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Samuel de Sousa Silva

A constituição da memoria na perspectiva Lacaniana

A partir de suas leituras de Freud, Lacan vai identificar a constituição do sujeito


como um processo de subversão de um “Eu” pelo sistema do significante (livro XI,
lição IV, item 2). Esse processo se dá, imaginemos que seja assim, por meio do que
Lacan chama de “desvio ou alienação do desejo no significante”, no qual o sujeito
humano “se apropria das condições que lhe são impostas em seu mundo, como se essas
condições fossem feitas para ele” e se satisfaz nessas condições (livro V, p262). Sendo
assim, esse processo marca o fato de que o sujeito é constitutivamente sujeito desejante,
e que o seu desejo é constituído no outro e para o outro, cuja relação com o outro é
sempre uma relação com o significante, “moeda do desejo do outro” (livro V, p262).

Nesse processo de constituição do sujeito subvertido pelo significante, Lacan


elabora a ideia de sujeito barrado [$], na qual o sujeito é “constituído como segundo em
relação ao significante”. Explicando como isso se dá, Lacan fala do estabelecimento do
“traço unário” como estrutura base sobre a qual o sujeito se consolida. Esse traço unário
é para Lacan a espécie de um entalhe que marca uma determinada identidade primaria
do sujeito, um significante primeiro, [S], que é rememorada pelo individuo para a
constituição de suas futuras identidades, [S¹, S², S³] (livro XI, p135). Essa
rememoração, que segundo Lacan: “é algo que nos vem das necessidades de estrutura”
(livro XI, p50), é processo pelo qual o sujeito se reconhece como um “Eu”, pois ele
pode sempre se reconhecer no que ele já foi. Mas justamente para sustentar um “Eu”
que permaneça, o sujeito se firma nessa cadeia de significante (S³, S², S¹), a qual o
constituiu como desviado ou alienado no significante.

O processo de constituição desse significante primeiro como uma identidade


matricial de um sujeito qualquer, passa pelo recorte feito por meio do significante das
pulsões no seu enfrentamento com as intimações do meio sócio-histórico-cultural
representados na língua. Sendo assim, esse traço unário, que deve designar ao sujeito
“algum lineamento”(seminário 5, p228), está constituído pelas pulsões desejantes do
indivíduo e as relações estabelecidas entre esses desejos e os objetos desse desejo. No
entanto, conforme a perspectiva Kleiniana, a relação de aprendizagem da realidade pelo
homem é “sustentada pela constituição essencialmente alucinatória e fantástica dos
primeiros objetos, classificados como objetos bons e maus, na medida em que eles
fixam uma primeira relação primordial que, na sequencia da vida do sujeito, fornecerá
os tipos principais de seus modos de relação com a realidade” (Lacan, seminário 5,
p223-224). Esse entalhe marcador desses “tipos principais de seus modos de relação
com a realidade” do sujeito, inscreve mnemonicamente no individuo um modus
operandi de todas suas relações posteriores com o mundo, essa inscrição mnemônica
não é nem a representação da pulsão e nem a representação do objeto, mas sim a
representação da relação entre esses dois, representação ideal, pois representa o que
seria uma relação satisfatória desse sujeito com o mundo.

Para os pensadores da memória como Paul Ricoeur, Bergson, Maurice


Halbwachs, Jacques Le Goff, tudo que nós entendemos como identidade de um sujeito
é atribuída à memória, para esses pensadores, identidade é igual à memória, memória
que por sua vez é constituída tanto de traços individuais quanto coletivos e históricos.
Lacan de certa forma também não discorda desse ponto de vista, mas lhe acrescenta
certas peculiaridades. Para ele a identidade originaria desse sujeito só poderia ser
vislumbrada na “inscrição mnêmica” (memória) da relação modelar desse sujeito com o
seu desejo e o objeto desejado, relação essa que teria como base a satisfação
alucinatória do desejo. Sendo o que sobra dessa relação primordial essa “inscrição
mnêmica” que marca uma primeira relação prazerosa desse sujeito, servindo de modelo
para que ele alcance prazer nas suas futuras relações entre seus desejos e os objetos
desejados.

Essa memória primaria do sujeito, ou inscrição mnêmica nas palavras de Lacan,


não é nada mais do que um significante, uma inscrição que marca uma relação de
presença e ausência do objeto desejado, da qual o sujeito guarda um modelo de conduta
para alcançar futuras relações bem sucedidas. Por causa disso, Lacan afirma que para o
“real humano” o significante é “uma realidade originaria”, aquela que funda o mundo, a
maneira como o homem se relaciona com esse mundo, e em consequência disso o
próprio homem.

No entanto, a memoria não pode ser vista a partir da teoria Lacaniana, assim
como na teoria Freudiana, como uma inscrição real e fidedigna de relações perceptivas
entre o homem e o mundo a sua volta. Como já foi dito acima, o entalhe dessa relação
primeira entre o homem e seu meio já é um desvio pelo significante, sendo o
significante sempre uma acomodação entre principio de prazer e principio de realidade
na qual o significante é sempre um deslocamento tanto da pulsão quanto da realidade.
Nesse sentido, a memoria deve ser entendida como um simulacro, ou seja, uma
realidade alternativa à realidade objetiva e que se apresenta como substituta desta, não
necessariamente como um mecanismo de alienação, mas pela impossibilidade de se
recuperar a coisa perdida, o evento de fato.

O evento real ao qual a memoria seria sua reconstituição é entendida pela


psicanalise freudiana\releitura lacaniana como um evento não passível de representação,
da ordem do irrepresentável, por isso a memoria jamais seria uma retomada tal qual um
evento do passado de um sujeito. Nessa perspectiva, a memoria não é constituída tendo
por base as leis da veracidade, sejam quais forem elas, mas sim pelas leis da
verossimilhança, ou seja, uma memoria é real ou não pela logica das relações que ela
estabelece dentro do sistema fechado (sincronia) da memoria do sujeito, uma estrutura
de anaforização (Greimas) na qual o sujeito é arremessado de uma memoria a outra
sendo que uma memoria serve como referente externo, apesar dela ser interna ao
próprio texto memorial, a outra memoria e vice e versa. Diante disso, Lacan fala sobre
a coisa, e aqui relacionamos a coisa a esse evento da qual a memoria é um registro,
como um furo no real instituído pelo recorte do significante (Lacan,1991, p153) sendo a
coisa um objeto eternamente ausente, pois ele já é em si essa fenda no real aberta pela
articulação do significante. Tentando ser o mais simples possível, a memoria não
estabelece necessariamente uma relação entre o lembrar do presente e o evento do
passado, mas sim presentifica uma relação particular do individuo com a cadeia do
significante.

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