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MOBILIZAÇÕES DE

SOLIDARIEDADES
HORIZONTAIS EM
TERRITÓRIOS POPULARES
Jorge Luiz Barbosa, Lino Teixeira, Aruan Braga e Bira Carvalho*

* Fotógrafo e coordenador do Programa Imagens do Povo convidado a


colaborar nesta edição com suas reflexões, vivência e curadoria das imagens

Quando abordamos a radicalida- estadual e municipal, apesar das


de das consequências da pande- diversas recomendações de insti-
mia sob o feixe de condições polí- tuições de pesquisa, organizações
ticas, econômicas e sociais na in- de profissionais da saúde e de mo-
terposição corpo/território é possí- vimento sociais.
vel compreender as dimensões O “isolamento social” na cidade
das lutas pelo Direito à Vida em fa- do Rio de Janeiro, mesmo parcial-
velas e periferias lançadas ao des- mente assumidos pela população,
tino imponderável. expôs rapidamente as fragilidades
Os territórios populares abrigam fa- socioeconômicas de residentes
mílias em residências adensadas, em favelas. Como comprovam o
tornando o contágio comunitário Censo do IBGE de 2010, os mora-
mais do que previsível. Essa reali- dores de favelas na cidade do Rio
dade jamais foi levada em consi- de Janeiro possuíam um rendimen-
deração para ações governa- to médio mensal de R$ 488,11.
mentais nesses meses de incidên- Antes mesmo do agravamento do
cia do coronavírus quando o “dis- desemprego que lançou milhões
tanciamento social” se tornou a no trabalho ocasional, precário e
medida preventiva mais geral. Ne- de baixíssima remuneração. Ou
nhuma ação mais específica de seja, as famílias nas favelas já
atenção e cuidado foi efetiva- viviam no limite crítico da luta
mente realizada pelos governos diária pela sobrevivência.

6ª Edição I 02
Foto: Rosilene Moglioti Foto: Francisco Cesar

Não estamos colocando em Por outro lado, também não se


dúvida ou mesmo negando, levou em conta a especificidades
como fez o inescrupuloso Presi- de territórios populares para aderir
dente fascista e seus seguido- ao “isolamento social” devido ao
res genocidas, a importância próprio cotidiano de trabalho, so-
de ações básicas de proteção ciabilidade e lazer vivenciado em
e de recolhimento social como suas ruas, becos e praças.
medida de redução do contá-
gio em multiplicação da
COVID – 19. Todavia, tomar- Dirigimos nossa crítica ao
mos determinadas ações modo genérico, insensível e
como possíveis para os mora- ineficaz de medidas aparen-
dores da cidade como um temente simples, uma vez que
todo é desconsiderar as condi- estas não foram acompanha-
ções desiguais em reprodução das de ações públicas emer-
genciais para o autocuidado
na cidade. Práticas básicas de
de famílias desprovidas de
higiene pessoal muitas vezes condições materiais básicas
são constrangidas em favelas para sobreviver ou resistir a ra-
e periferias devido a absurda dicalidade da precarização
precariedade da infraestrutura de suas vidas no cortejo de-
de saneamento básico. vastador da Covid -19.

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Foto: Bira Carvalho Foto: Bira Carvalho

EPIDEMIAS E PANDEMIAS APROFUNDAM AS DESIGUALDADES


NAS CIDADES AO LONGO DO TEMPO
Tanto o processo da formação Podemos afirmar que as desigual-
das favelas, de forma mais espe- dades socioespaciais estruturais
cífica, como as desigualdades ur- brasileiras encontram entre suas
banas contidas na dinâmica cen- principais raízes o processo de co-
tro-periferia das grandes cidades lonização e de escravização, ini-
brasileiras estão intimamente liga- cialmente de povos indígenas da
das à ocorrência de tragédias América do Sul e depois de popu-
biológicas ou epidemias de gran- lações sequestradas do continen-
des proporções. Mais do que te africano.
eventos que foram melhor ou pior A cidade do Rio de Janeiro, foco
conduzidos pelo poder público, central das análises deste boletim,
as epidemias se constituíram se constitui em meio a um proces-
como verdadeiras armas políticas so profundamente desigual. A
de subjugação e extermínio de concentração de capitais políti-
corpos periféricos em momentos cos, econômicos e simbólicos por
cruciais do país, em especial na uma pequena parcela da elite
cidade do Rio de Janeiro. dão a tônica deste processo.

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Como podemos entrever a partir Opera-se, com efeito, um proces-
de um breve desencadeamento so de segregação e expulsão da
histórico, as próprias dinâmicas população residente no centro
socioespaciais que contribuem do Rio. A transformação urbana
para conformar as atuais rela- ocorrida no governo Pereira
ções desiguais entre centro e Passos é outro momento crucial
periferia – seja na escala do terri- neste processo de formação da
tório, da sociedade ou do corpo cidade.
– estão ancoradas no estado co-
lonial e no sistema escravocrata.
E como procuraremos delinear,
apresentam íntima relação com Os ideais higienistas
a ocorrência de doenças, epi- do prefeito conduzi-
demias e outras formas de vio- ram esta grande re-
lência exercida sobre esses os forma urbana que
territórios populares e popula- implementou o “bo-
ções empobrecidas. ta-abaixo”, demolin-
Desde o primeiro momento de do praças, morros,
tomada e invasão do território in-
cortiços e traçando
dígena, a proliferação de doen-
ças disseminadas a partir de
novas vias de circu-
corpos brancos, verdadeiras co- lação na zona cen-
lônias de bactérias e enfermida- tral.
des desconhecidas pelos povos
indígenas originários, promovem É possível identificar aqui um con-
uma verdadeira guerra biológi- junto de elementos que remon-
ca de grandes proporções. tam à própria origem das favelas
Porém, a cidade segue crescen- e expressam as lógicas que pas-
do, inicialmente a partir da saram a orientar as políticas públi-
Região Central, e se consolida cas pautadas pela elite carioca.
justamente a partir do processo A este evento, que pode ser en-
de exploração e escravização carado como um marco funda-
cujas marcas se encontram dor do processo de formação das
ainda hoje expressas nas desi- favelas, seguiu-se um conjunto de
gualdades cariocas. crises sanitárias ao longo do
Já no século XIX, com a chega- século. Elas apresentaram repeti-
da corte portuguesa, a cidade damente as características pre-
amplia seu número de habitan- sentes também na atual pande-
tes e inflaciona os preços das mia da Covid19, a saber: impac-
moradias como capital do impé- tos majoritários sobre as popula-
rio. ções periféricas e empobrecidas.

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Ancorados em estudos anterio-
res do próprio Observatório de
A febre amarela, a varí- Favela e outras organizações da
ola, a peste bubônica, sociedade civil carioca, perce-
a gripe espanhola, o bemos que a ocorrência de epi-
sarampo e hoje o Coro- demias urbanas ao longo do
navírus remontam, cro- século XX, e mesmo antes, du-
rante o período colonial, é um
nologicamente, epide-
elemento preponderante na for-
mias e pandemias que
mação das favelas e nas lógicas
assolaram as cidades
de estigmatização destas popu-
de forma desigual e re- lações.
forçaram a segregação Se por um lado estas crises sani-
socioespacial das regi- tárias, por vezes utilizadas para
ões urbanizadas do um projeto político orientado
país. para o genocídio da população
Portanto, observamos ao longo pobre residente de favelas e pe-
dos séculos como a sucessão de riferias, reforçam as relações de
conduções equivocadas pelo desigualdade nas cidades,
poder público na cidade do Rio também podemos verificar um
de Janeiro contribui para confor- contra movimento. Nesses mo-
mar não só uma rede de equipa- mentos emergem formas de mo-
mentos e políticas públicas inefi- bilização e luta extremamente
cientes e precarizadas até os potentes a partir da atuação co-
dias atuais, mas também, e prin- letiva das populações de favela.
cipalmente, integram um longo Os laços de solidariedade,
processo de formação desigual formas de auto organização e in-
do espaço urbano em que as ventividade presentes nas fave-
epidemias urbanas desempe- las e periferias são marcas consti-
nham um papel central. tutivas destes espaços. Promo-
vem novas sociabilidades e
formas de ocupação do espaço
orientadas para a convivência e
É justamente a partir para a sobrevivência e se
desta série de epidemias tornam, diante da falta de políti-
que buscamos ilustrar cas públicas comprometidas, ins-
como os moradores de trumentos centrais para a manu-
favelas não apenas tive- tenção da vida. Não por acaso,
ram negados seu direito desses momentos agudos emer-
à cidade de forma gem grupos, lideranças e agen-
plena, mas revela, so- das cujas vozes e ações se junta-
bretudo, como vêm ram na busca por superar as de-
sendo objeto de políticas sigualdades emergenciais e es-
genocidas e urbicidas. truturais.

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A SOLIDARIEDADE EMERGE COM POTÊNCIA DE AFIRMAÇÃO
DA VIDA EM RESPOSTA À COVID19
Assim como ocorreu em outros momentos, é justamente na situação
devastadora da vida de pessoas já vulneráveis pela espoliação
urbana que emergem e se multiplicam mobilizações solidárias.

Organizações e coletivos já atu-


antes em favelas, assim como
novos que surgem a partir de ini-
ciativas da atuação em redes
solidárias, passaram a impulsio-
nar movimentos e ações para
enfrentar, mesmo de modo miti-
gador, o cenário de extermínio
à vista.

Foto: Bira Carvalho Foto: Bira Carvalho

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No quadro de ações solidárias implementadas podemos destacar
linhas principais de incidências significativas em territórios populares:

1. As vinculadas a comunicação de orientações de cuidado pessoal


e comunitário por meio de peças visuais impressas e digitais para o
compartilhamento em ruas e estabelecimentos comerciais e em
redes eletrônicas até os tradicionais carros de som, rádios locais e
faixas. Aqui também se inclui a participação de coletivos de artistas
na geração produtos estéticos para sensibilizar positivamente em re-
lação às ações de prevenção e mobilizar para exigência de direitos
fundamentais.
2. A organização para aquisição e distribuição de cestas básicas,
cupons de alimentação, material de higiene e máscaras de prote-
ção, a partir de diagnósticos de famílias realizados anteriormente à
situação de pandemia e os construídos em diagnósticos rápidos par-
ticipativos sobre a situação das comunidades e famílias mais expos-
tas à vulnerabilidade.

O engajamento diante da urgên- dado, acolhimento e comparti-


cia não envolveu exclusivamente lhamento para a superação das
organizações e coletivos. Mora- condições perversas de viola-
dores, comerciantes e professores ção de direitos à vida, tendo
de escolas públicas locais como recurso a força vibrante
também se fizeram presentes, das relações de pertença ao ter-
assim como moradores de outros ritório.
bairros também estavam envolvi- Retomamos, então, a constru-
dos nas contribuições com doa- ção de Eduardo Galeano
ções em dinheiro, serviços e bens quando nos ensinou a distinguir
para garantir a vida das pessoas a solidariedade da caridade e
mais duramente expostas às desi- da filantropia, sobretudo ao
gualdades profundas. considerar o ato de solidarieda-
As ações em destaque são, sem de como uma relação horizontal
dúvida, imediatas e assistenciais que respeita a outra pessoa e se
para um momento radical de ur- aprende com o outro. A prática
gência do cotidiano em ruptura. solidária horizontal vem permitin-
Porém, precisamos considerar do que sujeitos se descubram, se
sua potência individual e coletiva encontrem e se fortaleçam em
de compaixão atuada. meio a situações extremas de
Ou seja, em seu sentido mais despossessão da cidade como
amplo de prática social de cui- privação do direito à vida.

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Esse aprender como outro com o E, mesmo com as limitações ma-
sentir junto e o atuar conjunta- teriais que se fazem presentes,
mente favoreceu reconhecimen- incluindo o volume de doações
tos múltiplos, mobilizou afetos e face ao crescimento do número
disparou iniciativas comuns entre de famílias com necessidades
os sujeitos em seus territórios de urgentes após quatro meses de
existência. impactos disparados pela pan-
demia do coronavirus, não po-
demos reduzir ou desconsiderar
Novas formas organi- a força do território que emerge
zativas ganharam ex- como solidariedades horizontes,
pressão para reunir rei- sobretudo entre os próprios mo-
vindicações e proposi- radores de favelas e periferias.
ções em agendas de Tudo nos indica que o cenário
representatividade po- da pandemia continuará grave
lítica comunitária. e possivelmente devastador co-
locando os territórios populares
É desse movimento que surgem na encruzilhada da economia
Comitês de Defesa, Gabinetes de política de hierarquização do
Crise, Frentes Comunitárias em fa- valor da vida.
velas, conjuntos habitacionais e Como alertou Judith Bluter, o
loteamentos. São modos de auto- vírus por si só não discrimina,
-organização a construir visibilida- mas nós, humanos, certamente o
de das demandas urgentes com- fazemos, formados e animados
binadas às exigências de direitos como somos pelos poderes entrela-
dos territórios populares. çados do nacionalismo, racismo,
xenofobia e capitalismo.
Se as distinções corpóreo-territo-
riais de direitos impõem condi-
Trata-se, ao nosso ver, ções trágicas à pandemia é pre-
de uma possibilidade ciso mobilizar resistências e exis-
aberta de reconfigura- tências capazes de afrontar o
ção da atividade polí- destino socialmente imposto. É
tica dos subalterniza- nessa perspectiva que as experi-
dos e de enunciação ências em curso em favelas e
de um projeto popular periferias não devem ser enten-
de cidade em meio a didas como um caminho que
maior crise urbana de cada comunidade encontra ou
nossa história recente. deve encontrar diante do
“abandono do Estado e/ou dos
desafios emergentes da catás-
trofe do coronavírus”.

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Foto: Francisco Cesar

Foto: Rosilene Moglioti

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Acreditamos que estamos em um movi-
mento com a potência de colocar em
questão a sociedade e a cidade em
suas contradições mais profundas, so-
bretudo ao trazer os sujeitos e territórios
invisibilizados na cena política de bana-
lização genocida da vida.

As práticas de pertença em evidência em territórios populares


diante da violação inominável de direitos afirmam a concep-
ção de solidariedade em seus vínculos com a justiça, a liberda-
de e a democracia.

Foto: Davi Marcos

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6ª Edição

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