dem orado.

Então é isso que vou fazer agora.

Os m édicos m e ensinaram com o prender m eu braço ferido no m esm o


plástico que eles usaram antes, então posso m ergulhar abaixo da superfície sem
problem as. Afundo m inha cabeça por um longo período, seguro a respiração e
solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.

A água m orna m e faz sentir leve. Ela carrega m eu peso para m im , com
preendendo que preciso de um m om ento para aliviar m eus om bros desse peso.
Para fechar m eus olhos e relaxar.

Meu rosto rom pe a superfície da água.

Não abro m eus olhos; apenas m eu nariz e m inha boca respiram o oxigênio do
outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalm ar a m ente. Já é tão
tarde que nem sei m ais que horas são; tudo que sei é que a tem peratura caiu
significativam ente, e o ar frio está fazendo cócegas no m eu nariz. É um a
sensação estranha, ter 98 por cento do m eu corpo boiando num a tem peratura
quente e agradável, enquanto m eus lábios e m eu nariz se contraem com o frio.

Mergulho m eu rosto na água novam ente.

Poderia viver aqui para sem pre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que
eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das am arras da vida. Sou um corpo
diferente, um a concha diferente, e m eu corpo é levado pelas m ãos dos am igos.
Tantas noites desej ei poder cair no sono debaixo desse lençol.

Mergulho m ais fundo.

Em um a sem ana, m inha vida inteira m udou.

Minhas prioridades m udaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo


com que m e im porto agora se resum e a um a pessoa e, pela prim eira vez na
vida, não sou eu m esm o. Suas palavras estão m arcadas na m inha m ente. Não
consigo parar de im aginar com o ela deve ter sido, não consigo deixar de im
aginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário m e deixou arrasado.
Meus sentim entos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para
vê-la, para conversar com ela.

Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu
som os iguais; em m ais de um a m aneira que eu possa ter im aginado.

Porém , agora, ela está fora do m eu alcance. Ela foi para algum lugar com
estranhos que não a conhecem e não se im portam com ela do m esm o j eito que
eu. Ela foi parar num am biente estranho sem tem po para se adaptar e estou
preocupado com ela. Um a pessoa na situação dela

— com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, um a de


duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar com pletam ente, ou vai
explodir.

Sento rápido dem ais, rom pendo a barreira da água, ofegante.

Afasto o cabelo m olhado do rosto. Me encosto na parede azulej ada, deixando o


ar frio m e acalm ar, clarear m eus pensam entos.

Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.

Nunca antes quis cooperar com m eu pai, nunca concordei com seus m otivos ou
seus m étodos.

Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.

E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.

O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou um a garota bonita. Ele não
tem ideia de quem ela sej a. Não im agina no que ela pode se transform ar.

E se ele pensa que é o par ideal para ela, está m uito enganado, ele ainda é m ais
idiota do que eu im aginava.

Capítulo 19

— Onde está o café? — pergunto, m eus olhos exam inando a m esa.

Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosam ente sobre os pratos de
porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.

— Senhor?

— Gostaria de experim entar — digo a ele, tentando passar m anteiga na torrada


com a m ão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sem pre falando sobre
o café, não é? Pensei em ...

Delalieu dá um salto da m esa sem dizer um a palavra. Sai correndo pela porta.

Dou um a risada silenciosa para o m eu prato.

Delalieu traz a bandej a do chá e café pessoalm ente e a coloca perto da m inha
cadeira. Suas m ãos trem em enquanto ele despej a o líquido escuro num a xícara
de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a m esa e a em purra em m inha
direção.
Espero até ele se sentar para tom ar um gole. É um a bebida estranha, terrivelm
ente am arga; nada com o eu im aginava. Olho para ele surpreso por saber que
um hom em com o Delalieu com eça seu dia tom ando um líquido de gosto tão
forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo hom em .

— Não é tão ruim assim — digo a ele.

Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que im agino se ele m e
entendeu m al. Ele está praticam ente radiante quando responde:

— Tom o o m eu com crem e e açúcar. O gosto fica bem m elhor do que...

— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e m e controlo para não sorrir.


— Você coloca açúcar nisso. Claro que sim . Isso faz m ais sentido.

— Gostaria de um pouco, senhor?

Levanto m inha m ão. Sacudo a cabeça.

— Cham e as tropas, tenente. Vam os suspender as m issões durante o dia e, ao


invés disso, farem os incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai
perm anecer na base — digo a ele — onde o suprem o dará as ordens através de
seus hom ens; cum pra as ordens que eles derem .

Eu m esm o vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se
fala m ais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem .
Você entende?

— Sim , senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens im ediatam
ente.

— Ótim o.

Ele se levanta.

Eu aceno com a cabeça.

Ele se retira.
Estou com eçando a sentir esperança pela prim eira vez desde que ela foi em
bora. Vam os encontrá-la. Agora, com essa nova inform ação — com um
exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece im
possível não vencerm os.

Respiro fundo. Tom o outro gole do café.

Estou surpreso ao perceber com o gostei do seu gosto am argo.

Capítulo 20

Meu pai está à m inha espera quando volto para m eu quarto.

— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vam os m
obilizar as tropas hoj e à noite. — Hesito. — Bem , se pode m e desculpar, tenho
outros assuntos para tratar.

— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta


sorrindo. —

Com o você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus
próprios subordinados?

Faço um a pausa do lado de fora da porta que leva ao m eu escritório.

— O que você quer?

— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.

Minhas costas enrij ecem .

— Ela é m ais do que apenas um a experiência para você, não é?

Giro o corpo lentam ente. Ele está parado no m eio do m eu quarto, com as m
ãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando noj o.

— Do que você está falando?

— Dê um a olhada em si m esm o — ele diz. — Eu ainda nem disse o nom e


dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda m e exam
inando de perto. — Seu rosto está pálido, sua m ão que funciona está crispada.
Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Um a pausa. — Você
se traiu, filho. Você se acha m uito esperto — ele diz —, m as se esquece de
quem lhe ensinou todos os truques.

Fico quente e gelado ao m esm o tem po. Tento relaxar as m ãos, m as não
consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, m as repentinam ente estou m
e sentindo m eio zonzo, desej ando ter com ido um pouco m ais no café da m
anhã, e ao m esm o tem po desej ando não ter com ido nada.

— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.

— Me diga — ele pergunta — que você não se im porta se ela m orrer j unto
com os outros.

— O quê? — As palavras trêm ulas e nervosas escapam rápido dem ais dos m
eus lábios.

Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.

— Você j á m e desapontou de tantas m aneiras — ele diz com a voz aparentem


ente suave. — Por favor, não faça isso novam ente.

Por um m om ento sinto com o se estivesse fora do m eu corpo, m e olhando pela


perspectiva dele.

Vej o m eu rosto, m eu braço ferido, essas pernas que de repente parecem


incapazes de carregar m eu peso. Fendas com eçam a se criar ao longo do m eu
rosto, pelos m eus braços, m eu tronco e m inhas pernas.

Im agino que sej a assim que alguém desm orona.

Não percebo que ele disse m eu nom e, até ele repeti-lo um a segunda vez.

— O que você quer de m im ? — pergunto, surpreso, ao perceber com o pareço


calm o. — Você entrou no m eu quarto sem perm issão; fica parado aí e m e
acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras,
suas ordens. Vam os partir hoj e à noite; vam os encontrar o esconderij o deles.
Você pode destruí-los do j eito que achar m elhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em m inha direção. — Sua
Juliette?

Me contraio ao ouvir o nom e dela. Meu pulso bate tão forte que parece um
sussurro.

— Se eu desse três tiros na cabeça dela, com o se sentiria? — Ele m e encara.


Me observa. —

Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estim ação? Ou arrasado


porque perdeu a garota que am a?

O tem po nesse m om ento parece estar m ais lento, se derretendo à m inha volta.

— Seria um desperdício — digo, ignorando o trem or que sinto por dentro, e que
am eaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tem po.

Ele sorri.

— É bom saber que você vê as coisas dessa form a — ele diz. — Mas proj etos
são facilm ente substituíveis. E tenho certeza que poderem os encontrar um uso
m elhor e m ais prático para seu tem po.

Pisco os olhos devagar. Parte do m eu peito está destroçado.

— Claro. — Me ouço dizer.

— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no m eu om bro m achucado ao


sair do quarto.

Meus j oelhos quase se dobram . — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou m
uito tem po e dinheiro e se provou com pletam ente inútil. Desse m odo estarem
os nos livrando de várias inconveniências ao m esm o tem po. Vam os considerar
isso um efeito colateral. — Ele m e dá um últim o sorriso antes de passar por m
im e sair pela porta.

Caio de encontro à parede.

E m e am ontoo no chão.
Capítulo 21

É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a


parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando
você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vej am chorar
você não quer chorar , mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão
cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha
piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se
esconder. Ninguém ao seu lado.

Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.

Alguém

Qualquer um

Se você está aí fora

Por favor me diga que pode sentir esse fogo.

É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.

Lidero o grupo todas as noites, m archando em silêncio nessas paisagens frias de


inverno.

Procuram os por passagens escondidas, bueiros cam uflados — qualquer


indicação de que possa existir outro m undo sob nossos pés.

E toda noite retornam os para a base sem nada.

A futilidade desses últim os dias m e atinge, am ortecendo m eus sentidos, m e


deixando num a espécie de torpor do qual não consigo m e livrar. Todo dia
acordo procurando um a solução para os problem as que eu m esm o provoquei,
m as não tenho ideia de com o consertar isso.

Se ela está lá fora, irem os encontrá-la. E ele a m atará.

Só para m e ensinar um a lição.


Minha única esperança é encontrá-la prim eiro. Talvez possa escondê-la. Ou
dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela j á está m orta. Ou talvez convencê-lo
que ela é diferente, m elhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.

Pareço um idiota patético e desesperado.

Sou um a criança novam ente, m e escondendo nos cantos escuros e rezando


para ele não m e encontrar. Esperando que ele estej a de bom hum or hoj e. Que
talvez tudo dê certo. Que talvez m inha m ãe não vá estar gritando dessa vez.

Incrível com o eu rapidam ente m e reverto para outra versão de m im m esm o


na presença dele.

Fico entorpecido.

Tenho realizado m inhas tarefas m ecanicam ente; isso exige apenas um esforço
m ínim o. Andar é

sim ples. Com er é algo ao qual m e acostum ei.

Não consigo parar de ler seu diário.

Meu coração sofre, de certo m odo, m as não consigo deixar de virar as páginas.
Sinto com o se estivesse batendo num m uro invisível, com o se m eu rosto
estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem
ouvir qualquer som a não ser as batidas do m eu próprio coração pulsando nos m
eus ouvidos.

Quis poucas coisas nessa vida.

Não pedi nada a ninguém .

E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Um a oportunidade de vê-la


novam ente. Mas a m enos que descubra um j eito de im pedi-lo, essas palavras
são as únicas coisas que restarão dela.

Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.


Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho com igo para todos os lugares por
onde vou, passo todo m eu tem po livre tentando decifrar as palavras que ela
rabiscou nas m argens, criando histórias para acom panhar os núm eros que ela
escreveu.

Tam bém notei que a últim a página está faltando. Arrancada.

Não consigo im aginar por que. Procurei um a centena de vezes no livro todo,
procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, m as não achei
nada. E de certa form a m e sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não
vi. Não é nem m esm o o m eu diário; não tenho nada a ver com isso, m as li as
palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são m inhas.

Posso praticam ente recitá-las de cor.

É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela
está aqui, bem na m inha frente. Sinto que a conheço tão intim am ente, tão
secretam ente. Fico seguro na com panhia dos seus pensam entos; de certo m
odo m e sinto acolhido. Com preendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi
ela quem colocou esse buraco de bala no m eu braço.

Quase esqueço que ela ainda m e odeia, apesar de eu ter m e apaixonado tão
intensam ente por ela.

E m e apaixonei.

Perdidam ente.

Fui até o fundo do poço. Até o fim . Nunca m e senti assim na m inha vida. Nada
parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a
indiferença, ódio de m im m esm o e repugnância geral. Vi coisas que não
podem ser vistas.

E ainda assim nunca havia experim entado esse sentim ento terrível, horrível e
paralisante. Me sinto aleij ado. Desesperado e fora de controle. E está ficando
pior. Todos os dias m e sinto doente.

Vazio e ferido por dentro.

O am or é um cretino perverso e sem coração.


Estou ficando louco.

Caio de costas na cam a, com pletam ente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou
cansado dem ais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm m e deixado
pouco tem po para dorm ir. Parece que estou em constante estado de exaustão.

Minha cabeça cai no travesseiro e pisco um a vez. Duas.

Desm aio.

Capítulo 22

— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.

Ela está sentada na m inha cam a. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as
pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de um a parte de
m im saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, um a parte esm
agadoram ente dom inante que se recusa a aceitar isso. Parte de m im quer
acreditar que ela está aqui, perto de m im , usando esse vestidinho preto j usto
que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranham ente
vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa,
bem intenso; seus olhos estão m aiores, m ais escuros. Ela está usando sapatos
que eu nunca a tinha visto usar. E o m ais estranho de tudo: ela está sorrindo para
m im .

— Oi — ela m urm ura.

É só um a palavra, m as m eu coração dispara. Estou m e afastando dela, quase


batendo a cabeça na cabeceira da cam a, quando percebo que m eu braço não
está m ais ferido. Olho para baixo, para m im m esm o. Meus dois braços estão
funcionando. Estou vestindo apenas um a cam iseta e um a cueca.

Ela m uda de posição num instante, ficando de j oelhos antes de vir rastej ando
para cim a de m im .

Ela sobe no m eu colo. Agora está m ontada sobre m im . De repente m inha


respiração se acelera.

Seus lábios encostam nos m eus ouvidos. Suas palavras são m eigas.
— Me beij e — ela diz.

— Juliette...

— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para m im . É um sorriso raro, do
tipo que ela nunca antes havia m e presenteado. Mas por estranho que pareça,
agora ela é m inha. Ela é m inha e é perfeita e m e quer, e não vou lutar contra
isso.

Não quero lutar.

Suas m ãos estão puxando m inha cam iseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no
chão. Ela se inclina e beij a m eu pescoço, só um a vez, bem devagarzinho. Meus
olhos se fecham .

Não há palavras no m undo para descrever o que estou sentindo.

Sinto suas m ãos percorrerem m eu peito, m eu estôm ago; seus dedos


deslizarem pela beirada da m inha cueca. Seu cabelo despenca para frente,
roçando m inha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na m
inha cam a.

Cada term inação nervosa do m eu corpo está pulsando. Nunca m e senti tão vivo
nem tão desesperado em toda a m inha vida, e tenho certeza de que se ela
pudesse saber o que estou pensando nesse m om ento, ela sairia por aquela porta
e nunca m ais voltaria.

Porque eu a quero.

Agora.

Aqui.

Em todo lugar.

Não quero nada entre nós.

Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir
o zíper do seu vestido e m e dem orar em cada centím etro do seu corpo. Não
consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive
do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com
m eus dedos a pele m acia do seu pescoço e deslizar até em baixo.

Quero sentir o peso do corpo dela sobre o m eu, m e envolvendo.

Não consigo pensar num a razão para isso não ser certo nem real. Não consigo m
e concentrar em nada m ais, a não ser nela sentada no m eu colo, tocando m eu
peito, e m e olhando nos olhos com o se realm ente m e am asse.

Chego a im aginar que m orri.

Mas bem quando eu m e aproxim o, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-


la, nunca afastando seus olhos.

— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.

Suas palavras parecem tão estranhas, e ao m esm o tem po tão fam iliares.

— O que quer dizer com isso?

— Só um pouco m ais e eu vou em bora.

— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde
você está indo...

— Você vai ficar bem — ela diz. — Prom eto.

— Não...

Mas agora ela está segurando um a arm a.

E a apontando para o m eu coração.

Capítulo 23

Essas letras são tudo que m e sobrou.

26 amigos para quem contar minha história.


26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso
combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para
construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias
que são mais reais que essas quatro paredes.

Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.

Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.

Está extraordinariam ente frio esta m anhã.

Sugiro que a gente faça um passeio descom prom issado pelos com plexos bem
cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou com
eçando a im aginar se Kent e Kishim oto, e todos os outros, estão vivendo em
segredo entre as pessoas. Eles devem , afinal de contas, receber algum a aj uda
para encontrar com ida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que
possam plantar algum a coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições.
Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.

Rapidam ente dou instruções para m eus hom ens; os oriento para se dispersarem
e continuarem sem cham ar a atenção. O trabalho deles é observar todo m undo
hoj e, e relatar o que descobriram para m im .

Assim que se foram , fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar
perigoso para se esconder.

Meu Deus, ela parecia tão real nos m eus sonhos.

Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as m ãos; m eus dedos tocam m eus lábios
de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar
nisso, m eu coração acelera . Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos
tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.

Respiro fundo, controlando a respiração e m e concentrando. Deixo m eus olhos


peram bularem naturalm ente, não posso evitar m e distrair com as crianças
correndo em volta. Parecem tão anim adas e despreocupadas. Sei que parece
estranho, m as fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa
vida. Elas não têm nem ideia do que perderam ; nem im aginam com o o m undo
costum ava ser.
Algum a coisa se aproxim a e bate nas m inhas pernas.

Ouço um arquej o estranho e cansado; m e viro.

É um cachorro.

Um cachorro cansado e fam into, tão m agro e frágil que parece que pode ser
levado pelo vento.

Mas ele está m e olhando. Sem m edo. Com a boca aberta. A língua balançando.

Tenho vontade de dar risada.

Olho em volta rapidam ente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso
dar ao m eu pai outro m otivo para m e castrar, e não confio que m eus soldados
não irão contar um a coisa assim .

Que eu estava brincando com um cachorro.

Posso até escutar as coisas que m eu pai iria m e dizer.

Carrego a criatura chorosa até um a das casas que haviam sido desocupadas
recentem ente — vi apenas três fam ílias saindo para o trabalho — e m e abaixo
por trás de um a das cercas. O

cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.

Tiro m inhas luvas e ponho a m ão no bolso para pegar um pãozinho doce que
havia trazido com o café da m anhã; não tive tem po de com er nada antes de
sairm os hoj e cedo. E em bora eu não faça ideia do que um cachorro com a,
exatam ente, eu lhe dou o pãozinho.

O cachorro praticam ente o agarra da m inha m ão.

Ele engole o pãozinho em duas bocadas e com eça a lam ber os m eus dedos,
pulando no m eu peito, todo em polgado, aproveitando o calor do m eu casaco
aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos m eus lábios; nem quero. Há
m uito tem po não m e sinto assim . E não posso evitar ficar espantado com o
poder que anim aizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rom pem nossas
resistências com a m aior facilidade.
Passo m inhas m ãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas
aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se im portar
com seu estado de inanição, pelo m enos não agora. Seu rabo está balançando
furiosam ente, e ele fica pulando no m eu peito para m e olhar. Com eço a pensar
que deveria ter enfiado m ais alguns pãezinhos doces no m eu bolso antes de sair.

Algo estala.

Ouço um suspiro.

Olho em volta.

Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém m e viu.
Alguém ... Um civil. Ela j á está escapando, seu corpo apertado de encontro a um
a das paredes da casa.

— Ei! — grito. — Você aí...

Ela para. Olha para cim a.

Eu quase desm aio.

Juliette.

Ela está m e olhando. Ela realm ente está aqui, olhando para m im , com os olhos
arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chum bo. Estou
preso no chão, incapaz de dizer um a palavra sequer. Nem sei por onde com eçar.
São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e
eu estou sim plesm ente tão feliz ao vê-la.

— Deus, estou tão aliviado...

Ela desapareceu.

Olho em volta, em pânico, im aginando se estou com eçando a perder m eu


senso de realidade.

Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando
por m im , e eu olho para ele estupefato, im aginando o que havia acontecido.
Fico olhando para o lugar onde a vi, m as não vej o nada.
Nada.

Passo a m ão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado com igo m
esm o, que fico tentado a arrancar m inha cabeça.

O que está acontecendo comigo?

Sobre a Autora

Tahereh Mafi é de Connecticut (EUA) e tem 25

anos. É form ada em Artes e fala oito idiom as.

Atualm ente vive em Orange County , Califórnia.

Em 2011, lançou seu prim eiro livro, Estilhaça-m e

(Shatter Me), publicado no Brasil no ano seguinte.

Após estrondoso sucesso, teve os direitos de sua

obra vendidos para 22 países e os estúdios Fox

com praram os direitos de adaptação para o

cinem a. Em 2013, lançou o segundo livro dessa

trilogia, Liberta-m e (Unravel Me).


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Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
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