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Hannah Arendt Jerome Kohn

@2003byFundoLit«ârio
Copyright

Título origin^
and Judgement
Responsibility

Ciipa
Ettore Bottini

Foto de capa
©fattmann/Corbis/Stock Photos

Revisão técnica

André Duarte
Bethânia Assy o

rmuL
índice remissive!
DanielA. de André a
Data
Preparação
Claudia Abeling Biblioteca

Revisão
Olga Cafalcchio
&F 0 t
IsabelJorgeCury

Dato (QP)

(Câmara Brasileira do Lwro, s p, Brasil)_________ _____________

Arendt, Hannah _

Responsabilidade e julgamento / Hannah Arendt ; edição

Jerome Kohn ; revisão técnica Bethânia Assy e André Duarte ;

Itraduçào Rosaura Einchenberg). — São Paulo: Companhia das

Ums,20W.

Título original: Responsibility and Judgement

Bibliografia.

CSBN 978-85-359-0501-4

1. Ética política 2. Responsabilidade 3. Julgamento 4.


Participação política t. Kohn, Jerome, n. Titulo

________________ __ __________________________ c d d -172


Índia para catálogo sistemático:

1. Responsabilidade e julgamento: Ética política 172

(2008]

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SCHVMCZITOA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32

04532-002—São Paulo—sp

Telefone (11) 3707-3500

Fax(1113707-3501

www-companhiadasletras.com.br
Sumário

Introdução à edição americana — Jerome Kohn................... 7

Introdução à edição brasileira — Bethânia Assy ................... 31

Nota dos revisores técnicos.................................................................. 61

Prólogo....................................................................................................... 65

I — RESPONSABILIDADE
Responsabilidade pessoal sob a ditadura.................................. 79

Algumas questões de filosofia moral.......................................... 112

Responsabilidade coletiva............................................................... 213

Pensamento e considerações morais.......................................... 226

II — JULGAMENTO
Reflexões sobre Little Rock............................................................. 261

O vigário: culpa pelo silêncio? ....................................................... 282

Auschwitz em julgamento............................................................... 295


Tiro pela culatra...........................................................................

Notas.........................................................
......................... 347
índice remissive........................................
......................... 367
Responsabilidade pessoal
sob a ditadura'

Inicialmente, gostaria de comentar a controvérsia um tanto

furiosa desencadeada pelo meu livro Eichmann em Jerusalém. Uso

deliberadamente a palavra “desencadeada”, em vez da palavra

“causada”, pois, como já tenho apontado, uma grande parte da

controvérsia se dirigia a um livro que jamais fora escrito. Por isso,

a minha primeira reação foi desconsiderar toda a questão com as

famosas palavras de um espirituoso austríaco: “Não há nada tão

divertido quanto a discussão de um livro que ninguém leu” Como

a controvérsia continuou, entretanto, e como, especialmente nos

seus últimos estágios, mais e mais vozes não só me atacavam pelo

que eu nunca tinha dito, mas, ao contrário, passaram a me defen-

der por isso, comecei a compreender que talvez houvesse algo mais

nesse exercício levemente soturno do que sensação ou diversão.

Tive igualmente a impressão de que algo mais do que “emoções”

estava envolvido, isto é, algo mais do que mal-entendidos hones-

tos, que em alguns casos causaram um autêntico colapso de comu-

nicação entre a autora e o leitor; e também algo mais do que as dis-

torções e falsificações de grupos de interesse, que tinham menos

7A
medo do meu livro que da possibilidade de que ele desse início a

outro exame imparcial e detalhado do período em questão.

A controvérsia invariavelmente se propunha a toda espécie de

questões estritamente morais, muitas das quais nunca tinham me

ocorrido, enquanto outras tinham sido mencionadas por mim

apenas de passagem. Eu apresentara um relato factual do julga-

mento, e até o subtítulo do livro, Um relato sobre a banalidade do

mal, aos meus olhos era tão evidentemente sustentado pelos fatos

do processo que eu não sentia ser necessária mais nenhuma expli-

cação. Eu apontara para um fato que sentia ser chocante por con-

tradizer as nossas teorias a respeito do mal, portanto, para algo ver-

dadeiro, mas não plausível.

De certo modo, eu tinha aceito como natural que todos ainda

acreditamos, junto com Sócrates, que é melhor sofrer o mal do que

infligi-lo. Essa crença revelou-se um erro. Havia uma convicção

difundida de que é impossível resistir a qualquer tipo de tentação,

de que não se podia confiar em nenhum de nós, nem sequer espe-

rar que resistíssemos no momento crítico, de que ser tentado e ser


forçado é quase a mesma coisa, enquanto, nas palavras de Mary
McCarthy, a primeira a identificar essa falácia: “Se alguém lhe
aponta um revólver e diz: ‘Mate o seu amigo, senão vou matar você’,

ele o está tentando, só isso”. Embora uma tentação em que se corre


perigo de vida possa ser uma desculpa legal para um crime, ela não

é certamente uma justificação moral. Finalmente, e de modo muito


surpreendente, já que se tratava de um julgamento cujo resultado,
invariavelmente, era a produção de um juízo, fiquei sabendo que o

próprio julgar é errado: não pode julgar quem não estava presente.
Incidentalmente, esse foi o argumento de Eichmann contra o julga-

mento da corte distrital. Quando informado de que houvera alter-


nativas e de que poderia ter se furtado aos seus deveres assassinos,

ele insistiu em que essas eram lendas do pós-guerra, nascidas da

visão posterior aos acontecimentos e sustentadas por pessoas que

8o
não sabiam ou tinham esquecido como as coisas realmente tinham

se passado.
Há várias razões pelas quais a discussão do direito ou da capa-
cidade de julgar incide na mais importante questão moral. Duas

coisas estão implicadas nesse ponto: primeiro, como posso distin-

guir o certo do errado, se a maioria ou a totalidade do meu ambien-

te prejulgou a questão? Quem sou eu para julgar? E, segundo, em


que medida, se é que há alguma medida, podemos julgar aconteci-
mentos ou ocorrências passados em que não estávamos presentes?
Quanto à última, parece gritantemente óbvio que nenhuma histo-
riografia e nenhum procedimento no tribunal seriam possíveis se
negássemos a nós mesmos essa capacidade. Seria possível dar um
passo além e sustentar que há muito poucos exemplos em que, ao
usar a nossa capacidade de julgar, não julgamos em retrospectiva,
e isso vale tanto para o historiador quanto para o juiz no tribunal,
que podem ter boas razões para desconfiar dos relatos das teste-
munhas oculares ou do julgamento daqueles que estavam presen-
tes. Além do mais, como essa questão de julgar sem estar presente
é geralmente ligada com a acusação de arrogância, quem jamais
afirmou que, ao julgar uma ofensa, pressuponho que eu próprio

seria incapaz de cometê-la? Mesmo o juiz que condena um homem

por assassinato ainda pode dizer: e assim, se não fosse pela graça de
Deus, procedo eu!
Assim, prima facie, tudo isso parece tolice elaborada, mas
quando muitas pessoas, sem terem sido manipuladas, começam a
falar tolice, e se entre elas estão pessoas inteligentes, há geralmen-

te algo mais envolvido do que apenas tolice. Existe em nossa socie-


dade um medo bem difundido de julgar que não tem nada a ver

com a frase bíblica “Não julgues, para que não sejas julgado”, e se

esse medo fala em termos de “atirar a primeira pedra”, invoca essa


frase em vão. Pois, por trás da não-vontade de julgar, oculta-se a

suspeita de que ninguém é um agente livre, e com isso a dúvida de

81
que alguém seja responsável pelo que fez ou de que se podería

esperar que respondesse pelos seus atos. No momento em que se

propõem questões morais, mesmo de passagem, aquele que as

propõe será confrontado com essa assustadora falta de autocon-

fiança e conseqüentemente de orgulho, e também com uma espé-

cie de falsa modéstia que ao dizer: “Quem sou eu para julgar?”, que

realmente significa: “Somos todos parecidos, igualmente ruins, e

aqueles que tentam (ou fingem) permanecer parcialmente decen-

tes são santos ou hipócritas, e em qualquer dos casos deveríam nos

deixar em paz”. Daí o enorme alarido assim que alguém atribui

uma culpa específica a uma pessoa em particular, em vez de pôr a

culpa de todos os atos ou acontecimentos em tendências históricas

e movimentos dialéticos; em suma, em alguma necessidade miste-

riosa que funciona pelas costas dos homens e confere a tudo o que

fazem algum tipo de significado mais profundo. Desde que se tra-

cem as raízes dos atos de Hitler até Platão, Joaquim di Fiore ou Nietz-

sche, até a ciência e tecnologia moderna, ou até o niilismo ou a

Revolução Francesa, tudo está bem. Mas assim que se chama Hitler

de assassino de massas — admitindo, claro, que esse assassino de

massas específico era politicamente muito talentoso e também que

todo o fenômeno do Terceiro Reich não pode ser explicado unica-

mente pelo que Hitler foi e como ele influenciou as pessoas — há

um consenso geral de que esse julgamento da pessoa é vulgar, care-

ce de sofisticação, e não se deveria permitir que interferisse na inter-

pretação da história. Assim, para lhes dar outro exemplo de uma

controvérsia contemporânea, o enredo da peça de Rolf Hochhuth,

O vigário, em que o papa Pio xn é acusado por seu silêncio singular

na época dos grandes massacres de judeus no Leste, foi imediata-

mente contestado, e não apenas pela gritaria da hierarquia católica,

o que afinal é compreensível. Foi também contestado pelas falsifica-

ções daqueles cuja habilidade inata é produzir imagens: Hochhuth,

tem-se afirmado, acusou o papa de ser o principal culpado, para


desculpar Hitler e o povo alemão, o que é uma simples inverdade.

Mais significativa em nosso contexto tem sido a repreensão de que

é “certamente” superficial acusar o papa, a acusação atinge toda a

cristandade; ou de forma ainda mais incisiva: “Sem dúvida, há

razões para uma acusação séria, mas o réu é toda a raça humana”.2

A idéia que gostaria de propor neste momento vai além da falácia

bem conhecida do conceito de culpa coletiva, como ele foi aplica-

do pela primeira vez ao povo alemão e ao seu passado coletivo —

toda a Alemanha é acusada, bem como toda a história alemã desde

Lutero a Hitler —, o que, na prática, se transformou numa caiação

altamente eficaz para todos aqueles que realmente tinham feito

alguma coisa, pois quando todos são culpados ninguém o é. Basta

colocar a cristandade ou toda a raça humana no lugar original-

mente reservado à Alemanha para perceber, ou assim poderia

parecer, o absurdo do conceito, pois agora até mesmo os alemães

deixaram de ser culpados: a culpa não é de ninguém individual-

mente, mas do conceito de culpa coletiva. Além dessas considera-

ções, o que gostaria de apontar é como deve estar profundamente

arraigado o medo de julgar, dar nomes e atribuir culpa—especial-

mente, no que diz respeito àqueles no exercício do poder ou em

alta posição, mortos ou vivos —, se essas manobras intelectuais

desesperadas estão sendo invocadas como ajuda. Pois não é óbvio

que a cristandade sobreviveu com bastante elegância a muitos

papas que foram piores do que Pio xn, precisamente porque toda

a cristandade nunca foi a acusada? E o que se deve dizer daqueles

que preferem jogar todaa humanidade pela janela, por assim dizer,

para salvar um homem de alta posição, e para salvá-lo da acusação

que não é nem de ter cometido um crime, mas apenas uma falha

reconhecidamente grave de omissão?

É afortunado e prudente que não exista nenhuma lei para

falhas de omissão e que nenhum tribunal humano seja invocado

para julgá-las. Mas é igualmente afortunado que ainda exista na


l uaseimP‘’sslve es^aPar^as
*
sociedade uma instituição em que ^
queues de responsabilidade pessoal,em quetodasasjustificaçoes

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xo de Édipo—entram em colapso, em que naosao julgados siste-

mas, tendénãasouopecado original,mas homens de cameeosso

como os senhoreseeu,cujos atosainda são certamente atoshuma-

nos, mas que comparecem perante o tribunal porque transgredí-

ram alguma lei cuja manutenção consideramos essencial para a

integridade de nossa humanidade comum. As questões legais e

morais não são absolutamente idênticas, mas possuem uma certa


afinidade, porque ambas pressupõem o poder de julgamento.

Nenhum repórter de tribunal, se sabe o que está fazendo, pode evi-

tar o envolvimento com essas questões. Como podemos distinguir

o certo do errado, independentemente do conhecimento da lei? E

como podemos julgar sem ter estado na mesma situação?

É nesse ponto que acho apropriado fazer o meu segundo

comentário pessoal. Se a comoção causada pela minha “participa-

ção no julgamento” mostrou, como acho que realmente revelou, o

desconforto que a maioria de nós sente quando confrontada com

questões morais, é melhor admitir que meu desconforto não é


menor. A minha primeira formação intelectual ocorreu numa
atmosfera em que ninguém prestava muita atenção a questões

morais; fomos criados com a pressuposição: Das Moralische vers-


tehtsich von selbst, a conduta moral é algo natural. Ainda me lem-
bro muito bem da minha opinião juvenil sobre retidão moral, que

em geral chamamos de caráter; toda insistência nessa virtude teria

me parecido hipócrita, porque isso também achávamos ser algo


natural e assim de pouca importância, uma qualidade não decisi-

va, por exemplo, na avaliação de uma c .


' v uma Pessoa- Sem duvida, de vez
em quando éramos confrontadnc c
falta d? firme, 1 1J S COm a fraílueza moral, com a
talta de firmeza ou lealdade, com essa rendíra
automatic a - rendição curiosa, quase
automatica, a pressão, especialm?ntej„ • • 4
P mente da opinião pública, que é tão

84
sintomática das camadas educadas de certas sociedades, mas não

fazíamos idéia de como essas questões eram sérias e menos ainda

de aonde poderíam nos levar. Não conhecíamos muito sobre a

natureza desses fenômenos, e receio que nos importávamos ainda

menos. Bem, aconteceu que nos seria dada uma ampla oportuni-

dade de aprender. Para a minha geração e as pessoas da minha ori-

gem, a lição começou em 1933 e terminou quando não só os judeus

alemães, mas o mundo inteiro, tiveram notícia das monstruosida-

des que ninguém julgava possíveis no início. O que aprendemos

desde então, e não é de modo algum pouco importante, pode ser

contado como adições e ramificações do conhecimento adquirido

durante aqueles primeiros doze anos, de 1933 a 1945. Muitos de

nós precisamos dos últimos vinte anos para nos reconciliarmos

com o que aconteceu, não em 1933, mas em 1941,1942 e 1943, até

o amargo fim. E com isso não me refiro à dor e tristeza pessoais,

mas ao próprio horror com o qual, como podemos ver agora,

nenhum dos grupos interessados foi capaz de se reconciliar. Os

alemães cunharam para todo esse complexo o termo altamente

questionável de seu “passado incontrolado”(immíísteredpast).

Bem, a impressão que temos hoje, depois de tantos anos, é que esse

passado alemão ainda continua a ser de certo modo incontrolável

para uma boa parte do mundo civilizado. Na época o próprio hor-

ror, na sua nua monstruosidade, parecia, não apenas para mim,

mas para muitos outros, transcender todas as categorias morais e

explodir todos os padrões de jurisdição; era algo que os homens

não podiam punir adequadamente, nem perdoar. E nesse horror

sem palavras, receio, todos tendemos a esquecer as lições estrita-

mente morais e controláveis que tínhamos aprendido antes, e que

nos seriam ensinadas de novo, em inúmeras discussões, tanto

dentro como fora dos tribunais.

Para esclarecer a distinção entre o horror inexprimível, no

qual não se aprende nada, e as experiências não de todo horríveis,

85
mas freqüentemente repulsivas, em que a conduta das pessoas está

sujeita a julgamentos normais, permitam-me menoonar primei-


ro um fato que é óbvio, mas raramente mencionado. O que impor-
tava na nossa primeira educação não teórica em moralidade nunca

foi a conduta do verdadeiro culpado, de quem, mesmo então, nin-


guém em sã consciência esperava senão o pior. Assim, ficávamos

ofendidos mas não moralmente perturbados, com o comporta-


mento bestial dos membros das tropas de assalto nos campos de

concentração e nos porões de tortura da policia secreta, e teria sido

realmente estranha a indignação moral com os discursos dos


manda-chuvas nazistas no poder, cujas opiniões tinham sido

notórias havia anos. O novo regime nos propunha então nada

mais do que um problema político muito complexo, e um de seus


aspectos era a introdução da criminalidade no domínio público.
Acho que também estávamos preparados para as conseqüências
do terror cruel, e teríamos admitido de bom grado a probabilidade
de esse tipo de medo acovardar a maioria dos homens. Tudo isso
era terrível e perigoso, mas não propunha problemas morais. A
questão moral surgiu apenas com o fenômeno da “coordenação”,
isto é, não com a hipocrisia inspirada no medo, mas com esse dese-
jo muito primitivo de não perder o trem da História com essa
como que honesta mudança de opinião, da noite para o dia, que

acometeu uma grande maioria das figuras públicas em todos os


procedimentos da vida e em todas as ramificações da cultura,
acompanhada, como foi, pela incrível facilidade com que amiza-
des de vidas inteiras foram rompidas e abandonadas. Em suma, o

que nos perturbou não foi o comportamento de nossos inimigos,


o de nossos amigos, que não tinham feito nada para produzir

uação. Eles não eram responsáveis pelos nazistas, estavam

apenas impressionados com o sucesso nazista e incapacitados de


opor o seu próprio julgamento ao veredicto da História, assim
como eles o interpretavam. Sem levar em consideração o colapso

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quase universal, não da responsabilidade pessoal, mas do
to pessoal nos primeiros estágios do regime nazista, é impossível
compreender o que realmente aconteceu. É verdade que muitas

dessas pessoas logo se decepcionaram, sendo bem conhecido que


a maioria dos homens de 20 de julho de 1944, que pagaram com a

vida por sua conspiração contra Hitler, tinha estado ligada ao regi-
me em algum momento. Ainda assim, creio que essa primeira
desintegração moral na sociedade alemã, mal perceptível aos de

fora, foi como um ensaio geral para o seu colapso total, que deve-
ria ocorrer durante os anos da guerra.

Chamei a atenção de vocês para esses problemas pessoais a


fim de me expor não à acusação de arrogância, que acho estar fora
de questão, mas à dúvida mais justificável, de saber se pessoas com

tão pouco preparo mental ou conceituai para as questões morais


estão afinal qualificadas para discuti-las. Tivemos de aprender
tudo do zero, como que em estado bruto, isto é, sem a ajuda de cate-
gorias e regras gerais nas quais incluir as nossas experiências. Exis-
tem, entretanto, no outro lado da cerca, todos aqueles que estavam
plenamente qualificados para discutir as questões de moralidade e
as tinham na mais alta estima. Essas pessoas se mostraram incapa-
zes não só de aprender alguma coisa, mas, pior, rendendo-se facil-
mente à tentação demonstraram muito convincentemente, pela
sua aplicação de conceitos e padrões tradicionais durante e após o
fato, como esses tinham se tornado inadequados, como tinham
sido pouco estruturados ou destinados a ser aplicados às condi-
ções que efetivamente surgiram. Quanto mais essas coisas são dis-

cutidas, mais claro se torna, acho eu, que realmente nos vemos

numa posição entre a cruz e a espada.


Para dar, neste ponto, apenas um exemplo particular de nossa
falta de clareza em todas essas questões, considere-se a questão da
punição legal, punição que é geralmente justificada por uma d

seguintes razões: a necessidade de a sociedade ser protegida co

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o crime, a reabilitação do criminoso, a força dissuasiva do exemplo

de advertência para os criminosos potenciais e, finalmente, a jus-

tiça retributiva. Um momento de reflexão nos convencerá de que

nenhuma dessas razões é válida para a punição dos assim chama-

dos criminosos de guerra: essas pessoas não foram criminosos

comuns, e dificilmente se pode razoavelmente esperar que algum

deles cometa outros crimes mais adiante; a sociedade não precisa

ser protegida contra eles. Que possam ser reabilitados pelas sen-

tenças de prisão é ainda menos provável do que no caso de crimi-

nosos comuns, e quanto à possibilidade de dissuadir esses crimi-

nosos no futuro, as chances são de novo terrivelmente pequenas

em vista das circunstâncias extraordinárias em que esses crimes

foram cometidos ou poderíam ser cometidos no futuro. Até a

noção de retribuição, a única razão não totalitária dada para a

punição legal e, por isso, de certo modo desafinada com o pensa-

mento legal corrente, não é aplicável em vista da magnitude do

crime. Ainda assim, embora nenhuma das razões que em geral

invocamos para a punição seja válida, o nosso senso de justiça

acharia intolerável abrir mão da punição e deixar impunes aque-

les que assassinaram milhares, centenas de milhares e milhões de

seres humanos. Se isso não passasse de um desejo de vingança seria

ridículo, sem falar no fato de que a lei e a punição por ela imposta

surgiram sobre a Terra para quebrar o interminável círculo vicio-

so da vingança. Assim, aqui estamos nós, exigindo e impondo

punição de acordo com nosso senso de justiça, enquanto, por

outro lado, esse mesmo senso de justiça nos informa que todas as

nossas noções anteriores sobre a punição e suas justificações nos

desapontaram.

Retornando a minhas reflexões pessoais sobre quem estaria

qualificado para discutir essas questões: são aqueles que têm

padrões e normas que não se ajustam à experiência, ou aqueles que

não têm em que se apoiar senão na sua experiência, uma experiên-


cia, ainda por cima, não padronizada por conceitos preconcebi-

dos? Como podemos pensar e, ainda mais importante em nosso

contexto, como podemos julgar sem nos sustentarmos em padrões

preconcebidos, normas e regras gerais em que os casos e exemplos

particulares podem ser subsumidos? Ou, em outras palavras, o que

acontece à faculdade humana de julgamento quando confrontada

com ocorrências que significam o colapso de todos os padrões cos-

tumeiros e, assim, não possuem precedentes, no sentido em que

não são previstas nas regras gerais, nem mesmo como exceções a

essas regras? Uma resposta válida a essas questões teria de começar

com uma análise da ainda muito misteriosa natureza do julga-

mento humano, daquilo que ele pode e não pode realizar. Pois,

apenas se supomos que existe uma faculdade humana que nos

capacita a julgar racionalmente, sem nos deixarmos arrebatar pela

emoção ou pelo interesse próprio, e que ao mesmo tempo funcio-

na espontaneamente, isto é, não é limitada por padrões e regras em

que os casos particulares são simplesmente subsumidos, mas, ao

contrário, produz os seus princípios pela própria atividade de jul-

gar, apenas nessa suposição podemos nos arriscar nesse terreno

moral muito escorregadio, com alguma esperança de encontrar

um apoio para os pés.

Mais uma vez, felizmente para mim, o nosso tópico hoje à

noite não requer que eu lhes ofereça uma filosofia do julgamento.

Mas até uma abordagem restrita do problema da moralidade e

seus fundamentos exige o esclarecimento de uma questão geral,

bem como algumas distinções que, receio, não são geralmente

aceitas. A questão geral diz respeito à primeira parte do meu títu-

lo: “Responsabilidade pessoal”. Esse termo deve ser compreendido

em contraste com a responsabilidade política que todo governo

assume pelas proezas e malfeitorias de seu predecessor, e toda

nação pelas proezas e malfeitorias do passado. Quando Napoleão,

ao tomar o poder na França depois da revolução, disse: “Assumirei


a responsabilidade por tudo que a França fez, desde Luís, o Santo,

até o Comitê de Segurança Pública”, ele apenas afirmou, um pouco

enfaticamente, um dos fatos básicos de toda a vida política. E,

quanto à naçào, é óbvio que toda geração, por nascer num conti-

nuum histórico, recebe a carga dos pecados dos pais, assim como a

bênção das proezas dos ancestrais. Quem quer que assuma a res-

ponsabilidade política sempre chegará ao ponto em que diz, com

Hamlet:

O tempo está fora dos gonzos: maldito despeito


Que eu tenha nascido para torná-lo direito!3

Endireitar o tempo significa renovar o mundo, o que pode-

mos fazer porque todos entramos num ou noutro tempo como

recém-vindos a um mundo que existia antes de nós e ainda vai

existir depois que partirmos, quando teremos deixado a sua carga

para os nossos sucessores. Mas esse não é o tipo de responsabili-

dade de que estou falando neste momento; não é pessoal, em ter-

mos estritos, e apenas num sentido metafórico é que podemos dizer

que nos sentimos culpados pelos pecados de nossos pais, de nosso

povo ou da humanidade, em suma, por atos que não praticamos.

Em termos morais, é tão errado sentir culpa sem ter feito nada

específico quanto sentir isenção de toda culpa quando se é realmen-

te culpado de alguma coisa. Sempre considerei a quintessência da

confusão moral que, durante o período pós-guerra na Alemanha,

aqueles que em termos pessoais eram totalmente inocentes asse-

gurassem uns aos outros e ao mundo em geral quanto se sentiam


culpados, enquanto muito poucos dos criminosos estavam pron-

tos a admitir sequer o remorso mais tênue. O resultado dessa

admissão espontânea de culpa coletiva foi, claro, uma caiação

muito eficaz, embora involuntária, daqueles que tinham feito

alguma coisa: como já vimos, quando todos são culpados, nin-

90
guém o é. E quando escutamos, na recente discussão na Alemanha

sobre uma extensão do prazo de prescrição para os assassinos

nazistas, que o ministro da Justiça se opôs a essa extensão com o

argumento de que mais zelo na procura do que os alemães cha-

mam “os assassinos entre nós” resultaria apenas em complacência

moral entre os alemães que não são assassinos (Der Spiegel, na 5,

1963, p. 23), isto é, aqueles que são inocentes, vemos imediatamen-

te como pode se tornar perigosa essa confusão moral. O argumen-

to não é novo. Alguns anos atrás, a execução da sentença de morte

para Eichmann despertou uma oposição amplamente difundida,

sob a alegação de que poderia aliviar a consciência dos alemães

comuns e “servir para expiar a culpa sentida por muitos jovens

na Alemanha”, nas palavras de Martin Buber. Bem, se os jovens na

Alemanha, jovens demais para terem feito qualquer coisa,sentem-

se culpados, eles estão errados, confusos ou se utilizando de jogos

intelectuais. Não existem coisas como a culpa coletiva ou a ino-

cência coletiva. A culpa e a inocência só fazem sentido se aplica-


das aos indivíduos.

Recentemente, durante a discussão do julgamento de Eich-

mann, essas questões relativamente simples foram complicadas


pelo que chamarei de a teoria do dente da engrenagem. Quando

descrevemos um sistema político — seu funcionamento, as rela-

ções entre os vários ramos do governo, o funcionamento das


imensas maquinarias burocráticas, das quais fazem parte os canais
de comando e, como as forças civis, militares e policiais estão inter-

ligados, para mencionar apenas características notáveis—é inevi-

tável falarmos de todas as pessoas usadas pelo sistema em termos


de dentes da engrenagem e rodas que mantêm a administração em

andamento. Cada dente da engrenagem, isto é, cada pessoa, deve

ser descartável sem mudar o sistema, uma pressuposição subja-

cente a todas as burocracias, a todo o serviço público e a todas as


funções propriamente ditas. Esse ponto de vista é o da ciência polí-

9i
tica, e se acusamos, ou antes, avaliamos nessa estrutura de referên-

cia, falamos de bons e maus sistemas, e nossos critérios são a liber-

dade, a felicidade ou o grau de participação dos cidadãos, mas a

questão da responsabilidade pessoal daqueles que controlam toda

a engrenagem é uma questão marginal. Nesse ponto, é realmente

verdade o que todos os réus nos julgamentos do pós-guerra disse-

ram para se desculpar: se eu não tivesse feito isso, outra pessoa

podería ter feito e faria.

Pois em qualquer ditadura, quanto mais numa ditadura tota-

litária, o número relativamente pequeno de homens capazes de

tomar decisões — que num governo normal ainda podem ser

nomeados — encolhe para Um, enquanto todas as instituições e

órgãos que começam a controlar ou ratificam a decisão executiva

são abolidos. No Terceiro Reich, pelo menos, havia apenas um

homem que tomava e podia tomar decisões, tendo assim total res-

ponsabilidade política. Esse homem era o próprio Hitler, que

certa vez se descreveu, não num ataque de megalomania, mas

muito corretamente, como o único homem insubstituível em

toda a Alemanha. Todos os demais que tinham alguma coisa a ver

com os assuntos públicos, das posições mais altas às mais baixas,

eram de fato dentes da engrenagem, soubessem disso ou não. Isso

significa que ninguém mais poderia ser considerado pessoalmen-

te responsável?

Quando fui a Jerusalém para assistir ao julgamento de Eich-

mann, senti que a grande vantagem do procedimento do tribunal

era que toda essa história do dente da engrenagem não faz sentido

no seu cenário, forçando-nos assim a olhar para todas essas ques-

tões de um ponto de vista diferente. Sem dúvida que a defesa ten-

taria alegar que Eichmann não passava de um pequeno dente da

engrenagem, era previsível; que o próprio réu pensaria nesses ter-

mos, era provável, e foi o que ele realmente fez até certo ponto;

enquanto a tentativa da acusação de fazer de Eichmann o maior

92
dente da engrenagem — pior e mais importante que Hitler — foi

uma curiosidade inesperada. Os juizes fizeram o que era correto e

apropriado, desconsideraram toda essa noção, o que, incidental-

mente, também fiz, apesar das acusações e elogios em contrário.

Pois como os juizes se deram ao trabalho de apontar explicitamen-

te, na sala de um tribunal não está em julgamento um sistema, uma

história ou tendência histórica, um ismo, o anti-semitismo, por

exemplo, mas uma pessoa, e se o réu é por acaso um funcionário,

ele é acusado precisamente porque até um funcionário ainda é um

ser humano, e é nessa qualidade que ele é julgado. Obviamente, na

maioria das organizações criminosas são os pequenos dentes da

engrenagem que realmente cometem os grandes crimes, e poder-

se-ia até argumentar que uma das características da criminalidade

organizada do Terceiro Reich era o fato de exigir prova tangível de

implicação criminosa de todos os seus funcionários, e não apenas

dos escalões inferiores. Por isso, a pergunta endereçada pelo tribu-

nal ao réu é a seguinte: “Você, fulano de tal, indivíduo com nome,

data e local de nascimento, identificável e por essa razão não des-

cartável, cometeu o crime de que é acusado e por que o cometeu?”

Se o réu responder: “Não fui eu como pessoa quem cometeu o

crime, eu não tinha nem vontade, nem o poder de fazer alguma

coisa por minha própria iniciativa; era um mero dente da engrena-

gem, descartável, qualquer pessoa no meu lugar teria feito o

mesmo; que eu esteja diante deste tribunal, é um acaso”, essa res-

posta seria rejeitada como não essencial para o caso. Se ao réu fosse

permitido declarar-se culpado ou não culpado como representan-

te de um sistema, ele se tornaria, na verdade, um bode expiatório,

(O próprio Eichmann quis se tornar um bode expiatório—propôs

enforcar-se em público e assumir todos os “pecados”. O tribunal lhe

negou essa última oportunidade de exibir sentimentos elevados.)

Em todo sistema burocrático, a transferência de responsabilidades

é uma questão de rotina diária, e se desejamos definir a burocracia

93
em lermos de ciência política, isto é, como uma forma de governo

—o mando dos cargos, em oposição ao mando de homens, de um

único homem, de poucos ou de muitos —, a burocracia é infeliz-

mente o mando de ninguém e, por essa mesma razào, talvez a

forma menos humana e mais cruel de governo. Mas, na sala do tri-

bunal, essas definições não têm serventia. Pois para a resposta:

“Não fui eu quem cometeu o crime, mas o sistema no qual eu era

um dente na engrenagem”, o tribunal imediatamente propõe a

seguinte pergunta: “E por que você se tornou um dente na engre-

nagem ou continuou a sê-lo nessas circunstâncias?”. Se o acusado

deseja transferir as responsabilidades, ele deve mais uma vez

implicar outras pessoas, deve nomeá-las, e essas pessoas aparecem

então como possíveis co-réus e não como a encarnação da neces-

sidade burocrática ou de qualquer outro tipo. O julgamento de

Eichmann, como todos os julgamentos desse tipo, teria sido des-

provido de todo interesse se não tivesse transformado o dente da

engrenagem ou o “referente” da Seção iv B4 do Departamento

Central de Segurança do Reich num homem. Só por essa operação

ter sido realizada com sucesso antes do início do julgamento é que

a questão da responsabilidade pessoal, e portanto da culpa legal,

póde realmentc surgir. E mesmo essa transformação de um dente da

engrenagem num homem não implica que algo como ser dente

da engrenagem — o fato de que os sistemas transformam os

homens em dentes da engrenagem, o que os sistemas totalitários

fazem de forma mais cabal que os outros—estivesse em julgamen-

to. Essa interpretação não passaria de mais uma fuga das limita-

ções estritas do procedimento do tribunal.

Ainda assim, embora o procedimento do tribunal ou a ques-

tão da responsabilidade pessoal sob a ditadura não permitam a

transferência de responsabilidade do homem para o sistema, esse

94
sistema nâo pode ser deixado fora de cogitação. Aparece na forma

de circunstâncias, tanto do ponto de vista legal como moral, mais

ou menos no mesmo sentido em que levamos em consideração as

condições de pessoas desvalidas como circunstâncias mitigadoras,

mas não como desculpas, no caso de crimes cometidos num am-


biente de pobreza. É por essa razão que, tratando da segunda parte

do meu título,“Ditadura”, devo agora incomodá-los com algumas

distinções que nos ajudarão a entender essas circunstâncias. As

formas totalitárias de governo e as ditaduras no sentido habitual

não são a mesma coisa, e grande parte do que tenho a dizer se apli-

ca ao totalitarismo. A ditadura no sentido romano da palavra era

planejada e continua a ser compreendida como uma medida de

emergência do governo constitucional e legítimo, estritamente

limitada no tempo e no poder; ainda a conhecemos bastante bem

como o estado de emergência ou a lei marcial proclamada em áreas

de calamidade pública ou em tempo de guerra. Além disso, conhe-

cemos ditaduras modernas como novas formas de governo, nas

quais ou os militares tomam o poder, abolem o governo civil e pri-

vam os cidadãos de seus direitos e liberdades políticos, ou um par-

tido se apodera do aparato de Estado às custas de todos os outros

partidos e assim de toda a oposição política organizada. Os dois

tipos significam o fim da liberdade política, mas a vida privada e a


atividade não política não são necessariamente afetadas. É verda-

de que esses regimes em geral perseguem os opositores políticos

com grande crueldade, e eles estão certamente muito longe de ser

formas constitucionais de governo no sentido em que passamos a

compreendê-las — nenhum governo constitucional é possível

sem que sejam tomadas medidas para assegurar os direitos de

uma oposição —, mas eles também não são criminosos no senti-

do comum da palavra. Se cometem crimes, eles são dirigidos con-

tra inimigos declarados do regime no poder. Mas os crimes dos

governos totalitários diziam respeito a pessoas que eram“inocen-

95
tes” mesmo do ponto de vista do partido no poder. Foi por essa

razão de criminalidade comum que a maioria dos países assinou

um acordo» depois da guerra, para não conceder o status de refu-

giado político aos culpados que fugiram da Alemanha nazista.

Além disso, a dominação total se estende a todas as esferas da

vida, e não apenas à da política. A sociedade totalitária, em oposi-

ção ao governo totalitário, é na verdade monolítica; todas as

manifestações públicas, culturais, artísticas e eruditas, e todas as

organizações, os serviços sociais e de bem-estar, até os esportes e o

entretenimento, são “coordenados” Não há cargo nem emprego

de relevância pública, das agências de propaganda ao judiciário, da

representação no palco ao jornalismo esportivo, do ensino primá-

rio e secundário às universidades e sociedades acadêmicas, em que

uma aceitação inequívoca dos princípios regentes não seja exigida.

Quem quer que participe da vida pública, independentemente de

ser membro do partido ou das formações de elite do regime, está

implicado de uma ou outra maneira nas ações do regime como um

todo. O que o tribunal requer em todos esses julgamentos pós-

guerra é que os réus não deveriam ter participado em crimes lega-

lizados pelo governo, e essa não-participação tomada como um

padrão legal para o certo e o errado propõe consideráveis proble-

mas, precisamente com respeito à questão da responsabilidade.

Pois a verdade simples da questão é que apenas aqueles que se reti-

raram completamente da vida pública, que recusaram a respon-

sabilidade política de qualquer tipo, puderam evitar tornar-se

implicados em crimes, isto é, puderam evitar a responsabilidade

legal e moral. Na discussão tumultuada das questões morais que

tem ocorrido desde a derrota da Alemanha nazista e a descoberta

da total cumplicidade de todas as camadas da sociedade oficial nos

crimes, isto é, do colapso total dos padrões morais normais, o

seguinte argumento tem sido proposto em intermináveis varia-

ções: nós, que parecemos culpados, somos de fato aqueles que per-

96
manecemos no emprego para impedir que coisas piores aconte-

cessem; apenas aqueles que permaneceram dentro do sistema

tinham uma chance de mitigar a situação e ajudar pelo menos

algumas pessoas; pagamos o tributo ao diabo sem lhe vender a

nossa alma, enquanto aqueles que nada fizeram furtaram-se a

todas as responsabilidades e só pensaram em si mesmos, na salva-

ção de sua preciosa alma. Descrito em termos políticos, esse argu-

mento poderia fazer sentido se a derrota do regime de Hitler hou-

vesse sido alcançada, ou mesmo intentada, em seus estágios

iniciais. Pois é verdade que um sistema totalitário só pode ser der-

rubado por dentro — não por uma revolução, mas por um coup

(Tétat—, a menos, é claro, que seja derrotado na guerra. (Talvez

possamos supor que algo desse tipo ocorreu na União Soviética,

antes ou imediatamente depois da morte de Stálin; a mudança

decisiva de um sistema totalitário cabal para uma ditadura ou tira-

nia de partido único aconteceu provavelmente com a liquidação

de Beria, o chefe da Polícia Secreta.) Mas as pessoas que falam dessa

maneira não eram de modo algum conspiradores — bem-sucedi-

dos ou não. Eram em geral aqueles funcionários públicos sem cujo

conhecimento especializado nem o regime de Hitler, nem o gover-

no de Adenauer, que lhe sucedeu, teriam sido capazes de sobrevi-

ver. Hitler herdou funcionários públicos da República de Weimar,

que os herdara da Alemanha Imperial, assim como Adenauer


devia herdá-los dos nazistas, sem grande dificuldade.

Devo lembrar-lhes que a questão pessoal ou moral, distinta


da responsabilidade legal, quase não surge entre aqueles que eram

adeptos convictos do regime: que eles não podiam se sentir culpa-

dos, mas apenas derrotados, era quase de esperar, a menos que

mudassem de opinião e se arrependessem. Ainda assim, até essa

questão simples tem se tornado confusa porque, quando o dia do

ajuste de contas finalmente chegou, descobriu-se que não houve-

ra adeptos convictos, pelo menos não do programa criminoso pelo

97
qual eram julgados. E o problema é que, embora isso fosse menti-

ra, não era uma mentira simples ou total. Pois o que tinha começa-

do nos estágios iniciais com pessoas politicamente neutras, que

não eram nazistas mas cooperavam com o regime, aconteceu nos

últimos estágios com os membros do partido e até com as forma-

ções de elite das ss: até no Terceiro Reich havia muito poucas pes-

soas que concordavam devotamente com os últimos crimes do

regime, mas um grande número ainda assim estava perfeitamente

disposto a cometê-los. E agora cada um deles, onde quer que tenha

estado e o que quer que tenha feito, alega que aqueles que, sob um

ou outro pretexto, tinham se retirado para a vida privada escolhe-

ram a saída fácil e irresponsável. A menos, é claro, que tivessem

usado a sua posição privada como um disfarce para uma oposição

ativa—uma escolha que pode ser facilmente desprezada, pois não

é obviamente tarefa de ninguém ser santo ou herói. Mas a respon-

sabilidade pessoal ou moral é tarefa de todos e, nesse caso, argu-

menta-se, era mais “responsável” permanecer no emprego, não

importa sob que condições ou com que consequências.

Na sua justificação moral, o argumento do mal menor tem

desempenhado um papel proeminente. Se somos confrontados

com dois males, assim reza o argumento, é nosso dever optar pelo

menor, ao passo que é irresponsável nos recusarmos a escolher.

Aqueles que denunciam a falácia moral desse argumento são em

geral acusados de um moralismo esterilizado, alheio às circuns-

tâncias políticas, de não estarem dispostos a sujar as mãos; e deve-

se reconhecer que não é tanto a filosofia política ou moral (com a

única exceção de Kant, que por essa razão é frequentemente acusa-

do de rigorismo moralista), mas o pensamento religioso que tem

rejeitado muito inequivocamente todos os compromissos com os

males menores. Assim, como fui informada durante uma recente

discussão desses assuntos, o Talmude sustenta que se eles pedem a

você que sacrifique um homem pela segurança da comunidade,


não o entregue; se eles pedem a você que entregue uma mulher

para ser violentada para o bem de todas as mulheres, não deixe que
seja violentada. É nessa mesma veia, e lembrando claramente a

política do Vaticano durante a última guerra, que o papa João xxm

escreveu sobre o comportamento político do papa e do bispo, o

que é chamado a “prática da prudência”: eles “devem tomar cuida-

do para [...] não serem de alguma maneira coniventes com o mal,

esperando que com essa atitude possam ser úteis a alguém”.

Politicamente, a fraqueza do argumento sempre foi que aque-

les que escolhem o mal menor esquecem muito rapidamente que

escolhem o mal. Como o mal do Terceiro Reich era finalmente tão

monstruoso que por nenhum esforço de imaginação poderia ser

chamado de um “mal menor”, poderiamos ter suposto que dessa

vez o argumento desmoronaria de uma vez por todas, o que sur-

preendentemente não é o caso. Além disso, se olharmos para as téc-

nicas do governo totalitário, é óbvio que o argumento do “mal

menor”—longe de ser proposto apenas do lado de fora por aque-

les que não pertencem à elite dominante — é um dos mecanismos

embutidos na maquinaria de terror e criminalidade. A aceitação

de males menores é conscientemente usada para condicionar os

funcionários do governo, bem como a população em geral, a acei-

tar o mal em si mesmo. Para dar apenas um dentre muitos exem-

plos: a exterminação dos judeus foi precedida por uma seqüência

muito gradual de medidas antijudaicas, cada uma das quais foi

aceita com o argumento de que a recusa a cooperar pioraria ainda

mais a situação — até que se atingiu um estágio em que nada pior

poderia possivelmente ter acontecido. O fato de que nesse estágio

o argumento não tenha sido abandonado e de que sobrevive até

hoje, quando a sua falácia se tornou tão gritantemente óbvia—na

discussão da peça de Hochhuth, escutamos mais uma vez que um

protesto do Vaticano sob qualquer forma teria apenas piorado a

situação! —, é bastante surpreendente. Vemos nesse ponto que a

99
mente humana não está disposta a enfrentar realidades que, de

uma ou outra maneira, contradizem totalmente a sua estrutura de

referência. Infelizmente, parece ser muito mais fácil condicionar o

comportamento humano e fazer as pessoas se portarem da manei-

ra mais inesperada e abominável do que convencer alguém a

aprender com a experiência, como diz o ditado; isto é, começar a

pensar e julgar em vez de aplicar categorias e fórmulas que estão

profundamente arraigadas em nossa mente, mas cuja base de

experiência foi esquecida há muito tempo, e cuja plausibilidade

reside antes na coerência intelectual do que na adequação a acon-

tecimentos reais.

Para esclarecer esse predicado do julgamento sem poder

recorrer à aplicação de regras geralmente aceitas, vou passar dos

padrões morais para os legais, porque os últimos são geralmente

mais bem definidos. Talvez saibam que, nos julgamentos dos cri-

minosos de guerra e na discussão da responsabilidade pessoal, os

réus e seus advogados apelaram tanto para o argumento de que

esses crimes eram “atos de Estado” quanto para a declaração de que

foram cometidos por obediência a “ordens superiores”. Essas duas

categorias não devem ser confundidas. Ordens superiores estão

legalmente dentro do domínio da jurisdição, mesmo que o réu

possa se ver na “posição” classicamente “difícil” do soldado “sujei-

to a ser fuzilado por uma corte marcial ao desobedecer a uma

ordem, e a ser enforcado por um juiz e júri se a ela obedecer” (como

diz Dicey em seu Law of the Constitution), Atos de Estado, entre-

tanto, estão completamente fora da estrutura legal; são presumi-

velmente atos soberanos sobre os quais nenhum tribunal tem

jurisdição. Ora, a teoria por trás da fórmula dos atos de Estado afir-

ma que governos soberanos podem ser forçados em circunstâncias

extraordinárias a usar meios criminosos, porque disso depende a

sua própria existência ou a manutenção de seu poder; a razão de

Estado, assim diz o argumento, não pode ser restrita por limitações

100
legais ou considerações morais, válidas para os cidadãos privados

que vivem dentro de suas fronteiras, porque o Estado inteiro, e

assim a existência de tudo o que nele ocorre, está em questão. Nessa

teoria, o ato de Estado é tacitamente assemelhado ao “crime” que

um indivíduo pode ser forçado a cometer em legítima defesa, isto

é, a um ato que também tem a permissão de seguir impune por

causa de circunstâncias extraordinárias, quando a própria sobre-

vivência é ameaçada. O que torna esse argumento inaplicável aos

crimes cometidos pelos governos totalitários e seus funcionários

não é apenas que esses crimes não foram de modo algum induzi-

dos pela necessidade, de uma ou outra forma; ao contrário, pode-

riamos argumentar com força considerável que, por exemplo, o

governo nazista teria sido capaz de sobreviver, até talvez de ganhar

a guerra, se não tivesse cometido seus famosos crimes. Talvez seja

até mais importante, teoricamente, que o argumento da razão de


Estado, subjacente a toda discussão dos atos de Estado, pressupõe

que um crime dessa ordem seja cometido dentro de um contexto

de legalidade, que ele ajuda a manter, junto com a existência polí-

tica da nação. A lei a ser imposta necessita de poder político, assim,

um elemento de política do poder está sempre implicado na

manutenção da ordem legal. (Não estou falando, é claro, sobre atos

cometidos contra outras nações, nem estou interessada na questão

de saber se a própria guerra pode ser definida como um “crime

contra a paz” — para usar a linguagem dos Julgamentos de

Nuremberg.) O que nem a teoria política da razão de Estado, nem

o conceito legal de atos de Estado previram foi a inversão comple-

ta da legalidade; no caso do regime de Hitler, toda a maquinaria do

Estado impôs o que são normalmente consideradas atividades cri-

minosas, para usar uma linguagem amena; quase não havia

nenhum ato de Estado que, segundo os padrões normais, não fosse

criminoso. Por isso, já não era o ato criminoso que, como exceção

à regra, supostamente servia para manter o domínio do partido no

101
, nn caso de crimes famosos como o assassi-
poder- por exemP . Muss0|ini> ou 0 assassinato do duque

nato de Matteo i contrário, atos não crimino-


d’Enghien por jpoea * ^’dem de Himmler para interromper o

sos ocasionais ã eram exceções à “lei” da Alemanha


nrograma de exterminaçao
Pnazista, - pc feitas
8 concessões feitas à
a terrível
terr necessidade. Voltando por um
momento à distinção entre governo totalitanoe outras drtaduras,

é precisamente a relativa raridade de crimes cabais que dtstingue

as ditaduras fascistas das totalitárias plenamente desenvolvidas,

embora seja certamente verdade que há mais crimes cometidos

por ditaduras fascistas ou militares do que seria até concebível

num governo constitucional. O que importa em nosso contexto é


apenas que eles ainda são claramente reconhecíveis como exceções

e que o regime não os admite abertamente.


Da mesma forma, o argumento das “ordens superiores”, ou o

argumento contrário dos juizes sobre o fato de as ordens superio-


res não serem desculpa para a realização de crimes, é inadequado.

Neste ponto, igualmente, a pressuposição é que as ordens não são


normalmente criminosas e que, por essa mesma razão, é possível
esperar que aquele que recebe as ordens reconheça a natureza cri-
minosa de uma ordem particular — como no caso de um oficial
enlouquecido que ordena o fuzilamento de outros oficiais ou no
caso de maus-tratos e assassinato de prisioneiros de guerra. Em
termos jurídicos, as ordens a serem desobedecidas devem ser
“manifestamente ilegais”; a ilegalidade “deveria balançar como
uma bandeira preta semelhante a um aviso em que se lesse

°i '^rnoutrasPa^avras,no tocante ao homem que tem de


decidir obedecer ou desobedecer, a ordem deve ser claramente
litáriofe es™T ' ° P™^™ é nOS regimes tOta-
ltar 08,6 especialmente nos últimos anos do regime de Hitler essa
marca pertencia claramente a ordem •
Eichmann, que decidira ser e ne criminosas. Assim, para
p rmanecer um cidadão respeitador

102
das leis no Terceiro Reich, a bandeira preta da ilegalidade manifes-
ta pairava acima daquelas últimas ordens dadas por Himmler no

outono de 1944, segundo as quais as deportações deviam ser inter-

rompidas e as instalações das fábricas da morte, desmanteladas. O

texto do qual acabo de extrair a citação está contido no julgamen-

to de uma Corte Militar Israelense, que, mais do que a maioria das

outras cortes no mundo, estava consciente das dificuldades ine-


rentes à palavra “legalidade”, em vista da natureza manifesta e, por
assim dizer, legalmente criminosa da Alemanha de Hitler. Extra-

polou, portanto, a fraseologia comum de que um “sentimento de

legalidade [...] jaz profundo em toda consciência humana, inclusi-


ve daqueles que não são versados em livros de direito”, e falava de
“uma ilegalidade gritante aos olhos e repulsiva ao coração, desde
que os olhos não sejam cegos, nem o coração empedernido e cor-
rupto”— o que está tudo muito bem, mas mostrará ser insuficien-
te, receio, nos momentos de crise e exceção, “q uando as cartas estão
sobre a mesa”.4 Pois, nesses casos, os homens que agiram mal esta-
vam muito bem familiarizados com a letra e o espírito da lei do país
em que viviam, e hoje, quando são considerados responsáveis, o
que realmente exigimos deles é um “sentimento de legalidade”
profundo dentro de si próprio, para contradizer a lei do país e o
conhecimento que dela possuem. Nessas circunstâncias, talvez
seja preciso muito mais do que olhos não cegos e um coração não
empedernido ou corrupto para identificar a “ilegalidade”. Eles
agiam sob condições em que todo ato moral era ilegal e todo ato
legal era criminoso.

Por isso, a visão um tanto otimista da natureza humana, tão


claramente presente no veredicto não só dos juizes no julgamento
de Jerusalém, mas de todos os julgamentos do pós-guerra, pressu-
põe uma faculdade humana independente, sem apoio na lei e na
opinião pública, que julga de novo com toda a espontaneidade

cada ato e intenção, sempre que surge o momento. Talvez possua-

103
mos realmente essa faculdade e sejamos legisladores, cada um de

Z sempre que agimos: mas essa não era a oprntao dos)utzes.

; J ctóríra eles não queriam dizer mais do que o


Apesar de toda a retórica, eles nau q .
seeuinte- se uma senMMe para essas cotsas tem s.do mata em

nós por tantos séculos, ela nào podia de repente ter sido perdtda. E

isso, penso, é muito duvidoso em vista da evidência que possui-

mos, e também em vista do fato de que ano após ano uma ordem

“ilegal” se seguia a outra, todas exigindo não apenas crimes que,


fortuitamente, não tinham conexão entre si, mas construíam com
total coerência e cuidado a assim chamada nova ordem . Essa

“nova ordem” era exatamente o que dizia ser — não apenas horri-

pilantemente nova, mas também, e acima de tudo, uma ordem.

A difundida noção de que lidamos nesse ponto com nada

mais do que uma gangue de criminosos, conspiradores que come-


terão qualquer crime, é dolorosamente equivocada. Na verdade,
havia um número flutuante de criminosos nas formações de elite
do movimento e um número maior de homens culpados por atro-
cidades. Apenas no início do regime, entretanto, nos campos de

concentração sob a autoridade das tropas de assalto, é que essas


atrocidades tinham um objetivo político claro: espalhar o medo e
abafar com uma onda de terror indizível todas as tentativas de
oposição organizada. Mas essas atrocidades não eram típicas e, o
que é mais importante, embora houvesse nelas uma grande per-
dade, elas não eram realmente permitidas. Assim como não
era permitido roubar, nem aceitar subornos. Ao contrário, como

'"SÍStÍr repetÍ,iaS V'Zt"” as 'luetrizes eram:


Injustiças desnecessárias devem ser evitorio » n , ,
o interrogatório policial ihp f d 'E qUand°’durante
P > he foi sugerido que essas oalavrns soa-
vam um pouco irônicas no trato cnm palavras soa
enviadas à morte certa ele Pessoas que estavam sendo
k encarregado das perguntas est” entendeu do ^ue ° oflcial
k ma„„ se rebelava a -^b'

luade, nao de assassinato.


104
Igualmente equivocada é a noção comum de que lidamos aqui

com uma irrupção do niilismo moderno, se compreendemos o

credo niilista no sentido do século xix: “Tudo é permitido”. A faci-

lidade com que as consciências podiam ser entorpecidas era em

parte a consequência direta do fato de que de modo algum tudo era

permitido.
Pois o cerne moral dessa questão jamais é atingido intitulan-
do-se o que aconteceu de “genocídio” ou contando-se os muitos

milhões de vítimas: o extermínio de povos inteiros já ocorrera na

Antigüidade, bem como na civilização moderna. Esse cerne moral


apenas é atingido quando percebemos que o fato se deu dentro da
estrutura de uma ordem legal, e que a pedra fundamental dessa

“nova lei” consistia no comando “Matarás” não o teu inimigo, mas

pessoas inocentes que nem sequer são potencialmente perigosas, e


por nenhuma razão imposta pela necessidade, mas, ao contrário,
mesmo contra todas as considerações militares e utilitárias. O pro-
grama de matança não tinha a intenção de eliminar o último judeu
a ser encontrado sobre a Terra, nem tinha nenhuma relação com a
guerra, exceto que Hitler acreditava precisar de uma guerra como
uma cortina de fumaça para as suas operações de matança não
militares; essas próprias operações tinham a intenção de continuar

numa escala até mais grandiosa em tempos de paz. E esses atos não
eram cometidos por bandidos, monstros ou sádicos loucos, mas
pelos mais estimados membros da sociedade respeitável. Final-

mente, deve-se compreender que, embora esses assassinos de


massa agissem coerentemente com uma ideologia racista, anti-
semítica ou pelo menos demográfica, os assassinos e seus cúmplices
diretos muito freqüentemente não acreditavam nessas justificações
ideológicas; para eles, bastava que tudo acontecesse de acordo com
a “vontade do Führer”, que era a lei do país, e de acordo com as
palavras do Führer”, que tinham a força da lei.
A melhor prova, se ainda fosse preciso alguma prova, do grau

105
índpnendentemente de filiação partidária e
em«Mva Mdem, por nenhuma

mplicaçao . ° je as serem asslm, fol talve2

XXio incrível que o advogado de Eichmann, que nunca

pertencera ao partido nazista,proferiu duas vezes duranteojulga-

mento ent Jerusalém, no sentido de que tudo o que acontecera em


Auschwitz e nos outros campos de extermínio fora uma “questão

médica-.Era como seamoralidade.no exato momento de seu total


colapso dentro de uma nação antiga e altamente civilizada, se

revelasse no significado original da palavra, como um conjunto


de costumes, de usos e maneiras, que poderia ser trocado por outro

conjunto sem dificuldade maior do que a enfrentada para mudar

as maneiras à mesa de todo um povo.5


Detive-me de forma mais extensa nessa situação panorâmica,
porque nenhuma discussão da responsabilidade individual faria
muito sentido sem um conhecimento preciso do pano de fundo
factual. Permitam-me agora propor duas perguntas: primeiro, de
que maneira diferiam aqueles poucos que em todas as esferas da
vida não colaboraram e recusaram-se a participar na vida pública,
embora não pudessem se rebelar e de fato não se rebelaram? E
segundo, se concordamos que aqueles que serviram ao regime em
qualquer nível e com qualquer competência não eram simples-

ente monstros, o que os levou a se comportarem como se com-


P Em quais bases morais, distintas das legais, eles justifi-
“nova o JUa TndUta deP°is derrota do regime e o colapso da
me^ranergi?'fCOmiSeUnOVOCOri^UntOdeva^Ores^resPostaaPr^

mados de irresponsá^T6 °S não'ParticiPantes> cha~

ram julgar por si próprios,d “ “““ qUe °USa'


dispusessem de um meUwr si P“eS de "So P"^
antigos padrões de certo e err d • valores’ nem porque os
plantados na mente e na m ° ai°da est’veSsem firmemente
”a con^ncia deles. Ao contrário, todas as

106
nossas experiências nos dizem que precisamente os membros da
sociedade respeitável, aqueles que não tinham sido afetados pela

comoção intelectual e moral dos primeiros estágios do período

nazista, foram os primeiros a se render. Eles simplesmente troca-

ram um sistema de valores por outro. Diria que, portanto, os não-

participantes foram aqueles cuja consciência não funcionava

dessa maneira, por assim dizer, automática—como se dispusésse-


mos de um conjunto de regras aprendidas ou inatas que aplicamos

caso a caso, de modo que toda nova experiência ou situação já é


prejulgada, e precisamos apenas seguir o que aprendemos ou o que
possuímos de antemão. O seu critério, na minha opinião, era dife-

rente: eles se perguntavam em que medida ainda seriam capazes de


viver em paz consigo mesmos depois de terem cometido certos
atos; e decidiam que seria melhor não fazer nada, não porque o
mundo então mudaria para melhor, mas simplesmente porque

apenas nessa condição poderíam continuar a viver consigo mes-


mos. Assim eles também optavam por morrer quando eram força-
dos a participar. Em termos francos, recusavam-se a assassinar,
não tanto porque ainda se mantinham fiéis ao comando “Não
matarás”, mas porque não estavam dispostos a conviver com assas-
sinos — eles próprios.
A precondição para esse tipo de julgamento não é uma inteli-
gência altamente desenvolvida ou uma sofisticação em questões
morais, mas antes a disposição para viver explicitamente consigo
mesmo, se relacionar consigo mesmo, isto é, estar envolvido na-
quele diálogo silencioso entre mim e mim mesma que, desde Só-

crates e Platão, chamamos geralmente de pensar. Esse tipo de pen-


sar, embora esteja na raiz de todo pensamento filosófico, não é
técnico, nem diz respeito a problemas teóricos. A linha divisória

entre aqueles que querem pensar, e portanto têm de julgar por si


mesmos, e aqueles que não querem pensar atinge todas as diferen-
ças sociais, culturais ou educacionais. A esse respeito, o total colapso

107
moral da sociedade respeitável durante o regime de Hitler pode

nos ensinar que, nessas circunstâncias, aqueles que estimam os

valores e se mantêm fiéis a normas e padrões morais não são con-

fiáveis: sabemos agora que as normas e os padrões morais podem

ser mudados da noite para o dia, e que tudo o que então restará é o

mero hábito de se manter fiel a alguma coisa. Muito mais confiá-

veis serão os que duvidam e os céticos, não porque o ceticismo seja

bom ou o duvidar, saudável, mas porque são usados para exami-

nar as coisas e para tomar decisões. Os melhores de todos serão

aqueles que têm apenas uma única certeza: independentemente

dos fatos que aconteçam enquanto vivemos, estaremos condena-

dos6 a de viver conosco mesmos.

Mas, e que dizer da acusação de irresponsabilidade dirigida

contra esses poucos que lavaram as mãos a respeito do que estava

acontecendo ao seu redor? Creio que teremos de admitir que exis-

tem situações extremas em que a responsabilidade pelo mundo,

que é primariamente política, não pode ser assumida, porque a

responsabilidade política sempre pressupõe, ao menos, um míni-

mo de poder político. A impotência ou a total falta de poder é, creio

eu, uma desculpa válida. A sua validade é tanto mais forte porque

parece ser necessária uma certa qualidade moral até para reconhe-

cer a falta de poder, isto é, a boa vontade e a boa-fé para enfrentar a

realidade e não viver de ilusões. Além disso, é precisamente por

essa admissão da própria impotência que um último resquício de


força e mesmo de poder ainda pode ser preservado mesmo em

condições desesperadas.
Esse último ponto talvez se torne um pouco mais claro, quan-

do agora voltarmos a nossa atenção para a minha segunda pergun -

ta, para aqueles que não só participaram, por assim dizer, a contra-

gosto, mas que achavam seu dever fazer o que quer que fosse

exigido. O seu argumento diferia do argumento dos meros partici-

pantes que invocavam o mal menor, ou o Zeitgeist, negando com isso

108
implicitamente a faculdade humana de julgamento» ou, em casos

surpreendentemente raros» invocando o medo» difundido por toda

parte nos governos totalitários. A argumentação» desde os Julga-

mentos de Nuremberg ao julgamento de Eichmann e aos julga-

mentos mais recentes na Alemanha» tem sido sempre a mesma: toda

organização exige obediência aos superiores, bem como obediên-

cia às leis do país. A obediência é uma virtude política de primeira

ordem, sem a qual nenhum corpo político poderia sobreviver. A

liberdade irrestrita de consciência não existe em parte alguma, pois

significaria a ruína de toda comunidade organizada. Tudo isso soa

tão plausível que é preciso algum esforço para detectar a falácia. A


sua plausibilidade baseia-se na verdade de que “todos os governos” £

nas palavras de Madison, mesmo os mais autocráticos, mesmo as }


tiranias, “baseiam-se em consentimento” e a falácia reside em igua-

lar o consentimento à obediência. Um adulto consente onde uma (


criança obedece; se dizemos que um adulto obedece» ele de fato *

apóia a organização, a autoridade ou a lei que reivindica “obediên-


cia”. A falácia é ainda mais perniciosa porque pode alegar uma tra-
dição muito antiga. O nosso uso da palavra “obediência” para todas
essas situações estritamente políticas remonta à noção secular de
ciência política que, desde Platão e Aristóteles, nos diz que todo 1

corpo político é constituído de governantes e governados, e que os


primeiros comandam e os últimos obedecem às ordens.
Claro, não posso entrar aqui nas razões pelas quais esses con-
ceitos se introduziram na nossa tradição do pensamento político,
mas gostaria de apontar que eles suplantaram noções anteriores e,
creio eu» mais acuradas» das relações entre os homens na esfera da
ação conjunta. Segundo essas noções anteriores, toda ação realiza-
da por uma pluralidade de homens pode ser dividida em dois está-

gios: o começo, que é iniciado por um “líder”, e a realização, em que

muitos participam para levar a cabo o que então se torna um


empreendimento comum. Em nosso contexto, o que importa é a

109
compreensão de que ninguém, por mais forte que seja, pode reali-

zar alguma coisa, boa ou má, sem a ajuda de outros. O que temos

aqui é a noção de uma igualdade que justifica um “líder”, que

nunca é mais do que o primus inter pares, o primeiro entre seus

pares. Aqueles que parecem obedecer-lhe realmente o apóiam, a

ele e ao seu empreendimento: sem essa “obediência”, ele nada

poderia fazer, ao passo que na creche ou em condições de escravi-

dão — as duas esferas em que a noção de obediência fazia sentido

e das quais foi então transposta para as questões políticas — é a

criança ou o escravo que fica sem ação, caso se recuse a “cooperar”.

Mesmo numa organização estritamente burocrática, com sua

ordem hierárquica fixa, faria muito mais sentido considerar o fun-

cionamento dos “dentes da engrenagem” e das rodas em termos do

apoio global a um empreendimento comum do que em nossos ter-

mos habituais de obediência aos superiores. Se obedeço às leis do

país, eu realmente apoio a sua constituição, como se torna notoria-

mente óbvio no caso dos revolucionários e rebeldes que desobede-

cem porque retiraram o seu consentimento tácito.

Nesses termos, os não-participantes na vida pública sob uma

ditadura são aqueles que se recusam a dar o seu apoio, evitando

aquelas posições de “responsabilidade” em que esse apoio, sob o

nome de obediência, é exigido. E só precisamos imaginar por um

momento o que aconteceria a qualquer uma dessas formas de

governo, se um número suficiente de pessoas agisse “irresponsa-

velmente” e se recusasse apoiá-la, mesmo sem resistência ativa e

rebelião, para ver como essa arma poderia ser eficaz. É de fato uma

das muitas variantes de ação e resistência não violenta — por

exemplo, o poder que existe potencialmente na desobediência civil

— que estão sendo descobertas em nosso século. No entanto, a

razão pela qual podemos considerar esses novos criminosos, que

nunca cometeram um crime por sua própria iniciativa, ainda

assim responsáveis pelo que fizeram, é que não existe obediência

no
em questões políticas e morais. O único domínio em que a palavra

poderia possivelmente ser aplicada a adultos que não são escravos

é o domínio da religião, quando as pessoas dizem que obedecem à

palavra ou ao comando de Deus, porque a relação entre Deus e o

homem pode ser vista corretamente em termos semelhantes à

relação entre o adulto e a criança.

Por isso, a pergunta endereçada àqueles que participaram e

obedeceram a ordens nunca deveria ser: “Por que vocês obedece-

ram?”, mas:“Por que vocês apoiaram?” Essa troca de palavras não

é uma irrelevância semântica para aqueles que conhecem a estra-

nha e poderosa influência que simples “palavras” têm sobre a men-

te dos homens, que são, em primeiro lugar, animais falantes. Muito

seria ganho se pudéssemos eliminar essa perniciosa palavra, “obe-

diência”, de nosso vocabulário do pensamento moral e político. Se

refletíssemos exaustivamente sobre essas questões, poderiamos

recuperar um pouco de autoconfiança e até de orgulho, isto é,

recuperar o que os tempos antigos chamavam de dignidade ou da

honra do homem: não talvez da humanidade, mas do status de ser

humano.

1964

in
Algumas questões de filosofia
moral1

Os pensamentos de muitos de nós, suponho, voltaram-se

durante as últimas semanas para Winston Spencer Churchill, o

maior estadista de nosso século até o momento, que morreu há

pouco, depois de uma vida incrivelmente longa cujo ápice foi atin-

gido no limiar da velhice. Esse acontecimento fortuito, se é que o

foi, como quase tudo o mais que ele representou com as suas con-

vicções, com os seus escritos, com a maneira grandiosa, mas não

pomposa de seus discursos, estava em contraste evidente com

qualquer definição que possamos dar para o Zeitgeist desta era.

Talvez seja esse contraste o que mais nos impressiona ao conside-

rarmos a sua grandeza. Ele tem sido visto como uma figura do

século xvn impelida para o século xx, como se as virtudes do pas-

sado tivessem se apoderado de nosso destino nas suas crises mais

desesperadas, e isso, creio eu, é verdade em termos. Mas talvez haja

algo mais significativo na imagem. É como se, nessa mudança de

séculos, alguma eminência permanente do espírito humano lam-

112
pejasse por um momento historicamente breve, para mostrar que

aquilo que contribui para a grandeza — a nobreza, a dignidade, a

firmeza e uma espécie de coragem risonha—se mantém essencial-

mente o mesmo através dos séculos.

Ainda assim, Churchill, tão antiquado ou, como sugeri, além

das modas dos tempos, não deixava de perceber as correntes deci-

sivas, manifestas e ocultas, da era em que vivia. Ele escreveu as

seguintes palavras há cerca de trinta anos, quando as verdadeiras


monstruosidades do século ainda eram desconhecidas: “Quase

nada, material ou estabelecido, que a minha educação me levou a


acreditar ser permanente e vital, perdurou. Todas as minhas certe- [
zas, ou as minhas certezas aprendidas, sobre o que era impossível, (

aconteceram”. Queria mencionar essas palavras sucintas que, infe- “

lizmente, se mostraram plenamente verdadeiras apenas alguns


anos depois de pronunciadas, para introduzir, bem no início des- {
i
tas conferências, as experiências básicas que invariavelmente estão *
por trás ou por baixo delas. Entre as muitas coisas que ainda se pen-
sava serem “permanentes e vitais” no início do século e mesmo
assim não perduraram, escolhi voltar a nossa atenção para as ques-

tões morais, aquelas que dizem respeito à conduta e comporta-


mento individual, as poucas regras e padrões segundo os quais os
homens costumavam distinguir o certo do errado, e que eram

invocados para julgar ou justificar os outros e a si mesmos, e cuja


validade supunha-se ser evidente para toda pessoa mentalmente

sã como parte da lei divina ou natural. Até que, sem grande alarde,
tudo isso desmoronou quase da noite para o dia, e então foi como

se a moralidade de repente se revelasse no significado original da

palavra, como um conjunto de costumes (mores), usos e maneiras

que poderia ser trocado por outro conjunto sem maior dificulda-

de do que a enfrentada para mudar as maneiras à mesa de um indi-

víduo ou um povo. Que estranho e que assustador parecia de

repente o fato de que os próprios termos que usamos para desig-

113
nar essas coisas—moralidade, com sua origem latina, e ética, com

sua origem grega—nunca tivessem significado nada além de usos

e hábitos. E também que 2500 anos de pensamento, na literatura,

filosofia e religião, não tivessem gerado outra palavra, apesar de

todas as expressões bombásticas, de todas as assertivas e sermões

sobre a existência de uma consciência que fala com idêntica voz a

todos os homens. O que tinha acontecido? Acordavamos final-

mente de um sonho?
Sem dúvida, alguns já tinham tomado conhecimento de que

havia algo errado com essa pressuposição de certeza manifesta nos

mandamentos morais, como se o “Não prestarás falso testemu-

nho” pudesse ter a mesma validade da afirmação de que “Dois mais


dois é igual a quatro”. A busca de Nietzsche de “novos valores” era

certamente uma clara indicação da desvalorização do que o seu


tempo chamava “valores” e do que tempos mais antigos tinham

chamado mais corretamente virtudes. Os senhores devem se lem-


brar que o único padrão que ele acabou sugerindo foi a própria
Vida, e a sua crítica das virtudes tradicionais e essencialmente cris-
tãs era guiada pela intuição muito mais geral de que não só toda a
ética cristã, mas também toda a ética platônica usam padrões e
medições que não são derivados deste mundo, mas de algo além—
seja o céu de idéias que se estende sobre a caverna escura dos assun-
tos estritamente humanos, seja o além verdadeiramente transcen-
dente de uma vida após a morte divinamente estabelecida. Nietz-
sche se considerava moralista, e sem dúvida ele o era; mas
estabelecer a vida como o bem mais elevado é realmente, no que
diz respeito à ética,uma pressuposição cuja verdade pode ser ques-
tionada, porque toda ética, cristã ou não cristã, pressupõe que a vi-
da não é o bem mais elevado para os homens mortais, e que na vida
há sempre algo mais em jogo do que a manutenção e a procriação
de organismos vivos individuais. Pressupõe que aquilo que está
em jogo pode ser algo muito diferente; pode ser a grandeza e a

114
fama como na Grécia pré-socrática; pode ser a permanência da

cidade como na virtude romana; pode ser a saúde da alma nesta

vida ou a salvação da alma na vida após a morte; pode ser a liber-

dade ou a justiça, ou muitas outras dessas coisas.

Essas coisas ou princípios, dos quais todas as virtudes são

basicamente derivadas, eram meros valores que podiam ser troca-

dos por outros, sempre que as pessoas mudassem de opinião a seu


respeito? E seriam todos descartados, como Nietzsche parece indi-

car, diante da reivindicação dominante da própria Vida? Sem

dúvida, ele não poderia saber que a existência da humanidade


como um todo poderia algum dia ser posta em perigo pela condu- £

ta humana, e que nessa eventualidade marginal seria possível L

argumentar que a Vida, a sobrevivência do mundo e da espécie

humana, constitui o bem mais elevado. Mas isso não significaria C

mais do que o fato de que qualquer ética ou moralidade simples- I.

mente deixaria de existir. E em princípio esse pensamento foi ante-

cipado pela antiga pergunta romana: Fiat justitia, pereat mundus :

(Deve o mundo perecer para que a justiça seja feita?), e a pergunta


foi respondida por Kant: “Se a justiça perece, a vida humana na
terra perde o seu significado”. (“ Wenn die Gerechtigkeit untergeht,

hateskeinen Wertmehr, dassMenschen aufErden leben”) Por isso,

o único princípio moral novo, proclamado nos tempos modernos,


revela ser não a asserção de “novos valores”, mas a negação da

moralidade como tal, embora Nietzsche, é claro, não soubesse


disso. E é sua permanente grandeza que ele tenha ousado demons-
trar como a moralidade se tornara vergonhosa e sem sentido.
As palavras de Churchill foram pronunciadas na forma de

uma declaração, mas nós, com a sensatez da retrospectiva, seremos


tentados a lê-las igualmente como premonição. E se fosse apenas

uma questão de premonições, eu poderia realmente acrescentar


um número espantoso de citações que remontariam pelo menos

115
século xvni. O aspecto relevante para nós,
ao primeiro terço os preinonições, mas com fatos.

. 1 ap todos os padrões morais tradicionais na

(Comose supõe em geral) na Alemanha de Hitler,mas também na

Rússia de Stálin, onde neste momento a geração mais jovem está


fazendo perguntas que possuem uma grande semelhança com as

que estão atualmente em debate na Alemanha. Ainda assim, as

diferenças entre os dois países são bastante significativas para

serem mencionadas. Tem-se observado com freqüência que a Re-

volução Russa causou uma convulsão social e um remodelamento

social de toda a nação, algo sem paralelo até nas consequências da

ditadura fascista radical da Alemanha nazista, que, é verdade, dei-

xou a relação de propriedade quase intacta e não eliminou os gru-

pos dominantes da sociedade. A partir disso, conclui-se geral-

mente que o que aconteceu no Terceiro Reich era por natureza, e


não só por acaso histórico, menos permanente e menos extremo.
Isso pode ser verdade ou não em relação a desenvolvimentos estri-

tamente políticos, mas é certamente uma falácia, se consideramos

a questão da moralidade. Sob uma ótica estritamente moral,os cri-


mes de Stálin eram, por assim dizer, antiquados; como um crimi-

noso comum, ele nunca os admitiu, mas sempre os manteve envoi -


tos numa nuvem de hipocrisia e discurso de duplo sentido,

enquanto os seus seguidores os inctifi/’


porárionalutapela ‘boa”causa
mais sofisticados, pelas Jeis dTh Um P°UC°

de se submeter e sacrifie ° revolucionário tem


xlsmo’aPesardetodaTconveersaSsob° ^rn^SSO,na<^anOrnar”

anuncia um novo conjunto de v 1 morahdade burguesa”,

tico a Lênin e Trótski como re rn°raiS'Se a^° é caracterís-


fissional, é a crença ingênua de^eníantes do revolucionário pro-

e> uma vez mudadas as circuns-

116
tâncias pela revolução, a humanidade seguirá automaticamente os
poucos preceitos morais que têm sido conhecidos e repetidos
desde a aurora da história.
A esse respeito, os acontecimentos na Alemanha são muito
mais extremos e talvez também mais reveladores. Não há apenas o
fato horrível das fábricas de morte elaboradamente estabelecidas e
a total ausência de hipocrisia naqueles números muito substan-
ciais que estavam envolvidos no programa de extermínio. Igual-
mente importante, mas talvez mais assustador, era a colaboração
natural de todas as camadas da sociedade alemã, inclusive das eli-
tes mais antigas que os nazistas deixaram intocadas e que nunca se
identificaram com o partido no poder. Acho justificável, com base
em dados factuais, sustentar que moralmente, embora não social-
mente, o regime nazista foi muito mais extremo do que o regime
de Stálin nos seus piores momentos. Na verdade, o regime nazista
anunciava um novo conjunto de valores e introduzia um sistema
legal projetado de acordo com esses valores. Além disso, provava
que ninguém tinha de ser nazista convicto para se adaptar e para
esquecer da noite para o dia, por assim dizer, não o seu status social,
mas as convicções morais que antes acompanhavam essa posição.
Na discussão dessas questões, e especialmente na denúncia
moral geral dos crimes nazistas, é quase sempre negligenciado que
a verdadeira questão moral não surgiu com o comportamento dos
nazistas, mas daqueles que apenas se “organizaram” e não agiram
por convicção. Não é muito difícil ver e até compreender como
alguém pode decidir “revelar-se um vilão” e, dada a oportunidade,
tentar uma inversão do Decálogo, começando pelo comando
Matarás”, e terminando com o preceito “Mentirás”. Como sabe-
mos muito bem, em toda comunidade existem vários criminosos
e> apesar de a maioria padecer de uma imaginação um tanto limi-
tada, é possível admitir que alguns não são provavelmente menos
talentosos do que Hitler e alguns de seus carrascos. O que essas pes-
soas fizeram foi horrível, e o modo como organizaram primeiro a
Alemanha e depois a Europa ocupada pelos nazistas tem grande
interesse para a ciência política e o estudo das formas de governo;
mas nem um, nem outro propõe problemas morais. A moralidade
desmoronou e transformou-se num mero conjunto de costumes
— maneiras, usos, convenções a serem trocados à vontade — não
entre os criminosos, mas entre as pessoas comuns que, desde que
os padrões morais fossem socialmente aceitos, jamais sonhariam
em duvidar daquilo em que tinham sido ensinadas a acreditar. E
essa questão, isto é, o problema que ela suscita, não é resolvida se
admitimos, como devemos admitir, que a doutrina nazista não
permaneceu ativa entre o povo alemão, que a moralidade crimino-
sa de Hitler alterou-se novamente num piscar de olhos no mo-
mento em que a “história” anunciou a notícia da derrota. Assim,
devemos dizer que presenciamos o total colapso de uma ordem
“moral”não uma vez, mas duas vezes, e essa volta repentina à “nor-
malidade”, ao contrário do que muitas vezes se supõe complacen -
temente, só pode reforçar as nossas dúvidas.
Quando torno a pensar nas duas décadas passadas desde o
fim da última guerra, tenho o sentimento de que essa questão
moral permaneceu adormecida, porque foi ocultada por algo
sobre o qual é realmente muito mais difícil falar e com o qual é
quase impossível chegar a um acordo — o próprio horror na sua
nua monstruosidade. Quando nos confrontamos pela primeira
vez com esse horror, ele parecia transcender, não apenas para mim,
mas para muitos outros, todas as categorias morais, pois certa-
mente desmoronava todos os padrões jurídicos. Pode-se expressar
isso de várias maneiras. Eu costumava dizer: isso nunca deveria ter
acontecido, porque os homens serão incapazes de punir ou per-
doar. Não seremos capazes de reconciliar-nos com o fato, de che-
gar a um acordo com o acontecido, como devemos fazer com o q ue
é passado — quer porque era ruim e precisamos superá-lo, quer
porque era bom e não toleramos seu desaparecimento. É um pas-
sado que se tornou pior com o passar dos anos, em parte porque os
alemães por muito tempo se recusaram a processar os assassinos
no seu meio, mas também em parte porque esse passado não podia
ser “dominado” por ninguém. Até o famoso poder de cura do
tempo de certo modo nos faltou. Ao contrário, esse passado tem
conseguido tornar-se pior à medida que passam os anos, de modo
que somos às vezes tentados a pensar: isso nunca estará terminado
enquanto não estivermos todos mortos. Sem dúvida, isso se deve
em parte à complacência do regime Adenauer, que por muito
tempo não fez absolutamente nada a respeito dos famosos “assas-
sinos em nosso meio” e não considerava a participação no regime
de Hitler, a não ser que chegasse às raias da criminalidade, como
razão para desqualificar alguém para o serviço público. Mas essas
são, na minha opinião, explicações apenas parciais: o fato é que
esse passado também se revelou incapaz de ser “dominado” por
todo o mundo, e não apenas pela nação alemã. E a incapacidade de
o procedimento do tribunal civilizado chegar a um acordo com
esse passado de uma forma jurídica, a sua insistência em fingir que
esses novos assassinos não são de modo algum diferentes dos cri-
minosos comuns e que matavam pelos mesmos motivos, é apenas
uma conseqüência dessa situação, embora talvez a longo prazo seja
a mais fatal. Não vou discutir isso neste momento, pois tratamos
de questões morais, e não legais. O que desejava indicar é que o
mesmo horror inexprimível, essa recusa a pensar o impensável,
talvez tenha impedido uma reavaliação mais do que necessária das
categorias legais, assim como nos fez esquecer as lições estritamen-
te morais e, espera-se, mais acessíveis, que estão intimamente liga-
das com toda a história, mas que parecem questões laterais inofen-
sivas se comparadas ao horror.
Infelizmente, há mais um aspecto a ser considerado como um
obstáculo em nosso empreendimento. Como as pessoas acham
difieil com razão, viver com algo que lhes trra o folego e lhcs

impossibilita a fala, todas têm se rendido n>u.tofreqüenteme„teà

tentação óbvia de traduzir a sua falta de palavras em qualquer

expressão de emoçào que se encontre à mão. todas inadequadas.

Em consequência, hoje toda a história é geralmente contada em

termos de sentimentos que nem precisam ser banais em si mesmos

para sentimentalizar e banalizar a história. São muito poucos os

exemplos para os quais não vale essa ressalva, e esses são na sua

maior parte desconhecidos ou não reconhecidos. Toda a atmosfe-

ra em que se discutem esses assuntos hoje em dia está sobrecarre-

gada de emoções, freqüentemente de um calibre não muito alto, e

quem propõe essas questões deve esperar ser reduzido, se possível,

a um nível em que nada sério pode ser realmente discutido. Por

mais que assim seja, tenhamos em mente essa distinção entre o

horror inexprimível, em que não se aprende nada além do que


pode ser diretamente comunicado, e as experiências não horren-
das, mas freqüentemente repulsivas, em que a conduta das pessoas
está sujeita ao julgamento normal e em que surge a questão da
moral e da ética.
Disse que a questão moral permaneceu adormecida por um
tempo considerável, subentendendo que ressurgiu nos últimos
anos. O que a fez reaparecer? Pelo que vejo, há várias questões inter-
ligadas que tendem a ser cumulativas. Em primeiro lugar e muito
importante, houve o efeito dos julgamentos pós-guerra dos assim
chamados criminosos de guerra. O aspecto decisivo nesse ponto
foi o simples fato do procedimento do tribunal, que forçou todo

mun o, até os cientistas políticos, a considerar essas questões de


um ponto de vista moral. É fato bem conhecido, creio eu, que não
exista uma esfera na vida em que se encontram pessoas tão des-

Z ST,aS ™ relação aos inclusive


OC XZ ó “ P'or,ssõ“ i“idicaS. As
Pslrol6glcas moderna, tta .gMlmente contribiikK c

120
claro, para esse ceticismo geral. E, no entanto, o simples procedi-

mento do tribunal em casos criminais, a seqüência de acusação-

defesa-julgamento que persiste em todas as variedades de sistemas

legais e é tão antiga quanto a história registrada, desafia todos os

escrúpulos e dúvidas — não certamente no sentido de que pode


sepultá-los, mas no sentido de que essa instituição particular se

baseia na pressuposição da responsabilidade e culpa pessoal, por

um lado, e na crença no funcionamento da consciência, por outro.

As questões legais e morais não são absolutamente as mesmas, mas

têm em comum o fato de que lidam com pessoas e não com siste-

mas ou organizações.
Ê uma inegável virtude do judiciário seu dever de focar a aten-

ção no indivíduo, e isso até na era da sociedade de massas, em que

todos os indivíduos são tentados a se considerarem um simples


dente de engrenagem em alguma espécie de maquinaria — seja a
maquinaria bem azeitada de algum imenso empreendimento
burocrático, social, político ou profissional, seja o padrão casual
mal ajustado e caótico das circunstâncias em que todos de algum
modo levamos a nossa vida. A transferência quase automática de
responsabilidade que ocorre habitualmente na sociedade moder-
na sofre uma parada repentina no momento em que se adentra a
sala de um tribunal. Todas as justificações de uma natureza abstra-
ta não específica — tudo, desde o Zeitgeist até o complexo de
Édipo, que indica que você não é um homem, mas função de algu-

ma coisa e, por isso, é algo substituível em vez de alguém—entram


em colapso. Não importa o que possam dizer as modas científicas
da época, não importa quanto elas possam ter penetrado na opi-
nião pública e com isso também influenciado os profissionais da
lei, a própria instituição as desafia inteiramente, e deve desafiá-las
ou desaparecer. E no momento em que se chega ao indivíduo, a

pergunta a ser feita não é mais: Como esse sistema funciona?, mas:
Por que o réu se tornou funcionário dessa organização?'

121
Isso não é negar, claro, que seja importante para as ciências

políticas e sociais compreender o funcionamento dos governos

totalitários, examinar em profundidade a essência da burocracia e

sua inevitável tendência a transformar os homens em funcioná-

rios, meros dentes de engrenagem na maquinaria administrativa,

e assim desumanizá-los. A questão é que a administração da justi-

ça pode considerar esses fatores apenas na medida em que são cir-

cunstâncias, talvez mitigadoras, do que um homem de fato fez.

Numa burocracia perfeita—que em termos de governo é o domí-

nio de ninguém — o procedimento do tribunal seria supérfluo,

bastaria trocar os dentes de engrenagem inadequados por outros

mais ajustados. Quando Hitler disse que esperava o dia em que ser

jurista na Alemanha seria considerado uma desonra, ele manifes-

tava grande coerência com seu sonho de uma burocracia perfeita.

O horror indescritível, que mencionei antes como uma rea-

ção adequada ao sistema em geral, dissolve-se na sala do tribunal

em que lidamos com pessoas no discurso ordenado de acusação,

defesa e julgamento. A razão pela qual esses procedimentos do tri-

bunal puderam ressuscitar questões especificamente morais — o

que não é o caso nos julgamentos de criminosos comuns — c

óbvia; essas pessoas não eram criminosas comuns, mas antes pes-

soas comuns que tinham cometido crimes com mais ou menos

entusiasmo, simplesmente porque fizeram o que lhes foi manda-

do. Entre elas, havia também criminosos comuns que no regime

nazista podiam fazer com impunidade o que sempre tinham dese-

jado fazer; mas por mais que os sádicos e os pervertidos estivessem

sob o foco dos refletores na publicidade desses julgamentos, em

nosso contexto eles são menos importantes.

Creio que se pode mostrar que esses julgamentos levaram a

um exame mais geral da parcela específica de culpa daqueles que

não pertenciam a nenhuma das categorias criminosas, mas que

ainda assim desempenharam o seu papel no regime, ou daqueles


que apenas silenciaram e toleraram a situação, quando estavam

numa posição em que podiam reclamar. Os senhores devem se

lembrar da balbúrdia dirigida à acusação de Hochhuth contra o

papa Pio xii e também ao meu livro sobre o julgamento de Eich-

mann. Se desconsideramos as vozes das partes diretamente inte-

ressadas — o Vaticano ou as organizações judaicas —, a caracterís-

tica importante nessas “controvérsias” era o interesse dominante

pelas questões estritamente morais. Ainda mais impressionante

que esse interesse era talvez a incrível confusão moral que esses

debates revelaram, junto com uma tendência estranha a tomar o

partido do culpado, não importa quem fosse ele no momento.

Todo um coro de vozes me assegurava que “existe um Eichmann

em cada um de nós”, assim como todo um coro disse a Hochhuth

que o papa Pio xil — afinal apenas um homem e um papa — não

era culpado, mas toda a cristandade e até toda a raça humana. Os

únicos verdadeiros culpados, considerava-se freqüentemente, até

mesmo em voz alta, eram pessoas como Hochhuth e eu mesma,

que ousávamos julgar; pois não pode julgar quem não esteve nas

mesmas circunstâncias em que, presumivelmente, teria se com-

portado como todos os outros. Essa posição coincidia estranha-

mente com a visão de Eichmann sobre essas questões.

Em outras palavras, embora as questões morais fossem vee-

mentemente debatidas, todos desejavam ao mesmo tempo esqui-

var-se e evitá-las com igual avidez. E isso não se devia às questões

específicas em discussão, mas é algo que parece acontecer sempre

que são discutidos tópicos morais, não em geral, mas num caso

particular. Assim, me lembrei de um incidente de alguns anos atrás

em conexão com a famosa trapaça num programa de perguntas da

televisão. Um artigo de Hans Morgenthau na New York Times Mag-

azine (“Reação à reação de Van Doren”, 22 de novembro de 1959)

apontava o óbvio — era errado trapacear para ganhar dinheiro,

duas vezes errado no caso de assuntos intelectuais, e três vezes erra-


do por se tratar de um professor. A resposta foi uma indignação

acalorada: esse julgamento era contra a caridade cristã, e não se

poderia esperar de nenhum homem, exceto de um santo, que resis-

tisse à tentação de tanto dinheiro. E isso não era dito com cinismo

para zombar da respeitabilidade hipócrita, nem tinha a intenção

de ser um argumento niilista. Ninguém dizia — como teria inva-

riavelmente acontecido há trinta ou quarenta anos, pelo menos na

Europa — que trapacear é divertido, que a virtude é aborrecida e

as pessoas morais são cansativas. Tampouco alguém dizia que o

programa de perguntas da televisão estava errado, que uma per-

gunta valendo 64 mil dólares era quase um convite a comporta-

mento fraudulento, nem erguia a voz para defender a dignidade do

aprendizado e criticar a universidade por não impedir que um de

seus membros se entregasse ao que é evidentemente uma conduta

não profissional, mesmo não ocorrendo nenhuma fraude. Das

numerosas cartas escritas em resposta ao artigo, tornou-se bem

claro que o público em geral, inclusive muitos estudantes, achava

que uma única pessoa devia ser inequivocamente acusada: o

homem que julgou, e não o homem que errara, nem uma institui-

ção, nem a sociedade em geral, nem os meios de comunicação de

massa em particular.

Agora deixem-me enumerar brevemente as questões gerais

que essa situação factual, assim como a vejo, suscita. A primeira

conclusão, creio eu, é que ninguém em sã consciência pode ainda

afirmar que a conduta moral é algo natural—das Moralische vers-

tehtsich von selbst, uma pressuposição sob o domínio da qual a

geração a que pertenço foi criada. Essa pressuposição incluía uma

nítida distinção entre a legalidade e a moralidade, e embora exis-

tisse um consenso vago e inarticulado de que em geral a lei do país

grafa o que a lei moral exige, não havia muita dúvida de que em

caso de conflito a lei moral era a mais elevada e tinha de ser obede-

cida primeiro. Essa afirmação só podia fazer sentido se aceitásse-

124
mos como naturais todos aqueles fenômenos que geralmente

temos em mente quando falamos da consciência humana. Qual-

quer que seja a fonte do conhecimento moral — mandamentos

divinos ou razão humana —, todo homem mentalmente são,

supunha-se, carrega dentro de si mesmo uma voz que lhe diz o que

é certo e o que é errado, e isso independentemente da lei do país e

independentemente das vozes daqueles que pertencem à mesma

comunidade. Kant mencionou certa vez que poderia haver uma

dificuldade: “Depois de ter passado a vida entre patifes sem conhe-

cer outras pessoas”, disse, “ninguém poderia ter um conceito de

virtude.” (“Den Begriffder Tugend würde kein Mensch haben, wenn

erimmer unterlauterSpitzbuben ware”) Mas com isso ele não que-

ria dizer mais do que o fato de a mente humana se guiar por exem-

plos nessas questões. Nem por um momento teria duvidado de

que, confrontada com o exemplo da virtude, a razão humana sabe

o que é certo e que o seu oposto é errado. Sem dúvida, Kant acredi-

tava ter enunciado a fórmula que a mente humana aplica sempre

que tem de distinguir o certo do errado. Ele chamava essa fórmula

de o imperativo categórico; mas não tinha a ilusão de ter feito uma

descoberta na filosofia moral, o que teria implicado que, antes


dele, ninguém sabia o que é certo e errado — obviamente uma

noção absurda. Ele compara a sua fórmula (sobre a qual teremos

mais a dizer nas próximas aulas) a uma “bússola”, com a qual os

homensacharãofácil“distinguiroqueébom,oqueémau [...] Sem

ensinar absolutamente nada de novo à razão comum, precisamos

apenas atrair a sua atenção para o seu próprio princípio, à manei-

ra de Sócrates, mostrando assim que não se precisa nem da ciência

nem da filosofia para saber o que se deve fazer a fim de ser honesto

e bom [...] [Na verdade,] o conhecimento do que todo mundo é

obrigado a fazer, e assim também conhecer, [está] ao alcance de

todos, até do homem mais comum”.’ E se alguém tivesse pergunta-

do a Kant onde está localizado esse conhecimento ao alcance de

125
todos,ele teria respondido: na estrutura racional da mente huma-

na, enquanto outros, é claro, tinham localizado o mesmo conheci-

mento no coração humano. O que Kant não teria aceitado como

natural é que o homem também vai agir segundo o seu julgamen-

to. O homem não é apenas um ser racional, ele também pertence

ao mundo dos sentidos, que o tentará a se render às suas inclina-

ções em vez de seguir a razão ou o coração. Por isso, a conduta

moral não é natural, mas o conhecimento moral, o conhecimento

do certo e do errado, é. Como as inclinações e a tentação estão

arraigadas na natureza humana, embora não na razão humana,

Kant chamava o fato de o homem ser tentado a fazer o mal por

seguir as suas inclinações de o “mal radical”. Nem ele nem qualquer

outro filósofo moral realmente acreditava que o homem pudesse

querer o mal pelo mal; todas as transgressões são explicadas por

Kant como exceções que o homem é tentado a fazer perante uma

lei que, do contrário, ele reconhece como sendo válida — assim o

ladrão reconhece as leis da propriedade, até deseja ser protegido

por elas, e só faz uma exceção temporária a essas leis para seu pró-
prio benefício.

Ninguém deseja ser mau, e aqueles que ainda assim cometem


malvadezas caem num absurduni morale — num absurdo moral.

Quem assim age está realmente em contradição consigo mesmo,

com a sua própria razão e, por isso, nas palavras de Kant, deve des-
prezar-se. Que esse medo do desprezo por si próprio não bastaria
para garantir a legalidade, é óbvio; mas, desde que se transpusesse
para uma sociedade de cidadãos respeitadores da lei, supunha-se
de certo modo que o desprezo por si próprio funcionaria. Kant
sabia, claro, que o desprezo por si próprio, ou melhor, o medo de

ter de desprezar a si próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua

explicação era que o homem pode mentir para si mesmo. Por isso,
ele declarou repetidamente que o “ponto” realmente “penoso ou
desagradável” na natureza humana é a mendacidade, a capacidade

126
de mentir? À primeira vista, essa afirmação parece surpreendente,

porque nenhum de nossos códigos éticos ou religiosos (com a

exceção do de Zoroastro) jamais conteve o mandamento “Não

mentirás”— independentemente da consideração de que não

apenas nós, mas todos os códigos das nações civilizadas colocaram

o assassinato no topo da lista dos crimes humanos. Por estranho

que pareça, Dostoiévski parece ter partilhado — sem o saber, claro

— a opinião de Kant. Em Os irmãos Kararnâzov, Dmitri K. pergun-


ta a Starov: “O que devo fazer para ganhar a salvação?”, e Starov res-
ponde: “Acima de tudo, nunca minta para si mesmo”.

Neste relato muito esquemático e preliminar, deixei de men- r

cionar todos os preceitos e crenças morais especificamente reli-


giosas, não porque as considere sem importância (muito ao con- ‘

trário), mas porque no momento em que a moralidade entrou em

colapso, eles não desempenhavam nenhum papel. Era evidente <


que ninguém mais tinha medo de um Deus vingador ou, mais con-

cretamente, de possíveis castigos numa vida após a morte. Como


Nietzsche observou certa vez: "Naivitãt, ais ob Moral iibrigbliebc,
wenn der sanktionierende Gott fehlt! Das 'Jenscits' absolut notwen-
dig, wenn der Glaubcan Moralaufrechterhalten werden soil".' Nem '
as igrejas pensaram em ameaçar dessa forma os seus fiéis, quando
os crimes passaram a ser requeridos pela autoridade do Estado. E
aqueles poucos que em todas as igrejas e em todas as esferas da vida

se recusaram a participar dos crimes não alegavam crenças ou


medos religiosos, mesmo que fossem por acaso crentes, mas sim-
plesmente afirmavam, como outros, que eles próprios não podiam

suportar a responsabilidade por aqueles atos. Isso parece de tato


estranho e está certamente em divergência com as inúmeras decla-

rações piedosas das igrejas depois da guerra, especialmente as


repetidas advertências, vindas de todos os lados, de que nada nos
salvará exceto um retorno à religião. Mas é um fato e mostra em

que medida a religião, se é mais do que uma atividade social, tor-

127

Biblioteca - iFAC - UFOP, 1


nou-se realmente o mais privado dos assuntos privados. Pois não

sabemos, é claro, o que se passou no coração desses homens, se

tinham ou não medo do inferno e da danação eterna. Só sabemos

é que ninguém considerou essas crenças mais antigas adequadas

para a justificação pública.

Há, entretanto, uma outra razão para eu não ter considerado

a religião e iniciar apontando a grande importância de Kant nessas

questões. A filosofia não tem lugar onde quer que a religião, e espe-

cialmente a religião revelada no sentido hebraico-cristão, seja o

padrão válido para o comportamento humano e o critério válido

para julgá-lo. Isso não significa, é claro, que certos ensinamentos

que conhecemos apenas num contexto religioso não sejam da

maior relevância para a filosofia moral. Se relembrarem a filosofia

tradicional, pré-moderna, assim como ela se desenvolveu dentro

da estrutura da religião cristã, imediatamente descobrirão que não

existia a subdivisão moral dentro da filosofia. A filosofia medieval

era dividida em cosmologia, ontologia, psicologia e teologia racio-

nal — isto é, numa doutrina sobre a natureza e o universo, sobre o

Ser, sobre a nature?: da mente e da alma humana, e, finalmente,

sobre as provas racionais da existência de Deus. Na medida em que

eram discutidas questões “éticas”, especialmente em Tomás de

Aquino, isso era feito à maneira da Antigüidade, quando a ética


fazia parte da filosofia política — definindo a conduta do homem

na sua qualidade de cidadão. Assim, temos em Aristóteles dois tra-

tados que juntos contêm o que ele próprio chama a filosofia das
coisas humanas: a sua Ética a Nicômaco e a sua Política. O primei-

ro trata do cidadão, o último das instituições civis; o primeiro pre-

cede o último, porque a “boa vida” do cidadão é a raison (Têtre da

pólis, a instituição da cidade. A meta é descobrir qual é a melhor


constituição, e o tratado sobre a boa vida, a Ética, termina com uni

esboço do programa para o tratado sobre a política. Tomás de

Aquino, fiel discípulo de Aristóteles e cristão, deve sempre chegar

128
ao ponto em que tem de discordar do mestre, e em nenhum mo-
mento a diferença é mais evidente do que quando ele sustenta que

toda falha ou pecado é uma violação das leis prescritas para a natu-

reza pela razão divina. Sem dúvida, Aristóteles também conhece o


divino, que para ele é o imperecível e o imortal, e ele também pensa

que a virtude mais elevada do homem, precisamente por ser mor-


tal, consiste em manter-se tanto quanto possível perto do divino.

Mas não há prescrição, nem comando nesse sentido, que possa ser

obedecido ou desobedecido. Toda a questão gira em torno da “boa


vida”, qual é o melhor modo de vida para o homem, algo que obvia-

mente cabe ao homem descobrir e julgar.


Na baixa Antigüidade, depois do declínio da pólis, as várias C

escolas de filosofia, especialmente os estóicos e os epicuristas, não


só desenvolveram um tipo de filosofia moral, como tendiam, pelo
menos nas suas versões romanas tardias, a transformar toda a filo- Jf

sofia em ensinamentos morais. A busca da boa vida continuava a i


mesma: como posso alcançar o máximo de felicidade aqui na

terra? Só que essa questão era agora separada de todas as implica-


ções políticas, e proposta por homens na sua qualidade privada.
Toda essa literatura está cheia de recomendações sábias, mas nela i

não se encontrarão, não mais do que em Aristóteles, um manda-


mento real que esteja, em última análise, além da argumentação,

como os encontrados em todos os ensinamentos religiosos. Até


Tomás de Aquino, o maior racionalizador do cristianismo, teve de

admitir que a razão fundamental para que uma determinada pres-

crição seja correta e um mandamento específico tenha de ser obe-


decido reside na sua origem divina. Deus assim determinou.

Essa só pode ser uma resposta conclusiva dentro da estrutura


da religião revelada; fora dessa estrutura, só podemos propor a

questão que, ao que eu saiba, Sócrates foi o primeiro a propor no


diálogo Eutífron de Platão, quando ele deseja saber: “Os deuses

amam a piedade porque ela é piedosa, ou ela é piedosa porque eles

129
a amam?” Ou, em outras palavras: os deuses amam a bondade por-
que ela é boa, ou nós a chamamos de boa porque os deuses a amam?
Sócrates nos deixa com a pergunta, e um crente, sem dúvida, está
fadado a dizer que é a sua origem divina a marca distintiva entre os
bons princípios e os maus—eles estão de acordo com uma lei dada
por Deus à natureza e ao homem, o apogeu da sua criação. Na
medida em que o homem é criação de Deus, as mesmas coisas que
Deus “ama” também devem lhe parecer boas; nesse sentido, Tomás
de Aquino certa vez observou, como que em resposta à pergunta de
Sócrates: Deus ordena o bem porque o bem é bom (em oposição a
Duns Scotus, para quem o bem é bom porque Deus o ordena). Mas
mesmo nessa forma muito racionalizada, o caráter obrigatório do
bem para o homem reside no mandamento de Deus. Disso resulta
o princípio muito importante de que na religião, mas não na
moralidade, o pecado é primariamente compreendido como
desobediência. Em nenhum ponto da tradição estritamente reli-
giosa, os senhores encontrarão a resposta inequívoca e realmente
radical que Kant deu à pergunta socrática: “Não devemos conside-
rar as ações como obrigatórias porque elas são mandamentos de
Deus, mas devemos considerá-las como mandamentos divinos
porque temos uma obrigação interior para com elas”.6 Só naqueles
pontos em que essa emancipação dos mandamentos religiosos foi
alcançada, nas próprias palavras de Kant em Conferências sobre a
Ética:“Nós mesmos somos os juizes da revelação...”, em que assim
a moralidade é um assunto estritamente humano, é que podemos
falar de filosofia moral.7 E o mesmo Kant, que na sua filosofia teó-
rica estava tão preocupado em manter aberta a porta para a reli-
gião, mesmo depois de ter mostrado que não podemos ter conhe-
cimento nessas questões, foi igualmente cuidadoso em bloquear
todas as passagens que podem ter levado de volta à religião na sua
filosofia moral ou prática. Da mesma forma como “Deus não é em
nenhum sentido o autor do fato de que o triângulo tem três ângu -
los”, assim “nem mesmo Deus pode ser o autor da [das leis da]
moralidade” (Conferências sobre a ética, 52). Nesse sentido inequí-
voco, até Kant, a filosofia moral tinha cessado de existir depois da
Antigüidade. Os senhores provavelmente pensarão em Spinoza,
que deu à sua obra principal o nome de Ética, mas Spinoza começa
a sua obra com uma seção intitulada “Sobre Deus”, e dessa primei-
ra parte tudo o mais é derivado. Se a filosofia moral tem existido ou
não desde Kant, essa é ao menos uma questão em aberto.
A conduta moral, até onde se sabe, parece depender primei-
ramente do relacionamento do homem consigo mesmo. Ele não
deve se contradizer abrindo uma exceção em seu favor, ele não deve
se colocar numa posição em que teria de desprezar a si mesmo. Em
termos morais, isso deveria bastar, não só para torná-lo capaz de
distinguir o certo do errado, mas também para fazer o certo e evi-
tar o errado. Assim Kant, com a coerência de pensamento que é a
marca do grande filósofo, coloca os deveres que o homem tem para
consigo à frente dos deveres para com os outros — algo que é cer-
tamente muito surpreendente, estando em curiosa contradição
com o que geralmente compreendemos por comportamento
moral. Não é certamente uma questão de preocupação com o
outro, mas de preocupação consigo mesmo, não é uma questão de
humildade, mas de dignidade humana e até de orgulho humano.
O padrão não é nem o amor por algum próximo, nem o amor por
si próprio, mas o respeito por si mesmo.
Isso aparece de forma muito clara e bela naquela passagem da
Crítica da razão prática de Kant que todos conhecem — e em geral
conhecem de forma equivocada. Refiro-me, é claro, a: “Duas coi-
sas enchem a mente com uma admiração e reverência sempre nova
e crescente, quanto mais freqüentemente e mais constantemente
refletimos a seu respeito: o céu estrelado acima de mim e a lei moral
dentro de mim”. Do que se pode concluir, sem prosseguir a leitura,
que essas “duas coisas” estão no mesmo nível e influenciam a
mente humana da mesma maneira. Bem, o que acontece é o opos-

to: “A primeira visão de uma multidão incontável de mundos ani-

quila, por assim dizer, a minha importância como uma criatura

animal [...] A última, pelo contrário, eleva infinitamente o meu

valor, como o de uma inteligência, pela minha personalidade, na

qual a lei moral revela uma vida independente de toda a animali-

dade e até de todo o mundo dos sentidos”.8 Por isso, o que me salva

da aniquilação, de ser “uma simples partícula” na infinidade do

universo, é precisamente esse “eu invisível” (invisible self) que po-

de se opor ao universo. Saliento esse elemento de dignidade pes-

soal, não só porque vai a contragosto da ética cristã, mas também


porque a perda de uma sensibilidade quanto a isso me parece

muito manifesta naqueles que discutem essas questões atualmen-


te, a maioria sem nem sequer saber como apelar para a virtude cris-
tã da humildade. Isso, entretanto, não é negar que existe um pro-
blema crucial nessa preocupação moral com o eu (self). O grau de
dificuldade desse problema é medido pelo fato de os mandamen-
tos religiosos terem sido igualmente incapazes de formular as suas
prescrições morais gerais sem recorrer ao eu (self) como o padrão
máximo: “Ama a teu próximo como a ti mesmo”, ou “Não faças aos
outros o que não queres que façam a ti”.
Em segundo lugar, a conduta moral não está relacionada à
obediência a nenhuma lei determinada externamente — seja a lei
de Deus, sejam as leis dos homens. Na terminologia de Kant, essa é
a distinção entre legalidade e moralidade. A legalidade é moral-
mente neutra: tem o seu lugar na religião institucionalizada e na
política, mas não na moralidade. A ordem política não requer inte-

gridade moral, mas apenas cidadãos respeitadores da lei, e a Igreja


é sempre uma igreja de pecadores. Essas ordens de uma determi-
nada comunidade devem ser distinguidas da ordem moral obriga -

tória para todos os homens, até para todos os seres racionais. Nas

palavras de Kant: “O problema de organizar um Estado, por mais

132
difícil que pareça, pode ser resolvido até para uma raça de demô-

nios, se ao menos forem inteligentes’? Num espírito semelhante,

diz-se que o demônio é um bom teólogo. Na ordem política, como

na estrutura religiosa, a obediência tem o seu lugar, e assim como

essa obediência é imposta na religião institucionalizada pela

ameaça de castigos futuros, a ordem legal só existe na medida em

que existem sanções. O que não pode ser punido é permitido. No

entanto, se é que se pode dizer que obedeço ao imperativo categó-

rico, isso significa que estou obedecendo à minha própria razão, e

a lei que estabeleço para mim mesmo é válida para todas as criatu-

ras racionais, todos os seres inteligíveis, não importa onde vivam.

Pois se não quero contradizer a mim mesmo, ajo de tal modo que

a máxima de meu ato pode se tornar uma lei universal. Sou o legis-

lador, o pecado ou o crime já não podem ser definidos como deso-

bediência à lei de outra pessoa, mas ao contrário como a recusa a

desempenhar o meu papel de legislador do mundo.

Esse aspecto rebelde das doutrinas de Kant é freqüentemente


negligenciado, porque ele colocou a sua fórmula geral — um ato

moral é aquele que estabelece uma lei universalmente válida — na

forma de um imperativo, em vez de defini-la numa proposição. A

principal razão para esse equívoco no próprio Kant é o significado

altamente ambíguo da palavra “lei” na tradição do pensamento oci-

dental. Quando Kant falava da lei moral, usava a palavra de acordo

com o uso político, no qual a lei do país é considerada obrigatória

para todos os seus habitantes, no sentido de que tem de ser obedeci-


da por eles. O fato de a obediência ser escolhida como a minha ati-

tude para com a lei do país deve-se, por sua vez, à transformação

que o termo tinha sofrido pelo uso religioso, no qual a Lei de Deus
realmente só pode se dirigir ao homem na forma de um Manda-

mento: “Deves”— a obrigação, como vimos, não sendo o conteúdo


da lei, nem o possível consentimento do homem em relação à lei,

133
mas o fato de que Deus assim nos ordenara. Nesse ponto nada conta

senão a obediência.
A esses dois significados interligados da palavra devemos
agora acrescentar o uso muito importante e completamente dife-
rente criado pela combinação do conceito de lei com a natureza. As
leis da natureza também são, por assim dizer, obrigatórias: sigo
uma lei da natureza quando morro, mas não se pode dizer, exceto
metaforicamente, que a ela obedeço. Assim Kant distinguia entre
as“leis da natureza” e as “leis da liberdade” morais, que não contêm
necessidade, apenas uma obrigação. Mas, se compreendemos por
lei tanto ordens a que devo obedecer quanto a necessidade da natu-
reza a que estou de qualquer modo sujeito, então o termo “lei da
liberdade” é uma contradição em termos. A razão pela qual não
nos damos conta da contradição é que mesmo em nosso uso ainda
estão presentes conotações muito mais longínquas da Antigüidade
grega e especialmente romana, conotações que não têm relação
com mandamentos, nem com obediência ou necessidade.
Kant definiu o imperativo categórico contrastando-o com o
imperativo hipotético. O último nos diz o que devemos fazer, se
quisermos atingir um certo objetivo; indica um meio para um fim.
Na verdade, não há, em absoluto, imperativo no sentido moral. O
imperativo categórico nos diz o que fazer sem referência a outro
fim. Essa distinção não é de forma alguma derivada dos fenômenos
morais, mas extraída da análise de Kant de certas proposições na
Crítica da razão pura, em que se encontram proposições categóri-
cas e hipotéticas (bem como disjuntivas) na tabela de julgamentos.
Uma proposição categórica poderia ser, por exemplo: este corpo é
pesado; a que poderia corresponder uma proposição hipotética: se

carrego esse corpo, cambaleio sob o seu peso. Na sua Crítica da


razão prática, Kant transformou essas proposições em imperativos
para lhes dar um caráter obrigatório. Embora o conteúdo seja deri-

vado da razão — e mesmo que a razão possa compelir, ela nunca

k 134
compele na forma de um imperativo (ninguém diria a outro:
“Dirás,‘dois mais dois são quatro’”) — considera-se que a forma
imperativa é necessária, porque aqui a proposição racional se diri-
ge à Vontade. Nas próprias palavras de Kant: “A concepção de um
princípio objetivo, na medida em que coage uma vontade, é uma
ordem (da razão), e a fórmula dessa ordem é chamada um impera-
tivo”. {Fundamentos da metafísica dos costumes, 30).
A razão então comanda a vontade? Nesse caso a vontade já
não seria livre, mas estaria sob o ditame da razão. A razão só pode
dizer à vontade: isto é bom, de acordo com a razão; se quiser alcan-
çá-lo, você deve agir de acordo. O que na terminologia de Kant
seria uma espécie de imperativo hipotético ou nem seria um impe-
rativo. E essa perplexidade não se torna menor quando escutamos
que “a vontade nada mais é do que a razão prática” e que “a razão
infalivelmente determina a vontade”, de modo que devemos con-
cluir que a razão determina a si mesma ou, como Kant concluiu,
que “a vontade é a faculdade de escolher apenas o que a razão
reconhece como [...] bom” {Fundamentos da metafísica dos costu-
mes, 29). Disso se seguiría que a vontade não passa de um órgão
executivo para a razão, o segmento de execução das faculdades
humanas, uma conclusão que está na mais flagrante contradição
com a famosa primeira frase da obra que citei, Fundamentos da
metafísica dos costumes: “Não se pode possivelmente conceber
nada no mundo — nem mesmo além do mundo — que pudesse
ser chamado bom sem pré-requisitos, exceto uma boa vontade”
{Fundamentos da metafísica dos costumes, 9).

Algumas das perplexidades que lhes apresentei aqui surgiram


das perplexidades inerentes à faculdade humana da própria von-
tade, uma faculdade que a filosofia antiga desconhecia e que só foi
descoberta em sua complexidade enternecedora com Paulo e

Agostinho. Teremos mais o que dizer sobre isso nas próximas


aulas. Agora gostaria apenas de chamar a atenção para a necessida-

135
de que Kant sentiu de dar à sua proposição racional um caráter

obrigatório, pois, ao contrário das perplexidades da vontade, o

problema de tornar as proposições morais obrigatórias tem ator-

mentado a filosofia moral desde o seu início com Sócrates.

Quando disse que é melhor sofrer o mal do que o cometer, Sócrates

fez uma afirmação que, segundo ele, era uma afirmação da razão,

e o problema aqui, desde então, tem sido que essa afirmação não

pode ser provada. A sua validade não pode ser demonstrada sem

que se ultrapasse o discurso do argumento racional. Em Kant,

como em toda a filosofia depois da Antigüidade, existe a dificulda-

de adicional de como persuadir a vontade a aceitar o ditame da

razão. Se deixamos as contradições à parte e concentramos a

atenção apenas no que Kant quis dizer, então ele evidentemen-

te pensou na Boa Vontade como a vontade que, ao escutar

“Farás”, vai responder: “Sim, farei”. E para descrever essa relação

entre duas faculdades humanas que claramente não são a mesma

coisa e em que certamente uma não determina a outra de modo

automático, ele introduziu a forma do imperativo e sorrateira-

mente retomou o conceito de obediência.10

Há, por fim, a perplexidade mais chocante que apenas indi-

quei antes: a evasiva, o esquivar-se, ou o ato de eliminar a maldade

humana por meio de explicações. Se a tradição da filosofia moral

(distinta da tradição do pensamento religioso) concorda sobre

alguma coisa desde Sócrates a Kant e, como veremos, até o presen -

te, esse ponto é a impossibilidade de o homem praticar deliberada-

mente atos cruéis, querer o mal pelo mal. Sem dúvida, o catálogo

dos vícios humanos é antigo e rico, e numa enumeração em que

não faltam nem a gula nem a preguiça (questões menores, afinal de

contas), o sadismo, o puro prazer em causar e contemplar a dor e o

sofrimento, está curiosamente ausente; isto é, o único vício que

temos razão em chamar de o vício dos vícios, que por incontáveis

séculos só tem sido conhecido na literatura pornográfica e na pin-


tura do perverso. Talvez tenha sido sempre bastante comum, mas

era em geral restrito ao quarto de dormir e só raramente arrastado

para a sala do tribunal. Mesmo a Bíblia, onde todas as falhas huma-

nas ocorrem em algum trecho, silencia a respeito, pelo que eu

saiba; e essa talvez seja a razão por que Tertuliano e também Tomás

de Aquino, numa santa inocência, por assim dizer, contaram a

contemplação dos sofrimentos no inferno entre os prazeres a

serem esperados no paraíso. O primeiro a ficar realmente escanda-

lizado com isso foi Nietzsche (Genealogia da moral, 1,15). Tomás

de Aquino, incidentalmente, moderou os futuros deleites: o que

apraz aos santos não são os sofrimentos como tal, mas a prova da

justiça divina.

Mas esses são apenas vícios, e o pensamento religioso, em

contraste com o filosófico, fala sobre o pecado original e a corrup-

ção da natureza humana. Mas nem mesmo ali escutamos falar de

um mal deliberado: Caim não queria se tornar Caim quando

matou Abel, e até Judas Iscariote, o maior exemplo do pecado mor-

tal, se enforcou. Em termos religiosos (e não morais), parece que

todos devem ser perdoados, porque não sabiam o que estavam

fazendo. Há uma única exceção a essa regra, e ela ocorre no ensina-

mento de Jesus de Nazaré, o mesmo que tinha pregado o perdão

para todos aqueles pecados que de uma ou outra maneira podena

ser explicados pela fraqueza humana, isto é, em termos dogmájf

cos, pela corrupção da natureza humana por meio da queda origi-

nal. Ainda assim esse grande amante de pecadores, daqueles que

transgrediram a norma, menciona certa vez no mesmo contexto

que há outros que causam skandala, ofensas vergonhosas, pelas

quais “era melhor que uma pedra de moinho fosse dependurada

ao redor do pescoço, e eles fossem lançados ao mar”. Era melhor

que nunca tivessem nascido. Mas Jesus não nos diz qual é a nature-
za dessas ofensas escandalosas: sentimos a verdade de suas pa^k

vras, mas não podemos determiná-la. H

127
Estaríamos numa situação um pouco melhor se nos permitís-

semos voltar os olhos para a literatura, para Shakespeare, Melville

ou Dostoiévski, nos quais encontramos os grandes vilões. Eles

também podem ser incapazes de nos dizer alguma coisa específica

sobre a natureza do mal, mas pelo menos não se furtam ao proble-

ma. Sabemos, e podemos quase ver, como o mal assombrava a

mente deles constantemente, e como estavam bastante cientes das

possibilidades da maldade humana. Ainda assim me pergunto se

isso nos ajudaria muito. Nas profundezas dos maiores vilões —

lago (e não Macbeth ou Ricardo in), Claggart em Billy Budd de

Melville, e por toda parte em Dostoiévski — há sempre desespero

e a inveja que acompanha o desespero. Que todo o mal radical vem

das profundezas do desespero, é o que nos disse explicitamente

Kierkegaard — e poderiamos ter aprendido o mesmo com o Satã

de Milton e muitos outros. Soa tão convincente e plausível porque

também nos disseram e ensinaram que o demônio não é só diabo-


los, o caluniador que presta falso testemunho, ou Satã, o adversá-

rio que tenta o homem, mas que ele também é Lúcifer, o portador

da luz, um Anjo Caído. Em outras palavras, não precisamos de

Hegel e do poder da negação para combinar o melhor e o pior.

Sempre houve algum tipo de nobreza no malfeitor real, embora

isso não exista no pequeno patife que mente e trapaceia no jogo. O

importante sobre Claggart e lago é que eles agem por inveja daque-

les que sabem que são melhores que eles próprios; o que é inveja-

do é a simples nobreza que Deus deu ao Mouro, ou a pureza e a ino-

cência ainda mais simples de um humilde companheiro de bordo

de quem Claggart é claramente superior na escala social e profis-

sional. Não duvido do insight psicológico de Kierkegarrd ou da

literatura, ambos sob a mesma perspectiva. Mas não é óbvio que

ainda exista, mesmo nessa inveja nascida do desespero, alguma

nobreza que sabemos estar totalmente ausente nas coisas como

elas verdadeiramente são? Segundo Nietzsche, o homem que se

138
despreza respeita pelo menos aquele dentro de si que despreza!

Mas o mal real é o que nos causa o horror inexprimível, quando só

o que podemos dizer é: isso nunca deveria ter acontecido.

li

As próprias palavras que usamos para as questões em discus-

são, ética e moral, significam muito mais do que a sua origem eti-

mológica indica. Não tratamos de costumes, maneiras ou hábitos,

nem mesmo de virtudes no sentido estrito do termo, pois as virtu-

des são o resultado de algum treinamento ou ensinamento. Antes L


tratamos da afirmação, sustentada por todos os filósofos que já se

ocuparam da questão, de que, primeiro, há uma distinção entre


c
certo e errado, e de que essa é uma distinção absoluta, ao contrário <
L.«<
de distinções entre grande e pequeno, pesado e leve, que são relati-

vas; e de que, segundo, todo ser humano em sã consciência é capaz

dessa distinção. Desses pressupostos se seguiría que não pode haver

novas descobertas na filosofia moral — que o que é certo e o que é

errado sempre foi conhecido. Ficamos surpresos que toda essa divi-

são da filosofia nunca tenha recebido outro nome indicando a sua

verdadeira natureza, pois concordamos em que o pressuposto bási^^r 1


co de toda a filosofia moral — que é melhor sofrer o mal do que o

cometer, mais a convicção de que essa afirmação é evidente para

toda pessoa sensata — não resistiu ao teste do tempo. Ao contrário,

as nossas próprias experiências parecem afirmar que os nomes ori-

ginais dessas questões (mores e ethos), que sugerem que não passam

de maneiras, costumes e hábitos, podem num certo sentido ser

mais adequados do que pensavam os filósofos. Ainda assim, não

nos dispusemos a jogar a filosofia moral pela janela por essa razÉb

Pois julgamos que a concordância do pensamento filosófico e re^È

139
gioso nessa questão pesa tanto quanto a origem etimológica das

palavras que usamos e nossas próprias experiências.

As poucas proposições morais que supostamente resumem

todos os distintos preceitos e ordens, como: “Ama o teu próximo

como a ti mesmo”, “Não faças aos outros o que não queres que

façam a ti”, e, finalmente, a famosa fórmula de Kant: “Aja de tal

maneira que a máxima da sua ação possa se tornar uma lei geral

para todos os seres inteligíveis”, tomam como padrão o eu (self) e,

com isso, o relacionamento do homem consigo mesmo. Em nosso

contexto, não importa se o padrão é o amor a si próprio, como nos

preceitos hebraico-cristãos, ou o medo do desprezo por si próprio

como em Kant. Ficamos surpresos com isso, porque afinal se

supõe que a moralidade governe a conduta entre os homens, e se

falamos de bondade ou pensamos em pessoas históricas que

foram boas—Jesus de Nazaré, são Francisco de Assis etc. — é pro-

vável que as elogiemos pelo seu desprendimento, assim como em

geral igualamos a maldade humana a alguma espécie de egoísmo

e características afins.

E aqui mais uma vez a linguagem está do lado do eu, assim

como estava do lado daqueles que acreditam que todas as questões

de moral são apenas questões de costumes e maneiras. Em todas as

línguas o termo consciência significa originalmente não a faculdade

de conhecer e julgar o certo e o errado, mas o que agora chamamos

consciência de si (consciousness), isto é, a faculdade pela qual

conhecemos a nós mesmos, nos tornamos cientes de nós mesmos.

Tanto em latim como em grego, a palavra para consciência de si

(consciousness) foi tomada para indicar também a consciência

(conscience); em francês, a mesma palavra consciência (conscience)

é ainda usada para os dois sentidos, o cognitivo e o moral; e em

inglês, a palavra “consciência” (conscience) só recentemente adqui-

riu o seu significado moral especial. Lembramos o antigo gnothi

sauton délfico, conhece a ti mesmo, inscrito no templo de Apoio,

140
que junto com meden agan, nada em demasia, pode e tem sido con-

siderado o primeiro preceito moral geral pré-filosófico.

As proposições morais, como todas as proposições que alegam

ser verdadeiras, devem ser evidentes por si mesmas ou sustentadas

por provas ou demonstrações. Se são evidentes por si mesmas, pos-

suem uma natureza coerciva; a mente humana não pode deixar de

aceitá-las, inclina-se ao dictamen rationis, ao ditame da razão. A

evidência é convincente, e não é necessário nenhum argumento


para sustentar as proposições, nenhum discurso exceto elucidação

e esclarecimento. Sem dúvida, o que se pressupõe nesse ponto é a


“razão correta”, e os senhores podem objetar que nem todos os

homens são igualmente dotados dessa razão. No caso da verdade


L
moral, distinta da científica, entretanto, pressupõe-se que tanto o

mais comum dos homens quanto o mais sofisticado, ambos estão


Ü
igualmente abertos à evidência convincente de que todo ser humano

possui esse tipo de racionalidade, a lei moral dentro de mim, como y.

Kant costumava dizer. As proposições morais têm sido sempre

consideradas evidentes por si mesmas, e descobriu-se muito cedo

que não podem ser provadas, que são axiomáticas. Disso se segui-

ria que uma obrigação — o “Deves” ou “Não deves”, o imperativo

— é desnecessária, e tentei lhes mostrar as razões históricas para o

imperativo categórico de Kant, que bem poderia ter sido uma afir- j W
mação categórica, como a afirmação de Sócrates: é melhor sofreroj w
mal do que o cometer, e não: deves antes sofrer o mal do que prati-

cá-lo. Sócrates ainda acreditava que, na presença de razões sufi-

cientes, não podemos deixar de agir dessa maneira, enquanto Kant,

sabendo que a vontade—essa faculdade desconhecida da Antigüi-

dade — pode dizer não à razão, ache necessário introduzir uma

obrigação. No entanto, a obrigação não é absolutamente evidente

por si mesma e nunca foi provada sem que se exceda o âmbito dà

discurso racional. Por trás do “Deves”, “Não deves”, está um “$

não”, a ameaça de uma sanção imposta por um Deus vingador, pel®

141
consentimento da comunidade ou pela consciência, que é a amea-

ça de autopunição que comumente chamamos de arrependimen-

to. No caso de Kant, a consciência ameaça com o desprezo por si

próprio; no caso de Sócrates, como veremos, com contradizer-se a


si mesmo. E aqueles que temem o desprezo por si próprio ou o con-

tradizer-se a si mesmo sào mais uma vez aqueles que vivem consi-

go mesmos; acham as proposições morais evidentes em si mesmas,

não precisam da obrigação.


Um exemplo de nossas experiências recentes ilustra esse

aspecto. Se examinamos os poucos, os muito poucos, que no

colapso moral da Alemanha nazista permaneceram completa-

mente intactos e livres de toda culpa, vamos descobrir que eles

nunca passaram por nada semelhante a um grande conflito moral

ou a uma crise de consciência. Não ponderaram as várias questões,

a questão do mal menor ou da lealdade para com a sua pátria, seu

juramento ou qualquer outra coisa que pudesse estar em jogo.

Nada parecido. Talvez tivessem debatido os prós e os contras da

ação, e havia sempre muitas razões que falavam contra as chances

de qualquer sucesso nessa direção; talvez também tivessem senti-

do medo, e havia muitas razões para tal. Mas nunca duvidaram que
os crimes permaneciam sendo crimes mesmo se legalizados pelo

governo, e que era melhor não participar desses crimes em qual-

quer circunstância. Em outras palavras, não sentiam uma obriga-

ção, mas agiam de acordo com algo que lhes era evidente por si

mesmo, mesmo que já não fosse evidente por si mesmo para aque-

les ao seu redor. Assim a sua consciência, se é disso que se tratava,

não tinha caráter obrigatório e dizia: “Isso não posso fazer”, em vez

de: “Isso não devo fazer”.

O lado positivo desse “não posso” é que corresponde à evi

dência por si própria da proposição moral. Significa não posso

matar pessoas inocentes assim como não posso dizer: “Dois mais

dois são cinco”. É sempre possível revidar o “deves” ou o “tens a

142
obrigação de” com não quero ou não posso por quaisquer que
sejam as razões. Moralmente, as únicas pessoas confiáveis nos

momentos de crise e exceção, “quando as cartas estão sobre a

mesa”, são aquelas que dizem “não posso” " A desvantagem dessa

completa adequação da alegada evidência por si própria ou verda-

de moral é que ela deve permanecer inteiramente negativa. Não

tem absolutamente nada a ver com a ação, não diz mais do que:

“Prefiro sofrer a ação a praticá-la” Em termos políticos—isto é, do


ponto de vista da comunidade ou do mundo em que vivemos—é

irresponsável; o seu padrão é o eu e não o mundo, tampouco o seu


aprimoramento ou mudança. Essas pessoas não são nem heroínas |l;
nem santas, e se acabam se tornando mártires, o que, claro, pode £

ocorrer, isso acontece contra a sua vontade. Além do mais, no 2


mundo em que conta o poder, elas são impotentes. Poderiamos
chamá-las de personalidades morais, mas veremos mais tarde que <í

isso é quase uma redundância; a qualidade de ser uma pessoa, dis-

tinta de ser meramente humano, não está entre as propriedades, •’


dons, talentos ou defeitos individuais congênitos e dos quais é pos-

sível usar ou abusar. A qualidade pessoal de um indivíduo é preci-

samente a sua qualidade “moral”, se não tomamos a palavra nem


no seu sentido etimológico nem no seu sentido convencional, mas 9

no sentido da filosofia moral. K W

Finalmente nos deparamos com a perplexidade de que tant<r w


o pensamento filosófico como o religioso de certo modo evitanlo 1
problema do mal. Segundo a nossa tradição, toda a maldade
humana é explicada quer pela cegueira e ignorância humanas,

quer pela fraqueza humana, a inclinação a ceder à tentação. O


homem—assim diz o argumento implícito—não é capaz de fazer
o bem automaticamente, nem de fazer o mal deliberadamente<É

tentado a fazer o mal e precisa de um esforço para fazer o bem. Tão


profundamente arraigada se tornou essa noção — não pelos ensA

namentos de Jesus de Nazaré, mas pelas doutrinas da filosofia

143
moral cristã—que as pessoas comumente consideram certo aqui-

lo que não gostam de fazer e errado tudo o que as tenta. A declara-

ção filosófica mais famosa e também mais influente desse antigo

preconceito é encontrada em Kant, para quem toda inclinação é,

por definição, tentação, tanto a mera inclinação a fazer o bem

como a tentação de fazer o mal. Isso está muito bem ilustrado

numa historieta pouco conhecida, que nos fala de Kant dando a

sua proverbial caminhada diária pelas ruas de Kõnigsberg exata-

mente na mesma hora todos os dias, e de ele ter se rendido ao hábi-

to de oferecer esmolas aos mendigos que encontrava. Para esse fim,

sempre trazia consigo moedas novas, para não insultar os mendi-

gos com um dinheiro gasto e surrado. Também costumava dar t rês

vezes mais do que era usual, com o resultado, claro, de que passou

a ser assediado pelos mendigos. Ele acabou tendo de mudar o

horário da sua caminhada diária, mas estava muito envergonhado

para contar a verdade, por isso inventou um aprendiz de açouguei-

ro que, dizia, o tinha assaltado. Pois a sua razão real para mudar a

caminhada era, evidente, que esse hábito de oferecer esmolas não

podia ser de modo algum conciliado com a sua fórmula moral, o

imperativo categórico. Que lei geral, na verdade, válida para todos

os mundos possíveis ou seres inteligíveis, poderia ser derivada da

máxima: wDê algo a todo aquele que lhe pedir alguma coisa?”

Conto-lhes essa historieta também para indicar uma com-

preensão sobre a natureza humana que só muito raramente encon

tramos expressa em termos teóricos na história do pensamento


moral. É, assim penso, um fato simples que as pessoas são pelo

menos tão freqüentemente tentadas a fazer o bem e precisam de u m

esforço para fazer o mal quanto vice-versa. Maquiavel sabia disso

muito bem, quando disse em O príncipe que os governantes devem

ser ensinados a “não ser bons”, e ele não queria dizer que eles deviam

ser ensinados a ser ruins e malvados, mas simplesmente a evitar as

duas inclinações e agir de acordo com princípios políticos, distin-

144
tos dos morais e religiosos, bem como dos criminosos. Para Ma-

quiavel, o padrão pelo qual julgamos não é o eu, mas o mundo, é

exclusivamente político, e isso é o que o torna tão importante para

a filosofia moral. Ele está mais interessado em Florença do que na

salvação da sua alma, e pensa que as pessoas que estão mais preocu-

padas com a salvação da sua alma do que com o mundo deveríam

se manter afastadas da política. Num nível muito mais inferior de

pensamento, embora muito mais influente, encontramos a afirma-

tiva de Rousseau de que o homem é bom e torna-se malvado na e

pela sociedade. Mas Rousseau não quer dizer mais do que o fato de
que a sociedade torna os homens indiferentes aos sofrimentos de |l.:
seus próximos, enquanto o homem por natureza tem uma “repug- £

nância inata a ver os outros sofrerem” — por isso, ele fala de certas D

propriedades naturais, quase físicas, que poderiamos muito bem

partilhar com outras espécies animais, das quais o oposto é a per- <

versão, não menos física e não menos parte de nossa natureza ani- -

mal, mas longe de ser o mal e uma maldade deliberada.


Mas vamos voltar por um momento a esse problema de inch-

nação e tentação, e à questão de por que motivo Kant tendia a igua-

lá-las, de por que via em toda inclinação uma tentação para desviar

o homem de seu caminho. Toda inclinação se volta para o exterior,

inclina-se para fora do eu na direção de qualquer coisa que poss^j^p W


me influenciar do mundo exterior. É precisamente pela inclinaçãgr 1
por inclinar-me para fora de mim mesma, assim como me inclino

para fora da janela para olhar a rua, que estabeleço contato com o
mundo. Em nenhuma circunstância a minha inclinação podfeser

determinada pelo meu relacionamento comigo mesma; seme


coloco no jogo, se reflito sobre mim mesma, perco, por assim dizer,

o objeto da minha inclinação. A noção antiga e ainda assim estra-


nha de que posso amar a mim mesma pressupõe que posscínie

inclinar para mim mesma, assim como me inclino para fora^k

mim mesma em direção aos outros, sejam objetos ou pessoas.

145
linguagem de Kant, inclinação significa ser influenciado por coisas

fora de mim mesma, coisas que posso desejar ou com as quais tal-

vez sinta uma afinidade natural; e esse ser influenciado por alguma

coisa que não nasce de mim mesma, da minha razão ou da minha

vontade, é para Kant incoerente com a liberdade humana. Sou

atraída ou repelida por algo ejá não sou, portanto, um agente livre.

Ao contrário, a lei moral, válida, como os senhores lembrarão, pa ra

todos os seres inteligíveis, incluindo os possíveis habitantes de

outro planeta ou os anjos, está livre de ser influenciada por qual-

quer coisa que não seja ela mesma. E como a liberdade é definida

como não sendo determinada por causas externas, apenas uma

vontade livre da inclinação pode ser chamada boa e livre. Vemos

que a evasão do mal nessa filosofia reside no pressuposto de que a

vontade não pode ser livre e má ao mesmo tempo. A maldade nos

termos de Kant é um absurdum morale, um absurdo moral.12

No Górgias, Sócrates propõe três afirmações altamente para-


doxais: 1. É melhor sofrer o mal do que o cometer; 2. É melhor para

o agente ser punido do que continuar impune; e 3. O tirano que


pode fazer com impunidade tudo o que quiser é um homem infe-

liz. Não vamos nos preocupar com a última dessas afirmações, e

apenas mencionaremos ligeiramente a segunda. Nós perdemos a


sensibilidade para com a natureza paradoxal dessas afirmações.

Sócrates escuta de Polus, um de seus interlocutores, que ele “diz coi-

sas que nenhum ser humano pronunciaria” {Górgias 473e), e

Sócrates não o nega. Ao contrário, está convencido de que todos os


atenienses concordarão com Polus, em que ele “acabou ficando

sozinho, incapaz de concordar” (472 b) com eles; ainda assim, acre-

iita que todo homem realmente concorda com ele — sem o saber

—assim como o Grande Rei e o mau tirano nunca descobriam que

ram os mais miseráveis de todos os homens. Por todo o diálogo

146
circula a convicção, partilhada por todos os interessados, de que

todo homem deseja e faz o que pensa ser o melhor para si mesmo;

é dado como certo que aquilo que é melhor para o indivíduo é

igualmente bom para a comunidade, e a questão de saber o que

fazer no caso de um conflito não é explicitamente proposta em

nenhuma parte. Os participantes do diálogo devem decidir o que

constitui a felicidade e o que é a desgraça, e pedir as opiniões da

multidão, da maioria, é como deixar as crianças formarem um tri-

bunal sobre questões de saúde e dieta, quando o médico está no


banco dos réus e a cozinheira redige a acusação. Nada do que

Sócrates diz em favor de seus paradoxos convence seus adversários


nem sequer por um momento, e todo o empreendimento termina C

como o empreendimento ainda maior da República, com Sócrates


narrando um “mito” que ele acredita ser um “logos”, isto é, um argu- J

mento racional, e que ele conta a Cálicles como se fosse a verdade


(Górgias 523a-527b). E então lemos o mito, talvez um conto da t

carochinha, sobre a vida depois da morte: a morte é a separação do


corpo e da alma, quando a alma, despida de seu corpo, aparece nua
diante de um juiz igualmente sem corpo,“a própria alma penetran-
do cada alma” (523e). Depois disso ocorre a divisão dos caminhos,

um para a ilha dos Abençoados, e o outro para o Tártaro e a puni-


ção das almas deformadas e feias, manchadas com as cicatrizes do^^

crimes. Algumas dessas serão aperfeiçoadas pela punição, enquanÉF

to as piores serão transformadas em exemplos a serem contemjrf 1


dos por outras, presumivelmente numa espécie de Purgatdfc,

“para que possam ver o que é o sofrimento, sentir medo e mflpo-


rar” (525b). É claro que o Tártaro será bem populoso e a ilhjfios i

Abençoados quase um deserto, habitada muito provavelmentejipr I

alguns “filósofos que não se envolveram em muitas atividálte |

durante a vida, não foram pessoas intrometidas, mas preocu®k I


ram-se apenas com o que lhes dizia respeito” (526c). I
As duas afirmações que estão em questão — que é melh^B I

147 B
para um malfeitor ser punido do que continuar impune, e que é

melhor sofrer o mal do que fazer o mal — não pertencem absolu-

tamente à mesma categoria, e o mito, em termos estritos, refere-se

apenas ao paradoxo sobre a punição. Uma metáfora introduzida

previamente no diálogo é tecida, a metáfora de uma alma sadia e

uma alma doentia ou deformada, que é derivada do estado do

corpo, o que permite a Platão comparar a punição ao ato de tomar

um remédio. É improvável que esse modo metafórico de falar

sobre a alma seja socrático. Foi Platão quem primeiro desenvolveu

uma doutrina da alma; e é igualmente improvável que Sócrates,

que ao contrário de Platão certamente não era poeta, tenha conta-

do essas belas histórias. Para nossos fins, vamos reter apenas os

seguintes aspectos do mito: primeiro, que esses mitos sempre

ocorrem depois que se tornou completamente óbvio que todas as

tentativas de convencimento falharam e, portanto, como uma

espécie de alternativa para o argumento racional; segundo, que o

seu teor subjacente invariavelmente diz: se você não pode ser con-

vencido pelo que digo, seria melhor que acreditasse na seguinte

história; e, terceiro, que, entre todos, é o filósofo quem chega à ilha

dos Abençoados.

Vamos agora voltar a nossa atenção para essa incapacidade

de convencer, por um lado, e para a convicção inabalável de

Sócrates de que está certo, mesmo reconhecendo que o mundo

inteiro está contra o seu ponto de vista. Bem ao final do diálogo ele

admite até um pouco mais: reconhece sua estupidez e ignorância

(apaideusia) (527d-e) sem estar sendo irônico. Falamos sobre

essas questões, diz ele, como crianças que nunca mantêm a

mesma opinião sobre um assunto por muito tempo, mas mudam

de opinião constantemente. (“Pois parece-me vergonhoso que,

sendo o que aparentemente sejamos neste momento, nós nos

:onsideremos excelentes pessoas, quando jamais podemos nos

nanter fiéis às mesmas visões sobre as mesmas questões — e


essas, além do mais, são as questões mais vitais dentre todas — de

tão deploravelmente incultos que somos!” (527d). Mas as ques-

tões em jogo no diálogo não são brinquedo de crianças; ao con-

trário, são “as maiores” questões. Essa admissão de que mudamos

de opinião sobre questões morais é muito séria. Sócrates parece

concordar com seus opositores, para os quais é “natural” apenas a

lei do mais forte e que tudo o mais, especialmente todas as leis,

existem apenas por convenção, as quais mudam de lugar para

lugar e de época para época. De modo que “aquilo que é certo (ta

dikaia) não tem existência natural, que os homens estão perpe-

tuamente discutindo sobre direitos e alterando-os, e qualquer

alteração que façam em qualquer época é então autorizada,

devendo a sua existência ao artifício e à legislação, e de modo al-

gum à natureza” (Leis 889e-890a).

Citei esta frase da última obra de Platão, em que Sócrates não

aparece, mas que, no entanto, faz uma clara alusão ao Górgias. Nas

Leis, Platão não só abandonou a crença socrática no efeito depura-

tivo do discurso, mas também a sua convicção anterior de que se

deve inventar, por assim dizer, um mito com o qual ameaçar a mul-

tidão. A persuasão, diz ele, não será possível, porque essas coisas

parecem de difícil compreensão, “sem falar na extensão terrível de

tempo que requerería”. Ele propõe, portanto, que as “leis sejam

escritas”, porque então elas estarão “sempre em sossego”. As leis, éf

claro, serão mais uma vez criadas pelo homem e não “naturais”,

mas elas se conformarão ao que Platão chamava de Idéias; e apesar

de os sábios saberem que as leis não são “naturais” e eternas—mas

apenas uma imitação humana —, a multidão acabará acreditando

que o são, porque elas estão “em sossego” e não mudam. Essas leis

não são a verdade, mas tampouco são meras convenções. Chega-se

às convenções pelo consentimento, o consenso do povo, e vocês


devem lembrar que no Górgias os opositores de Sócrates são desft

critos como “amantes do demos, o povo”, verdadeiros democratas®

149
podemos dizer, contra quem Sócrates se descreve como o amante

da filosofia, que não diz uma coisa hoje e outra amanhã, mas sem-

pre a mesma coisa. Mas é a filosofia, e não Sócrates, que é imutável


e sempre a mesma, e apesar de Sócrates confessar que ama a sabe-

doria, ele nega muito enfaticamente ser sábio: a sua sabedoria con-
siste meramente em saber que nenhum mortal pode ser sábio.

Foi precisamente nesse ponto que Platão abandonou a com-


panhia de Sócrates. Na doutrina das idéias, que é exclusivamente
platônica e não socrática, e que, para esses fins, vocês encontram

mais bem exposta na República, Platão ensinou a existência sepa-


rada de um reino das Idéias, ou Formas, em que coisas como a
Justiça, a Bondade etc. “existem por natureza, em seu próprio ser”.
Não por meio do discurso, mas olhando para essas formas, visíveis
aos olhos do espírito, é que o filósofo é informado pela Verdade, e
por meio da sua alma, que é invisível e imperecível—ao contrário
do corpo, que é visível e perecível, sujeito a mudanças constantes
— ele participa da Verdade invisível, imperecível, imutável. Ele
participa dessa verdade, isto é, ao vê-la e contemplá-la, não por
meio do raciocínio e do argumento. Quando lhes falei da evidên-
cia manifesta das afirmações morais gerais, de sua natureza con-
vincente para aqueles que as percebem, e da impossibilidade de
provar a sua veracidade axiomática para aqueles que não as perce-
bem, falava mais em termos platônicos que socráticos. Sócrates
acreditava na palavra falada, isto é, na argumentação a que se pode
chegar pelo raciocínio, e esse raciocínio só pode prosseguir numa
seqüência de afirmações enunciadas. Essas afirmações devem se
seguir uma à outra logicamente, não devem se contradizer uma à
outra. O objetivo, como ele diz no Górgias, é “fixar e prendê-las [... ]
em palavras que são como laços férreos e adamantinos, de modo

que nem você, nem ninguém mais, será capaz de rompê-los”. Toda
pessoa que sabe falar e tem conhecimento das regras da contradi-
ção deve ser então compelida pela conclusão final. Os primeiros

150
diálogos platônicos podiam ser facilmente lidos como uma gran-

de série de refutações dessa crença; o problema é precisamente que


as palavras e os argumentos não podem ser “fixados com laços de

ferro”. Isso não é possível porque eles “se movem em círculo”


(Eutífron), porque o próprio processo do raciocínio não tem fim.
Dentro do reino das palavras, e todo o pensamento como proces-
so é um processo da fala, nunca encontraremos uma regra de ferro
rígida pela qual poderemos determinar o que é certo e o que é erra-
do com a mesma certeza com que determinamos — para usar
novamente exemplos socráticos ou platônicos—o que é pequeno
e grande pelo número, o que é pesado e leve pelo peso, quando o
C
padrão ou medição é sempre o mesmo. A doutrina platônica das
L
Idéias introduziu esses padrões e medições na filosofia, e todo o
problema de como distinguir o certo do errado ficou então redu-
zido a se possuo ou não o padrão ou a “idéia” que devo aplicar em <
cada caso particular. Por isso, para Platão, toda questão a respeito
u
de quem vai ou não vai se comportar de acordo com os preceitos
morais é decidida, em última análise, pelo tipo de “alma” que um
homem possui, e essa alma pode ser supostamente aperfeiçoada
pela punição.
Essa idéia é apresentada de forma muito explícita na Repú;
blica, quando Sócrates encontra em Trasímaco as mesmas dificu®
dades que descobre em Cálicles, no Górgias. Trasímaco sustej
que tudo aquilo que é do interesse do governante é cha
“justo”; “justo” não é senão o nome que aqueles que detêm o poder
concedem a qualquer ação que impõem pela lei a seus súditc^Cáli-

cies, ao contrário, tinha explicado que as leis, meras conversões,

são feitas pela maioria fraca para protegê-los contra os poucos que
são fortes. As duas teorias são opostas apenas na aparência: a ques-
tão do certo e errado em ambos os casos é uma questão de pods', e
podemos passar sem dificuldades do Górgias para a RepúblSa

nesse aspecto (embora isso não seja de forma alguma possível

151
outros). Na República, há dois discípulos de Sócrates presentes ao
diálogo entre Sócrates e Trasímaco, Glaucon e Adimanto, e eles não
ficam mais convencidos pelos argumentos de Sócrates do que o
próprio Trasímaco. Por isso, defendem a causa de Trasímaco.
Sócrates, depois de escutá-los, exclama: “Deve haver realmente
alguma qualidade divina na sua natureza (physis, ver República
367e), se vocês podem defender a causa da injustiça com tanta elo-
qüência sem que vocês próprios estejam convencidos de que ela é
melhor do que a justiça”. Não conseguindo convencer os seus pró-
prios discípulos, Sócrates fica sem saber o que fazer a seguir. E ele
passa de sua busca estritamente moral (como diriamos agora)
para a questão política de qual é a melhor forma de governo, apre-
sentando como desculpa o fato de ser mais fácil ler as letras gran-
des do que as pequenas, e supondo que descobrirá, num exame do
Estado, as mesmas características que queria analisar nas pessoas
— uma vez que o Estado é apenas o homem escrito em tamanho
grande. Em nosso contexto, é decisivo o fato de ser claramente a
sua própria natureza o que convenceu Glaucon e Adimanto da
verdade de que a justiça é melhor do que a injustiça; mas quando
passam a discutir sobre o assunto, não são convencidos pelos
argumentos de Sócrates e mostram que podem argumentar muito
bem e muito convincentemente contra o que sabem ser verdade.
Não é o logos que os convence, mas o que vêem com os olhos do
espírito, e a Parábola da Caverna é também, em parte, a história da
impossibilidade de traduzir convincentemente em palavras e
argumentos essa evidência vista.
Se pensarmos nessas questões até o final, vamos chegar facil-
mente à solução platônica: aqueles poucos cuja natureza da alma
permite que vejam a verdade não precisam de nenhuma obrigação,
de nenhum: Assim farás... senão”, o que nem sequer faria sentido
para eles, porque o que importa é evidente por si. E como aqueles

que não conseguem ver a verdade não podem ser convencidos por

152
argumentos, é preciso encontrar alguns meios para obrigá-los a se
comportar, para forçá-los a agir sem estarem convencidos, como se
eles também tivessem “visto”. Esses meios são, evidentemente,
aqueles mitos de uma Vida Futura com que Platão costumava con-
cluir muitos dos diálogos que tratam de questões morais e políticas
— histórias que ele introduz, a princípio, com bastante hesitação,
talvez apenas como histórias da carochinha, e finalmente, na sua
última obra (as Leis), abandona completamente.
Detive-me sobre esse ensinamento especificamente platônico
para lhes mostrar como fica a questão — ou devemos dizer ficava?
— se não confiamos na consciência. Apesar da sua origem etimo-
lógica (isto é, a sua identidade original com a consciência de si), a L
consciência só adquiriu o seu caráter moral específico quando foi
compreendida como um órgão pelo qual o homem escuta a pala-
C
vra de Deus, em vez de suas próprias palavras. Por isso, se deseja- <
IL
mos falar sobre essas questões em termos seculares, temos muito
pouco a que recorrer além da filosofia antiga pré-cristã. E não é
extraordinário encontrar ali, no meio de um pensamento filosófi-
co que não está de modo algum preso a um dogma religioso, uma
doutrina do Inferno, Purgatório e Paraíso, completa com um Juízo
Final, recompensas e castigos, a distinção entre pecados veniais e
mortais, e todo o resto? A única coisa que procuraremos em vão é j W

a noção de que os pecados podem ser perdoados. * W


Como quer que interpretemos esse fato espantoso, vamos ’

deixar uma coisa bem clara: que a nossa é a primeira geração, dej^e

o surgimento do cristianismo no Ocidente, em que as massjs, e


não apenas uma pequena elite, já não acreditam em “estados futu-
ros” (como os Pais Fundadores da Nação Americana aind^jo

expressavam) e que, portanto, estão empenhadas (ao que parem


em pensar na consciência como um órgão que reagirá na ausêndm
de esperança por recompensas e sem medo de castigos. Se as peqK
soas ainda acreditam que essa consciência é informada por algt^^B

153
ma voz divina é algo, para dizer o mínimo, sujeito a dúvidas. O fato

de que todas as nossas instituições legais, na medida em que digam

respeito a atos criminosos, ainda contam com esse órgão para ensi-

nar a todo homem o que é certo e o que é errado, mesmo que ele

não seja versado nos livros da lei, não é argumento para a sua exis-

tência. As instituições freqüentemente sobrevivem por muito

tempo aos princípios básicos em que estão fundadas.

Mas vamos retornar a Sócrates, que nada sabia da doutrina das

Idéias de Platão, e por isso nada sabia da evidência axiomática e não

discursiva das coisas vistas com os olhos do espírito. No Górgias,

Sócrates, confrontado com a natureza paradoxal de sua afirmação

e com sua incapacidade de convencer, dá a seguinte resposta: pri-

meiro, diz que Cálicles “não estará de acordo consigo mesmo, mas

que durante toda a sua vida vai contradizer a si mesmo”. E depois

acrescenta que, no que lhe diz respeito, acredita que “seria melhor

para mim que a minha lira ou um coro que eu dirigisse fossem desa-
finados ou estridentes, com dissonâncias, e que multidões de

homens discordassem de mim, do que eu, sendo um só, estivesse em

desarmonia comigo mesmo e me contradissesse” (482b-c). A noção-

chave nessa sentença, eu que sou um só, é infelizmente omitida em

muitas traduções inglesas. O significado é claro: mesmo que eu seja

um só, não sou simplesmente um só, tenho um eu e estou relacio-

nado com esse eu como o meu próprio eu. Esse eu não é de modo

algum uma ilusão; faz-se ouvir falando para mim — falo comigo

mesmo, não estou apenas ciente de mim mesmo — e, nesse senti-


do, embora eu seja um só, sou dois-em-um, e pode haver harmonia

ou desarmonia com o eu. Se discordo de outras pessoas, posso me

afastar; mas não posso me afastar de mim mesmo, portanto, é

melhor que eu primeiro tente estar de acordo comigo mesmo antes

de levar todos os outros em consideração. Essa mesma sentença

também revela por que é melhor sofrer o mal do que fazer o mal: se

faço o mal, sou condenado a viver junto com um malfeitor numa


intimidade insuportável; nunca posso me ver livre dele. Por isso, o

crime que permanece oculto aos olhos dos deuses e dos homens,

um crime que não aparece porque não há ninguém a quem possa

aparecer, e que os senhores encontrarão mencionado em Platão

mais de uma vez, realmente não existe: assim como sou meu parcei-

ro quando estou pensando, sou minha própria testemunha quan-

do estou agindo. Conheço o agente e estou condenado a viver junto

com ele. E ele não é calado. Essa é a única razão apresentada por

Sócrates, e a questão não é só por que essa razão não convence o seu
opositor, mas também por que é uma razão suficiente para aquelas

pessoas a quem Platão, na República, chama de homens dotados de


uma natureza nobre. Mas estejam cientes de que Sócrates fala aqui

sobre algo inteiramente diferente: não se trata de ver algo impere-


cível e divino fora de si mesmo, para cuja percepção é necessário um

órgão especial, assim como se precisa da visão para perceber o


mundo visível ao redor. Para Sócrates não é necessário nenhum

órgão especial porque a pessoa permanece dentro de si mesma, e


nenhum padrão transcendente, como diriamos, ou nada fora de si

mesma, percebido com os olhos do espírito, ensina-lhe o que é certo

e o que é errado. Sem dúvida, é difícil, se não impossível, convencer


os outros sobre a verdade da afirmação num discurso, mas eu .
mesma chego a essa conclusão em vista desse viver comigo mesmajJ

que se torna manifesto no discurso entre mim e mim mesma. Se

estou em desavença com meu eu, é como se eu fosse forçada a viver


e interagir diariamente com o meu próprio inimigo. Ninguém

pode querer tal coisa. Se pratico o mal, vivo junto com um malfei-

tor, e embora muitos prefiram praticar o mal em proveito próprio

em vez de sofrer o mal, ninguém vai preferir viver junto com um


ladrão, um assassino ou um mentiroso. É isso o que esquecem aque-

las pessoas que elogiam o tirano que chegou ao poder por meio de

assassinato e fraude.
No Górgias, existe apenas uma referência curta ao que consflt

155
tui esse relacionamento entre o Eu (I) e o Si Mesmo (self), entre

mim e mim mesma. Assim, volto-me para outro diálogo, o Teeteto,

o diálogo sobre o conhecimento, em que Sócrates apresenta uma

exposição clara sobre a questão. Ele deseja explicar o que entende

por dianoeisthai, pensar uma questão até esclarecê-la, e diz: “Eu

chamo a isso um discurso que o espírito trava consigo mesmo

sobre qualquer assunto que esteja considerando. E vou lhes expli-

car o que penso, embora eu próprio não esteja muito certo a esse

respeito. Parece-me que isso não passa de dialegesthai, falar de

alguma coisa até esclarecê-la, com a ressalva de que o espírito faz as

perguntas a si mesmo e as responde, dizendo-se sim ou não. Assim

ele chega ao limite em que as coisas devem ser decididas, quando

os dois falam igual e já não estão mais incertos, o que, então, esta-

belecemos como a opinião do espírito. Decidir e formar uma opi-

nião é o que chamo de discurso, e a própria opinião é para mim

uma afirmação falada, pronunciada não para outra pessoa e em

voz alta, mas silenciosamente para si mesmo”. E encontramos a

mesma descrição em palavras quase idênticas no Sofista: o pensa-

mento e a afirmação falada são a mesma coisa, exceto que o pensa-

mento é um diálogo travado pelo espírito consigo mesmo sem

som, e a opinião é o fim desse diálogo. Que um malfeitor não será

um parceiro muito bom para esse diálogo silencioso parece um

tanto óbvio.1’

A partir do que sabemos sobre o Sócrates histórico, parece

provável que aquele que passou os seus dias na praça do mercado

—a mesma praça do mercado que o filósofo de Platão evita expli-

citamente (Teeteto) — tenha acreditado que os homens não têm

uma voz inata da consciência, mas sentem a necessidade de falar

sobre as questões para esclarecê-las; que todos os homens falam

consigo mesmos. Ou, em termos mais técnicos, que todos os

homens são dois-em-um, não apenas no sentido de consciência de

si e autoconsciência (de que, faça o que fizer, estou ao mesmo


tempo, de algum modo, ciente de fazê-lo), mas no sentido muito

específico e ativo desse diálogo silencioso, de terem uma interação

constante, de estarem em condições de poder falar consigo mes-

mos. Se ao menos soubessem o que estavam fazendo, assim

Sócrates deve ter pensado, compreenderíam como era importan-

te para eles não fazer nada que pudesse estragar esse diálogo. Se a

faculdade da fala distingue o homem das outras espécies animais

— e isso é aquilo em que os gregos realmente acreditavam e o que

Aristóteles, mais tarde, disse na sua famosa definição —, então é

nesse diálogo silencioso de mim mesma comigo mesma que a

minha qualidade especificamente humana fica provada. Em

outras palavras, Sócrates acreditava que os homens não são mera- L.

mente animais racionais, mas seres pensantes, e que preferiríam

abrir mão de todas as outras ambições e até sofrer danos e insultos (J

a perder essa faculdade. £

O primeiro a discordar foi Platão, como vimos, que esperava i

ver apenas filósofos — que faziam do pensar a sua atividade espe-

ciai — na ilha dos Abençoados. E como é impossível negar que

nenhuma outra atividade humana exija tão peremptória e inevita-


velmente a interação entre mim e mim mesma quanto o diálogo Br B

silencioso do pensamento, e como, afinal, o pensar não está entre

as ocupações mais freqüentes e mais comuns dos homens, temosjãr ’

uma tendência natural a concordar com ele. Só que esquecemos

que nós, que já não acreditamos no pensar como um hábito huma-

no comum, ainda sustentamos que até os homens mais comuns

devem estar cientes do que é certo e do que é errado, e devem con-

cordar com Sócrates que é melhor sofrer do que fazer o mal, A

preocupação política não é saber o que é mais vergonhoso: se oAo


de atacar alguém injustamente ou de ser atacado injustamentB

preocupação é exclusivamente com a possibilidade de ter A

mundo em que esses atos não ocorram (Górgias 508).

157
***

Como conclusão, permitam-me indicar algumas das dire-


ções a que essas considerações podem nos levar com respeito às
perplexidades que afirmei no início da conferência.
A razão pela qual a filosofia moral, apesar de tratar das “maio-
res questões”, nunca encontrou um nome adequado para seu alto
propósito talvez resida no fato de que os filósofos não puderam
considerá-la uma seção separada da filosofia, como a lógica, a cos-
mologia, a ontologia etc. Se o preceito se origina da própria ativi-
dade de pensar, se ele é a condição implícita do diálogo silencioso
entre mim e mim mesma sobre qualquer assunto, então ele é antes
a condição pré-filosófica da própria filosofia e, assim, uma condi-
ção que o pensamento filosófico partilha com todas as outras
maneiras não técnicas de pensar. Pois os objetos dessa atividade,
por certo, não estão de nenhum modo restritos aos tópicos especi-
ficamente filosóficos ou, quanto a isso, científicos. O pensamento
como uma atividade pode surgir a partir de qualquer ocorrência;
está presente quando eu, depois de observar um incidente na rua
ou me ver implicada em alguma ocorrência, começo então a con-
siderar o que aconteceu, contando o fato a mim mesma como uma
espécie de história, preparando-a, dessa maneira, para sua subse-
qüente comunicação aos outros, e assim por diante. Certamente
que o mesmo é ainda mais verdadeiro se o tópico de minha consi-
deração silenciosa for algo que eu própria cometi. Fazer o mal sig-
nifica estragar essa capacidade; a maneira mais segura para um cri-
minoso nunca ser descoberto e escapar da punição é esquecer o
que fez e não pensar mais no assunto. Também por isso, podemos
dizer que, antes de mais nada, o arrependimento consiste em não
esquecer o que se fez, em “voltar ao assunto”, como indica o verbo
hebraico shuv. Essa conexão de pensamento e lembrança é espe-
cialmente importante em nosso contexto. Ninguém consegue se

158
lembrar do que não pensou de maneira exaustiva ao falar a respei-
to do assunto consigo mesmo.
Entretanto, apesar de o pensamento, nesse sentido não técni-
co, não ser certamente prerrogativa de nenhum tipo especial de
homens, filósofos ou cientistas etc. — nós o encontramos presen-
te em todas as esferas da vida e podemos descobri-lo inteiramente
ausente no que chamamos de intelectuais —, não se pode negar
que seja certamente muito menos freqüente do que pensava
Sócrates, embora se espere que seja um pouquinho mais freqüen-
te do que temia Platão. Sem dúvida, posso me recusar a pensar e
lembrar, e ainda assim permanecer muito normalmente humana.
L
Entretanto, esse perigo é muito grande não só para mim mesma, c
pois minha fala, tendo perdido a mais elevada realização da capa-
L
cidade humana de falar, vai se tornar conseqüentemente sem
sentido, mas também para os outros, que são forçados a viver com
uma criatura possivelmente muito inteligente e, mesmo assim, u
sem nenhuma capacidade de pensar (thoughtless). Se me recuso a
lembrar, estou realmente pronta a fazer qualquer coisa — do
mesmo modo como a minha coragem seria absolutamente teme-
rária se a dor, por exemplo, fosse uma experiência imediatamente

Essa questão da lembrança nos faz dar pelo menos um peque-


no passo em direção à questão incômoda da natureza do mal. A filo-
sofia (e também a grande literatura, como mencionei antes) só
conhece o vilão como alguém desesperado, alguém cujo desespero
irradia uma certa nobreza ao seu redor. Não vou negar que esse tipo
de malfeitor exista, mas tenho certeza de que os maiores male^que

conhecemos não se devem àquele que tem de confrontar-se consigo

mesmo de novo, e cuja maldição é não poder esquecer. Os maiores


malfeitores são aqueles que não se lembram porque nunca penafc

159
ram na questão, e, sem lembrança, nada consegue detê-los. Para Os

seres humanos, pensar no passado significa mover-se na dimensã0

da profundidade, criando raízes e assim estabilizando-se, para não

serem varridos pelo que possa ocorrer — o Zeitgeist, a História ou

a simples tentação. O maior mal não é radical, não possui raízes e,

por não ter raízes, não tem limitações, pode chegar a extremos

impensáveis e dominar o mundo todo.

Mencionei a qualidade de ser uma pessoa como algo distinto

de ser meramente humano (assim como os gregos se distinguiam

dos bárbaros como logon echon), e disse que falar sobre uma per-

sonalidade moral é quase uma redundância. Tomando como

sugestão a justificação que Sócrates apresenta para a sua proposi-

ção moral, podemos agora dizer que nesse processo de pensamen-

to em que realizo a diferença especificamente humana da fala eu

me constituo de modo explícito como uma pessoa, e vou continuar

a ser uma pessoa na medida em que seja capaz dessa constituição

repetidas vezes. Se é isso o que comumente chamamos de persona-

lidade, o que não tem nada a ver com talento e inteligência, ela é o

simples resultado, quase automático, do pleno exercício da capaci-

dade de pensar (thoughtfulness). Em outras palavras, ao conceder

o perdão, o que se perdoa é a pessoa e não o crime; no mal sem raiz,

não resta nenhuma pessoa a quem se poderia perdoar.

É nesse sentido que a curiosa insistência de todo pensamento

moral e religioso na importância da vinculação a si talvez seja um

P mais bem compreendida. Não é uma questão de amar a

mim mesma, assim como posso amar aos outros, mas de ser mais
ependente desse parceiro silencioso que carrego comigo mesma,

o mais à sua mercê, por assim dizer, do que talvez seja o caso

160
com qualquer outra pessoa. O medo de perder a si mesmo i legíti

mo, pois é o medo de )á não ser capaz de falar consigo mesmo. E

não apenas a dor e a tristeza, mas também a alegria e a felicidade e

todas as outras emoções, seriam inteiramente insuportáveis se


tivessem de permanecer mudas, inarticuladas.

Mas há ainda um outro lado dessa questão. A descrição socrá-

tico-platônica do processo de pensar me parece tão importante

porque sugere, ainda que apenas de passagem, o fato de que os

homens existem no plural e não no singular, que os homens, e não

o Homem, habitam a Terra. Mesmo que estejamos junto apenas de

nós mesmos, quando articulamos ou realizamos esse estar sozinho

descobrimos que estamos acompanhados, na companhia de nós


mesmos. A solidão (loneliness), esse pesadelo que, como todos

sabemos, pode muito bem nos dominar no meio de uma multidão,

é precisamente esse estar abandonado por si mesmo, a incapacida-

de temporária de se tornar dois-em-um, por assim dizer, quando

nos vemos numa situação em que não há ninguém mais para nos
fazer companhia. Desse ponto de vista, é realmente verdade que a
minha conduta com os outros vai depender da minha conduta
comigo mesma. Só que não está envolvido aí nenhum conteúdo

específico, nenhum dever e obrigação especial, nada senão a pura


capacidade de pensamento e lembrança, ou a sua perda.

Por fim, permitam-me lembrar-lhes um dos fenômenos n|K

assustadores em nossas experiências morais mais recentes^»


ponho que todos os senhores já ouviram falar ao menos daqiBts

assassinos do Terceiro Reich que não só levavam uma impec^W

vida familiar, como gostavam de passar o seu tempo de laze

Hõlderlin e escutando Bach, provando (como se hou

provas a esse respeito) que os intelectuais podem ser * 3


te induzidos ao crime quanto qualquer outra pessoa.
bilidade e um gosto pelas assim chamadas coisas elevadas da vida

não são capacidades do espírito? Sem dúvida, mas capacidade de

apreciação não tem nada a ver com o pensamento, que, devemos


lembrar, é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo. Na

medida em que o pensamento é uma atividade, ele pode ser tradu-

zido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas.

Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento,

assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são correta-

mente chamados objetos de uso: uns são inspirados pelo pensa-

mento e os outros são inspirados pelo uso, por alguma necessida-

de e carência humana. O ponto importante sobre esses assassinos

altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema

digno de ser lembrado, uma música digna de ser escutada, ou pin-

tou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas pare-

des. Sem dúvida, é necessário mais do que o pleno exercício da

capacidade de pensar (thoughtfulness) para compor um bom

poema, uma música ou pintar um quadro — é necessário um


talento especial. Mas nenhum talento suportará a perda de integri-

dade que experimentamos quando perdemos essa capacidade

muito comum de pensar e lembrar.

ni

A moralidade diz respeito ao indivíduo na sua singularidade,

r de cer^° e errado, a resposta à pergunta: “O que devo

'o depende, em última análise, nem dos hábitos e costu-

qUÍJPar,iiho com ao meu redor nem de uma ordem de


ongeind'vma ou humana,mas do que decido com respeitoamin1

denoisd 7 °U|traS Palavras’nao Posso fazer certas coisas porque,

viver-com >Íá apaz decomigo mesma. Esse

8» mesma e mais do que a consciência de mim mesma

162
(consciousness), mais do que a ciência de mim mesma (self-aware-

ness), que me acompanha em qualquer coisa que faço e em qual-

quer estado em que me encontre. Estar comigo mesma e julgar por

mim mesma é articulado e tornado real nos processos de pensa-

mento, e todo processo de pensamento é uma atividade em que

falo comigo mesma a respeito de tudo o que me diz respeito. Pas-


sarei a chamar o modo de existência presente nesse diálogo silen-

cioso de mim comigo mesma de estar só (solitude). Assim, o estar

só é mais do que os outros modos de estar sozinha, é diferente des-

ses outros modos, particularmente e principalmente da solidão

(loneliness) e do isolamento. I
O estar só significa que, apesar de estar sozinha, estou junto £

de alguém (isto é, eu mesma). Significa que sou duas-em-uma,

enquanto a solidão e o isolamento não conhecem esse tipo de

cisma, essa dicotomia interior em que posso fazer perguntas a mim <

mesma e receber respostas. O estar só e sua atividade correspon-

dente, que é o pensar, podem ser interrompidos pelo fato de algu- :


ma outra pessoa se dirigir a mim ou, como em toda outra ativida-

de, por eu fazer alguma outra coisa, ou pelo puro cansaço. Em

qualquer desses casos, as duas que eu era em pensamento tornam-

se novamente uma. Se alguém me dirige a palavra, devo falar com 1


essa pessoa e não comigo mesma, e ao falar com ela me transfer- Kp

mo. Eu me torno uma, possuindo, é claro, ciência de mim mesmaj r


(self-awareness), isto é, consciência de mim mesma (conscious-
ness), mas já não estou plena e articuladamente de posse de mim

mesma. Se uma pessoa me dirige a palavra e se, como às vezes acon-

tece, começamos a dialogar sobre as mesmas coisas com que uma


de nós havia se preocupado enquanto ainda estava só (in solitu ),

então é como se eu agora me dirigisse a outro eu. E esse outro eu,


allos authos, foi corretamente definido por Aristóteles como^
amigo. Se, por outro lado, por alguma razão o meu proce oídk

pensamento quando estou só se interrompe, então eu tam

163
torno uma de novo. Como essa uma que agora sou está sem com-

panhia, posso procurar a companhia de outros — pessoas, livros,

música —, e se eles não corresponderem ao meu apelo, ou se não

consigo estabelecer contato com eles, sou dominada pelo tédio e

pela solidão. Para isso, não preciso estar sozinha: posso estar muito

entediada e muito solitária no meio de uma multidão, mas não no

estar só efetivo, isto é, na minha própria companhia, ou junto com

um amigo, no sentido de um outro eu. É por essa razão que é muito

mais difícil suportar o estar sozinho numa multidão do que estan-

do só — como Meister Eckhart observou certa vez.

O último modo de estar sozinha, a que chamo de isolamento

(isolation), ocorre quando não estou nem junto comigo mesma,

nem na companhia de outros, mas preocupada com as coisas do

mundo. O isolamento pode ser a condição natural para todos os

tipos de fabricação (work), em que estou tão concentrada no que

estou fazendo que a presença de outros, incluindo a mim mesma,

só pode me perturbar. Um tal fabricar pode ser produtivo, como a

fabricação (fabrication) real de um novo objeto, mas não precisa

ser assim: o aprendizado, até a mera leitura de um livro, requer um

certo grau de isolamento, de estar protegido contra a presença de

outros. 0 isolamento também pode ocorrer como um fenômeno

negativo: os outros com quem partilho um certo interesse pelo

mundo podem me abandonar. Isso acontece freqüentemente na

vida política—é o ócio forçado do político ou, melhor, do homem

que é ele próprio cidadão, mas que perdeu contato com seus con-

cidadãos. O isolamento, nesse segundo sentido negativo, só pode

ser suportado se é transformado no estar só (into solitude), e todos

os que estão familiarizados com a literatura latina sabem como os

romanos, ao contrário dos gregos, descobriram o estar só, e com

ele a filosofia como um modo de vida, no ócio forçado que acom-

panha o afastamento dos assuntos públicos. Quando se descobre o

estar só do ponto de vista de uma vida ativa, passada na companhia


dos pares» chega-se ao ponto em que Catão disse: “Nunca sou mais

ativo do que quando não faço nada» nunca estou menos sozinho do

que quando estou comigo mesmo”. Ainda se pode ouvir nessas

palavras, creio eu, a surpresa de um homem ativo — que original-

mente não ficava sozinho e estava longe de não fazer nada — ao

descobrir os deleites do estar só e da atividade do dois-em-um do

pensamento.
Se, por outro lado, chega-se a descobrir o estar só a partir do

pesadelo da solidão, compreende-se por que um filósofo, Nietz-

sche, apresentou os seus pensamentos sobre essa questão num

poema (“Aus Hohen Bergen”, no final de Além do bem e do mal),

celebrando o Meio-dia da Vida, quando findaram os desejos deses-

perados, na solidão, por amigos e companhia, porque “ Um Mittag

war's da wurde Eins zu Zwei”— um se tornou dois. (Existe um afo-

rismo muito anterior em forma de poema, no qual Nietzsche

observa: “O poeta apresenta os seus pensamentos na carruagem do

ritmo: em geral, porque eles não poderiam caminhar” [Humano,

demasiado humano, 189.] O que acontece, é a pergunta que gosta-

ríamos de formular, quando um filósofo faz algo semelhante?)

Menciono essas várias formas de estar sozinho ou os vários

modos em que a singularidade humana se articula e se torna real

porque é muito fácil confundi-las, não apenas porque tendemos a


ser desleixados e despreocupados com as distinções, mas tambéiqjl

porque, de modo invariável e quase imperceptivelmente, elas se

transmutam uma na outra. A preocupação com o eu como o


padrão fundamental da conduta moral só existe, é claro, no estar
só. A sua validade demonstrável se encontra na fórmula gen^‘É

melhor sofrer o mal do que fazer o mal”, que, como vimos, baseia-

se na intuição de que é melhor estar em desavença com o mundo


inteiro do que, sendo Uma Só, estar em desavença comigo mesi^fc

Essa validade só pode ser mantida para o homem na medida eij|

que ele é um ser pensante, que precisa da companhia de si mesn^ft

165
^
*
emvis,.d0pro«Sso “"MNa‘lad0<!UedÍSSemOSé’«-

d° ^X^dXmos, é o modo humano de deitar raí-

zes de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos CheganiOs

mmo estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma

personalidade, distinta de um mero ser humano ou de uni nin-

guém nasce realmente desse processo do pensamento que deita


raízes'Nesse sentido,afirmei queéquaseumaredundânciafalarde

uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser
de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou

mesquinhas, ela pode ser agressiva ou dócil, franca ou dissimula-

da; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nas-

cer inteligente ou estúpida, bela ou feia, amável ou um tanto rude.

Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam
neste momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em
seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem

de viver consigo mesmo, haverá limites para o que pode se permitir


fazer, e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto-esta-
belecidos. Esses limites podem mudar de maneira considerável e
desconfortavelmente de pessoa para pessoa, de país para país, de
século para século; mas o mal ilimitado e extremo só é possível
quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamen-
te limitam as possibilidades, estão inteiramente ausentes. Elas

estão ausentes quando os homens apenas deslizam sobre a super-


fície dos acontecimentos, quando se deixam levar adiante sem

) penetrarem em qualquer profundidade de que possam ser


P Certamente, essa profundidade também muda de pessoa
P P oa, de século para século, tanto na sua qualidade especí-
« quamo nas su.s dimensões. nsina„.
ao as pessoas como pensar r -
distinta da arte oratória de co C°nS,g°
de ensinar o que pensar e cn persuadir « da ambição do sab.o
mo aPrender, ele melhoraria seus con-

166
cidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a

Sócrates quais seriam as sanções para aquele famoso crime oculto


dos olhos dos deuses e dos homens, a sua resposta só poderia ter
sido: a perda dessa capacidade, a perda do estar só, e, como tentei

ilustrar, com ela a perda da criatividade — em outras palavras, a

perda do eu que constitui a pessoa.


Como a filosofia moral era afinal o produto da filosofia, e

como os filósofos não poderíam ter sobrevivido à perda do eu e à

perda do estar só, já não podemos ficar surpresos com o fato de que

o padrão fundamental da conduta para com os outros tenha sido

sempre o eu, não apenas no pensamento estritamente filosófico,


mas também no religioso. Assim, encontramos uma mistura bas-
tante típica de pensamento pré-cristão e cristão em Nicolas de
Cusa, que (na sua Visão de Deus, 7) faz com que Deus se dirija ao
homem quase com as mesmas palavras do Conhece a ti mesmo de

Delfos: Sis tu tuus et ego ero tuus (“Se tu és teu, eu [isto é, Deus] serei
teu”). A base de toda a conduta, diz ele, é “que escolho ser eu

mesmo” (ut ego eligam mei ipsis esse), e o homem é livre porque
Deus deixou-o livre para ser ele mesmo, se assim o quiser (ut sim,

si volam, mei ipsius). A isso devemos agora acrescentar que esse


padrão, embora possa ser verificado nas experiências e nas condi-

ções essenciais do pensamento, não se presta a ser registrado em


preceitos e leis específicos de comportamento. Por isso, o pressuá

posto quase unânime da filosofia moral ao longo dos séculos esy,

em curiosa contradição com a nossa crença corrente de que aleiraO


país estabelece as regras morais essenciais com as quais todw)S

homens concordam, quer porque Deus as determinou, querwr-


que elas podem ser derivadas da natureza do homem.
Como Sócrates acreditava que aquilo que agora chamarias
de moralidade, que, na verdade, diz respeito ao homem na sua í
*

gularidade, também aperfeiçoa o homem como cidadão, é ju«


levar em consideração as objeções políticas que foram levantada
à época e que ainda podem ser levantadas hoje em dia. Contra a

afirmação de Sócrates de aperfeiçoar os cidadãos, a cidade afirma-

va que ele corrompia a juventude de Atenas e solapava as crenças

tradicionais em que se baseava a conduta moral. Vamos especificar

as objeções» citando ou parafraseando o que se encontra principal-


mente na Apologia. Sócrates, que passou a vida examinando a si

mesmo e aos outros, ensinando a si mesmo e aos outros a pensar,


não pode deixar de questionar todos os padrões e medições exis-
tentes. Longe de tornar os outros mais “morais”, ele solapa a
moralidade e abala a crença inquestionável e a obediência in-
questionável. Talvez ele tenha sido falsamente acusado de introdu-
zir novos deuses, mas só porque fez algo pior: ele “nunca ensinou
nem professou ensinar qualquer conhecimento”. Além disso,
como ele próprio admite, a sua vocação o conduzira a uma vida de
privacidade (idioteuein alia me demosieuein) em que ele evitava a
vida com as pessoas em geral, que é a vida pública. Isto é, ele quase
provou como a opinião pública de Atenas estava correta quando
disse que a filosofia era apenas para os jovens que ainda não
tinham sido admitidos à cidadania, e que, mesmo então, embora
necessária para a educação, devia ser praticada com cautela porque
induzia a malakia, a moleza de espírito. Por fim, como coroamen-
to, e mais uma vez com a admissão do próprio Sócrates, tudo o que
ele podia mostrar em defesa de si próprio no que dizia respeito à
conduta real era uma “voz” que falava de dentro de si mesmo, uma
voz que o fazia recuar de algo que pretendia fazer, mas que nunca
o pressionava a agir.
Nenhuma dessas objeções pode ser rejeitada de imediato.
Pensar significa examinar e questionar; sempre implica aquela
destruição de ídolos de que Nietzsche tanto gostava. Quando
Sócrates terminava o seu questionamento, não restava nada a que
se agarrar—nem os padrões aceitos pelas pessoas comuns, nem os
contrapadrões aceitos pelos sofistas. O diálogo comigo mesma

168
quando estou só ou com um outro eu, mesmo quando realizado na

praça do mercado, evita a multidão. E quando Sócrates dizia que,


na sua opinião, o maior bem que sucedeu a Atenas foi o seu ato de

incitar a cidade assim como um moscardo incita um cavalo gran-


de, puro-sangue, mas um tanto preguiçoso, ele poderia querer
dizer apenas que nada melhor pode suceder a uma multidão do
que ser novamente dividida em homens particulares, aos quais se
pode apelar na sua singularidade. Se isso fosse possível, se todo
homem pudesse ser levado a pensar e julgar por si mesmo, então
seria também realmente possível prescindir dos padrões e regras
fixados. Se essa possibilidade é negada, e tem sido negada por j
quase todo mundo depois de Sócrates, compreende-se facilmente C

por que a polis o considerava um homem perigoso. Qualquer um


que apenas escutasse o exame socrático sem pensar, sem entrar no 1
próprio processo de pensamento, bem que poderia ser corrompí-
do; isto é, ficaria privado dos padrões que defendia sem pensar. Em •«
outras palavras, todo aquele que fosse corruptível corria agora o
grave risco de ser corrompido. Essa ambigüidade, que o mesmo ato
tornará melhores os homens bons e piores os homens maus, foi
certa vez aludida por Nietzsche, que se queixou de ter sido mal
compreendido por uma mulher: “Ela me disse que não tinha

moralidade — e pensei que ela tivesse, como eu próprio, uma 1


moralidade mais severa”14 O mal-entendido é comum, embora a f
reprovação, nesse caso particular (Lou Andreas-Salome), fossy
completamente fora de propósito. Tudo isso é bem verdade, desde
que admitamos que as convenções, as regras e padrões pelos quais
vivemos em geral não causam uma impressão muito boa se exar^í"

nadas, e que seria imprudente depositar qualquer confiança neles

em tempos de emergência. Do que se segue que a moralidade


socrática só é politicamente relevante em tempos de crise, e que Oi
eu como critério fundamental da conduta moral é, poIiticament^È

uma espécie de medida de emergência. E isso implica que a invc^A

169
j ;„d™os supostam®'' Para da “"«Id.,

caçaodeprm p fraude;quase não precisamos de experiên-

"'idi”X qàa os moralistas estreitos, que apeiant constant

roenwpara os elevados princípios mora isepadrões estabelecidos,

X" m geral os primeiros a aderir a qua,squer outros padrões que

!hes sejam oferecidos, e que a sociedade respeitável, o que os fran-

eases chamam te hm-pCTsm.B, está mais smetta a se tornar nada

respeitável e até criminosa do que a maioria dos boêmios e beat-

niks. Tudo o que estivemos considerando até agora é importante

apenas em circunstâncias excepcionais; e os países em que essas

circunstâncias excepcionais se tornaram a regra da nação, e a ques-

tão a respeito de como se comportar em tais condições se tornou o

problema mais urgente, são acusados, por esse mesmo fato, de

mau governo, para usar palavras brandas. Mas aqueles que em

condições perfeitamente normais apelam para padrões morais

ambiciosos são muito parecidos com aqueles que pronunciam o

nome de Deus em vão.

Essa qualidade da questão moral, a de ser politicamente um

fenômeno limítrofe, torna-se manifesta quando consideramos

que a única recomendação que temos o direito de esperar da afir-


mação É melhor estar em desavença com o mundo inteiro do que,

sendo uma só, estar em desavença comigo mesma”, sempre perma-

necerá inteiramente negativa. Ela nunca lhe dirá o que fazer, ape-
nas impedirá que faça certas coisas, mesmo que elas sejam feitas

por todos ao seu redor. Não se deve esquecer que o próprio proces-
de pensar é incompatível com qualquer outra atividade. A

expressão idiomática >re e pense” é totalmente correta. Sempre

mos^est f °S’Í?terrOrnpernos^ua^uer°utra coisa que podería-

paz sdeíaz 7’d°«>inca-


pazesde erqu alquer outra coisa senão pensar.

agir. Existe uma tenZ^ne^ dÍStÍnçâo entre pensar C

rente entre esses dois tipos de atividade;

170
e o desprezo de Platão pelos buliçosos, aqueles que estão sempre
ativos e nunca param, é um estado de espírito que, numa ou nou-
tra forma, vai aparecer em todo filósofo verdadeiro. Essa tensão, no
entanto, tem sido atenuada por uma noção que também tem sido
cara a todos os filósofos, a idéia de que pensar é igualmente uma
forma de agir; que pensar, como às vezes se diz, é uma espécie de
«açã0 interior”. Há muitas razões para essa confusão, razões que
são irrelevantes quando o filósofo fala em defesa própria contra as
recriminações vindas dos homens ativos e dos cidadãos, e razões
relevantes que se originam da natureza do pensamento. E o pensa-
mento, em contraposição à contemplação, com a qual é muito fre-
qüentemente equiparado, é realmente uma atividade e, além disso,
uma atividade que tem certos resultados morais, isto é, uma ativi-
dade em que aquele que pensa se constitui em alguém, em uma
pessoa ou uma personalidade. Mas atividade e ação não são a
mesma coisa, e o resultado da atividade de pensar é uma espécie de
subproduto com respeito à própria atividade. Não é idêntico à
meta que um ato busca alcançar e visa conscientemente atingir. A
distinção entre pensamento e ação é freqüentemente expressa no
contraste entre Espírito (Spirit) e Poder, pelo qual Espírito e Impo-
tência são automaticamente igualados, e há realmente mais do que j
um grão de verdade nessas expressões.
A principal distinção, em termos políticos, entre Pens
mento e Ação reside no fato de que, quando estou pensando, estqjl
apenas com o meu próprio eu ou com o eu de outra pessoíyjíto
passo que estou na companhia de muitos assim que começo a
Para os seres humanos, que não são onipotentes, o poder só^
residir numa das muitas formas de pluralidade humana, enqyfcn-
to todo modo de singularidade humana é impotente por def&i-
ção. É verdade, entretanto, que até na singularidade ou dualitjSe
dos processos de pensamento a pluralidade está de certo mcK^
embrionariamente presente, na medida em que só consigo pen^B
dividindo-me em duas, apesar de ser uma. Mas esse dois-em-um,

visto da perspectiva da pluralidade humana, é como o último ves-

tígio de companhia, um fenômeno limítrofe — mesmo quando

sou uma junto a mim mesma, sou ou posso me tornar duas —,

que se torna muito importante porque descobrimos a pluralida-

de onde menos esperaríamos encontrá-la. Mas no que diz respei-

to ao ser com outros, ele ainda deve ser considerado um fenôme-

no marginal.

Essas considerações talvez possam explicar por que a morali-

dade socrática, com suas qualidades negativas e marginais, tem se

revelado a única moralidade operativa em situações limítrofes,

isto é, em tempos de crise e emergência. Quando os padrões já não

são válidos de qualquer modo — como na Atenas da última terça

parte dos séculos v e iv ou como na Europa da última terça parte

dos séculos xix e xx—, nada resta senão o exemplo de Sócrates, que

pode não ter sido o maior dos filósofos, mas ainda é o filósofo par

excellence. Em vista do que não devemos esquecer, que para o filó-

sofo, que não só pensa como gosta extraordinariamente de pensar

—na opinião de muitos de seus concidadãos, até excessivamente —,

o subproduto moral do pensamento é em si mesmo de importân-

cia secundária. Ele não examina as coisas para aperfeiçoar a si pró-

prio ou aos outros. Se os seus concidadãos, que de qualquer modo

tendem a suspeitar dele, lhe dizem: “Nós o deixaremos partir sob a

condição de que renuncie a essa sua investigação e à filosofia”, a res-

posta será sempre a resposta socrática: “Tenho por vocês a mais alta

consideração e afeto, mas [...] enquanto tiver fôlego e resistência

não renunciarei à filosofia [...] [e] não mudarei meu modo de

vida”.

Deixem-me voltar, uma vez mais, ao problema da consciên-

cia, cuja própria existência se tornou questionável pelas nossas

experiências mais recentes. A consciência é supostamente um

modo de sentir além da razão e dos argumentos, e de conhecer pelo


sentimento o que é certo e errado. O que tem sido revelado sem

sombra de dúvida, creio eu, é que esses sentimentos realmente

existem, que as pessoas se sentem culpadas ou inocentes, mas que,

infelizmente, esses sentimentos não são indicações confiáveis, não

são, na verdade, indicação nenhuma de certo e errado. Os senti-

mentos de culpa podem ser despertados, por exemplo, por um

conflito entre antigos hábitos e novas ordens—o antigo hábito de

não matar e a nova ordem de matar —, mas eles podem ser igual-

mente despertados pelo oposto: assim que matar ou qualquer

outra coisa exigida pela “nova moralidade” tenha se tornado um

hábito e seja aceito por todos, o mesmo homem se sentirá culpado

se não se conformar às ordens. Em outras palavras, esses sentimen-

tos indicam conformidade e não-conformidade, não indicam

moralidade. A Antigüidade, como já disse, ainda não conhecia o

fenômeno da consciência; ela foi descoberta como o órgão no

homem que escuta a voz de Deus e adotada mais tarde pela filoso-

fia secular, na qual é de legitimidade duvidosa. Dentro da esfera da

experiência religiosa, não pode haver conflito de consciência. A

voz de Deus fala claramente, e a questão é apenas se vou obedecer

a ela ou não. Os conflitos de consciência em termos seculares, por

outro lado, não são realmente senão deliberações entre mim e mi

mesma; não são resolvidos pelo sentimento, mas pelo pensamei

to. Porém, na medida em que a consciência não significa mais <

que estar em paz comigo mesma, que é a condição sine qua non do

pensamento, ela é na verdade uma realidade; mas ela, como agora

sabemos, apenas dirá: não posso e não o farei. Como está relacio-

nada com o próprio eu, não se pode esperar dela nenhunfimpul-

so para a ação.15

Por fim, recordemos as poucas indicações que apresentei

sobre o modo como o problema do mal é considerado do ponto de

vista desse tipo estritamente filosófico de moralidade. O maBfefi-


nido com respeito ao eu e à interação do pensamento entre iKa e
mim mesma, continua tão formal e vazio de conteúdo quanto o

Imperativo Categórico de Kant, cujo formalismo freqüentemente

enfureceu seus críticos. Se Kant disse: está errada toda máxima que

não pode se tornar uma lei universalmente válida, é como se

Sócrates tivesse dito: está errado todo ato em vista do qual não

posso continuar a viver junto com seu agente. Em comparação, a

fórmula de Kant parece menos formal e muito mais estrita; o

roubo e o assassinato, a mentira e o falso testemunho, são proibi-

dos com igual força. A questão de saber se eu não preferiría viver

com um ladrão a viver com um assassino, se talvez não me incomo-

dasse consideravelmente menos com um mentiroso do que com

alguém que prestou falso testemunho etc., nem sequer é proposta.

A razão para essa diferença é também que Kant, apesar de muitas

afirmações em contrário, nunca distinguiu completamente entre

legalidade e moralidade, e que ele queria que a moralidade se tor-

nasse, sem intermediários, a fonte da lei, de modo que o homem,

aonde quer que fosse e o que quer que fizesse, fosse o seu próprio

legislador, uma pessoa inteiramente autônoma. Na fórmula de

Kant, é o mesmo mal que me torna ou um ladrão ou um assassino,

a mesma fraqueza fatal na natureza humana. Outro exemplo, e um

exemplo muito importante, de enumeração de transgressões que

não são graduadas segundo a gravidade é o Decálogo, que também

devia ser o fundamento da lei do país.

De fato, é verdade que, se tomamos apenas uma das duas fór-


mulas socráticas: “É melhor sofrer o mal do que fazer o mal”,

encontramos a mesma curiosa indiferença a possíveis graus do

mal; mas isso desaparece se acrescentamos o segundo critério de

ter de viver consigo mesmo, como fizemos. Pois esse é um princí-

pio puramente moral, distinto de um princípio legal. Quanto ao

agente, esse só pode dizer: “Isso não posso fazer”, ou: “Isso eu nunca

deveria ter feito”, sugerindo que talvez tivesse praticado o mal

antes, mas sem conseqüências fatais. Nesse ponto surge uma dis-

174
tinção entre as transgressões, tais como aquelas que enfrentamos

todos os dias, com as quais sabemos como lidar e das quais sabe-

mos como nos livrar, quer pela punição, quer pelo perdão, e, por

outro lado, aquelas ofensas para as quais só podemos dizer: “Isso

nunca deveria ter acontecido”. A partir dessa afirmação falta ape-

nas um passo para concluir que aquele que cometeu tal ato nunca

deveria ter nascido. Obviamente, essa distinção é muito semelhan-

te à distinção de Jesus de Nazaré entre as transgressões que devo

perdoar “sete vezes ao dia”, e aquelas ofensas em que “o melhor para

ele é que uma pedra de moinho fosse dependurada ao redor do seu

pescoço e ele fosse lançado ao mar”

Em nosso contexto, há dois elementos especialmente sugesti-

vos nesse ditado. Primeiro, a palavra usada para ofensa é skanda-

lon, que originalmente significava uma armadilha para os inimi-

gos, e que é aqui usada como o equivalente para a palavra hebraica

mikhshol ou zur mikhshol, que significa obstáculo. Essa distinção

entre meras transgressões e esses obstáculos mortais parece indi-

car mais do que a distinção corrente entre pecados veniais e mor-

tais; indica que esses obstáculos não podem ser removidos tão

facilmente de nosso caminho como meras transgressões. Em

segundo lugar, e isto apenas de modo aparentemente incoerente


com essa interpretação do texto, notem que seria melhor para elÃ

que nunca tivesse nascido, pois essa expressão faz com que se leigí

comentário como se o agente da ofensa, cuja natureza é apeôas


indicada como um obstáculo insuperável, tivesse se aniquilado.

Mas por mais longe que se levem as conseqüéncias inerentes


das poucas afirmações que, de um modo ou outro, ainda são as

únicas intuições a que podemos recorrer na nossa busca da$atu~

reza do mal, uma coisa é inegável: a qualidade intensamentejpes-

soal e, se quiserem, até subjetiva, de todos os critérios aqui prqpos-

tos. Esse é provavelmente o aspecto mais contestável das m3kas


considerações, e voltarei a esse tema na próxima conferêrjia,

175 A.
quando discutir a natureza do julgamento. Hoje vou apenas men-

cionar-lhes, como que em defesa própria, duas afirmações que

expressam essencialmente o mesmo pensamento, embora se ori-

ginem de fontes e tipos de homens inteiramente diversos; elas tal-

vez lhes dêem uma indicação daquilo a que estou pretendendo

chegar. A primeira das minhas afirmações vem de Cícero e a segun-

da, de Meister Eckhart, o grande místico do século xvi. Nos Tuscu-

lanos, Cícero discute as opiniões conflitantes dos filósofos sobre

certas questões que não têm interesse em nosso contexto. E quando

passa a decidir qual delas está certa e qual está errada, de repente e

muito inesperadamente ele introduz um critério completamente

diferente. Descarta a questão da verdade objetiva e, dada a escolha

entre as opiniões dos pitagóricos e de Platão, diz: “Por Deus, prefi-

ro me extraviar com Platão a defender visões verdadeiras com

aquelas pessoas”. E ele deixa o seu parceiro no diálogo enfatizar

mais uma vez o ponto: ele também não se importaria de se extra-

viar e errar com um homem desses. Ainda mais surpreendente do

que essa afirmação, que é apenas polêmica, é a afirmação de Eckhart,

francamente herética. Num de seus assim chamados “ditados” que

foram preservados (e que são realmente historietas), Eckhart ter ia

encontrado o homem mais feliz, que se revela um mendigo. O

enredo vai para a frente e para trás até que finalmente perguntam

ao mendigo se ele ainda se consideraria feliz caso se descobrisse no

inferno. E o mendigo, que baseou a sua argumentação no seu amor

a Deus e no pressuposto de que tem presente consigo tudo o que

ama, responde: “Oh, sim, preferiría estar no inferno com Deus a

estar no céu sem Ele”. A idéia é que tanto Cícero como Eckhart con-

cordam em que chega um momento em que todos os padrões

objetivos—a verdade, recompensas e punições numa vida futura

etc. — cedem a primazia ao critério “subjetivo” do tipo de pessoa

que desejo ser e com quem desejo viver.

Se aplicarmos essas afirmações à questão da natureza do mal,

176
o resultado seria uma definição do agente e o modo como ele agiu,

em vez do próprio ato ou do seu resultado final. E encontraremos

esse deslocamento daquilo que objetivamente se fez para o quem

subjetivo do agente como um dado marginal mesmo em nosso sis-

tema legal. Pois se é verdade que acusamos alguém pelo que fez, é

igualmente verdade que quando um assassino é perdoado já não se

leva esse ato em consideração. Não é o assassinato que é perdoado,

mas o assassino, a sua pessoa, assim como ela aparece nas circuns-

tâncias e intenções. O problema com os criminosos nazistas foi

precisamente que eles renunciaram voluntariamente a todas as

qualidades pessoais, como se não restasse ninguém a ser punido ou

perdoado. Eles protestaram repetidas vezes, dizendo que nunca

tinham feito nada por sua própria iniciativa, que não tinham tido

nenhuma intenção, boa ou má, e que apenas obedeceram a ordens.

Em outras palavras: o maior mal perpetrado é o mal cometi-

do por Ninguém, isto é, por um ser humano que se recusa a ser uma

pessoa. Dentro da estrutura conceituai dessas considerações,

poderiamos dizer que o malfeitor que se recusa á pensar por si

mesmo no que está fazendo e que, em retrospectiva, também se

recusa a pensar sobre o que faz, isto é, a voltar e lembrar o que fez
(que é teshuvah, isto é, arrependimento), realmente deixou de se j

constituir como alguém. Permanecendo teimosamente um nin-

guém, ele se revela inadequado para o relacionamento com

outros que, bons, maus ou indiferentes, são no mínimo pesso»F

Tudo o que descobrimos até agora é negativo. Temos tr^Ko


de uma atividade e não de uma ação, e o padrão fundamentdafem

sido a relação com o nosso próprio eu, e não a relação com os


outros. Vamos agora voltar a nossa atenção para a ação comdHdgo
j. . .
distinto da atividade, e para a conduta em relação aos outros c$tno

algo distinto da interação comigo mesma. Nos dois casos,

nos manter restritos a questões morais; vamos nos ater a

mens na sua singularidade e deixar fora de consideração tc

RH n i imi A I IMM
questões políticas, como a constituição de comun idades e governo,

bem como o apoio do cidadão às leis do país ou sua ação em conjun-

to com os concidadãos, para dar suporte a um empreendimento

comum. Assim, vou falar sobre a ação não política, que não ocorre

em público, e sobre as relações não políticas com os outros, que não

são relações com outros eus, isto é, com amigos, nem predetermi-

nadas por algum interesse mundano comum. Os dois fenômenos

que vão requerer principalmente a nossa atenção estão realmente

interligados. O primeiro é o fenômeno da vontade, que segundo a

nossa tradição me incita a agir, e o segundo é a questão da natureza

do bem num sentido inteiramente positivo, em lugar da questão

negativa de como impedir o mal.

Mencionei anteriormente que o fenômeno da vontade era

desconhecido da Antigüidade. Mas, antes de tentar determinar a

sua origem histórica, que tem um interesse considerável, vou ten-

tar lhes dar, muito sucintamente, uma breve análise da sua função

com respeito às outras faculdades humanas. Para fins de concisão,

vou começar com uma simples ilustração. Vamos supor que temos

diante de nós um prato de morangos e que desejo comê-los. Esse

desejo era certamente conhecido da filosofia antiga; o desejo sem-

pre significou ser atraído por algo fora de mim. Isso era natural e

de uma ordem não muito elevada, pertencendo, grosso modo, ao

animal no homem. A questão de saber se devo ou não ceder a esse

desejo era decidida, segundo os antigos, pela razão. Se, por exem-

plo, sou sujeito a um certo tipo de alergia, a razão me diz para não

estender a mão e pegar os morangos. Se vou comê-los mesmo

assim, ou não, isso depende da força de meus desejos, por um lado,

e da força que a razão tem sobre eles, por outro. Vou comer os meus

morangos, quer porque me falta completamente a razão, quer por-

que a minha razão é mais fraca que meu desejo. A famosa oposição

da razão e das paixões, mais a antiga questão de saber se a razão é

escrava das paixões ou se, pelo contrário, as paixões devem e

178
podem ser controladas pela razão, retrocede às antigas noções

esquemáticas sobre a hierarquia das faculdades humanas.16

É nessa dicotomia que a faculdade da vontade é inserida. A

inserção significa que nem o desejo nem a razão são abolidos ou

sequer empurrados para um posto inferior; os dois ainda mantêm

a sua posição. Mas a nova descoberta é que há algo no homem que

pode dizer sim ou não aos preceitos da razão, de modo que ceder

ao desejo não é um ato incitado pela ignorância, nem pela fraque-

za, mas pela minha vontade, uma terceira faculdade. A razão não é

suficiente e o desejo não é suficiente. Pois — e essa é a nova desco-

berta, em poucas palavras: — “O espírito não é posto em movi-

mento até querer ser posto em movimento” (De libero arbítrio

voluntatuSy m 1.2). Posso decidir contra o conselho deliberado da

razão, assim como posso decidir contra a mera atração dos objetos

de meu apetite, e o que decide a questão sobre o que vou fazer é

mais a vontade do que a razão ou o apetite. Assim posso querer o


que não desejo e posso não-querer (nill), tomar conscientemente

uma posição contra o que a razão me diz que é certo, e em todo ato

esse eu-quero ou eu-não-quero são os fatores decisivos. A vontade


é o árbitro entre a razão e o desejo, e enquanto tal apenas a vonta-

de é livre. Além disso, embora a razão revele o que é comum a todo$

os homens, e o desejo revele o que é comum a todos os organismo!

vivos, apenas a vontade é inteiramente minha.17

Mesmo com essa breve análise esquemática, ficará óbvio que


a descoberta da vontade deve ter coincidido com a descob^h da

liberdade como uma questão filosófica, distinta de um fato políti-

co. Por certo, é bastante estranho para nós observar que a qÇestão

da liberdade, particularmente a liberdade da vontade, que desem-


penha um enorme papel em todo o pensamento filosófico ereli-

gioso pós-cristão, nunca tenha aparecido na filosofia antiga^’JNo

entanto, essa estranheza se dissolve no momento em que em-


preendemos que nenhum elemento de liberdade pode residi»»

179
razão ou no desejo. O que quer que a razão me diga por um lado

pode ser persuasivo ou convincente, ao passo que os meus apeti-


tes, por outro lado, são compreendidos como a reação desejosa a

qualquer coisa que me afete do exterior.


A liberdade, segundo a filosofia antiga, estava inteiramente
ligada com o eu-posso; “livre” significava ser capaz de fazer o que
se queria fazer. Dizer, por exemplo, que um paralítico privado da
sua liberdade de movimentos ou um escravo sob as ordens de seu
senhor eram ainda assim livres, na medida em que também ti-
nham força de vontade, poderia ter soado como uma contradição.
E se examinamos a filosofia dos estóicos tardios, especialmente a
do filósofo escravo Epicteto (cujos escritos são contemporâneos
aos de Paulo, o primeiro escritor cristão), na qual é proposta repeti-
das vezes a questão da liberdade interior, independentemente das
circunstâncias externas e políticas, vemos imediatamente que isso
de modo algum significa um deslocamento do desejo para a von-
tade, ou do eu-posso para o eu-quero, mas apenas um desloca-
mento nos objetos de meus desejos. Para continuar livre apesar de
ser escrava, devo treinar os meus apetites de tal modo que eles só
desejarão o que posso obter, o que depende apenas de mim mesma

e está assim realmente em meu poder. O paralítico, nessa interpre-


tação, seria livre, tão livre quanto qualquer outro, se apenas paras-
se de querer usar os seus membros.19

Apresentei esse exemplo de Epicteto para evitar mal-enten-


didos. Esse tipo de interiorização, de restrição do eu-posso da
realidade para a esfera de uma vida interior de possibilidades ili-

mitadas, precisamente por ser irreal, tem pouco em comum com a

nossa questão. Muito do que Nietzsche tinha a dizer na sua crítica

ao cristianismo só é realmente aplicável a essas últimas etapas da

filosofia antiga. Na verdade, Epicteto pode ser compreendido

como um exemplo daquela mentalidade escrava ressentida que,

ao ouvir de seu senhor: “Você não é livre porque não pode fazer

180
isto ou aquilo”, responderá: “Eu nem quero fazer tal coisa, por isso
sou livre”.
Afirmou-se, creio que foi Eric Voegelin, que independen-
temente do que compreendamos pela palavra“alma”, isso era com-
pletamente desconhecido antes de Platão. No mesmo sentido, gos-
taria de sustentar que o fenômeno da vontade, em todos os seus
emaranhamentos complicados, era desconhecido antes de Paulo,
e que a descoberta de Paulo estava ligada da forma mais estreita
possível com os ensinamentos de Jesus de Nazaré. Já mencionei o
“Ama a teu próximo como a ti mesmo”. Os senhores devem saber
que essa expressão dos Evangelhos é na verdade uma citação do
Antigo Testamento; a sua origem é hebraica, e não cristã. Men-
cionei a frase porque nela também vemos que o eu é o padrão fun-
damental do que devo e do que não devo fazer. Vocês também
devem lembrar que Jesus disse contra essa regra: “Mas eu vos digo,
amai os vossos inimigos, abençoai os que vos amaldiçoam, fazei o
bem àqueles que vos odeiam” etc. (Mateus 5,44). Isso ocorre quan-
do Jesus radicaliza todos os antigos preceitos e ordens, como quan-
do diz: “Ouvistes o que foi dito por aqueles dos tempos antigos:
Não cometerás adultério. Mas eu vos digo: Todo aquele que olh
para uma mulher com desejo já cometeu adultério com ela no
coração” (Mateus 5, 27-28), e outras afirmações semelha
nenhuma das quais é alheia ao ensinamento hebraico, send e- k
nas muito intensificada. O mesmo é verdade, em certa medida,
para a ordem “ama a teu inimigo”, pois já encontramos algo com
um tom semelhante nos Provérbios (25,21), nos quaisse diz: “Se o
teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer; e se ele tem sede, dá-lhe de
4
beber”, exceto que Jesus não acrescenta: “Pois amontoarás carvões

em brasa sobre a cabeça dele, e o Senhor te recompensará” (como


faz Paulo, em Romanos 12, ainda citando textualmente os Provér-
bios). Jesus apenas acrescenta: “Para que possais ser osfilhos de

vosso Pai que está no Céu”. Nessa forma, “ama teu inimigo” é mais

181
do que a mera intensificação do preceito hebraico. Isso se torna

totalmente manifesto quando lembramos algumas outras pala-


vras pronunciadas no mesmo contexto, como “Dê a todo homem
o que ele te pede” e “Àquele que te rouba o manto, não impeças que

te roube também o casaco” (Mateus 5,40). Nada é na verdade mais

manifesto, creio eu, do que o fato de que, nesses conselhos de con-

duta, o eu e a interação entre mim e mim mesma já não são os cri-


térios fundamentais da conduta. O objetivo não é, de modo algum,

sofrer o mal em vez de fazer o mal, mas algo completamente dife-


rente, a saber, fazer o bem aos outros, e o único critério é realmen-

te o outro.
Esse curioso desprendimento de si (selflessness), a tentativa
deliberada de extinção do eu para o bem de Deus ou para o bem de
meu próximo é na verdade a própria quintessência de toda ética

cristã que mereça esse nome. E as nossas equiparações correntes


entre a bondade e o desprendimento de si (das quais temos con-
cluído, receio que um pouco sem pensar, que a maldade e o estar

ensimesmado [selfishness] são a mesma coisa) são como um eco


longínquo das experiências autênticas de alguém que gostava de
fazer o bem, assim como Sócrates gostava da atividade do pensa-

mento. E assim como Sócrates sabia muito bem que o seu amor
pela sabedoria estava solidamente baseado no fato de que nenhum
homem pode sersábio, descobrimos em Jesus a sólida convicção de

que seu amor pela bondade estava baseado no fato de que nenhum
homem pode ser bom: “Por que me chamas de bom? Ninguém é
bom, exceto um único, que é o nosso Pai que está no Céu”. E assim

como nenhum processo de pensamento é sequer concebível sem


esse dois-em-um, essa divisão em que o eu se realiza e se articula,

pelo contrário nenhum ato de bondade é possível se, ao praticá-lo,

estamos cientes do que fazemos. Nesse caso não conta senão o dito:
“Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita”, c

nem sequer basta: “Toma cuidado para não dar esmolas diante dos

182
homens e ser visto por eles” (Mateus 6,2); devo estar, por assim

dizer, ausente de mim mesma e não ser vista por mim. Nesse sen-
tido e no sentido de que falamos antes sobre a solidão, o homem
que se apaixonou pela prática do bem embarcou na carreira mais
solitária que pode haver para o ser humano, a não ser pela compa-
nhia e testemunho de Deus, se acreditar em Deus. Tão forte é esse
elemento de real solidão em toda tentativa positiva de praticar o
bem e não se contentar em evitar o mal que até Kant, que sob
outros aspectos foi tão cuidadoso em eliminar Deus e todos os pre-
ceitos religiosos da sua filosofia moral, invoca Deus para que pres-
te testemunho da existência da boa vontade, inexplorável e não
detectável em caso contrário.
Penso ter discutido em poucas palavras a natureza extraordi-
nariamente paradoxal da afirmação de Sócrates e o fato de que nós,
pelo hábito e pela tradição, já não temos ouvidos sensíveis para
compreendê-la. O mesmo pode ser dito com ênfase até maior para
a radicalização dos antigos mandamentos hebraicos no ensina-
mento de Jesus. A pressão que ele impôs aos seus seguidores deve
ter ido além do suportável, e a única razão por que não a sentimos
mais é que já não a levamos a sério. E a pressão desse ensinamento
talvez não tenha sido sentida por ninguém com mais força do que.

por Paulo, depois de sua repentina conversão. j


Tem-se dito freqüentemente que o fundador do cristianijflb
não foi Jesus de Nazaré, mas Paulo de Tarso; ele certamente foi o
fundador da filosofia cristã, com sua ênfase única na questão da
liberdade, o problema do livre-arbítrio. A passagem decisiva que

por um longo tempo, praticamente durante toda a Idade Média,

permaneceu no centro da discussão ocorre na Carta aos Romanos.


É o famoso capítulo sete, que começa com a discussão da Lei e ter-

mina com a necessidade de o homem ser salvo pela graça divina. A


introdução da Lei pressupõe a vontade. Todo“Deverás” é respondi-
do por um “Eu quero”. A Lei, como devem se lembrar, tomaj^ossí-

11
vel que os homens distingam o certo do errado,“pois onde não exis-
te a lei, não existe a transgressão” (Romanos, 4, 15); assim, “pela lei
vem o conhecimento do pecado” (Romanos, 3,20). Ainda assim, e
essa é a pressuposição do que se segue, a Lei que estabelece clara-
mente o que é certo e o que é errado não atingiu de modo algum o
seu objetivo; ao contrário, Paulo, citando um trecho dos Salmos,

diz: “Não há ninguém que compreenda, não há ninguém que pro-


cure Deus; não há ninguém que faça o bem, não, nem um sequer”
(Romanos, 3,11-12). Como é possível? Paulo o explica tomando a
si próprio como exemplo: o que acontece é que ele sabe, que “ele *
consente (synphetni) com a lei que é boa”, e mais, ele deseja agir de
acordo com a lei, e, todavia, “faço aquilo que não devia”. “O que eu
devia fazer, isso não faço; mas aquilo que odeio, isso eu faço.”
Assim, “o bem que eu queria fazer, eu não faço; mas o mal que eu
não queria fazer, isso eu faço” (Romanos, 7,19). Do que ele só pode
concluir: “Pois o querer está presente em mim; mas como executar
aquilo que é bom (e que eu quero, podemos acrescentar), não des-
cubro”. Como Paulo acredita que a razão pela qual ele não executa

o que quer é a dicotomia entre o homem carnal e o espiritual, que 1


há “uma outra lei nos meus membros, guerreando contra a lei do
meu espírito”, ele ainda pode acreditar que “com o espírito eu pró-
prio sirvo à lei de Deus; mas com a carne, à lei do pecado”.

Se tomarmos essa passagem tão seriamente como acredito


que devemos, torna-se completamente claro que a vontade, esse

instrumento supostamente poderoso que dá todos os impulsos ao


ato, foi descoberta na sua impotência, na experiência de que,

mesmo conhecendo e não consentindo com os meus desejos,

ainda estou numa posição em que devo dizer: eu não posso. Por

isso, a primeira coisa que aprendemos sobre a vontade é um “eu-

quero-mas-não-posso” O eu-quero, entretanto, não é de nenhum

modo sobrepujado pela experiência do eu-não-posso, mas conti-

nua a querer, por assim dizer, e quanto mais quer mais claro apare-

184
ce a sua insuficiência. A vontade aparece aqui como um tipo de
árbitro — liberum arbitrium — entre o espírito que conhece e a
carne que deseja. Nesse papel de árbitro, a vontade é livre; isto é,
decide de forma espontânea. Nas palavras de Duns Scotus, o filó-
sofo do século Xiii que, contra Aquino, insistiu na primazia da von-
tade em relação a todas as outras faculdades humanas: “Apenas a
vontade é a causa total da volição na vontade” (nihil aliuda volun-
tate est causa totalis volitionis in voluntate). Mas apesar de a vonta-
de ser livre, o homem carnal, embora possua essa faculdade de
liberdade, não é nada livre. Ele não é bastante forte para fazer o que
quer; todos os seus pecados e transgressões podem ser compreen-
didos como fraquezas, como pecados veniais ou perdoáveis, exce-
to o pecado mortal de assentir, que se torna o pecado contra o espí-
rito (spirit). A isso Scotus acrescenta, rejeitando os filósofos: o
homem espiritual tampouco é livre. Se apenas o eu-posso é livre,
ambos são não livres. O homem carnal não-pode porque é força-
do pelo desejo, e o intelecto não-pode fazer o mal porque é força-
do pela verdade. Nesse ponto, todo eu-posso pressupõe um eu-
não-devo.
Vamos reter desse primeiro contato com o fenômeno da von-
tade o eu-quero-e-não-posso, e observar essa primeira divisão que .
a vontade causa em mim mesma, que é totalmente diferente do
divisão que ocorre no pensamento. Essa divisão na vontade está
longe de ser pacífica — não anuncia um diálogo entre mim e mim

mesma, mas uma luta implacável que dura até a morte. Vamos
também notar a impotência da vontade e talvez obter uma primei-

ra indicação da razão pela qual a vontade, que entre todas as outras


faculdades humanas tornou-se tão faminta de poder, pôde ser

equiparada, no último e talvez maior representante de toda essa


tendência, a saber, em Nietzsche, com a vontade de poder. Po-
demos concluir essa etapa do problema com duas citações de

Agostinho; uma, das Confissões e a outra, de uma de suas caxjtas. O


que Paulo mostrou claramente é, primeiro: “Querer e ser capaz
não são a mesma coisa” (non hoc es velle quodposse) (Confissões 8,
8); e, segundo: “Se não houvesse a vontade, a lei não poderia ditar
ordens; se a vontade fosse suficiente, a graça não ajudaria” (nec lex
iuberet, nisi esset voluntas» necgratia iuvaret, si sat esset voluntas)
(Epistolae 177,5).
A segunda etapa de nosso problema é desenvolvida na filoso-
fia de Agostinho. O passo decisivo que ele deu além das formula-
ções de Paulo é a compreensão de que a armadilha em que está
presa a vontade não surge da natureza dual do homem, que é car-
nal e espiritual (spiritual). A própria vontade é uma faculdade do
espírito (mental) e, no que diz respeito ao corpo, tem poder abso-

luto: “O espírito comanda o corpo, e o corpo obedece instantanea-


mente; o espírito comanda a si mesmo, e encontra resistência”. Por

isso, precisamente a respeito daqueles fenômenos carnais que


levavam Paulo a se desesperar, Agostinho tem absoluta certeza do
poder da vontade: “Não se pode imaginar nada que esteja mais em
nosso poder do que o fato de que, quando queremos agir, agimos.

Assim, não há nada que esteja mais em nosso poder do que a pró-
pria vontade” (Retvactationes i, 8,3, e De libero arbítrio ni, 2, 7].
Entretanto, por causa dessa resistência da vontade a si mesma,

Paulo sabia do que estava falando. Está na própria natureza da von-


tade“em parte querer e em parte não querer”, pois se a vontade não

encontrasse essa resistência exercida por si mesma, não teria de dar


ordens e exigir obediência. Mas “ela não quer inteiramente; por-

tanto, não comanda inteiramente. Até o ponto em que ordena, ela

quer; e até o ponto em que o ordenado não é feito, ela não quer [... ]
Pois, se fosse inteira, ela nem sequer ordenaria que algo fosse, por-

que já seria. Não é, portanto, nada de monstruoso em parte querer,

em parte não querer [... pois] há duas vontades” (Confissões 8,9).

Em outras palavras, a própria vontade é dividida em duas, e não

apenas no sentido de que quero em parte o bem e em parte o mal,

186
como se fosse uma luta que os dois princípios opostos travam em
mim» e eu, a cena do campo da batalha. A mesma coisa ocorre
“quando as duas vontades são más”, como, por exemplo, no caso do

homem que em parte quer ir ao teatro, em parte ao circo, em ter-


ceiro lugar quer assaltar a casa de outro homem, e em quarto lugar
cometer adultério, e ele só tem uma única oportunidade para essas
atividades. No último exemplo, vocês devem ter notado, Agos-
tinho introduziu quatro vontades operando ao mesmo tempo, e
rapidamente se pode apontar que esse exemplo e muitos outros
chegam bem próximo da deliberação, e deliberar e querer não são
a mesma coisa. Entretanto, se considerarmos todas as faculdades
espirituais a partir do pressuposto da primazia da vontade, como
faz Agostinho no seu oitavo livro das Confissões, a deliberação vai
aparecer como uma forma de querer: “Sempre que alguém delibe-
ra, há uma alma flutuando entre vontades conflitantes”. Clara-
mente, nessas flutuações a própria vontade é dividida em três,
quatro e mais partes, e se paralisa.20
Vamos levar essa questão mais adiante na próxima aula,
introduzindo Nietzsche na nossa discussão. Por enquanto, vamos
reter apenas o seguinte: descobrimos outra faculdade humana que
é dividida em duas, não porque seja oposta por uma parte comple-
*
tamente diferente da natureza humana, mas porque a sua própná!

essência é existir apenas como dois-em-um. Essa divisão dentrqda


própria vontade, entretanto, não é um diálogo, mas uma luta. Pois
se, ao contrário, a vontade fosse uma, ela seria supérflua, o que sig-
nifica que não teria ninguém a quem dar ordens. Por issOMilnani-
festação mais importante da vontade é dar ordens» comanrahr. Mas
agora se revela que, para ser obedecida, a vontade deve acÉbesnio

tempo consentir ou querer obediência, de modo que a divfcão não

se dá entre dois iguais, parceiros como num diálogo, mas entre


alguém que comanda e alguém que obedece. Como ninguém gosta
de obedecer, e como a vontade, dividida apenas dentrtrde si
mesma, não maneja nenhum poder fora ou acima de si mesma

para impor os seus comandos, parece apenas natural que a vonta-

de sempre encontre a máxima resistência. Finalmente, enquanto o

espírito se divide em dois na atividade de pensar, para a qual a

forma do diálogo parece muito adequada, o que acontece com a


vontade é completamente diferente. A vontade deve nos impelir à

ação, e para esse fim devemos ser enfaticamente Um. Em outras

palavras, a vontade dividida contra si mesma é menos adequada


para a sua tarefa de agir; o espírito dividido dentro de si mesmo é
mais apropriado para a tarefa da deliberação. Se a vontade é assim,
que bem a vontade pode fazer? Mas, sem vontade, como eu pode-
ria ser levado a agir?

iv

A nossa discussão da moralidade socrática produziu apenas


resultados negativos e não nos revelou mais do que a condição em
que seríamos impedidos de fazer o mal: a condição de não estar-
mos em desavença conosco mesmos, ainda que isso significasse
estar em desavença com o mundo inteiro. A fórmula socrática se
baseava na razão, isto é, numa razão que não é nem puro intelecto
a ser aplicado ao que quer que esteja à mão, nem contemplação, a
faculdade de ver com os olhos do espírito alguma verdade desco-

berta ou revelada, mas a razão como uma atividade do pensamen-

to. E nada nessa atividade indicava que dela pudesse surgir um


impulso para a ação. Disso concluímos que a importância dessa
fórmula, da qual nunca duvidamos, ou seja, a sua validade e signi-

ficado prático, manifestava-se claramente em situações de emer-

gência, em tempos de crises, quando nos descobrimos, por assim

dizer, encurralados. Falamos de um fenômeno marginal ou de um

preceito limítrofe, não por acreditarmos que o próprio pensamen-

188
to seja algo desse gênero, mas por sustentarmos que os aspectos

morais do pensamento tinham importância secundária para o

próprio processo de pensar, e que ele não poderia produzir indi-

cações positivas para a nossa conduta entre os outros, por ser exe-

cutado ao se estar só.


Assim nos voltamos para outra faculdade, a vontade, que

desde a sua descoberta, num contexto religioso, tem reivindicado

a honra de abrigar todas as sementes da ação e o poder de decidir


o que fazer, e não meramente o que não fazer. E observamos que

embora a moralidade socrática, baseada na atividade do pensa-

mento, estivesse principalmente interessada em evitar o mal, a


ética cristã, baseada na faculdade da vontade, enfatiza inteira-
mente a execução, fazer o bem. Notamos igualmente que o crité-
rio fundamental da moralidade socrática para evitar a realização

do mal era o eu e a interação entre mim e mim mesma — em


outras palavras, o mesmo axioma de não-contradição em que a

nossa lógica está baseada e que ainda desempenha um papel emi-

nente na fundação de uma moralidade secular e não cristã em

Kant. O critério fundamental para fazer positivamente o bem, por


outro lado, descobrimos ser o desprendimento de si mesmo, a
perda de interesse em si mesmo. Descobrimos que uma das razõçj|

para essa mudança surpreendente poderia ser não apenas a incli-

nação amorosa para com o próximo, mesmo que seja um inimi-

go, mas o simples fato de que ninguém pode fazer o bem e saber o

que está fazendo. “A tua mão esquerda não deve saber o que faz a

tua mão direita.” Por isso, a divisão em dois, o dois-em-um pre-

sente na atividade do pensamento, não é permitida aqui. Em ter-

mos um pouco extremados: se desejo fazer o bem, não devo pen-

sar no que estou fazendo. E para tirar essa questão do contexto


religioso dentro do qual foi formulada pela primeira vez, gostaria
de citar uma passagem especialmente bela e muito típica de Njetz-
sche, que soa como um eco tardio dessas palavras. Nietzsche diz

(Além do bem e do mal, nQ 40):

Há eventos de natureza tão delicada, que faríamos bem em soterrá-

los e torná-los irreconhecíveis através de uma grosseria; existem

atos de amor e extravagante grandeza, após os quais é aconselhável

tomar de um bastão e surrar a testemunha, para lhe turvar a lem-

brança. Alguns conseguem maltratar e turvar a própria memória,

para vingar-se ao menos desse cúmplice — o pudor é criativo. Não

são as coisas mais ruins aquelas de que mais nos envergonhamos

[...] Posso imaginar que um homem, tendo algo precioso e frágil a

esconder, rolasse pela vida, tosco e redondo, como um velho tonel

de vinho fortemente guarnecido.

Além disso, por trás de todas essas considerações, permitam-


me lembrar-lhes a nossa tentativa talvez prematura de descobrir
quais poderíam ter sido as definições do mal segundo o ensina-
mento socrático, por um lado, e segundo a pregação e o exemplo
vivo de Jesus de Nazaré, por outro. Segundo Sócrates, o mal seria
tudo aquilo que não posso suportar ter feito, e o malfeitor seria

alguém impróprio para a interação, especialmente para a intera-


ção do pensamento entre ele e ele mesmo. Encontramos a mesma

posição no aforismo muito citado de Nietzsche: “Eu fiz isso’, diz


minha memória. ‘Eu não posso ter feito isso’, diz meu orgulho, e

permanece inflexível. Por fim — a memória cede.” (Além do bem e


do mal, n° 68). Para nossos fins, vamos desconsiderar a forma

moderna em que reaparece a velha posição e em que a repressão,

ainda desconhecida no antigo domicílio da alma, surge como o

supremo remédio. Para nós, o decisivo é que, como mencionamos

antes, a faculdade de lembrar é o que impede a malfeitoria. Vimos

que o critério nesse ponto é altamente subjetivo de duas maneiras:


o que suporto ter feito sem perder a minha integridade como pes-

190
soa poderia mudar de indivíduo para indivíduo, de país para país,

de século para século. Mas é igualmente subjetivo no sentido de

que a questão acaba girando em torno de determinar com quem

desejo estar junto, e não em torno de padrões e regras “objetivas”.

Citei as afirmações curiosas e curiosamente concordantes de

Cícero e Meister Eckhart, o primeiro declarando que preferiría

extraviar-se com Platão a conhecer a verdade com alguns charla-

tões, e o último afirmando que preferiría estar no inferno com

Deus a estar no paraíso sem Ele. Num nível popular, encontramos

a mesma atitude no provérbio romano: Quod licet Jovi non licet

bovi — o que é permitido a Zeus não é permitido a um boi. Em

outras palavras, o que alguém faz depende de quem é. O que é per-


mitido a alguns não é permitido a outros, do que se segue que

podem ser permitidas a um boi muitas coisas que não são permi-

tidas a Zeus.

O mal segundo Jesus é definido como o “obstáculo”, skanda-

lon> que os poderes humanos não podem remover, de modo que o

malfeitor real aparece como o homem que nunca deveria ter nas-

cido: “Seria melhor para ele que uma pedra de moinho fosse

dependurada ao redor de seu pescoço e ele, lançado ao mar”. O cri-

tério já não é o eu e o que o eu pode ou não pode suportar, aquilo

com que pode conviver, mas a execução e as conseqüências da açãq

em geral. O skandalon é aquilo que não está em nosso poder repa-

rar —pelo perdão ou pela punição — e o que, portanto, permane-

ce como um obstáculo para todas as demais execuções e atos. E o

agente não é alguém que, na compreensão platônica, pode ser

reformado pela punição ou que, se estiver fora do alcance do apri-

moramento, vai oferecer pelos seus sofrimentos um exemplo dis-

suasivo aos outros; o agente é um ofensor à ordem do mundo

como tal. Para usar outra das metáforas de Jesus, ele é como a^grva
daninha, “o joio no campo”, com o qual nada se pode fazer eAceto

19:
destruí-lo, queimá-lo na fogueira. Jesus nunca disse o que é esse

mal que não pode ser perdoado pelos homens ou por Deus, e a
interpretação do skandalon, o obstáculo, como sendo o pecado

contra o Espírito Santo, não nos esclarece muito mais a esse respei-
to, exceto que esse é o mal com o qual concordo sem reservas, que
cometo voluntariamente. Acho essa interpretação difícil de se
reconciliar com os ditos nos Evangelhos, em que a questão do
livre-arbítrio ainda não é proposta. Mas o que é indubitavelmente
enfatizado nesse ponto é o dano causado à comunidade, o perigo
que surge para todos.
Parece-me óbvio que essa é a posição do homem de ação, dis-
tintamente da posição do homem cujo principal interesse e preo-
cupação é pensar. O radicalismo de Jesus na questão do mal — um
radicalismo ainda mais impressionante por estar intimamente
ligado com o maior liberalismo possível para com todos os tipos de
malfeitores, inclusive adúlteros, prostitutas, ladrões e publicanos
— nunca foi aceito, ao que saiba, por nenhum dos filósofos que já
tenha lidado com o problema. Basta pensar em Spinoza, para quem
o que chamamos de mal não passa de um aspecto sob o qual a
inquestionável bondade de tudo o que existe aparece aos olhos hu-
manos, ou em Hegel, para quem o mal como o negativo é a força
poderosa que impulsiona a dialética do vir a ser, e em cuja filosofia
os malfeitores, longe de serem o joio entre o trigo, vão até aparecer
como os fertilizantes do campo. Justificar o mal no sentido duplo
de maldade e desgraça sempre esteve entre as perplexidades da
metafísica. A filosofia no sentido tradicional, que é confrontada
com o problema do Ser como um todo, sempre se sentiu obrigada
a afirmar e encontrar um lugar apropriado para tudo o que existe.
Voltarei uma vez mais para Nietzsche a fim de resumir esse lado do
problema. Ele disse (Vontade de poder, n“ 293): “A noção de uma
ação a ser rejeitada, a ser repelida (verwerfliche Handlung), cria
dificuldades. Nada do que acontece pode chegar ao ponto de ser

192
rejeitado; não se deveria querer eliminá-lo, pois tudo está tão inti-
mamente ligado com tudo o mais que rejeitar uma coisa significa
rejeitar tudo. Uma ação rejeitada, isso significa um mundo rejeita-
do”. A noção de que Nietzsche fala nesse trecho, a de que eu poderia
dizer um não sem ressalvas a um acontecimento particular ou a
uma pessoa particular, no sentido de que isso não deveria ter acon-
tecido, ou que ela não deveria ter nascido, é uma noção abominada
por todos os filósofos. E quando ele afirmou que: “[...Jpara a
descoberta de determinadas partes da verdade, os maus e os infe-
lizes estão mais favorecidos e têm maior possibilidade de êxito”
(Além do bem e do mal, nQ 39), ele estava firmemente ancorado nessa
tradição, só que traduziu em termos muito concretos as idéias um
tanto abstratas de seus predecessores; que essas afirmações soavam
heréticas aos seus próprios ouvidos, que eram ainda os ouvidos do
filho de um pastor protestante, é outra questão. É verdade, entre-

tanto, que ele vai além dessa tradição quando, no mesmo aforismo,
menciona: “As pessoas más que são felizes — uma espécie de
homens sobre a qual os moralistas se calam”. Essa observação pode
não ser particularmente profunda e parece que Nietzsche nunca
voltou ao tema, mas ela atinge realmente o cerne de todo o proble-
ma, pelo menos do problema proposto em termos tradicionais.
Pois quando disse na última conferência que para a filosofia]
tradicional é a vontade, e não a razão ou o mero desejo, o que leva
o homem a agir, afirmei uma meia verdade. Sem dúvida, a vonta-
de, como vimos, é compreendida como o árbitro entre os deáejos
ou o árbitro entre a razão e os desejos e, como tal, deve estar livre
de ser determinada pela razão ou pelo desejo. E como tem sido
apontado desde Agostinho e Duns Scotus, desde Kant e Nietzsche,
a vontade é livre ou não existe; ela deve ser a “causa total de si
mesma” (Duns Scotus), pois se alguém quiser lhe atribuirjuma
causa descobre-se imediatamente numa regressão infinita^pois
qual é a causa dessa causa? Agostinho apontou tal fato em De Jibe-
ro arbítrio in, 17. A vontade é uma faculdade espiritual descoberta
por Paulo, elaborada por Agostinho e desde então interpretada e
reinterpretada como nenhuma outra faculdade humana. Mas a
questão a respeito de sua real existência sempre foi debatida em
muito maior escala do que a razão, o desejo ou qualquer outra de
nossas faculdades. O paradoxo, formulado em poucas palavras, é o
seguinte: apenas com a descoberta da vontade como a faculdade
que abriga a liberdade humana é que ocorreu aos homens que eles
talvez não fossem livres, mesmo não sendo coagidos por forças
naturais, pelo destino ou por seus próximos. Evidentemente, sem-
pre se soube que o homem pode ser escravo de seus desejos, e que
a moderação e o autocontrole são sinais de um homem livre. Jul-
gava-se que os homens que não sabem como se controlar têm
almas escravas, assim como o homem que, derrotado na guerra, se
deixava aprisionar e vender como escravo em vez de cometer sui-
cídio. Somente um tolo se rendería e mudaria de um status para o
outro. O problema surgiu, como vimos, quando foi descoberto
que o eu-quero e o eu-posso não são a mesma coisa, independen-
temente das circunstâncias externas. Além disso, o eu-quero-mas-
eu-não-posso não é igual à afirmação de um paralítico que diz que
quer mover os seus membros, mas não pode, pois nesse caso o
corpo resiste ao espírito. Ao contrário, as perplexidades da vonta-
de só se tornam óbvias quando o espírito diz a si mesmo o que
fazer. Isso é representado como a ruptura da vontade que, ao
mesmo tempo, quer e não quer. A questão é então: posso ser con-
siderado livre, não coagido por outros ou pela necessidade, se faço
o que não quero, ou, inversamente, sou livre se consigo fazer o que
quero? Ora, essa questão de saber se os homens são livres ou não
quando começam a agir não pode ser resolvida de maneira
demonstrável, pois o próprio ato sempre entra numa seqüência de
ocorrências em cujo contexto parece ser causado por outras ocor-
rências, isto é, entra num contexto de causalidade. Por outro lado.

194
tem-se dito repetidas vezes que nenhum preceito de natureza
moral ou religiosa poderia fazer sentido sem o pressuposto da
liberdade humana, o que é bastante verdadeiro e óbvio; mas é uma
mera hipótese. E o máximo que podemos dizer a respeito é o que
Nietzsche afirmou: existem duas hipóteses, a hipótese da ciência
de que não há vontade, e a hipótese do senso comum de que a von-
tade é livre. E a última é “um sentimento dominante do qual não
podemos nos liberar, mesmo que a hipótese científica fosse
demonstrada” (Vontade de poder, nü 667). Em outras palavras, no
momento em que começamos a agir assumimos que somos livres,
não importa qual possa ser a verdade dessa suposição. Ao que pare-
ce, isso seria, por assim dizer, uma prova bela e suficiente, se fôsse-
mos apenas seres de ação. Mas o problema é que não o somos, e que
no momento em que paramos de agir e começamos a considerar o
que fizemos com os outros, ou até como esse ato específico se ajus-
ta a toda a textura de nossa vida, a questão torna-se de novo alta-
mente duvidosa. Em retrospectiva, tudo parece explicável por
meio de causas, por meio de precedentes ou circunstâncias, de
modo que devemos admitir a legitimidade de ambas as hipóteses,
cada uma válida para seu próprio campo de experiência.
O estratagema que a filosofia costumava tradicionalmente
aplicar para sair desse apuro é realmente muito simples, embor^
possa parecer complicado em alguns casos particulares. A difiojf
dade reside em haver algo que não é determinado por nada, mas
que ainda assim não é arbitrário; que o árbitro não deve arbitrar
arbitrariamente. E o que está por trás da vontade como o árbitro
entre os desejos ou entre a razão e os desejos é que otnnes homines
*gravi
beatus esse volunt, que todos os homens tendem a ser felizes -
tam, por assim dizer, em direção à felicidade. Uso a palavra “gra-
vitar” de propósito, para indicar que nesse ponto nos referimos a
algo mais que desejos, esforços, apetites e anseios afins, os quais só

podem ser realizados por partes, deixando o homem como um


todo, visto na inteireza da sua vida, “tnfehz . Por isso, nessa inter-
pretação, a vontade, embora não seja determinada por nenhuma
causa específica, nasce desse campo de gravitação que é suposta-
mente comum a todos os homens. Para falar em termos francos:
não é apenas como se o homem, em cada momento da sua vida,
quisesse ser capaz de dizer: eu sou feliz, eu sou feliz, eu sou feliz;
mas antes, é como se o homem, no final da sua vida, quisesse ser
capaz de dizer: fui feliz. Segundo os moralistas, isso só deveria ser
possível para as pessoas que não são más, o que, infelizmente, não
passa de uma suposição. Se voltarmos ao nosso antigo critério
socrático, para o qual a felicidade significava estar em paz consigo
mesmo, poderiamos dizer que essas pessoas perderam ate a capa-
cidade de fazer a pergunta e responder a ela, na medida em que,
estando em desavença consigo mesmas, perderam a capacidade do
diálogo do dois-em-um do pensamento. Esse argumento aparece
numa forma diferente em Agostinho, que sustentou: “O homem
que, conhecendo o certo, deixa de fazê-lo perde o poder de saber o
que é certo; e o homem que, tendo o poder de fazer o certo, não
quer fazê-lo perde o poder de fazer o que quer” (De libero arbitrio
ni 19,53). Em outras palavras, o homem que age contra a atração
gravitacional para a felicidade perde o poder de ser feliz ou infeliz.
Isso é difícil de sustentar se a felicidade é realmente o centro gravi-
tacional do ser completo de cada um, e, não importa quão plausível
ou implausível consideremos o argumento, a verdade da questão é
que o argumento perde muita plausibilidade, se não toda a sua
plausibilidade, pelo simples fato de que as mesmas pessoas que o

apresentaram de uma ou outra forma — de Platão à ética cristã e


estadistas revolucionários do fim do século xvm — acredita-
vam ser necessário ameaçar os “maus” com uma grande “infelici-
dade numa vida futura; eles praticamente deram como certa

teóri eSpeCle h°mens sobre quem os moralistas, em termos


teoricos, costumaram calar.

196
Vamos, portanto, deixar essa questão incômoda da felicidade
fora de consideração. A felicidade dos maus no seu sucesso sempre
foi um dos fatos muito desconfortáveis da vida, o qual não adianta-
ria eliminar por meio de explicações. Basta invocar a noção com-
plementar das pessoas que fazem o bem ou são decentes porque
querem ser felizes. Acontece com essa razão o que acontece com
todas as razões nessa matéria (citando Nietzsche mais uma vez): “Se
alguém nos dissesse que precisava de razões para continuar decen-
te, já não poderiamos confiar nele; certamente evitaríamos a sua
companhia”— afinal, ele não pode mudar de opinião? E com isso
voltamos àquela faculdade da pura espontaneidade que nos impe-
le à ação e arbitra entre as razões sem estar sujeita a elas. Até agora
falamos indiscriminadamente sobre essas duas funções da vonta-
de, os seus poderes para instigar e os seus poderes para arbitrar.
Todas as nossas descrições extraídas de Paulo e Agostinho sobre a
dupla ruptura da vontade, sobre o eu-quero-e-não-posso de Paulo,
o eu-quero-e-não-quero de Agostinho, realmente só se aplicam à
vontade na medida em que ela impele à ação, e não à sua função de
árbitro. Pois essa última função é de fato o mesmo que o julgamen-
to; a vontade é convocada a julgar entre proposições diferentes e
opostas, e se devemos tomar essa faculdade de julgamento, uma das
faculdades mais misteriosas do espírito humano, como vontad^
razão ou talvez como uma terceira capacidade espiritual, é pejo
menos uma questão em aberto.
No que diz respeito à primeira função da vontade, o seupoder
de instigar, encontramos em Nietzsche duas descrições curiosa-

mente sem conexão e, como veremos, contraditórias. Vamos come-


çar com a descrição que segue a compreensão tradicional, isto é,
agostiniana. “Querer não é o mesmo que desejar, lutar por alguma
coisa, sentir falta de algo: de todos esses anseios, distingue-se pelo
elemento de Comando [...] Que algo seja comandado, issoéineren-
te ao querer” (Vontade de poder, nQ 668). E em outro context
*
Um homem que quer—comanda algo dentro de si que obedece, ou

que ele acredita que obedece. Mas agora observem o que é mais

estranho na vontade - nessa coisa tâo múlt.pla, para a qual o povo

tem uma só palavra: na medida em que, no caso presente, somos ao


mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece, e como parte

que obedece conhecemos as sensações de coação, sujação, pressão,


resistência, movimento, que normalmente têm início logo após o

ato da vontade; na medida em que, por outro lado, temos o hábito

de ignorar e nos enganar quanto a essa dualidade, através do sin-

tético conceito do “eu”, toda uma cadeia de conclusões erradas e, em

conseqüência, de falsas valorações da vontade mesma, veio a se

agregar ao querer — de tal modo que o querente acredita, de boa-

fé, que o querer basta para agir. Como, na grande maioria dos casos,

só houve querer quando se podia esperar também o efeito da ordem

_ isto é, a obediência, a ação —, a aparência traduziu-se em sen-

sação, como se aí houvesse uma necessidade de efeito; em suma, o

querente acredita, com elevado grau de certeza, que vontade e ação

sejam, de algum modo, a mesma coisa — ele atribui o êxito, a exe-

cução do querer, à vontade mesma, e com isso goza de um aumento

da sensação de poder que todo êxito acarreta.

Essa interpretação é tradicional na medida em que insiste na


ruptura da vontade, cuja paralisia interna, segundo os ensinamen-
tos cristãos ou paulinos, só pode ser sanada pela graça divina.
Afasta-se decisivamente dessa interpretação apenas no sentido de
que acredita detectar dentro do interior da vontade uma espécie de
ardil enganoso, em virtude do qual somos capacitados a nos iden-
tificar apenas com a parte que comanda e a desconsiderar, por
assim dizer, os sentimentos desagradáveis e paralisantes de sermos
coagidos e assim solicitados a resistir. O próprio Nietzsche chama
esse processo de um auto-engano, mesmo que saudável. Identifi-
o nos com aquele que dá as ordens, experimentamos o senti-
e superioridade que provém da geração de poder. Essa

198
descrição, tendemos ã pensar, seria acurada se o querer pudesse se
esgotar no mero ato de querer, sem ter de passar para a execução. A
ruptura da vontade, como vimos, torna-se manifesta no momen-
to da execução, e os sentimentos que são superados pelo feliz auto-
engano desde que eu não seja solicitado a cumprir o prometido,
por assim dizer, cessam quando se descobre que vellee posse, o eu-
quero e o eu-posso, não são a mesma coisa. Ou, em termos nietzs-
chianos: “A vontade quer ser senhora de si mesma” e aprende que
se o espírito comanda a si mesmo, e não apenas ao corpo (em que
é obedecido instantaneamente, como nos disse Agostinho), isso
significa que eu me torno escrava de mim mesma — significa que
arrasto, por assim dizer, a relação senhor-escravo, cuja essência é a
negação da liberdade, para a interação e para a relação que estabe- k
leço entre mim e mim mesma. Por isso, o famoso ancoradouro da y
liberdade se revela como o destruidor de toda a liberdade.21 j
Mas há um novo fator importante lançado nessa discussão e f
ainda não mencionado, o elemento do prazer, que Nietzsche com- 7
preendia como inerente ao sentimento de ter poder sobre os
outros. A filosofia de Nietzsche baseia-se, portanto, na sua equipa-
ração da vontade com a vontade de poder; ele não nega a ruptura
da vontade em duas, o que ele chama de as “oscilações entre o sim
e o não” (Vontade de poder, n2 693), a presença simultânea de pra- Jr
zer e desprazer em todo ato de querer, mas ele conta esses senti; Jr B
mentos negativos de ser coagido e de resistir entre os obstáculos ’

necessários, sem os quais a vontade não conhecería o seu próprio


poder. Obviamente, essa é uma descrição acurada do princípio do
prazer; a mera ausência de dor não pode causar prazer, e uma von-
tade que não vence resistência não poderia despertar sentimentos
prazerosos. Na sua descrição do prazer, Nietzsche, seguindo deli-
beradamente as antigas filosofias hedonistas que tinham sido um
tanto reformuladas pelo sensualismo moderno, especialmente
pelo “cálculo de dor e prazer” de Bentham, apoiava-se na experiên- j

cia de ficar livre da dor, e não na ausência de dor ou na pura pre- 1


4 I
sença do prazer. A intensidade dessa sensação de livrar-se da dor é
indubitável; em intensidade, só é igualada pela sensação da própria
dor, que é sempre mais intensa do que poderia ser qualquer prazer
que não esteja relacionado à dor. Sem dúvida, o prazer de beber o
vinho mais refinado não pode ser comparado em intensidade ao
prazer sentido por um homem desesperadamente sedento que
consegue um gole de água. Entretanto, essa auto-interpretação é
falha mesmo de acordo com as próprias descrições de Nietzsche. A
fonte do prazer foi colocada por ele no sentimento de “que a von-
tade e a ação sejam, de algum modo, a mesma coisa” (dass Wille und
Aktion irgendwie einsseien—Além do bem e do mal, nQ 19), isto é,
no eu-quero-e-eu-posso, independentemente dos sentimentos
negativos: a dor e o livrar-se da dor, assim como a alegria de beber
um copo de vinho, é independente e não relacionada às sensações
de sede e do prazer de saciá-la.
Por isso, encontramos em Nietzsche outra análise da vontade
que adota o motivo do prazer, mas o explica de forma diferente. Na
equiparação da vontade com a vontade de poder, o poder não é
absolutamente aquilo que a vontade deseja ou quer, não é a sua
meta, nem o seu conteúdo! A vontade e o poder, ou a sensação de
poder, são a mesma coisa (Vontade de poder, nQ 692). A meta da von-
tade é querer, assim como a meta da vida é viver. O poderio é ine-
rente ao querer, não importa qual possa ser o objetivo ou a meta.
Por isso, a vontade cuja meta é a humildade não é menos poderosa
do que a vontade cuja meta é governar os outros. Esse poder, a pura
potência do próprio ato de querer, Nietzsche o explica como um
fenômeno de abundância, como uma indicação de um vigor que
vai além da força necessária para enfrentar as exigências da vida
diária. “Com a expressão‘liberdade da vontade’, queremos dizer
essa sensação de um excedente de vigor.” Ainda há uma leve analo-
gia com o princípio do prazer: assim como degustamos um bom
copo de vinho apenas quando não estamos com sede, pois, em tal

200
caso, qualquer líquido serviría, assim também a faculdade da von-
tade só surgiría em nós depois de termos conseguido tudo o que é
realmente indispensável para a nossa simples sobrevivência. Nietz-
sche então identifica esse excesso de vigor com o impulso criativo;
é a raiz de toda a produtividade. Se isso é verdade (e creio que todos
os dados da experiência falam em favor dessa interpretação), pode-
riamos explicar por que a vontade é vista como a fonte da esponta-
neidade que impele à ação — enquanto a compreensão da vontade
como aquilo que revela a impotência básica do homem por meio de
sua natureza dialética só poderia levar a uma completa paralisia de
todas as forças, a menos que se recorresse à ajuda divina, como faz
toda a ética estritamente cristã. Evidentemente, é também essa
abundância de vigor, essa generosidade extravagante ou “vontade
pródiga” que impele o homem a querer e a amar fazer o bem (Von-
tade de poder, n2 749). O que é muito evidente naqueles poucos
homens conhecidos que dedicaram sua vida inteira a“fazer o bem”,
como Jesus de Nazaré ou são Francisco de Assis, não é certamente a
docilidade, mas antes uma força transbordante, talvez não de cará-
ter, mas de sua própria natureza.
É importante compreender que esse esboço da “prodigalidade
da vontade” proveniente de um excedente de vigor não indica metas^
específicas. Nietzsche sublinhou isso no seguinte trecho (A gai£
ciência, n2 360): devemos “distinguir entre a causa do agir e a cadT

do agir desta ou daquela maneira, nesta direção particular, coroçste


ou aquele objetivo em mente. A primeira causa é uma quantidade de
vigor excedente que só aguarda ser consumido, não importa com
que forma ou com que conteúdo. A segunda causa (a metaõu con-
teúdo) é insignificante se comparada com essa força, freqüentemen-
te é um pequeno incidente que libera essa quantidade—cottCo fós-
foro que detona a dinamite”. Sem dúvida, isso contém urJséria
subestimação das causas assim chamadas secundárias que,9nal,
incluem a questão moralmente decisiva de saber se a vontMe de
fazer alguma coisa se volta na direção de fazer o bem ou de fazer o
mal. A subestimação é compreensível dentro da estrutura da filoso-
fia de Nietzsche — se é que se pode chamar de filosofia a acumula-
ção espantosa de questões e problemas e a constante experimenta-
ção com esses dados, que nunca produz um resultado inequívoco.
Não estamos interessados aqui na filosofia de Nietzsche, mas
exclusivamente em certas descobertas a respeito da faculdade da
vontade. E somos gratos por ele ter feito pelo menos a distinção
entre dois fatores que, nas discussões tradicionais e modernas sobre
a vontade, são confundidos; a saber, a função da vontade como
árbitro, quando é convocada a julgar reivindicações conflitantes, na
qual o pressuposto é que ela sabe como distinguir o certo do erra-
do. Dentro da tradição, encontramos toda a questão da vontade
livre geralmente discutida sob o título de liberum arbitrium, o livre-
arbítrio, de modo que na discussão das questões morais a ênfase
tem sido deslocada da causa da ação para a questão a respeito de
quais metas buscar e que decisões tomar. Em outras palavras, a fun-
ção de comando da vontade (que criou tantas dificuldades na men-
te de Paulo e Agostinho) desapareceu no pano de fundo, e a sua fun-
ção julgadora (isto é, que ela poderia clara e livremente distinguir
entre o certo e o errado) veio para o primeiro plano. A razão não é
difícil de adivinhar. Com o cristianismo se tornando uma institui-
ção, o Deverás ou o Não Deverás, aquilo que comanda, apareceu
cada vez mais exclusivamente como uma voz do exterior, fosse a voz
de Deus falando diretamente ao homem ou a voz da autoridade
eclesiástica encarregada de fazer com que a voz de Deus fosse ouvi-
da entre os crentes. E cada vez mais a questão foi apenas se o homem
possuía ou não um órgão dentro de si mesmo que pudesse distin-
guir entre vozes conflitantes. Esse órgão, segundo o significado da
palavra latina liberum arbitrium, era caracterizado pela mesma
imparcialidade que exigimos para a função de julgar nos procedi-
mentos legais, nos quais o juiz e o júri são desqualificados quando

202
têm interesse no assunto sob jurisdição. O árbitro era originalmen-
te o homem que abordava (ad-bitere) uma ocorrência como um
espectador não envolvido, uma testemunha ocular, e por causa
desse não-envolvimento era considerado capaz de julgamento
imparcial. Por isso, a liberdade da vontade como liberum arbitrium
significa a sua imparcialidade — não significa essa fonte inexplicá-
vel de espontaneidade que impele à ação.
Mas essas são questões de história, e agora vamos voltar a
nossa atenção para a questão do julgamento, o verdadeiro árbitro
entre o certo e o errado, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso. Esta-
mos interessados neste momento apenas na questão de como dis-
tinguir o certo do errado, mas, de maneira bastante curiosa, o pró-
prio Kant, apesar de não ser de modo algum sensível às artes,
abordou esse problema com a pergunta: como distingo o belo do
feio e, originalmente, ele chamou a sua Crítica do juízo de uma
Crítica do gosto. Kant supunha que não existia esse tipo de proble-
ma para a Verdade e o Certo, pois acreditava que assim como a razão
humana na sua capacidade teórica conhece a verdade por si mesma,
sem nenhuma ajuda de outra faculdade espiritual, a mesma razão
na sua capacidade prática conhece “a lei moral dentro de mim”. Ele
definia o julgamento como a faculdade que sempre entra em ação,
quando somos confrontados com elementos particulares; o julgw
mento decide sobre a relação entre um exemplo particular e o gejp,
seja o geral uma regra, um padrão, um ideal ou algum outro tipo de
medição. Em todos os exemplos de razão e conhecimento» o julga-
mento subsume o particular à sua regra geral apropriada. Mesmo
essa operação aparentemente simples tem as suas dificuldades, pois
como não há regras para essa subsunção, ela deve ser decididalivre-
mente. Assim,“a deficiência no julgamento é apenas o que se chama
comumente de estupidez, e para esse defeito não há remédio. Uma
pessoa obtusa e de mente estreita [...] pode na verdade ser treinada
pelo estudo até tornar-se culta. Mas como em geral falta a ess^pes-

2031
soas o julgamento, não é incomum encontrar homens cultos que
[...] deixam transparecer essa falha original que jamais pode ser
reparada” (Crítica da razão pura, B172-3). A questão piora ainda
um pouco quando se consideram aqueles julgamentos em que não
são aplicáveis regras e padrões fixos, como nas questões de gosto,
nos quais, portanto, o “geral” deve ser visto como contido no parti-
cular. Ninguém pode definir a Beleza; e quando digo que esta tuli-
pa particular é bela, não quero dizer: todas as tulipas são belas, por-
tanto esta também é bela, nem aplico um conceito de beleza válido
para todos os objetos. Sei o que é a Beleza, algo geral, porque a vejo
e a declaro ao ser confrontado com o belo em elementos particula-
res. Como é que sei e por que reivindico uma certa validade para
esses julgamentos? Essas são, numa forma muito simplificada, as
questões centrais orientadoras da Crítica do juízo.
Mas, de um modo mais geral, podemos dizer que a falta de jul-
gamento se mostra em todos os campos: nós a chamamos de estupi-
dez em questões intelectuais (cognitivas), falta de gosto em assuntos
estéticos, e obtusidade moral ou insensatez no que diz respeito à
conduta. E o oposto de todos esses defeitos específicos, o próprio ter-
reno em que nasce o julgamento sempre que é exercido, segundo
Kant, é o Senso Comum. O próprio Kant analisou julgamentos pri-
mariamente estéticos, porque lhe parecia que apenas nessa área jul-
gamos sem ter nada para nos guiar, sem regras gerais que são ou
demonstravelmenteverdadeirasouevidentesporsimesmas. Assim,
se vou usar os seus resultados para o campo da moralidade, suponho
que o campo da interação e conduta humanas e dos fenômenos com
que nos confrontamos nessa área sejam, de certo modo, da mesma
natureza. Como justificação, lembro-lhes a nossa primeira sessão,
quando expliquei o pano de fundo não muito agradável da expe-
riência factual que deu origem a essas considerações.
Mencionei o colapso total dos padrões morais e religiosos
entre pessoas que, segundo todas as aparências, sempre tinham

204
acreditado firmemente nesses padrões, e também mencionei o
fato inegável de que os poucos que conseguiram não ser tragados
pelo redemoinho não foram de modo algum os “moralistas”, pes-
soas que sempre apoiaram as regras da conduta certa, mas, ao
contrário, foram muito freqüentemente aqueles que tinham sido
convencidos, mesmo antes da débâcle, da não-validade objetiva
desses padrões per se. Assim, teoricamente, nós nos descobrimos
hoje na mesma situação em que o século xvni se descobriu com
respeito aos meros julgamentos de gosto. Kant se indignava que a
questão da beleza fosse decidida arbitrariamente, sem possibili-
dade de discussão e acordo mútuo, no espírito do degustibus non
disputandum est. De maneira bastante freqüente, mesmo em cir-
cunstâncias que estão muito longe de qualquer indicação catas-
trófica, nos descobrimos hoje exatamente na mesma posição no
que diz respeito às discussões das questões morais. Assim, vamos
retornar a Kant.
O senso comum para Kant não significava um sentido co-
mum para todos nós, mas, estritamente, aquele sentido que nos
ajusta a uma comunidade formada com os outros, que nos torna
seus membros e capacita-nos a comunicar as coisas dadas pelos
nossos cinco sentidos. Ele cumpre essa tarefa com a ajuda de outra^
faculdade, a faculdade da imaginação (para Kant a faculdade mai^l
misteriosa). A imaginação ou representação — há uma difereijça
entre as duas que podemos desconsiderar neste ponto — designa
a minha capacidade de ter no espírito a imagem de algo que não
está presente. A representação torna presente o que está ausente—
por exemplo, a ponte George Washington. Mas embora eujpossa
evocar a ponte que está distante diante do olho de meu espírito,
tenho realmente duas imaginações ou representações no espírito:

primeiro, essa ponte particular que já vi muitas vezes, e segundo,


uma imagem esquemática de ponte pela qual posso reconhecer e
identificar qualquer ponte, inclusive a mencionada, como sendo

205^

í
uma ponte. Essa segunda ponte esquemática nunca aparece dian-
te de meus olhos corpóreos; no momento em que a coloco no papel
torna-se uma ponte particular, deixa de ser um mero esquema.
Ora, a mesma capacidade representativa sem a qual nenhum
conhecimento seria possível estende-se às outras pessoas, e os
esquemas que aparecem no conhecimento se tornam exemplos no
julgamento. O senso comum, em virtude de sua capacidade ima-
ginativa, pode ter presentes em si mesmo todos aqueles que de fato
estão ausentes. Pode pensar, como diz Kant, no lugar de todos os
outros, de modo que quando alguém faz o julgamento — isto é
belo — ele não quer dizer meramente que isso me agrada (como
se, por exemplo, sopa de galinha pudesse ser do meu gosto, mas
não ser do gosto de outros), mas ele reivindica a aprovação dos
outros porque no ato de julgar já os levou em consideração e, por
isso, espera que seus julgamentos venham conter uma certa valida-
de geral, ainda que talvez não universal. A validade vai se estender
a toda a comunidade da qual o meu senso comum me torna mem-
bro — Kant, que se julgava um cidadão do mundo, esperava que se
estendesse à comunidade de toda a humanidade. Kant dá a isso o
nome de “mentalidade alargada”, querendo dizer que sem esse
acordo o homem não está preparado para a interação civilizada. O
aspecto importante da questão é que meu julgamento de um caso
particular não depende meramente da minha percepção, mas de
eu representar para mim mesmo algo que não percebo. Deixem
me ilustrar esse ponto: vamos supor que eu veja uma moradia
específica na favela e perceba nessa construção particular a noção
geral que ela não exibe diretamente, a noção de pobreza e miséria.
Chego a essa noção ao representar para mim mesmo como me sen
tiria se tivesse de viver ali, isto é, tento pensar no lugar do morador
da favela. O julgamento a que vou chegar não será necessariamen
te igual ao dos habitantes, a quem o tempo e a falta de esperança
podem ter embotado qualquer sensibilidade à afronta de sua con

206
dição, mas vai se tornar um exemplo marcante para os meus julga-
mentos posteriores dessas questões. Além disso, embora ao julgar
eu leve em consideração os outros, isso não significa que me adap-
te em meu julgamento aos julgamentos dos outros. Ainda falo com
a minha própria voz e não conto votos para chegar ao que penso
ser certo. Mas o meu julgamento já não é subjetivo, no sentido de
que chegaria às minhas conclusões levando apenas a mim mesma
em consideração.
Entretanto, embora eu leve em consideração os outros ao
fazer o meu julgamento, esses outros não incluem todo mundo;
Kant diz explicitamente que a validade desses julgamentos só pode ; •
se estender “sobre toda a esfera dos sujeitos julgadores”, isto é, das £
pessoas que também julgam. Dito de outra forma, não cabe àque- J
les que se recusam a julgar discutir a validade do meu julgamento.
O senso comum com que julgo é um sentido geral, e à pergunta Z
sobre: “Como pode alguém julgar segundo o senso comum, quan- -
do considera o objeto segundo seu senso privado?”, Kant respon- ___ ;
deria que a comunidade entre os homens produz um senso
comum. A validade do senso comum nasce da interação com as
pessoas — assim como dizemos que o pensamento nasce da inte-
ração comigo mesma. (“Pensar é falar consigo mesmo, e assim,^^^ W

também escutar a si mesmo internamente”—Anthrop., nu 36.) 1


entanto, com essas restrições podemos dizer que quanto maior fdr

o número das posições de pessoas que posso tornar presentes no


meu pensamento e, assim, levar em consideração no meu julga-
mento, mais representativo ele será. A validade desses julgalfentos
não seria nem objetiva, nem universal, nem subjetiva, depeídendo
do capricho pessoal, mas intersubjetiva ou representativa. Esse
tipo de pensamento representativo, que só é possível pela imagina-
ção, exige certos sacrifícios. Kant diz: “Devemos, por assinMfeer,
renunciar a nós mesmos em vista dos outros”, e é mais do qu^fea
mera curiosidade que essa negação do estar ensimesmad^Bo

20;
ocorra no contexto da sua filosofia moral, mas nesse contexto de
julgamentos meramente estéticos. A razão é o senso comum. Se o
senso comum, o senso pelo qual somos membros de uma comuni-
dade, é a mãe do julgamento, então nem mesmo uma pintura ou
um poema, muito menos uma questão moral, pode ser julgada
sem invocar e pesar silenciosamente os julgamentos dos outros,
aos quais me refiro do mesmo modo como me refiro ao esquema
da ponte para reconhecer outras pontes. “No gosto”, diz Kant, “o
egoísmo é superado” — mostramos consideração no sentido ori-
ginal da palavra, consideramos a existência dos outros e devemos
tentar ganhar a sua concordância, “cortejar o seu consentimento”,
como disse Kant. Na moralidade kantiana, nada desse gênero é
necessário: agimos como seres inteligíveis e as leis que observamos
teriam validade para todos os seres inteligíveis—inclusive os habi-
tantes de outros planetas, os anjos e o próprio Deus. Não mostra-
mos consideração pois não precisamos considerar as posições dos
outros e não consideramos as consequências de nosso ato, que são
insignificantes para a lei ou para a bondade da vontade da qual
brota o ato. Apenas quando se trata desses julgamentos de gosto é
que Kant encontra uma situação em que o dito socrático “É melhor
estar em desavença com o mundo inteiro do que, sendo um, estar
em desavença comigo mesmo” perde um pouco da sua validade.
Nesse ponto, não posso estar em desavença com o mundo inteiro,
embora ainda possa me descobrir em desavença com boa parte
dele. Se considerarmos a moralidade como algo que engloba mais
do que seu aspecto negativo, o abster-se de fazer o mal, que pode
significar abster-se de fazer qualquer coisa, teremos de considerar
a conduta humana em termos que Kant achava apropriados ape-
nas para a conduta estética, por assim dizer. E a razão pela qual ele
descobriu certas regras moralmente significativas nessa esfera
aparentemente tão diferente da vida humana foi que apenas nesse
campo ele considerou os homens no plural, vivendo em comuni-

208
dade. É, portanto, nesse contexto que encontramos o árbitro impar-
cial da vontade como liberam arbitrium. “Apreciação desinteressa-
da”, como devem saber, é a definição de Kant para o que sentimos
diante da beleza. Por isso, o egoísmo não pode ser superado pela pre-
gação moral que, ao contrário, sempre me manda de volta a mim
mesma; mas, nas palavras de Kant: “O egoísmo só pode ser contra-
posto pelo pluralismo, que é uma estrutura do espírito em que o eu,
em vez de ficar envolto em si mesmo, como se fosse o mundo intei-
ro, considera-se um cidadão do mundo” (Anthrop., nu 2).
Quando voltamos a pensar nos padrões e regras objetivos de
comportamento segundo os quais agimos na vida cotidiana, sem
pensar muito e sem julgar muito no sentido de Kant, isto é, quan-
do de fato subordinamos os casos particulares às regras gerais sem
jamais questioná-las, surge a questão de saber se não há realmente
nada a que se agarrar quando somos solicitados a decidir que isto
é certo e isto é errado, assim como decidimos que isto é belo e isto
é feio. E a resposta a essa questão é sim e não. Sim — se com isso
queremos dizer padrões geralmente aceitos como existentes em
toda comunidade com respeito a maneiras e convenções, isto é,
com respeito aos mores da moralidade. As questões de certo e erra-
do não são decididas como as maneiras à mesa, como se não esti-j
vesse em jogo senão uma conduta aceitável. Mas há realmente algp
a que o senso comum, quando se eleva ao nível de julgar, pod^&e
agarrar e na verdade se agarra, e esse elemento é o exemplo. Kant
disse: “Os exemplos são o andador do julgamento” (Crítica da
razão pura, B174), e ele também chamou o “pensamento represen-
tativo” presente no julgamento em que os elementos particulares
não podem ser subsumidos a algo geral pelo nome de “pensamen -
to exemplar”. Não podemos nos agarrar a nada geral, mas a^lgum
elemento particular que se tornou um exemplo. De certctmodo,
esse exemplo lembra o edifício esquemático que trago no espírito
para reconhecer como edifícios todas as estruturas que ab&am
algo ou alguém. Mas o exemplo, em contraposição ao esquema
deve nos dar uma diferença de qualidade. Deixem-me ilustrar essa
diferença com um exemplo exterior à esfera moral. Perguntamos:
O que é uma mesa? Em resposta a essa questão, invocamos a forma
ou o esquema (kantiano) de uma mesa presente em nossa imagi-
nação, com relação à qual toda mesa deve se conformar para ser
uma mesa. Vamos chamar isso de a mesa esquemática (que, aliás, é
mais ou menos a mesma coisa que a mesa “ideal”, a idéia de mesa
em Platão). Ou podemos reunir todos os tipos de mesa, despojá-
los de suas qualidades secundárias, como cor, número de pernas,
material etc., até chegarmos às qualidades mínimas comuns a
todas. Vamos chamar esse objeto de a mesa abstrata. Ou podemos
finalmente escolher as melhores dentre todas as mesas que conhe-
cemos ou podemos imaginar, e dizer: este é um exemplo de como
as mesas deveríam ser construídas e como deveria ser o seu aspec-
to. Vamos chamar isso de mesa exemplar. O que fizemos foi esco-
lher, eximere, um caso particular que então se torna válido para
outros casos particulares. Há muitos conceitos nas ciências histó-
ricas e políticas a que se chegou dessa maneira. A maioria das vir-
tudes e vícios políticos são pensados em termos de indivíduos
exemplares: Aquiles para coragem, Sólon para perspicácia (sabe-
doria) etc. Ou tome-se o exemplo do cesarismo ou bonapartismo:
tomamos Napoleão ou César como um exemplo, isto é, como uma
pessoa particular que exibe qualidades que são válidas para outros
casos. Sem dúvida, aqueles que não sabem quem foram César ou
Napoleão não podem compreender do que estamos falando se
mencionamos o cesarismo ou o bonapartismo. Por isso a validade
do conceito é restrita, mas, dentro de suas restrições, ele é ainda

assim válido.
Os exemplos, que são realmente o “andador” (go-cart) de
todas as atividades de julgamento, constituem também, e de

maneira especial, os sinais de orientação de todo pensamento

210
moral. A amplitude com que a antiga afirmação, outrora muito
paradoxal — é melhor sofrer o mal do que fazer o mal —, tem con-
quistado a concordância dos homens civilizados deve-se primaria-
mente ao fato de que Sócrates deu um exemplo e, assim, tornou-se
exemplo para um certo modo de conduta e um certo modo de
decidir entre o certo e o errado. Essa posição é recapitulada por
Nietzsche — o último filósofo, somos tentados a pensar, que levou
a sério as questões morais e que, portanto, analisou e pensou até o
limite todas as posições morais anteriores. Ele disse o seguinte: “É
uma desnaturação da moralidade separar o ato do agente, dirigir o
ódio ou o desprezo contra o ‘pecado’ [o ato em vez do agente], acre-
ditar que uma ação poderia ser boa ou má em si mesma [... Em toda •'
ação] tudo depende de quem a pratica, o mesmo crime’ pode ser, >
num caso, o privilégio mais elevado e, noutro caso, o estigma [do
mal]. Na verdade, é o apego a si daquele que julga que interpreta £
uma ação, ou melhor, o seu ator, com respeito à [...] semelhança ou
‘não-afmidade’ entre o agente e o juiz” (Vontade de poder, n°292).
Julgamos e distinguimos o certo do errado por termos presentes
em nosso espírito algum incidente e alguma pessoa, ausentes no
tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplos. Há muitos
desses exemplos. Podem estar no passado remoto ou entre os
vivos. Não precisam ser realidade histórica; como Jefferson cert^^^ 1

vez observou: “O assassinato fictício de Duncan por Macbethf

provoca em nós “um horror tão grande da vilania quanto o assíis-


sinato real de Henrique iv”, e um “senso vivo e duradouro deàtver
filial é incutido com mais eficácia num filho ou numa filha pdalei-

tura de Rei Lear do que por todos os volumes áridos de ética e


divindade que já foram escritos”. (Isso é o que diz todo professor de
etica e o que nenhum outro professor jamais deveria dizer.).

Bem, obviamente não tenho nem o tempo nem provavel-


mente a capacidade de analisar todos os detalhes, isto é, de reAm-
der, mesmo da forma mais breve, a todas as perguntas que eujfcó-

211M

Á
fc durante «sas quatro palestras. So posso esperar que ao
menos alguma indicação de como podemos pensar e nos mover
nesses assuntos difíceis e urgentes tenha se tornado aparente.
Como conclusão, permitam-me apenas mais dois comentários.
De nossa discussão de hoje sobre Kant, espero que tenha se torna-
do mais claro por que propus, por meio de Cicero e Meister Eck-
hart, a questão de determinar com quem desejamos estar juntos.
Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão
depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem
desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é
escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas
mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes pas-
sados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos
dizer que preferiría o Barba Azul por companhia, tomando-o
assim como seu exemplo, a única coisa que poderiamos fazer é nos
assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós. Mas receio
que seja muito maior a probabilidade de que alguém venha nos
dizer que não se importa com a questão e que qualquer companhia
lhe será satisfatória. Em termos morais e até políticos, essa indife-
rença, embora bastante comum, é o maior perigo. Em conexão
com isso, sendo apenas um pouco menos perigoso, está outro fe-
nômeno moderno muito comum, a tendência difundida da recu-
sa a julgar. A partir da recusa ou da incapacidade de escolher os seus
emplos e a sua companhia, e a partir da recusa ou incapacidade
stabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem
an aa reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não
nos ou ,rem°Ver P°rque nao foram causados por motivos huma-
mesmo t ^nar”ente COmpreensíveis- Nisso reside o horror e, ao
mesmo tempo, a banalidade do raa|,«

1965-6

212
Responsabilidade coletiva'

Apesar de concordar com o que penso serem as duas princi-


pais afirmações do trabalho do senhor Feinberg, devo admitir que
tive alguma dificuldade com o texto. A minha concordância diz res-
peito à sua firme distinção entre culpa e responsabilidade. “A res-
ponsabilidade coletiva”, diz ele,“é um caso especial de responsabi-
lidade vicária, e não pode haver culpa vicária.” Em outras palavras,
há uma responsabilidade por coisas que não fizemos; podemos ser
considerados responsáveis por elas. Mas não há um ser ou sentiid
se culpado por coisas que aconteceram sem que se tenha partici]»
do ativamente delas. Esse é um ponto importante, digno dejfer
apontado em voz alta e clara num momento em que tantos bons
liberais brancos confessam ter sentimentos de culpa com nfepeito
à questão negra. Não sei quantos precedentes existem na história

para esses sentimentos inapropriados, mas sei que na Alemanha


pós-guerra, onde surgiram problemas semelhantes com respeito

ao que o regime de Hitler fizera com os judeus, o grito de Somos


todos culpados”, que a princípio soou muito nobre e atraeiflfc’ser-
viu de fato apenas para desculpar num grau considerável a^jjdes
que eram realmente culpados. Quando somos todos culpados,
ninguém o é. A culpa, ao contrário da responsabilidade, sempre
seleciona, é estritamente pessoal. Refere-se a um ato, não a inten-
ções ou potencialidades. É apenas num sentido metafórico que
podemos dizer que sentimos culpa pelos pecados de nossos pais, de
nosso povo ou da humanidade, em suma, por atos que não prati-
camos, embora o curso dos acontecimentos possa muito bem nos
fazer pagar por eles. E como os sentimentos de culpa, mens rea ou
má consciência, o estar ciente de fazer o mal, desempenham um
papel tão importante em nosso julgamento legal e moral, talvez
seja prudente abster-se dessas declarações metafóricas que, se
tomadas ao pé da letra, só podem levar a uma sentimentalidade
falsa em que todas as questões reais são obscurecidas.
O próprio senhor Feinberg, receio, chega às vezes perigosa-
mente perto de desfazer a sua clara distinção, quando introduz a
noção de “identificação simpática”, afirmando que “qualquer sen-
timento passível de ser experimentado por uma pessoa pode ser
experimentado vicariamente por alguma outra pessoa imaginati-
vamente sensível”. Se isso fosse verdade, então haveria realmente
um fenômeno como o sentimento de culpa vicário; mas o senhor
Feinberg também possui as suas dúvidas a esse respeito — “um
sentimento autenticamente vicário, se é que pode existir tal coisa”.
Chamamos compaixão ao que sinto quando outra pessoa sofre; e
esse sentimento só é autêntico se percebo que, afinal, não sou eu,
mas outra pessoa que sofre. Mas é verdade, creio eu, que “a solida-
riedade é uma condição necessária” para essas emoções; o que, no
nosso caso de sentimentos de culpa coletiva, significaria que o
grito: “Somos todos culpados” é realmente uma declaração de soli-
dariedade com os malfeitores.
Não sei quando o termo “responsabilidade coletiva” apareceu
pela primeira vez, mas estou razoavelmente segura de que não só o
termo, mas também os problemas que implica, devem a sua rele-

214
vância e interesse geral aos dilemas políticos, distintos dos legais
ou morais. A minha dificuldade com o trabalho do senhor Fein-
berg não é que ele omita essa dimensão da questão—ele discute os
problemas políticos na última parte do seu texto —, mas que ele
tente desde o início interpretar todas as questões segundo modelos
que são legal ou moralmente relevantes, de modo que a questão
política parece não ser mais do que um caso especial dos assuntos
que estão sujeitos a procedimentos legais normais ou a julgamen-
tos morais normais. O senhor Feinberg distingue entre padrões
legais e morais; os padrões morais são mais rigorosos do que os
padrões de culpabilidade legal, e a distinção, a seu ver, é uma ques-
tão de grau. Não estou segura de que concordo inteiramente; o
jogo, por exemplo, é legalmente errado, pelo menos neste país; )
apesar de eu não ser uma jogadora profissional, os meus padrões
morais a esse respeito são consideravelmente menos rigorosos. (
Mas concordo que os padrões legais e morais têm algo muito '
importante em comum—eles sempre se referem à pessoa e ao que »
a pessoa fez; se a pessoa está por acaso envolvida num empreendí-
mento comum, como no caso do crime organizado, o que deve ser
julgado é ainda essa mesma pessoa, o grau da sua participação, seu
papel específico e assim por diante, e não o grupo. O fato de ser
membro só desempenha um papel na medida em que torna maisj^^
provável o fato de ela ter cometido um crime; e isso, em princípio,T
não é diferente de má reputação ou de ter uma ficha criminal. Se o
réu era membro da máfia, membro das ss ou de alguma outra orga-
nização criminosa ou política, assegurando-nos ter sido mero
dente na engrenagem, que agia apenas por ordens superiores e
fazia o que qualquer outro teria igualmente feito, no momento em
que ele aparece num Tribunal de Justiça, ele aparece como uma
pessoa e é julgado de acordo com o que fez. Cabe à grandeza dos
procedimentos do tribunal que até um dente de engrenagenj^ossa
se tornar uma pessoa de novo. E o mesmo parece verdade até num

21'
grau mais elevado para o julgamento moral, para o qual a descul-
pa — minha única alternativa teria levado ao suicídio — não é tão
impositiva quanto nos procedimentos legais. Não é um caso de

responsabilidade, mas de culpa.


Parece-me que o senhor Feinberg, pela escolha de seus mode-
los, embaça a própria distinção entre responsabilidade e culpa, qUe
foi o seu ponto de partida. Nenhuma responsabilidade coletiva está
envolvida no caso dos mil nadadores experientes que, refestelados
numa praia pública, deixam um homem se afogar no mar sem ir
ao seu socorro, porque eles não eram uma coletividade, para início
de conversa; nenhuma responsabilidade coletiva está envolvida no
caso de uma conspiração para assaltar um banco, porque aqui a
falta não é vicária; o que está envolvido são vários graus de culpa.
E se, como no caso do sistema social sulista depois da guerra civil
americana, apenas os “residentes insanos” ou os “párias” são ino-
centes, temos novamente um caso claro de culpa; pois todos os
outros cometeram algum ato que não é absolutamente “vicário”.
Ainda seguindo o argumento do senhor Feinberg, diria que
duas condições têm de estar presentes para a responsabilidade co-
letiva: devo ser considerado responsável por algo que não fiz, e a
razão para a minha responsabilidade deve ser o fato de eu perten-
cer a um grupo (um coletivo), o que nenhum ato voluntário meu
pode dissolver, isto é, o meu pertencer ao grupo é completamente
diferente de uma parceria de negócios que posso dissolver quando
quiser. A questão da “transgressão cooperante no grupo” deve ser
deixada em suspenso, porque toda participação já é não vicária.
Esse tipo de responsabilidade, na minha opinião, é sempre políti-

ca, quer apareça na forma mais antiga em que toda uma comuni-
dade assume a responsabilidade por qualquer ato de qualquer de
seus membros, quer no caso de uma comunidade ser considerada
responsável pelo que foi feito em seu nome. O último caso tem, é
claro, mais interesse para nós, porque se aplica, para o bem e para

216
q mal, a todas as comunidades políticas, e não apenas ao governo
representativo. Todo governo assume a responsabilidade pelos
atos e malfeitorias de seus predecessores, e toda nação pelos atos e
malfeitorias do passado. Isso é verdade até para os governos revo-
lucionários, que podem negar o compromisso com os acordos
contratuais estabelecidos pelos seus predecessores. Quando
Napoleão Bonaparte se tornou governante da França, ele disse:
“Assumo a responsabilidade por tudo o que a França fez desde os
tempos de Carlos Magno até o terror de Robespierre. Em outras
palavras”, disse ele, “tudo isso foi feito em meu nome, na medida
em que sou membro desta nação e o representante do corpo polí-
tico”. Nesse sentido, somos sempre considerados responsáveis
pelos pecados de nossos pais, assim como colhemos as recompen-
sas de seus méritos; mas não somos, é claro, culpados de suas mal-
feitorias, nem moral nem legalmente, nem podemos atribuir os
seus atos a nossos méritos.
Só podemos escapar dessa responsabilidade política e estri-
tamente coletiva abandonando a comunidade, e como nenhum
homem pode viver sem pertencer a alguma comunidade, isso sig-
nificaria simplesmente trocar uma comunidade por outra, e
assim um tipo de responsabilidade por outro. É verdade que o
século xx criou uma categoria de homens que são verdadeira-
mente párias, que não pertenciam a nenhuma comunidade inter-
nacionalmente reconhecível, os refugiados e sem pátria, que na
realidade não podem ser considerados politicamente responsá-

veis por nada. Em termos políticos, independentemente de seu


grupo ou caráter individual, eles são absolutamente inocentes; e é
Precisamente essa inocência absoluta que os condena a uma posi-
ção alheia, por assim dizer, à humanidade como um todo. Se hou-
Vesse uma culpa coletiva, isto é, vicária, esse seria o caso de uma
inocência coletiva, isto é, vicária. Na verdade, eles são os únicos
totalmente não responsáveis; e apesar de pensarmos em geral na
responsabilidade, especialmente na responsabilidade coletiva,

como uma carga e até como um tipo de punição, acho que se pode

mostrar que o preço pago pela não-responsabilidade coletiva é

consideravelmente mais elevado.


O que estou tentando fazer é traçar uma linha divisória mais
nítida entre a responsabilidade política (coletiva), de um lado, e a
culpa moral e/ou legal (pessoal), de outro, e o que tenho princi-
palmente em mente são aqueles casos freqüentes em que as con-
siderações morais e políticas e os padrões morais e políticos de
conduta entram em conflito. A principal dificuldade em discutir
esses assuntos parece residir na ambigüidade muito perturbado-
ra das palavras que usamos para discutir essas questões, isto é, a
moralidade ou a ética. As duas palavras significam originalmente
nada mais do que costumes ou maneiras e, depois, num sentido
elevado, os costumes e as maneiras que são mais apropriados para
o cidadão. Da Ética a Nicômaco até Cícero, a ética ou a moral era

parte da política, aquela parte que não tratava das instituições,


mas do cidadão, e todas as virtudes na Grécia ou em Roma são
definitivamente virtudes políticas. A questão nunca é se um indi-
víduo é bom, mas se a sua conduta é boa para o mundo em que
vive. No centro do interesse está o mundo, e não o eu. Quando
falamos sobre as questões morais, inclusive a questão da cons-
ciência, queremos dizer algo completamente diferente, algo, na
verdade, para o qual não temos uma palavra pronta. Por outro
lado, como usamos essas palavras antigas em nossas discussões,
essa conotação muito antiga e muito diferente está sempre pre-
sente. Há uma exceção em que é possível detectar num texto clás-
sico considerações morais em nosso sentido, e essa é a proposição
socrática — é melhor sofrer o mal do que fazer o mal —, que devo

discutir em breve. Antes de fazê-lo, gostaria de mencionar outra


dificuldade que surge do lado oposto, por assim dizer, isto é, do

lado da religião. Que as questões morais dizem respeito antes ao

218
bem-estar de uma alma do que ao do mundo, faz parte, obvia-

mente, da herança hebraico-cristã. Para dar o exemplo mais


comum da Antigüidade grega, se em Ésquilo Orestes mata a mãe

sob as ordens rigorosas de Apoio e é depois, ainda assim, persegui-


do pelas Erínias, é a ordem do mundo que foi duas vezes pertur-
bada e que deve ser restaurada. Orestes fez o que era certo quando
vingou a morte do pai e matou a mãe; ainda assim era culpado,
porque tinha violado outro “tabu”, como diriamos hoje em dia. A
tragédia é que apenas um ato maligno pode pagar na mesma
moeda o crime original, e a solução, como todos sabemos, é apre-
sentada por Atenas, ou melhor, pela fundação de um tribunal, que
desde então assumirá a tarefa de manter a ordem correta e elimi-
nar a maldição de uma cadeia interminável de malfeitorias, neces-
sária para manter a ordem do mundo. É a versão grega da com-

preensão cristã de que toda resistência ao mal feito no mundo


necessariamente acarreta alguma implicação no mal e a solução
dessa situação difícil para o indivíduo.
Com a ascensão do cristianismo, a ênfase deslocou-se inteira-
mente da preocupação com o mundo e os deveres a ele ligados para
a preocupação com a alma e sua salvação. Nos primeiros séculos, a
polarização das duas atitudes era absoluta; as epístolas no Novo
Testamento estão cheias de recomendações para que os homens
evitem o envolvimento público e político e para que se preocupem

com a sua própria atividade estritamente privada, cuidando da sua


alma, até Tertuliano resumir essa atitude nec ulla magis res aliena

quam publica: “Nada é mais alheio a nós do que aquilo que tem
importância pública” O que até hoje compreendemos por padrões

e prescrições morais tem esse pano de fundo cristão; é ainda na


linha desse pensamento que o senhor Feinberg reivindica padrões
de culpabilidade mais rigorosos do ponto de vista moral, distinta-

mente do legal. No pensamento atual sobre essas questões, os


padrões de rigor são obviamente os mais elevados para as questões

219
morais, os mais baixos para as questões de costumes e maneiras,

enquanto os padrões legais estão em algum ponto no meio. A

minha idéia é que a moralidade deve essa posição elevada em nossa

hierarquia de “valores” à sua origem religiosa; se a lei divina que

prescreve as regras da conduta humana era compreendida como

algo revelado diretamente, como nos Dez Mandamentos, ou indi-

retamente, como nas noções da lei natural, não tem importância

nesse contexto. As regras eram absolutas por causa da sua origem

divina, e as suas sanções consistiam em “retribuições e punições


futuras” É mais do que duvidoso que essas regras de conduta ori-

ginalmente arraigadas na religião possam sobreviver à perda da fé

na sua origem e, especialmente, à perda de sanções transcendentes.

(John Adams, de modo estranhamente profético, predisse que essa

perda “tornaria o assassinato tão indiferente quanto atirar em

tarambolas, e o extermínio da nação Rohilla tão inocente quanto

engolir ácaros num pedaço de queijo”.) Pelo que posso ver, há ape-

nas dois dos Dez Mandamentos aos quais ainda nos sentimos

moralmente obrigados, o “Não matarás” e o “Não prestarás falso

testemunho”; e esses dois foram recentemente desafiados com

muito sucesso por Hitler e Stálin, respectivamente.

No centro das considerações morais da conduta humana está

o eu; no centro das considerações políticas da conduta está o

mundo. Se despirmos os imperativos morais de suas conotações e

origens religiosas, resta-nos a proposição socrática — é melhor

sofrer o mal do que fazer o mal — e sua estranha fundamentação:

“Pois é melhor para mim estar em desavença com o mundo intei-

ro do que, sendo um só, estar em desavença comigo mesmo”. Seja

qual for a interpretação que possamos dar a essa invocação do

axioma da não-contradição em questões morais, como se um e o

mesmo imperativo — não contradirás a ti mesmo — fosse axio-

mático para a lógica e para a ética (o que, aliás, é ainda o principal

argumento de Kant para o Imperativo Categórico), uma coisa

220
parece clara: a pressuposição é que não só vivo junto com outros,

mas também com o meu eu, e que esse viver junto, por assim dizer,

tem precedência sobre todos os outros. A resposta política à pro-

posição socrática seria: o importante no mundo é que não haja

nenhum mal, sofrer o mal e fazer o mal são igualmente ruins. Não

importa quem o sofra; o nosso dever é impedi-lo. Ou, para invo-

car, por razões de brevidade, outro dito famoso, desta vez de

Maquiavel, que precisamente por essa razão queria ensinar aos

príncipes “como não ser bons”: escrevendo sobre os patriotas flo-

rentinos que tinham ousado desafiar o papa, ele os elogiou porque

tinham demonstrado “como colocavam a sua cidade muito acima

da alma”. Onde a linguagem religiosa fala da alma, a linguagem

secular fala do eu.

Há muitas maneiras pelas quais os padrões políticos e morais

de conduta podem entrar em conflito uns com os outros, e na teo-

ria política eles são geralmente tratados em conexão com a doutri-

na da razão de Estado e o seu assim chamado duplo padrão de

moralidade. Estamos aqui interessados apenas em um caso espe-

cial, o caso da responsabilidade coletiva e vicária em que o mem-


bro de uma comunidade é considerado responsável por coisas de

que não participou, mas que foram feitas em seu nome. Essa não-

participação pode ter muitas causas: a forma de governo do país

pode fazer com que seus habitantes, ou grandes camadas deles, não

sejam admitidos à esfera política, de modo que essa não-participa-

ção não é uma questão de escolha. Ou, ao contrário, em países


livres um certo grupo de cidadãos pode não querer participar, não

ter nada a ver com a política, não por razões morais, mas simples-

mente porque optaram por aproveitar uma de nossas liberdades,


aquela que em geral não é mencionada quando as enumeramos

porque é aceita como natural, e essa é a liberdade em relação à polí-


tica. Essa liberdade era desconhecida na Antigüidade, e tem sido

abolida com muita eficácia em várias ditaduras do século xx, espe-

221
cialmente na variedade totalitária. Em contraste com o absolutis-
mo e outras formas de tirania, em que a não-participação era algo
esperado, e não uma questão de escolha, lidamos aqui com uma
situação em que a participação, e isso, como sabemos, pode signi-
ficar cumplicidade em atividades criminosas, é algo esperado, e a
não-participação uma questão de decisão. E temos finalmente o
caso em países livres em que a não-participação é realmente uma
forma de resistência—como no caso daqueles que se recusam a ser
recrutados para a guerra no Vietnã. Essa resistência é freqüente-
mente discutida em termos morais; mas desde que haja liberdade
de associação e com ela a esperança de que a resistência na forma
de recusa a participar venha a provocar uma mudança de política,
ela é essencialmente política. O que está no centro da consideração
não é o eu — não vou porque não quero sujar as minhas mãos, o
que, claro, também pode ser um argumento válido —, mas o des-
tino da nação e sua conduta com outras nações do mundo.
A não-participação nos assuntos políticos do mundo esteve
sempre sujeita à censura de irresponsabilidade, de nos esquivar-
mos dos deveres para com o mundo que partilhamos e para com a
comunidade a que pertencemos. E essa censura não é de modo
algum contra-atacada com sucesso se a não-participação é justifi-
cada em termos morais. Sabemos por experiências recentes que a
resistência ativa e às vezes heróica a maus governos provém mais
de homens e mulheres que neles participaram do que de estranhos
que eram inocentes, sem qualquer culpa. Isso é verdade, como uma
regra com exceções, para a resistência alemã contra Hitler, e até
mais verdadeiro para os poucos casos de rebelião contra os regimes
comunistas. A Hungria e a Tchecoslováquia são casos ilustrativos.
Discutindo essas questões de um ponto de vista legal, Otto Kirch-
heimer (em seu Political Justice) enfatizou corretamente que para
a questão da inocência legal ou moral, isto é, a ausência de qual-
quer cumplicidade em crimes cometidos por um regime, a “resis-

222
tência ativa” seria um “padrão ilusório, um recuo da participação
significativa na vida pública [...] uma vontade de desaparecer no
esquecimento”, e a obscuridade“é um padrão que pode ser impos-
to corretamente por aqueles que julgam” (pp. 331 e seguintes). Pela
mesma razão, entretanto, ele de certo modo justifica aqueles réus
que disseram que o seu senso de responsabilidade não-permitiu
que escolhessem esse caminho; que eles serviram para prevenir o
pior etc. — argumentos que, sem dúvida, no caso do regime de
Hitler soavam um tanto absurdos e em geral não passavam de
racionalizações hipócritas de um desejo ardente de levar adiante a
carreira deles, mas isso é outra história. A verdade é que os não-
participantes não eram resistentes e não acreditavam que sua ati-
tude tivesse quaisquer conseqüências políticas.
O que o argumento moral, que citei na forma da proposição
socrática, diz realmente é mais ou menos o seguinte: se eu fizesse o
que agora é exigido de mim como o preço da participação, quer
como mero conformismo, quer até como a única chance de uma
resistência por fim bem-sucedida, já não poderia viver comigo
mesma; a minha vida deixaria de valer a pena para mim. Por isso,
preferiría sofrer o mal agora, e até pagar o preço de uma pena de
morte no caso de eu ser forçada a participar, a fazer o mal e depois
ter de viver junto com essa malfeitora. Em se tratando da questão/
de matar — o argumento não seria que o mundo ficaria melhy
sem a execução do assassinato, mas a não-disposição a viver com
um assassino. Esse argumento, assim me parece, é irrefutável até
mesmo do ponto de vista político mais estrito, mas é claramente
um argumento que só pode ser válido em situações extremas, isto
é, marginais. São freqüentemente essas situações as mais capazes
de esclarecer questões que, do contrário, são um tanto obscuras e
equívocas. A situação marginal em que as proposições morais se
tornam absolutamente válidas na esfera da política é a impotência.
A ausência de poder, que sempre pressupõe o isolamento» éjjma
desculpa válida para não fazer nada. O problema com esse argu-
mento é o fato de ser inteiramente subjetivo; a sua autenticidade só
pode ser demonstrada pela disposição a sofrer. Não há regras
gerais, como nos procedimentos legais, que poderíam ser aplica-
das e que seriam válidas para todos. Mas isso, receio, será o fardo de
todos os julgamentos morais que não são apoiados por comandos
religiosos, nem deles derivam. Sócrates, como sabemos, nunca foi
capaz de provar a sua proposição; e o Imperativo Categórico de
Kant, seu único concorrente como uma prescrição moral estrita-
mente não religiosa e não política, tampouco pode ser provado. O
problema até mais profundo com o argumento é o fato de ser tão-
somente aplicável a pessoas acostumadas a viver explicitamente
consigo mesmas, o que é apenas outra forma de dizer que sua vali-
dade só será plausível para os homens que têm consciência; e, ape-
sar dos preconceitos da jurisprudência que, na perplexidade, tão
freqüentemente apela à consciência como algo que todo homem
são do juízo deve possuir, a evidência é que muitos possuem cons-
ciência, mas nunca todos, e que aqueles que a possuem podem ser
encontrados em todas as esferas da vida e, mais especificamente,
em todos os graus de instrução e sem instrução. Nenhum sinal
objetivo de posição social ou educacional pode assegurar a sua
presença ou ausência.
A única atividade que parece corresponder a essas proposi-
ções morais seculares e validá-las é a atividade do pensamento, que
na sua forma mais geral, inteiramente não especializada, pode ser
definida com Platão como o diálogo silencioso entre mim e mim
mesma. Se aplicada a questões de conduta, a faculdade da imagi-
nação estaria envolvida nesse pensamento num grau elevado, isto
é, a capacidade de representar, de tornar presente para mim
mesma o que ainda está ausente — qualquer feito contemplado.
Até que ponto essa faculdade do pensamento, que é exercida

quando estamos a sós, se estende até a esfera estritamente política,

224
em que estou sempre junto com outros, é outra questão. Mas qual-
quer que venha a ser a nossa possível resposta a essa questão, a ser
dada auspiciosamente pela filosofia política, nenhum padrão
moral, individual e pessoal de conduta será capaz de nos escusar da
responsabilidade coletiva. Essa responsabilidade vicária por coisas
que não fizemos, esse assumir as conseqüências por atos de que
somos inteiramente inocentes, é o preço que pagamos pelo fato de
levarmos a nossa vida não conosco mesmos, mas entre nossos
semelhantes, e de que a faculdade de ação, que, afinal, é a faculda-
de política par excellence, só pode ser tornada real numa das mui-
tas e múltiplas formas de comunidade humana.
Pensamento e considerações
morais'
Para W. H. Auden

Falar sobre o pensamento me parece tão presunçoso que sinto


que lhes devo uma justificação. Há alguns anos, ao relatar o julga-
mento de Eichmann em Jerusalém, falei da “banalidade do mal”, e
com isso não me referia a nenhuma teoria ou doutrina, mas a algo
completamente factual, ao fenômeno dos atos malignos, cometi-
dos numa escala gigantesca, que não podiam ser atribuídos a
nenhuma particularidade de maldade, patologia ou convicção
ideológica do agente, cuja única distinção pessoal era uma superfi-

cialidade talvez extraordinária. Por mais monstruosos que fossem


os atos, o agente não era nem monstruoso nem demoníaco, e a
única característica específica que se podia detectar no seu passado,

bem como no seu comportamento durante o julgamento e o inqué-


rito policial que o precedeu, era algo inteiramente negativo: não era
estupidez, mas uma curiosa e totalmente autêntica incapacidade de

pensar. Ele funcionava tão bem no papel de ilustre criminoso de

guerra quanto tinha funcionado no regime nazista; não tinha a

menor dificuldade em aceitar um conjunto inteiramente diferente

de regras. Sabia que aquilo que tinha outrora considerado seu dever

226
era agora chamado de crime, e aceitava esse novo código de julga-
mento como se não passasse de outra regra de linguagem. Ao seu
estoque um tanto limitado de lugares-comuns acrescentava alguns
novos, e só ficava completamente desamparado quando confron-
tado com uma situação a que nenhum deles se aplicava, como no
caso mais grotesco em que tinha de fazer um discurso no patíbulo
e fora forçado a basear-se em clichês usados na oratória funerária,
inaplicáveis a seu caso, porque ele não era o sobrevivente.2 Não lhe
ocorrera o simples fato de considerar quais deveríam ser as suas
últimas palavras no caso de uma sentença de morte, que ele tinha
esperado o tempo todo, assim como as incoerências e as contradi-
ções flagrantes nos exames e interrogatórios durante o julgamento
não o tinham incomodado. Os clichês, os lugares-comuns, a adesão
a códigos convencionais e padronizados de expressão e conduta
têm a função socialmente reconhecida de nos proteger contra a rea-
lidade, isto é, contra a solicitação da atenção de nosso pensamento,
que todos os acontecimentos e fatos despertam em virtude da sua
existência. Se fôssemos receptivos a essa exigência o tempo todo,
logo estaríamos exaustos; a diferença em Eichmann era apenas que
ele claramente nada sabia de tal solicitação.
Essa total ausência de pensamento atraiu o meu interesse. É
possível praticar o mal — não só os pecados da omissão, mas os
pecados da perpetração — na ausência, não meramente dos
“motivos vis” (como diz a lei), mas de quaisquer motivos, qualquer
estímulo particular de interesse ou volição? A maldade, não
importa como a definamos, esse estar “determinado a ser um
vilão”, não é uma condição necessária para fazer o mal? A nossa
capacidade de julgar, de distinguir o certo do errado, o belo do feio,
depende de nossa faculdade de pensamento? A incapacidade de

pensar coincide com um fracasso desastroso do que comumente


chamamos de consciência? A questão que se impunha era: será que
a atividade de pensar como tal, o hábito de examinar e refletir sobre

227

5 fíittri 11IFAP 1 i&nn


tudo o que vem a acontecer, sem levar em conta o conteúdo espe.
cífico e totalmente independente dos resultados, será que eSSa

atividade pode ser de tal natureza que condiciona os homens

contra fazer o mal? (A própria palavra cons-ciência, de qualquer

modo, aponta nessa direção, na medida em que significa conhe-

cer comigo mesma e por mim mesma, um tipo de conhecimento

que se realiza em todo processo de pensamento.) Por fim, a pre-

mência dessas questões não é imposta pelo fato bem conhecido, e

um tanto alarmante, de que apenas os bons são incomodados pela

má consciência, enquanto ela é um fenômeno muito raro entre os

criminosos reais? A boa consciência não existe a não ser como

ausência da má consciência.
Essas eram as questões. Para empregar outras palavras e usar

a linguagem kantiana, depois de ter sido atingida por um fenôme-

no — a quaestio facti —, que, querendo ou não, “me colocou na

posse de um conceito” (a banalidade do mal), eu não podia deixar

de propor a quaestio juris e perguntei a mim mesma “com que

direito eu a possuía e utilizava”.3

Propor questões como “O que é pensar?” e “O que é o mal?”

tem as suas dificuldades. Elas pertencem à filosofia ou metafísica,

termos que designam um campo de investigação que, como todos


sabemos, caiu em descrédito. Se isso fosse apenas uma questão de

ataques positivistas e neopositivistas, talvez não precisássemos nos

preocupar. A nossa dificuldade em propor essas questões é causa-


da menos por aqueles para quem elas são de qualquer maneiia

sem sentido do que por aqueles que estão sob ataque. Assim

como a crise na religião atingiu o seu clímax quando os teólogos,


distintos da antiga multidão de não-crentes, começaram a fala
*

228
sobre proposições tais como: “Deus está morto” a crise na filosofia

tornou-se manifesta quando os próprios filósofos começaram a

declarar o fim da filosofia e da metafísica. Ora, isso poderia ter as

suas vantagens; confio que as terá, uma vez que se tenha compreen-

dido o que esses “fins” realmente significam, não que Deus “mor-

reu”— um absurdo óbvio em todos os aspectos—, mas que já não

é convincente o modo como Deus tem sido concebido por milha-

res de anos; e não que as antigas questões que coincidem com a

aparição dos homens sobre a Terra tenham se tornado “sem senti-

do”, mas que o modo como eram formuladas e respondidas perdeu

sua plausibilidade.

O que chegou ao fim é a distinção básica entre o sensível e o

supra-sensível, junto com a noção, pelo menos tão antiga quanto

Parmênides, de que tudo o que não é dado aos sentidos — Deus, o

Ser, os Primeiros Princípios e Causas (archai) ou as Idéias—é mais

real, mais verdadeiro, mais significativo do que aquilo que apare-

ce; que não está apenas além da percepção dos sentidos, mas acima
do mundo dos sentidos. O que está “morto” não é apenas a locali-

zação dessas “verdades eternas”, mas a própria distinção. Enquanto


isso, com vozes cada vez mais estridentes, os poucos defensores da

metafísica têm nos alertado para o perigo do niilismo inerente a


esse desenvolvimento; e apesar de eles próprios raramente o invo|J

carem, têm um argumento importante a seu favor: é realmente

verdade que, uma vez descartado o reino supra-sensível, o seu


oposto, o mundo das aparências como tem sido compreendido

por tantos séculos, é também aniquilado. O sensível, comoainda é

compreendido pelos positivistas, não pode sobreviver à morte do


supra-sensível. Ninguém sabia melhor disso do que Ni^tesche,

Que, com sua descrição poética e metafórica do assassinato de

Deus em Zaratustra, causou tanta confusão nesses assunto&Numa


passagem significativa em O crepúsculo dos Deuses^ ele escfe^ece o

que a palavra Deus significava em Zaratustra. Era apenas uflftsím

2:
bolo para o reino supra-sensível, assim como é entendido pela

metafísica; em vez de Deus, ele agora usa a expressão m undo verda-

deiro e diz: “Abolimos o mundo verdadeiro. O que restou? Talvez o

aparente? Oh, não! Com o mundo verdadeiro, abolimos também

o aparente”.5
Essas mortes “modernas” de Deus, da metafísica, da filosofia

e, por implicação, do positivismo, podem ser acontecimentos de

grande importância, mas são, afinal, acontecimentos do pensa-

mento, e apesar de dizerem respeito muito intimamente a nossos

modos de pensar, não dizem respeito a nossa capacidade de pen-

sar, ao simples fato de que o homem é um ser pensante. Com isso


quero dizer que o homem tem uma inclinação e, a menos que seja

pressionado por necessidades mais urgentes da vida, até uma

necessidade (a “necessidade da razão” de Kant) de pensar além das

limitações do conhecimento, de realizar mais com as suas capaci-

dades intelectuais, o poder de seu cérebro, do que usá-las como um

instrumento para conhecer e fazer. O nosso desejo de conhecer,

quer surja das necessidades práticas, das perplexidades teóricas ou

da pura curiosidade, pode ser satisfeito quando se alcança o obje-

tivo pretendido; e embora a nossa sede de conhecimento possa ser

insaciável por causa da imensidão do desconhecido, de modo que

toda região do conhecimento abra outros horizontes de conheci-

mentos possíveis, a própria atividade deixa atrás de si um tesouro

crescente de conhecimento que é retido e armazenado por toda

civilização como parte do seu mundo. A atividade de conhecer não

é menos uma atividade de construção de mundo do que a constru-

ção das casas. A inclinação ou a necessidade de pensar, ao contrá-

rio, mesmo que não provocada por nenhuma das veneráveis

“questões supremas”, metafísicas e irrespondíveis, não deixa nada

de tão tangível atrás de si, nem pode ser saciada por intuições

supostamente definitivas dos “sábios” A necessidade de pensar só

pode ser satisfeita pelo pensar, e os pensamentos que tive ontem

230
somente satisfarão essa necessidade hoje à medida que eu possa

pensá-los novamente.
Devemos a Kant a distinção entre pensar e conhecer, entre a

razão, a premência de pensar e compreender, e o intelecto, que

deseja e é capaz de certo conhecimento verificável. O próprio Kant

acreditava que a necessidade de pensar além das limitações do

conhecimento só era despertada pelas antigas questões metafísicas

de Deus, liberdade e imortalidade, e que ele tinha “considerado

necessário negar o conhecimento para dar lugar à fé”; ao proceder

desse modo, ele lançou os fundamentos de uma futura “metafísica

sistemática” como um “legado para a posteridade”.6 Mas isso só


mostra que Kant, ainda preso à tradição da metafísica, nunca teve
plena consciência do que tinha feito, e seu “legado para a posteri- /

dade” revelou-se a destruição de todos os fundamentos possíveis >

dos sistemas metafísicos. Pois a capacidade e a necessidade de pen- '

sar não se restringem absolutamente a qualquer tema específico,

como as questões que a razão propõe e sabe que nunca será capaz *
de responder. Kant não “negou o conhecimento”, mas separou o

conhecer do pensar, e abriu espaço não para fé, mas para o pensa-

mento. Como certa vez sugeriu, ele na verdade “eliminou os obstá-


culos pelos quais a razão atrapalha a si mesma”7
Em nosso contexto e para nossos fins, essa distinção entrjM^ 1

conhecer e pensar é crucial. Se a capacidade de distinguir o ce^jr

do errado tiver alguma coisa a ver com a capacidade de pensar,

então devemos ser capazes de “exigir” o seu exercício de toda pes-

soa sã, por mais erudita ou ignorante, inteligente ou estúpida que

se mostre. Kant, a esse respeito quase o único entre os filósofos,


ficava muito incomodado com a opinião comum de que a filoso-

fia só existe para uns poucos, precisamente por causa das implica-

ções morais dessa opinião. Nessa linha, ele observou certa vez que
“A estupidez é causada por um coração malvado”,8 uma declaração

que nessa forma não é verdadeira. A incapacidade de pensarínão é

2J
estupidez; pode ser encontrada em pessoas altamente inteligentes,

e a maldade dificilmente é a sua causa, nem que seja porque a


ausência da capacidade de pensar, bem como a estupidez, sào fenô-

menos muito mais freqüentes que a maldade. O problema é preci-

samente que nenhum coração malvado, um fenômeno relativa-

mente raro, é necessário para causar um grande mal. Por isso, em

termos kantianos, precisaríamos da filosofia, o exercício da razão

como a faculdade do pensamento, para impedir o mal.

E isso é pedir muito, mesmo supondo e saudando o declínio

daquelas disciplinas, como a filosofia e a metafísica, que por tantos

séculos monopolizaram essa faculdade. Pois a principal caracterís-

tica do pensamento é que ele interrompe todo fazer, todas as ativi-

dades comuns, sejam quais forem. Quaisquer que possam ter sido

as falácias das teorias dos dois-mundos, elas surgiram de experiên-

cias genuínas. Pois é verdade que, no momento em que começa-

mos a pensar em qualquer questão, paramos tudo o mais, e esse

tudo o mais, seja lá o que for, interrompe o processo de pensar; é

como se entrássemos num mundo diferente. O fazer e o viver no

sentido mais geral de inter homines essey “estar entre os meus

semelhantes” — o equivalente latino para estar vivo —, impede

positivamente o pensar. Como Valéry disse certa vez: “Tantôtje

suis, tantôtjepense” ora sou, ora penso.

Intimamente ligado a essa situação está o fato de que o pensar

sempre lida com objetos que estão ausentes, afastados da percep-

ção direta dos sentidos. Um objeto do pensamento é sempre uma

representação, isto é, algo ou alguém que está realmente ausente e

presente apenas para o espírito que, pela imaginação, pode torná-

lo presente na forma de uma imagem.9 Em outras palavras, quan-

do estou pensando saio do mundo das aparências, mesmo que o

meu pensamento lide com objetos comuns dados pelos sentidos, e

não com invisíveis como os conceitos ou as idéias, o antigo domí-

nio do pensamento metafísico. Para pensar em alguém, essa pes-

232
soa deve estar afastada de nossos sentidos; enquanto estivermos

reunidos com ela, não pensamos nela — embora possamos colher

impressões que mais tarde se tornam alimento para o pensamen-

to; pensar em alguém que está presente implica nos afastarmos

sub-repticiamente da sua companhia e agir como se essa pessoa já

não estivesse ali.


Essas observações podem indicar por que o pensar, a busca do

significado — em vez da sede científica do conhecimento pelo


conhecimento —, pode ser percebido como “antinatural”, como se

os homens, quando começam a pensar, se envolvessem em alguma

atividade contrária à condição humana. O pensar como tal, não


apenas o pensar em acontecimentos ou fenômenos extraordiná-
rios, ou nas velhas questões metafísicas, mas toda reflexão que não

serve ao conhecimento e não é guiada por fins práticos—casos em

que o pensar é servo do conhecimento, um mero instrumento para

fins ulteriores—está, como Heidegger certa vez observou, “fora de

ordem”10 Há, sem dúvida, o fato curioso de que sempre houve

homens que escolheram o bios theõretikos como seu modo de vida,

o que não é nenhum argumento contra a atividade estar “fora de


ordem” Toda a história da filosofia, que nos conta tanto sobre os

objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do próprio

pensar, está imbuída de uma luta interna entre o senso comum do


homem, esse sexto sentido muito elevado que ajusta os nossos

cinco sentidos a um mundo comum e nos torna capazes de nos

orientarmos neste mundo, e a faculdade humana de pensar, pela

qual ele se afasta voluntariamente de tal mundo.

E não só essa faculdade não “serve para nada” no curso comum


das atividades, pois seus resultados permanecem incertos e não

verificáveis, mas ela é também, de certo modo, autodestrutiva. Na

privacidade das suas notas publicadas postumamente, Kant escre-

veu: “Não aprovo a regra de que, se o uso da razão pura provou algo,

esse resultado, mais tarde, já não deva ser objeto de dúvida, como se

233
AiJn axioma”; e“Não partilho a opinião [...] de que não
fosse um s i de estarmos convencidos de algUma

STn ” isw é impo ssivel ' N°SÍ° espír ‘‘o t em uma


roisso”llDo que parece se seguir queaatividade
tjepensarécomoovéu de Penélopeidesfaztodamanhãoque tinha

acabado na noite anterior.

Deixem-me resumir as minhas três principais proposições


para apresentar novamente o nosso problema, a conexão interna
entre a capacidade ou incapacidade de pensar e o problema do

mal.
Primeiro, se existe essa conexão, a faculdade de pensar, distin-

ta da sede de conhecimento, deve ser atribuída a todos; não pode


ser um privilégio de poucos.
Segundo, se Kant tem razão e a faculdade do pensamento tem
uma “aversão natural” a aceitar os seus próprios resultados como
sólidos axiomas”, então não podemos esperar nenhuma proposi-
ção ou mandamento moral, nenhum código final de conduta da
atividade de pensar, muito menos uma nova definição, agora
supostamente final, do que é bom e do que é mau.
Terceiro, se é verdade que o pensar lida com invisíveis, segue-

se que está fora de ordem, porque nos movemos normalmente


num mundo de aparências em que a experiência mais radical de

, kTd a m°rte‘ Tem-se freqüentemente acreditado que a


__ e e ^ar com coisas que não aparecem cobra um preço

Pensem e ce8ar o pensador ou o poeta para o mundo visível.

«.anuo-o com a cevupir->.


aquele, que fflMo6nl ™ Téãmt de Platão’'em que

aerpessoasquepersegnem fllosofam’a mal,,rw'


Ooestoid^^^™.am0r,ePensernemZenão,ofundador
A Perguntou ao oráculo de Delfos o que ele deve-

234
ria fazer para alcançar a melhor vida e recebeu como resposta:
“Assuma a cor dos mortos”.12
Assim, a pergunta é inevitável: como algo relevante para o
mundo em que vivemos pode surgir de um empreendimento tão

sem resultados? Uma resposta, se tanto, só pode provir da atividade


de pensar, do seu próprio desempenho, o que significa que temos
de investigar experiências em vez de doutrinas. E para onde nos
voltamos em busca dessas experiências? O “todo mundo”, de quem
exigimos o pensar, não escreve livros; tem coisas mais urgentes
para fazer. E os poucos, a quem Kant certa vez chamou os “pensa-
dores profissionais”, nunca se mostraram particularmente ansio-
sos por escrever sobre a própria experiência, talvez porque soubes-
sem que o pensar não tem resultados por natureza. Pois os seus
livros, com as suas doutrinas, foram inevitavelmente compostos
com um olho na maioria, que deseja ver os resultados e não se inte-
ressa em traçar distinções entre o conhecer e o pensar, entre a ver-
dade e o significado. Não sabemos quantos dos pensadores “pro-
fissionais”, cujas doutrinas constituem a tradição da filosofia e da
metafísica, tiveram dúvidas sobre a validade e até sobre o possível
caráter significativo de seus resultados. Conhecemos apenas a
magnífica negação de Platão (na Sétima Carta), do que outros proTj
clamaram como as suas doutrinas: A

Sobre os assuntos que me dizem respeito, nada se conhece, poishão


existe nada escrito sobre isso, nem jamais haverá nada no futuro. As
pessoas que escrevem sobre essas coisas nada sabem; elas nem
conhecem a si mesmas. Pois não há como expressar isso em pala-
vras, como expressamos outras coisas que podemos aprender.
Assim, ninguém que possua a verdadeira faculdade de pensar
(nous) e, portanto, conheça a impotência das palavras» va^atriscar
colocar os pensamentos num discurso, muito menos fixá-l(>snuma
forma tão inflexível como as letras escritas.'3 W
II

0 problema é que poucos pensadores nos disseram o que os


fez pensar, e um número ainda menor se deu ao trabalho de des-
crever e examinar a sua experiência de pensar. E em meio a essa
dificuldade, sem querer confiar em nossas próprias experiências
por causa do perigo óbvio da arbitrariedade, proponho procurar
um modelo, um exemplo que, ao contrário dos pensadores “pro-
fissionais”, poderia ser representativo de nosso “todo mundo”, isto
é, procurar um homem que não se conte nem entre os muitos nem
entre os poucos — uma distinção pelo menos tão antiga quanto
Pitágoras; que não tenha aspirado a ser um governante de cidades,
nem afirmado saber como melhorar e tratar as almas dos cidadãos;
que não tenha acreditado que os homens pudessem ser sábios e que
não tenha invejado a sabedoria divina dos deuses, no caso de eles a
possuírem; e que, portanto, nunca tenha experimentado formular
uma doutrina que pudesse ser ensinada e aprendida. Em suma,
proponho usar como nosso modelo um homem que realmente
tenha pensado sem se tornar um filósofo, um cidadão entre os
cidadãos, alguém que não tenha feito ou reivindicado nada além
daquilo que, na sua opinião, todo cidadão devesse fazer e tivesse
direito a reivindicar. Vocês terão adivinhado que pretendo falar
sobre Sócrates, e espero que ninguém venha a contestar seriamen-
te que minha escolha não seja historicamente justificável.
Mas devo alertá-los: há muita controvérsia sobre o Sócrates
histórico, sobre como e até que ponto ele pode ser diferenciado de
Platão, que peso atribuir ao Sócrates de Xenofonte etc. e, apesar de

se ser um dos tópicos mais fascinantes das discussões eruditas,


ou ignorá lo aqui por completo. No entanto, utilizar, ou melhor,
trans ormar uma figura histórica num modelo e atribuir-lhe uma
função representativa definida, precisa de alguma justificação. No

seu gran e ivro, Dante and Philosophy, Etienne Gilson mostra

236
como na Divina comédia “uma personagem conserva de sua reali-

dade histórica tanto quanto requeria a função representativa que


Dante lhe atribui”.14 Essa liberdade em tratar os dados históricos e
factuais, ao que parece, só pode ser concedida aos poetas, e se os
não-poetas tentam experimentá-la os eruditos lhe dão o nome de
licença ou coisa pior. E ainda assim, com ou sem justificação, é a
isso precisamente que se reduz o costume amplamente aceito de
construir “tipos ideais”; pois a grande vantagem do tipo ideal é
precisamente que ele não é uma abstração personificada com
algum significado alegórico a ela atribuído, mas foi escolhido den-
tre a multidão de seres vivos, no passado ou no presente, porque
possuía uma significação representativa na realidade que apenas
necessitava de alguma purificação para revelar o seu pleno signifi-
cado. Gilson explica como funciona essa purificação na sua discus-
são do papel atribuído por Dante a Tomás de Aquino na Divina
comédia. No décimo canto do “Paraíso”, Tomás glorifica Sigieri de

Brabante, que fora condenado por heresia, e a quem “o Tomás de


Aquino histórico nunca teria tentado elogiar da maneira como
Dante o faz elogiá-lo”, porque ele teria se recusado a “levar a distin-
ção entre a filosofia e a teologia ao ponto de sustentar [...] o sepa-
ratismo radical que Dante tinha em mente”. Para Dante, Tomás
teria assim “perdido o direito de simbolizar na Divina comédia afl
sabedoria dominicana da fé”, um direito a que, sob todas as demare
considerações, ele podia reivindicar. Era, como Gilson mostra bri-
lhantemente, aquela “parte da sua constituição que (até Tomás de
Aquino) teve de deixar no portão do Paraíso antes de poder
entrar”.15 Há vários traços no Sócrates de Xenofonte, cuja credibi-
lidade não precisa ser objeto de dúvida, que Sócrates poderia ter
sido obrigado a abandonar no portão do paraíso, se Dante o tives-

se usado.
A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos^ocrá-
ticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentaçãó ou não

237.
leva a lugar nenhum ou anda em círculos. Para saber o que é a jus-
tiça, deve-se saber o que é o conhecimento, e para saber o que é
conhecer, deve-se ter uma noção prévia e não examinada de
conhecimento. (Como se lê em Teeteto e Cármides.) Portanto, “um
homem não pode tentar descobrir o que ele sabe ou o que ele não
sabe. Se ele sabe, não há necessidade de investigação; se ele não
sabe... ele nem sequer sabe o que deve procurar” (Ménon 80). Ou,
no Eutífron: Para ser piedoso, devo saber o que é a piedade.
Piedosas são as coisas que agradam aos deuses; mas elas são piedo-
sas porque agradam aos deuses, ou agradam aos deuses porque são
piedosas? Nenhum dos logoi, os argumentos, jamais fica parado;
movem-se ao redor porque Sócrates, ao fazer perguntas para as
quais ele não sabe as respostas, coloca-os em movimento. E quan-
do as afirmações perfazem o círculo completo é em geral Sócrates
que, com prazer, propõe começar tudo de novo e investigar o que
é a justiça, a piedade ou o conhecimento.
Pois os tópicos desses primeiros diálogos tratam de conceitos
cotidianos muito simples, como os que surgem sempre que as pes-
soas abrem a boca e começam a falar. A introdução em geral diz o
seguinte: Sem dúvida, há pessoas felizes, atos justos, homens cora-
josos, coisas belas para ver e admirar, todo mundo sabe disso; o
problema começa com o nosso uso de substantivos, presumivel-
mente derivados daqueles adjetivos que aplicamos a casos parti-
culares, assim como eles nos aparecem (vemos um homem feliz,
percebemos o ato corajoso ou a decisão justa), isto é, com palavras
comofelicidade, coragem,justiça etc., que agora chamamos de con-
ceitos, e que Sólon chamava de a “medida não aparente” (aphanes
metrori) “muito difícil para o espírito compreender, mas que ainda

assim contém os limites de todas as coisas”16 — e que Platão, um


pouco mais tarde, chamou de idéias perceptíveis apenas para os
olhos do espírito. Essas palavras, usadas para agrupar qualidades
e ocorrências vistas e manifestas, a despeito de relacionadas a algo

238
W
* invisível, são parte constitutiva de nosso discurso cotidiano, e
ainda assim não conseguimos explicá-las; quando tentamos defi-
£ ni-las, elas se tornam escorregadias; quando falamos sobre o seu
significado, nada mais fica parado, tudo começa a se mover. Assim,
em vez de repetir o que aprendemos com Aristóteles, isto é, que
Sócrates foi o homem que descobriu o “conceito”, deveriamos nos
perguntar o que Sócrates fez quando o descobriu. Pois, sem dúvi-
da, essas palavras faziam parte da língua grega antes que ele ten-
tasse obrigar os atenienses e a si mesmo a explicar o que eles e ele
queriam dizer quando as pronunciavam, estando convencido de
que nenhum discurso seria possível sem elas.
Essa convicção se tornou questionável. O nosso conhecimen-
to das assim chamadas línguas primitivas nos ensinou que esse
agrupamento de muitos dados particulares num nome comum
não é absolutamente algo corriqueiro, pois essas línguas, cujo
vocabulário é freqüentemente muito mais rico que o nosso, não
possuem esses substantivos abstratos mesmo quando se referem a
objetos claramente visíveis. Para simplificar a questão, vamos
tomar um substantivo que para nós já não soa nem um pouco abs-
trato. Podemos usar a palavra casa para um grande número de
objetos — para a cabana de barro de uma tribo, para o palácio de^
um rei, a casa de campo de um morador da cidade, o chalé na vi®
ou o apartamento na cidade —, mas dificilmente podemos us»la
para as tendas de alguns nômades. A casa em si e por si, auto
kath'auto, que nos faz usar a palavra para todas essas construções

particulares e muito diferentes, nunca é vista, nem pelos olhos do


corpo, nem pelos olhos do espírito; toda casa imaginada, por mais
abstrata que seja, tendo o mínimo necessário para torná-la reco-
nhecível, já é uma casa particular. Essa casa como tal, da qual deve-

mos ter uma noção para reconhecer construções particulares


como casas, tem sido explicada de maneiras diferentes e chamada
por nomes diferentes na história da filosofia; nisso não estamos

239
interessados no momento, embora talvez tivéssemos menos difi.
culdade em defini-la do que palavras comofelicidade ou justiça. Q
ponto é que ela implica algo consideravelmente menos tangível do
que a estrutura percebida pelos nossos olhos. Implica “abrigar
alguém” e servir de “moradia” como nenhuma tenda, montada
hoje e desmontada amanhã, poderia abrigar alguém ou servir de
residência. A palavra casa, a “medida não vista” de Sólon, “contém
os limites de todas as coisas” pertencentes à moradia: é uma pala-
vra que não poderia existir, se o pressuposto não fosse pensar em
estarmos abrigados, morando em algum lugar, tendo um lar.
Como palavra, casa abrevia todas essas coisas, é o tipo de abrevia-
tura sem a qual o pensar e sua velocidade característica — “veloz
como um pensamento”, como costumava dizer Homero — não
seria possível. A palavra casa é algo como um pensamento congela-
do que o pensar deve desgelar, como que degelar, sempre que dese-
jar descobrir o seu significado original. Na filosofia medieval, esse
tipo de pensamento era chamado meditação, e a palavra devia ser
entendida como algo diferente de contemplação e até oposto a ela.
De qualquer modo, esse tipo de reflexão meditativa não produz
definições, sendo nesse sentido inteiramente sem resultados;
poderia ser, porém, que aqueles que, por qualquer razão, refletem
sobre o significado da palavra casa, venham dar a seus apartamen-
tos uma aparência um pouquinho melhor — embora isso não
ocorra necessariamente e, claro, sem que estejam conscientes de
qualquer coisa tão verificável como causa e efeito. A meditação não
é a mesma coisa que a deliberação, que deve realmente terminar
em resultados tangíveis; e a meditação não visa à deliberação,
embora às vezes, mas de modo algum freqüentemente, nela se
transforme.

ntretanto, Sócrates, de quem comumente se diz que teria


acreditado napossibüidadedeensinaravirtude.parecetersusten-
tadodefatoquefalarepensarsobreapiedade.ajustiça.acoragem

240
e tudo o mais, poderia tornar os homens mais piedosos, mais jus-
tos, mais corajosos, mesmo que não lhes fossem dadas definições
oU “valores” para orientar a sua conduta posterior. Aquilo em que
Sócrates realmente acreditava a respeito dessas questões pode ser
mais bem ilustrado pelas comparações que aplicava a si mesmo.
Ele se chamava de moscardo e parteira, e, segundo Platão, foi cha-
mado por outra pessoa de “arraia-elétrica”, um peixe que paralisa
e entorpece pelo contato, uma semelhança cuja propriedade ele
reconheceu sob condição de que fosse compreendido que “a arraia
elétrica só paralisa os outros por estar ela própria paralisada. Não
é que, sabendo eu próprio as respostas, deixe perplexas as outras
pessoas. A verdade é, antes, que também as infecto com a perplexi-
dade que eu próprio sinto”.17 O que, sem dúvida, resume com >
muita clareza a única maneira em que o pensamento pode ser ensi- (
nado — exceto que Sócrates, como ele disse repetidas vezes, não
ensinava nada pela simples razão de que nada tinha para ensinar; :
ele era “estéril” como as parteiras na Grécia, que já tinham passado
da idade de dar à luz. (Como ele não tinha nada a ensinar, nenhu-
ma verdade a transmitir, foi acusado de nunca revelar a sua própria
visão [gnômê] — como sabemos por Xenofonte, que o defendeu
dessa acusação.18 Parece que ele, ao contrário dos filósofos profis^^^
sionais, sentia-se impelido a verificar se os seus semelhantes pa^F W
lhavam as suas perplexidades — e esse impulso é totalmente dife- 1
rente da inclinação a encontrar soluções para enigmas para então
demonstrá-las aos outros.
Examinemos brevemente as três comparações. Primeiro,
Sócrates é um moscardo: ele sabe como provocar os cidadãos que,
sem ele, “continuarão a dormir calmamente pelo resto da vida, a
menos que apareça outra pessoa para voltar a despertá-los. E a que
ele os provoca? A pensar, a examinar as questões, uma atividade

sem a qual a vida, segundo ele, não só não valia muito a pena como
não era plenamente viva.1’

241
Segundo, Sócrates é uma parteira: aqui a implicação é tripla

—a “esterilidade” que mencionei acima, a perícia do conhecimen-


to em extrair dos outros os seus pensamentos, isto é, as implicações
de suas opiniões, e a função grega da parteira de decidir se a crian-
ça estava apta para viver ou, usando a linguagem socrática, se era
uma mera “barriga de vento”, da qual a portadora devia ser purga-
da. Nesse contexto, importam apenas as duas últimas dessas impli-
cações. Pois, ao examinar os diálogos socráticos, não houve nin-
guém entre os interlocutores de Sócrates que tivesse apresentado
um pensamento que não fosse uma barriga de vento. Antes, ele
fazia o que Platão, pensando certamente em Sócrates, disse dos
sofistas: ele depurava as pessoas de suas “opiniões”, isto é, daqueles
pré-julgamentos não examinados que impedem o pensar ao suge-
rir que sabemos o que não tanto não sabemos como não podemos
saber, ajudando-os, como observa Platão, a se livrarem do que
neles era ruim, as suas opiniões, sem, entretanto, torná-los bons,
dando-lhes a verdade.20
Terceiro, Sócrates, sabendo que não sabemos e, ainda assim,
não querendo desistir, continua inabalável com as suas perplexi-
dades e, como a arraia-elétrica, paralisa com elas todo aquele que
entre em contato com ele. A arraia-elétrica, à primeira vista, pare-
ce ser o oposto do moscardo; paralisa onde o moscardo incita.
Entretanto, o que não pode deixar de parecer paralisia a partir do
exterior e do curso comum dos assuntos humanos é percebido
como o estado mais elevado de estar vivo. Apesar da escassez de
evidência documental para a experiência de pensar, existem vários
pronunciamentos dos pensadores ao longo dos séculos nesse sen-
tido. O próprio Sócrates, muito ciente de que o pensamento lida
com invisíveis e é ele próprio invisível, carecendo de toda manifes-
tação exterior das outras atividades, parece ter usado a metáfora do
vento para comentá-lo: “Os próprios ventos são invisíveis, mas o
que eles fazem é manifesto para nós, e de certo modo sentimos a

242
sua aproximação”.21 (A mesma metáfora, aliás, é usada por Hei-
degger, que também fala da “tempestade do pensamento”)
No contexto em que Xenofonte, sempre ansioso por defender
o mestre contra acusações vulgares com argumentos igualmente
vulgares, menciona essa metáfora, ela não faz muito sentido. No
entanto, mesmo ele indica que as manifestações do vento invisível
do pensamento são aqueles conceitos, virtudes e “valores” com os
quais Sócrates lidava nas suas investigações. O problema — e a
razão por que o mesmo homem pode ser compreendido e com-
preender a si próprio como um moscardo e como uma arraia-elé-
trica — é que esse mesmo vento, sempre que despertado, tem a
peculiaridade de varrer para longe as suas manifestações anterio-
res. Está na sua natureza desfazer, como que descongelar, o que a
linguagem, o meio do pensamento, congelou em pensamentos —
palavra (conceitos, frases, definições, doutrinas), cuja “impotên-
cia” e inflexibilidade Platão denuncia de forma tão magnífica na
Sétima carta. A conseqüência dessa peculiaridade é que o pensa-
mento tem inevitavelmente um efeito destrutivo e solapador em
todos os critérios estabelecidos, valores e medições do bem e do
mal, em suma, naqueles costumes e regras de conduta de que tra-
tamos na moral e na ética. Esses pensamentos congelados, Sócrates
parece dizer, são tão prestativos que podemos usá-los em nosso
sono; mas se o vento do pensamento, que vou agora provocar em
vocês, os acordar e os tornar plenamente despertos e vivos, então
vocês verão que nada têm na mão senão perplexidades, e o máxi-
mo que podem fazer com elas é partilhá-las uns com os outros.
Assim, a paralisia do pensamento é dupla: é inerente ao parar
e pensar, a interrupção de todas as outras atividades, e pode ter um
efeito paralisante quando saímos desse estado, agora já não mais
seguros do que nos tinha parecido indubitável enquanto estáva-
mos envolvidos sem pensar no que quer que estivéssemos fazendo.
Seanossa ação consistia em aplicar regras gerais de conduta a casos

243
particulares assim como eles surgem na vida comum, então vamos
nos descobrir paralisados, porque nenhuma dessas regras pode
resistir ao vento do pensamento. Para usar mais uma vez o exem-
plo do pensamento congelado inerente à palavra casa, depois de
pensarmos no seu significado implícito — morar, ter um lar, estar
abrigado—já não é provável que aceitemos para a nossa casa qual-
quer coisa que a moda da época possa prescrever; mas isso absolu-
tamente não garante que seremos capazes de apresentar uma solu-
ção aceitável para os nossos problemas de moradia. Podemos ficar
paralisados.
Isso leva ao último e, talvez, ainda maior perigo desse em-
preendimento perigoso e sem resultados. No círculo ao redor de
Sócrates havia homens como Alcibíades e Crítias — e Deus sabe
que não eram de modo algum os piores entre os seus assim chama-
dos alunos —, e eles tinham se revelado uma ameaça muito real
para a pólis, não por estarem paralisados pela arraia-elétrica, mas,
ao contrário, por terem sido incitados pelo moscardo. Aquilo que
neles fora despertado eram a licenciosidade e o cinismo. Não
tinham se contentado em serem ensinados a pensar sem que lhes
ensinassem uma doutrina, e transformaram os não-resultados do
exame socrático do pensamento em resultados negativos: se não
podemos definir o que é a piedade, vamos ser ímpios — o que é
bem o oposto do que Sócrates tinha esperado alcançar falando
sobre a piedade.
A busca de significado, que inexoravelmente dissolve e exa-
mina de novo todas as doutrinas e regras aceitas, pode a qualquer
momento virar-se contra si mesma e, por assim dizer, produzir

uma inversão dos valores antigos, declarando “novos valores”. Isso,

em certa medida, é o que Nietzsche fez quando inverteu o platonis-

mo, esquecendo que um Platão invertido continua a ser Platão, ou


o que Marx fez quando virou Hegel de cabeça para baixo, produ-

zindo um sistema estritamente hegeliano da história no processo.

244
Esses resultados negativos do pensar serão então usados tão sono-
lentamente, com a mesma rotina irrefletida, quanto os antigos
valores; no momento em que são aplicados ao domínio dos assun-
tos humanos, é como se nunca tivessem passado pelo processo do
pensar. O que comumente chamamos niilismo — o que somos
tentados a datar historicamente, denegrir politicamente, e atribuir
a pensadores que, supostamente, ousaram pensar “pensamentos
perigosos”—é na verdade um perigo inerente à própria atividade
de pensar. Não há pensamentos perigosos; o próprio pensar é que
é perigoso, mas o niilismo não é o seu produto. O niilismo não é
senão o outro lado do convencionalismo; o seu credo consiste nas
negações dos valores correntes, assim chamados positivos, aos
quais permanece ligado. Todos os exames críticos devem passar
por um estágio de negar, pelo menos hipoteticamente, opiniões e
“valores” aceitos, descobrindo as suas implicações e pressupostos
tácitos, e nesse sentido o niilismo pode ser visto como um perigo
sempre presente do pensar. Mas esse perigo não provém da convic-
ção socrática de que uma vida não examinada não vale a pena ser
vivida, mas, ao contrário, do desejo de encontrar resultados que
tornariam o pensamento posterior desnecessário. Pensar é igual-
mente perigoso para todos os credos e, por si mesmo, não produz
nenhum novo credo.
Entretanto, o não-pensar, que parece um estado tão reco-
mendável para os assuntos políticos e morais, também possui os
seus perigos. Protegendo as pessoas contra os perigos da investiga-
ção, o não-pensar as ensina a se agarrarem a quaisquer regras pres-
critas de conduta que possam existir num dado tempo e numa
dada sociedade. As pessoas então se acostumam não tanto ao con-
teúdo das regras, cujo exame minucioso sempre as conduziría a

um estado de perplexidade, quanto à posse de regras nas quais sub-

sumem os casos particulares. Em outras palavras, elas se acostu-


mam a nunca tomar decisões. Se aparecesse então alguém que, por

245
quaisquer razões ou fins, desejasse abolir os antigos “valores” ou
virtudes, ele acharia essa tarefa bastante fácil, desde que oferecesse
um novo código, e não precisaria de força, nem de persuasão — de
nenhuma prova de que os novos valores são melhores que os anti-
gos — para impô-los. Quanto mais forte era o apego dos homens
ao velho código, mais ansiosos estarão para assimilar o novo; a
facilidade com que essas inversões podem ocorrer em certas cir-
cunstâncias sugere, na verdade, que todo mundo está adormecido
quando elas ocorrem. Este século nos ofereceu alguma experiência
nessas questões: como foi fácil para os governantes totalitários
inverterem os mandamentos básicos da moralidade ocidental —
“Não matarás”, no caso da Alemanha de Hitler, e “Não prestarás
falso testemunho contra teu vizinho”, no caso da Rússia de Stálin.
Para voltar a Sócrates. Os atenienses lhe disseram que pensar
era subversivo, que o vento do pensamento era um furacão que
varria para longe todos os sinais estabelecidos, pelos quais os
homens se orientavam no mundo; ele trazia desordens às cidades
e confundia os cidadãos, especialmente os jovens. E embora
Sócrates negasse que o pensar corrompe, não sustentava que ele
aperfeiçoasse, e embora declarasse que “nenhum bem maior acon-
teceu” à pólis do que aquilo que fazia, não alegava ter começado a
sua carreira como filósofo para tornar-se um tão grande benfeitor.
Se “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”,22 então o
pensar acompanha o viver quando se preocupa com alguns con-
ceitos como justiça, felicidade, temperança, prazer, com palavras
para coisas invisíveis que a linguagem nos ofereceu para expressar
o significado de tudo o que acontece na vida e nos ocorre enquan-
to estamos vivos.
Sócrates dá a essa busca de significado o nome de erbs, um
tipo de amor que é primariamente uma necessidade — ele deseja
o que não tem—e que é a única questão em que ele se diz especia-
lista.23 Os homens amam a sabedoria e praticam a filosofia (philo-

246
sophein) porque não são sábios, assim como amam a beleza e“pra-
ticam a beleza”, por assim dizer (philokalein, como chamou Péri-
cles),24 porque não são belos. Ao desejar o que não está ali, o amor
estabelece uma relação com ele. Para tornar essa relação manifes-
ta, fazê-la aparecer, os homens falam a respeito disso, assim como
o amante quer falar sobre a sua amada.25 Como a busca é um tipo
de amor e desejo, os objetos do pensamento só podem ser coisas
merecedoras de amor — beleza, sabedoria, justiça etc. A feiúra e o
mal são excluídos, por definição, do interesse do pensamento,
embora possam ocasionalmente aparecer como deficiências,
como a falta de beleza, a injustiça, e o mal (kakia) como a falta do
bem. Isso significa que eles não têm raízes próprias, nenhuma
essência que o pensamento pudesse apreender. O mal, como nos
dizem, não pode ser feito voluntariamente por causa de seu “esta-
tuto ontológico”, como diriamos hoje em dia; consiste numa
ausência, em algo que não é. Se o pensamento dissolve os concei-
tos positivos e normais no seu significado original, então o mesmo
processo dissolve esses “conceitos” negativos na sua falta de senti-
do original, ou seja, em nada. Essa, aliás, não é apenas a opinião de
Sócrates; que o mal é uma mera privação, negação ou exceção da
regra, é a opinião quase unânime de todos os pensadores.26 (A falá-.
cia mais visível e mais perigosa na proposição, tão antiga quan»
Platão: “Ninguém pratica o mal voluntariamente”, é a conclusão
implícita: “Todo mundo quer fazer o bem”. A triste verdade é que a
maior parte do mal é feita por pessoas que nunca decidiram ser
boas ou más.)
Aonde chegamos no que diz respeito a nosso problema — a
incapacidade de pensar ou a recusa a pensar e a capacidade de fazer
o mal? Chegamos à conclusão de que apenas as pessoas investidas
desse erõs, esse amor desejoso da sabedoria, beleza e justiça, são

capazes de pensamento — isto é, resta-nos a “nobre natureza” de


Platão como um pré-requisito para o pensar. E isso era precisa-

247
mente o que não estávamos procurando quando propusemos a
questão de saber se a atividade de pensar, o seu próprio desempe-
nho — distinto e independente de quaisquer qualidades que a
natureza de um homem, a sua alma, possa possuir — o condicio-
na de tal maneira que ele é incapaz do mal.

ui

Entre as raríssimas declarações positivas feitas por Sócrates,


esse amante das perplexidades, há duas proposições, intimamente
ligadas entre si, que lidam com a nossa questão. Ambas ocorrem no
Górgias, o diálogo sobre a retórica, a arte de falar para os muitos e
convencê-los. O Górgias não pertence aos primeiros diálogos
socráticos; foi escrito pouco antes de Platão tornar-se o diretor da
Academia. Além disso, parece que o seu próprio tema trata de uma
forma de discurso que perdería todo o sentido se fosse aporético.
Apesar disso, esse diálogo ainda é aporético; apenas os últimos diá-
logos de Platão, nos quais Sócrates desaparece ou já não está no
centro da discussão, perderam inteiramente essa qualidade. O
Górgias, como a República, conclui com um dos mitos de Platão so-

bre um outro mundo, com recompensas e punições, que, aparen-


temente, isto é, ironicamente, resolvem todas as dificuldades. A sua
seriedade é puramente política; consiste em serem endereçados à
multidão. Esses mitos, certamente não socráticos, têm importân-
cia porque contêm, ainda que numa forma não filosófica, a
admissão de Platão de que os homens podem cometer o mal e
realmente o cometem voluntariamente, e o que é ainda mais
importante, a admissão implícita de que ele, não mais que Sócrates,
sabia o que fazer filosoficamente com esse fato perturbador.

Podemos não saber se Sócrates acreditava que a ignorância causa

248
o mal e que a virtude pode ser ensinada; mas sabemos que Platão
achava mais prudente confiar em ameaças.
As duas proposições socráticas positivas são as seguintes. A
primeira: “É melhor sofrer o mal do que fazer o mal” — ao que
Cálicles, o interlocutor no diálogo, replica o que toda a Grécia teria
replicado: “Sofrer o mal não é digno de um homem, mas de um
escravo, para quem é melhor morrer do que viver, para quem não
é sequer capaz de socorrer a si mesmo quando é ultrajado, ou àque-
les que lhe são caros” (474). A segunda: “Seria melhor para mim
que a minha lira ou um coro que eu dirigisse fossem desafinados
ou estridentes com dissonâncias, e que multidões de homens discor-
dassem de mim do que eu, sendo um só, estivesse em desarmonia
comigo mesmo e me contradissesse”. O que leva Cálicles a respon-
der que Sócrates está “enlouquecendo com a eloqüência”, e que
seria melhor para ele e todos os demais se ele deixasse a filosofia
em paz (482).
E nisso, como veremos, ele tem um argumento válido. Foi real-
mente a filosofia, ou melhor, a experiência de pensar, que levou
Sócrates a fazer essas afirmações—embora, evidentemente, ele não
tivesse começado o seu empreendimento para chegar a elas. Pois
seria um erro grave, acredito, compreendê-las como os resultados de
alguma cogitação sobre a moralidade; são intuições, sem dúvida,
mas intuições da experiência, e no que diz respeito ao próprio pro-
cesso de pensar são, quando muito, subprodutos incidentals.
Temos dificuldades em perceber como a primeira afirmação
deve ter soado paradoxal quando foi proferida; depois de milhares
de anos de usos e abusos, ela parece um dito moralizante barato. E
a melhor demonstração de como é difícil para as mentes moder-
nas compreender a estocada da segunda afirmação é o fato de que
suas palavras-chave, “Sendo um só” seria pior para mim estar em
desavença comigo mesmo do que em desacordo com multidões de
homens, sejam freqüentemente omitidas na tradução. Quanto à

249
primeira, trata-se de uma afirmação subjetiva que significa ser

melhor para mim sofrer o mal do que fazer o mal, a qual é contes-

tada pela afirmação oposta, igualmente subjetiva, mas que obvia-

mente soa muito mais plausível. No entanto, se fôssemos olhar

para as proposições do ponto de vista do mundo, distintamente da

visão dos dois cavalheiros, teríamos de dizer: o que conta é que um

mal foi cometido; é irrelevante saber quem está em melhor situa-

ção, o que cometeu o mal ou o que sofreu o mal. Como cidadãos,

devemos impedir que o mal seja feito porque o mundo que deve-

mos partilhar, o malfeitor, a vítima e o espectador, está em risco; a

Cidade foi ultrajada. (Por isso, os nossos códigos legais distinguem

entre crimes, para os quais a denúncia é obrigatória, e transgres-

sões, em que são ultrajados apenas os indivíduos privados, que

podem ou não querer processar o culpado. No caso de um crime,

os estados subjetivos da mente daqueles envolvidos são irrelevan-

tes —aquele que sofreu o mal pode estar disposto a perdoar, talvez

seja totalmente improvável que aquele que o cometeu volte a rein-

cidir—, porque a comunidade, como um todo, foi violada.)

Em outras palavras, Sócrates não fala nesse momento como

um cidadão que deve estar mais preocupado com o mundo do que

com o seu próprio eu. Antes, é como se dissesse a Cálicles: se você

estivesse, como eu, apaixonado pela sabedoria e necessitasse exa-

minar tudo, e se o mundo fosse como você o descreve — dividido

entre os fortes e os fracos, onde “os fortes fazem o que querem e os

fracos sofrem o que devem” (Tucídides) —, de modo que não exis-

tiría alternativa a não ser fazer ou sofrer o mal, então você concor-

daria comigo que é melhor sofrê-lo do que fazê-lo. A pressuposi-

ção é: se você estivesse pensando, então concordaria que“uma vida

não examinada não vale a pena ser vivida”.

Que eu saiba, existe apenas uma outra passagem na literatura

grega que, quase com as mesmas palavras, diz o mesmo que


Sócrates: “Mais infeliz (kakodaimonesteros) do que a vítima é o
malfeitor”, afirma um dos poucos fragmentos de Demócrito

(B45), o grande adversário de Parmênides, que provavelmente por

essa razão nunca foi mencionado por Platão. A coincidência pare-

ce digna de nota porque Demócrito, ao contrário de Sócrates, não

se interessava particularmente pelos assuntos humanos, mas pare-

ce ter sido muito interessado pela experiência de pensar. “O espíri-

to (fogos)” disse ele, torna a abstinência fácil, porque “está acostu-

mado a conseguir alegrias de si mesmo (auton exheautou)n (B146),

Como se aquilo que somos tentados a compreender como uma

proposição puramente moral surgisse realmente da experiência de

pensar em si mesma.
E isso nos leva à segunda afirmação, que é o pré-requisito da

primeira. Ela também é altamente paradoxal. Sócrates fala de ser

um só e, portanto^ de não ser capaz de correr o risco de entrar em

desacordo consigo mesmo. Mas nada que é idêntico a si mesmo,

verdadeira e absolutamente um só, como A é A, pode estar em har-

monia ou em desarmonia consigo mesmo; são sempre necessários

pelo menos dois tons para produzir um som harmonioso. Sem

dúvida, quando apareço e sou vista pelos outros, sou uma só; do

contrário, eu seria irreconhecível. E enquanto estou junto com

outros, quase sem consciência de mim mesma, sou como apareço


aos outros. Chamamos de consciência de si (consciousness) — lite-^

ralmente, “conhecer comigo mesma” — o fato curioso de que;

num certo sentido, também sou para mim mesma, embora eu

quase não apareça para mim, o que indica que o “sendo uma só”

socrático não é tão isento de problemas quanto parece; não sou

apenas para os outros, mas também para mim mesma, e nesse últi-

mo caso não sou claramente apenas uma só. Uma diferença é inse-
rida na minha Unicidade.

Conhecemos essa diferença sob outros aspectos. Tudo que


existe entre urna pluralidade de coisas não é simplesmente o que é,

na sua identidade, mas é também diferente dos outros; esse ser dife-

nn
rente pertence à sua própria natureza. Quando tentamos apreendê-
lo em pensamento, querendo defini-lo, devemos levar em conside-
ração essa alteridade (alteritas) ou diferença. Quando dizemos o
que uma coisa é, também dizemos sempre o que não é; toda deter-
minação, como diz Spinoza, é negação. Referido apenas a si mesmo,
é o mesmo (auto [isto é, hekaston] heautò tauton: “Cada um em si
mesmo é o mesmo”),27 e tudo o que podemos dizer sobre isso na sua
pura identidade é: uma rosa é uma rosa é uma rosa. Mas esse não é
absolutamente o caso se eu, na minha identidade (“sendo uma só”),
me relaciono comigo mesma. Essa coisa curiosa que eu sou não
necessita de nenhuma pluralidade para estabelecer a diferença; ela
carrega a diferença dentro de si mesma quando diz: “Eu sou eu”
Enquanto estou consciente, isto é, consciente de mim mesma, sou
idêntica a mim mesma só para os outros a quem apareço como uma
só e a mesma. Para mim mesma, ao articular esse estar-consciente-
de-mim-mesma, sou inevitavelmente duas-em-um — o que, aliás,
é a razão pela qual a busca da identidade, agora em voga, é vã, e a
nossa moderna crise de identidade só poderia ser resolvida pela
perda da consciência de si. A consciência humana sugere que a dife-
rença e a alteridade, características tão destacadas do mundo das
aparências tal como ele é dado ao homem como seu hábitat entre
uma pluralidade de coisas, são também as próprias condições para
a existência do ego do homem. Pois esse ego, o eu-sou-eu, experi-
menta a diferença na identidade precisamente quando não está
relacionado às coisas que aparecem, mas apenas a si mesmo. Sem
essa divisão original, que Platão mais tarde empregou na sua defi-
nição de pensar como o diálogo silencioso (eme emautõ) entre mim
e mim mesma, o dois-em-um, que Sócrates pressupõe na sua afir-
mação sobre a harmonia comigo mesma, não seria possível.28 A
consciência de si não é o mesmo que o pensamento; mas sem ela o
pensamento seria impossível. O que o pensar realiza no seu proces-
so é a diferença dada na consciência de si.
Para Sócrates, esse dois-em-um significava simplesmente
que, se alguém quisesse pensar, deveria cuidar para que os dois que
travam o diálogo do pensamento estivessem em boa forma, que os
parceiros fossem amigos. É melhor para alguém sofrer o mal do
que fazê-lo, porque ele sempre pode continuar a ser o amigo do
sofredor; quem gostaria de ser o amigo de um assassino e ter de
viver junto com um homicida? Nem mesmo um assassino. Que
tipo de diálogo poderia ter com ele? Exatamente o diálogo que
Shakespeare deixou que Ricardo m travasse consigo mesmo, de-
pois que vários crimes tinham sido cometidos.

What do I fear? Myself? There’s none else by.

Richard loves Richard: that is, I am I.

Is there a murderer here? No. Yes, I am:

Then fly. What from myself? Great reason why —

Lest I revenge. What, myself upon myself?

O no! Alas, I rather hate myself

For hateful deeds committed by myself.

I am a villain. Yet I lie, I am not.

Fool, of thyself speak well. Fool, do not flatter.29

Um encontro semelhante do eu consigo mesmo, nào dramá-


tico, suave e quase inofensivo em comparação, pode ser encontra^
do num dos diálogos socráticos contestados, o Hípias Maior (que,
mesmo não tendo sido escrito por Platão, ainda pode dar um tes-
temunho autêntico de Sócrates). No final, Sócrates diz a Hípias,
que tinha se mostrado um parceiro de cabeça especialmente oca,
“quão ditosamente afortunado” ele é comparado a Sócrates que,
quando vai para casa, é esperado por um sujeito muito antipático
“que sempre [o] interroga, um parente próximo, que vive na
mesma casa” Ao escutar Sócrates declarar as opiniões de Hípias,
ele lhe perguntará “se não se envergonha de si mesmo por falar
sobre um belo modo de vida, quando o questionamento torna evi-
dente que ele nem sequer sabe o significado da palavra ‘beleza’”

(304). Em outras palavras, quando Hípias vai para casa, ele conti-

nua a ser um só; embora certamente não perca a consciência de si,


ele também não fará nada para tornar real a diferença consigo

mesmo. Com Sócrates ou, quanto a isso, com Ricardo m, a história

é diferente. Eles não têm apenas um relacionamento com os

outros, eles têm um relacionamento consigo mesmos. O que


importa aqui é que aquilo que um chama de “o outro indivíduo”, e

que o outro chama de “consciência”, nunca está presente, exceto

quando estão sozinhos. Quando passa da meia-noite e Ricardo

junta-se novamente à companhia de seus amigos, então

Conscience is but a word that cowards use,


Devised at first to keep the strong in awe.30

E até Sócrates, tão atraído pela praça do mercado, deve ir para

casa, onde estará sozinho (alone), a sós (in solitude), para encon-

trar o outro indivíduo.

Escolhi a passagem em Ricardo III porque Shakespeare,

embora use a palavra consciência, não a emprega no modo costu-

meiro. A língua levou um longo tempo para separar a palavra cons-

ciência de si mesmo (consciousness) de consciência (conscience), e

em algumas línguas, por exemplo, em francês, tal separação nunca

aconteceu. A consciência (conscience), como a usamos em ques-

tões morais ou legais, supostamente está sempre presente dentro

de nós, assim como a consciência de nós mesmos (consciousness).

E também cabe a essa consciência (conscience) nosdizeroque fazer

e do que nos arrepender; era a voz de Deus antes de se tornar o

lumen naturale ou a razão prática de Kant. Ao contrário dessa

consciência, o indivíduo de que fala Sócrates foi deixado em casa;

ele o teme, assim como os assassinos em Ricardo III temem a sua

254
consciência — como algo que está ausente. A consciência aparece

como um re-pensar, o tipo de pensamento que é despertado por


ft um crime, como no caso do próprio Ricardo, ou por opiniões não
^fctaminadas, como no caso de Sócrates, ou pelo medo antecipado

desse re-pensar, como no caso dos assassinos contratados em

fàifáicardo III. Essa consciência, ao contrário da voz de Deus dentro

de nós ou do lumen naturale, não fornece prescrições positivas —


Ifyinesmo o daimonion socrático, a sua voz divina, lhe diz apenas o

E que não fazer; nas palavras de Shakespeare, “deixa um homem


cheio de embaraços”. O que leva um homem a temer a sua cons-
f ciência é a antecipação da presença de uma testemunha que o

^Ííguarda apenas se e quando ele vai para casa. O assassino de Shake-

speare diz: “Todo homem que pretende viver bem se esforça [...]
para viver sem ela”, e o sucesso nesse empenho é fácil porque tudo

o que ele tem de fazer é nunca começar o diálogo solitário silencio-


so que chamamos de pensar, nunca ir para casa e examinar as coi-
sas. Essa não é uma questão de maldade ou bondade, assim como

não é uma questão de inteligência ou estupidez. Quem não conhe-

ce a interação entre mim e mim mesma (em que examinamos o


que dizemos e o que fazemos) não se importará em se contradizer,

eisso significa que ele nunca será capaz de prestar contas do que diz

ou faz, nem estará disposto a fazê-lo; tampouco se importará e


cometer algum crime, pois pode estar seguro de que o ato

esquecido no momento seguinte.


O pensar no seu sentido não cognitivo, não especiajftdo

como uma necessidade natural da vida humana, a reaüdEão da

~v (diferença dada na consciência de si mesmo, não é uma gati-

de alguns poucos, mas uma faculdade sempre prese intodo

Edo; por isso mesmo, a incapacidade de pensar nã

tiva” daqueles muitos que carecem de poder cer as a


ibilidade sempre presente de que todos — sem r os
^^Knntistas, os eruditos e outros especialistas em empr tos
intelectuais—evitem aquele diálogo consigo mesmos, cuja possi-

bilidade e importância Sócrates foi o primeiro a descobrir. Não

estávamos interessados aqui na maldade, que a religião e a litera-

tura têm tentado entender, mas no mal; não estávamos interessa-

dos no pecado e nos grandes vilões, que se tornaram os heróis

negativos na literatura e que, geralmente, agiam por inveja e res-

sentimento, mas em todos os que não são maldosos, que não têm

motivos especiais e, por essa razão, são capazes de um mal infinito;

ao contrário do vilão, eles nunca encontram sua mortal meia-

noite.
Para o ego pensante e a sua experiência, a consciência que
“deixa um homem cheio de embaraços” é um efeito colateral. E

permanece uma questão marginal para a sociedade em geral, exce-

to em emergências. Pois o pensar enquanto tal beneficia bem

pouco a sociedade, muito menos do que a sede de conhecimento,

na qual é usado como um instrumento para outros fins. Ele não

cria valores, não descobrirá, de uma vez por todas, o que é “o bem”,

e não confirma, mas antes dissolve as regras de conduta aceitas. A

sua importância política e moral só aparece naqueles raros

momentos da história em que: “As coisas se esboroam; o centro

não consegue se sustentar;/ A mera anarquia é desatada sobre o

mundo”, quando: “Os melhores carecem de toda convicção, en-

quanto os piores/ Estão cheios de intensidade apaixonada”.

Nesses momentos, o pensar deixa de ser uma questão margi-

nal nas questões políticas. Quando todo mundo é arrebatado sem

pensar por aquilo que todos os demais fazem e acreditam, aqueles

que pensam são puxados para fora de seus esconderijos porque a

sua recusa a se juntar ao grupo é visível e, com isso, se torna uma

espécie de ação. 0 elemento purificador do pensar, a maiêutica

socrática, que traz à luz as implicações das opiniões não examina-

das e com isso as destrói—valores, doutrinas, teorias e até convic-

ções —, é político por implicação. Pois essa destruição tem um

256
efeito liberador sobre uma outra faculdade humana» a faculdade

do julgamento» que podemos chamar» com alguma justificação, a


mais política das capacidades espirituais do homem. É a faculdade

de julgar os particulares sem subsumi-los naquelas regras gerais

que podem ser ensinadas e aprendidas até se tornarem hábitos que

podem ser substituídos por outros hábitos e regras.

A faculdade de julgar os particulares (como Kant a desco-


briu), a capacidade de dizer “isto está errado”, “isto é belo” etc., não

é a mesma coisa que a faculdade de pensar. O pensar lida com os

invisíveis, com representações de coisas que estão ausentes; o jul-

gar sempre diz respeito a particulares e a coisas próximas. Mas os

dois estão interligados de um modo semelhante a como a cons-

ciência de si mesmo (consciousness) e a consciência (conscience)

estão interligadas. Se o pensar, o dois-em-um do diálogo silencio-

so, realiza a diferença dentro de nossa identidade como ela é dada

na consciência de si mesmo (consciousness), e desse modo resulta

na consciência como seu subproduto, então o julgar, o subprodu-


to do efeito liberador do pensar, empresta realidade ao pensar,

torna-o manifesto no mundo das aparências» no qual nunca estou

sozinho e sempre ocupado demais para ser capaz de pensar. A

manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento; é a

capacidade de distinguir o certo do errado» o belo do feio. E isso, na,

verdade, pode impedir catástrofes, pelo menos para mim, noí


jjr
raros momentos em que as cartas estão abertas sobre a mesa.31

1971

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