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Paráfrase do episódio do Adamastor (CantoV)

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Tinham passado cinco dias de navegação com ventos favoráveis quando, numa noite
em que estavam de vigia à proa, viram formar-se sobre as suas cabeças uma nuvem
que escurecia os céus.

38
A nuvem era tão escura e carregada que inspirava um grande medo. Ouvia-se ao
longe o estrondo das vagas contra os rochedos. "Meu Deus-exclamei eu -que ameaça
ou que segredo este mar nos mostra, que parece ser coisa pior que um temporal?"

39
Ainda eu não tinha acabado de dizer isto e já um vulto gigantesco se erguia diante de
nós. O rosto era sombrio, a barba desgrenhada, os olhos encovados, a expressão
medonha e má, os cabelos cheios de terra, a boca negra e os dentes amarelos.

40
Era tão grande que, posso assegurar-te, era um segundo colosso de Rodes, que foi
uma das sete maravilhas do mundo. Falava com uma voz cavernosa, que parecia vir
do fundo do mar. Arrepiavam-se as carnes e os cabelos só de o ouvir e ver.

41
E disse: "Ó gente mais audaz que qualquer outra que tenha praticado grandes feitos!
Tu, que nunca repousas dos trabalhos e das guerras, pois te atreves a romper os
limites e a navegar nos mares que eu guardo, e nos quais nunca ninguém navegou:

42
pois vens desvendar os segredos da natureza e do mar que nunca nenhum mortal
conheceu, ouve e fica sabendo os males que eu tenho preparado para castigar o teu
atrevimento quer no mar, quer na terra que, com dura guerra, virás a dominar.

43

Fica a saber que todas as naus que fizerem esta viagem terão como inimigo este
lugar, com ventos e tempestades terríveis.
Na primeira armada que aqui passar eu farei subitamente um castigo inesperado, mas
destruidor.
44
Aqui espero vingar-me do primeiro que me descobriu. E não será esse o único castigo
da vossa temeridade; todos os anos vereis naufrágios, perdições e o menos doloroso
dos males será ainda a morte.

45
Do primeiro fidalgo que teve o título de Vice-rei, serei eterna sepultura.
Aqui deixará os troféus das suas vitórias sobre os turcos; aqui se vingarão dele as
cidades de Quíola e Mombaça.

46
Também um outro homem ilustre, na companhia da formosa dama que o Amor lhe
deu, escapará ali vivo de um naufrágio, para encontrar em terra morte com maior
sofrimento.

47
Depois de terem caminhado muito tempo pela areia ardente, verão morrer os filhos de
fome, verão os Cafres roubar à esposa os vestidos que a cobriam, até a deixarem
exposta ao calor, ao frio, ao vento, inteiramente
nua.

48
E, os que escaparem, verão os míseros amantes morrer abraçados na mesma
sepultura, depois de lágrimas e lamentos que comoveriam as próprias pedras."

49
O monstro horrendo continuava a vociferar os nossos destinos quando eu lhe
perguntei: "Quem és tu?" Retorceu os olhos, deu um espantoso
brado como se a pergunta lhe tivesse doído, e respondeu:

50
"Eu sou aquele oculto e grande cabo que se estende em direção ao Polo Sul, onde
termina a costa africana. Os grandes geógrafos da antiguidade não me conheceram, e
a vossa ousadia muito me ofende!

51
Fui um filho da Terra, do mesmo modo que o foram os Gigantes revoltados.
Chamo-me Adamastor, e estive na guerra contra Júpiter; não fui dos que colocaram
monte sobre monte para chegar ao céu, mas andei no mar, em guerra contra Neptuno.

52
Foram os amores da esposa de Peleu que me fizeram tomar tão grande empresa.
Desprezei outras deusas do céu para amar só a princesa das águas. vi-a um vez, na
companhia da Nereides, sair nua das águas, e logo senti um desejo que ainda agora
dura. Como me não era possível consegui-la, por ser tão feio de figura, resolvi
conquistá-la, e exponho o assunto a Dóris. Esta fala-lhe por mim, mas ela respondeu
com um sorriso: "Qual será o amor da deusa que aguente o dum gigante(?)...

54
...mas, para evitar a guerra do Oceano, procurarei uma forma de, respeitando a honra,
evitar prejuízos", respondeu -me Dóris. Eu não consegui compreender este engano.
Como são cegos os amores! Fiquei cheio de desejo e de esperanças.

55
Já sem saber o que fazia, numa noite prometida por Dóris, vejo de longe o vulto de
Thétis, sé desejada. Corro para ela como louco, abraço-a e beijo-lhe os olhos, as
faces, os cabelos.

56
Ó! Tenho até vergonha de o contar: julgando ter nos braços quem amava, encontrei-
me abraçado a um duro monte, e em vez de apertar um rosto angélico, tinha um
penedo nas mãos. Eu próprio me senti de pedra: era um penedo junto a outro penedo.

57
Ó formosa ninfa! Já que a minha presença te não agradava, que te custaria manter-me
nesta ilusão, fosse ela monte, nuvem, sonho ou nada? E fujo, quase louco, do
desgosto e do vexame ali sofridos, a procurar outro mundo onde ninguém da minha
dor se risse.

58

Já então meus irmãos tinham sido vencidos na sua guerra, para que deuses vãos se
sentissem mais seguros, alguns estavam sepultados sob vá rios montes. E como
contra o céu não há defesa, comecei a sentir o castigo dos meus atrevimentos.
59

A carne é agora terra dura; os ossos fizeram-se penedos. Estes membros que aqui
vês, e esta figura estendem-se pelo mar. Enfim, transformei-me neste cabo. E, para
ainda mais me magoar, cerca-me Thétis nestas águas.

60

E, dizendo isto, com um medonho choro o Adamastor desapareceu dante os nossos


olhos. Desfez-se a nuvem negra e o mar soou até longe. Eu pedi a Deus que
removesse as trágicas profecias do Adamastor.

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