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1) A filósofa e seu tempo:

Hannah Arendt nasceu em Linden, subúrbio de Hannover, no dia 14 de outubro


de 1906. Sua infância transcorreu em meio à classe média judaica assimilada e
profundamente mesclada à cultura alemã. Em sua família o judaísmo nunca fora uma
questão importante e ela apenas se tornaria consciente do anti-semitismo por meio dos
comentários de seus professores, colegas e companheiros de brincadeira na rua. Apesar
de protegida pelo ambiente familiar, Hannah Arendt sentia-se diferente das outras
crianças. Já adulta, costumava se descrever citando um poema de Schiller (1759-1805),
Das Mädchen aus der Fremde, a menina vinda do estrangeiro, do desconhecido. Esse
sentimento de estranhamento a levaria a pensar que apenas os parias conscientes de sua
diferença representam a verdadeira humanidade, de maneira que a condição primeira de
todo intelectual deveria ser o anti-conformismo social.
Em 1922 ela já havia lido a Crítica da Razão Pura de Kant, bem como inúmeros
filósofos gregos e latinos no original, além de muita poesia alemã e clássica. Nas
palestras do teólogo Romano Guardini (1885-1968) foi apresentada à obra de
Kierkegaard, e o impacto foi tão grande quanto o da leitura da Filosofia das visões de
mundo, de Jaspers. Aos dezoito anos decidiu cursar filosofia e foi então que conheceu
Heidegger, na Universidade de Marburg. O encontro foi fulminante e os dois se
apaixonaram, envolvendo-se numa relação amorosa secreta e impossível, pois ele era
casado. Enquanto Heidegger redigia a obra que o tornaria um clássico da filosofia, Ser e
tempo, Arendt apenas descortinava um mundo novo de idéias e sentimentos. Como a
relação entre ambos não podia prosseguir, Heidegger a encaminhou para seu colega e
amigo em Heidelberg, Karl Jaspers, que concluiu a orientação de sua tese sobre o
conceito de amor em Agostinho, defendida e publicada em 1929. Com Jaspers, Arendt
compreendeu a importância da comunicação entre os homens, tanto como fonte de
iluminação do mundo como para a sustentação e renovação das relações humanas,
idéias que ganhariam expressão em obras como A condição humana, Sobre a Revolução
e Entre o Passado e o Futuro.
Com a ascensão dos nazistas ao poder, Arendt abandonou a filosofia e engajou-
se no grupo sionista liderado por um antigo conhecido de sua família, Kurt Blumenfeld.
Foi presa e teve de fugir, sem documentos, rumo a Paris. Lá, tornou-se amiga de Walter
Benjamin e de outros refugiados alemães, em sua maioria judeus e comunistas, entre os
quais conheceu Heinrich Blücher (1899-1970), com quem viveria até a morte dele.

1
Também data desta época a elaboração da biografia de Rahel Varnhagen, no qual
Arendt refletiu sobre os dilemas e tensões entre a assimilação cultural e a preservação
das origens judaicas. Nos textos da coletânea O judeu como pária, dos anos 40, ela
resolveria aquele impasse assumindo para si a identidade política do pária rebelde e
consciente, afastando-se tanto das correntes oficiais do sionismo quanto dos
movimentos judaicos tradicionalistas.
Superadas as dificuldades de adaptação após sua chegada aos Estados Unidos,
em 1941, Arendt começou a elaborar a obra que a tornaria mundialmente famosa.
Redigido em inglês ao longo dos anos 40 e publicado em 1951, o livro As origens do
totalitarismo atesta o esforço intelectual de Arendt para compreender o
incompreensível, fazendo de seu próprio destino pessoal uma história monumental, na
qual as análises do anti-semitismo e do imperialismo culminam na investigação do
totalitarismo compreendido como uma forma de dominação sem precedentes na história
ocidental. Entre 1933 e 1951, data em que se tornou cidadã americana, Arendt viveu
como refugiada e apátrida, condição que marcaria sua reflexão política. Para ela, estar
expulso da comunidade política era o mesmo que ser relegado à condição de um ente
supérfluo, descartável. Afinal, não foi por acaso que os nazistas, antes de dar início à
produção de cadáveres em massa, tivessem cuidado para que suas vítimas fossem
desnacionalizadas e, deste modo, perdessem qualquer direito ou proteção política eficaz.
Ao confrontar-se com os horrores da dominação totalitária em suas variantes nazista e
stalinista, Arendt descobriu que as questões políticas cruciais do presente não mais
podiam elucidar-se por meio do recurso a conceitos tradicionais como esquerda ou
direita e, desde então, manteve uma atitude crítica em relação à tradição do pensamento
filosófico-político ocidental. Nem liberal, nem marxista nem conservador, o traço
característico do pensamento arendtiano assumiu a insígnia anti-subjetivista do amor
mundi, amor pelo mundo. Esta foi a perspectiva teórica a partir da qual Arendt deu
início à compreensão dos desvarios políticos de nosso tempo, o absurdo totalitário e o
fenômeno da moderna despolitização liberal-tecnocrática. Para Arendt, o século vinte
testemunhou o obscurecimento da experiência democrática radical, caracterizada pelo
envolvimento dos cidadãos em atos e palavras concertados, tanto em função da
burocratização e do crescente emprego da violência por parte do Estado, elevado ao
paroxismo no fenômeno totalitário, quanto em função do processo histórico de
privatização do espaço público, isto é, pela sua transformação estrutural no espaço
social das trocas econômicas de uma sociedade constituída por indivíduos reduzidos à

2
função de trabalhadores-consumidores. Tal fenômeno acarretou a crescente perda de
autonomia do político em relação ao âmbito das necessidades econômicas e seus
imperativos estratégicos e privatizantes.
Em A Condição Humana e demais textos da segunda metade dos anos 50,
Arendt dedicou-se a pensar o sentido das experiências políticas genuínas e originárias
da polis e da res publica romana, que a tradição filosófica ocidental teria legado ao
esquecimento. Ao desenvolver uma fenomenologia inovadora da liberdade, da ação
política e do espaço público, Arendt procurou trazer à luz do presente as determinações
democráticas e republicanas essenciais da política. No entanto, não se tratava de
retornar ao passado para transformá-lo em modelo a ser repetido no presente, pois o que
Arendt buscava não era algo passado e já reconhecido enquanto tal. Por outro lado, o
que ela buscava era algo novo, isto é, um conjunto de experiências políticas voltadas
para a felicidade pública e para o prazer da ação e do discurso em comum. A despeito
da crise política da modernidade, tais experiências ainda encontrariam ressonância em
certas manifestações do presente. Assim, ao repensar as determinações democráticas
originárias da política, Arendt almejou re-politizar a cidadania e o espaço público de
nosso tempo. Não por acaso ela se interessou pelo fenômeno revolucionário,
entendendo-o como uma série de repetidas tentativas populares para restabelecer formas
participativas de envolvimento dos cidadãos na política. A insurreição húngara de 1956
pareceu-lhe reveladora: contra o poder opressivo da polícia e da burocracia soviética, o
povo organizou-se em conselhos autônomos e tentou revolucionar as estruturas de poder
vigentes. Em Sobre a Revolução, de 1963, Arendt refletiu sobre as diferenças entre as
revoluções russa, francesa e americana, enxergando nesta última o intento mais bem
acabado do projeto revolucionário, a fundação de um novo espaço público orientado por
uma constituição consensualmente pactuada. Daí também adveio seu interesse pelos
movimentos políticos de defesa e ampliação dos direitos civis, bem como pela
desobediência civil, tema de um importante ensaio publicado na coletânea Crises da
República, de 1969, na qual ela também discutiu os fenômenos da violência, da guerra
do Vietnã e da proliferação da mentira na política. Sem ser uma ativista política, Arendt
engajou seu pensamento na tarefa de compreender a crise política da modernidade, ao
mesmo tempo em que buscava as brechas que poderiam revolucionar a política do
presente. Sua última obra, A vida do espírito, deixada incompleta por motivo de sua
morte em 4 de dezembro de 1975, testemunha seu contínuo interesse pela interface entre
filosofia e política. Neste livro publicado postumamente, Arendt analisou as atividades

3
do pensar, do querer e do julgar, ao mesmo tempo em que discutiu as suas implicações
éticas e políticas. A despeito do volume sobre o Juízo não ter sido escrito, restaram,
contudo, as notas do seminário proferido na New School for Social Research em 1970.
Nele, Arendt discutia de maneira inventiva e polêmica a filosofia política de Kant,
associando-a à faculdade do juízo reflexionante estético da terceira Crítica.
No elogio fúnebre prestado à amiga, o filósofo Hans Jonas (1903-1993)
recordou que Hannah Arendt fora agraciada não apenas com uma inteligência
excepcional, mas também pelo Eros da amizade, pois tinha o dom de reunir e associar
aqueles que estivessem à sua volta.

2) A filosofia de Hannah Arendt:

A análise arendtiana dos governos totalitários se tornou célebre ao propor duas


teses polêmicas: a de que o nazismo e o stalinismo constituíam variantes de um mesmo
fenômeno, aspecto que acirrou contendas ideológicas previamente existentes; e a de que
o totalitarismo era uma forma de dominação sem precedentes históricos. Com relação à
primeira tese, o problema residia em que tal comparação requeria desconsiderar uma
vasta gama de particularidades históricas e político-ideológicas inerentes aos regimes de
Hitler e Stálin. Sem desconhecer tais diferenças, e mesmo reconhecendo não dispor de
informações suficientes para documentar sua investigação do regime stalinista (recorde-
se que Stálin faleceu apenas em 1953), Arendt descobriu semelhanças estruturais entre
ambos os regimes. Se ainda hoje é freqüente encontrarmos pensadores de esquerda que
recusam a pertinência do termo ‘totalitarismo’, considerando-o um clichê remanescente
da guerra fria que impede a crítica às democracias realmente existentes, imagine-se qual
não foi a recepção da tese arendtiana nos anos 50.1 Com relação à segunda tese, ela
implicava que o totalitarismo não poderia ser comparado a outras formas de dominação
já conhecidas e catalogadas pela filosofia política, como tiranias, despotismos ou
ditaduras, das quais ele não seria apenas uma versão mais violenta. Arendt compreendeu
que em sua pretensão de subordinar a liberdade humana e a totalidade da vida privada,
social e política aos seus imperativos ideológicos, os governos totalitários não deixavam

1
Penso que esta avaliação é profundamente equivocada no que diz respeito ao pensamento de Arendt, que
jamais cultivou aquilo que Slavoj Zizek, não sem certa razão, denominou recentemente como o emprego
chantagista do totalitarismo, o qual acena com os perigos do centralismo, do assassinato em massa e da
estagnação econômica sempre que se apresentam alternativas políticas democráticas radicais. Segundo tal
chantagem, qualquer tentativa de criticar a democracia liberal parlamentar e de mercado se arriscaria a
terminar em totalitarismo. Cf. Zizek, S. Quién dijo Totalitarismo? Cinco intervenciones sobre el (mal)
uso de una noción. Valencia: Pre-textos, 2002.

4
de pautar suas ações pelas leis que promulgavam, isto é, não pretendiam governar para
além dos limites da lei. Mais importante do que a maleabilidade dos estatutos legais
instituídos pelos regimes totalitários seria o fato de que tais formas de dominação
alteraram radicalmente o próprio conceito tradicional de lei ao compreendê-la em
termos das leis gerais de desenvolvimento da Natureza ou da História. Sob o
totalitarismo, as leis positivas deixavam de ser canais estáveis de limitação e promoção
de novas relações entre os homens para tornarem-se o instrumento de transformação e
criação da nova realidade totalitária, em consonância com a ideologia exposta e imposta
pelo líder absoluto do movimento. Para Arendt, portanto, os regimes totalitários
fundavam suas leis positivas em supostas leis necessárias e absolutas, relativas ao
movimento progressivo da evolução e depuração racial da espécie humana, no caso do
Nazismo, ou relativas ao movimento progressivo da história por meio da supressão das
classes sociais decadentes, no caso do Stalinismo.

Os dois pilares de sustentação dos regimes totalitários são o terror e a ideologia,


os quais se articulam de maneira complementar: ao mesmo tempo em que a ideologia
justifica e demonstra previamente a necessidade e inevitabilidade do emprego da
violência terrorista e aniquiladora, é também por meio do terror que se criam e se
reproduzem as condições sociais e políticas que, em concordância com a ideologia
totalitária, transformam os supostos inimigos do regime em seres humanos degradados e
perigosos que precisam ser aniquilados. Se a ideologia totalitária afirma que as raças
inferiores ou as classes sociais decadentes e os suspeitos de conspirar contra o governo
truncam o desenvolvimento progressivo do curso da história, então o terror deve
aniquilar tais raças, classes e traidores a fim de que a história possa seguir seu curso
natural. Por sua vez, para que a operação meticulosamente programada do extermínio de
milhões possa ser levada a cabo, todo um conjunto de prescrições ideológicas
legalizadas positivamente deve ser estritamente respeitado e posto em prática pela
polícia secreta. Garante-se assim a privação de direitos, a remoção forçada para guetos e
campos de concentração, a desmoralização, a desnutrição, a tortura e finalmente o
próprio massacre de seres humanos transformados em vermes e parasitas abjetos. Tudo
isto significa que, sob condições totalitárias, os inimigos do regime não são designados
em função do que pensem, façam ou falem, como nas ditaduras, despotismos ou
tiranias, pois o simples fato de existirem determina sua condição de inimigo objetivo ou
socialmente indesejável, destinando-os ao abate. Assim, o terror aplicado pela polícia

5
secreta nada mais é do que o resultado da aplicação imediata, no corpo dos indivíduos,
das leis ideológicas fundamentais: “O terror é a legalidade quando a lei é a lei do
movimento de alguma força sobre-humana, seja a Natureza ou a História”.2

Em conseqüência dessa articulação entre terror e ideologia, as principais


instituições dos governos totalitários são fábricas da morte, os campos de extermínio
nos quais se testa a possibilidade de reduzir os seres humanos à condição da vida nua e
supérflua que pode ser eliminada sem mais.3 Nas fábricas da morte, os seres humanos
são indistintamente “reduzidos ao denominador comum do mais baixo nível da vida
orgânica em si mesma”, resultante da criteriosa e absoluta privação de sua liberdade e
espontaneidade.4 Ao assumir como objetivo supremo impor a máxima dominação sobre
todas as esferas da vida pública, privada e social, os governos totalitários também
pretendem criar uma humanidade previsível, incapaz de atualizar seu “poder de iniciar
algo novo com os seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base da
reação ao ambiente e aos fatos”, e isto somente pode ser empreendido nos campos de
extermínio.5 Ao analisar meticulosamente a dinâmica de funcionamento dos
laboratórios da morte, Arendt compreendeu “que a ‘natureza’ do homem só é ‘humana’
na medida em que dá ao homem a possibilidade de se tornar algo eminentemente não-
natural [unnatural], isto é, um homem”.6 Deste modo, foi a experiência dos refugiados e
dos internos nos campos de extermínio que mostrou à autora que a natureza humana não
poderia ser o fundamento de qualquer direito ou política, isto é, que a “nudez abstrata”
do ser humano não constitui um substituto para o caráter artificial de todo ordenamento
legal consentido. Por isso, já desde sua primeira grande obra ela contrapôs o fato da
pluralidade e da liberdade políticas da humanidade ao âmbito da natureza, concebido
como a fonte de tudo aquilo que nos é “misteriosamente dado por nascimento”.7 Para
Arendt, a esfera pública e todo o aparato político que aí se erige não nos são dados por
natureza, mas resultam de uma construção artificial orientada pelos princípios da justiça
e da igualdade mutuamente concedida: “Não nascemos iguais; tornamo-nos iguais como

2
Arendt, O sistema totalitário, p. 576
3
Discuto as relações de complementaridade entre as reflexões de Giorgio Agamben, Michel Foucault e
Hannah Arendt em torno ao tema biopolítico da captura da vida nua por meio dos dispositivos
concentracionários em meu texto “Modernidade, biopolítica e violência: a crítica de Arendt ao presente”
in A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. RJ, Relume Dumará,
2004.
4
Arendt, Essays in Understanding, p. 198.
5
Arendt, O Sistema Totalitário, p.564, tradução modificada.
6
Arendt, idem.
7
Arendt, O Sistema Totalitário, p. 386.

6
membros de um grupo, por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos
reciprocamente iguais. A nossa vida política baseia-se na suposição de que podemos
produzir a igualdade através da organização, porque o homem pode agir sobre o mundo
comum e mudá-lo e construí-la juntamente com os seus iguais”.8

A despeito de inédito na história da humanidade, o fenômeno totalitário se


encontra enraizado no cenário histórico constituído com as primeiras décadas do século
vinte. Considerá-lo como fenômeno sem precedentes não significa deixar de pensá-lo
como fenômeno especificamente moderno, oriundo, portanto, de um conjunto de
transformações históricas que, em grandes linhas, remetem às catástrofes da Primeira
Guerra Mundial. Nos volumes sobre o Anti-semitismo e o Imperialismo, que antecedem
sua análise específica dos regimes totalitários, Arendt discutiu a decadência e o
esfacelamento do Estado-nação e do seu princípio básico, o da igualdade de todos diante
das leis, em meio às terríveis condições políticas, sociais e econômicas geradas pelos
desastres da guerra. Foi neste contexto dramático que milhões de pessoas se viram
privadas de um lugar próprio no mundo, de uma função social que lhes permitisse
manter a dignidade e, por fim, da própria cidadania, isto é, do “direito a ter direitos”,
visto que se encontraram desprovidas de uma comunidade política que lhes definisse o
estatuto legal e lhes protegesse. A existência cotidiana de milhões de minorias, de
apátridas e de refugiados anunciou o colapso da idéia abstrata de direitos humanos e o
trágico destino de indivíduos que, por não contarem com a proteção das leis ou de
qualquer acordo político, viram-se reduzidos ao estatuto de meros seres vivos, aspecto
que prefigurou sua posterior destruição física nos campos de concentração e extermínio
nazistas e nos Gulags soviéticos que constituíram o destino de milhões de vítimas dos
intermináveis expurgos e deportações promovidos pela burocracia stalinista.

Esta análise crítica do regime totalitário e de suas origens históricas parecia


sugerir que, em suas reflexões posteriores, Arendt assumiria o liberalismo político e o
modelo correspondente de Estado de bem-estar social como modelos normativos de seu
pensamento político. No entanto, para a desilusão de alguns de seus admiradores, em A
condição humana, de 1958, Arendt argumentou que, em função de múltiplos fatores
históricos e sociais modernos, as condições para o exercício democrático radical da
política estavam a ponto de se exaurir nas sociedades democráticas liberais de massa e
mercado, as democracias realmente existentes, nas quais a política transformara-se em

8
Arendt, O Sistema Totalitário, p. 387.

7
administração burocrática das necessidades vitais da sociedade. Por certo, Arendt jamais
afirmou que totalitarismo e democracia liberal fossem idênticos. O problema é que a
novidade totalitária só foi possível na medida em que ali se radicalizaram e se
cristalizaram elementos históricos e sociais próprios da modernidade tardia, os quais
também são comuns às democracias liberais parlamentares de massa e mercado, tais
como: racismo, xenofobia, apatia política decorrente do processo de isolamento dos
cidadãos, atomização e massificação dos indivíduos, imperialismo econômico, emprego
da mentira e da violência para a ‘resolução’ de conflitos, multiplicação das minorias,
dos apátridas e refugiados, crescente superfluidade de massas humanas desprovidas de
cidadania e de ocupação social digna, etc. Por estes motivos, Arendt advertia, ao final
de Origens do totalitarismo, que sempre parecerá tentador recorrer a soluções
totalitárias enquanto estivermos diante de massas humanas desprovidas de voz, de
organização política e de um lugar próprio no mundo. Se no totalitarismo a liberdade
fora totalmente aniquilada, nas democracias liberais representativas, fundadas no
sistema de partidos políticos, a liberdade tenderia a se restringir ao mínimo instante do
voto. Tal restrição far-se-ia acompanhar pela transformação do próprio espaço público
em um livre mercado de trocas econômicas destinadas ao incremento e manutenção das
necessidades vitais do homem contemporâneo.

Assim, em A condição humana Arendt refletiu criticamente sobre as


transformações políticas oriundas da revolução industrial, que ao ampliar de maneira
inédita o âmbito das necessidades naturais e glorificar as atividades do trabalho (labor)
e do consumo trouxe consigo a transformação do homo faber, o protótipo do homem
moderno concebido como um fabricante artesanal de obras duráveis, no animal
laborans, o homem contemporâneo concebido como um trabalhador-consumidor
empenhado na manutenção do seu ciclo vital e da própria sociedade. Nas modernas
sociedades industriais de massa e mercado o trabalho é a atividade humana privilegiada
que garante a sobrevivência do trabalhador e a da espécie através da produção industrial
de bens destinados ao consumo, os quais, por sua vez, exigem ser continuamente
repostos no mercado por mais trabalho num ciclo interminável que leva ao processo de
crescente privatização do espaço público que hoje denominamos como globalização
financeira neoliberal. A tese arendtiana é a de que a partir do século 19 cada vez mais a
política foi sobre-determinada por interesses sócio-econômicos privados e pelo saber
técnico e burocrático que transformou o político num tecnocrata. O que resultou desse

8
processo histórico foi uma sucessão de perdas políticas: a perda de espaço da liberdade
para os fenômenos da necessidade; a perda da ação livre e espontânea para o
comportamento repetitivo e previsível dos cidadãos; a transformação da política em
gestão burocratizada e despolitizada das carências e necessidades sociais da população;
a perda do espaço público e comunitário para os lobbies e grupos de pressão secretos; a
substituição da troca persuasiva de opiniões pela violência cega e muda; a submissão da
pluralidade de idéias políticas pelo pensamento único; o enfraquecimento da capacidade
de consentir e dissentir em vista da obrigação de obedecer; enfim, o ofuscamento da
novidade e da criatividade pelo eterno retorno do mesmo. Em resumo, sob o impacto
dessas transformações históricas se operou a liberação e a promoção da vida e da
felicidade do animal laborans ao estatuto de valores e ideais políticos inquestionáveis.
Para a autora, o problema residia em que os ideais mais caros do animal laborans, isto
é, os ideais da abundância e do consumo desenfreado, do crescimento ilimitado, da
contínua acumulação da riqueza a qualquer preço e da colonização dos quatro cantos do
globo reduzem o homem ao ciclo repetitivo do seu próprio funcionamento vital, ao
mesmo tempo em que impõem o esgarçamento das possibilidades políticas
genuinamente democráticas e não violentas.

Evidentemente, cabe ressalvar que tais considerações não implicavam qualquer


desprezo pela natureza, pela vida, pelo trabalho ou pelo trabalhador. A preocupação
arendtiana era compreender as conseqüências da redução contemporânea do humano a
um animal que trabalha para consumir e consome para trabalhar, e da transformação da
política na gestão administrativa, tecnocrática, de dois interesses privados privilegiados,
produzir e consumir. Para Arendt, quando a política é reduzida à administração das
necessidades humanas em nome de um suposto bem comum, isto é, o incremento da
vida e da felicidade do animal laborans, multiplicam-se as instâncias da violência tanto
por meio da exclusão política quanto por meio da exclusão social operada pelas leis de
mercado. Se o mundo é pensado por Arendt como o espaço político-institucional que
deve sobreviver ao ciclo natural da natalidade e mortalidade das gerações, distinguindo-
se da urgência dos interesses privados e naturais dos homens que nele habitam, então o
que se observa nas modernas sociedades de trabalho e consumo é a abolição contínua
das barreiras que protegem o mundo em relação aos grandes ciclos da natureza, o que
explica a sensação de instabilidade e a incapacidade de pensar politicamente a médio e
longo prazos. Quando regida pela lógica econômico-vitalista, a política deixa de se

9
ocupar com a liberdade e a espontaneidade envolvidas na ação e discurso coletivos, que
visam à renovação e manutenção da estabilidade do mundo público compartilhado, para
assumir o papel de força violenta capaz de derrubar qualquer barreira para alcançar seu
objetivo primeiro, a abundância. Em sociedades nas quais até mesmo a obsolescência é
planejada, isto é, no âmbito de uma “economia do desperdício na qual todas as coisas
devem ser devoradas e abandonadas quase tão rapidamente quanto surgem no mundo, a
fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico,”9 torna-se possível
que os próprios homens sejam tomados como matéria bruta a ser consumida, descartada
ou aniquilada, seja pela violência política, seja pela violência econômica imposta pelas
leis do mercado.

Em sua crítica dos pressupostos comuns ao liberalismo e ao marxismo, Arendt


defende a tese de que a eliminação do âmbito das necessidades sociais jamais garantirá
por si só o reino da liberdade, visto que não há experiência possível da liberdade sem
uma contínua e jamais completa superação do domínio da necessidade. Por certo, seu
argumento não é o de que as desigualdades sociais sejam politicamente saudáveis, já
que ela reconhecia que a liberdade pública é um “luxo, é uma felicidade adicional que
só se é capaz de usufruir uma vez que as exigências do processo vital tenham sido
satisfeitas. (...) Antes de pedirmos idealismo aos pobres, temos primeiro de torná-los
cidadãos: e isso envolve a mudança das circunstâncias de suas vidas privadas, a fim de
que eles possam desfrutar do ‘público’”.10 De fato, o argumento proposto por Arendt é o
de que a pretensão de eliminar o âmbito das necessidades sociais, seja por meio de
medidas estritamente políticas, seja por meio de medidas estritamente técnicas, tende a
comprometer negativamente o espaço e a experiência da própria liberdade. Por um lado,
Arendt tinha diante de si a experiência malograda de todas as revoluções socialistas, que
pretenderam sanar a questão social por meios estritamente políticos, fator que levou à
degeneração do objetivo da fundação de um novo espaço republicano no terror ou na
violência. Por outro lado, ela também podia observar que nas sociedades ocidentais
democráticas e economicamente afluentes o interesse pela política diminuía na exata
proporção do aumento dos interesses privados dos cidadãos: “as horas vagas do animal
laborans jamais são gastas em outra coisa senão em consumir; e quanto maior é o

9
Arendt, A Condição Humana, p. 147.
10
Arendt, H.: “Public Rights and Private Interests, in response to Charles Frankel” in Small Conforts for
Hard Times, Humanists on Public Policy. NY, Columbia University Press, 1977.

10
tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites”.11 Para Arendt,
um intenso desequilíbrio entre os planos da necessidade e da liberdade, como nos casos
da miséria e na opulência desmedidas, geraria graves conseqüências políticas. Arendt
recusa as correntes políticas liberais porque elas tendem a pensar as relações entre
política e liberdade de maneira assimétrica e negativa, isto é, a partir da concepção de
que quanto menor for o espaço destinado à política tanto maior será o espaço da
liberdade. O que se enfatiza em fórmulas liberais repetidas à exaustão – quanto mais
Estado menos liberdade; quanto menos política, mais crescimento econômico – é uma
experiência da liberdade pensada sempre em termos da “liberdade em relação à
política,” destinada ao crescimento e desenvolvimento econômico privado.12

Ao recusar os paradigmas clássicos do marxismo e do liberalismo político em


sua crítica da política na modernidade, Arendt procurou reconsiderar o sentido da ação
política e do espaço público do presente por meio de uma análise das experiências
políticas originárias da polis grega e da res publica romana. Para os gregos, os
inventores da vida política democraticamente organizada, esta não era uma necessidade
natural da humanidade. Pelo contrário, não haveria nada de natural na vida
politicamente organizada, que não diria respeito, em primeiro lugar, ao suprimento das
necessidades vitais do organismo humano. Para os gregos do século V a.C. a vida
política era uma segunda forma de vida, uma forma qualificada de vida que se
acrescentava à vida natural dedicada ao suprimento das necessidades vitais básicas,
distinguindo-se, portanto, da organização coletiva da vida à base das relações de
parentesco. A meta da vida política era a atualização da liberdade e, para os gregos,
apenas o suprimento da necessidade instaurava o reino da liberdade, motivo pelo qual
aceitavam a escravidão e excluíam os escravos da ágora. Para eles, ser político
significava decidir os assuntos comuns por meio da persuasão e não por meio da
violência, que era o modo pré-político de estabelecer relações com os outros,
característico da vida doméstica. Toda forma de domínio e coerção, de mando e
obediência, em suma, toda forma de governo fundada na distinção entre os que sabem e
comandam e os que não sabem e obedecem era considerada pelos inventores da
democracia como pertencente à esfera privada. Para eles, apenas na ágora o homem se
movia entre seus iguais, junto aos quais ele não comandava nem era comandado. Assim,
as definições aristotélicas do homem como um animal político (zóon politikon) e como
11
Arendt, A Condição Humana, p. 146.
12
Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 195, tradução modificada.

11
um animal dotado de fala (zóon logon ekhon) não constituiriam uma definição do
humano enquanto tal, mas apenas uma definição do homem que tem acesso à existência
política na polis; bárbaros e escravos também são dotados da capacidade de falar, mas
não têm na fala e na ação livre um modo particular de vida.

Liberdade e igualdade coincidiam no âmbito da polis grega na medida em que a


isonomia instaurava uma igualdade artificial entre homens desiguais por natureza. A
igualdade era, portanto, uma característica especificamente política, um atributo da polis
isonômica, e não uma qualidade natural dos homens. Liberdade e igualdade coincidiam
ainda porque os gregos acreditavam que só se podia ser livre quando as ações humanas
davam-se entre pares, na exclusão de toda forma de desigualdade e de coerção e,
portanto, na ausência de qualquer forma de governo definida a partir da dominação e da
violência que cinde os cidadãos entre dominadores e dominados. A polis grega, mas
também a res publica romana, eram os espaços em que a liberdade, a igualdade, a ação
e o discurso opinativo podiam ser exercidos coletivamente. Isto pressupunha assegurar a
existência de um palco estável capaz de sobreviver à fugacidade dos atos e palavras
memoráveis, preservando-os e transmitindo-os após seu desaparecimento no passado,
função especial reservada ao direito, à recordação e às leis. Segundo Arendt, a polis
veio à existência para propiciar um espaço onde os homens pudessem se relacionar
permanentemente no modo da ação e do discurso, multiplicando, deste modo, as
chances de cada um para distinguir-se dentre os demais e mostrar-se em sua própria
singularidade, garantindo aos melhores que seus feitos e palavras não seriam
esquecidos, podendo alcançar fama imortal. Deste modo, a experiência antiga da
liberdade era essencialmente espacial e relacional, vinculando-se ao mundo comum que
se estabelece entre os homens e que desaparece onde quer que o indivíduo se encontre
isolado de seus pares. Ao enfatizar que a polis organizava-se politicamente de modo a
recusar as várias formas de governo definidas a partir da distinção hierárquica entre
governantes e governados, Arendt pretendeu demonstrar que o poder de governo, em
relação ao qual ela admitia ser “particularmente tentador pensar o poder em termos de
comando e obediência e, assim, equacionar poder e violência”, é de fato apenas “um dos
casos especiais do poder”.13 Ou seja, ao desarmar a articulação tradicional entre poder,
violência e governo, Arendt buscou recuperar um conceito enfático e positivo do poder,
distinto de toda forma de dominação coerciva ou violenta. Neste intento, ela retrocedeu

13
Arendt, Sobre a violência, p. 38.

12
aquém das formas de governo já constituídas a fim de encontrar o espaço e o modo de
ser originários de onde brotam a política e o poder, os quais são fenômenos
fundamentalmente distintos das manifestações da violência: o que brota do cano de uma
arma não é o poder, mas a obediência incondicional. Por outro lado, a política e o poder
surgem originariamente do “espaço da aparência” que vem a “a existir sempre que os
homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação.”14 Trata-se de um espaço que
“precede toda e qualquer constituição formal da esfera pública e as várias formas de
governo” e cuja existência depende diretamente de que os homens permaneçam juntos e
dispostos a agir e falar entre si, desaparecendo quando quer que eles se vejam isolados
uns dos outros. Nesse sentido, trata-se também de um espaço que existe apenas
potencialmente, isto é, enquanto possibilidade, nunca necessariamente ou para sempre,
como o indicam as palavras grega e latina dynamis e potentia. Por isso, o poder que
deriva do espaço comunitário compartilhado também não é algo que se possa estocar ou
preservar sob quaisquer condições, dependendo, em primeiro plano, da sua efetivação
por meio dos atos e palavras de uma pluralidade de agentes políticos determinados a
reconhecerem-se como iguais entre si.
Essas análises não significam que Arendt considerasse tais experiências
originárias como modelos normativos rígidos do passado a ser imitados como tais no
presente, como às vezes se pensa. O retorno arendtiano ao passado não é motivado pelo
saudosismo nostálgico, mas tem por fim encontrar novos critérios de avaliação do
sentido da política, os quais permitam elucidar certas manifestações políticas
democráticas radicais da modernidade e do mundo contemporâneo. Afinal, o
pensamento político de Arendt não se destina nem à simples preservação das
democracias realmente existentes, nem à mera reconstituição teórica de um conjunto de
experiências políticas definitivamente perdidas no passado, mas sim à consideração de
novos espaços para o exercício ativo da cidadania sob condições radicalmente
democráticas em nosso tempo. Não esqueçamos, pois, o elogio arendtiano de todas as
instâncias revolucionárias ou de resistência política da modernidade, nas quais os
cidadãos foram “sugados para a política como que pela força de um vácuo” formado
pela corrosão de toda a “parafernália oficialmente estabelecida”.15 Em outras palavras, o
interesse de seu pensamento político está em compreender e iluminar as pequenas “ilhas

14
Arendt, A condição humana, pp.211-212.
15
Arendt, Entre o passado e o futuro, p. 29.

13
escondidas de liberdade” que despontam em meio ao oceano do desinteresse e da
inacessibilidade da política na modernidade e no presente.16
Para Arendt, a ação política em seu caráter democrático-radical, isto é, tal como
descoberta pelos gregos do século V a.C., é um fim em si mesma, escapando, portanto,
não apenas às exigências metafísicas de sua fundamentação racional-moral, como
também à exigência normativa de sua submissão ao direito. O problema teórico com o
qual Arendt se enfrenta em suas investigações dos eventos políticos genuínos da
modernidade e do presente é o de como articular o poder constituinte, gerado por meio
das ações e palavras dos cidadãos, e o poder constituído, que precisa se cristalizar em
determinadas estruturas jurídico-políticas que garantam a estabilidade e a renovação do
corpo político por meio do exercício coletivo da liberdade participativa. Seu
pensamento político procura encontrar uma delicada solução de continuidade entre
poder constituinte e poder constituído, entre as instâncias do político e do jurídico, entre
democracia radical e democracia representativa, em suma, entre a criatividade
imprevisível da ação política e a necessidade de se estabelecer limites normativos
propriamente políticos que detenham a disseminação da violência e da arbitrariedade
sem, contudo, domesticar a originalidade intrínseca de toda ação política genuinamente
democrática.17 Segundo seus próprios termos, a ação política somente é livre na medida
em que não é concebida e exercida como simples meio ou instrumento para a realização
de fins predeterminados e extrínsecos ao próprio agir: “Para ser livre, a ação tem de ser
livre de motivos, por um lado, e de seu objetivo intencionado enquanto um efeito
previsível, por outro”.18 Isto não quer dizer que a ação política autêntica seja desprovida
de fins e motivações prévias, o que seria absurdo. O que Arendt quer explicitar é que o
agir político, enquanto manifestação concreta e mundana da liberdade, não deve ser
considerado à luz da justificação teórica de seus motivos, nem à luz de sua capacidade
para alcançar os fins intentados. Não se nega que todo agir tenha motivos e objetivos,
apenas se afirma, mas isto não é pouco, que a ação livre não se subordina a eles, pois os
transcende, sendo mais produtiva que qualquer motivação ou objetivo previamente
definidos, na medida em que instaura novas e imprevisíveis relações entre os homens.
Ao transcender motivos e objetivos, a ação livre é conduzida no mundo por princípios

16
Arendt, Entre o passado e o futuro, p. 31.
17
Por isso, parecem-me incorretas as críticas propostas por Toni Negri, para quem Arendt teria
reconhecido o potencial criativo e expansivo do poder constituinte, mas o teria rechaçado pelo recurso às
artimanhas jurídico-liberais do poder constituído. Negri, A., El poder constituyente. Ensayo sobre las
alternativas de la modernidad. Madrid: Libertarias/Prodhufi, 1994.
18
Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 198.

14
que dizem respeito à qualidade do espaço público em que ela ocorre. Tais princípios não
são pensados como fonte de inspiração dos objetivos particulares dos agentes, pois são
gerais e apenas definem um ‘como’ no proceder, mas não o ‘que’ fazer. O princípio que
inspira a ação livre só se torna manifesto no próprio ato cumprido, de sorte que ele não é
nem anterior ao ato, como um motivo, nem posterior a ele, como um objetivo, mas é
intrínseco ao próprio agir, à performance do ato, sendo dele indissociável: não há
exterioridade ou anterioridade entre ação e princípio político, mas simultaneidade, de
modo que ação e princípio político se esclarecem mutuamente, revelando-se assim o
sentido do ato cumprido para os seus espectadores públicos.
A existência de um ser que é capaz de agir e falar atesta a existência da liberdade
como fenômeno concreto no mundo compartilhado. Neste sentido, todo e qualquer
assunto político é um assunto em torno da liberdade humana, que é “a razão pela qual os
homens vivem conjuntamente em uma organização política. Sem ela, a vida política
seria sem sentido. A raison d’être da política é a liberdade e seu domínio de experiência
é a ação”.19 Isto é o mesmo que afirmar que a liberdade não é um dado imutável da
natureza humana, não é um bem do homem considerado no singular, isolado dos outros,
nem mesmo caracteriza todas as formas de relação entre os seres humanos. Por outro
lado, a liberdade política só pode manifestar-se naquelas relações que ocorrem num
espaço comum habitado por homens e mulheres que aparecem uns aos outros por meio
da ação e de palavras relativas aos assuntos de interesse coletivo. Refletindo sobre a
experiência política originária de gregos e romanos, os povos que nos legaram nosso
léxico político, Arendt compreendeu que a liberdade política não se confunde com a
liberdade do arbítrio para escolher entre duas opções dadas. Antes, a liberdade política,
na medida em que só se manifesta concretamente no mundo por meio da ação e da
linguagem compartilhados, confunde-se com a capacidade humana de agir, isto é, de
trazer ao mundo a novidade, aquilo que ainda não estava dado e que não poderia ser
conhecido ou imaginado.
À margem do ofuscamento contínuo da participação e do interesse popular pela
política na modernidade, Arendt também se dedicou a pensar algumas tentativas, ainda
que malogradas, de fortalecimento da democracia participativa, tais como: os townhall
meetings da Revolução Americana, as societés populaires da Revolução Francesa, a
Comuna de Paris em 1871, o surgimento dos sovietes em 1905 e 1917, os conselhos

19
Arendt, Entre o Passado e o Futuro, p. 192.

15
operários de 1918 na Alemanha, a insurreição húngara de 1956, os diversos
movimentos políticos de resistência à opressão e por direitos civis, a desobediência
civil, etc. Tais fenômenos políticos trazem consigo o signo ou o traço de uma re-
atualização dos laços que unem a política do presente à sua origem greco-romana,
tratando-se aí de uma “repetição que não se deixa explicar pela imitação consciente ou
mesmo pela mera recordação do passado”.20 Em outros termos, temos aí uma repetição
transfiguradora do passado no presente, expressa na súbita renovação do interesse dos
cidadãos pela participação política ativa e pelo debate público. A repetição transfigurada
da origem da política abre o presente para a novidade ao romper o moto contínuo da
tradicional compreensão da política em termos das diferentes formas da dominação do
homem pelo homem, segundo as quais a política é concebida como um fardo ou como
um mal necessário. Em tais eventos singulares, nos quais a política é re-apropriada
pelos cidadãos por meio de atos e palavras coletivos e concertados, manifesta-se a
fulguração presente da origem perdida e esquecida da política, bem como a promessa de
sua possível renovação.21
Contra o primado não questionado da representação política tal como atualmente
conhecida, considerada como a única alternativa política viável no mundo
contemporâneo, Arendt buscou vencer o tradicional “medo diante das coisas nunca
vistas, dos pensamentos nunca pensados, das instituições nunca antes experimentadas”
tendo em vista revelar o impensado da tradição revolucionária, isto é, o vínculo
indissociável entre liberdade, ação conjunta e felicidade pública.22 Em Sobre a
revolução, ao estabelecer uma forte contraposição entre o sistema de conselhos e o
sistema de partidos da política representativa contemporânea, Arendt não pretendeu
recusar os ganhos da democracia parlamentar, mas encontrar alternativas para redefini-
la no sentido de preservar e estimular o surgimento das pequenas ilhas de liberdade que
os conselhos revolucionários constituíram na modernidade e no mundo contemporâneo.
Sua preocupação era dupla: por um lado, tratava-se de dessacralizar o sistema
representativo atualmente existente, considerado tácita ou explicitamente como a única
alternativa política de que dispomos. Por outro lado, tratava-se de dar um nome ao
sentido oculto de um conjunto de experiências políticas que vêm se repetindo no cenário
político moderno e contemporâneo, isto é, tratava-se de nomear e caracterizar a contínua

20
Arendt, On Revolution. p. 256, minha ênfase.
21
Desenvolvo este argumento em meu livro O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em
Hannah Arendt. RJ, Paz e Terra, 2000.
22
Arendt, On Revolution, p. 258.

16
irrupção do desejo de participação e intervenção política por parte do povo. Se a autora
não pretendeu recusar o sistema democrático representativo de maneira absoluta, o que
seria absurdo sob condições contemporâneas, ela tampouco podia satisfazer-se em
simplesmente aceitá-lo tal qual o conhecemos atualmente. Impôs-se a seu pensamento,
portanto, o interesse em pensar como revitalizar o sistema democrático representativo a
partir do estímulo a novas formas de participação e esclarecimento políticos. Para
Arendt, se há uma instância capaz de atenuar o caráter privado da subjetividade
burguesa moderna e, ao mesmo tempo, forçar a desprivatização do espaço público, esta
ainda é a experiência da ação política coletiva mediada pela palavra significativa, capaz
de estabelecer redes e teias de novas relações entre sujeitos políticos descentrados, não
identitários e autônomos. O legado político de Arendt jaz em sua tentativa de repensar o
espaço público e a ação sem pretender oferecer respostas prontas e acabadas, sem
pretender exercer influências, mas entregando-se de maneira absoluta à exigência da
compreensão das esperanças e temores políticos de nosso mundo.
A despeito da ênfase nas reflexões a respeito do caráter político da liberdade que
se manifesta na ação e no debate coletivos no espaço público, Arendt também
desenvolveu uma instigante reflexão sobre a liberdade como experiência singular que
brota da relação dialógica consigo mesmo por meio do pensamento. Tal reflexão
originou-se de sua consideração tardia das difíceis questões relativas à determinação da
responsabilidade moral, política e jurídica dos agentes em situações políticas
excepcionais, particularmente, sob regimes totalitários. A questão que Arendt se pôs a
partir da segunda metade dos anos 60 foi a seguinte: quando o espaço público se
encontra totalmente obstruído pelo predomínio da coerção ideológica e do terror
desenfreado, a qual instância se pode ainda apelar a fim de tomar a decisão de resistir ao
mal? O que Arendt descobriu ao refletir sobre estes problemas foi que a resistência,
ainda quando exígua em suas possibilidades, é ainda assim possível até mesmo sob as
piores condições políticas e sociais imagináveis. A despeito da dificuldade evidente da
tarefa de pensar e julgar na ausência de critérios gerais pré-concebidos e validados pela
experiência passada e pela própria tradição, Arendt concluiu que os poucos indivíduos
que resistiram ao totalitarismo ampararam sua recusa à obediência no exercício de sua
capacidade de pensar e julgar. Em outras palavras, eles não seriam santos ou heróis,
nem tampouco cidadãos particularmente versados em teorias éticas e políticas ou fiéis
seguidores de mandamentos religiosos. A exemplaridade subversiva de sua conduta
residiria tão somente em que ousaram pensar e julgar por si próprios, negando o

17
automatismo complacente daqueles que, muito prontamente, ou se renderam às novas
regras impostas pelo regime nacional-socialista, ou meramente aplicaram, de maneira
inócua, um antigo conjunto de regras e idéias morais, religiosas ou políticas a uma
situação que era inteiramente nova.23 Sem poder confiar em critérios heterônomos –
valores, normas, costumes – para a avaliação da situação presente e sem poder
concordar com a prescrição oficial da conduta que deveriam assumir, restava-lhes tão
somente julgar a partir de um critério radicalmente autônomo de avaliação.24
Em A vida do espírito, Arendt dá continuidade à análise das conseqüências
ético-políticas das atividades de pensar e julgar ao considerar, mais detidamente, o
caráter reflexivo destas atividades do espírito, as quais jamais se encerram em si
mesmas, mas trazem consigo uma referência intrínseca ao outro. Por um lado, o juízo
reflexionante traz consigo uma referência a todos os outros que compartilham o mundo
comum comigo, os quais são levados em consideração por meio do exercício
imaginativo da imparcialidade e da mentalidade alargada, por meio das quais aquele que
julga coloca-se no lugar do outro.25 Por outro lado, o ego pensante tampouco é solipsista
pois, em seu próprio exercício, ele atualiza a divisão da unidade na interação do “dois-
em-um”, oferecendo, deste modo, a “indicação mais convincente de que os homens
existem essencialmente no plural”.26 A despeito do pensamento e do juízo serem
exercícios autônomos, singulares, solitários e intransferíveis, eles mantém uma relação
intrínseca com o outro, tanto o outro que se encontra implicado em meu juízo, quanto o
outro que já trago junto a mim quando penso. O pensar ao qual Arendt se refere não se
confunde com especulações teóricas, pois o que importa não é o ‘que’ se pensa, mas o
que significa pensar; mais ainda, tal pensamento não está a cargo de finalidades que lhe
sejam externas e nem possui um fim determinado. Não sendo um mero instrumento de
conhecimento o pensamento não precisa chegar a uma conclusão para ter significado;

23
Desenvolvo esse raciocínio em meu texto: “Hannah Arendt e a exemplaridade subversiva: por uma
ética pós-metafísica”. In São Paulo: Cadernos de Filosofia Alemã, vol. 09, 2007.
24
Arendt, Responsabilidade e Julgamento, p. 107: “os não-participantes foram aqueles cuja consciência
não funcionava dessa maneira, por assim dizer, automática – como se dispuséssemos de um conjunto de
regras aprendidas ou inatas que aplicamos caso a caso, de modo que toda nova experiência ou situação já
é prejulgada, e precisamos apenas seguir o que aprendemos ou o que possuímos de antemão. O seu
critério, na minha opinião, era diferente: eles se perguntavam em que medida ainda seriam capazes de
viver em paz consigo mesmos depois de terem cometido certos atos; e decidiam que seria melhor não
fazer nada, não porque o mundo então mudaria para melhor, mas simplesmente porque apenas nessa
condição poderiam continuar a viver consigo mesmos”.
25
Discuto em pormenor a análise arendtiana do modus operandi da faculdade de julgar em meu ensaio “A
dimensão política da filosofia kantiana segundo Hannah Arendt”. In Lições sobre a filosofia política de
Kant. RJ, Relume-Dumará, 1993.
26
Arendt, A Vida do Espírito, p. 139.

18
em outros termos, o pensamento nada mais é do que a própria busca contínua de
sentido, compreensão e reconciliação com o mundo. Enquanto busca do significado, tal
pensamento é um diálogo silencioso entre eu e mim mesmo, atividade que é melhor e
mais adequadamente efetivada quando um e outro são amigos e não se contradizem de
maneira irreconciliável. Quando interrompo minhas ações no mundo e, a sós (in
solitude), paro para pensar minha conduta e julgar os eventos do mundo, não me
encontro efetivamente sozinho (alone), mas sim em companhia do amigo que me
habita, do outro que sou e com o qual estabeleço um diálogo silencioso e reflexionante.
Ora, se eu quiser continuar a desfrutar da companhia sutil e silenciosa desse amigo que
trago junto a mim, devo garantir que o eu e seu outro não se tornem estranhos ou
inimigos irreconciliáveis, ou seja, não devo fazer algo que possa tornar impossível e
insuportável essa convivência invisível que se instaura entre os dois que sou quando
penso e julgo. Afinal de contas, “o agente e o espectador, aquele que faz e aquele para
quem o feito deve aparecer a fim de que se torne real (...) est[ão] contidos na mesma
pessoa”.27 A validade dessa implicação ético-política das capacidades de pensar e julgar
na ausência de critérios previamente definidos depende, portanto, de uma única
condição, “a disposição para viver explicitamente consigo mesmo”, bastando, para isso,
o crivo de uma “única certeza: independentemente dos fatos que aconteçam enquanto
vivermos, estaremos condenados a viver conosco mesmos”.28 Em outros termos, caso os
sujeitos pensantes e judicantes queiram continuar a pensar e julgar, eles deverão
responder ao apelo silencioso de sua “consciência” e modificar sua conduta no mundo,
não permitindo que a voz do amigo que trazem consigo seja abafada pelo ruído, às
vezes ensurdecedor, das exigências públicas e suas normas massificadas de
comportamento.

3) Conceito(s)-chave:

Ação política: a ação é considerada como a capacidade especificamente humana para


interagir coletiva e linguisticamente, ensejando assim a novidade no mundo comum. A
ação é a resposta à condição humana da pluralidade, evidenciada no fato de que não há
‘o’ homem, pois a Terra é habitada por homens no plural. A pluralidade é a condição de
toda vida política, pois não há política no isolamento atomizado de meros indivíduos ou

27
Arendt, On revolution, p. 102.
28
Arendt, Responsabilidade e Julgamento, p. 108.

19
em meio à homogeneidade indistinta das massas. Somente os humanos são capazes de
agir, ao contrário dos demais seres vivos da natureza, que se comportam de maneira
previsível e repetitiva, pois apenas os homens são seres singulares, isto é, não são
repetições de um modelo ou essência dados – nenhum ser humano é igual a outro de
modo que ele nunca é um ‘que’, mas sempre um ‘quem’. A ação está diretamente
relacionada à condição humana da natalidade, pois o nascimento humano constitui um
novo início; para os humanos, nascer não significa simplesmente aparecer no mundo,
mas constitui por si só a possibilidade de dar início a algo novo no mundo enquanto
agentes políticos, enquanto um zóon politikón. Arendt busca indicar o vínculo
propriamente político existente entre ação e liberdade, tal como descoberto pelos gregos
do século V a.C.
Amor mundi: constitui o lema do pensamento político arendtiano, contrário à atitude
intelectual que ela julgava predominante no mundo moderno, definida em termos da
alienação do homem em relação ao mundo, implicada tanto na sua fuga da Terra para o
universo, quanto em sua fuga do mundo para dentro de si, origem do moderno
subjetivismo filosófico e das tendências psicologistas do pensamento social
contemporâneo. Foi a partir desta perspectiva anti-humanista ou anti-subjetivista, a qual
privilegiava o cuidado pelo mundo entendido enquanto conjunto dos artefatos e
instituições políticas duráveis e estáveis, que Arendt detectou um dos grandes dilemas
políticos do presente, ou seja, o caráter instável e inóspito de um mundo quase
inteiramente regido pela lógica do trabalho e do consumo, a qual se perpetua em um
ciclo análogo aos grandes ciclos da natureza. Por isso, Arendt pensa que um dos
principais aspectos da política diz respeito à preservação da estabilidade do mundo, e
não ao cuidado dos interesses privados e ao suprimento das necessidades vitais daqueles
que o constroem e habitam.
Condição humana: diz respeito ao conjunto das condições e atividades sem as quais a
existência humana na Terra não poderia ser concebida. Os homens são seres que
precisam garantir suas condições vitais, motivo pelo qual precisam trabalhar (labor)
para suprir suas necessidades básicas e, assim, responder à condição elementar da vida.
Também são seres cuja existência depende da interposição, entre sua vida e a natureza
circundante, de um mundo de obras e artefatos duráveis, resultantes da atividade
humana da fabricação (work), através da qual se constitui um mundo comum e se
responde à condição humana da mundanidade. Finalmente, os homens são também os
únicos seres vivos capazes de ação (action) e discurso coletivos e concertados, os quais

20
trazem a novidade histórica à luz do dia, em resposta à condição humana da pluralidade.
Com tal conceito, Arendt recusa o conceito tradicional da natureza humana, entendida
como essência não-histórica e fora do tempo.
Espaço público: refere-se ao espaço originariamente político, não redutível ao plano
das instituições políticas organizadas, mas que se constitui potencialmente sempre que
uma pluralidade de agentes que se atribuíram igualdade de condições reúne-se na
modalidade da troca de opiniões e da ação coletiva e organizada. Sei conceito oposto é o
de espaço privado, marcado pela desigualdade e voltado para assuntos e interesses
econômicos ou particulares, que não dizem respeito a todos. Se o espaço privado é o
domínio da convivência humana forçada pelas necessidades vitais, a esfera pública é
aquela em que prevalece a convivência escolhida como a melhor forma de vida no
exercício da liberdade entre iguais. O espaço público, pensado enquanto mundo comum,
só existe na medida em que está resguardada a multiplicidade de perspectivas sobre
assuntos que, a despeito de preservarem sua identidade, aparecem a todos a partir de
perspectivas distintas. Por isso, toda forma de uniformização ou de abolição violenta da
pluralidade implica na destruição do espaço público.
Mundo: refere-se ao conjunto artefatos, obras e instituições criados pelos homens, os
quais permitem que eles estejam relacionados entre si sem que deixem de estar
simultaneamente separados. Mundo diz respeito às barreiras artificiais que os homens
interpõem entre eles e a natureza, referindo-se, também, àqueles assuntos que aparecem
e interessam aos humanos quando eles entram em relações políticas uns com os outros.
Em um sentido político mais restrito, o mundo é também o conjunto de instituições e
leis que é comum e aparece a todos e que, por ser um artefato humano, está sujeito ao
desaparecimento em determinadas situações-limite, nas quais se abala o caráter de
permanência e estabilidade associados à esfera pública e aos objetos e instituições
políticas que constituem o espaço-entre que unifica e separa os homens.
Social ou Sociedade: A moderna ascensão da esfera híbrida do social, a partir do século
17, embaralhou as antigas fronteiras bem definidas entre as esferas pública e privada. O
modelo formal da esfera da sociedade é o do surgimento da nação concebida como
forma de organização política do corpo coletivo de um conjunto de famílias
economicamente organizadas e dotada de apenas uma opinião e interesse, a manutenção
da vida sob as melhores condições possíveis. Conseqüentemente, o igualitarismo que
domina na esfera da sociedade não é o igualitarismo político artificialmente construído e
consentido entre pares, mas a igual submissão de todos a um único interesse e opinião

21
comandados pelo governo de Ninguém, a burocracia tecnocrática que administra o
interesse vital da humanidade transformado em interesse vital da sociedade como um
todo: primado da economia sobre a política. A moderna ascensão do social caracteriza-
se também pela promoção do trabalho ao estatuto de coisa e bem públicos, isto é, pela
liberação do processo de trabalho das amarras do ciclo repetitivo da manutenção da
sobrevivência individual, até o ponto em que a vida coletiva é concebida à luz desse
mesmo ciclo repetitivo.
Trabalho ou labor (labor) e fabricação (work): um dos aspectos cruciais da reflexão
arendtiana diz respeito à sua distinção entre a atividade da fabricação (work) e a do
labor ou trabalho, evidente no testemunho da linguagem: não se fala em trabalho de
arte, mas em obra de arte, do mesmo modo como não se fala em força de fabricação,
mas em força de trabalho, labor-force, Arbeitskraft. Tal confusão permeou toda a
tradição filosófica ocidental e encontrou sua máxima expressão na modernidade, com
Locke, Adam Smith e Marx. O trabalho ou labor é a atividade desempenhada pelo
animal laborans, isto é, o homem enquanto ser vivo ocupado com o provimento das
suas necessidades vitais. A despeito de sua enorme produtividade, ele não deixa nada
durável e permanente atrás de si, pois seus produtos são consumidos tão logo são
produzidos. Daí o caráter destruidor da atividade do trabalho-labor, que consome e
destrói seus produtos a fim de poder continuar a repetir-se. Por sua vez, a fabricação é
uma atividade que tem seu fim no término do objeto fabricado, que então é adicionado
ao estoque dos artefatos feitos pelo homem que constrói com suas mãos o mundo
comum, o artifício humano. Em sentido restrito, os produtos da fabricação são objetos
de uso e não bens de consumo, devendo possuir durabilidade e estabilidade maiores do
que aquelas implicadas em seu processo de produção. O homem como homo faber é o
senhor da natureza na medida em que a subjuga e destrói para produzir seus objetos
duráveis. Finalmente, observe-se que a fabricação tem um começo e um fim bem
determinados, distinguindo-se tanto da ação, que tem um começo, mas nenhum fim,
quanto do labor-trabalho, que não tem nem começo nem fim.

4) Percursos e influências:

Nietzsche, Heidegger e Benjamin constituem três referências fortes no


pensamento político-filosófico de Arendt. Sem jamais assumir a posição da discípula,
Arendt estabeleceu para com eles um contínuo diálogo apropriativo, passível de ser

22
identificado no modo como ela pensou a história e a temporalidade. Por certo, Arendt
não poderia ser considerada como historiadora; no entanto, sua reflexão política não se
dissocia de uma complexa consideração de eventos históricos particulares, cujo
significado político é haurido no confronto com a tradição do pensamento político e
filosófico ocidental – outra herança, aliás, que lhe chegou por meio da leitura dos textos
de Nietzsche, Heidegger e Benjamin. Ao centrar sua atenção no sentido particular de
certos eventos políticos paradigmáticos, fossem eles do passado mais remoto ou mais
recente, Arendt reconheceu a exigência de narrá-los, de transformá-los em estórias
significativas, na medida em que compreendeu que eles iluminavam a crise e as brechas
da política no presente, entreabrindo novas possibilidades para o futuro.

Inspirando-se naqueles filósofos Arendt formulou uma concepção da


temporalidade histórica em que o passado não constitui a dimensão temporal do
pretérito, daquilo que não é mais no sentido de que não se encontra mais subsistente no
presente. Por outro lado, o passado que importa a Arendt é aquele que ainda pode ser
considerado como um acontecimento novo e vivo no coração do presente, o qual,
justamente por isso, entreabre aí a brecha para o futuro. Em outras palavras, a
concepção arendtiana da história e do narrar estórias questiona o sentido tradicional e
corrente do entendimento da história e da tarefa do historiador em termos do estudo
rigoroso e científico, destinado à reconstituição fidedigna daquilo que não é mais. Deste
modo, o contar estórias arendtiano acata a original sugestão nietzschiana contida na
Segunda Consideração Intempestiva, decisiva também para Heidegger e Benjamin, de
recusar toda forma de positivismo em nome da reconstrução artística do passado. Em
uma palavra, ao recontar os eventos políticos do passado, Arendt cria fábulas
significativas e interessadas na vivificação da política do presente e do futuro, deixando
de lado a herança metafísica da historiografia empenhada em recontar o passado como
ele de fato ocorreu, isto é, o passado como aquilo que já não subsiste no presente, ou o
passado como aquilo que, supostamente, ainda subsistiria no presente, recusando-se a
passar. Se o trabalho do historiador é o de reificar os acontecimentos do passado a fim
de que eles não se percam na poeira do tempo, tal reificação não deve implicar a
transformação dos acontecimentos históricos em objetos subsistentes e disponíveis à sua
integral reconstituição desinteressada, sine ira et studio, pois o passado que importa
narrar é recontado sempre a partir de uma tomada de posição do historiador relativa ao
presente e ao futuro. Vale dizer, Arendt orientou sua reflexão político-filosófica a

23
respeito do presente recorrendo a um passado fragmentado e que se tornara
inteiramente novo, uma vez que as categorias políticas e filosóficas tradicionais haviam
perdido a capacidade para iluminá-lo.

Assim, quando em seus principais textos, a partir dos anos 50, Arendt transita
livremente na lacuna pensante entre passado e futuro, desconcertando seus leitores com
referências que, em poucas páginas, vão do lançamento do satélite Sputnik à
constituição da polis grega, o tema de suas reflexões e investigações não são fatos
positivos de um passado desconhecido ou mesmo fartamente conhecido. Igualmente,
em seu trânsito judicativo-reflexionante entre passado e futuro ela tampouco visa
encontrar nexos ocultos que permitiriam vislumbrar, retrospectivamente, o telos da
história, à maneira das filosofias da história de inspiração kantiana, hegeliana ou
marxista. Antes, e por outro lado, em sua reflexão histórica Arendt se depara com
fragmentos de acontecimentos políticos singulares, cujo sentido está contido no próprio
evento apreendido historicamente enquanto fragmento ainda capaz de significar para o
presente. Por isso, enquanto historiadora que narra eventos e estórias fragmentados do
passado, Arendt jamais se limitou a um exercício de pura e desinteressada erudição,
pois sabia que “a realidade é diferente da totalidade dos fatos e ocorrências, é mais que
essa totalidade, a qual, de qualquer modo, é inaveriguável”.29 Inspirada em Nietzsche,
Arendt mostrou-se consciente de que a história somente é necessária para a vida e para
ação política do presente quando esta tem o futuro em mira. Assim, ela reconhecia que o
cultivo de uma erudição estéril impediria justamente a ação e a própria vida, as quais
dependem de um horizonte de contrastes que permita ao vivente lembrar e esquecer,
sentir historicamente e de maneira a-histórica, isto é, sem ser absorvido pelo fluxo
homogêneo do tempo histórico vazio. Para Arendt, como para Nietzsche, o historiador
deve aprender a não ser escravizado e subjugado pelo tempo e pela história entendidos
como processo irrefreável e contínuo, pois somente assim pode assumir uma atuação
“intempestiva – ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperamos, em favor
de um tempo vindouro”.30 Para ambos, o historiador capaz de um olhar “supra-
histórico” não acredita que “o sentido da existência se iluminará no decorrer de um
processo”, pois ele assume que “o mundo em cada instante singular está pronto e

29
Arendt, Entre o passado e o futuro, p. 323.
30
Nietzsche, Segunda Consideração Intempestiva. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2003, p.7.

24
acabado”.31 Em outras palavras, tal historiador procura pensar a história como seleção
de instantes singulares que possuem sentido em si mesmos e não enquanto
particularidade insignificante inserida no todo significativo de um processo histórico
mais amplo.

Guardados certos limites, Arendt parece ter se inspirdo no modelo nietzscheano


do “historiador monumental”, aquele para o qual a história é, em primeiro lugar, uma
preocupação do homem que age politicamente, que olha para a história como fonte de
inspiração para fugir à resignação e transcender a insatisfação com seu próprio tempo e
com seus contemporâneos. Por tais motivos é que devemos recusar as interpretações
para as quais Arendt teria retornado ao passado greco-romano para instaurá-lo
novamente no presente por meio da imitação; ou as interpretações segundo as quais ela
teria pretendido contar uma estória pretérita tendo em vista lamentar a desaparição da
política democrática do coração das sociedades massificadas e voltadas para a
administração dos interesses vitais do animal laborans contemporâneo. Ademais, em
seu constante retorno ao passado greco-romano tampouco se tratava de contar uma
estória supostamente desconhecida, trazendo à tona acontecimentos cuja verdade factual
houvera sido esquecida ou distorcida, a fim de torná-los a medida ou o critério
normativo rígido e determinante para a avaliação crítica da modernidade e para a
proposição daquilo que a política deveria voltar a ser. Antes, e por outro lado, o que
importava a Hannah Arendt era pensar o sentido esquecido das manifestações políticas
originárias, pois tal sentido permitiria iluminar, com a chama tênue de uma vela, os
tempos sombrios da crise contemporânea da política e as brechas diminutas que
anunciam a possibilidade de novos começos políticos.

5) Bibliografia de Hannah Arendt:


The Origins of Totalitarianism. 3v: “Antisemitism”, “Imperialism”, “Totalitarianism”.
Nova York: Harvester Books, 1968. As origins do totalitarismo. Tradução de Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. O sistema totalitário. Tradução de
Roberto Raposo. Lisboa: Edições Dom Quixote, 1978.
The Human Condition. Chicago: The University of Chicago Press, 1958. A Condição
Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
Between Past and Future: eight exercises in political thought. Nova York: Viking Press,
1968. Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. São
Paulo: Perspectiva, 1979.

31
Nietzsche, Segunda Consideração Intempestiva, p.15.

25
Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil. Nova York: Viking Press, 1965.
Eichmann em Jerusalém, um Relato sobre a Banalidade do Mal. Tradução de S. O.
Heinrich. São Paulo: Diagrama e Texto, 1983. Eichmann em Jerusalém, um relato sobre
a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
On Revolution. Nova York: Viking Press, 1965. Sobre a Revolução. Tradução de I.
Morais. Lisboa: Moraes Ed., 1971. Sobre a Revolução. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.
Men in Dark Times. Nova York: Harcourt, Brace and World, 1968. Homens em Tempos
Sombrios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
On Violence. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1970. Sobre a Violência.
Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
Crisis of the Republic. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1972.
Crises da República. Tradução de J. Vollkman. São Paulo: Perspectiva, 1973.
Rahel Varnhagen: the life of a jewish woman. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich,
1974. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. Tradução
de Antônio Trânsito e Gernot Kludasch. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
The Life of the Mind. 2v. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1978. A Vida do
Espírito, O Pensar, O Querer, O Julgar. Tradução de A. Abranches, C. A. de Almeida e
H. Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.
Lectures on Kant's Political Philosophy. Editado por Ronald Beiner. University of
Chicago Press, 1982. Lições sobre a Filosofia Política de Kant. Tradução de André
Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.
Der Liebesbegriff bei Augustin. Julius Springer Verlag, 1929. Le Concept d’Amour chez
Augustin. Tradução de A. S. Astrup. Paris: Tierce, 1991. Love and Saint Augustine, ed. e
ensaio interpretativo de J. V. Scott e J. C. Stark. The University of Chicago Press, 1996.
O conceito de amor em Santo Agostinho. Lisboa: Ed. Piaget, 1998.
A Dignidade da Política. Coletânea organizada por Antonio Abranches. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1993.
Was ist Politik? Aus dem Naclaß. Editada por Ursula Ludz. Munique: Piper Verlag,
1993. Qu’est-ce que la politique? Texte établi et commenté par Ursula Ludz. Traduction
et préface de Sylvie Courtine-Denamy. Paris: Seuil, 1995.
O que é a Política? Fragmentos das obras póstumas compilados por Ursula Ludz.
Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
Essays in Understanding 1930-1954. Nova York: Harcourt Brace, 1994. Compreensão e
política e outros ensaios. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.
Responsibility and Judgment. Nova York: Schocken Books, 2003. Responsabilidade e
Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
The Jewish Writings. Ed. Ron Feldman e Jerome Kohn. Nova York: Random Books,
2007.
The promise of politics. From theory to practice. Nova York: Schocken Books, 2005.
Reflections on literature and culture. Stanford University Press, 2007.

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