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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

PETIÇÃO Nº : 10.364/DF

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RELATORA : MINISTRA CÁRMEN LÚCIA
REQUERENTE : ORLANDO SILVA DE JESUS JÚNIOR E OUTRO
REQUERIDO : JAIR MESSIAS BOLSONARO
PETIÇÃO Nº 188125/2022-AJCRIM/PGR

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Excelentíssima Senhora Ministra Cármen Lúcia,

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Vice-Procuradora-Geral

da República, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, vem à

presença de Vossa Excelência, manifestar-se nos termos que seguem.

Trata-se de notitia criminis apresentada junto ao Supremo Tribunal

Federal por ORLANDO SILVA DE JESUS JÚNIOR, Deputado Federal, e

FRENTE AMPLA DEMOCRÁTICA PELOS DIREITOS HUMANOS,

associação de direito privado, em desfavor de JAIR MESSIAS BOLSONARO,

Presidente da República.

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Narram que, no dia 12 de maio de 2022, em frente ao Palácio da

Alvorada, JAIR MESSIAS BOLSONARO se dirigiu a um apoiador negro e

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disse: “Conseguiram te levantar, pô? Tu pesa o quê, mais de 7 arrobas, não é?”

A partir dessa frase, os noticiantes alegam que a “declaração possui

cunho inegavelmente racista, tendo em vista que arroubas [sic] é uma medida

utilizada para pesar animais. Ao utilizar o termo, há um claro intuito de associar a

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pessoa negra a um animal, explicitando o racismo da conduta”.

Assim, concluem os noticiantes que o fato encontra definição típica

no artigo 20, caput, da Lei nº 7.716/1989.

Os autos foram distribuídos a Exma. Ministra Cármen Lúcia, vindo

com vista ao Ministério Público Federal.

É o relatório.

Em primeiro lugar, destaca-se que a Petição nº 10.363/DF possui

idêntico conteúdo, também estando distribuído a Vossa Excelência,

ingressando no Supremo Tribunal Federal em data anterior, no dia 13/05/2022,

às 17:31:34, enquanto a autos em análise ingressaram no dia 14/05/2022, às

10:51:56.

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Sendo assim, pugna-se pelo apensamento dos autos para

julgamento conjunto.

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Vencida essa questão, importa dizer que a República Federativa do

Brasil possui forte compromisso com a dignidade da pessoa humana, o

pluralismo (artigo 1º, III e V, CF), a redução das desigualdades sociais e a

promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade

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e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, III e IV, CF),

repudiando o racismo (artigo 4º, VIII, CF), cuja prática crime inafiançável e

imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei (artigo 5º, XLII,

CF).

Dando cumprimento ao que foi previsto na Constituição Federal, o

legislador editou a Lei nº 7.716/1989, com relevância, para a hipótese dos

autos, ao tipo penal do artigo 20:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça,


cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459,
de 15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.459,
de 15/05/97)

Em 2018, a Procuradoria-Geral da República ofereceu denúncia em

desfavor de JAIR MESSIAS BOLSONARO (Inquérito nº 4.694). Naquela

ocasião, dentre os fatos imputados, foi descrito que o então Deputado Federal

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havia dito a seguinte frase: “Isso aqui é só reserva indígena, tá faltando

quilombolas, que é outra brincadeira. Eu fui em um quilombola em El Dourado

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Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada!”.

O Ministério Público Federal considerou, na ocasião, que o fato se

amoldava ao tipo penal do artigo 20, caput, da Lei nº 7.716/1989, configurador

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do delito de racismo.

Entretanto, a denúncia foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal,

que entendeu ser o fato atípico. A decisão, da relatoria do Ministro Marco

Aurélio, está assim ementada:

DECLARAÇÕES – CARÁTER DISCRIMINATÓRIO –


INEXISTÊNCIA. Declarações desprovidas da finalidade de
repressão, dominação, supressão ou eliminação não se investem de
caráter discriminatório, sendo insuscetíveis a caracterizarem o crime
previsto no artigo 20, cabeça, da Lei nº 7.716/1989.

DENÚNCIA – IMUNIDADE PARLAMENTAR – ARTIGO 53 DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL – INCIDÊNCIA. A imunidade parlamentar
pressupõe nexo de causalidade com o exercício do mandato. Declarações
proferidas em razão do cargo de Deputado Federal encontram-se cobertas
pela imunidade material. (grifamos)

Note-se que a expressão empregada nos dois casos – arroba – e

invocada como suposta desumanização ou discriminação, não foi reconhecida

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pelo Supremo Tribunal Federal como caracterizadora do tipo penal da Lei nº

7.716/1989. No precedente invocado o Ministro Marco Aurélio observou:

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A par desse aspecto, mostra-se relevante o que articulado pela defesa
relativamente ao emprego, no discurso, do termo “arroba”. A utilização do
vocábulo não configura ato de desumanização dos quilombolas, no que se
teria a comparação a animais, mas sim forma de expressão – de toda infeliz
–, evocada a fim de enfatizar estar um cidadão específico do grupo acima do

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peso tido como adequado. Não há conteúdo preconceituoso ou
discriminatório na afirmação, não sendo possível afirmar que a fala decorre
da condição subjetiva do quilombola.

Acompanhando o Relator, o Ministro Alexandre de Moraes

enfatizou que as palavras empregadas “em momento algum, tiveram o intuito

objetivo de negar ou ser contra o sofrimento causado aos negros e seus descendentes

pela escravidão, negar os direitos dos quilombolas, negar a própria escravidão ou seus

efeitos. As declarações do denunciado não defenderam ou incitaram tratamento

desumano, degradante e cruel, em relação aos negros, nem fizeram apologia do que foi

feito no período abominável da escravidão no Brasil”.

Também caminhando pelo não recebimento da denúncia, o Ministro

Luiz Fux classificou as expressões empregadas por JAIR MESSIAS

BOLSONARO como “incompatíveis com o dever ético de tratamento respeitoso”,

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mas reconheceu que o emprego das palavras se deu “com alegado animus

jocandi”1, fato que contribuiu para o afastamento da imputação.

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No caso em análise, o Presidente da República notoriamente agiu

com animus jocandi, em conversa com seu apoiador, na porta do Palácio da

Alvorada, mais uma vez o fazendo em alusão ao eventual excesso de peso do

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interlocutor (“Tu pesa o quê”). As palavras não tiveram, por evidente, o

propósito de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de

raça, como também não objetivaram desumanizar ou equipar negros a

animais.

A fala do Presidente da República pode ser integralmente assistida

no link https://www.youtube.com/watch?v=eigIXurAd60.2 Na ocasião, o

interlocutor, que é Vereador no município de Holambra/SP e apoiador de

JAIR BOLSONARO, foi a ele apresentado e terceira pessoa falou: “Ele disse

que levantaram ele, Presidente, do chão naquela hora [...]”. Foi nesse instante que o

Presidente disse a frase “conseguiram te levantar, pô? Tu pesa o quê, mais de 7

arrobas, né?”

1 Todas as referências ao julgado estão disponível em:


https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340588165&ext=.pdf. Acesso em: 20 mai.
2022.
2 Acesso em: 20 mai. 2022.
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Assim, analisado o contexto fático, claramente a frase não configura

as elementares do tipo penal suscitado na notitia criminis e não tem o condão

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de ofender o bem jurídico tutelado.

Conforme enfatiza José Paulo Baltazar Júnior, o crime em análise é

doloso e “[e]xige-se, além do dolo, a intenção de menosprezar raça ou etnia”3

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Adverte Luiz Regis Prado que:

Em um Estado democrático e social de Direito, a tutela penal não pode


vir dissociada do pressuposto do bem jurídico, sendo considerada legítima,
sob a ótica constitucional, quando socialmente necessária. Isso vale dizer:
quando imprescindível para assegurar as condições de vida, o
desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da
liberdade – verdadeira presunção de liberdade – e da dignidade da pessoa
humana.4

Para haver a tipificação da conduta do Presidente da República, seria

necessário que ele tivesse se manifestado imbuído do propósito de discriminar

a população negra, ofendendo bem jurídico-penal, no caso, o direito à igualdade, o

respeito à personalidade e à dignidade da pessoa5.

3 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Eletrônico,
comentário ao art. 20 da Lei nº 7.716/1989.
4 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
Eletrônico, item III.2.
5 ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. 15.ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2021. Eletrônico, comentário ao art. 20 da Lei nº 7.716/1989.
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O contexto fático, porém, é absolutamente diverso. Não houve

nenhuma conotação relacionada com a cor da pele. A frase foi precedida de

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outra (“Ele disse que levantaram ele, Presidente, do chão naquela hora [...]”)

completamente dissociada de questões raciais.

É incabível, portanto, o recorte da fala de JAIR MESSIAS

BOLSONARO, retirando-lhe do contexto e atribuindo-lhe conotação que não

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tinha, afastando a tipicidade penal.

Por todo o exposto, não vislumbrando, sequer por hipótese, indícios

mínimos da existência de tipicidade penal capaz de conduzir a uma

persecução penal, tendo em conta, ainda, que o Supremo Tribunal Federal já

considerou o fato atípico (Inquérito nº 4.694) o Ministério Público Federal

requer o arquivamento da presente notitia criminis.

Requer-se, ainda, o apensamento dos presentes autos à Petição nº

10.363/DF para julgamento conjunto.

Brasília, data da assinatura digital.

Lindôra Maria Araujo


Vice-Procuradora-Geral da República

LMA/OBJ

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