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@2003byFundoLit«ârio
Copyright
Título origin^
and Judgement
Responsibility
Ciipa
Ettore Bottini
Foto de capa
©fattmann/Corbis/Stock Photos
Revisão técnica
André Duarte
Bethânia Assy o
rmuL
índice remissive!
DanielA. de André a
Data
Preparação
Claudia Abeling Biblioteca
Revisão
Olga Cafalcchio
&F 0 t
IsabelJorgeCury
Dato (QP)
Arendt, Hannah _
Ums,20W.
Bibliografia.
CSBN 978-85-359-0501-4
(2008]
EDITORA SCHVMCZITOA.
04532-002—São Paulo—sp
Fax(1113707-3501
www-companhiadasletras.com.br
Sumário
Prólogo....................................................................................................... 65
I — RESPONSABILIDADE
Responsabilidade pessoal sob a ditadura.................................. 79
II — JULGAMENTO
Reflexões sobre Little Rock............................................................. 261
Notas.........................................................
......................... 347
índice remissive........................................
......................... 367
Responsabilidade pessoal
sob a ditadura'
der por isso, comecei a compreender que talvez houvesse algo mais
7A
medo do meu livro que da possibilidade de que ele desse início a
mal, aos meus olhos era tão evidentemente sustentado pelos fatos
cação. Eu apontara para um fato que sentia ser chocante por con-
próprio julgar é errado: não pode julgar quem não estava presente.
Incidentalmente, esse foi o argumento de Eichmann contra o julga-
8o
não sabiam ou tinham esquecido como as coisas realmente tinham
se passado.
Há várias razões pelas quais a discussão do direito ou da capa-
cidade de julgar incide na mais importante questão moral. Duas
por assassinato ainda pode dizer: e assim, se não fosse pela graça de
Deus, procedo eu!
Assim, prima facie, tudo isso parece tolice elaborada, mas
quando muitas pessoas, sem terem sido manipuladas, começam a
falar tolice, e se entre elas estão pessoas inteligentes, há geralmen-
com a frase bíblica “Não julgues, para que não sejas julgado”, e se
81
que alguém seja responsável pelo que fez ou de que se podería
cie de falsa modéstia que ao dizer: “Quem sou eu para julgar?”, que
riosa que funciona pelas costas dos homens e confere a tudo o que
cem as raízes dos atos de Hitler até Platão, Joaquim di Fiore ou Nietz-
Revolução Francesa, tudo está bem. Mas assim que se chama Hitler
razões para uma acusação séria, mas o réu é toda a raça humana”.2
papas que foram piores do que Pio xn, precisamente porque toda
que preferem jogar todaa humanidade pela janela, por assim dizer,
que não é nem de ter cometido um crime, mas apenas uma falha
’^.ueezaaltstmuerto^a-do^^^^'-
84
sintomática das camadas educadas de certas sociedades, mas não
menos. Bem, aconteceu que nos seria dada uma ampla oportuni-
Bem, a impressão que temos hoje, depois de tantos anos, é que esse
85
mas freqüentemente repulsivas, em que a conduta das pessoas está
86
quase universal, não da responsabilidade pessoal, mas do
to pessoal nos primeiros estágios do regime nazista, é impossível
compreender o que realmente aconteceu. É verdade que muitas
vida por sua conspiração contra Hitler, tinha estado ligada ao regi-
me em algum momento. Ainda assim, creio que essa primeira
desintegração moral na sociedade alemã, mal perceptível aos de
fora, foi como um ensaio geral para o seu colapso total, que deve-
ria ocorrer durante os anos da guerra.
cutidas, mais claro se torna, acho eu, que realmente nos vemos
87
o crime, a reabilitação do criminoso, a força dissuasiva do exemplo
ser protegida contra eles. Que possam ser reabilitados pelas sen-
ridículo, sem falar no fato de que a lei e a punição por ela imposta
outro lado, esse mesmo senso de justiça nos informa que todas as
desapontaram.
não são previstas nas regras gerais, nem mesmo como exceções a
mento humano, daquilo que ele pode e não pode realizar. Pois,
quanto à naçào, é óbvio que toda geração, por nascer num conti-
nuum histórico, recebe a carga dos pecados dos pais, assim como a
bênção das proezas dos ancestrais. Quem quer que assuma a res-
Hamlet:
Em termos morais, é tão errado sentir culpa sem ter feito nada
90
guém o é. E quando escutamos, na recente discussão na Alemanha
9i
tica, e se acusamos, ou antes, avaliamos nessa estrutura de referên-
homem que tomava e podia tomar decisões, tendo assim total res-
te responsável?
era que toda essa história do dente da engrenagem não faz sentido
mos, era provável, e foi o que ele realmente fez até certo ponto;
92
dente da engrenagem — pior e mais importante que Hitler — foi
posta seria rejeitada como não essencial para o caso. Se ao réu fosse
93
em lermos de ciência política, isto é, como uma forma de governo
engrenagem num homem não implica que algo como ser dente
to. Essa interpretação não passaria de mais uma fuga das limita-
94
sistema nâo pode ser deixado fora de cogitação. Aparece na forma
não são a mesma coisa, e grande parte do que tenho a dizer se apli-
95
tes” mesmo do ponto de vista do partido no poder. Foi por essa
ções: nós, que parecemos culpados, somos de fato aqueles que per-
96
manecemos no emprego para impedir que coisas piores aconte-
rubado por dentro — não por uma revolução, mas por um coup
97
qual eram julgados. E o problema é que, embora isso fosse menti-
ra, não era uma mentira simples ou total. Pois o que tinha começa-
ções de elite das ss: até no Terceiro Reich havia muito poucas pes-
estado e o que quer que tenha feito, alega que aqueles que, sob um
com dois males, assim reza o argumento, é nosso dever optar pelo
para ser violentada para o bem de todas as mulheres, não deixe que
seja violentada. É nessa mesma veia, e lembrando claramente a
99
mente humana não está disposta a enfrentar realidades que, de
tecimentos reais.
mais bem definidos. Talvez saibam que, nos julgamentos dos cri-
jurisdição. Ora, a teoria por trás da fórmula dos atos de Estado afir-
Estado, assim diz o argumento, não pode ser restrita por limitações
100
legais ou considerações morais, válidas para os cidadãos privados
não é apenas que esses crimes não foram de modo algum induzi-
criminoso. Por isso, já não era o ato criminoso que, como exceção
101
, nn caso de crimes famosos como o assassi-
poder- por exemP . Muss0|ini> ou 0 assassinato do duque
102
das leis no Terceiro Reich, a bandeira preta da ilegalidade manifes-
ta pairava acima daquelas últimas ordens dadas por Himmler no
103
mos realmente essa faculdade e sejamos legisladores, cada um de
nós por tantos séculos, ela nào podia de repente ter sido perdtda. E
mos, e também em vista do fato de que ano após ano uma ordem
“nova ordem” era exatamente o que dizia ser — não apenas horri-
permitido.
Pois o cerne moral dessa questão jamais é atingido intitulan-
do-se o que aconteceu de “genocídio” ou contando-se os muitos
numa escala até mais grandiosa em tempos de paz. E esses atos não
eram cometidos por bandidos, monstros ou sádicos loucos, mas
pelos mais estimados membros da sociedade respeitável. Final-
105
índpnendentemente de filiação partidária e
em«Mva Mdem, por nenhuma
106
nossas experiências nos dizem que precisamente os membros da
sociedade respeitável, aqueles que não tinham sido afetados pela
107
moral da sociedade respeitável durante o regime de Hitler pode
ser mudados da noite para o dia, e que tudo o que então restará é o
eu, uma desculpa válida. A sua validade é tanto mais forte porque
parece ser necessária uma certa qualidade moral até para reconhe-
condições desesperadas.
Esse último ponto talvez se torne um pouco mais claro, quan-
ta, para aqueles que não só participaram, por assim dizer, a contra-
gosto, mas que achavam seu dever fazer o que quer que fosse
108
implicitamente a faculdade humana de julgamento» ou, em casos
109
compreensão de que ninguém, por mais forte que seja, pode reali-
zar alguma coisa, boa ou má, sem a ajuda de outros. O que temos
rebelião, para ver como essa arma poderia ser eficaz. É de fato uma
no
em questões políticas e morais. O único domínio em que a palavra
humano.
1964
in
Algumas questões de filosofia
moral1
pouco, depois de uma vida incrivelmente longa cujo ápice foi atin-
foi, como quase tudo o mais que ele representou com as suas con-
rarmos a sua grandeza. Ele tem sido visto como uma figura do
112
pejasse por um momento historicamente breve, para mostrar que
sã como parte da lei divina ou natural. Até que, sem grande alarde,
tudo isso desmoronou quase da noite para o dia, e então foi como
que poderia ser trocado por outro conjunto sem maior dificulda-
113
nar essas coisas—moralidade, com sua origem latina, e ética, com
mente de um sonho?
Sem dúvida, alguns já tinham tomado conhecimento de que
114
fama como na Grécia pré-socrática; pode ser a permanência da
115
século xvni. O aspecto relevante para nós,
ao primeiro terço os preinonições, mas com fatos.
116
tâncias pela revolução, a humanidade seguirá automaticamente os
poucos preceitos morais que têm sido conhecidos e repetidos
desde a aurora da história.
A esse respeito, os acontecimentos na Alemanha são muito
mais extremos e talvez também mais reveladores. Não há apenas o
fato horrível das fábricas de morte elaboradamente estabelecidas e
a total ausência de hipocrisia naqueles números muito substan-
ciais que estavam envolvidos no programa de extermínio. Igual-
mente importante, mas talvez mais assustador, era a colaboração
natural de todas as camadas da sociedade alemã, inclusive das eli-
tes mais antigas que os nazistas deixaram intocadas e que nunca se
identificaram com o partido no poder. Acho justificável, com base
em dados factuais, sustentar que moralmente, embora não social-
mente, o regime nazista foi muito mais extremo do que o regime
de Stálin nos seus piores momentos. Na verdade, o regime nazista
anunciava um novo conjunto de valores e introduzia um sistema
legal projetado de acordo com esses valores. Além disso, provava
que ninguém tinha de ser nazista convicto para se adaptar e para
esquecer da noite para o dia, por assim dizer, não o seu status social,
mas as convicções morais que antes acompanhavam essa posição.
Na discussão dessas questões, e especialmente na denúncia
moral geral dos crimes nazistas, é quase sempre negligenciado que
a verdadeira questão moral não surgiu com o comportamento dos
nazistas, mas daqueles que apenas se “organizaram” e não agiram
por convicção. Não é muito difícil ver e até compreender como
alguém pode decidir “revelar-se um vilão” e, dada a oportunidade,
tentar uma inversão do Decálogo, começando pelo comando
Matarás”, e terminando com o preceito “Mentirás”. Como sabe-
mos muito bem, em toda comunidade existem vários criminosos
e> apesar de a maioria padecer de uma imaginação um tanto limi-
tada, é possível admitir que alguns não são provavelmente menos
talentosos do que Hitler e alguns de seus carrascos. O que essas pes-
soas fizeram foi horrível, e o modo como organizaram primeiro a
Alemanha e depois a Europa ocupada pelos nazistas tem grande
interesse para a ciência política e o estudo das formas de governo;
mas nem um, nem outro propõe problemas morais. A moralidade
desmoronou e transformou-se num mero conjunto de costumes
— maneiras, usos, convenções a serem trocados à vontade — não
entre os criminosos, mas entre as pessoas comuns que, desde que
os padrões morais fossem socialmente aceitos, jamais sonhariam
em duvidar daquilo em que tinham sido ensinadas a acreditar. E
essa questão, isto é, o problema que ela suscita, não é resolvida se
admitimos, como devemos admitir, que a doutrina nazista não
permaneceu ativa entre o povo alemão, que a moralidade crimino-
sa de Hitler alterou-se novamente num piscar de olhos no mo-
mento em que a “história” anunciou a notícia da derrota. Assim,
devemos dizer que presenciamos o total colapso de uma ordem
“moral”não uma vez, mas duas vezes, e essa volta repentina à “nor-
malidade”, ao contrário do que muitas vezes se supõe complacen -
temente, só pode reforçar as nossas dúvidas.
Quando torno a pensar nas duas décadas passadas desde o
fim da última guerra, tenho o sentimento de que essa questão
moral permaneceu adormecida, porque foi ocultada por algo
sobre o qual é realmente muito mais difícil falar e com o qual é
quase impossível chegar a um acordo — o próprio horror na sua
nua monstruosidade. Quando nos confrontamos pela primeira
vez com esse horror, ele parecia transcender, não apenas para mim,
mas para muitos outros, todas as categorias morais, pois certa-
mente desmoronava todos os padrões jurídicos. Pode-se expressar
isso de várias maneiras. Eu costumava dizer: isso nunca deveria ter
acontecido, porque os homens serão incapazes de punir ou per-
doar. Não seremos capazes de reconciliar-nos com o fato, de che-
gar a um acordo com o acontecido, como devemos fazer com o q ue
é passado — quer porque era ruim e precisamos superá-lo, quer
porque era bom e não toleramos seu desaparecimento. É um pas-
sado que se tornou pior com o passar dos anos, em parte porque os
alemães por muito tempo se recusaram a processar os assassinos
no seu meio, mas também em parte porque esse passado não podia
ser “dominado” por ninguém. Até o famoso poder de cura do
tempo de certo modo nos faltou. Ao contrário, esse passado tem
conseguido tornar-se pior à medida que passam os anos, de modo
que somos às vezes tentados a pensar: isso nunca estará terminado
enquanto não estivermos todos mortos. Sem dúvida, isso se deve
em parte à complacência do regime Adenauer, que por muito
tempo não fez absolutamente nada a respeito dos famosos “assas-
sinos em nosso meio” e não considerava a participação no regime
de Hitler, a não ser que chegasse às raias da criminalidade, como
razão para desqualificar alguém para o serviço público. Mas essas
são, na minha opinião, explicações apenas parciais: o fato é que
esse passado também se revelou incapaz de ser “dominado” por
todo o mundo, e não apenas pela nação alemã. E a incapacidade de
o procedimento do tribunal civilizado chegar a um acordo com
esse passado de uma forma jurídica, a sua insistência em fingir que
esses novos assassinos não são de modo algum diferentes dos cri-
minosos comuns e que matavam pelos mesmos motivos, é apenas
uma conseqüência dessa situação, embora talvez a longo prazo seja
a mais fatal. Não vou discutir isso neste momento, pois tratamos
de questões morais, e não legais. O que desejava indicar é que o
mesmo horror inexprimível, essa recusa a pensar o impensável,
talvez tenha impedido uma reavaliação mais do que necessária das
categorias legais, assim como nos fez esquecer as lições estritamen-
te morais e, espera-se, mais acessíveis, que estão intimamente liga-
das com toda a história, mas que parecem questões laterais inofen-
sivas se comparadas ao horror.
Infelizmente, há mais um aspecto a ser considerado como um
obstáculo em nosso empreendimento. Como as pessoas acham
difieil com razão, viver com algo que lhes trra o folego e lhcs
exemplos para os quais não vale essa ressalva, e esses são na sua
120
claro, para esse ceticismo geral. E, no entanto, o simples procedi-
têm em comum o fato de que lidam com pessoas e não com siste-
mas ou organizações.
Ê uma inegável virtude do judiciário seu dever de focar a aten-
pergunta a ser feita não é mais: Como esse sistema funciona?, mas:
Por que o réu se tornou funcionário dessa organização?'
121
Isso não é negar, claro, que seja importante para as ciências
mais ajustados. Quando Hitler disse que esperava o dia em que ser
óbvia; essas pessoas não eram criminosas comuns, mas antes pes-
que esse interesse era talvez a incrível confusão moral que esses
que ousávamos julgar; pois não pode julgar quem não esteve nas
que são discutidos tópicos morais, não em geral, mas num caso
tisse à tentação de tanto dinheiro. E isso não era dito com cinismo
homem que julgou, e não o homem que errara, nem uma institui-
massa em particular.
grafa o que a lei moral exige, não havia muita dúvida de que em
caso de conflito a lei moral era a mais elevada e tinha de ser obede-
124
mos como naturais todos aqueles fenômenos que geralmente
supunha-se, carrega dentro de si mesmo uma voz que lhe diz o que
ria dizer mais do que o fato de a mente humana se guiar por exem-
o que é certo e que o seu oposto é errado. Sem dúvida, Kant acredi-
nem da filosofia para saber o que se deve fazer a fim de ser honesto
125
todos,ele teria respondido: na estrutura racional da mente huma-
por elas, e só faz uma exceção temporária a essas leis para seu pró-
prio benefício.
com a sua própria razão e, por isso, nas palavras de Kant, deve des-
prezar-se. Que esse medo do desprezo por si próprio não bastaria
para garantir a legalidade, é óbvio; mas, desde que se transpusesse
para uma sociedade de cidadãos respeitadores da lei, supunha-se
de certo modo que o desprezo por si próprio funcionaria. Kant
sabia, claro, que o desprezo por si próprio, ou melhor, o medo de
explicação era que o homem pode mentir para si mesmo. Por isso,
ele declarou repetidamente que o “ponto” realmente “penoso ou
desagradável” na natureza humana é a mendacidade, a capacidade
126
de mentir? À primeira vista, essa afirmação parece surpreendente,
127
questões. A filosofia não tem lugar onde quer que a religião, e espe-
tados que juntos contêm o que ele próprio chama a filosofia das
coisas humanas: a sua Ética a Nicômaco e a sua Política. O primei-
128
ao ponto em que tem de discordar do mestre, e em nenhum mo-
mento a diferença é mais evidente do que quando ele sustenta que
toda falha ou pecado é uma violação das leis prescritas para a natu-
Mas não há prescrição, nem comando nesse sentido, que possa ser
129
a amam?” Ou, em outras palavras: os deuses amam a bondade por-
que ela é boa, ou nós a chamamos de boa porque os deuses a amam?
Sócrates nos deixa com a pergunta, e um crente, sem dúvida, está
fadado a dizer que é a sua origem divina a marca distintiva entre os
bons princípios e os maus—eles estão de acordo com uma lei dada
por Deus à natureza e ao homem, o apogeu da sua criação. Na
medida em que o homem é criação de Deus, as mesmas coisas que
Deus “ama” também devem lhe parecer boas; nesse sentido, Tomás
de Aquino certa vez observou, como que em resposta à pergunta de
Sócrates: Deus ordena o bem porque o bem é bom (em oposição a
Duns Scotus, para quem o bem é bom porque Deus o ordena). Mas
mesmo nessa forma muito racionalizada, o caráter obrigatório do
bem para o homem reside no mandamento de Deus. Disso resulta
o princípio muito importante de que na religião, mas não na
moralidade, o pecado é primariamente compreendido como
desobediência. Em nenhum ponto da tradição estritamente reli-
giosa, os senhores encontrarão a resposta inequívoca e realmente
radical que Kant deu à pergunta socrática: “Não devemos conside-
rar as ações como obrigatórias porque elas são mandamentos de
Deus, mas devemos considerá-las como mandamentos divinos
porque temos uma obrigação interior para com elas”.6 Só naqueles
pontos em que essa emancipação dos mandamentos religiosos foi
alcançada, nas próprias palavras de Kant em Conferências sobre a
Ética:“Nós mesmos somos os juizes da revelação...”, em que assim
a moralidade é um assunto estritamente humano, é que podemos
falar de filosofia moral.7 E o mesmo Kant, que na sua filosofia teó-
rica estava tão preocupado em manter aberta a porta para a reli-
gião, mesmo depois de ter mostrado que não podemos ter conhe-
cimento nessas questões, foi igualmente cuidadoso em bloquear
todas as passagens que podem ter levado de volta à religião na sua
filosofia moral ou prática. Da mesma forma como “Deus não é em
nenhum sentido o autor do fato de que o triângulo tem três ângu -
los”, assim “nem mesmo Deus pode ser o autor da [das leis da]
moralidade” (Conferências sobre a ética, 52). Nesse sentido inequí-
voco, até Kant, a filosofia moral tinha cessado de existir depois da
Antigüidade. Os senhores provavelmente pensarão em Spinoza,
que deu à sua obra principal o nome de Ética, mas Spinoza começa
a sua obra com uma seção intitulada “Sobre Deus”, e dessa primei-
ra parte tudo o mais é derivado. Se a filosofia moral tem existido ou
não desde Kant, essa é ao menos uma questão em aberto.
A conduta moral, até onde se sabe, parece depender primei-
ramente do relacionamento do homem consigo mesmo. Ele não
deve se contradizer abrindo uma exceção em seu favor, ele não deve
se colocar numa posição em que teria de desprezar a si mesmo. Em
termos morais, isso deveria bastar, não só para torná-lo capaz de
distinguir o certo do errado, mas também para fazer o certo e evi-
tar o errado. Assim Kant, com a coerência de pensamento que é a
marca do grande filósofo, coloca os deveres que o homem tem para
consigo à frente dos deveres para com os outros — algo que é cer-
tamente muito surpreendente, estando em curiosa contradição
com o que geralmente compreendemos por comportamento
moral. Não é certamente uma questão de preocupação com o
outro, mas de preocupação consigo mesmo, não é uma questão de
humildade, mas de dignidade humana e até de orgulho humano.
O padrão não é nem o amor por algum próximo, nem o amor por
si próprio, mas o respeito por si mesmo.
Isso aparece de forma muito clara e bela naquela passagem da
Crítica da razão prática de Kant que todos conhecem — e em geral
conhecem de forma equivocada. Refiro-me, é claro, a: “Duas coi-
sas enchem a mente com uma admiração e reverência sempre nova
e crescente, quanto mais freqüentemente e mais constantemente
refletimos a seu respeito: o céu estrelado acima de mim e a lei moral
dentro de mim”. Do que se pode concluir, sem prosseguir a leitura,
que essas “duas coisas” estão no mesmo nível e influenciam a
mente humana da mesma maneira. Bem, o que acontece é o opos-
dade e até de todo o mundo dos sentidos”.8 Por isso, o que me salva
tória para todos os homens, até para todos os seres racionais. Nas
132
difícil que pareça, pode ser resolvido até para uma raça de demô-
a lei que estabeleço para mim mesmo é válida para todas as criatu-
Pois se não quero contradizer a mim mesmo, ajo de tal modo que
a máxima de meu ato pode se tornar uma lei universal. Sou o legis-
tude para com a lei do país deve-se, por sua vez, à transformação
que o termo tinha sofrido pelo uso religioso, no qual a Lei de Deus
realmente só pode se dirigir ao homem na forma de um Manda-
133
mas o fato de que Deus assim nos ordenara. Nesse ponto nada conta
senão a obediência.
A esses dois significados interligados da palavra devemos
agora acrescentar o uso muito importante e completamente dife-
rente criado pela combinação do conceito de lei com a natureza. As
leis da natureza também são, por assim dizer, obrigatórias: sigo
uma lei da natureza quando morro, mas não se pode dizer, exceto
metaforicamente, que a ela obedeço. Assim Kant distinguia entre
as“leis da natureza” e as “leis da liberdade” morais, que não contêm
necessidade, apenas uma obrigação. Mas, se compreendemos por
lei tanto ordens a que devo obedecer quanto a necessidade da natu-
reza a que estou de qualquer modo sujeito, então o termo “lei da
liberdade” é uma contradição em termos. A razão pela qual não
nos damos conta da contradição é que mesmo em nosso uso ainda
estão presentes conotações muito mais longínquas da Antigüidade
grega e especialmente romana, conotações que não têm relação
com mandamentos, nem com obediência ou necessidade.
Kant definiu o imperativo categórico contrastando-o com o
imperativo hipotético. O último nos diz o que devemos fazer, se
quisermos atingir um certo objetivo; indica um meio para um fim.
Na verdade, não há, em absoluto, imperativo no sentido moral. O
imperativo categórico nos diz o que fazer sem referência a outro
fim. Essa distinção não é de forma alguma derivada dos fenômenos
morais, mas extraída da análise de Kant de certas proposições na
Crítica da razão pura, em que se encontram proposições categóri-
cas e hipotéticas (bem como disjuntivas) na tabela de julgamentos.
Uma proposição categórica poderia ser, por exemplo: este corpo é
pesado; a que poderia corresponder uma proposição hipotética: se
k 134
compele na forma de um imperativo (ninguém diria a outro:
“Dirás,‘dois mais dois são quatro’”) — considera-se que a forma
imperativa é necessária, porque aqui a proposição racional se diri-
ge à Vontade. Nas próprias palavras de Kant: “A concepção de um
princípio objetivo, na medida em que coage uma vontade, é uma
ordem (da razão), e a fórmula dessa ordem é chamada um impera-
tivo”. {Fundamentos da metafísica dos costumes, 30).
A razão então comanda a vontade? Nesse caso a vontade já
não seria livre, mas estaria sob o ditame da razão. A razão só pode
dizer à vontade: isto é bom, de acordo com a razão; se quiser alcan-
çá-lo, você deve agir de acordo. O que na terminologia de Kant
seria uma espécie de imperativo hipotético ou nem seria um impe-
rativo. E essa perplexidade não se torna menor quando escutamos
que “a vontade nada mais é do que a razão prática” e que “a razão
infalivelmente determina a vontade”, de modo que devemos con-
cluir que a razão determina a si mesma ou, como Kant concluiu,
que “a vontade é a faculdade de escolher apenas o que a razão
reconhece como [...] bom” {Fundamentos da metafísica dos costu-
mes, 29). Disso se seguiría que a vontade não passa de um órgão
executivo para a razão, o segmento de execução das faculdades
humanas, uma conclusão que está na mais flagrante contradição
com a famosa primeira frase da obra que citei, Fundamentos da
metafísica dos costumes: “Não se pode possivelmente conceber
nada no mundo — nem mesmo além do mundo — que pudesse
ser chamado bom sem pré-requisitos, exceto uma boa vontade”
{Fundamentos da metafísica dos costumes, 9).
135
de que Kant sentiu de dar à sua proposição racional um caráter
fez uma afirmação que, segundo ele, era uma afirmação da razão,
e o problema aqui, desde então, tem sido que essa afirmação não
pode ser provada. A sua validade não pode ser demonstrada sem
mente atos cruéis, querer o mal pelo mal. Sem dúvida, o catálogo
saiba; e essa talvez seja a razão por que Tertuliano e também Tomás
apraz aos santos não são os sofrimentos como tal, mas a prova da
justiça divina.
que nunca tivessem nascido. Mas Jesus não nos diz qual é a nature-
za dessas ofensas escandalosas: sentimos a verdade de suas pa^k
127
Estaríamos numa situação um pouco melhor se nos permitís-
rio que tenta o homem, mas que ele também é Lúcifer, o portador
importante sobre Claggart e lago é que eles agem por inveja daque-
les que sabem que são melhores que eles próprios; o que é inveja-
138
despreza respeita pelo menos aquele dentro de si que despreza!
li
são, ética e moral, significam muito mais do que a sua origem eti-
errado sempre foi conhecido. Ficamos surpresos que toda essa divi-
ginais dessas questões (mores e ethos), que sugerem que não passam
nos dispusemos a jogar a filosofia moral pela janela por essa razÉb
139
gioso nessa questão pesa tanto quanto a origem etimológica das
como a ti mesmo”, “Não faças aos outros o que não queres que
maneira que a máxima da sua ação possa se tornar uma lei geral
e características afins.
140
que junto com meden agan, nada em demasia, pode e tem sido con-
que não podem ser provadas, que são axiomáticas. Disso se segui-
imperativo categórico de Kant, que bem poderia ter sido uma afir- j W
mação categórica, como a afirmação de Sócrates: é melhor sofreroj w
mal do que o cometer, e não: deves antes sofrer o mal do que prati-
141
consentimento da comunidade ou pela consciência, que é a amea-
tradizer-se a si mesmo sào mais uma vez aqueles que vivem consi-
do medo, e havia muitas razões para tal. Mas nunca duvidaram que
os crimes permaneciam sendo crimes mesmo se legalizados pelo
ção, mas agiam de acordo com algo que lhes era evidente por si
mesmo, mesmo que já não fosse evidente por si mesmo para aque-
não tinha caráter obrigatório e dizia: “Isso não posso fazer”, em vez
matar pessoas inocentes assim como não posso dizer: “Dois mais
142
obrigação de” com não quero ou não posso por quaisquer que
sejam as razões. Moralmente, as únicas pessoas confiáveis nos
mesa”, são aquelas que dizem “não posso” " A desvantagem dessa
tem absolutamente nada a ver com a ação, não diz mais do que:
143
moral cristã—que as pessoas comumente consideram certo aqui-
vezes mais do que era usual, com o resultado, claro, de que passou
ro que, dizia, o tinha assaltado. Pois a sua razão real para mudar a
máxima: wDê algo a todo aquele que lhe pedir alguma coisa?”
ser ensinados a “não ser bons”, e ele não queria dizer que eles deviam
144
tos dos morais e religiosos, bem como dos criminosos. Para Ma-
salvação da sua alma, e pensa que as pessoas que estão mais preocu-
pela sociedade. Mas Rousseau não quer dizer mais do que o fato de
que a sociedade torna os homens indiferentes aos sofrimentos de |l.:
seus próximos, enquanto o homem por natureza tem uma “repug- £
nância inata a ver os outros sofrerem” — por isso, ele fala de certas D
partilhar com outras espécies animais, das quais o oposto é a per- <
versão, não menos física e não menos parte de nossa natureza ani- -
lá-las, de por que via em toda inclinação uma tentação para desviar
para fora da janela para olhar a rua, que estabeleço contato com o
mundo. Em nenhuma circunstância a minha inclinação podfeser
145
linguagem de Kant, inclinação significa ser influenciado por coisas
fora de mim mesma, coisas que posso desejar ou com as quais tal-
vez sinta uma afinidade natural; e esse ser influenciado por alguma
atraída ou repelida por algo ejá não sou, portanto, um agente livre.
quer coisa que não seja ela mesma. E como a liberdade é definida
iita que todo homem realmente concorda com ele — sem o saber
146
circula a convicção, partilhada por todos os interessados, de que
todo homem deseja e faz o que pensa ser o melhor para si mesmo;
147 B
para um malfeitor ser punido do que continuar impune, e que é
seu teor subjacente invariavelmente diz: se você não pode ser con-
dos Abençoados.
inteiro está contra o seu ponto de vista. Bem ao final do diálogo ele
lugar e de época para época. De modo que “aquilo que é certo (ta
aparece, mas que, no entanto, faz uma clara alusão ao Górgias. Nas
deve inventar, por assim dizer, um mito com o qual ameaçar a mul-
tidão. A persuasão, diz ele, não será possível, porque essas coisas
claro, serão mais uma vez criadas pelo homem e não “naturais”,
que o são, porque elas estão “em sossego” e não mudam. Essas leis
149
podemos dizer, contra quem Sócrates se descreve como o amante
da filosofia, que não diz uma coisa hoje e outra amanhã, mas sem-
doria, ele nega muito enfaticamente ser sábio: a sua sabedoria con-
siste meramente em saber que nenhum mortal pode ser sábio.
que nem você, nem ninguém mais, será capaz de rompê-los”. Toda
pessoa que sabe falar e tem conhecimento das regras da contradi-
ção deve ser então compelida pela conclusão final. Os primeiros
150
diálogos platônicos podiam ser facilmente lidos como uma gran-
são feitas pela maioria fraca para protegê-los contra os poucos que
são fortes. As duas teorias são opostas apenas na aparência: a ques-
tão do certo e errado em ambos os casos é uma questão de pods', e
podemos passar sem dificuldades do Górgias para a RepúblSa
151
outros). Na República, há dois discípulos de Sócrates presentes ao
diálogo entre Sócrates e Trasímaco, Glaucon e Adimanto, e eles não
ficam mais convencidos pelos argumentos de Sócrates do que o
próprio Trasímaco. Por isso, defendem a causa de Trasímaco.
Sócrates, depois de escutá-los, exclama: “Deve haver realmente
alguma qualidade divina na sua natureza (physis, ver República
367e), se vocês podem defender a causa da injustiça com tanta elo-
qüência sem que vocês próprios estejam convencidos de que ela é
melhor do que a justiça”. Não conseguindo convencer os seus pró-
prios discípulos, Sócrates fica sem saber o que fazer a seguir. E ele
passa de sua busca estritamente moral (como diriamos agora)
para a questão política de qual é a melhor forma de governo, apre-
sentando como desculpa o fato de ser mais fácil ler as letras gran-
des do que as pequenas, e supondo que descobrirá, num exame do
Estado, as mesmas características que queria analisar nas pessoas
— uma vez que o Estado é apenas o homem escrito em tamanho
grande. Em nosso contexto, é decisivo o fato de ser claramente a
sua própria natureza o que convenceu Glaucon e Adimanto da
verdade de que a justiça é melhor do que a injustiça; mas quando
passam a discutir sobre o assunto, não são convencidos pelos
argumentos de Sócrates e mostram que podem argumentar muito
bem e muito convincentemente contra o que sabem ser verdade.
Não é o logos que os convence, mas o que vêem com os olhos do
espírito, e a Parábola da Caverna é também, em parte, a história da
impossibilidade de traduzir convincentemente em palavras e
argumentos essa evidência vista.
Se pensarmos nessas questões até o final, vamos chegar facil-
mente à solução platônica: aqueles poucos cuja natureza da alma
permite que vejam a verdade não precisam de nenhuma obrigação,
de nenhum: Assim farás... senão”, o que nem sequer faria sentido
para eles, porque o que importa é evidente por si. E como aqueles
que não conseguem ver a verdade não podem ser convencidos por
152
argumentos, é preciso encontrar alguns meios para obrigá-los a se
comportar, para forçá-los a agir sem estarem convencidos, como se
eles também tivessem “visto”. Esses meios são, evidentemente,
aqueles mitos de uma Vida Futura com que Platão costumava con-
cluir muitos dos diálogos que tratam de questões morais e políticas
— histórias que ele introduz, a princípio, com bastante hesitação,
talvez apenas como histórias da carochinha, e finalmente, na sua
última obra (as Leis), abandona completamente.
Detive-me sobre esse ensinamento especificamente platônico
para lhes mostrar como fica a questão — ou devemos dizer ficava?
— se não confiamos na consciência. Apesar da sua origem etimo-
lógica (isto é, a sua identidade original com a consciência de si), a L
consciência só adquiriu o seu caráter moral específico quando foi
compreendida como um órgão pelo qual o homem escuta a pala-
C
vra de Deus, em vez de suas próprias palavras. Por isso, se deseja- <
IL
mos falar sobre essas questões em termos seculares, temos muito
pouco a que recorrer além da filosofia antiga pré-cristã. E não é
extraordinário encontrar ali, no meio de um pensamento filosófi-
co que não está de modo algum preso a um dogma religioso, uma
doutrina do Inferno, Purgatório e Paraíso, completa com um Juízo
Final, recompensas e castigos, a distinção entre pecados veniais e
mortais, e todo o resto? A única coisa que procuraremos em vão é j W
deixar uma coisa bem clara: que a nossa é a primeira geração, dej^e
153
ma voz divina é algo, para dizer o mínimo, sujeito a dúvidas. O fato
respeito a atos criminosos, ainda contam com esse órgão para ensi-
nar a todo homem o que é certo e o que é errado, mesmo que ele
não seja versado nos livros da lei, não é argumento para a sua exis-
meiro, diz que Cálicles “não estará de acordo consigo mesmo, mas
acrescenta que, no que lhe diz respeito, acredita que “seria melhor
para mim que a minha lira ou um coro que eu dirigisse fossem desa-
finados ou estridentes, com dissonâncias, e que multidões de
nado com esse eu como o meu próprio eu. Esse eu não é de modo
algum uma ilusão; faz-se ouvir falando para mim — falo comigo
também revela por que é melhor sofrer o mal do que fazer o mal: se
crime que permanece oculto aos olhos dos deuses e dos homens,
mais de uma vez, realmente não existe: assim como sou meu parcei-
com ele. E ele não é calado. Essa é a única razão apresentada por
Sócrates, e a questão não é só por que essa razão não convence o seu
opositor, mas também por que é uma razão suficiente para aquelas
pode querer tal coisa. Se pratico o mal, vivo junto com um malfei-
las pessoas que elogiam o tirano que chegou ao poder por meio de
assassinato e fraude.
No Górgias, existe apenas uma referência curta ao que consflt
155
tui esse relacionamento entre o Eu (I) e o Si Mesmo (self), entre
car o que penso, embora eu próprio não esteja muito certo a esse
os dois falam igual e já não estão mais incertos, o que, então, esta-
tanto óbvio.1’
te para eles não fazer nada que pudesse estragar esse diálogo. Se a
157
***
158
lembrar do que não pensou de maneira exaustiva ao falar a respei-
to do assunto consigo mesmo.
Entretanto, apesar de o pensamento, nesse sentido não técni-
co, não ser certamente prerrogativa de nenhum tipo especial de
homens, filósofos ou cientistas etc. — nós o encontramos presen-
te em todas as esferas da vida e podemos descobri-lo inteiramente
ausente no que chamamos de intelectuais —, não se pode negar
que seja certamente muito menos freqüente do que pensava
Sócrates, embora se espere que seja um pouquinho mais freqüen-
te do que temia Platão. Sem dúvida, posso me recusar a pensar e
lembrar, e ainda assim permanecer muito normalmente humana.
L
Entretanto, esse perigo é muito grande não só para mim mesma, c
pois minha fala, tendo perdido a mais elevada realização da capa-
L
cidade humana de falar, vai se tornar conseqüentemente sem
sentido, mas também para os outros, que são forçados a viver com
uma criatura possivelmente muito inteligente e, mesmo assim, u
sem nenhuma capacidade de pensar (thoughtless). Se me recuso a
lembrar, estou realmente pronta a fazer qualquer coisa — do
mesmo modo como a minha coragem seria absolutamente teme-
rária se a dor, por exemplo, fosse uma experiência imediatamente
159
ram na questão, e, sem lembrança, nada consegue detê-los. Para Os
por não ter raízes, não tem limitações, pode chegar a extremos
dos bárbaros como logon echon), e disse que falar sobre uma per-
lidade, o que não tem nada a ver com talento e inteligência, ela é o
mim mesma, assim como posso amar aos outros, mas de ser mais
ependente desse parceiro silencioso que carrego comigo mesma,
o mais à sua mercê, por assim dizer, do que talvez seja o caso
160
com qualquer outra pessoa. O medo de perder a si mesmo i legíti
nos vemos numa situação em que não há ninguém mais para nos
fazer companhia. Desse ponto de vista, é realmente verdade que a
minha conduta com os outros vai depender da minha conduta
comigo mesma. Só que não está envolvido aí nenhum conteúdo
ni
162
(consciousness), mais do que a ciência de mim mesma (self-aware-
(loneliness) e do isolamento. I
O estar só significa que, apesar de estar sozinha, estou junto £
cisma, essa dicotomia interior em que posso fazer perguntas a mim <
163
torno uma de novo. Como essa uma que agora sou está sem com-
pela solidão. Para isso, não preciso estar sozinha: posso estar muito
que é ele próprio cidadão, mas que perdeu contato com seus con-
ativo do que quando não faço nada» nunca estou menos sozinho do
pensamento.
Se, por outro lado, chega-se a descobrir o estar só a partir do
melhor sofrer o mal do que fazer o mal”, que, como vimos, baseia-
165
^
*
emvis,.d0pro«Sso “"MNa‘lad0<!UedÍSSemOSé’«-
uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser
de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou
da; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nas-
Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam
neste momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em
seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem
166
cidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a
perda do estar só, já não podemos ficar surpresos com o fato de que
Delfos: Sis tu tuus et ego ero tuus (“Se tu és teu, eu [isto é, Deus] serei
teu”). A base de toda a conduta, diz ele, é “que escolho ser eu
mesmo” (ut ego eligam mei ipsis esse), e o homem é livre porque
Deus deixou-o livre para ser ele mesmo, se assim o quiser (ut sim,
168
quando estou só ou com um outro eu, mesmo quando realizado na
169
j ;„d™os supostam®'' Para da “"«Id.,
necerá inteiramente negativa. Ela nunca lhe dirá o que fazer, ape-
nas impedirá que faça certas coisas, mesmo que elas sejam feitas
por todos ao seu redor. Não se deve esquecer que o próprio proces-
de pensar é incompatível com qualquer outra atividade. A
170
e o desprezo de Platão pelos buliçosos, aqueles que estão sempre
ativos e nunca param, é um estado de espírito que, numa ou nou-
tra forma, vai aparecer em todo filósofo verdadeiro. Essa tensão, no
entanto, tem sido atenuada por uma noção que também tem sido
cara a todos os filósofos, a idéia de que pensar é igualmente uma
forma de agir; que pensar, como às vezes se diz, é uma espécie de
«açã0 interior”. Há muitas razões para essa confusão, razões que
são irrelevantes quando o filósofo fala em defesa própria contra as
recriminações vindas dos homens ativos e dos cidadãos, e razões
relevantes que se originam da natureza do pensamento. E o pensa-
mento, em contraposição à contemplação, com a qual é muito fre-
qüentemente equiparado, é realmente uma atividade e, além disso,
uma atividade que tem certos resultados morais, isto é, uma ativi-
dade em que aquele que pensa se constitui em alguém, em uma
pessoa ou uma personalidade. Mas atividade e ação não são a
mesma coisa, e o resultado da atividade de pensar é uma espécie de
subproduto com respeito à própria atividade. Não é idêntico à
meta que um ato busca alcançar e visa conscientemente atingir. A
distinção entre pensamento e ação é freqüentemente expressa no
contraste entre Espírito (Spirit) e Poder, pelo qual Espírito e Impo-
tência são automaticamente igualados, e há realmente mais do que j
um grão de verdade nessas expressões.
A principal distinção, em termos políticos, entre Pens
mento e Ação reside no fato de que, quando estou pensando, estqjl
apenas com o meu próprio eu ou com o eu de outra pessoíyjíto
passo que estou na companhia de muitos assim que começo a
Para os seres humanos, que não são onipotentes, o poder só^
residir numa das muitas formas de pluralidade humana, enqyfcn-
to todo modo de singularidade humana é impotente por def&i-
ção. É verdade, entretanto, que até na singularidade ou dualitjSe
dos processos de pensamento a pluralidade está de certo mcK^
embrionariamente presente, na medida em que só consigo pen^B
dividindo-me em duas, apesar de ser uma. Mas esse dois-em-um,
no marginal.
dos séculos xix e xx—, nada resta senão o exemplo de Sócrates, que
pode não ter sido o maior dos filósofos, mas ainda é o filósofo par
posta será sempre a resposta socrática: “Tenho por vocês a mais alta
vida”.
não matar e a nova ordem de matar —, mas eles podem ser igual-
homem que escuta a voz de Deus e adotada mais tarde pela filoso-
que estar em paz comigo mesma, que é a condição sine qua non do
sabemos, apenas dirá: não posso e não o farei. Como está relacio-
so para a ação.15
enfureceu seus críticos. Se Kant disse: está errada toda máxima que
Sócrates tivesse dito: está errado todo ato em vista do qual não
aonde quer que fosse e o que quer que fizesse, fosse o seu próprio
agente, esse só pode dizer: “Isso não posso fazer”, ou: “Isso eu nunca
antes, mas sem conseqüências fatais. Nesse ponto surge uma dis-
174
tinção entre as transgressões, tais como aquelas que enfrentamos
todos os dias, com as quais sabemos como lidar e das quais sabe-
mos como nos livrar, quer pela punição, quer pelo perdão, e, por
nas um passo para concluir que aquele que cometeu tal ato nunca
tais; indica que esses obstáculos não podem ser removidos tão
que nunca tivesse nascido, pois essa expressão faz com que se leigí
175 A.
quando discutir a natureza do julgamento. Hoje vou apenas men-
passa a decidir qual delas está certa e qual está errada, de repente e
enredo vai para a frente e para trás até que finalmente perguntam
estar no céu sem Ele”. A idéia é que tanto Cícero como Eckhart con-
176
o resultado seria uma definição do agente e o modo como ele agiu,
tema legal. Pois se é verdade que acusamos alguém pelo que fez, é
mas o assassino, a sua pessoa, assim como ela aparece nas circuns-
tinham feito nada por sua própria iniciativa, que não tinham tido
do por Ninguém, isto é, por um ser humano que se recusa a ser uma
recusa a pensar sobre o que faz, isto é, a voltar e lembrar o que fez
(que é teshuvah, isto é, arrependimento), realmente deixou de se j
RH n i imi A I IMM
questões políticas, como a constituição de comun idades e governo,
comum. Assim, vou falar sobre a ação não política, que não ocorre
são relações com outros eus, isto é, com amigos, nem predetermi-
tar lhes dar, muito sucintamente, uma breve análise da sua função
vou começar com uma simples ilustração. Vamos supor que temos
pre significou ser atraído por algo fora de mim. Isso era natural e
desejo era decidida, segundo os antigos, pela razão. Se, por exem-
plo, sou sujeito a um certo tipo de alergia, a razão me diz para não
e da força que a razão tem sobre eles, por outro. Vou comer os meus
que a minha razão é mais fraca que meu desejo. A famosa oposição
178
podem ser controladas pela razão, retrocede às antigas noções
pode dizer sim ou não aos preceitos da razão, de modo que ceder
za, mas pela minha vontade, uma terceira faculdade. A razão não é
razão, assim como posso decidir contra a mera atração dos objetos
uma posição contra o que a razão me diz que é certo, e em todo ato
co. Por certo, é bastante estranho para nós observar que a qÇestão
179
razão ou no desejo. O que quer que a razão me diga por um lado
ao ouvir de seu senhor: “Você não é livre porque não pode fazer
180
isto ou aquilo”, responderá: “Eu nem quero fazer tal coisa, por isso
sou livre”.
Afirmou-se, creio que foi Eric Voegelin, que independen-
temente do que compreendamos pela palavra“alma”, isso era com-
pletamente desconhecido antes de Platão. No mesmo sentido, gos-
taria de sustentar que o fenômeno da vontade, em todos os seus
emaranhamentos complicados, era desconhecido antes de Paulo,
e que a descoberta de Paulo estava ligada da forma mais estreita
possível com os ensinamentos de Jesus de Nazaré. Já mencionei o
“Ama a teu próximo como a ti mesmo”. Os senhores devem saber
que essa expressão dos Evangelhos é na verdade uma citação do
Antigo Testamento; a sua origem é hebraica, e não cristã. Men-
cionei a frase porque nela também vemos que o eu é o padrão fun-
damental do que devo e do que não devo fazer. Vocês também
devem lembrar que Jesus disse contra essa regra: “Mas eu vos digo,
amai os vossos inimigos, abençoai os que vos amaldiçoam, fazei o
bem àqueles que vos odeiam” etc. (Mateus 5,44). Isso ocorre quan-
do Jesus radicaliza todos os antigos preceitos e ordens, como quan-
do diz: “Ouvistes o que foi dito por aqueles dos tempos antigos:
Não cometerás adultério. Mas eu vos digo: Todo aquele que olh
para uma mulher com desejo já cometeu adultério com ela no
coração” (Mateus 5, 27-28), e outras afirmações semelha
nenhuma das quais é alheia ao ensinamento hebraico, send e- k
nas muito intensificada. O mesmo é verdade, em certa medida,
para a ordem “ama a teu inimigo”, pois já encontramos algo com
um tom semelhante nos Provérbios (25,21), nos quaisse diz: “Se o
teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer; e se ele tem sede, dá-lhe de
4
beber”, exceto que Jesus não acrescenta: “Pois amontoarás carvões
vosso Pai que está no Céu”. Nessa forma, “ama teu inimigo” é mais
181
do que a mera intensificação do preceito hebraico. Isso se torna
te o outro.
Esse curioso desprendimento de si (selflessness), a tentativa
deliberada de extinção do eu para o bem de Deus ou para o bem de
meu próximo é na verdade a própria quintessência de toda ética
mento. E assim como Sócrates sabia muito bem que o seu amor
pela sabedoria estava solidamente baseado no fato de que nenhum
homem pode sersábio, descobrimos em Jesus a sólida convicção de
que seu amor pela bondade estava baseado no fato de que nenhum
homem pode ser bom: “Por que me chamas de bom? Ninguém é
bom, exceto um único, que é o nosso Pai que está no Céu”. E assim
estamos cientes do que fazemos. Nesse caso não conta senão o dito:
“Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita”, c
nem sequer basta: “Toma cuidado para não dar esmolas diante dos
182
homens e ser visto por eles” (Mateus 6,2); devo estar, por assim
dizer, ausente de mim mesma e não ser vista por mim. Nesse sen-
tido e no sentido de que falamos antes sobre a solidão, o homem
que se apaixonou pela prática do bem embarcou na carreira mais
solitária que pode haver para o ser humano, a não ser pela compa-
nhia e testemunho de Deus, se acreditar em Deus. Tão forte é esse
elemento de real solidão em toda tentativa positiva de praticar o
bem e não se contentar em evitar o mal que até Kant, que sob
outros aspectos foi tão cuidadoso em eliminar Deus e todos os pre-
ceitos religiosos da sua filosofia moral, invoca Deus para que pres-
te testemunho da existência da boa vontade, inexplorável e não
detectável em caso contrário.
Penso ter discutido em poucas palavras a natureza extraordi-
nariamente paradoxal da afirmação de Sócrates e o fato de que nós,
pelo hábito e pela tradição, já não temos ouvidos sensíveis para
compreendê-la. O mesmo pode ser dito com ênfase até maior para
a radicalização dos antigos mandamentos hebraicos no ensina-
mento de Jesus. A pressão que ele impôs aos seus seguidores deve
ter ido além do suportável, e a única razão por que não a sentimos
mais é que já não a levamos a sério. E a pressão desse ensinamento
talvez não tenha sido sentida por ninguém com mais força do que.
11
vel que os homens distingam o certo do errado,“pois onde não exis-
te a lei, não existe a transgressão” (Romanos, 4, 15); assim, “pela lei
vem o conhecimento do pecado” (Romanos, 3,20). Ainda assim, e
essa é a pressuposição do que se segue, a Lei que estabelece clara-
mente o que é certo e o que é errado não atingiu de modo algum o
seu objetivo; ao contrário, Paulo, citando um trecho dos Salmos,
ainda estou numa posição em que devo dizer: eu não posso. Por
nua a querer, por assim dizer, e quanto mais quer mais claro apare-
184
ce a sua insuficiência. A vontade aparece aqui como um tipo de
árbitro — liberum arbitrium — entre o espírito que conhece e a
carne que deseja. Nesse papel de árbitro, a vontade é livre; isto é,
decide de forma espontânea. Nas palavras de Duns Scotus, o filó-
sofo do século Xiii que, contra Aquino, insistiu na primazia da von-
tade em relação a todas as outras faculdades humanas: “Apenas a
vontade é a causa total da volição na vontade” (nihil aliuda volun-
tate est causa totalis volitionis in voluntate). Mas apesar de a vonta-
de ser livre, o homem carnal, embora possua essa faculdade de
liberdade, não é nada livre. Ele não é bastante forte para fazer o que
quer; todos os seus pecados e transgressões podem ser compreen-
didos como fraquezas, como pecados veniais ou perdoáveis, exce-
to o pecado mortal de assentir, que se torna o pecado contra o espí-
rito (spirit). A isso Scotus acrescenta, rejeitando os filósofos: o
homem espiritual tampouco é livre. Se apenas o eu-posso é livre,
ambos são não livres. O homem carnal não-pode porque é força-
do pelo desejo, e o intelecto não-pode fazer o mal porque é força-
do pela verdade. Nesse ponto, todo eu-posso pressupõe um eu-
não-devo.
Vamos reter desse primeiro contato com o fenômeno da von-
tade o eu-quero-e-não-posso, e observar essa primeira divisão que .
a vontade causa em mim mesma, que é totalmente diferente do
divisão que ocorre no pensamento. Essa divisão na vontade está
longe de ser pacífica — não anuncia um diálogo entre mim e mim
mesma, mas uma luta implacável que dura até a morte. Vamos
também notar a impotência da vontade e talvez obter uma primei-
Assim, não há nada que esteja mais em nosso poder do que a pró-
pria vontade” (Retvactationes i, 8,3, e De libero arbítrio ni, 2, 7].
Entretanto, por causa dessa resistência da vontade a si mesma,
quer; e até o ponto em que o ordenado não é feito, ela não quer [... ]
Pois, se fosse inteira, ela nem sequer ordenaria que algo fosse, por-
186
como se fosse uma luta que os dois princípios opostos travam em
mim» e eu, a cena do campo da batalha. A mesma coisa ocorre
“quando as duas vontades são más”, como, por exemplo, no caso do
iv
188
to seja algo desse gênero, mas por sustentarmos que os aspectos
cações positivas para a nossa conduta entre os outros, por ser exe-
go, mas o simples fato de que ninguém pode fazer o bem e saber o
que está fazendo. “A tua mão esquerda não deve saber o que faz a
190
soa poderia mudar de indivíduo para indivíduo, de país para país,
podem ser permitidas a um boi muitas coisas que não são permi-
tidas a Zeus.
malfeitor real aparece como o homem que nunca deveria ter nas-
cido: “Seria melhor para ele que uma pedra de moinho fosse
como tal. Para usar outra das metáforas de Jesus, ele é como a^grva
daninha, “o joio no campo”, com o qual nada se pode fazer eAceto
19:
destruí-lo, queimá-lo na fogueira. Jesus nunca disse o que é esse
mal que não pode ser perdoado pelos homens ou por Deus, e a
interpretação do skandalon, o obstáculo, como sendo o pecado
contra o Espírito Santo, não nos esclarece muito mais a esse respei-
to, exceto que esse é o mal com o qual concordo sem reservas, que
cometo voluntariamente. Acho essa interpretação difícil de se
reconciliar com os ditos nos Evangelhos, em que a questão do
livre-arbítrio ainda não é proposta. Mas o que é indubitavelmente
enfatizado nesse ponto é o dano causado à comunidade, o perigo
que surge para todos.
Parece-me óbvio que essa é a posição do homem de ação, dis-
tintamente da posição do homem cujo principal interesse e preo-
cupação é pensar. O radicalismo de Jesus na questão do mal — um
radicalismo ainda mais impressionante por estar intimamente
ligado com o maior liberalismo possível para com todos os tipos de
malfeitores, inclusive adúlteros, prostitutas, ladrões e publicanos
— nunca foi aceito, ao que saiba, por nenhum dos filósofos que já
tenha lidado com o problema. Basta pensar em Spinoza, para quem
o que chamamos de mal não passa de um aspecto sob o qual a
inquestionável bondade de tudo o que existe aparece aos olhos hu-
manos, ou em Hegel, para quem o mal como o negativo é a força
poderosa que impulsiona a dialética do vir a ser, e em cuja filosofia
os malfeitores, longe de serem o joio entre o trigo, vão até aparecer
como os fertilizantes do campo. Justificar o mal no sentido duplo
de maldade e desgraça sempre esteve entre as perplexidades da
metafísica. A filosofia no sentido tradicional, que é confrontada
com o problema do Ser como um todo, sempre se sentiu obrigada
a afirmar e encontrar um lugar apropriado para tudo o que existe.
Voltarei uma vez mais para Nietzsche a fim de resumir esse lado do
problema. Ele disse (Vontade de poder, n“ 293): “A noção de uma
ação a ser rejeitada, a ser repelida (verwerfliche Handlung), cria
dificuldades. Nada do que acontece pode chegar ao ponto de ser
192
rejeitado; não se deveria querer eliminá-lo, pois tudo está tão inti-
mamente ligado com tudo o mais que rejeitar uma coisa significa
rejeitar tudo. Uma ação rejeitada, isso significa um mundo rejeita-
do”. A noção de que Nietzsche fala nesse trecho, a de que eu poderia
dizer um não sem ressalvas a um acontecimento particular ou a
uma pessoa particular, no sentido de que isso não deveria ter acon-
tecido, ou que ela não deveria ter nascido, é uma noção abominada
por todos os filósofos. E quando ele afirmou que: “[...Jpara a
descoberta de determinadas partes da verdade, os maus e os infe-
lizes estão mais favorecidos e têm maior possibilidade de êxito”
(Além do bem e do mal, nQ 39), ele estava firmemente ancorado nessa
tradição, só que traduziu em termos muito concretos as idéias um
tanto abstratas de seus predecessores; que essas afirmações soavam
heréticas aos seus próprios ouvidos, que eram ainda os ouvidos do
filho de um pastor protestante, é outra questão. É verdade, entre-
tanto, que ele vai além dessa tradição quando, no mesmo aforismo,
menciona: “As pessoas más que são felizes — uma espécie de
homens sobre a qual os moralistas se calam”. Essa observação pode
não ser particularmente profunda e parece que Nietzsche nunca
voltou ao tema, mas ela atinge realmente o cerne de todo o proble-
ma, pelo menos do problema proposto em termos tradicionais.
Pois quando disse na última conferência que para a filosofia]
tradicional é a vontade, e não a razão ou o mero desejo, o que leva
o homem a agir, afirmei uma meia verdade. Sem dúvida, a vonta-
de, como vimos, é compreendida como o árbitro entre os deáejos
ou o árbitro entre a razão e os desejos e, como tal, deve estar livre
de ser determinada pela razão ou pelo desejo. E como tem sido
apontado desde Agostinho e Duns Scotus, desde Kant e Nietzsche,
a vontade é livre ou não existe; ela deve ser a “causa total de si
mesma” (Duns Scotus), pois se alguém quiser lhe atribuirjuma
causa descobre-se imediatamente numa regressão infinita^pois
qual é a causa dessa causa? Agostinho apontou tal fato em De Jibe-
ro arbítrio in, 17. A vontade é uma faculdade espiritual descoberta
por Paulo, elaborada por Agostinho e desde então interpretada e
reinterpretada como nenhuma outra faculdade humana. Mas a
questão a respeito de sua real existência sempre foi debatida em
muito maior escala do que a razão, o desejo ou qualquer outra de
nossas faculdades. O paradoxo, formulado em poucas palavras, é o
seguinte: apenas com a descoberta da vontade como a faculdade
que abriga a liberdade humana é que ocorreu aos homens que eles
talvez não fossem livres, mesmo não sendo coagidos por forças
naturais, pelo destino ou por seus próximos. Evidentemente, sem-
pre se soube que o homem pode ser escravo de seus desejos, e que
a moderação e o autocontrole são sinais de um homem livre. Jul-
gava-se que os homens que não sabem como se controlar têm
almas escravas, assim como o homem que, derrotado na guerra, se
deixava aprisionar e vender como escravo em vez de cometer sui-
cídio. Somente um tolo se rendería e mudaria de um status para o
outro. O problema surgiu, como vimos, quando foi descoberto
que o eu-quero e o eu-posso não são a mesma coisa, independen-
temente das circunstâncias externas. Além disso, o eu-quero-mas-
eu-não-posso não é igual à afirmação de um paralítico que diz que
quer mover os seus membros, mas não pode, pois nesse caso o
corpo resiste ao espírito. Ao contrário, as perplexidades da vonta-
de só se tornam óbvias quando o espírito diz a si mesmo o que
fazer. Isso é representado como a ruptura da vontade que, ao
mesmo tempo, quer e não quer. A questão é então: posso ser con-
siderado livre, não coagido por outros ou pela necessidade, se faço
o que não quero, ou, inversamente, sou livre se consigo fazer o que
quero? Ora, essa questão de saber se os homens são livres ou não
quando começam a agir não pode ser resolvida de maneira
demonstrável, pois o próprio ato sempre entra numa seqüência de
ocorrências em cujo contexto parece ser causado por outras ocor-
rências, isto é, entra num contexto de causalidade. Por outro lado.
194
tem-se dito repetidas vezes que nenhum preceito de natureza
moral ou religiosa poderia fazer sentido sem o pressuposto da
liberdade humana, o que é bastante verdadeiro e óbvio; mas é uma
mera hipótese. E o máximo que podemos dizer a respeito é o que
Nietzsche afirmou: existem duas hipóteses, a hipótese da ciência
de que não há vontade, e a hipótese do senso comum de que a von-
tade é livre. E a última é “um sentimento dominante do qual não
podemos nos liberar, mesmo que a hipótese científica fosse
demonstrada” (Vontade de poder, nü 667). Em outras palavras, no
momento em que começamos a agir assumimos que somos livres,
não importa qual possa ser a verdade dessa suposição. Ao que pare-
ce, isso seria, por assim dizer, uma prova bela e suficiente, se fôsse-
mos apenas seres de ação. Mas o problema é que não o somos, e que
no momento em que paramos de agir e começamos a considerar o
que fizemos com os outros, ou até como esse ato específico se ajus-
ta a toda a textura de nossa vida, a questão torna-se de novo alta-
mente duvidosa. Em retrospectiva, tudo parece explicável por
meio de causas, por meio de precedentes ou circunstâncias, de
modo que devemos admitir a legitimidade de ambas as hipóteses,
cada uma válida para seu próprio campo de experiência.
O estratagema que a filosofia costumava tradicionalmente
aplicar para sair desse apuro é realmente muito simples, embor^
possa parecer complicado em alguns casos particulares. A difiojf
dade reside em haver algo que não é determinado por nada, mas
que ainda assim não é arbitrário; que o árbitro não deve arbitrar
arbitrariamente. E o que está por trás da vontade como o árbitro
entre os desejos ou entre a razão e os desejos é que otnnes homines
*gravi
beatus esse volunt, que todos os homens tendem a ser felizes -
tam, por assim dizer, em direção à felicidade. Uso a palavra “gra-
vitar” de propósito, para indicar que nesse ponto nos referimos a
algo mais que desejos, esforços, apetites e anseios afins, os quais só
196
Vamos, portanto, deixar essa questão incômoda da felicidade
fora de consideração. A felicidade dos maus no seu sucesso sempre
foi um dos fatos muito desconfortáveis da vida, o qual não adianta-
ria eliminar por meio de explicações. Basta invocar a noção com-
plementar das pessoas que fazem o bem ou são decentes porque
querem ser felizes. Acontece com essa razão o que acontece com
todas as razões nessa matéria (citando Nietzsche mais uma vez): “Se
alguém nos dissesse que precisava de razões para continuar decen-
te, já não poderiamos confiar nele; certamente evitaríamos a sua
companhia”— afinal, ele não pode mudar de opinião? E com isso
voltamos àquela faculdade da pura espontaneidade que nos impe-
le à ação e arbitra entre as razões sem estar sujeita a elas. Até agora
falamos indiscriminadamente sobre essas duas funções da vonta-
de, os seus poderes para instigar e os seus poderes para arbitrar.
Todas as nossas descrições extraídas de Paulo e Agostinho sobre a
dupla ruptura da vontade, sobre o eu-quero-e-não-posso de Paulo,
o eu-quero-e-não-quero de Agostinho, realmente só se aplicam à
vontade na medida em que ela impele à ação, e não à sua função de
árbitro. Pois essa última função é de fato o mesmo que o julgamen-
to; a vontade é convocada a julgar entre proposições diferentes e
opostas, e se devemos tomar essa faculdade de julgamento, uma das
faculdades mais misteriosas do espírito humano, como vontad^
razão ou talvez como uma terceira capacidade espiritual, é pejo
menos uma questão em aberto.
No que diz respeito à primeira função da vontade, o seupoder
de instigar, encontramos em Nietzsche duas descrições curiosa-
que ele acredita que obedece. Mas agora observem o que é mais
fé, que o querer basta para agir. Como, na grande maioria dos casos,
198
descrição, tendemos ã pensar, seria acurada se o querer pudesse se
esgotar no mero ato de querer, sem ter de passar para a execução. A
ruptura da vontade, como vimos, torna-se manifesta no momen-
to da execução, e os sentimentos que são superados pelo feliz auto-
engano desde que eu não seja solicitado a cumprir o prometido,
por assim dizer, cessam quando se descobre que vellee posse, o eu-
quero e o eu-posso, não são a mesma coisa. Ou, em termos nietzs-
chianos: “A vontade quer ser senhora de si mesma” e aprende que
se o espírito comanda a si mesmo, e não apenas ao corpo (em que
é obedecido instantaneamente, como nos disse Agostinho), isso
significa que eu me torno escrava de mim mesma — significa que
arrasto, por assim dizer, a relação senhor-escravo, cuja essência é a
negação da liberdade, para a interação e para a relação que estabe- k
leço entre mim e mim mesma. Por isso, o famoso ancoradouro da y
liberdade se revela como o destruidor de toda a liberdade.21 j
Mas há um novo fator importante lançado nessa discussão e f
ainda não mencionado, o elemento do prazer, que Nietzsche com- 7
preendia como inerente ao sentimento de ter poder sobre os
outros. A filosofia de Nietzsche baseia-se, portanto, na sua equipa-
ração da vontade com a vontade de poder; ele não nega a ruptura
da vontade em duas, o que ele chama de as “oscilações entre o sim
e o não” (Vontade de poder, n2 693), a presença simultânea de pra- Jr
zer e desprazer em todo ato de querer, mas ele conta esses senti; Jr B
mentos negativos de ser coagido e de resistir entre os obstáculos ’
200
caso, qualquer líquido serviría, assim também a faculdade da von-
tade só surgiría em nós depois de termos conseguido tudo o que é
realmente indispensável para a nossa simples sobrevivência. Nietz-
sche então identifica esse excesso de vigor com o impulso criativo;
é a raiz de toda a produtividade. Se isso é verdade (e creio que todos
os dados da experiência falam em favor dessa interpretação), pode-
riamos explicar por que a vontade é vista como a fonte da esponta-
neidade que impele à ação — enquanto a compreensão da vontade
como aquilo que revela a impotência básica do homem por meio de
sua natureza dialética só poderia levar a uma completa paralisia de
todas as forças, a menos que se recorresse à ajuda divina, como faz
toda a ética estritamente cristã. Evidentemente, é também essa
abundância de vigor, essa generosidade extravagante ou “vontade
pródiga” que impele o homem a querer e a amar fazer o bem (Von-
tade de poder, n2 749). O que é muito evidente naqueles poucos
homens conhecidos que dedicaram sua vida inteira a“fazer o bem”,
como Jesus de Nazaré ou são Francisco de Assis, não é certamente a
docilidade, mas antes uma força transbordante, talvez não de cará-
ter, mas de sua própria natureza.
É importante compreender que esse esboço da “prodigalidade
da vontade” proveniente de um excedente de vigor não indica metas^
específicas. Nietzsche sublinhou isso no seguinte trecho (A gai£
ciência, n2 360): devemos “distinguir entre a causa do agir e a cadT
202
têm interesse no assunto sob jurisdição. O árbitro era originalmen-
te o homem que abordava (ad-bitere) uma ocorrência como um
espectador não envolvido, uma testemunha ocular, e por causa
desse não-envolvimento era considerado capaz de julgamento
imparcial. Por isso, a liberdade da vontade como liberum arbitrium
significa a sua imparcialidade — não significa essa fonte inexplicá-
vel de espontaneidade que impele à ação.
Mas essas são questões de história, e agora vamos voltar a
nossa atenção para a questão do julgamento, o verdadeiro árbitro
entre o certo e o errado, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso. Esta-
mos interessados neste momento apenas na questão de como dis-
tinguir o certo do errado, mas, de maneira bastante curiosa, o pró-
prio Kant, apesar de não ser de modo algum sensível às artes,
abordou esse problema com a pergunta: como distingo o belo do
feio e, originalmente, ele chamou a sua Crítica do juízo de uma
Crítica do gosto. Kant supunha que não existia esse tipo de proble-
ma para a Verdade e o Certo, pois acreditava que assim como a razão
humana na sua capacidade teórica conhece a verdade por si mesma,
sem nenhuma ajuda de outra faculdade espiritual, a mesma razão
na sua capacidade prática conhece “a lei moral dentro de mim”. Ele
definia o julgamento como a faculdade que sempre entra em ação,
quando somos confrontados com elementos particulares; o julgw
mento decide sobre a relação entre um exemplo particular e o gejp,
seja o geral uma regra, um padrão, um ideal ou algum outro tipo de
medição. Em todos os exemplos de razão e conhecimento» o julga-
mento subsume o particular à sua regra geral apropriada. Mesmo
essa operação aparentemente simples tem as suas dificuldades, pois
como não há regras para essa subsunção, ela deve ser decididalivre-
mente. Assim,“a deficiência no julgamento é apenas o que se chama
comumente de estupidez, e para esse defeito não há remédio. Uma
pessoa obtusa e de mente estreita [...] pode na verdade ser treinada
pelo estudo até tornar-se culta. Mas como em geral falta a ess^pes-
2031
soas o julgamento, não é incomum encontrar homens cultos que
[...] deixam transparecer essa falha original que jamais pode ser
reparada” (Crítica da razão pura, B172-3). A questão piora ainda
um pouco quando se consideram aqueles julgamentos em que não
são aplicáveis regras e padrões fixos, como nas questões de gosto,
nos quais, portanto, o “geral” deve ser visto como contido no parti-
cular. Ninguém pode definir a Beleza; e quando digo que esta tuli-
pa particular é bela, não quero dizer: todas as tulipas são belas, por-
tanto esta também é bela, nem aplico um conceito de beleza válido
para todos os objetos. Sei o que é a Beleza, algo geral, porque a vejo
e a declaro ao ser confrontado com o belo em elementos particula-
res. Como é que sei e por que reivindico uma certa validade para
esses julgamentos? Essas são, numa forma muito simplificada, as
questões centrais orientadoras da Crítica do juízo.
Mas, de um modo mais geral, podemos dizer que a falta de jul-
gamento se mostra em todos os campos: nós a chamamos de estupi-
dez em questões intelectuais (cognitivas), falta de gosto em assuntos
estéticos, e obtusidade moral ou insensatez no que diz respeito à
conduta. E o oposto de todos esses defeitos específicos, o próprio ter-
reno em que nasce o julgamento sempre que é exercido, segundo
Kant, é o Senso Comum. O próprio Kant analisou julgamentos pri-
mariamente estéticos, porque lhe parecia que apenas nessa área jul-
gamos sem ter nada para nos guiar, sem regras gerais que são ou
demonstravelmenteverdadeirasouevidentesporsimesmas. Assim,
se vou usar os seus resultados para o campo da moralidade, suponho
que o campo da interação e conduta humanas e dos fenômenos com
que nos confrontamos nessa área sejam, de certo modo, da mesma
natureza. Como justificação, lembro-lhes a nossa primeira sessão,
quando expliquei o pano de fundo não muito agradável da expe-
riência factual que deu origem a essas considerações.
Mencionei o colapso total dos padrões morais e religiosos
entre pessoas que, segundo todas as aparências, sempre tinham
204
acreditado firmemente nesses padrões, e também mencionei o
fato inegável de que os poucos que conseguiram não ser tragados
pelo redemoinho não foram de modo algum os “moralistas”, pes-
soas que sempre apoiaram as regras da conduta certa, mas, ao
contrário, foram muito freqüentemente aqueles que tinham sido
convencidos, mesmo antes da débâcle, da não-validade objetiva
desses padrões per se. Assim, teoricamente, nós nos descobrimos
hoje na mesma situação em que o século xvni se descobriu com
respeito aos meros julgamentos de gosto. Kant se indignava que a
questão da beleza fosse decidida arbitrariamente, sem possibili-
dade de discussão e acordo mútuo, no espírito do degustibus non
disputandum est. De maneira bastante freqüente, mesmo em cir-
cunstâncias que estão muito longe de qualquer indicação catas-
trófica, nos descobrimos hoje exatamente na mesma posição no
que diz respeito às discussões das questões morais. Assim, vamos
retornar a Kant.
O senso comum para Kant não significava um sentido co-
mum para todos nós, mas, estritamente, aquele sentido que nos
ajusta a uma comunidade formada com os outros, que nos torna
seus membros e capacita-nos a comunicar as coisas dadas pelos
nossos cinco sentidos. Ele cumpre essa tarefa com a ajuda de outra^
faculdade, a faculdade da imaginação (para Kant a faculdade mai^l
misteriosa). A imaginação ou representação — há uma difereijça
entre as duas que podemos desconsiderar neste ponto — designa
a minha capacidade de ter no espírito a imagem de algo que não
está presente. A representação torna presente o que está ausente—
por exemplo, a ponte George Washington. Mas embora eujpossa
evocar a ponte que está distante diante do olho de meu espírito,
tenho realmente duas imaginações ou representações no espírito:
205^
í
uma ponte. Essa segunda ponte esquemática nunca aparece dian-
te de meus olhos corpóreos; no momento em que a coloco no papel
torna-se uma ponte particular, deixa de ser um mero esquema.
Ora, a mesma capacidade representativa sem a qual nenhum
conhecimento seria possível estende-se às outras pessoas, e os
esquemas que aparecem no conhecimento se tornam exemplos no
julgamento. O senso comum, em virtude de sua capacidade ima-
ginativa, pode ter presentes em si mesmo todos aqueles que de fato
estão ausentes. Pode pensar, como diz Kant, no lugar de todos os
outros, de modo que quando alguém faz o julgamento — isto é
belo — ele não quer dizer meramente que isso me agrada (como
se, por exemplo, sopa de galinha pudesse ser do meu gosto, mas
não ser do gosto de outros), mas ele reivindica a aprovação dos
outros porque no ato de julgar já os levou em consideração e, por
isso, espera que seus julgamentos venham conter uma certa valida-
de geral, ainda que talvez não universal. A validade vai se estender
a toda a comunidade da qual o meu senso comum me torna mem-
bro — Kant, que se julgava um cidadão do mundo, esperava que se
estendesse à comunidade de toda a humanidade. Kant dá a isso o
nome de “mentalidade alargada”, querendo dizer que sem esse
acordo o homem não está preparado para a interação civilizada. O
aspecto importante da questão é que meu julgamento de um caso
particular não depende meramente da minha percepção, mas de
eu representar para mim mesmo algo que não percebo. Deixem
me ilustrar esse ponto: vamos supor que eu veja uma moradia
específica na favela e perceba nessa construção particular a noção
geral que ela não exibe diretamente, a noção de pobreza e miséria.
Chego a essa noção ao representar para mim mesmo como me sen
tiria se tivesse de viver ali, isto é, tento pensar no lugar do morador
da favela. O julgamento a que vou chegar não será necessariamen
te igual ao dos habitantes, a quem o tempo e a falta de esperança
podem ter embotado qualquer sensibilidade à afronta de sua con
206
dição, mas vai se tornar um exemplo marcante para os meus julga-
mentos posteriores dessas questões. Além disso, embora ao julgar
eu leve em consideração os outros, isso não significa que me adap-
te em meu julgamento aos julgamentos dos outros. Ainda falo com
a minha própria voz e não conto votos para chegar ao que penso
ser certo. Mas o meu julgamento já não é subjetivo, no sentido de
que chegaria às minhas conclusões levando apenas a mim mesma
em consideração.
Entretanto, embora eu leve em consideração os outros ao
fazer o meu julgamento, esses outros não incluem todo mundo;
Kant diz explicitamente que a validade desses julgamentos só pode ; •
se estender “sobre toda a esfera dos sujeitos julgadores”, isto é, das £
pessoas que também julgam. Dito de outra forma, não cabe àque- J
les que se recusam a julgar discutir a validade do meu julgamento.
O senso comum com que julgo é um sentido geral, e à pergunta Z
sobre: “Como pode alguém julgar segundo o senso comum, quan- -
do considera o objeto segundo seu senso privado?”, Kant respon- ___ ;
deria que a comunidade entre os homens produz um senso
comum. A validade do senso comum nasce da interação com as
pessoas — assim como dizemos que o pensamento nasce da inte-
ração comigo mesma. (“Pensar é falar consigo mesmo, e assim,^^^ W
20;
ocorra no contexto da sua filosofia moral, mas nesse contexto de
julgamentos meramente estéticos. A razão é o senso comum. Se o
senso comum, o senso pelo qual somos membros de uma comuni-
dade, é a mãe do julgamento, então nem mesmo uma pintura ou
um poema, muito menos uma questão moral, pode ser julgada
sem invocar e pesar silenciosamente os julgamentos dos outros,
aos quais me refiro do mesmo modo como me refiro ao esquema
da ponte para reconhecer outras pontes. “No gosto”, diz Kant, “o
egoísmo é superado” — mostramos consideração no sentido ori-
ginal da palavra, consideramos a existência dos outros e devemos
tentar ganhar a sua concordância, “cortejar o seu consentimento”,
como disse Kant. Na moralidade kantiana, nada desse gênero é
necessário: agimos como seres inteligíveis e as leis que observamos
teriam validade para todos os seres inteligíveis—inclusive os habi-
tantes de outros planetas, os anjos e o próprio Deus. Não mostra-
mos consideração pois não precisamos considerar as posições dos
outros e não consideramos as consequências de nosso ato, que são
insignificantes para a lei ou para a bondade da vontade da qual
brota o ato. Apenas quando se trata desses julgamentos de gosto é
que Kant encontra uma situação em que o dito socrático “É melhor
estar em desavença com o mundo inteiro do que, sendo um, estar
em desavença comigo mesmo” perde um pouco da sua validade.
Nesse ponto, não posso estar em desavença com o mundo inteiro,
embora ainda possa me descobrir em desavença com boa parte
dele. Se considerarmos a moralidade como algo que engloba mais
do que seu aspecto negativo, o abster-se de fazer o mal, que pode
significar abster-se de fazer qualquer coisa, teremos de considerar
a conduta humana em termos que Kant achava apropriados ape-
nas para a conduta estética, por assim dizer. E a razão pela qual ele
descobriu certas regras moralmente significativas nessa esfera
aparentemente tão diferente da vida humana foi que apenas nesse
campo ele considerou os homens no plural, vivendo em comuni-
208
dade. É, portanto, nesse contexto que encontramos o árbitro impar-
cial da vontade como liberam arbitrium. “Apreciação desinteressa-
da”, como devem saber, é a definição de Kant para o que sentimos
diante da beleza. Por isso, o egoísmo não pode ser superado pela pre-
gação moral que, ao contrário, sempre me manda de volta a mim
mesma; mas, nas palavras de Kant: “O egoísmo só pode ser contra-
posto pelo pluralismo, que é uma estrutura do espírito em que o eu,
em vez de ficar envolto em si mesmo, como se fosse o mundo intei-
ro, considera-se um cidadão do mundo” (Anthrop., nu 2).
Quando voltamos a pensar nos padrões e regras objetivos de
comportamento segundo os quais agimos na vida cotidiana, sem
pensar muito e sem julgar muito no sentido de Kant, isto é, quan-
do de fato subordinamos os casos particulares às regras gerais sem
jamais questioná-las, surge a questão de saber se não há realmente
nada a que se agarrar quando somos solicitados a decidir que isto
é certo e isto é errado, assim como decidimos que isto é belo e isto
é feio. E a resposta a essa questão é sim e não. Sim — se com isso
queremos dizer padrões geralmente aceitos como existentes em
toda comunidade com respeito a maneiras e convenções, isto é,
com respeito aos mores da moralidade. As questões de certo e erra-
do não são decididas como as maneiras à mesa, como se não esti-j
vesse em jogo senão uma conduta aceitável. Mas há realmente algp
a que o senso comum, quando se eleva ao nível de julgar, pod^&e
agarrar e na verdade se agarra, e esse elemento é o exemplo. Kant
disse: “Os exemplos são o andador do julgamento” (Crítica da
razão pura, B174), e ele também chamou o “pensamento represen-
tativo” presente no julgamento em que os elementos particulares
não podem ser subsumidos a algo geral pelo nome de “pensamen -
to exemplar”. Não podemos nos agarrar a nada geral, mas a^lgum
elemento particular que se tornou um exemplo. De certctmodo,
esse exemplo lembra o edifício esquemático que trago no espírito
para reconhecer como edifícios todas as estruturas que ab&am
algo ou alguém. Mas o exemplo, em contraposição ao esquema
deve nos dar uma diferença de qualidade. Deixem-me ilustrar essa
diferença com um exemplo exterior à esfera moral. Perguntamos:
O que é uma mesa? Em resposta a essa questão, invocamos a forma
ou o esquema (kantiano) de uma mesa presente em nossa imagi-
nação, com relação à qual toda mesa deve se conformar para ser
uma mesa. Vamos chamar isso de a mesa esquemática (que, aliás, é
mais ou menos a mesma coisa que a mesa “ideal”, a idéia de mesa
em Platão). Ou podemos reunir todos os tipos de mesa, despojá-
los de suas qualidades secundárias, como cor, número de pernas,
material etc., até chegarmos às qualidades mínimas comuns a
todas. Vamos chamar esse objeto de a mesa abstrata. Ou podemos
finalmente escolher as melhores dentre todas as mesas que conhe-
cemos ou podemos imaginar, e dizer: este é um exemplo de como
as mesas deveríam ser construídas e como deveria ser o seu aspec-
to. Vamos chamar isso de mesa exemplar. O que fizemos foi esco-
lher, eximere, um caso particular que então se torna válido para
outros casos particulares. Há muitos conceitos nas ciências histó-
ricas e políticas a que se chegou dessa maneira. A maioria das vir-
tudes e vícios políticos são pensados em termos de indivíduos
exemplares: Aquiles para coragem, Sólon para perspicácia (sabe-
doria) etc. Ou tome-se o exemplo do cesarismo ou bonapartismo:
tomamos Napoleão ou César como um exemplo, isto é, como uma
pessoa particular que exibe qualidades que são válidas para outros
casos. Sem dúvida, aqueles que não sabem quem foram César ou
Napoleão não podem compreender do que estamos falando se
mencionamos o cesarismo ou o bonapartismo. Por isso a validade
do conceito é restrita, mas, dentro de suas restrições, ele é ainda
assim válido.
Os exemplos, que são realmente o “andador” (go-cart) de
todas as atividades de julgamento, constituem também, e de
210
moral. A amplitude com que a antiga afirmação, outrora muito
paradoxal — é melhor sofrer o mal do que fazer o mal —, tem con-
quistado a concordância dos homens civilizados deve-se primaria-
mente ao fato de que Sócrates deu um exemplo e, assim, tornou-se
exemplo para um certo modo de conduta e um certo modo de
decidir entre o certo e o errado. Essa posição é recapitulada por
Nietzsche — o último filósofo, somos tentados a pensar, que levou
a sério as questões morais e que, portanto, analisou e pensou até o
limite todas as posições morais anteriores. Ele disse o seguinte: “É
uma desnaturação da moralidade separar o ato do agente, dirigir o
ódio ou o desprezo contra o ‘pecado’ [o ato em vez do agente], acre-
ditar que uma ação poderia ser boa ou má em si mesma [... Em toda •'
ação] tudo depende de quem a pratica, o mesmo crime’ pode ser, >
num caso, o privilégio mais elevado e, noutro caso, o estigma [do
mal]. Na verdade, é o apego a si daquele que julga que interpreta £
uma ação, ou melhor, o seu ator, com respeito à [...] semelhança ou
‘não-afmidade’ entre o agente e o juiz” (Vontade de poder, n°292).
Julgamos e distinguimos o certo do errado por termos presentes
em nosso espírito algum incidente e alguma pessoa, ausentes no
tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplos. Há muitos
desses exemplos. Podem estar no passado remoto ou entre os
vivos. Não precisam ser realidade histórica; como Jefferson cert^^^ 1
211M
Á
fc durante «sas quatro palestras. So posso esperar que ao
menos alguma indicação de como podemos pensar e nos mover
nesses assuntos difíceis e urgentes tenha se tornado aparente.
Como conclusão, permitam-me apenas mais dois comentários.
De nossa discussão de hoje sobre Kant, espero que tenha se torna-
do mais claro por que propus, por meio de Cicero e Meister Eck-
hart, a questão de determinar com quem desejamos estar juntos.
Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão
depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem
desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é
escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas
mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes pas-
sados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos
dizer que preferiría o Barba Azul por companhia, tomando-o
assim como seu exemplo, a única coisa que poderiamos fazer é nos
assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós. Mas receio
que seja muito maior a probabilidade de que alguém venha nos
dizer que não se importa com a questão e que qualquer companhia
lhe será satisfatória. Em termos morais e até políticos, essa indife-
rença, embora bastante comum, é o maior perigo. Em conexão
com isso, sendo apenas um pouco menos perigoso, está outro fe-
nômeno moderno muito comum, a tendência difundida da recu-
sa a julgar. A partir da recusa ou da incapacidade de escolher os seus
emplos e a sua companhia, e a partir da recusa ou incapacidade
stabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem
an aa reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não
nos ou ,rem°Ver P°rque nao foram causados por motivos huma-
mesmo t ^nar”ente COmpreensíveis- Nisso reside o horror e, ao
mesmo tempo, a banalidade do raa|,«
1965-6
212
Responsabilidade coletiva'
214
vância e interesse geral aos dilemas políticos, distintos dos legais
ou morais. A minha dificuldade com o trabalho do senhor Fein-
berg não é que ele omita essa dimensão da questão—ele discute os
problemas políticos na última parte do seu texto —, mas que ele
tente desde o início interpretar todas as questões segundo modelos
que são legal ou moralmente relevantes, de modo que a questão
política parece não ser mais do que um caso especial dos assuntos
que estão sujeitos a procedimentos legais normais ou a julgamen-
tos morais normais. O senhor Feinberg distingue entre padrões
legais e morais; os padrões morais são mais rigorosos do que os
padrões de culpabilidade legal, e a distinção, a seu ver, é uma ques-
tão de grau. Não estou segura de que concordo inteiramente; o
jogo, por exemplo, é legalmente errado, pelo menos neste país; )
apesar de eu não ser uma jogadora profissional, os meus padrões
morais a esse respeito são consideravelmente menos rigorosos. (
Mas concordo que os padrões legais e morais têm algo muito '
importante em comum—eles sempre se referem à pessoa e ao que »
a pessoa fez; se a pessoa está por acaso envolvida num empreendí-
mento comum, como no caso do crime organizado, o que deve ser
julgado é ainda essa mesma pessoa, o grau da sua participação, seu
papel específico e assim por diante, e não o grupo. O fato de ser
membro só desempenha um papel na medida em que torna maisj^^
provável o fato de ela ter cometido um crime; e isso, em princípio,T
não é diferente de má reputação ou de ter uma ficha criminal. Se o
réu era membro da máfia, membro das ss ou de alguma outra orga-
nização criminosa ou política, assegurando-nos ter sido mero
dente na engrenagem, que agia apenas por ordens superiores e
fazia o que qualquer outro teria igualmente feito, no momento em
que ele aparece num Tribunal de Justiça, ele aparece como uma
pessoa e é julgado de acordo com o que fez. Cabe à grandeza dos
procedimentos do tribunal que até um dente de engrenagenj^ossa
se tornar uma pessoa de novo. E o mesmo parece verdade até num
21'
grau mais elevado para o julgamento moral, para o qual a descul-
pa — minha única alternativa teria levado ao suicídio — não é tão
impositiva quanto nos procedimentos legais. Não é um caso de
ca, quer apareça na forma mais antiga em que toda uma comuni-
dade assume a responsabilidade por qualquer ato de qualquer de
seus membros, quer no caso de uma comunidade ser considerada
responsável pelo que foi feito em seu nome. O último caso tem, é
claro, mais interesse para nós, porque se aplica, para o bem e para
216
q mal, a todas as comunidades políticas, e não apenas ao governo
representativo. Todo governo assume a responsabilidade pelos
atos e malfeitorias de seus predecessores, e toda nação pelos atos e
malfeitorias do passado. Isso é verdade até para os governos revo-
lucionários, que podem negar o compromisso com os acordos
contratuais estabelecidos pelos seus predecessores. Quando
Napoleão Bonaparte se tornou governante da França, ele disse:
“Assumo a responsabilidade por tudo o que a França fez desde os
tempos de Carlos Magno até o terror de Robespierre. Em outras
palavras”, disse ele, “tudo isso foi feito em meu nome, na medida
em que sou membro desta nação e o representante do corpo polí-
tico”. Nesse sentido, somos sempre considerados responsáveis
pelos pecados de nossos pais, assim como colhemos as recompen-
sas de seus méritos; mas não somos, é claro, culpados de suas mal-
feitorias, nem moral nem legalmente, nem podemos atribuir os
seus atos a nossos méritos.
Só podemos escapar dessa responsabilidade política e estri-
tamente coletiva abandonando a comunidade, e como nenhum
homem pode viver sem pertencer a alguma comunidade, isso sig-
nificaria simplesmente trocar uma comunidade por outra, e
assim um tipo de responsabilidade por outro. É verdade que o
século xx criou uma categoria de homens que são verdadeira-
mente párias, que não pertenciam a nenhuma comunidade inter-
nacionalmente reconhecível, os refugiados e sem pátria, que na
realidade não podem ser considerados politicamente responsá-
como uma carga e até como um tipo de punição, acho que se pode
218
bem-estar de uma alma do que ao do mundo, faz parte, obvia-
quam publica: “Nada é mais alheio a nós do que aquilo que tem
importância pública” O que até hoje compreendemos por padrões
219
morais, os mais baixos para as questões de costumes e maneiras,
engolir ácaros num pedaço de queijo”.) Pelo que posso ver, há ape-
nas dois dos Dez Mandamentos aos quais ainda nos sentimos
220
parece clara: a pressuposição é que não só vivo junto com outros,
mas também com o meu eu, e que esse viver junto, por assim dizer,
nenhum mal, sofrer o mal e fazer o mal são igualmente ruins. Não
que não participou, mas que foram feitas em seu nome. Essa não-
pode fazer com que seus habitantes, ou grandes camadas deles, não
ter nada a ver com a política, não por razões morais, mas simples-
221
cialmente na variedade totalitária. Em contraste com o absolutis-
mo e outras formas de tirania, em que a não-participação era algo
esperado, e não uma questão de escolha, lidamos aqui com uma
situação em que a participação, e isso, como sabemos, pode signi-
ficar cumplicidade em atividades criminosas, é algo esperado, e a
não-participação uma questão de decisão. E temos finalmente o
caso em países livres em que a não-participação é realmente uma
forma de resistência—como no caso daqueles que se recusam a ser
recrutados para a guerra no Vietnã. Essa resistência é freqüente-
mente discutida em termos morais; mas desde que haja liberdade
de associação e com ela a esperança de que a resistência na forma
de recusa a participar venha a provocar uma mudança de política,
ela é essencialmente política. O que está no centro da consideração
não é o eu — não vou porque não quero sujar as minhas mãos, o
que, claro, também pode ser um argumento válido —, mas o des-
tino da nação e sua conduta com outras nações do mundo.
A não-participação nos assuntos políticos do mundo esteve
sempre sujeita à censura de irresponsabilidade, de nos esquivar-
mos dos deveres para com o mundo que partilhamos e para com a
comunidade a que pertencemos. E essa censura não é de modo
algum contra-atacada com sucesso se a não-participação é justifi-
cada em termos morais. Sabemos por experiências recentes que a
resistência ativa e às vezes heróica a maus governos provém mais
de homens e mulheres que neles participaram do que de estranhos
que eram inocentes, sem qualquer culpa. Isso é verdade, como uma
regra com exceções, para a resistência alemã contra Hitler, e até
mais verdadeiro para os poucos casos de rebelião contra os regimes
comunistas. A Hungria e a Tchecoslováquia são casos ilustrativos.
Discutindo essas questões de um ponto de vista legal, Otto Kirch-
heimer (em seu Political Justice) enfatizou corretamente que para
a questão da inocência legal ou moral, isto é, a ausência de qual-
quer cumplicidade em crimes cometidos por um regime, a “resis-
222
tência ativa” seria um “padrão ilusório, um recuo da participação
significativa na vida pública [...] uma vontade de desaparecer no
esquecimento”, e a obscuridade“é um padrão que pode ser impos-
to corretamente por aqueles que julgam” (pp. 331 e seguintes). Pela
mesma razão, entretanto, ele de certo modo justifica aqueles réus
que disseram que o seu senso de responsabilidade não-permitiu
que escolhessem esse caminho; que eles serviram para prevenir o
pior etc. — argumentos que, sem dúvida, no caso do regime de
Hitler soavam um tanto absurdos e em geral não passavam de
racionalizações hipócritas de um desejo ardente de levar adiante a
carreira deles, mas isso é outra história. A verdade é que os não-
participantes não eram resistentes e não acreditavam que sua ati-
tude tivesse quaisquer conseqüências políticas.
O que o argumento moral, que citei na forma da proposição
socrática, diz realmente é mais ou menos o seguinte: se eu fizesse o
que agora é exigido de mim como o preço da participação, quer
como mero conformismo, quer até como a única chance de uma
resistência por fim bem-sucedida, já não poderia viver comigo
mesma; a minha vida deixaria de valer a pena para mim. Por isso,
preferiría sofrer o mal agora, e até pagar o preço de uma pena de
morte no caso de eu ser forçada a participar, a fazer o mal e depois
ter de viver junto com essa malfeitora. Em se tratando da questão/
de matar — o argumento não seria que o mundo ficaria melhy
sem a execução do assassinato, mas a não-disposição a viver com
um assassino. Esse argumento, assim me parece, é irrefutável até
mesmo do ponto de vista político mais estrito, mas é claramente
um argumento que só pode ser válido em situações extremas, isto
é, marginais. São freqüentemente essas situações as mais capazes
de esclarecer questões que, do contrário, são um tanto obscuras e
equívocas. A situação marginal em que as proposições morais se
tornam absolutamente válidas na esfera da política é a impotência.
A ausência de poder, que sempre pressupõe o isolamento» éjjma
desculpa válida para não fazer nada. O problema com esse argu-
mento é o fato de ser inteiramente subjetivo; a sua autenticidade só
pode ser demonstrada pela disposição a sofrer. Não há regras
gerais, como nos procedimentos legais, que poderíam ser aplica-
das e que seriam válidas para todos. Mas isso, receio, será o fardo de
todos os julgamentos morais que não são apoiados por comandos
religiosos, nem deles derivam. Sócrates, como sabemos, nunca foi
capaz de provar a sua proposição; e o Imperativo Categórico de
Kant, seu único concorrente como uma prescrição moral estrita-
mente não religiosa e não política, tampouco pode ser provado. O
problema até mais profundo com o argumento é o fato de ser tão-
somente aplicável a pessoas acostumadas a viver explicitamente
consigo mesmas, o que é apenas outra forma de dizer que sua vali-
dade só será plausível para os homens que têm consciência; e, ape-
sar dos preconceitos da jurisprudência que, na perplexidade, tão
freqüentemente apela à consciência como algo que todo homem
são do juízo deve possuir, a evidência é que muitos possuem cons-
ciência, mas nunca todos, e que aqueles que a possuem podem ser
encontrados em todas as esferas da vida e, mais especificamente,
em todos os graus de instrução e sem instrução. Nenhum sinal
objetivo de posição social ou educacional pode assegurar a sua
presença ou ausência.
A única atividade que parece corresponder a essas proposi-
ções morais seculares e validá-las é a atividade do pensamento, que
na sua forma mais geral, inteiramente não especializada, pode ser
definida com Platão como o diálogo silencioso entre mim e mim
mesma. Se aplicada a questões de conduta, a faculdade da imagi-
nação estaria envolvida nesse pensamento num grau elevado, isto
é, a capacidade de representar, de tornar presente para mim
mesma o que ainda está ausente — qualquer feito contemplado.
Até que ponto essa faculdade do pensamento, que é exercida
224
em que estou sempre junto com outros, é outra questão. Mas qual-
quer que venha a ser a nossa possível resposta a essa questão, a ser
dada auspiciosamente pela filosofia política, nenhum padrão
moral, individual e pessoal de conduta será capaz de nos escusar da
responsabilidade coletiva. Essa responsabilidade vicária por coisas
que não fizemos, esse assumir as conseqüências por atos de que
somos inteiramente inocentes, é o preço que pagamos pelo fato de
levarmos a nossa vida não conosco mesmos, mas entre nossos
semelhantes, e de que a faculdade de ação, que, afinal, é a faculda-
de política par excellence, só pode ser tornada real numa das mui-
tas e múltiplas formas de comunidade humana.
Pensamento e considerações
morais'
Para W. H. Auden
de regras. Sabia que aquilo que tinha outrora considerado seu dever
226
era agora chamado de crime, e aceitava esse novo código de julga-
mento como se não passasse de outra regra de linguagem. Ao seu
estoque um tanto limitado de lugares-comuns acrescentava alguns
novos, e só ficava completamente desamparado quando confron-
tado com uma situação a que nenhum deles se aplicava, como no
caso mais grotesco em que tinha de fazer um discurso no patíbulo
e fora forçado a basear-se em clichês usados na oratória funerária,
inaplicáveis a seu caso, porque ele não era o sobrevivente.2 Não lhe
ocorrera o simples fato de considerar quais deveríam ser as suas
últimas palavras no caso de uma sentença de morte, que ele tinha
esperado o tempo todo, assim como as incoerências e as contradi-
ções flagrantes nos exames e interrogatórios durante o julgamento
não o tinham incomodado. Os clichês, os lugares-comuns, a adesão
a códigos convencionais e padronizados de expressão e conduta
têm a função socialmente reconhecida de nos proteger contra a rea-
lidade, isto é, contra a solicitação da atenção de nosso pensamento,
que todos os acontecimentos e fatos despertam em virtude da sua
existência. Se fôssemos receptivos a essa exigência o tempo todo,
logo estaríamos exaustos; a diferença em Eichmann era apenas que
ele claramente nada sabia de tal solicitação.
Essa total ausência de pensamento atraiu o meu interesse. É
possível praticar o mal — não só os pecados da omissão, mas os
pecados da perpetração — na ausência, não meramente dos
“motivos vis” (como diz a lei), mas de quaisquer motivos, qualquer
estímulo particular de interesse ou volição? A maldade, não
importa como a definamos, esse estar “determinado a ser um
vilão”, não é uma condição necessária para fazer o mal? A nossa
capacidade de julgar, de distinguir o certo do errado, o belo do feio,
depende de nossa faculdade de pensamento? A incapacidade de
227
ausência da má consciência.
Essas eram as questões. Para empregar outras palavras e usar
sem sentido do que por aqueles que estão sob ataque. Assim
228
sobre proposições tais como: “Deus está morto” a crise na filosofia
suas vantagens; confio que as terá, uma vez que se tenha compreen-
dido o que esses “fins” realmente significam, não que Deus “mor-
sua plausibilidade.
ce; que não está apenas além da percepção dos sentidos, mas acima
do mundo dos sentidos. O que está “morto” não é apenas a locali-
2:
bolo para o reino supra-sensível, assim como é entendido pela
o aparente”.5
Essas mortes “modernas” de Deus, da metafísica, da filosofia
de tão tangível atrás de si, nem pode ser saciada por intuições
230
somente satisfarão essa necessidade hoje à medida que eu possa
pensá-los novamente.
Devemos a Kant a distinção entre pensar e conhecer, entre a
como as questões que a razão propõe e sabe que nunca será capaz *
de responder. Kant não “negou o conhecimento”, mas separou o
conhecer do pensar, e abriu espaço não para fé, mas para o pensa-
fia só existe para uns poucos, precisamente por causa das implica-
ções morais dessa opinião. Nessa linha, ele observou certa vez que
“A estupidez é causada por um coração malvado”,8 uma declaração
2J
estupidez; pode ser encontrada em pessoas altamente inteligentes,
dades comuns, sejam quais forem. Quaisquer que possam ter sido
232
soa deve estar afastada de nossos sentidos; enquanto estivermos
veu: “Não aprovo a regra de que, se o uso da razão pura provou algo,
esse resultado, mais tarde, já não deva ser objeto de dúvida, como se
233
AiJn axioma”; e“Não partilho a opinião [...] de que não
fosse um s i de estarmos convencidos de algUma
mal.
Primeiro, se existe essa conexão, a faculdade de pensar, distin-
234
ria fazer para alcançar a melhor vida e recebeu como resposta:
“Assuma a cor dos mortos”.12
Assim, a pergunta é inevitável: como algo relevante para o
mundo em que vivemos pode surgir de um empreendimento tão
236
como na Divina comédia “uma personagem conserva de sua reali-
se usado.
A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos^ocrá-
ticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentaçãó ou não
237.
leva a lugar nenhum ou anda em círculos. Para saber o que é a jus-
tiça, deve-se saber o que é o conhecimento, e para saber o que é
conhecer, deve-se ter uma noção prévia e não examinada de
conhecimento. (Como se lê em Teeteto e Cármides.) Portanto, “um
homem não pode tentar descobrir o que ele sabe ou o que ele não
sabe. Se ele sabe, não há necessidade de investigação; se ele não
sabe... ele nem sequer sabe o que deve procurar” (Ménon 80). Ou,
no Eutífron: Para ser piedoso, devo saber o que é a piedade.
Piedosas são as coisas que agradam aos deuses; mas elas são piedo-
sas porque agradam aos deuses, ou agradam aos deuses porque são
piedosas? Nenhum dos logoi, os argumentos, jamais fica parado;
movem-se ao redor porque Sócrates, ao fazer perguntas para as
quais ele não sabe as respostas, coloca-os em movimento. E quan-
do as afirmações perfazem o círculo completo é em geral Sócrates
que, com prazer, propõe começar tudo de novo e investigar o que
é a justiça, a piedade ou o conhecimento.
Pois os tópicos desses primeiros diálogos tratam de conceitos
cotidianos muito simples, como os que surgem sempre que as pes-
soas abrem a boca e começam a falar. A introdução em geral diz o
seguinte: Sem dúvida, há pessoas felizes, atos justos, homens cora-
josos, coisas belas para ver e admirar, todo mundo sabe disso; o
problema começa com o nosso uso de substantivos, presumivel-
mente derivados daqueles adjetivos que aplicamos a casos parti-
culares, assim como eles nos aparecem (vemos um homem feliz,
percebemos o ato corajoso ou a decisão justa), isto é, com palavras
comofelicidade, coragem,justiça etc., que agora chamamos de con-
ceitos, e que Sólon chamava de a “medida não aparente” (aphanes
metrori) “muito difícil para o espírito compreender, mas que ainda
238
W
* invisível, são parte constitutiva de nosso discurso cotidiano, e
ainda assim não conseguimos explicá-las; quando tentamos defi-
£ ni-las, elas se tornam escorregadias; quando falamos sobre o seu
significado, nada mais fica parado, tudo começa a se mover. Assim,
em vez de repetir o que aprendemos com Aristóteles, isto é, que
Sócrates foi o homem que descobriu o “conceito”, deveriamos nos
perguntar o que Sócrates fez quando o descobriu. Pois, sem dúvi-
da, essas palavras faziam parte da língua grega antes que ele ten-
tasse obrigar os atenienses e a si mesmo a explicar o que eles e ele
queriam dizer quando as pronunciavam, estando convencido de
que nenhum discurso seria possível sem elas.
Essa convicção se tornou questionável. O nosso conhecimen-
to das assim chamadas línguas primitivas nos ensinou que esse
agrupamento de muitos dados particulares num nome comum
não é absolutamente algo corriqueiro, pois essas línguas, cujo
vocabulário é freqüentemente muito mais rico que o nosso, não
possuem esses substantivos abstratos mesmo quando se referem a
objetos claramente visíveis. Para simplificar a questão, vamos
tomar um substantivo que para nós já não soa nem um pouco abs-
trato. Podemos usar a palavra casa para um grande número de
objetos — para a cabana de barro de uma tribo, para o palácio de^
um rei, a casa de campo de um morador da cidade, o chalé na vi®
ou o apartamento na cidade —, mas dificilmente podemos us»la
para as tendas de alguns nômades. A casa em si e por si, auto
kath'auto, que nos faz usar a palavra para todas essas construções
239
interessados no momento, embora talvez tivéssemos menos difi.
culdade em defini-la do que palavras comofelicidade ou justiça. Q
ponto é que ela implica algo consideravelmente menos tangível do
que a estrutura percebida pelos nossos olhos. Implica “abrigar
alguém” e servir de “moradia” como nenhuma tenda, montada
hoje e desmontada amanhã, poderia abrigar alguém ou servir de
residência. A palavra casa, a “medida não vista” de Sólon, “contém
os limites de todas as coisas” pertencentes à moradia: é uma pala-
vra que não poderia existir, se o pressuposto não fosse pensar em
estarmos abrigados, morando em algum lugar, tendo um lar.
Como palavra, casa abrevia todas essas coisas, é o tipo de abrevia-
tura sem a qual o pensar e sua velocidade característica — “veloz
como um pensamento”, como costumava dizer Homero — não
seria possível. A palavra casa é algo como um pensamento congela-
do que o pensar deve desgelar, como que degelar, sempre que dese-
jar descobrir o seu significado original. Na filosofia medieval, esse
tipo de pensamento era chamado meditação, e a palavra devia ser
entendida como algo diferente de contemplação e até oposto a ela.
De qualquer modo, esse tipo de reflexão meditativa não produz
definições, sendo nesse sentido inteiramente sem resultados;
poderia ser, porém, que aqueles que, por qualquer razão, refletem
sobre o significado da palavra casa, venham dar a seus apartamen-
tos uma aparência um pouquinho melhor — embora isso não
ocorra necessariamente e, claro, sem que estejam conscientes de
qualquer coisa tão verificável como causa e efeito. A meditação não
é a mesma coisa que a deliberação, que deve realmente terminar
em resultados tangíveis; e a meditação não visa à deliberação,
embora às vezes, mas de modo algum freqüentemente, nela se
transforme.
240
e tudo o mais, poderia tornar os homens mais piedosos, mais jus-
tos, mais corajosos, mesmo que não lhes fossem dadas definições
oU “valores” para orientar a sua conduta posterior. Aquilo em que
Sócrates realmente acreditava a respeito dessas questões pode ser
mais bem ilustrado pelas comparações que aplicava a si mesmo.
Ele se chamava de moscardo e parteira, e, segundo Platão, foi cha-
mado por outra pessoa de “arraia-elétrica”, um peixe que paralisa
e entorpece pelo contato, uma semelhança cuja propriedade ele
reconheceu sob condição de que fosse compreendido que “a arraia
elétrica só paralisa os outros por estar ela própria paralisada. Não
é que, sabendo eu próprio as respostas, deixe perplexas as outras
pessoas. A verdade é, antes, que também as infecto com a perplexi-
dade que eu próprio sinto”.17 O que, sem dúvida, resume com >
muita clareza a única maneira em que o pensamento pode ser ensi- (
nado — exceto que Sócrates, como ele disse repetidas vezes, não
ensinava nada pela simples razão de que nada tinha para ensinar; :
ele era “estéril” como as parteiras na Grécia, que já tinham passado
da idade de dar à luz. (Como ele não tinha nada a ensinar, nenhu-
ma verdade a transmitir, foi acusado de nunca revelar a sua própria
visão [gnômê] — como sabemos por Xenofonte, que o defendeu
dessa acusação.18 Parece que ele, ao contrário dos filósofos profis^^^
sionais, sentia-se impelido a verificar se os seus semelhantes pa^F W
lhavam as suas perplexidades — e esse impulso é totalmente dife- 1
rente da inclinação a encontrar soluções para enigmas para então
demonstrá-las aos outros.
Examinemos brevemente as três comparações. Primeiro,
Sócrates é um moscardo: ele sabe como provocar os cidadãos que,
sem ele, “continuarão a dormir calmamente pelo resto da vida, a
menos que apareça outra pessoa para voltar a despertá-los. E a que
ele os provoca? A pensar, a examinar as questões, uma atividade
sem a qual a vida, segundo ele, não só não valia muito a pena como
não era plenamente viva.1’
241
Segundo, Sócrates é uma parteira: aqui a implicação é tripla
242
sua aproximação”.21 (A mesma metáfora, aliás, é usada por Hei-
degger, que também fala da “tempestade do pensamento”)
No contexto em que Xenofonte, sempre ansioso por defender
o mestre contra acusações vulgares com argumentos igualmente
vulgares, menciona essa metáfora, ela não faz muito sentido. No
entanto, mesmo ele indica que as manifestações do vento invisível
do pensamento são aqueles conceitos, virtudes e “valores” com os
quais Sócrates lidava nas suas investigações. O problema — e a
razão por que o mesmo homem pode ser compreendido e com-
preender a si próprio como um moscardo e como uma arraia-elé-
trica — é que esse mesmo vento, sempre que despertado, tem a
peculiaridade de varrer para longe as suas manifestações anterio-
res. Está na sua natureza desfazer, como que descongelar, o que a
linguagem, o meio do pensamento, congelou em pensamentos —
palavra (conceitos, frases, definições, doutrinas), cuja “impotên-
cia” e inflexibilidade Platão denuncia de forma tão magnífica na
Sétima carta. A conseqüência dessa peculiaridade é que o pensa-
mento tem inevitavelmente um efeito destrutivo e solapador em
todos os critérios estabelecidos, valores e medições do bem e do
mal, em suma, naqueles costumes e regras de conduta de que tra-
tamos na moral e na ética. Esses pensamentos congelados, Sócrates
parece dizer, são tão prestativos que podemos usá-los em nosso
sono; mas se o vento do pensamento, que vou agora provocar em
vocês, os acordar e os tornar plenamente despertos e vivos, então
vocês verão que nada têm na mão senão perplexidades, e o máxi-
mo que podem fazer com elas é partilhá-las uns com os outros.
Assim, a paralisia do pensamento é dupla: é inerente ao parar
e pensar, a interrupção de todas as outras atividades, e pode ter um
efeito paralisante quando saímos desse estado, agora já não mais
seguros do que nos tinha parecido indubitável enquanto estáva-
mos envolvidos sem pensar no que quer que estivéssemos fazendo.
Seanossa ação consistia em aplicar regras gerais de conduta a casos
243
particulares assim como eles surgem na vida comum, então vamos
nos descobrir paralisados, porque nenhuma dessas regras pode
resistir ao vento do pensamento. Para usar mais uma vez o exem-
plo do pensamento congelado inerente à palavra casa, depois de
pensarmos no seu significado implícito — morar, ter um lar, estar
abrigado—já não é provável que aceitemos para a nossa casa qual-
quer coisa que a moda da época possa prescrever; mas isso absolu-
tamente não garante que seremos capazes de apresentar uma solu-
ção aceitável para os nossos problemas de moradia. Podemos ficar
paralisados.
Isso leva ao último e, talvez, ainda maior perigo desse em-
preendimento perigoso e sem resultados. No círculo ao redor de
Sócrates havia homens como Alcibíades e Crítias — e Deus sabe
que não eram de modo algum os piores entre os seus assim chama-
dos alunos —, e eles tinham se revelado uma ameaça muito real
para a pólis, não por estarem paralisados pela arraia-elétrica, mas,
ao contrário, por terem sido incitados pelo moscardo. Aquilo que
neles fora despertado eram a licenciosidade e o cinismo. Não
tinham se contentado em serem ensinados a pensar sem que lhes
ensinassem uma doutrina, e transformaram os não-resultados do
exame socrático do pensamento em resultados negativos: se não
podemos definir o que é a piedade, vamos ser ímpios — o que é
bem o oposto do que Sócrates tinha esperado alcançar falando
sobre a piedade.
A busca de significado, que inexoravelmente dissolve e exa-
mina de novo todas as doutrinas e regras aceitas, pode a qualquer
momento virar-se contra si mesma e, por assim dizer, produzir
244
Esses resultados negativos do pensar serão então usados tão sono-
lentamente, com a mesma rotina irrefletida, quanto os antigos
valores; no momento em que são aplicados ao domínio dos assun-
tos humanos, é como se nunca tivessem passado pelo processo do
pensar. O que comumente chamamos niilismo — o que somos
tentados a datar historicamente, denegrir politicamente, e atribuir
a pensadores que, supostamente, ousaram pensar “pensamentos
perigosos”—é na verdade um perigo inerente à própria atividade
de pensar. Não há pensamentos perigosos; o próprio pensar é que
é perigoso, mas o niilismo não é o seu produto. O niilismo não é
senão o outro lado do convencionalismo; o seu credo consiste nas
negações dos valores correntes, assim chamados positivos, aos
quais permanece ligado. Todos os exames críticos devem passar
por um estágio de negar, pelo menos hipoteticamente, opiniões e
“valores” aceitos, descobrindo as suas implicações e pressupostos
tácitos, e nesse sentido o niilismo pode ser visto como um perigo
sempre presente do pensar. Mas esse perigo não provém da convic-
ção socrática de que uma vida não examinada não vale a pena ser
vivida, mas, ao contrário, do desejo de encontrar resultados que
tornariam o pensamento posterior desnecessário. Pensar é igual-
mente perigoso para todos os credos e, por si mesmo, não produz
nenhum novo credo.
Entretanto, o não-pensar, que parece um estado tão reco-
mendável para os assuntos políticos e morais, também possui os
seus perigos. Protegendo as pessoas contra os perigos da investiga-
ção, o não-pensar as ensina a se agarrarem a quaisquer regras pres-
critas de conduta que possam existir num dado tempo e numa
dada sociedade. As pessoas então se acostumam não tanto ao con-
teúdo das regras, cujo exame minucioso sempre as conduziría a
245
quaisquer razões ou fins, desejasse abolir os antigos “valores” ou
virtudes, ele acharia essa tarefa bastante fácil, desde que oferecesse
um novo código, e não precisaria de força, nem de persuasão — de
nenhuma prova de que os novos valores são melhores que os anti-
gos — para impô-los. Quanto mais forte era o apego dos homens
ao velho código, mais ansiosos estarão para assimilar o novo; a
facilidade com que essas inversões podem ocorrer em certas cir-
cunstâncias sugere, na verdade, que todo mundo está adormecido
quando elas ocorrem. Este século nos ofereceu alguma experiência
nessas questões: como foi fácil para os governantes totalitários
inverterem os mandamentos básicos da moralidade ocidental —
“Não matarás”, no caso da Alemanha de Hitler, e “Não prestarás
falso testemunho contra teu vizinho”, no caso da Rússia de Stálin.
Para voltar a Sócrates. Os atenienses lhe disseram que pensar
era subversivo, que o vento do pensamento era um furacão que
varria para longe todos os sinais estabelecidos, pelos quais os
homens se orientavam no mundo; ele trazia desordens às cidades
e confundia os cidadãos, especialmente os jovens. E embora
Sócrates negasse que o pensar corrompe, não sustentava que ele
aperfeiçoasse, e embora declarasse que “nenhum bem maior acon-
teceu” à pólis do que aquilo que fazia, não alegava ter começado a
sua carreira como filósofo para tornar-se um tão grande benfeitor.
Se “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”,22 então o
pensar acompanha o viver quando se preocupa com alguns con-
ceitos como justiça, felicidade, temperança, prazer, com palavras
para coisas invisíveis que a linguagem nos ofereceu para expressar
o significado de tudo o que acontece na vida e nos ocorre enquan-
to estamos vivos.
Sócrates dá a essa busca de significado o nome de erbs, um
tipo de amor que é primariamente uma necessidade — ele deseja
o que não tem—e que é a única questão em que ele se diz especia-
lista.23 Os homens amam a sabedoria e praticam a filosofia (philo-
246
sophein) porque não são sábios, assim como amam a beleza e“pra-
ticam a beleza”, por assim dizer (philokalein, como chamou Péri-
cles),24 porque não são belos. Ao desejar o que não está ali, o amor
estabelece uma relação com ele. Para tornar essa relação manifes-
ta, fazê-la aparecer, os homens falam a respeito disso, assim como
o amante quer falar sobre a sua amada.25 Como a busca é um tipo
de amor e desejo, os objetos do pensamento só podem ser coisas
merecedoras de amor — beleza, sabedoria, justiça etc. A feiúra e o
mal são excluídos, por definição, do interesse do pensamento,
embora possam ocasionalmente aparecer como deficiências,
como a falta de beleza, a injustiça, e o mal (kakia) como a falta do
bem. Isso significa que eles não têm raízes próprias, nenhuma
essência que o pensamento pudesse apreender. O mal, como nos
dizem, não pode ser feito voluntariamente por causa de seu “esta-
tuto ontológico”, como diriamos hoje em dia; consiste numa
ausência, em algo que não é. Se o pensamento dissolve os concei-
tos positivos e normais no seu significado original, então o mesmo
processo dissolve esses “conceitos” negativos na sua falta de senti-
do original, ou seja, em nada. Essa, aliás, não é apenas a opinião de
Sócrates; que o mal é uma mera privação, negação ou exceção da
regra, é a opinião quase unânime de todos os pensadores.26 (A falá-.
cia mais visível e mais perigosa na proposição, tão antiga quan»
Platão: “Ninguém pratica o mal voluntariamente”, é a conclusão
implícita: “Todo mundo quer fazer o bem”. A triste verdade é que a
maior parte do mal é feita por pessoas que nunca decidiram ser
boas ou más.)
Aonde chegamos no que diz respeito a nosso problema — a
incapacidade de pensar ou a recusa a pensar e a capacidade de fazer
o mal? Chegamos à conclusão de que apenas as pessoas investidas
desse erõs, esse amor desejoso da sabedoria, beleza e justiça, são
247
mente o que não estávamos procurando quando propusemos a
questão de saber se a atividade de pensar, o seu próprio desempe-
nho — distinto e independente de quaisquer qualidades que a
natureza de um homem, a sua alma, possa possuir — o condicio-
na de tal maneira que ele é incapaz do mal.
ui
248
o mal e que a virtude pode ser ensinada; mas sabemos que Platão
achava mais prudente confiar em ameaças.
As duas proposições socráticas positivas são as seguintes. A
primeira: “É melhor sofrer o mal do que fazer o mal” — ao que
Cálicles, o interlocutor no diálogo, replica o que toda a Grécia teria
replicado: “Sofrer o mal não é digno de um homem, mas de um
escravo, para quem é melhor morrer do que viver, para quem não
é sequer capaz de socorrer a si mesmo quando é ultrajado, ou àque-
les que lhe são caros” (474). A segunda: “Seria melhor para mim
que a minha lira ou um coro que eu dirigisse fossem desafinados
ou estridentes com dissonâncias, e que multidões de homens discor-
dassem de mim do que eu, sendo um só, estivesse em desarmonia
comigo mesmo e me contradissesse”. O que leva Cálicles a respon-
der que Sócrates está “enlouquecendo com a eloqüência”, e que
seria melhor para ele e todos os demais se ele deixasse a filosofia
em paz (482).
E nisso, como veremos, ele tem um argumento válido. Foi real-
mente a filosofia, ou melhor, a experiência de pensar, que levou
Sócrates a fazer essas afirmações—embora, evidentemente, ele não
tivesse começado o seu empreendimento para chegar a elas. Pois
seria um erro grave, acredito, compreendê-las como os resultados de
alguma cogitação sobre a moralidade; são intuições, sem dúvida,
mas intuições da experiência, e no que diz respeito ao próprio pro-
cesso de pensar são, quando muito, subprodutos incidentals.
Temos dificuldades em perceber como a primeira afirmação
deve ter soado paradoxal quando foi proferida; depois de milhares
de anos de usos e abusos, ela parece um dito moralizante barato. E
a melhor demonstração de como é difícil para as mentes moder-
nas compreender a estocada da segunda afirmação é o fato de que
suas palavras-chave, “Sendo um só” seria pior para mim estar em
desavença comigo mesmo do que em desacordo com multidões de
homens, sejam freqüentemente omitidas na tradução. Quanto à
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primeira, trata-se de uma afirmação subjetiva que significa ser
melhor para mim sofrer o mal do que fazer o mal, a qual é contes-
devemos impedir que o mal seja feito porque o mundo que deve-
tes —aquele que sofreu o mal pode estar disposto a perdoar, talvez
tiría alternativa a não ser fazer ou sofrer o mal, então você concor-
pensar em si mesma.
E isso nos leva à segunda afirmação, que é o pré-requisito da
dúvida, quando apareço e sou vista pelos outros, sou uma só; do
quase não apareça para mim, o que indica que o “sendo uma só”
apenas para os outros, mas também para mim mesma, e nesse últi-
mo caso não sou claramente apenas uma só. Uma diferença é inse-
rida na minha Unicidade.
na sua identidade, mas é também diferente dos outros; esse ser dife-
nn
rente pertence à sua própria natureza. Quando tentamos apreendê-
lo em pensamento, querendo defini-lo, devemos levar em conside-
ração essa alteridade (alteritas) ou diferença. Quando dizemos o
que uma coisa é, também dizemos sempre o que não é; toda deter-
minação, como diz Spinoza, é negação. Referido apenas a si mesmo,
é o mesmo (auto [isto é, hekaston] heautò tauton: “Cada um em si
mesmo é o mesmo”),27 e tudo o que podemos dizer sobre isso na sua
pura identidade é: uma rosa é uma rosa é uma rosa. Mas esse não é
absolutamente o caso se eu, na minha identidade (“sendo uma só”),
me relaciono comigo mesma. Essa coisa curiosa que eu sou não
necessita de nenhuma pluralidade para estabelecer a diferença; ela
carrega a diferença dentro de si mesma quando diz: “Eu sou eu”
Enquanto estou consciente, isto é, consciente de mim mesma, sou
idêntica a mim mesma só para os outros a quem apareço como uma
só e a mesma. Para mim mesma, ao articular esse estar-consciente-
de-mim-mesma, sou inevitavelmente duas-em-um — o que, aliás,
é a razão pela qual a busca da identidade, agora em voga, é vã, e a
nossa moderna crise de identidade só poderia ser resolvida pela
perda da consciência de si. A consciência humana sugere que a dife-
rença e a alteridade, características tão destacadas do mundo das
aparências tal como ele é dado ao homem como seu hábitat entre
uma pluralidade de coisas, são também as próprias condições para
a existência do ego do homem. Pois esse ego, o eu-sou-eu, experi-
menta a diferença na identidade precisamente quando não está
relacionado às coisas que aparecem, mas apenas a si mesmo. Sem
essa divisão original, que Platão mais tarde empregou na sua defi-
nição de pensar como o diálogo silencioso (eme emautõ) entre mim
e mim mesma, o dois-em-um, que Sócrates pressupõe na sua afir-
mação sobre a harmonia comigo mesma, não seria possível.28 A
consciência de si não é o mesmo que o pensamento; mas sem ela o
pensamento seria impossível. O que o pensar realiza no seu proces-
so é a diferença dada na consciência de si.
Para Sócrates, esse dois-em-um significava simplesmente
que, se alguém quisesse pensar, deveria cuidar para que os dois que
travam o diálogo do pensamento estivessem em boa forma, que os
parceiros fossem amigos. É melhor para alguém sofrer o mal do
que fazê-lo, porque ele sempre pode continuar a ser o amigo do
sofredor; quem gostaria de ser o amigo de um assassino e ter de
viver junto com um homicida? Nem mesmo um assassino. Que
tipo de diálogo poderia ter com ele? Exatamente o diálogo que
Shakespeare deixou que Ricardo m travasse consigo mesmo, de-
pois que vários crimes tinham sido cometidos.
(304). Em outras palavras, quando Hípias vai para casa, ele conti-
casa, onde estará sozinho (alone), a sós (in solitude), para encon-
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consciência — como algo que está ausente. A consciência aparece
speare diz: “Todo homem que pretende viver bem se esforça [...]
para viver sem ela”, e o sucesso nesse empenho é fácil porque tudo
eisso significa que ele nunca será capaz de prestar contas do que diz
sentimento, mas em todos os que não são maldosos, que não têm
noite.
Para o ego pensante e a sua experiência, a consciência que
“deixa um homem cheio de embaraços” é um efeito colateral. E
cria valores, não descobrirá, de uma vez por todas, o que é “o bem”,
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efeito liberador sobre uma outra faculdade humana» a faculdade
1971