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Introdução
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Professor de Ciência Política na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
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propor uma abordagem que recupere a noção de totalidade
da sociedade capitalista e que articule, ainda que contradi-
toriamente, as diferentes dimensões que foram desagrega-
das nas últimas décadas.
Contextualizando
Interseccionalidade e consubstancialidade
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Segundo Delphy (2009, p. 178), o debate teórico francês lança mão das ca-
tegorias de “patriarcado, gênero e relações sociais de sexo”. Ainda que tenham
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de classe, tentando aproximar o patriarcado do capitalismo.
O papel da opressão racial acabou ocupando um espaço
menor (HIRATA, 2014; ARRUZA, 2015). Como expoente
dessa posição, Kergoat (2010) afirma que as relações sociais
são consubstanciais ao formarem um nó no nível das práti-
cas sociais que somente é desatado no âmbito da análise teó-
rica. Nesse sentido, relações de classe, sexo e raça interferem
mutuamente umas sobre as outras,“produzindo e reprodu-
zindo a si próprias mutuamente” (KERGOAT, 2010, p. 94).
O ponto central é que não existiria uma relação prioritária,
não havendo, assim, centralidade de uma sobre as demais.
A teoria da interseccionalidade centrou-se na relação
entre raça e sexo, dando menos espaço para a questão de
classe. Para Hirata (2014), essa teoria, oriunda do trabalho
de Crenshaw (1989) tenta apreender a complexidade das
identidades e desigualdades integrando as dimensões de
raça, sexo e classe, mas sem estabelecer ou mesmo recusan-
do uma hierarquia entre elas, tal como o trabalho de Kergoat
(2010); logo, o debate entre ambas parece estar centrado,
segundo a própria Kergoat, no problema das categorizações
feitas por Crenshaw (1989).
A noção de interseccionalidade, ao se apoiar em cate-
gorias de sexo e raça tomadas como acabadas, implica o ris-
co de ocultar pontos da dominação e não captar as relações
sociais dentro das quais as categorias foram construídas.
Também é problemática por fomentar uma segmentação na
opressão que elimina o componente móvel da dominação e
origens e sentidos matizados entre si, esses termos têm, em comum, a pretensão
de descrever “um sistema que comanda o conjunto das atividades sociais”, não
se restringindo a atitudes individuais e podendo, como é o caso neste texto, ser
intercambiados.
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O primeiro eixo central é referido por Arruzza (2015)
como “tese dos sistemas duplos (ou triplos)”. Gênero e rela-
ções sexuais são tomados como um sistema autônomo que
se combina com o capitalismo em um processo de interação
que remodela ambos, constituindo-se em sistemas de ex-
ploração e opressão. Podem incorporar o sistema de raça
(triplo). A classe é entendida meramente como econômica;
logo, é o patriarcado que lhe dá caráter extraeconômico3.
O segundo eixo é referido como “tese do capitalismo
indiferente”. Nesse caso, o patriarcado e a opressão de gêne-
ro seriam anteriores ao capitalismo e este seria indiferen-
te às relações de gênero, podendo superar a opressão pa-
triarcal em países avançados com a reestruturação radical
da família. Essa tese defende, ainda, que o capitalismo seria
“oportunista” com a desigualdade de gênero, mantendo cer-
tas formas de opressão quando úteis ao capital e eliminando
outras que sejam consideradas obstáculos. Assim, logica-
mente a desigualdade não é necessária, mas empiricamente
ela se constata. (ARRUZZA, 2015, p. 37)
Problematizando a tese dos sistemas duplos ou triplos,
Arruzza(2015) afirma que a tese do patriarcado como siste-
ma autônomo possui um problema central, o de como ele se
reproduz e se mantém. Se ele não depende do capitalismo,
então a sua força motriz e a razão de sua continuidade de-
vem ser internas ao próprio patriarcado. Se a organização
patriarcal definiu e organizou a produção econômica em
outras épocas, no capitalismo a produção não é organizada
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Há uma variante que trata das relações de gênero como ideológicas e oriundas
de relações sociais pré-capitalistas, dando ao capitalismo uma dimensão de
gênero (ARRUZA, 2015, p. 36).
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A variante do patriarcado como sistema ideológico remanescente permanece
igualmente problemática, pois as incessantes mudanças no capitalismo dificul-
tam aceitar a manutenção desta ideologia a menos que ela seja tomada como
a-histórica e sem conexão com as relações sociais materiais.
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A palavra “queer” significa estranho, bizarro e também é utilizada como adje-
tivo pejorativo aos homossexuais.
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própria identidade dos sujeitos como algo fixo e imutável.E,
a partir dos anos 1990, essa teoria ganhou forte projeção.
Como principal expoente, Butler(2013) lançou questões no-
vas sobre a problemática feminista. A questão central pro-
posta pela autora é a seguinte:
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especificidades internas às mulheres, como as clivagens de
classe, raça, religião, etnicidade, sexualidade etc.
Ainda que o centro do debate de Butler(2013) seja de
natureza epistemológica, o fato é que essa autora se apoia em
alguns conceitos que permitem buscar uma aproximação
com o debate anterior. Ao se aproximar da obra de Foucault
(1987) para desenvolver a ideia da hegemonia do ideal nor-
mativo de gênero, Butler (2013) abre um espaço de diálogo
importante. O elemento-chave para a performatividade de
gênero são as práticas reguladoras, visto que estas se desen-
volvem no marco de micropoderes e microrrelações sociais
que disciplinam e enquadram os corpos de acordo com o
ideal normativo de gênero e dentro da matriz heterossexual
reprodutora. Assim, servem como mediação entre o ideal
normativo que reside no âmbito dos discursos e da cultura
e os atos performativos.
No terreno do pós-estruturalismo, particularmente
a partir da influência de Foucault, as práticas reguladoras
estão associadas ao debate acerca do poder. SegundoPogre-
binschi (2004), o filósofo francês mostra como o poder se
realiza em duas instâncias da sociedade. Na primeira ins-
tância, opera ochamado poder disciplinar, que emana das
microrrelações sociais, e que molda e disciplina os corpos, é
a disciplina da fábrica, da escola, do quartel, do hospital etc.
Tem como mecanismo central a vigilância, que faz o vigiado
se apresentar de forma individual e não coletiva diante do
poder que vigia. E o poder disciplinar também faz o vigiado
internalizar o vigilante, o que gera uma economia nos es-
forços de controle dos corpos. Como exemplo básico, está o
panópticom, analisado em Vigiar e Punir(1987). Na segun-
da instância, atua o biopoder, distinto e complementar ao
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geralmente externa e imposta. Isso implica uma radicaliza-
ção da crítica às identidades fixas, à ideia de masculinidade
e feminilidade e, também, das categorias de heterossexual e
homossexual.
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Neste texto,Butler afirma que a posição teórica para a qual argumenta não é
a sua, uma vez que se coloca próxima ao pós-estruturalismo e a Teoria Queer.
Totalidade
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e dos discursos, da relação entre classe social e sistemas
autônomos de opressão, do indivíduo e da constituição da
identidade. Entretanto, o elemento comum que perpassa
o debate parece residir na fragmentação da totalidade das
relações sociais sob o capitalismo. As diferentes dimensões
da realidade passam a ser tomadas como autônomas entre
si, tendo, talvez, pontos de conexão contingentes. Não há,
entretanto, uma articulação necessária entre cada um dos
elementos problematizados pelas linhas teóricas tratadas.
Diante disso, pretendemos apresentar uma aborda-
gem que considere as relações capitalistas como uma tota-
lidade. É possível encontrarmos a articulação contraditória
dos elementos que enredam gênero e sexualidade como
parte dessa totalidade, aspectos referentes à constituição do
indivíduo, sua subjetividade e identidade, das classes sociais
e da exploração e também o modo como a política e o Esta-
do operam dentro do capitalismo.
De acordo com Mascaro (2013), a relação entre capital
e trabalho é a chave para a compreensão da totalidade das
relações capitalistas. A exploração de uma classe social por
outra, no capitalismo, não ocorre por meio da violência di-
reta. A extração da mais-valia possui a especificidade de se
realizar mediante mecanismos extrapolíticos; mas, para que
ocorra, são necessárias certas condições. Assim, o trabalho
assalariado livre, o contrato de trabalho e o sujeito de direito
são elementos constitutivos das relações econômicas de
exploração. Mas essas condições, por sua vez, demandam
o surgimento de uma esfera que concentra poder ao mes-
mo tempo em que se distancia das classes sociais. Portanto,
é como derivação das relações de produção que emerge a
figura do Estado. Atuando como um terceiro em relação às
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contratos, tornam-se necessárias certas garantias. Os con-
tratos são firmados segundo formas jurídicas e políticas que
pressupõem possuidores e tomadores como sujeitos iguais
e livres e dotados de vontade, ou seja, sujeitos de direito.
Da forma-valor, derivam as formas sociais e políticas no
interior das relações sociais de produção. Não como refle-
xo superestrutural ou consequência a posteriori, mas como
condições de sua reprodução. Contudo, tal derivação ocor-
re, novamente, mediante a “aparência de autonomia”, e esse
é o traço distintivo das relações capitalistas. Isso coloca o
Estado no papel de produzir o sujeito moderno, com as
características apontadas antes, como figura necessária ao
funcionamento do capital.
Mascaro (2013) acrescenta que as interações sociais
de modo algum ocorrem livremente, tampouco podem são
ocasionais ou contingentes. Elas se realizam sob formas
determinadas pela reprodução do capital e pela força po-
lítica do Estado Ampliado. A família, instituída como foro
privado, regulamentada juridicamente e chancelada poli-
ticamente imputa certos papéis aos seus membros, define
hierarquias, impõe responsabilidades e expectativas, ou
seja, estrutura as relações. Desse modo, segundo o autor,
o sujeito que atua no interior das relações sociais objetiva-
das em certas formas, que por sua vez são legalizadas, ins-
tituídas e regulamentadas jurídica e politicamente, “[...] é a
pedra de toque estrutural do tecido social capitalista, e isso
se faz também por meio da ação estatal” (p. 64). Assim, as
relações sociais estruturadas sob o capitalismo produzem
instituições e o próprio indivíduo, como aparentemente
desconectados da exploração direta de uma classe social
sobre outra. No terreno do imediatamente visível, a política
Teoria Unitária
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Como Marx escreve, o processo produtivo “produz”
o trabalhador na mesma extensão que reproduz a
relação de trabalho capitalista. Uma vez que todo
processo de produção é sempre concreto – ou seja,
caracterizado por aspectos que são historicamente e
geograficamente determinados – é possível conceber
cada processo produtivo como conectado ao pro-
cesso disciplinar, que parcialmente constrói o tipo
de sujeito que o trabalhador se torna. (ARRUZZA,
2015, p. 53).
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a ser concebidas como atributos naturais, ou ainda, comoa
essência dos indivíduos.
Para a compreendermos a proposta de Arruzza (2015),
portanto, é necessário entendermos que as relações de po-
der e dominação são o ponto de articulação entre produção,
reprodução e relações de classe. Ao mesmo tempo, estão
presentes na constituição da subjetividade e da identidade
do indivíduo, por meio da disciplina e da delimitação do
campo de relações sociais e de experiências vividas. Não são
externas, nem contingentes, mas intrínsecas e necessárias às
dimensões contraditórias do capitalismo. Estão estrutura-
das em função dos imperativos de produção e reprodução
e suas formas derivam da forma-valor. Logo, são expressões
concretas da unidade contraditória da totalidade das rela-
ções capitalistas.
A própria noção de reprodução social, Arruzza (2015,
p. 56), incorpora o trabalho doméstico, mas vai além deste,
revelando “as paredes porosas” que o distinguem da sexua-
lidade, da mercantilização, da divisão sexual no mercado
de trabalho e das políticas do Estado de bem-estar social.
Assim, é possível compreendermos como se vinculam “for-
mas de dominação” que estão no interior do mercado de
trabalho com aquelas que são jogadas para fora deste, mas
que seguem por ele influenciadas (ARRUZZA, 2015, p. 55).
O trabalho dos cuidados de crianças, idosos e pessoas com
deficiências (o care), vem sendo exercido por imigrantes na
Europa, sob forte estigma social e com baixa remuneração,
revelando a articulação entre formas de preconceito, explo-
ração além das dimensões de produção e reprodução so-
cial. O trabalho doméstico, que é essencialmente exercido
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Referências
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MISKOLCI, Richard. A teoria queere a sociologia: o desafio de
uma analítica da normalização. Sociologias, Porto Alegre, n.
21, p. 150-182, jun. 2009.Disponível em: <http://www.scielo.
br/scielo.php?pid=S1517-45222009000100008&script=sci_
arttext>. Acesso em: 20 jul. 2015.