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CONTOS DE BATMAN

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Volume 2

Digitalização e revisão:
ÐØØM™ SCANS

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CONTOS DE BATMAN
VOLUME 2

BATMAN, A MULHER-GATO e todos os personagens contidos neste


livro, seus slogans e equipamentos são marcas registradas da DC
Comics, lnc. Todos os direitos reservados.
Copyright © 1994 DC Comics, Inc.

Arte de capa: Joe DeVito


Textos: Brian M. Thomsen, Robert Weinberg,
Jeff Rovin, Ed Gorman, Gary Cohn
Edição: Martin H, Greenberg

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida por


nenhuma forma ou meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocó-
pia, gravação, armazenagem de informações ou sistema de recupe-
ração de dados, sem permissão por escrito do editor.

ISBN 85-7305-080-2

Abril Jovem

Publicado pela Editora Abril Jovem S.A.


Rua Bela Cintra, 299, CEP 01415-000,
Caixa Postal 2372, São Paulo - SP.
Fundador: VICTOR CIVITA (1907-1990)
Impresso na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A.
Fones (011) 877-1150 e 877-1588.
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próximas a você, ligue para (011) 810-5001, ramais 213 e 244 e
veja como consegui-los.

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Sumário

UMA BIOGRAFIA NÃO-AUTORIZADA


BRIAN M. THOMSEN
PÁGINA 05

CATACUMBAS
ROBERT WEINBERG
PÁGINA 35

UMA NOITE NA ÓPERA


JEFF ROVIN
PÁGINA 93

LÁGRIMAS DE UMA MARIPOSA


ED GORMAN
PÁGINA 151

CAÇA MORTAL
GARY COHN
PÁGINA 183

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Uma Biografia Não-Autorizada
BRIAN M. THOMSEN
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“Claro que vi as manchetes, Ligeirinho”,


disse a ruiva escultural. “Aquele vagabundo
não poderia escolher um momento pior pra
desistir. E ainda estamos a pelo menos doze
meses do lançamento.”
“E não é só isso, Billie. Neal e Niederman
cancelaram o contrato e querem o dinheiro de
volta”, disse Fred “Ligeirinho” Fedderman no
telefone de seu automóvel. Ele era o maior
agente literário de Gotham City. “Estão invo-
cando as cláusulas 13(c), 19(b) e toda a seção
20. Você garantiu que o livro, a respeito de
uma celebridade viva, seria oportuno e com
um inegável apelo comercial. Mas já está seis
meses atrasado desde a última prorrogação, o
general Southern morreu e, pra piorar ainda
mais, vendeu um manuscrito completo de sua
autobiografia no leito de morte, o qual — você
já adivinhou — N&N vão publicar imediata-
mente. Parece que ele dá mais nomes e lava
mais roupa suja do que se esperava, inclusive
falando sobre seus casos com duas primeiras-

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damas e uma primeira-ministra. Desculpe,
querida, mas a cláusula alegada é válida e
você deve a eles um milhão. E o que já recebi
de comissão não pode ser devolvido, portanto
você deve isso pra eles também. Depois nos
falamos, garota.”
Billie Bailey, a “Biógrafa Blitzkrieg”, desligou
o telefone. Ela estava encrencada e não tinha
um milhão de dólares para pagar aquela dívi-
da.
Billie Bailey havia ganho esse apelido de-
pois de escrever quatro biografias de sucesso,
durante os doze anos desde que viera para
Gotham City. Todas eram pouco acadêmicas e
ricas em indiscrições, exatamente o que o pú-
blico desejava. Alfonsie, uma exposição do
cantor preferido de Gotham, foi refutada publi-
camente de costa a costa, provocando inclusi-
ve um suposto contrato da Máfia contra a au-
tora do livro. O público não se importou e o li-
vro vendeu milhões de exemplares. Pastor da
Grana, sobre o rei do televangelismo; Rainha
das Telas, revelando a vida privada do galã fa-
vorito de Hollywood; e A Fotógrafa Fácil, a
respeito de Vicki Vale, as biografias seguiram-
se em rápida sucessão, cada uma delas mere-
cendo um adiantamento maior de diferentes

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editoras. Infelizmente, a despeito do aparente
sucesso dos livros, os honorários legais, custos
de promoção e um retorno cada vez maior de
exemplares não vendidos fizeram com que ne-
nhum de seus editores chegasse a ganhar di-
nheiro e, cedo ou tarde, os aspectos mais sen-
sacionais de cada biografia foram desmentidos
e classificados como resultado de simples en-
ganos, ou de erros do pesquisador.
A imagem de Bailey ainda estava em alta,
mas ela ficava cada vez menos confiável aos
olhos das grandes editoras de Gotham. Ela es-
tava certa de que O Repouso do General resol-
veria todos esses problemas, bem como todas
as suas dívidas, gratificações e honorários de
advogados que estavam começando a sair de
controle. Agora, até mesmo O Repouso do Ge-
neral deixara de ser viável. Billie estava esgo-
tando as editoras e tinha de fazer algo a res-
peito rapidamente.

Billie dispensou Ligeirinho quando ele ficou


ao lado da Neal & Niederman contra ela. (O
que realmente a magoou foi ficar sabendo que
ele era também o agente da gravação da au-

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tobiografia de Southern.) Seus advogados as-
seguraram que poderiam adiar o pagamento
de suas dívidas por vários meses, desde que
seus honorários fossem pagos.
Ela precisava de um novo contrato e, para
isso, tinha de arranjar um tema quente. Talvez
surgisse algo na festa beneficente de hoje à
noite para o Fundo Literário de Gotham.
Graças a Deus seu nome ainda constava na
lista dos computadores da N&N, pensou Billie.
Algumas horas depois, tudo levava a crer
que teria de resignar-se a mais um tedioso
acontecimento de favores e caridades. Seu
rosto já começava a doer de tanto sorrir e
quase não conseguia mais falar quando surgia
o assunto da N&N.
Billie estava para sair discretamente por
uma porta lateral quando seu braço foi pego
por uma mulher pequena, de quarenta anos e
que era famosa por jamais perder uma oportu-
nidade de arranjar um novo cliente para sua
agência.
“Oh, Billie”, disse Maura Most, arrastando-a
para dentro, “tem alguém aqui que você preci-
sa conhecer. Ouvi dizer que ele tem uma que-
da por ruivas esculturais.”
A destinação das duas parecia ser um play-

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boy diabolicamente atraente e de aparência
entediada que Billie achou estranhamente fa-
miliar. Provavelmente das páginas sociais ou
coisa assim.
“Ora, ora”, pensou, “conhecer um playboy
bonitão não poderia piorar uma noite até en-
tão decepcionante. Hora de ligar o charme.”
“Billie, quero lhe apresentar Bruce. Bruce,
Billie”, tagarelou Maura. Sem respirar, ela
acrescentou: “Volto num minuto. Um de meus
clientes está conversando com Fred Fedder-
man e não podemos permitir isso, não é?” e
partiu rapidamente antes que alguém pudesse
responder.
Billie voltou sua atenção para o playboy
chamado Bruce e falou com seu sorriso mais
convidativo: “Prazer em conhecê-lo, Bruce.”
O playboy pareceu levemente surpreso:
“Ora, você é Billie Bailey, não é?”
“Isso mesmo”, concordou. Billie já tinha en-
contrado tipos assim antes. Provavelmente,
era tímido diante de celebridades.
“E nunca nos encontramos antes?”
“Creio que não”, respondeu ela, intrigada
com a pergunta. Tinha certeza de que jamais
esqueceria um pedaço de homem como aque-
le e depois acrescentou de maneira encanta-

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dora: “Mas existe sempre uma primeira vez
para qualquer coisa.”
“Eu tinha certeza de termos nos encontra-
do antes”, insistiu Bruce. “Afinal, de que outra
forma eu poderia ter sido mencionado nos
agradecimentos do seu livro sobre Vicki Vale?”
“Não compreendo”, disse Billie, sentindo-se
cada vez mais desconfortável.
“Eu sou Bruce Wayne”, falou, “e não gosto
de ser citado como fonte de uma obra de fic-
ção espúria disfarçada de biografia. Você tem
sorte, srta. Bailey, por Vicki ter pedido a todos
os amigos que deixassem a coisa morrer para
não lhe dar mais notoriedade com nossos pro-
testos. Agora, se me dá licença, tenho certeza
que aqui existem pessoas mais íntegras com
quem eu possa conversar. Boa noite, srta. Bai-
ley.” Virou-se e saiu andando em direção ao
comissário Gordon e sua filha, Bárbara.
Billie xingou-o em voz baixa e jurou tentar
manter-se mais informada a respeito de seus
alegados contatos. Ela nunca tivera facilidade
em ligar nomes com rostos.

O resto da noite passou sem nenhum outro

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grande incidente, embora Billie fosse constan-
temente emboscada em suas tentativas de li-
vrar-se dos deprimidos que frequentavam a
cena social. Sua sorte começou a mudar a ca-
minho de casa.
Depois de despedir-se, fez uma visita pre-
ventiva ao toalete, onde ouviu duas colunáveis
discutindo um recente assalto e com roubo de
joias.
“Foi horrível”, ouviu Billie de onde estava,
“todas as joias que meu segundo marido me
deu foram levadas. Ou será que foi do meu
terceiro marido?”
“E a polícia tem alguma ideia de quem
pode ter feito isso?”, perguntou a outra.
“Nenhuma”, retrucou a primeira. “Embora
eu desconfie que deve ter sido aquela que to-
dos chamam de Mulher-Gato. Sinceramente,
ela se tornou um tormento para todos os privi-
legiados de Gotham City e isso não é justo.”
Quando as duas colunáveis retornaram
para seus pares, Billie esgueirou-se de seu es-
conderijo e pensou: Mulher-Gato, a Biografia
Não-Autorizada de uma Criminosa.
Era um perfeito best-seller... e uma crimi-
nosa teria muita dificuldade para tentar pro-
cessar qualquer pessoa.

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Deliciada, Billie saiu do toalete e trombou
com um sujeito alto e aloprado cujo luxuoso
smoking não ajudava a disfarçar sua falta de
classe.
“Com licença”, falou, tentando se retirar
graciosamente. E já estava para se afastar
quando o reconheceu: “Espere um pouco,
você não é Maurice Hoffman, presidente da
Trendwide Books?”
“Exatamente”, respondeu ele.
“Eu sou Billie Bailey”, disse ela, “e tenho
um livro para você.”

Foi marcado um encontro na manhã se-


guinte entre ela, Hoffman, seu segundo em
comando e o chefe da divisão de livros da
Trendwide. Seu advogado, os advogados de-
les, contadores e uma secretária também esta-
vam presentes.
O triunvirato que faria o julgamento de seu
novo projeto — e aliás também de seu futuro
— fez com que se lembrasse dos três maca-
quinhos das histórias: ver-nenhum-mal, ouvir-
nenhum-mal e falar-nenhum-mal.
Maurice Hoffman, chamado de Maury tanto

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por seus amigos como por seus detratores, era
o “ver-nenhum-mal”. Dizia-se que tudo que ele
sabia sobre literatura viera da leitura das ore-
lhas empoeiradas dos livros que seu pai levava
para casa. Ele sucedera ao pai como presiden-
te da Trendwide e mesmo seus inimigos con-
cordavam que o que lhe faltava em inteligên-
cia, experiência e liderança, era compensado
por entusiasmo e boa vontade em estado
puro. Seu desconsiderado otimismo havia leva-
do sua empresa a comprar numerosos proje-
tos de grande potencial aparente e pouca pro-
va de desempenho real. Ele não via nenhum
mal e por essa razão era o alvo perfeito para
os encantos de Billie.
A sua esquerda, e no centro do triunvirato,
estava Eva Evans, vice-presidente executiva e
editora da Trendwide Books. Gostava de se ver
como o poder atrás do trono e achava-se uma
editora de mão cheia. Na verdade, sua mão-
cheia consistia de um aperto de mão e a ajuda
de um editor júnior para fazer o verdadeiro
trabalho.
Dessa forma, ela escolhia somente vence-
dores, pois quaisquer perdedores eram dispen-
sados como resultado dos erros cometidos por
outra pessoa. Ela nunca ouvia nenhum asses-

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sor presente e tinha certeza de que era infalí-
vel. Billie viu-a confabulando com os advoga-
dos e contadores, mas não teve medo. Eva era
o “ouvir-nenhum-mal”.
Finalmente, à sua esquerda estava Martin
Brothers, o diretor de livros da Trendwide. Se
Maury só queria agradar ao seu pai e Eva só
queria dominar o mundo, ou, pelo menos, o
ramo da publicação de livros, Marty queria
apenas ser agradável e não ouvir gritos de
ninguém. Ele próprio admitia não ter opinião,
a não ser a que seus superiores desejassem
que tivesse. Havia chegado onde estava copi-
ando as fórmulas de sucesso dos concorrentes
e fazendo o que lhe mandavam. Se Maury e
Eva dissessem que era um sucesso, longe dele
discordar daquela afirmação. Martin era o “fa-
lar-nenhum-mal” e Billie sabia que não tinha
nada a temer da parte dele.
A despeito de tudo que Maury, Eva e Marty
acreditavam, Billie Bailey sabia que estava ras-
pando o fundo do tacho das maiores editoras
de Gotham City. Estava certa de que seriam
facilmente impressionados por sua lista de li-
vros de sucesso e suficientemente desinforma-
dos para estarem cientes de seus problemas.
Billie tinha uma e apenas uma única chan-

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ce. Ou ela saía do escritório da Trendwide Bo-
oks com um contrato, ou estava liquidada.
Com o sorriso vencedor e o tom gracioso
com que ganhara acesso aos bares, quartos e
gabinetes dos mais famosos, ela começou seu
discurso.
“Senhores”, disse, criando suas fantasias
enquanto falava, “estou contente por ser este
meu primeiro encontro, mas, infelizmente,
como tenho quatro outras editoras para visitar
hoje, antes de fechar o negócio, vou tentar ser
sucinta. Dispensei Fred Fedderman como meu
agente e vou cuidar das negociações do meu
próximo projeto sozinha. Está isento de qual-
quer outra proposta anterior e meu preço é de
três milhões de dólares, com um milhão e
meio na assinatura do contrato para cobrir
despesas de pesquisa. Acho que é justo, dado
o grande potencial comercial de minha próxi-
ma biografia.”
“Que é sobre quem?”, perguntou Eva, que
acreditava firmemente que tempo era dinhei-
ro.
“Assim como Vicki Vale, o tema de meu
próximo livro é uma mulher presente nas man-
chetes de todos os jornais de Gotham City. As
mulheres temem por seus objetos de valor,

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mas gostariam de ser como ela. Os homens
sentem-se constrangidos pelá sua audácia e
criam fantasias com ela. Parte mulher, parte
felina, é a senhora do mistério e da paixão.
Sim, o tema do meu próximo livro é a dama
da noite de Gotham City, a Mulher-Gato.”
“Anos de pesquisa deram-me acesso à sua
história. Pela primeira vez seus leitores vão ver
os eventos que moldaram sua vida, as paixões
que a guiaram, as metas que a inspiraram, os
instintos que a protegeram. Mulher-Gato: Uma
Biografia Não-Autorizada, o mais recente su-
cesso de Billie Bailey. Por três milhões de dóla-
res vocês podem ter isso tudo.”
O triunvirato ficou em silêncio. Estava pres-
tes a morder a isca. Billie atiçou-os ainda mais
com um final provocante. “Agora, se me des-
culparem, tenho que ir até a cidade para meu
próximo encontro.”
Maury ergueu a mão para chamar sua
atenção, dizendo: “Billie, estou certo em pre-
sumir que não proporá esse projeto a nenhu-
ma outra editora se concordarmos com o seu
preço?”
“Perfeitamente”, ela respondeu, sabendo
que estava prestes a dar uma grande tacada
depois de fingir uma certa impaciência em re-

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lação ao seu fictício próximo encontro.
“Será que poderia nos dar um minuto para
conversarmos?”, perguntou Eva delicadamen-
te.
“Claro, mas só um minuto. Não quero man-
ter a N&N esperando”, respondeu, fechando a
porta atrás de si.
Quando tinha contado até sessenta, Eva e
Companhia estavam chamando-a de volta.
Com um forte aperto de mão e um sorriso de
vendedor, o negócio estava fechado pelo preço
combinado.

Os contratos foram assinados no dia se-


guinte e quando o cheque de um milhão e
meio de dólares foi compensado, uma semana
depois, Billie estava solvente, com todas as
dívidas pagas e não tinha ainda colocado uma
linha no papel, nem aberto um livro para pes-
quisar, ou feito uma única entrevista.
Para Billie Bailey, a vida era bela outra vez.
Agora só precisava escrever e tinha dezoito
meses para fazer isso.

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Passaram-se quinze meses.

Como em todos os seus projetos anterio-


res, Billie havia feito seus editores assinarem
um acordo de confiança que permitia a divul-
gação do negócio de três milhões de dólares,
mas sem autorização para revelar o assunto
do livro. Assim, eia podia pesquisar sem cha-
mar atenção e sem o temor de processos na
justiça.
Permitia também que faturasse por fora
vendendo um vazamento exclusivo, expondo
seu tema e fazendo algumas revelações sur-
preendentes para um dos tabloides de Gotham
City. Essa venda era feita às cegas e ajudava a
criar expectativa antes do livro ser lançado.
Como de hábito, tinha conseguido negociar
uma boa quantia para o próximo vazamento...
mas infelizmente os quinze meses não haviam
ainda revelado nada sobre a felina conhecida
como Mulher-Gato. Por isso. como já fizera an-
tes. Billie ligou uma pilha de materiais periféri-
cos com uns poucos fatos desgastados e di-
versas mentiras totais, e voilà: um vazamento
exclusivo na primeira página de um dos três

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tabloides preferidos de Gotham City.
Billie não tinha nada a temer. Quem já ou-
viu falar de um criminoso procurado surgir de
repente para limpar seu nome?
Ao menos era o que ela pensava.

Primeira página, Gotham City Post do dia 1


de abril de 1992:

DE UM EXCLUSIVO PARA O GOTHAM CITY


POST:
NOVO LIVRO DE BILLIE BAILEY
MULHER-GATO: UMA BIOGRAFIA NÃO-
AUTORIZADA

Uma fonte confidencial revelou ontem ao


Gotham City Post que o tema da biografia de
três milhões de dólares, negociada entre a
Trendwide Books e Billie Bailey. será a famosa
ladra de joias, a conhecida Mulher-Gato.
Entre as surpreendentes revelações conti-
das no livro, está a educação de debutante da
Mulher-Gato, seu papel de aluna/escrava se-
xual do antigo caçador Thomas Blake, tam-
bém conhecido como o gênio do crime Ho-
mem-Gato, de quem ela adotou o nome, seus
casos amorosos com figuras conhecidas da

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alta sociedade de Gotham, seus fetiches ao se
vestir e sua longa relação erótica com o Cava-
leiro das Trevas.
Bailey diz ter passado muitos anos estu-
dando relatórios e perfis psicológicos da felina
criminosa. A autora de quatro biografias que
foram sucessos de venda — incluindo títulos
como Pastor da Grana, Rainha das Teias e A
Fotógrafa Fácil, a respeito de Vicki Vale, antiga
funcionária deste jornal — preferiu não decla-
rar nada por enquanto, mas admitiu que o as-
sunto era interessante.
Sua editora, a Trendwide Books, também
não quis fazer comentários.
O próximo livro de Bailey deveria ter sido O
Repouso do General, a vida do general Sou-
thern, herói da Guerra do Deserto, cuja morte
prematura adiou o projeto indefinidamente.
Quando foi anunciado o valor de três mi-
lhões de dólares pelo seu novo livro, este jor-
nal veiculou um anúncio de página inteira que
dizia BILLIE BAILEY POR FAVOR VÁ PARA
CASA.
O anúncio foi pago pelas pessoas biografa-
das em seus últimos quatro livros.
Como era de se esperar, a Mulher-Gato não
foi encontrada para comentar a notícia.

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Até o momento, o jornal não foi informado
se a verdadeira identidade da Mulher-Gato
será revelada nessa biografia, e por enquanto
só nos resta esperar.
O livro deve estar nas livrarias no próximo
verão.

A reação em Gotham City foi de perplexida-


de.

Na Trendwide Books, três executivos não


paravam de se congratular e de fazer contas
com os futuros lucros do seu novo sucesso de
vendas, embora nenhum deles tivesse posto
os olhos nos originais que deviam ser publica-
dos em apenas três meses.

Na Neal & Niederman, a antiga editora de


Bailey foi despedida por haver deixado esse
futuro best-seller escapar entre os dedos, em-
bora o último livro de Bailey houvesse sido
cancelado por decisão unânime de seus três
patrões. Neal, Niederman e Schwartz.

21
m

Na Mansão Wayne, Bruce Wayne não esta-


va contente.
“Sabe Alfred”, comentou com seu leal confi-
dente, “desta vez ela foi longe demais. É
péssimo que esteja vendendo mentiras como
verdades de novo, mas agora ela está brincan-
do com fogo.”
“Talvez os jornais estejam enganados”, su-
geriu Alfred. “Afinal, ela não admite que o as-
sunto desse livro seja a Mulher-Gato. A fonte
confidencial pode estar mentindo.”
“É ela a fonte confidencial", respondeu Bru-
ce. “É um velho truque dos tabloides para ge-
rar manchetes. Só espero que Bailey não te-
nha enfiado o nariz onde não foi chamada.”
“O senhor está se referindo à Irmã Magda-
lene?”, perguntou Alfred.
“Exatamente”, replicou Bruce. “Talvez o
Batman deva vigiar a senhorita Bailey de per-
to.”
“E lhe dar uma lição, senhor?”
“Talvez.”

No apartamento de um policial recém-


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demitido, Jake Madison sorriu pela primeira
vez desde que fora expulso da corporação por
aceitar suborno. Ele folheava uma pasta de fo-
tocópias.
“Deve ser meu dia de sorte”, murmurou.

Em outro apartamento no lado perigoso da


cidade, Selina Kyle amassou seu Gotham City
Post.
“Mentiras!”, cuspiu. “Ninguém conta menti-
ras a respeito da Mulher-Gato e fica numa
boa. Ninguém conta a história da Mulher-Gato
e fica numa boa. O Homem-Gato era um vaga-
bundo arrogante. Talvez ela esteja mentindo
pra me despistar. Bem, Mulher-Gato: Uma Bio-
grafia Não-Autorizada só será publicada por
cima do meu cadáver.”
Selina apanhou o uniforme de Mulher-Gato
e começou a se preparar para seguir os ras-
tros de Billie Bailey.

Billie estava com outro problema. Eva, da


Trendwide, tinha ligado querendo saber se po-
dia antecipar a data de entrega dos originais.
23
Havia uma reunião marcada para segunda-fei-
ra e Billie ainda não arranjara mentiras sufici-
entes para terminar o livro.
O telefone tocou novamente.
Billie teve a esperança de que fosse Eva de
novo, adiando a reunião.
Não era.
“É Billie Bailey?”
“Sim”, respondeu hesitante. “Quem fala?”
“Se você quiser o arquivo da polícia a res-
peito da Mulher-Gato, traga cem mil dólares
até a Biblioteca Pública de Gotham hoje à tar-
de, um pouco antes de fechar. Estarei na sala
de leitura segurando o Sports Illustrated. Não
se atrase.”
Desligou.
Cem mil era tudo que lhe restava do último
livro, mas se o arquivo da polícia tivesse qual-
quer coisa utilizável, poderia valer a pena.
Poderia ter até o verdadeiro nome da Mu-
lher-Gato.
Valia o risco. Se saísse agora, seria o tempo
exato de passar no banco e chegar à bibliote-
ca.
Billie pegou o casaco e saiu apressada.

24
Billie chegou à Biblioteca Pública de Go-
tham dez minutos antes da hora do fechamen-
to. Passou um minuto conversando com o se-
gurança da porta da frente e outro com o que
ficava perto dos elevadores antes de entrar na
sala de leitura. Os dois guardas pareceram
gostar que ela se dignasse a flertar com eles e
estavam próximos o suficiente para socorrê-la,
se as coisas ficassem feias. O dinheiro estava
no bolso de dentro do casaco.
A sala de leitura estava vazia, exceto pelo
sujeito lendo o Sports. Billie respirou fundo e
aproximou-se da mesa onde ele estava senta-
do.
“Com licença”, pediu, “você é o...”
“É, sou o sujeito que ligou pra você. Reco-
nheci você pela foto da capa do seu livro.
Trouxe a grana?”
A resposta mais parecia uma rajada de me-
tralhadora.
“Trouxe. Mas primeiro quero ver o que está
vendendo.”
“Claro, claro”, respondeu. “É uma cópia do
arquivo confidencial da central de polícia. Nós
conseguimos levantar as impressões digitais
de um dos roubos, onde ela perdeu uma das

25
luvas numa luta com o Batman. Pesquisamos
nos nossos arquivos e ela estava fichada. Não
é nenhuma novata, mas tem uma história inte-
ressante.”
Billie mal conseguia se conter de felicidade.
Estava tudo ali, na hora certa para a reunião
de segunda-feira.
Tentando parecer fria, ela perguntou:
“Como conseguiu isso?”
“É a minha aposentadoria. Um tira é pego
fazendo uma besteira e bum, não tem mais
aposentadoria. Eu sabia que esse arquivo ia
ser útil um dia. Onde está o dinheiro?”
Ela pôs a mão no bolso do casaco e tirou
um envelope, sem largar o dossiê nem por um
segundo. “Aqui.”
Ele nem contou o dinheiro. “Muito obriga-
do, madame, e não se esqueça que tenho o
seu número”, falou enquanto saía da sala. Pa-
rou um instante e disse: “Vejo você na lista
dos mais vendidos.”
Na saída, passou por um guarda que vinha
avisar sobre a hora de fechar.
Billie colocou a pasta embaixo do casaco e
saiu da biblioteca apressadamente.

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Jake Madison mal podia esperar até chegar
em casa e contar o dinheiro, por isso pegou
um atalho por uma das muitas ruelas escuras
de Gotham City. Além de estar com pressa, o
contentamento com o próprio sucesso o dei-
xou descuidado.
Por isso, não viu quando o trombadão com
um cano de ferro na mão arrebentou sua ca-
beça, tampouco notou os dois policiais que ti-
nham entrado na ruela para conversar.
Os policiais Valerie Hobson e Marsh Rogers
prenderam o trombadão no ato, mas era tarde
demais para Madison, que morreu antes da
ambulância chegar.
O envelope com o dinheiro acabou sendo
doado para o Fundo de Órfãos e Viúvas do De-
partamento de Polícia de Gotham City.
Ninguém nunca descobriu como o recém-
demitido policial Madison conseguira tanto di-
nheiro, mas também ninguém estava muito in-
teressado nisso.
O dinheiro estava sendo bem empregado,
portanto quem se importaria?
Quando Madison morreu, era uma pessoa
só, não tinha parentes.

27
m

Billie passou o sábado e o domingo inteiros


lendo os arquivos que havia adquirido. Os fa-
tos da vida da Mulher-Gato eram melhores do
que qualquer ficção que poderia imaginar.
As páginas em seu poder informavam que
seu nome verdadeiro era Selina Kyle e que já
havia sido presa várias vezes acusada de pros-
tituição. Sua parente mais próxima era uma
freira chamada Irmã Magdalene. Uma freira,
meu Deus do céu!
Havia também algumas anotações de al-
guns anos atrás, feitas por um detetive cha-
mado Flannery e um outro sujeito de nome
Grant, que dava aulas de luta para ela. E algo
a respeito de um tipo chamado Wildcat. Não
era muito diferente de Homem-Gato, pensou
Billie. Qualquer coisa, digo que foi um peque-
no erro de pesquisa.
Havia numerosas anotações ligando-a à
morte de um cafetão chamado Stan, mas ne-
nhuma conclusão definitiva.
O arquivo era uma verdadeira mina de
ouro.
Billie num instante bolou a história da me-
nina pobre que veio do interior e foi corrompi-

28
da nas ruas de Gotham City. Depois de sofrer
todas as degradações possíveis e imagináveis,
finalmente resolve se vingar da sociedade que
permanece indiferente enquanto ela e outros
são obrigados a viver nos antros de pecado e
humilhação que existem nas ruas da cidade
grande.
Havia também o lado da freira, que podia
ser usado, isso para não falar no crime de pai-
xão envolvendo aquele tal de Stan.
Foi só na madrugada de segunda-feira que
ela finalmente fechou a pasta que levaria à
reunião da Trendwide Books dentro de poucas
horas.
Quando levantou os olhos para ver as ho-
ras, viu a felina vestida de couro, a famosa
Mulher-Gato, bem à sua frente, com as garras
afiadas vindo em direção ao seu pescoço.
Billie estivera tão envolvida no trabalho que
nem tinha ouvido quando forçaram o trinco da
janela.

Billie afastou a cadeira para fora do alcance


daquelas garras mortais. Fingindo coragem,
exclamou: “Mulher-Gato, sinto muito. Não ouvi

29
você entrar.”
“Ah, claro. Tenho certeza que teria me re-
cebido na porta se soubesse que viria”, ronro-
nou.
“Mas é claro! As entrevistas são importan-
tes em uma biografia equilibrada”, respondeu
Billie, afastando-se com a cadeira o mais de-
pressa possível.
“Não vai haver nenhuma biografia”, retor-
nou a Mulher-Gato. “Tudo o que você fez foi
juntar um monte de mentiras. Como se atreve
a me difamar?!”
“O que saiu no Post foi só uma pista falsa
para atrair as pessoas e... funcionar como um
convite a esse encontro”, retrucou Billie, pen-
sando rápido. “Eu sei a verdade, mas quero
que exponha o seu lado. Quero mostrar ao
mundo o que Gotham City fez com você...” —
fez uma pausa para aumentar o efeito —
“...Selina.”
A Mulher-Gato ficou furiosa. “Você sabe!”,
gritou.
“Claro”, respondeu Billie, aterrorizada.
O plano de Selina era apenas assustá-la.
Mas agora só existia uma maneira de prote-
ger-se e à sua irmã.
Billie Bailey tinha que morrer.

30
A Mulher-Gato aproximou-se, com as gar-
ras afiadas em posição de ataque.

Caçador e caça pararam momentaneamen-


te, quando uma sombra voou através das por-
tas que davam para o terraço e pousou na
sala.
Era Batman.
Billie aproveitou-se da distração para sair
da posição em que estava e encolher-se num
canto.
“Mulher-Gato, não faça nada precipitado.
Sei que é uma ladra, mas não acredito que
seja uma assassina fria”, disse o Cavaleiro das
Trevas, estendendo sua mão para a Mulher-
Gato.
“Existem pessoas inocentes que têm de ser
protegidas de lixos como ela”, respondeu a
Mulher-Gato, pegando a mão que ele oferecia,
num gesto de cumplicidade.
“Pois garanto que não vai acontecer nada.
Seus segredos e os de sua irmã estarão a sal-
vo da pena venenosa da senhorita Bailey. Pro-
meto.”
“Providencie isso, Batman”, falou a Mulher-

31
Gato, “ou eu volto aqui e rasgo essa mulher.”
Dizendo isso, a Mulher-Gato saiu pelo terra-
ço e desapareceu na noite de Gotham.

Batman ofereceu a mão e ajudou Billie a le-


vantar-se. “Espero que tenha aprendido a li-
ção”, comentou. “Na próxima vez, diga que é
ficção. No fundo, é isso mesmo que você faz.
Virou-se e andou até a porta do terraço.
“Obrigada, Batman”, disse Billie. “Eu apren-
di a lição.”

Billie, é claro, não tinha a menor intenção


de abandonar o projeto.
Se as coisas ficarem feias, pensou, posso
arrumar um guarda-costas.
O dia estava amanhecendo. Billie mal teve
tempo de tomar um banho e trocar de roupa
antes de chamar um táxi para levá-la à sua
reunião com Eva no café da manhã.
A última coisa que fez foi pegar a valiosa
pasta com toda sua árdua pesquisa.
E nem notou que estava ligeiramente mais
leve do que antes.
32
m

Sentada no banco de trás do automóvel,


Billie resolveu dar uma última olhada em suas
anotações.
Abrindo a pasta, finalmente percebeu que
havia algo errado.
Preso dentro da pasta com um clipe havia
um bilhete dizendo: Billie, eu também sou um
ótimo pesquisador. Aqui estão algumas anota-
ções para seus arquivos.
Estava assinado Batman.
Em lugar dos arquivos da polícia, havia um
dossiê sobre uma certa Willie May Balnick, re-
gistrando sua expulsão do Colégio de Midway,
seus dois abortos, a demissão do Midway He-
rald por inventar fontes inexistentes e até bo-
letins de ocorrência de duas prisões por prosti-
tuição, de que conseguira escapar, quando tra-
balhava numa agência de acompanhantes.
Como ele tinha conseguido descobrir que
seu verdadeiro nome era Willie May Balnick?
As implicações eram claras.
Alguns segredos não devem ser revelados.

33
Billie depositou o dossiê numa lata de lixo e
entrou no restaurante onde Eva e Maury a es-
peravam.
Reunindo coragem e exibindo o sorriso de
vencedora que já a havia salvo mais de uma
vez, Billie ocupou seu lugar na mesa, dizendo:
“Sabe, tenho a impressão que o mercado
de biografias não-autorizadas está em queda
mas tenho uma ótima ideia para uma novela.
É sobre uma glamourosa escritora, imagino
assim uma mistura de...”
Dez minutos depois, ela sabia que tinha fis-
gado ambos.

34
Catacumbas
ROBERT WEINBERG
m

A mente de um louco é como as catacum-


bas — um labirinto retorcido de corredores es-
curos sempre indo para baixo.

Justin Geoffrey

1.

O comissário James Gordon balançou a ca-


beça com nojo. Durante todos os seus anos de
polícia havia visto sua quota de crimes bizar-
ros, mas o desta noite não podia ser compara-
do a nenhum dos anteriores. Não era apenas a
brutalidade dos assassinatos. A morte nunca
era uma coisa bonita. Era a ferocidade dos cri-
mes que o incomodava.
Riordan, um dos homens da equipe de in-
vestigação, aproximou-se. Era um irlandês rui-
vo e atarracado com olhar brincalhão. Mas não
naquela noite.
“Seis cachorros, comissário”, informou, res-
pirando fundo como se quisesse que o cheiro

35
de sangue saísse de suas narinas. “Pelo menos
é o que a gente imagina. Só vai ser possível
ter certeza quando acordarmos alguém do ca-
nil.
Gordon se arrepiou. Seis dobermans, os
cães de ataque mais ferozes e sanguinários
que existem. Mortos. Outro arrepio enquanto
se corrigia mentalmente. Não apenas mortos.
Foram estraçalhados, cortados em pedacinhos,
como se tivessem sido pegos por alguma fera
monstruosa. Massacrados.
“As joias?” — perguntou.
“Sumiram”, respondeu Riordan. “Como nas
outras lojas. O vidro quebrado, todas as pe-
dras roubadas.”
“Nenhuma pista”, murmurou Gordon, dizen-
do o óbvio. “O ladrão, seja quem... ou o que
for, é inteligente demais para isso.”
“Os rapazes das digitais estão trabalhando
nos balcões. Mas não tivemos muita sorte, até
agora.”
“Nem vamos ter esta noite”, comentou Gor-
don. “Esse maníaco não comete erros. Pelo
menos não erros imbecis.”
Tirando um pacotinho de chicletes do bolso
do paletó, Gordon colocou uma porção deles
na boca. Mascar chiclete era um péssimo hábi-

36
to. Parecia idiota e era ruim para os dentes.
Pretendia parar com aquilo. Um dia desses.
Não hoje. Pelo menos não enquanto um la-
drão de joias homicida ameaçasse Gotham
City.
Os crimes haviam começado duas semanas
atrás. O primeiro não chamou muita atenção.
Em uma cidade infestada de crimes como Go-
tham, um roubo de joalheria no centro da ci-
dade à meia-noite não era nada extraordiná-
rio. Que o ladrão tivesse conseguido passar
pelo elaborado sistema de alarmes da loja pro-
vocou algum espanto. Pouco. Para a polícia,
parecia um serviço de alguém da própria loja.
Não foi a mesma coisa com o segundo.
Como todos os roubos, esse também foi no
centro, onde moram os endinheirados. A Joa-
lheria Flashman tinha alguns dos melhores di-
amantes da cidade. Além de tecnologia de
ponta, os proprietários empregavam dois se-
guranças noturnos. Os dois ex-tiras eram pro-
fissionais durões, de confiança, capazes de li-
dar com qualquer situação.
Pelo menos até aquela noite.
O ladrão atacou entre a meia-noite e o
amanhecer. Como um fantasma, passou por
todos os alarmes e sensores com facilidade. A

37
polícia não encontrou nenhum sinal de arrom-
bamento. A única marca de sua presença
eram as pedras roubadas. E os cadáveres dos
dois vigias.
Gordon respirou fundo quando se lembrou
dos corpos. Ambos haviam sido horrivelmente
mutilados pelo criminoso.
Um dos vigias tinha sido estripado, seus ór-
gãos internos espalhados pela loja. A polícia o
descobriu deitado de bruços sobre as ruínas
dos próprios intestinos. A expressão de horror
no rosto do morto havia chocado até os inves-
tigadores mais calejados.
O destino do segundo vigia deixou muito
claro para o comissário que estava lidando
com um maníaco homicida. O relatório da au-
tópsia era horrendo.
Inconsciente depois do ataque, o guarda
não representava nenhuma ameaça. O desco-
nhecido poderia ter ido embora com as joias,
sem mais violência.
Ao contrário, havia cortado o pescoço e o
rosto do guarda em tiras. Não sobrara pratica-
mente nada de seu rosto que pudesse ser
identificado. O pior de tudo é que várias par-
tes do corpo indicavam que, depois de matá-
lo, o assassino havia devorado partes dele.

38
Houve mais crimes depois disso. Todos en-
volviam joias ou pedras raras. Outro vigia no-
turno fora morto da mesma forma macabra
que seus antecessores. Esta noite havia sido
seis cães de guarda, retalhados em pedaços,
seus membros espalhados pela Loja de Depar-
tamentos Beaumont.
“Você verificou o Coringa?” — perguntou
Gordon, balançando a cabeça para aclarar a
memória.
“Está trancado a sete chaves no Asilo Ark-
ham”, respondeu Riordan. “Eu me assegurei
disso assim que recebi a chamada. Exatamen-
te como o senhor me instruiu. Não há nenhu-
ma possibilidade desse maluco ter cometido os
crimes.”
“Eu sei, eu sei”, resmungou o comissário
aborrecido. “Além disso, o Coringa sempre tem
um motivo para matar, por mais pervertido
que seja. Esses assassinatos são tão... sem
sentido!”
“É isso, comissário”, comentou Riordan.
“Nada disso faz sentido. O senhor sabe o que
as pessoas andam falando nas ruas?”
“Essa bobagem de lobisomem”, grunhiu
Gordon, com uma expressão de desgosto. “Es-
quece, Riordan. Nenhuma criatura do reino

39
animal desenvolve gosto por diamantes e ru-
bis. Por trás desses crimes existe uma mente
humana.”
“Comissário! Aqui!”
Era Jacob, um outro membro da equipe do
laboratório. Ele estava a uns sete metros do
balcão onde ficavam as pedras preciosas,
apontando nervosamente para alguma coisa
no chão.
Gordon foi até lá. Olhou em silêncio para o
que tinha sido descoberto. Uma poça de san-
gue cobria o chão. Delineada no centro dela
havia a marca de uma pata. A marca de uma
pata enorme — de um felino gigantesco.

2.

O ASSASSINO É UM GATO! dizia a enorme


manchete do Gotham Daily News. Bebendo
uma xícara de café preto, Bruce Wayne leu
atentamente a história durante o café da ma-
nhã. Com o rosto crispado, ele comia devagar,
mastigando a comida mecanicamente. Os de-
talhes macabros das mortes não combinavam
com um bom apetite.
Quando terminou, Wayne dobrou o jornal e
colocou ao lado do prato. Uma raiva fria e in-

40
dignada lhe apertava o coração mas, como
sempre, ele se mantinha controlado. Descon-
trole de humor sempre leva a erros de julga-
mento. Em sua contínua luta contra o crime,
qualquer pequeno erro poderia ser fatal.
Fechando os olhos, o milionário repassou
os fatos descritos no jornal. Pouco havia mu-
dado desde o primeiro roubo. A polícia ainda
estava perplexa. Não tinha a menor ideia de
como o ladrão entrou nas lojas, ou de que for-
ma evitou os sistemas de segurança. Era como
se o assassino atravessasse as paredes. Até
mesmo Gordon, o melhor dos policiais, estava
confuso com a marca sangrenta da pata. Defi-
nitivamente, um caso para o Batman.
Wayne suspirou, sentindo-se incrivelmente
cansado, embora o dia estivesse apenas co-
meçando. Às vezes, tarde da noite, sem con-
seguir dormir, pensava na interminável procis-
são de malucos que assombrava Gotham City.
Muitas vezes tinha a impressão de que passa-
va a vida inteira lidando com um lunático atrás
do outro. Por acaso a enorme metrópole seria
um lugar propício para a insanidade? Ou, mais
a propósito, seria sua presença, a oportunida-
de de desafiar Batman, que atraía os crimino-
sos? A pergunta atormentava-lhe, mas não ti-

41
nha respostas. Talvez não houvesse respostas.
O que sabia é que, sem ele, mais inocentes
morreriam, e isso ele não iria permitir.
Expulsando todos os pensamentos depres-
sivos de sua cabeça, Wayne afastou a cadeira
da mesa e levantou-se. Um homem grande e
forte, com músculos de aço no peito e nos
braços. Por ser tão perfeitamente proporcio-
nal, o tamanho do milionário frequentemente
surpreendia as pessoas que o encontravam
pela primeira vez.
Que ninguém o associasse ao Cavaleiro das
Trevas era um tributo mudo aos seus dotes de
ator. “A preguiça personificada”, foi o modo
como um colunista de jornal o descreveu.
Wayne achara muita graça naquilo durante vá-
rios dias.
Dez minutos depois do café da manhã, en-
trou no santuário secreto, embaixo da mansão
Wayne, que chamava de Batcaverna.
Um vasto complexo de laboratórios e salas,
era aqui que ele se transformava de homem
em super-herói — Bruce Wayne transformava-
se em Batman. E pelo menos era o que espe-
rava, era aqui que acharia a solução para o
problema do ladrão fantasma.
Usando um mapa computadorizado do cen-

42
tro de Gotham, Batman assinalou a localização
de cada um dos roubos. Percebeu que todos
os edifícios estavam localizados na parte mais
velha da cidade, uma área que permanecia
inalterada há quase um século. Seguindo um
palpite, acessou as plantas de todos os pré-
dios. Examinando-as, ficou desapontado ao
perceber que arquitetos diferentes haviam
projetado as diversas lojas. Parecia altamente
improvável que quatro empresas diferentes ti-
vessem construído estruturas semelhantes.
Nesse instante, uma ideia lhe ocorreu. Bat-
man fez uma segunda verificação dos locais. O
que eles tinham em comum? Um minuto de-
pois ele sabia a resposta correta.
A polícia continuava errando porque estava
fazendo as perguntas erradas. Tentavam des-
cobrir como o ladrão havia entrado nos pré-
dios. Somente Batman tinha percebido a ver-
dade. O ladrão não estava entrando nos luga-
res. Ele já estava dentro, quando os alarmes
eram ligados.
Os fatos surgiam na tela do computador na
medida em que Batman chamava os arquivos.
Cem anos antes, um enorme sistema de túneis
subterrâneos havia sido escavado trinta me-
tros abaixo da superfície do centro de Gotham.

43
Essas passagens, com três metros de altura
por dois de largura, aliviavam o tráfego num
tempo em que o trânsito de carretas ameaça-
va congestionar o centro da cidade.
Ligados diretamente aos pátios da ferrovia
no lado sul da cidade, o sistema de túneis pro-
piciava acesso direto a numerosas lojas de de-
partamento e atacadistas da área central, aju-
dando a descongestionar o trânsito. Pequenos
vagões eram usados para entregas. Mais de
oitenta edifícios estavam conectados ao siste-
ma, através de escritórios no subsolo. No in-
verno, até carvão era transportado pelos tú-
neis.
O declínio da ferrovia e o crescimento da
indústria de transporte por caminhões torna-
ram o sistema obsoleto. Os caminhões traziam
os produtos diretamente do fabricante para o
comerciante, evitando intermediários e os cus-
tos de frete. Cinquenta anos atrás o sistema
de túneis fora fechado oficialmente e as esta-
ções seladas.
Agora, Batman suspeitava, alguém tinha
reaberto os túneis para seus próprios fins. No
entanto, em vez de usar os túneis para entre-
gas, o criminoso estava fazendo retiradas. Os
olhos do Cavaleiro das Trevas se estreitaram

44
quando ele percebeu que o vasto sistema ha-
via sido apelidado de “Catacumbas”.
Um movimento na periferia do seu campo
de visão chamou a atenção de Batman. Era Al-
fred, seu mordomo e confidente. Sua presença
na Batcaverna significava que tinha algo im-
portante a dizer. Alfred sabia que não devia in-
comodá-lo quando estava trabalhando.
“O que foi?” — perguntou Batman.
“O talk-show da TV a cabo acaba de mos-
trar uma entrevista com o inspetor Lincoln”,
declarou Alfred em seu tom de voz preciso.
“Achei que poderia estar interessado no que
ele tinha a dizer sobre esse caso.”
Que Alfred soubesse que estava trabalhan-
do no caso dos assassinatos nas joalherias não
chegou a surpreendê-lo. Seu mordomo tinha
um sexto sentido para essas coisas. Que Lin-
coln, um dos policiais mais burros e incompe-
tentes da cidade, tivesse alguma coisa a dizer
sobre qualquer crime que fosse, era muito
mais espantoso.
“E que pérolas de sabedoria o bom inspetor
tinha a oferecer aos cidadãos de Gotham?”,
perguntou Batman com um sorriso.
“Ele deu a entender que a Mulher-Gato es-
tava por trás desses crimes”, disse Alfred, sole-

45
ne. “Não ofereceu nenhum indício. Natural-
mente, não viu razão para associar essa ideia
com nenhum fato concreto.”
O sorriso desapareceu do rosto de Batman.
A Mulher-Gato era um de seus inimigos mais
mortais e misteriosos. Uma ladra de joias inte-
ligente e ardilosa, conseguira empatar com ele
em muitas batalhas no ano anterior. Treinada
em artes marciais, era linda e perigosa. A Mu-
lher-Gato era uma oponente tão impiedosa
quanto os seus piores inimigos. Mas não era
assassina.
Que o inspetor Lincoln achasse o contrário
não era surpreendente. Ainda assim, com cer-
teza sua opinião causaria problemas. A Mu-
lher-Gato ia considerar as opiniões de Lincoln
como um insulto pessoal. E ela não era pessoa
de levar desaforo para casa.
“Vamos torcer para que a Mulher-Gato não
tenha assistido ao programa”, comentou Bat-
man, voltando a atenção para a tela do com-
putador. “Esse caso já está suficientemente
encrencado sem ela.”

3.

Infelizmente, a Mulher-Gato assistiu à en-

46
trevista. Era quase impossível não tê-la assisti-
do. A entrevista de Lincoln fora destaque nos
telejornais locais de todas as principais redes
de televisão, tanto ao meio-dia quanto às seis
da tarde. E foi retransmitida durante todo o
dia em mais de vinte estações de rádio. Que a
Mulher-Gato ficara ofendida, era visível pelo
buraco surgido na tela de sua TV, após ter ar-
remessado um vaso no aparelho ao final da
entrevista. Ao contrário de sua nêmesis, o Bat-
man, Selina Kyle, também conhecida como
Mulher-Gato, não acreditava em controlar a
raiva. Especialmente quando era acusada de
um crime que não tinha cometido.
Embora houvesse passado mais de uma
hora, ainda estava furiosa. Seu dedos longos e
finos, com unhas pontudas e afiadas, abriam e
fechavam incontrolavelmente enquanto anda-
va de um lado ao outro de seu apartamento.
“As garras de uma gata, inspetor”, ela dizia
para si mesma, “não perdoam jamais. E eu
nunca me esqueço de um insulto”.
No entanto, a maior parte da sua fúria não
era dirigida ao policial idiota. Selina Kyle não
era boba. Aquela marca de pata não era aci-
dental. A verdadeira mente criminosa por trás
dos roubos de joias a havia incriminado de um

47
modo perfeito.
A esta altura, todo mundo em Gotham City
achava que a Mulher-Gato era a responsável
pelos roubos e pelos assassinatos. A menos
que provasse sua inocência, seria caçada pelo
resto de seus dias.
Roubo era uma coisa. Se as autoridades a
prendessem por roubo, teria de cumprir uma
longa pena na penitenciária. Selina tinha cer-
teza de que nenhuma cadeia a impediria de
fugir. Três assassinatos premeditados, no en-
tanto, com certeza significavam cadeira elétri-
ca. E a Mulher-Gato sabia que, nesse caso,
não havia escapatória possível.
Igualmente importante, a fortuna em pe-
dras raras roubadas lhe atraía. Na qualidade
de especialista em roubos de Gotham City,
considerava o comércio de joias como seu ter-
ritório. Selina odiava invasores. De acordo com
sua lógica particular, aqueles diamantes e ru-
bis na verdade pertenciam a ela. Silenciosa-
mente, jurou acertar as contas com o ladrão
fantasma. E tornar suas as pedras roubadas.
Apertando os olhos, Selina pegou o telefo-
ne. Era hora de pedir a retribuição de alguns
favores, decidiu, discando um número. Seus
lábios se contorceram num sorriso maligno.

48
Ninguém entrega o ouro melhor do que um
político assustado.
Antes de abraçar a carreira de Mulher-Gato,
Selina ganhava a vida de uma maneira igual-
mente ilegal. Durante muitos anos. havia ven-
dido seu corpo pela oferta mais alta. Especia-
lista em dominação e prazeres perversos, ha-
via prestado serviços a um grande número de
clientes masculinos e femininos. Muitos deles
da elite de Gotham City. Embora tivessem ten-
tado manter em segredo suas identidades,
ninguém jamais conseguiu enganar Selina
Kyle.
Sempre oportunista e dotada de uma me-
mória excepcional, havia arquivado anotações
detalhadas sobre os vícios secretos de seus cli-
entes, junto com fotografias, para um momen-
to de necessidade. Ela acreditava em estar
sempre preparada para o pior. Por isso era a
melhor em tudo que fazia.
Três telefonemas e uma hora mais tarde,
Selina recostou-se no sofá com um sorriso nos
lábios. Muitos políticos iam ter dificuldades
para dormir naquela noite. Um pouco de medo
não faz mal a ninguém, inclusive para alguns
figurões da Prefeitura. A partir de hoje, talvez
começassem a considerar as vantagens do ce-

49
libato. Embora ela duvidasse disso. Mas não
era importante.
O que realmente importava é que tinha
certeza que sabia o segredo do maldito ladrão.
De acordo com uma fonte muito bem posicio-
nada no gabinete do prefeito, o comissário
Gordon estava convencido de que o ladrão
usava os velhos túneis sob o centro de Go-
tham.
Uma outra fonte inquestionável, essa do
Departamento de Polícia, confirmou a informa-
ção e acrescentou que uma grande caçada hu-
mana nas célebres “Catacumbas” estava sen-
do planejada para depois de amanhã. As en-
grenagens da justiça eram vagarosas na gran-
de metrópole. O que era perfeito para a Mu-
lher-Gato, que estava planejando invadir o la-
birinto subterrâneo esta noite. E fazer justiça a
seu modo.

4.

Bem abaixo das ruas da cidade, uma figura


solitária se mexeu na cama improvisada com
grandes travesseiros e caros tapetes. Espalha-
dos pelo enorme salão, um quadrado de dez
metros onde em cada parede desembocava a

50
saída escura de um túnel, havia pilhas de te-
souros de mais de uma dezena de joalheiros
do centro de Gotham. Nem todos os tesouros
eram de igual valor. Pedras raras repousavam
dentro de taças antigas, enquanto a menos de
um passo havia sacos de batata frita meio va-
zios. E latas de Coca-Cola lado a lado com vi-
nhos de safras premiadas.
Bocejando o homem sentou-se, esfregando
os últimos vestígios de sono dos olhos. Sua
pele, da cor de marfim envelhecido, brilhava
sob a luz de duas velas ornamentais, que pro-
duziam estranhas sombras na parede. Alto e
esguio, usava uma longa túnica branca que
deixava apenas a cabeça e as mãos à mostra.
Seu rosto lembrava uma antiga máscara
mortuária egípcia, com lábios finos e pálidos.
Suas orelhas estreitas eram coladas ao crânio
e os cabelos escuros e curtos enfatizavam o
amarelo da pele. O rosto magro e ossudo os-
tentava sobrancelhas finas, que se encontra-
vam acima do nariz aquilino e chamavam a
atenção para olhos penetrantes.
Verde-escuros, de uma intensidade hipnóti-
ca, eles brilhavam de um modo sobrenatural.
Estranhos, como os olhos de um gato, tinham
exatamente a mesma cor da única joia que ele

51
usava — uma enorme esmeralda multifacetada
na altura do peito, suspensa por uma fina cor-
rente feita do mais puro ouro. Cada vez que o
homem respirava, a enorme pedra pulsava
como se tivesse vida própria.
Em um movimento rápido, fluido, o homem
amarelo se pôs de pé. Em toda a sua volta,
como uma reação espontânea, o chão se me-
xeu. Gatos — gatos em toda parte — se levan-
taram para saudar seu mestre. Gatos negros,
gatos cinzentos, gatos dourados, listrados, ga-
tos de rua e gatos siameses, centenas de ga-
tos se espreguiçaram e arquearam as costas à
medida que a figura de túnica levantava os
braços acima da cabeça como se fosse rezar.
Sorriu um sorriso de caveira sem nenhum
humor. Seu olhar passeou pelo salão e riu cru-
elmente de uma piada que somente ele enten-
deu. Em segundos, reagindo à menor mudan-
ça no humor de seu mestre, a horda felina ui-
vou de prazer. O som explodiu na penumbra
do salão.
Franzindo o rosto, o homem amarelo fez
um gesto brusco com a mão. No seu peito, a
esmeralda brilhou esverdeada, refletindo seu
desprazer. O som cessou instantaneamente,
como que cortado por uma faca. Ele realmente

52
era o líder desse imenso bando. Ele era o Se-
nhor dos Felinos.
“Silêncio, meus bichanos”, sussurrou, com
uma voz exasperante que ecoou nos muros de
concreto. “Seus miados perturbam minha con-
centração.”
Por um momento ficou imóvel como que
congelado, com uma expressão distante em
seus olhos verdes. Em seguida, seu semblante
pareceu satisfeito. “O Matador Noturno ataca
novamente”, declarou, parecendo contente.
“Ao meu comando.”
De dentro do túnel mais próximo emergiu
uma sombra mais escura que a escuridão,
mais negra que a noite. Uma fera assassina
com olhos amarelos brilhantes e a boca cheia
de dentes afiados. Com três metros da cabeça
até a cauda e pesando mais de noventa quilos,
a fera era capaz de matar com tal vontade e
ferocidade que não tinham comparação no rei-
no animal. Um monstro que raramente era
capturado, e nunca domesticado, o Matador
Noturno era uma gigantesca pantera negra.
Com um rugido profundo, a fera atravessou
o chão de concreto até o Senhor dos Felinos.
No peito do homem, a grande esmeralda pul-
sava com pura energia. Gradualmente, o rugi-

53
do da pantera diminuiu e parou. Quase dócil,
parou a um passo da figura com a túnica.
Apertando a joia brilhante com a mão, o
homem amarelo curvou-se e acariciou a fera
atrás da orelha. O monstro ronronou de pra-
zer. Vagarosamente, muito vagarosamente,
deitou-se no chão.
Com um suspiro de alívio, o Senhor dos Fe-
linos endireitou-se. Mesmo quando usava todo
o poder da esmeralda, era tremendamente di-
fícil controlar a mente do enorme felino. Os
caçadores de grandes animais consideram a
pantera negra o predador mais perigoso de to-
dos. Extremamente selvagem, ela vive apenas
para matar. Ainda assim, enquanto o Senhor
dos Felinos possuísse o Coração de Sekhmet,
ele era o senhor da fera.
Capturado originalmente na África Central,
o Matador Noturno passara a maior parte de
sua vida num importante zoológico da Califór-
nia. O Senhor dos Felinos havia “libertado” o
monstro logo após embarcar em sua missão. E
desde então ele havia lhe servido muito bem
com suas garras e dentes.
“Pressinto que esta noite ela virá”, murmu-
rou ajoelhando ao lado da pantera imóvel,
como se estivesse contando seus segredos

54
para a fera. “Aquela que desejo, para ser mi-
nha noiva. Quem mais apropriada para ser a
companheira do Senhor dos Felinos do que a
Mulher-Gato?”
Preguiçosamente, a pantera levantou a ca-
beça e rugiu, mostrando os dentes. “Não há
motivo para preocupação”, falou o homem,
dando uma risadinha. “Haverá outros para ma-
tar... muitos outros. Nosso trabalho aqui está
quase terminado. Fiz uma armadilha para a
Mulher-Gato com a marca da sua pata. Ela
não tem outra escolha a não ser investigar.
Quando a Mulher-Gato se juntar a nós, aban-
donaremos esses túneis. Estou cansado da es-
curidão. Existem outras cidades para pilhar,
outros tesouros para roubar, outras mortes
para saborear.”
O Senhor dos Felinos levantou a esmeralda
até a testa, colocando a joia entre os olhos.
Uma luz fantasmagórica encheu o salão. No
mesmo instante, todos os gatos ficaram de pé,
os olhos fixos no homem que segurava a pe-
dra.
“Agora, vão”, ordenou. “Espalhem-se pelas
Catacumbas. Sejam meus olhos e meus ouvi-
dos. Não permitam que nenhum ser humano
caminhe pelos túneis sem ser percebido. Obe-

55
deçam-me, pois sou o seu senhor.” Suas mãos
apertaram a pedra com mais força. “Eu sou o
Senhor dos Felinos.”
E, como se fossem uma lufada de vento, os
gatos partiram, espalhando-se pelo labirinto
das Catacumbas, deixando o Senhor dos Feli-
nos sozinho com o Matador Noturno. Paciente-
mente, eles esperaram a Mulher-Gato apare-
cer.

5.

Foi fácil para o Batman entrar nas Cata-


cumbas. Ele esperava que sair também não
fosse difícil.
Às seis horas daquela tarde o playboy mili-
onário Bruce Wayne chegou, como previsto,
na Lewiston’s Gem Emporium, no coração do
sofisticado distrito joalheiro no centro de Go-
tham. Estava acompanhado por um pequeno
exército de fornecedores, decoradores e pro-
fissionais não identificados. Enquanto esses se
movimentavam por todos os lados, transfor-
mando o show room principal da loja em um
elegantíssimo salão de recepções, Wayne con-
versava animadamente sobre seus planos com
William Lewiston, o grisalho proprietário do lu-

56
gar.
“Estou dando uma festa íntima para alguns
amigos hoje à noite”, confidenciou, beberican-
do uma taça de vinho branco servida pelo seu
valete. “Às vezes, a vida fica sem graça na
mansão. Achei que uma noite na cidade seria
muito mais divertida.”
O olhar de reprovação no rosto de Lewiston
deixava evidente o que achava dos planos de
Wayne. Apesar disso, o velho prudentemente
guardou suas opiniões para si.
Sem que houvesse muita publicidade a res-
peito, Lewiston havia sofrido um sério proble-
ma de caixa uns meses atrás. As vendas ti-
nham caído e ele fora obrigado a fazer cortes
de despesas em vários estágios do negócio. A
falência parecia ser apenas uma questão de
tempo.
Inesperadamente, uma súbita injeção de
capital mudou tudo. O Emporium continuou
com suas operações sem interrupções nas
vendas ou nos serviços. O controle do velho
negócio de família havia passado, silenciosa-
mente, para a Bruce Wayne Empreendimen-
tos. As tarefas cotidianas continuavam a ser
executadas pelos empregados da empresa.
Mas as operações financeiras eram controladas

57
severamente por um conselho, que respondia
apenas ao milionário.
Essa era a primeira vez que Wayne mostra-
va um pouco mais de interesse pela joalheria.
Com o rosto pálido, lábios apertados como que
para impedir que gritasse de indignação, Willi-
am Lewiston acompanhou seu novo patrão em
uma visita às instalações.
“Onde isso vai dar?” — perguntou Wayne,
apontando com a taça de vinho para uma por-
ta lacrada na parede oposta do depósito em-
poeirado.
“No subsolo”, respondeu Lewiston. “Um lu-
gar horrível que não é usado para nada. Há
muito tempo havia um incinerador lá. Este edi-
fício é um dos mais velhos da cidade. Estamos
estabelecidos aqui desde o século passado.”
“Muito interessante”, comentou Wayne,
com tom de voz entediado, não deixando
transparecer o que realmente sentia. E, de
modo casual, perguntou: “No inverno o carvão
era entregue?...”
“Através das Catacumbas”, respondeu
Lewiston. “Você está informado a respeito do
sistema de túneis?”
“Tenho algumas propriedades no centro de
Gotham”, respondeu Wayne. “Embora nenhu-

58
ma tão perto da velha central de distribuição
do sistema, quanto esta.”
“Nós fechamos a entrada do labirinto anos
atrás”, disse Lewiston. “A cidade parou de usar
os túneis no começo dos anos quarenta.” O
velho sorriu ironicamente. “Embora tenha se
falado em usá-los como abrigo nuclear duran-
te a crise dos mísseis de Cuba nos anos ses-
senta.”
“A Guerra Fria era maravilhosa, não é mes-
mo?” — observou Wayne. Em seguida, pegan-
do o velho pelo cotovelo, o milionário voltou
para o show room principal.
“Não há motivo para se preocupar com a
sua decoração”, comentou Wayne, dando tapi-
nhas no ombro do outro. “Eu jamais faria ne-
nhuma coisa que prejudicasse um investimen-
to importante. Acredite em mim. Quando che-
gar amanhã, prometo que vai parecer que nin-
guém esteve aqui.”
Levou mais cinco minutos até que Lewiston
fosse convencido a ir embora. Depois disso,
mais meia hora até que o restante das pesso-
as partisse também. Finalmente, só restaram
Bruce Wayne e Alfred.
“Nove horas”, informou o milionário, olhan-
do para o relógio. “O ladrão fantasma nunca

59
ataca antes da meia-noite. Isso me dá mais de
três horas para localizar seu esconderijo.”
“O senhor se recusa a deixar esse caso
para a polícia?” perguntou Alfred, uma expres-
são de desaprovação no rosto. “Ainda está em
tempo de fazer uma ligação anônima para o
comissário Gordon.”
“Gordon já sabe tudo sobre os túneis”, ob-
servou Wayne, abrindo uma caixa grande tra-
zida pelos operários, mas que não havia sido
tocada durante os arranjos. “Mas a burocracia
do departamento limita a capacidade de ação
da polícia. Na hora em que ele conseguir man-
dar seus homens para as Catacumbas, o nosso
assassino já terá desaparecido há muito tem-
po. Além disso”, concluiu, enquanto verificava
cuidadosamente o conteúdo da caixa, “um ho-
mem sozinho tem muito mais chances de
achar o assassino do que um batalhão de poli-
ciais”.
“Especialmente se esse homem for o Bat-
man”, suspirou Alfred.
“Exato”, confirmou Wayne, esvaziando o
conteúdo da caixa no chão. “Ajude-me com
isso, Alfred. Está na hora de visitar as Cata-
cumbas.”
Cinco minutos mais tarde, Batman estava

60
pronto para entrar no labirinto subterrâneo.
Poucas pessoas perceberiam que o Cavaleiro
da Trevas estava diferente do normal, maior,
mais forte, seus músculos não tão visíveis sob
o uniforme. Somente sua capa, escura e mis-
teriosa, parecia não ter mudado.
Em uma das mãos carregava uma peque-
na, porém poderosa lanterna. Feita sob enco-
menda, lançava uma luz pálida que era visível
por apenas uns poucos metros. Outra lanterna
semelhante estava presa ao seu cinto. Em si-
tuação perigosa, onde uma luz normal poderia
denunciar sua presença, Batman usava essas
lanternas até estar bem próximo de sua caça.
Feitas de materiais muito sólidos, as lanternas
haviam sido projetadas para suportar choques
fortes. E, na escuridão absoluta do labirinto
subterrâneo, seriam extremamente necessá-
rias.
Na outra mão carregava uma pistola bem
leve, carregada com poderosos dardos tran-
quilizantes. Batman não tinha certeza de que
tipo de fera andava pelas Catacumbas, mas
estava tomando todos os cuidados. Três guar-
das mortos e meia dúzia de cães despedaça-
dos tornavam isso necessário. Um arranhão
desses dardos seria suficiente para derrubar

61
um elefante.
“Não se esqueça de desarrumar os pratos e
os copos”, instruiu a Alfred enquanto arranca-
va a última tábua que bloqueava a entrada do
sistema de túneis abandonado. Como a boca
gigantesca de um dinossauro, a porta espera-
va por ele. “Afinal, Bruce Wayne recebeu seus
amigos aqui. Pelo menos foi isso que dissemos
ao senhor Lewiston. E aos nossos funcionários
também.”
“Arranjarei para que o lugar pareça ter sido
frequentado antes que os homens cheguem
amanhã para limpar tudo”, disse Alfred, olhan-
do nervosamente para a entrada escura. “O
senhor não acha que deveria levar um mapa?”
“Memorizado”, replicou Batman apontando
a cabeça. “Não que seja muito importante”,
continuou, entrando na passagem. “Os cami-
nhos das Catacumbas levam todos ao mesmo
lugar. Para baixo. Sempre para baixo.”

6.

Batman não estava exagerando quando


disse que havia memorizado o mapa de todo o
sistema de túneis. Dotado de uma memória
excepcional, passara muitos anos se aperfeiço-

62
ando com um rigoroso treino mental. Uma
olhada no mais simples diagrama era suficien-
te para guardá-lo. Um desenho mais complica-
do, como o labirinto, exigia maior concentra-
ção, mas não muito mais tempo.
Também não havia mentido a Alfred quan-
do declarou que todos os túneis desciam. As
Catacumbas convergiam para um grande de-
pósito mais de trinta metros abaixo da super-
fície.
Todo o sistema de transporte havia sido
projetado para servir a uma área, que ia dos
pátios da estrada de ferro na zona sul até o
centro de Gotham. Centenas de carregamen-
tos passavam através dos corredores todos os
dias. A fim de simplificar a operação, duas
áreas de distribuição haviam sido montadas.
Uma ficava na estação de trens, onde mer-
cadorias vindas de todas as partes do país
chegavam e eram separadas para serem trans-
portadas para o centro. A outra, muito maior,
ficava abaixo dos edifícios. Desse lugar, as
mercadorias e o carvão eram enviados a ou-
tros centros de distribuição menores, onde
eram preparadas para a entrega. Daí eram en-
viadas de vagão pelos túneis ao seu destino.
Eliminando o depósito principal por ser muito

63
escuro e depressivo, Batman estava convenci-
do que o quartel-general do ladrão fantasma
era em uma das subestações. O problema era
encontrá-la sem alertar o assassino, quanto a
sua presença.
Cuidadosamente, ele começou a descer o
túnel que partia da loja. A passagem de con-
creto era oval e tinha três metros de altura por
dois de largura, com o chão e o teto nivelados.
Trilhos de metal eram o único sinal que os va-
gões já haviam passado por ali. As paredes
não tinham rachaduras, nem mostravam mar-
cas de envelhecimento. A cada três metros,
havia uma reentrância para uma lâmpada a
gás, mas sem lâmpada. Para Batman, a im-
pressão era a de andar dentro de um tubo gi-
gante que tivesse sido enfiado na terra.
A princípio, a intensidade da escuridão não
era opressiva. Especialmente porque a réstia
de luz vinda da porta de acesso ainda era visí-
vel. No entanto, vinte metros adiante, o túnel
fazia uma curva de uns trinta graus para a di-
reita. Somente a luz da lanterna iluminava o
lugar que, afora isso, era um poço de escuri-
dão. O efeito era terrível, assustador.
Batman parou um instante, subitamente
consciente de uma certa pressão no peito. Es-

64
tava com a respiração curta. Dava para sentir
o coração pulsando. O Cavaleiro das Trevas
estava com medo.
Normalmente, Batman não tinha medo do
escuro. Durante anos havia lidado com isso,
aproveitando-se do medo que os criminosos ti-
nham da escuridão. Mas esta escuridão era di-
ferente.
Não era apenas a impossibilidade de enxer-
gar além do pequeno facho de luz da lanterna.
Mais de uma vez ele havia sido cegado por
uma luz muito forte, ou sido apanhado numa
armadilha sem luz. Mas sempre conseguira
continuar lutando sem problemas. Nesse mo-
mento, Batman percebeu que era o lugar onde
estava que o assustava.
Havia uma tonelada de rocha sobre sua ca-
beça. Apenas uma parede fina de concreto,
com mais de cem anos de idade, impedia que
fosse enterrado vivo. A escuridão era total, ab-
soluta, pois a luz não conseguia chegar trinta
metros abaixo da superfície. Andar nesses tú-
neis era como caminhar no reino dos mortos.
“Catacumbas” era um nome muito apropriado.
O ar era pesado e imóvel, respirável, porém
parado e sem vida, como o ar em um mauso-
léu. E o silêncio cobria tudo como um véu. Es-

65
sas comparações, embora apropriadas, não
ajudaram em nada para aliviar as apreensões
sentidas por Batman.
Balançando a cabeça aborrecido, o Cavalei-
ro das Trevas prosseguiu. Quanto mais tempo
ficasse aqui se preocupando, maiores as chan-
ces que daria para o “fantasma” escapar.
Mais vinte metros e o corredor bifurcava à
direita e à esquerda. Após um segundo de he-
sitação, Batman entrou pelo caminho da direi-
ta. Para baixo, sempre para baixo continuava o
túnel.
Ele andava em silêncio, o único barulho era
o de suas botas no concreto. E o som de sua
respiração.
Nada se movia e a uniformidade das pare-
des de concreto era extraordinária.
Uma camada fina de poeira cobria o chão.
Não havia marcas de nada. Se um “fantasma”
assombrava esses corredores, ele nunca havia
usado este túnel em particular. O que sugeria
a Batman que havia poucas chances de ser
descoberto. Suas esperanças de surpreender o
misterioso assassino aumentavam na medida
em que continuava a descer.
De novo o túnel se dividiu e desta vez Bat-
man foi para a esquerda. Embora tivesse total

66
confiança em sua memória, o Cavaleiro das
Trevas ficou feliz ao notar que a inclinação do
túnel se acentuava. E a poeira do chão conti-
nuava sem marcas de pés humanos.
Três metros adiante, na borda do círculo de
luz, algo se moveu na semi-escuridão. Batman
parou instantaneamente, levantando a pistola
de dardos instintivamente. Com todos os sen-
tidos em alerta, esperou que alguma coisa
acontecesse. Não aconteceu nada. Após al-
guns segundos, deu um cuidadoso passo à
frente, depois outro.
Dois pontos de luz olhavam para ele na es-
curidão. Batman piscou, surpreso, quando um
gato entrou no círculo de luz de sua lanterna.
Sem fazer nenhum som, o gato listrado de
amarelo e preto deu uma volta em torno dele,
como se estivesse verificando o que estava fa-
zendo ali. Finalmente, dando sua aprovação, o
gato miou uma vez. Sem emitir nenhum outro
som, saiu correndo para a escuridão.
Batman balançou a cabeça confuso. Tinha
certeza de que a Mulher-Gato não estava en-
volvida nesses crimes. No entanto, a presença
do felino nos túneis parecia indicar o contrário.
Subitamente, percebeu que deixar o gato es-
capar poderia ter sido um erro e partiu rapida-

67
mente atrás do animal.

7.

Mais ou menos no mesmo momento em


que Bruce Wayne estava entrando na Lewiston
Gem Emporium, a Mulher-Gato entrava nas
Catacumbas. Para ela, o nome do lugar não ti-
nha nenhum significado especial. Não sentia
medo dos horrores que poderia encontrar lá
embaixo. Embora dotada de uma inteligência
excepcional, Selina Kyle não tinha muita imagi-
nação. Considerava a escuridão uma amiga e
aliada, e as trevas das Catacumbas não amea-
çavam a Mulher-Gato.
Um edifício abandonado nos limites do cen-
tro de Gotham deu acesso aos túneis. Um ve-
lho livro que encontrou na biblioteca detalhava
a história do centro e fornecia um mapa. Ape-
nas velhas memórias a esperavam quando ar-
rancou as tábuas podres que limitavam a en-
trada do subterrâneo.
Como sempre, quando estava fazendo algo
criminoso, estava usando seu uniforme de
gato. Originalmente projetado para uma garo-
ta comparecer a uma festa de um velho rico,
tinha passado por uma série de transforma-

68
ções desde que caíra nas garras de Selina. Um
forro de nylon tornou a vestimenta mais resis-
tente, de modo que não rasgasse facilmente.
Estofos nos joelhos e cotovelos diminuíam sua
vulnerabilidade, da mesma forma que uma ca-
mada de espuma de alta densidade fortalecia
sua máscara. Embora tivesse deixado o rabo
na fantasia, ela o havia reforçado com uma
corrente de aço. Em situações de aperto, ser-
via como uma perigosa surpresa.
Seus dedos terminavam em ganchos de
metal curvos com quase três centímetros de
comprimento. Para ela, eram como as garras
de um gato e mais de uma pessoa já havia ex-
perimentado seus arranhões. Enrolado no seu
cinto, Selina carregava um chicote de couro de
três metros de comprimento. Ela usava essa
arma com extrema habilidade, adquirida com
muito treino. Com seus pés calçados em botas
feitas sob encomenda, Selina deslizou pelos
longos corredores de concreto. Na mão ela
carregava uma diminuta lanterna que emitia
um facho fino como uma agulha. Era a única
iluminação de que a Mulher-Gato necessitava.
E sabia exatamente para onde estava indo. As-
sim como Batman, ela estava se dirigindo para
baixo.

69
Cada vez que o túnel dividia-se em dois,
Selina pegava o mapa. Sempre escolhia a pas-
sagem que descia. Estava convencida de que o
ladrão habitava os níveis mais baixos do siste-
ma. Seria a localização que escolheria, se fos-
se ela a planejar os crimes.
Vinte minutos mais tarde e um quilômetro
e meio depois, Selina encontrou seu primeiro
gato. Estava sentado pacificamente, lambendo
uma das patas bem no meio do túnel, como se
estivesse esperando uma visita. A Mulher-Gato
esfregou os olhos, surpresa. A última coisa
que esperava encontrar ali era um gato de
rua.
Ela piscou e depois esfregou os olhos nova-
mente. O gato não estava em parte alguma.
Havia desaparecido assim que constatara sua
presença. Com um rosnado de suspeita, a Mu-
lher-Gato tirou o chicote da cinta. Gatos de
sentinela pareciam ser uma coisa muito impro-
vável, mas assassinos operando a partir de
Catacumbas também. Continuou em frente,
todos os sentidos aguçados.
Cem metros mais à frente o corredor se
partiu novamente. Desta vez, um enorme gato
listrado de preto e branco estava sentado no
túnel da direita. Deu um miado bem alto

70
quando Selina se aproximou e desapareceu
correndo pela passagem.
“Maldição!” — resmungou a Mulher-Gato,
um tom de admiração na voz. “Parece querer
que eu vá atrás dele.”
Dando de ombros, Selina seguiu seu guia
felino. Outros cem metros adiante, o túnel se
dividiu pela terceira vez. O gato que seguia,
estava esperando na ramificação da esquerda.
Ao seu lado, um siamês cinza claro olhava
para ela sem piscar. Quando se aproximou, os
dois animais deram a volta e correram pelo
corredor como que movidos por uma só vonta-
de.
Cada vez que Selina e seus acompanhantes
cruzavam um túnel, surgia outro gato. Logo,
Selina estava seguindo uma dúzia de gatos,
todos descendo mais e mais pelas Catacum-
bas.
Em um raro momento de dúvida, ela se
perguntou se entrar nos túneis não havia sido
um terrível engano. A recepção demonstrava
que estava sendo esperada. Embora sua habi-
lidade em controlar gatos fosse extraordinária,
não parecia nada em comparação com o que
demonstrava sua presa invisível. Havia alguma
coisa inexplicável nas reações coordenadas da-

71
queles animais. Alguma coisa assustadora.
Uma réstia de luz amarelada, bem adiante,
foi o primeiro sinal de que estava para se en-
contrar com o senhor do labirinto. Ela já devia
estar andando por aqueles corredores há mais
de uma hora e havia percorrido vários quilô-
metros. A luz aumentava cada vez mais seu al-
cance, iluminando o bando de gatos poucos
metros a sua frente.
Saindo do túnel em um enorme salão qua-
drado de concreto, Selina percebeu imediata-
mente que cada uma das paredes tinha a boca
de um túnel exatamente igual ao que ela aca-
bara de sair. Embora se lembrasse do caminho
que havia percorrido até ali, sair pelo túnel er-
rado poderia causar sérios problemas. Mas an-
tes que pudesse registrar sua exata localização
na memória, seu olhar se fixou no centro do
aposento — e seus olhos se arregalaram de
espanto.
Havia um homem sentado em um trono de
travesseiros, cercado pela maior quantidade
de gatos que Selina havia visto juntos em toda
sua vida. Havia centenas deles — grandes e
pequenos, jovens e velhos, machos e fêmeas
— e todos a encaravam com um olhar fixo, de
uma intensidade hipnótica. Ainda assim, foi o

72
seu chefe que lhe chamou a atenção.
Alto e magro, ele estava vestido com uma
longa túnica branca que deixava à mostra ape-
nas suas mãos e rosto. Sua pele era da cor de
marfim velho, em contraste marcante com os
cabelos negros. Os lábios finos estavam con-
torcidos em um sorriso de reconhecimento e
seus olhos verdes profundos a encaravam de
frente. No seu peito, uma linda e incrivelmente
grande esmeralda pulsava de forma sobrena-
tural.
“Bem-vinda ao meu esconderijo”, disse seu
anfitrião, fazendo um gesto largo mostrando o
salão. Sua voz, profunda e forte, enchia o apo-
sento. “Bem-vinda ao reino dos gatos.”
“O reino dos gatos”, repetiu a Mulher-Gato,
examinando cuidadosamente as pilhas de joias
espalhadas pelo lugar. “Que ótimo. E então
quem seria você?”
“Não consegue adivinhar?” — indagou o
homem amarelo. Pousando a mão ao seu lado,
passou carinhosamente os dedos em uma
enorme almofada negra. Selina engoliu em
seco quando, sem aviso, uma enorme cabeça
ergueu-se do chão e ela viu os olhos selva-
gens de uma gigantesca pantera negra.
Seu anfitrião sorriu. “Eu sou o Senhor dos

73
Felinos.”

8.

Ela era tudo o que ele havia imaginado e


muito mais. Um sentimento silencioso de satis-
fação tomou conta do Senhor dos Felinos. A
Mulher-Gato seria uma companheira perfeita.
Assim que sua vontade a subjugasse.
“Sente-se”, ordenou, apontando para as al-
mofadas que cobriam o chão. “Por favor, aco-
mode-se. Gostaria de uma taça de vinho? Es-
perei muito por sua chegada.”
“Esperou?” — exclamou a Mulher-Gato en-
quanto sentava. Ele observou, com um sorriso
de satisfação, que ela havia se sentado em es-
tado de alerta, com as costas voltadas para a
saída, de frente para ele e o Matador Noturno.
Ela não confiava nele. E isso era exatamente o
que ele esperava. Os que confiavam com mui-
ta facilidade eram presas fáceis.
“Vinho?” — perguntou novamente, erguen-
do uma garrafa e duas taças. “Uma bela sele-
ção do melhor que Gotham tem a oferecer.”
Ele riu. “Com todas essas pedras preciosas de-
saparecidas dominando o noticiário, ninguém
repara no sumiço de umas tantas peças de

74
mobília ou algumas poucas garrafas de uma
safra excelente.”
“Claro, claro”, respondeu a Mulher-Gato,
sem jamais se desviar dos olhos dele enquan-
to aceitava a taça estendida. “Mas vamos vol-
tar àquela observação a respeito de estar me
esperando.”
O Senhor dos Felinos tomou um pequeno
gole de vinho, como que para assegurar à sua
convidada que não havia sido drogado. Ele era
esperto demais para tentar uma coisa dessas
com uma caçadora como a Mulher-Gato. Para
ela, a armadilha teria que ser muito mais sutil.
“Minha querida”, ele disse. “Depois de co-
meter todos os meus crimes sem deixar uma
pista sequer, você acha que eu seria tão inepto
a ponto de deixar uma marca de pata em meu
último triunfo? Eu instruí o Matador Noturno”
— a besta rugiu à menção do seu nome —
“para pisar naquela poça de sangue. Foi meu
modo de enviar uma mensagem a você. Consi-
dere como um convite, se quiser. Um convite
para visitar meu esconderijo.”
Sorriu novamente, contente consigo mes-
mo. “Um convite que obviamente deu certo.”
“Estou aqui”, respondeu a Mulher-Gato.
“Mas nos meus termos, por minhas razões.

75
Está claro?”
“Sem dúvida. Você é minha convidada. As-
seguro que nada de mau lhe acontecerá aqui.”
“Estou encantada com seu interesse”, re-
trucou a Mulher-Gato. um leve toque de ironia
na voz. “Levando em conta a quantidade de
sangue que já tem nas mãos.”
“Bah!” — grunhiu aborrecido. “Meros mor-
tais. A morte deles não significa nada para
pessoas como nós.”
“Como nós? — ela repetiu.
“Exatamente”, disse o Senhor dos Felinos,
passando a mão sobre o Coração de Sekhmet.
Como um choque elétrico, a energia da pedra
sagrada passou por ele, duplicando o poder de
sua mente. Os olhos da Mulher-Gato tremeram
de emoção à medida que suas palavras reper-
cutiam em sua vontade com uma incrível força
mental. “Nós somos os escolhidos de Sekh-
met.”
“Sekhmet?” — ela questionou, confusa. E
ansiosa para saber mais.
“A Poderosa”, respondeu o Senhor dos Feli-
nos. “A deusa egípcia com cabeça de leão co-
nhecida como o Olho de Rá. Você e eu, e
aqueles poucos outros como nós, somos seus
discípulos, seus filhos. Nós somos o povo do

76
gato.”
“Não entendo”, disse a Mulher-Gato, seus
olhos não desgrudando dos dele.
“Então ouça, vou lhe contar a história da
minha vida”, observou. “A história do meu des-
tino. E do seu.”
Acomodando-se nas almofadas, concentrou
toda sua atenção na Mulher-Gato. Quando ter-
minasse a história, ela estaria em seu poder.
Sua vontade, ou o que restasse dela, existiria
apenas para servi-lo.
“Meu nome é Landros Bey. Eu nasci no Egi-
to, o mais antigo dos países, quarenta anos
atrás, em uma noite sagrada para a deusa do
leão, Sekhmet. Minha mãe, uma mulher de ri-
queza incalculável, possuía uma enorme man-
são nos subúrbios de Cairo e fui criado lá. Ne-
nhuma referência jamais foi feita a respeito do
meu pai e aprendi, através de duras lições, a
jamais perguntar nada sobre esse assunto. No
entanto, de tempos em tempos, através dos
anos, minha mãe aludia a misteriosos segre-
dos que não deveriam ser revelados. Logo fi-
cou claro para mim, que meu nascimento não
fora o resultado inesperado de uma ligação ca-
sual. Minha educação reforçou essa conclu-
são.”

77
Bey fez uma pausa, sorvendo um gole de
seu vinho. A Mulher-Gato continuou imóvel,
hipnotizada pela história e pelo poder do Cora-
ção de Sekhmet. “Durante o dia, aprendi as
ciências e as artes com as mentes mais bri-
lhantes do Cairo. À noite, minha mãe e eu ía-
mos a encontros secretos nas partes mais an-
tigas da cidade, onde obtive conhecimentos de
uma outra natureza.”
Sua voz abaixou e as sombras no salão pa-
receram se aprofundar. “Homens velhos e en-
rugados instruíram-lhe em magia negra. A civi-
lização começou no Egito. A história moderna
começou há menos de dois milênios. Na época
do nascimento de Cristo, nossa cultura já tinha
trinta séculos. Os maiores feiticeiros do mundo
se expressaram na sombra da Esfinge. Essa
sabedoria é minha herança.”
“Por que você?” — perguntou a Mulher-
Gato, surpreendendo-o com a pergunta. Ela
ainda não estava completamente sob seu do-
mínio mental.
“Eu fui o escolhido de Sekhmet”, retrucou
Bey. “Como você. E provavelmente como ou-
tros que nunca perceberam o seu poder. Nós
somos o povo do gato. Não há uma explicação
lógica para esse dom. Nem os meus mestres,

78
sábios nos meandros da magia, foram capazes
de me dar respostas. Certos indivíduos nas-
cem com uma certa afinidade com os gatos.
Estamos presos e comprometidos com o reino
dos gatos. Somos atraídos pelos felinos e eles
por nós. Pensamos como eles, os compreen-
demos. Nossas almas estão em harmonia. Se
acreditarmos nos que acreditam em reencar-
nação, talvez tenhamos sido gatos em alguma
vida anterior.”
O egípcio levantou a mão que segurava a
enorme esmeralda verde. “Meus mentores e
minha mãe me ensinaram a antiga sabedoria,
os caminhos obscuros, porque me temiam...
temiam o poder que eu possuía. Este tesouro,
meu pai desconhecido deixou com minha mãe,
ordenando que me entregasse no meu décimo
terceiro aniversário. Ela não ousou desobede-
cer.”
Bey acariciou a joia. Ela pulsava com uma
luz interna, a luz esverdeada refletindo em
seus olhos verdes. “Nos antigos manuscritos. é
conhecida como o Coração de Sekhmet. Sendo
uma pedra viva, ela dá ao seu dono o poder
de se comunicar com as feras. O poder de se
tornar o Senhor dos Felinos.”
Ele não via razão para mencionar que a

79
aura da joia permitia ao seu usuário impor sua
vontade a mentes mais fracas, incluindo as de
seus seguidores felinos. Ou a qualquer ser hu-
mano ingênuo o suficiente para deixá-lo tecer
seu encantamento. Mais uns poucos minutos
de conversa e a Mulher-Gato seria dele, de
corpo e alma, para sempre.
“Minha mãe e seus amigos planejaram um
grande futuro para mim. Infelizmente para
eles, eu não tinha a menor vontade de ser um
peão em suas mãos. Minha mente era somen-
te minha. Assim que pude, abandonei-os com
seus sonhos mesquinhos. Senhor do meu des-
tino, vim para a América, ansioso por experi-
mentar os prazeres da carne.”
Bey abriu um sorriso de superioridade. “Du-
rante duas décadas, eu fui o maior treinador
de animais do mundo. Nunca ninguém havia
dominado os leões e tigres, com tanta facilida-
de. Minhas habilidades eram contratadas pelos
estúdios de cinema e televisão. Ganhava so-
mas astronômicas cada vez que excursionava
com o circo. Ninguém nunca questionou a ori-
gem da minha habilidade e eu nunca contei a
eles. Eu tinha mulheres, poder e fama. Duran-
te anos, me deliciei com os excessos que
acompanham o poder.” Bey fez uma pausa.

80
“Então, quando os prazeres normais não mais
me excitavam, me voltei novamente para a es-
curidão de minha juventude. Mais de um ino-
cente pereceu em minha busca por novos pra-
zeres, novas sensações.”
Com o rosto vermelho, o egípcio sabia que
estava falando demais. Mas não conseguia pa-
rar. “No entanto, não era o suficiente. Eu que-
ria mais. Eu queria companhia... uma compa-
nheira. Você.”
Os olhos da Mulher-Gato arregalaram-se de
surpresa. No mesmo instante. Landros Bey
percebeu que havia cometido um erro mas era
tarde demais. Nem mesmo o Coração de
Sekhmet conseguiria superar a desconfiança
inata que a Mulher-Gato nutria pelos homens.
Vagarosamente, ela se levantou, os olhos
ainda fixos nos dele. Abandonando a passivi-
dade, ergueu o chicote e apontou para ele.
“Você não está jogando com o baralho
completo, Bey. Se acha que uns poucos tru-
ques com gatinhos e um quarto cheio de dia-
mantes vão me convencer a chamar você de
meu benzinho, está realmente maluco.”
Agora estavam ambos em pé. Mas antes
que o egípcio pudesse responder, um gato lis-
trado preto e amarelo saiu correndo de dentro

81
do túnel da direita. Miando alto, parou a pou-
cos passos de seu dono. Franzindo a testa,
Bey apertou o Coração contra a fronte. Em al-
guns segundos seu rosto mostrou um sorriso
cruel e frio.
“Que surpresa agradável! O famoso Bat-
man se aproxima.”
O egípcio fez um gesto com a mão e a
monstruosa fera ao seu lado levantou-se do
chão. Bey balançou a cabeça uma vez e a
enorme pedra entre seus olhos brilhou. Com
um rugido selvagem que fez o salão tremer, a
pantera negra se lançou em direção ao túnel
da direita.
“Nenhum homem”, disse Landros Bey, gar-
galhando tenebrosamente, “nem mesmo Bat-
man, consegue sobreviver à fúria do Matador
Noturno. Esta noite o Cavaleiro das Trevas
morre.”

9.

Batman atirou apenas uma vez. E errou.


Emergindo da escuridão, a pantera negra ata-
cou, movendo-se com a velocidade de uma lo-
comotiva. Apenas o leve arranhar de suas gar-
ras no concreto avisou o Cavaleiro das Trevas

82
de sua chegada. Não havia tempo para pensar,
nem para mirar. Reagindo por instinto, Batman
ergueu a arma e disparou o dardo no exato
instante, em que o gigantesco felino entrou no
raio de luz da lanterna.
O acaso triunfou sobre a competência hu-
mana. No mesmo momento em que Batman
puxou o gatilho, a pantera se lançou no ar em
sua direção. O dardo tranquilizante passou
inofensivo por entre as patas do animal e atin-
giu o concreto dez metros adiante.
Batman não teve uma segunda chance. O
leopardo gigante chocou-se contra ele como
uma bala de canhão e o impacto derrubou-o
no chão. As imensas mandíbulas se fecharam
sobre seu rosto enquanto as enormes patas da
fera tentavam rasgar e despedaçar seu torso.
Um homem comum teria morrido ali. Mas Bat-
man não era um homem comum. Agindo com
extrema velocidade, o Cavaleiro das Trevas en-
fiou seu braço esquerdo dentro da boca aberta
da pantera. Desesperadamente, empurrou o
cotovelo para dentro da garganta do monstro,
forçando sua mandíbula a se abrir cada vez
mais. Furiosa, a fera respondeu tentando ar-
rancar e despedaçar o membro que a atacava.
Mas seus dentes não conseguiam arrancar

83
nem sangue. Tampouco suas patas consegui-
am feri-lo, embora arranhassem com força o
peito de Batman.
A morte dos vigias havia impressionado vi-
vamente o Cavaleiro das Trevas. Ele havia re-
conhecido as marcas de uma fera assassina e
tomara providências antes de entrar nas Cata-
cumbas. Por isso, usava debaixo do uniforme
uma levíssima armadura de fibra de vidro se-
melhante a um colete a prova de balas. Os
dentes e garras da pantera golpeavam de um
modo terrível, mas não conseguiam penetrar o
escudo protetor nem rasgar sua máscara.
Usando a mão livre, Batman agarrou o gato
gigante pela garganta. Apertando com toda
força, empurrou a fera para trás. As patas tra-
seiras do monstro raspavam o chão desespera-
damente, mas era inútil, pois centímetro a
centímetro a pantera negra deslizava do peito
de Batman em direção ao chão.
Cheio de adrenalina, o Cavaleiro das Trevas
ergueu-se até ficar de joelhos. Sua preocupa-
ção era impedir que a pantera levantasse suas
patas traseiras de modo a poder atingi-lo com
as quatro garras. Com ou sem armadura, seu
corpo só conseguiria suportar até um certo ní-
vel de violência. Depois de uma eternidade,

84
conseguiu ficar em pé.
Com a respiração ofegante. Batman aper-
tou ainda mais os dedos na garganta do ani-
mal. Urrando de dor, a pantera relaxou as
mandíbulas por um instante. Imediatamente
Batman enfiou seu braço um pouco mais fun-
do na boca do animal.
Os segundos passavam e homem e fera
permaneciam engalfinhados numa luta mortal.
Cada vez que Batman sentia a pantera afrou-
xar, empurrava o braço mais uns centímetros.
Se retirasse o braço, daria ao leopardo a opor-
tunidade de morder seu rosto, que não estava
protegido. Ao invés, virou-se para o lado e jo-
gou o corpo com toda força. Os dois caíram
juntos no chão de cimento.
Desta vez, no entanto, Batman estava por
cima, com os joelhos enterrados nas costelas
da pantera e os cotovelos separando as patas
dianteiras. Seus poderosos dedos continuavam
apertando o pescoço da fera, cada vez mais.
Cinco minutos depois, levantou-se cansado.
A gigantesca fera permanecia no chão, inerte.
Estava morta, estrangulada pelo Cavaleiro das
Trevas. Mais tarde, quando foi encontrada e
examinada, a polícia descobriu que, além da
traqueia quebrada, a maior parte de suas cos-

85
telas estavam fraturadas. O homem e a fera
haviam lutado até a morte. E o homem havia
triunfado.
Trêmulo, Batman pegou sua pistola de dar-
dos e a lanterna que havia deixado cair nos
primeiros momentos da luta. A fera assassina
já não ameaçava ninguém. Mas a missão do
Cavaleiro das Trevas ainda não havia termina-
do. Era chegada a hora de enfrentar o dono
do animal.

10.

“Chega de conversa fiada”, disse Landros


Bey, virando-se para a Mulher-Gato. Sua voz
tremia de paixão. “Você ouviu minha história.
E minha oferta. Reine comigo como a Senhora
dos Felinos. Ou morra.”
Selina forçou-se a ficar calma. Com o en-
canto hipnótico do egípcio desfeito, ela via Bey
apenas como um maníaco homicida. Todas as
suas promessas nada significavam. Mais cedo
ou mais tarde, ele se cansaria dela, ou se sen-
tiria atraído por outra mulher. A proposta não
passava de uma sentença de morte.
“Sempre fui uma solitária”, murmurou baixi-
nho, sem revelar seus pensamentos. “Acostu-

86
mar-me com um companheiro, mesmo um tão
desejável quanto você, pode ser difícil.”
O egípcio sorriu, relaxando visivelmente. O
que era exatamente a reação que Selina espe-
rava. Os megalomaníacos eram fáceis de en-
ganar. Seus egos monstruosos os tornavam
vítimas voluntárias. Apesar de todos os seus
poderes místicos. Bey era governado pela pró-
pria luxúria. E a Mulher-Gato tinha a intenção
de se aproveitar disso.
“Você mencionou quantias astronômicas?”
— insinuou Selina, deixando transparecer um
traço de ambição na voz. A ideia era atraente
para ela. Mas o que estava em jogo era muito
mais importante — sua vida e sua liberdade.
Bey assentiu. “Riqueza maior do que jamais
sonhou”, declarou. “Estas joias são brincadeira
de criança perto dos tesouros que possuo.
Como minha rainha, você partilhará a maior
coleção de joias que existe no mundo.”
“Parece tentador”, comentou Selina. Ela es-
tava ganhando tempo, esperando a hora certa
de atacar.
De repente, a enorme esmeralda no peito
de Bey teve um lampejo de brilho esverdeado.
O egípcio vacilou, quase perdendo o equilíbrio,
como se tivesse sido golpeado na cabeça.

87
“Impossível”, gritou, o rosto vermelho de
raiva. “Não pode ser!”
“Más notícias?” — perguntou Selina, avan-
çando um pouco em direção a ele. Ela suspei-
tava que a oportunidade que esperava estava
para chegar. Landros era culpado de um peca-
do que muitos outros haviam cometido antes
dele. Ele havia subestimado Batman.
“Ele matou meu predador!” — respondeu
Landros Bey com angústia na voz. O egípcio
cerrou os punhos com força. “Mas ele não es-
capará da minha ira. Eu juro.”
O rosto de Selina não traía nenhuma emo-
ção, mas estava exultante por dentro. Embora
odiasse admitir, a Mulher-Gato sentia-se alivia-
da em saber que o Cavaleiro das Trevas havia
sobrevivido ao ataque da pantera. Os homens
raramente a atraíam, muito menos policiais.
Mas no fundo de sua alma, Selina sabia que
sentia uma coisa especial pelo Batman.
Cautelosamente, deu mais um passo. Desta
vez, Bey notou o movimento. Seus olhos se
estreitaram de raiva. “Você acha que pode me
enganar?” — resmungou venenosamente.
“Cuidado. Sou o Senhor dos Felinos.”
“E eu”, respondeu uma voz profunda, res-
soando na boca do túnel da direita, “sou Bat-

88
man.”
Landros Bey engasgou de susto. De pé, na
entrada da passagem escura, o Cavaleiro das
Trevas era uma figura ameaçadora. Alto e for-
te, a enorme capa envolvendo os ombros, ele
parecia sobre-humano.
Sempre alerta, a Mulher-Gato viu inúmeros
rasgos no uniforme de Batman. Embora não
parecesse ferido, um leve tremor mostrou a
ela que a batalha com o Matador Noturno o
havia enfraquecido. Ele não estava em condi-
ções de lutar com Landros Bey. E nem com as
centenas de gatos que o lunático ainda contro-
lava.
Evidentemente o egípcio percebeu isso
também. “Será um grande prazer”, disse, com
o Coração de Sekhmet pulsando com energia.
Sua voz ficou aguda. “Matem...”
A Mulher-Gato entrou em ação. Como a lín-
gua de uma cobra, seu chicote foi lançado em
direção ao peito de Landros Bey. O egípcio,
pego completamente de surpresa, gritou de
horror quando o couro lambeu seu peito — e
arrebentou a corrente de ouro que prendia a
joia telepática.
O egípcio tentou agarrar a esmeralda, mas
fracassou por um décimo de segundo. Como

89
uma labareda de fogo verde, o Coração de
Sekhmet caiu no chão de concreto. Com um
brilho intenso, a pedra explodiu e partiu-se em
milhares de fragmentos de poeira brilhante.
Matem, havia exigido o Senhor dos Felinos.
E sua palavra, sem nenhuma outra ordem aco-
plada a ela, era lei.
Em uma só voz, quinhentos gatos uivaram
raivosos. Landros Bey, com uma expressão
confusa, balançou em vão as mãos no ar. “Pa-
rem, parem”, gritou. “Eu ordeno que parem!”
A Mulher-Gato, pressentindo imediatamen-
te o horror que estava por vir, correu em dire-
ção a Batman. Pegando o Cavaleiro das Trevas
pelo braço, puxou-o para dentro do túnel.
Como suspeitava, ele estava sem forças para
resistir.
“Solte-me”, ele protestou. “Não posso dei-
xar o Senhor dos Felinos escapar.”
“Não se preocupe”, replicou a Mulher-Gato,
puxando Batman para dentro da passagem es-
cura. Atrás deles, uma voz aguda de homem
gritava de dor. O grito seguiu-os durante muito
tempo enquanto subiam o túnel.

11.

90
Na noite seguinte, a polícia empreendeu
uma grande busca pelas catacumbas. Quase
cem homens participaram da investigação, es-
perando descobrir o esconderijo do ladrão fan-
tasma. Na terceira gruta que revistaram, fize-
ram uma descoberta sombria.
Gatos mortos enchiam a câmara. Eram cen-
tenas, terrivelmente mutilados; mordidos, ar-
ranhados, rasgados até a morte. Por alguma
razão desconhecida, haviam se voltado uns
contra os outros numa orgia insana de destrui-
ção. Nenhum animal estava vivo.
Enterrado sob os gatos, estava o corpo
destroçado de um homem. Não seria possível
fazer uma identificação positiva, considerando-
se a condição do cadáver. O corpo de uma
enorme pantera, descoberto num túnel partin-
do da câmara, apenas aumentava o mistério.
Nem mesmo Bruce Wayne sabia ao certo
os detalhes da história toda. Assim que se
convencera de que Batman poderia subir as
Catacumbas sozinho, a Mulher-Gato desapare-
cera na escuridão. Bruce não ficou surpreso
quando nenhum dos relatórios a respeito da
busca policial mencionou a recuperação das
joias roubadas. A Mulher-Gato acreditava em
sempre poder tirar vantagem de qualquer situ-

91
ação.
De alguma forma, Batman sabia que iria
encontrá-la novamente.

92
Uma Noite na Ópera
JEFF ROVIN
m

Era uma noite fria no começo de inverno.


Mas, nem o frio, nem a neve que ameaçava
cair tiravam sua disposição.
Ela pulava agilmente entre os telhados dos
velhos prédios de Gotham, ansiosa para ver a
obra que lhe servira de inspiração e consolo
sempre que precisara. Na mochila, trazia um
vestido de gala, apropriado para a ocasião.
No momento, porém, a roupa que vestia
estava mais de acordo com sua energia felina:
o uniforme colante e cinzento da Mulher-Gato.

II

A preciosa relíquia, feita de madeira, era


mais escura perto da base. Havia pequenos si-
nais ao longo da peça, indicando marcas de
pequenas batidas — e eventualmente panca-
das — recebidas ao ser brandida contra a es-
tante de partituras.

93
Centenas de convidados olhavam em silên-
cio enquanto o guarda retirava a magnífica ba-
tuta da caixa de vidro, colocando-a num cilin-
dro de ouro trabalhado. A caixa brilhava sob a
iluminação do enorme lustre de cristal, jogan-
do gotas de luz dourada nos convidados, no
chão de mármore e nos bustos de composito-
res famosos que decoravam o aposento.
John Taylor observou atentamente a batuta
ser carregada em direção à escada que levava
ao camarim do maestro LaDolce. Quando o
guarda sumiu de vista, Taylor respirou aliviado
e voltou-se para um casal parado ao seu lado.
Era um casal excepcionalmente bonito, uma
jovem esguia vestida de branco, a mão repou-
sando levemente no braço de um cavalheiro
alto e forte.
“Felizmente esta parte terminou”, comen-
tou Taylor, passando a mão pelos cabelos gri-
salhos. “É difícil acreditar. Cento e cinquenta
dólares a hora por um guarda. Meus músicos
não ganham isso!”
Bruce Wayne arqueou as sobrancelhas
olhando para o presidente do Conselho da
Ópera. “Não subestime o trabalho dos guar-
das. O que eles fazem nem sempre aparece.”
“Sem dúvida. Mas, ainda assim é frustran-

94
te.”
“Em que sentido?” perguntou Cindy Merritt,
acrescentando num murmúrio: “Como se al-
gum de nós se importasse.”
Wayne apertou sua mão e sorriu para Me-
gan LaDolce, filha do maestro Clifford LaDolce,
que acabara de subir a escada com sua mãe
Wendy. Eram corajosas as duas, por terem
vindo ao salão direto dos camarins.
Taylor continuou: “O guarda é apenas mais
um exemplo desta nossa época bárbara. Sel-
vageria na vida, e nos divertimentos. No outro
lado da cidade, o estádio de Gotham vende
eventos esportivos, corridas de caminhões,
concertos de ferro pesado...”
“Metal”, corrigiu Cindy. “Metal pesado.”
“Que seja. Todo tipo de obscenidade vio-
lenta. No entanto, a ópera de Gotham está de-
ficitária em trezentos mil dólares. Se a Funda-
ção Wayne e a Galeria Savran não tivessem
concordado em dobrar cada dólar arrecadado
nesta noite beneficente...”
“Bem, Bruce tinha que fazer alguma coisa
com as montanhas de dinheiro que ganha na
Rap-Around Records, certo?”, comentou Cindy.
Wayne piscou para ela.
“Touché.”

95
Taylor franziu o cenho. “Nossa cultura foi
mesmo para o buraco. O gerente do estádio
me contou que uma banda de rock and roll
deixou o público esperando por mais de duas
horas. É possível uma coisa dessas? O maestro
LaDolce é temperamental, mas pelo menos é
pontual.”
Enquanto Wayne ouvia, seu olhar foi atraí-
do para uma área escura entre a entrada prin-
cipal e um grande busto dó compositor italiano
Alfredo Catalani, cuja ópera La Wally fora
apresentada na estreia do teatro, em 1892. As
sombras sempre atraíam o olhar de Wayne,
que pensou ter visto algo se mover nelas.
“É um crime”, prosseguiu Taylor. “Vejam o
que temos aqui... a batuta que Beethoven
usou na performance inaugural de Fidelio, que
o próprio Tchaikovsky usou quando inaugurou
este teatro um século atrás. Uma peça mag-
nífica da história da música está em exibição
aqui há mais de uma semana e vocês sabem
quantas pessoas vieram ver?”
Wayne não respondeu. Estava observando
a sombra se mover e se transformar em duas,
a mais nova assumindo forma e cor.
“Menos de duzentas pessoas em uma cida-
de com mais de sete milhões”, reclamou Tay-

96
lor. “Eu poderia ter economizado uma fortuna
de seguro, só espero que as pessoas estejam
assistindo ao espetáculo desta noite pela tele-
visão. Talvez percebam que Mozart, Wagner e
Puccini podem ser mais agradáveis que os Be-
atles ou... qual o nome daquelas outras bes-
tas? Os Leprosos.”
Cindy tirou uma mecha de cabelos louros
da frente dos olhos. “Os Leopardos.”
“Que seja. Para mim, eles deveriam se cha-
mar Os Leopardos Surdos.”
O saguão estava começando a ficar cheio,
Wayne observou quando a mulher saiu da
sombra — uma mulher alta e magra com um
longo lilás justo. Seus cabelos eram negros e
curtos, os lábios vermelhos e as sobrancelhas
desenhadas. Ela se movia com uma graça in-
comum... e no entanto, estranhamente famili-
ar.
“Chega de reclamações. São sete e meia e
ainda preciso distribuir uns beijinhos e arran-
car alguns patrocínios dos ricos e famosos de
Gotham City”, comentou Taylor. Estendeu a
mão. “Bruce... como posso agradecer por
tudo?”
“Sinto-me feliz em poder ajudar”, respon-
deu Wayne, apertando a mão estendida.

97
Taylor fez uma leve mesura para Cindy, e
quase instantaneamente virou-se para abraçar
Craig Ogan, crítico musical do Gotham Gazet-
te.
“É preciso pôr esse pessoal para trabalhar”,
comentou Cindy.
“Não seja tão dura”, repreendeu Wayne. “O
que ele está fazendo é trabalho. Nas seis tem-
poradas, desde que administra a ópera, Ogan
criticou praticamente tudo que foi encenado.”
“Então, John deveria ter ido até lá e chuta-
do a canela dele em vez de abraçá-lo.”
“E em que isso ajudaria a ópera em Go-
tham?”
“Em nada, mas ele teria se sentido melhor
com isso.”
“Taylor se sentiu bem com seu trabalho”,
retorquiu Wayne. “Não aprovo todas as deci-
sões artísticas do John, mas ele deu a vida a
esse lugar.”
“É muita ética profissional para o meu gos-
to. Se você não fosse tão grande, alto, jovem
e fascinante, me lembraria meu pai”, comen-
tou Cindy.
Os olhos de Wayne retomaram para a mu-
lher de lilás quando ela cruzou o lobby, desli-
zando pela porta que levava à plateia. Parou

98
um momento ao lado de um dos auxiliares de
Taylor. Quando o jovem a notou e sorriu, ela
prosseguiu, certa de o haver fisgado.
Wayne sabia que conhecia a mulher, mas
não conseguia se lembrar de onde. O sucesso
no seu trabalho — todo ele — dependia de se
lembrar de detalhes que outras pessoas nem
mesmo percebiam.
“Por falar em meu pai”, continuava Cindy,
“já está na hora de lhe fazermos uma visita.
Gostaria que você conhecesse sua namora-
da...”
O lilás está errado, Wayne percebeu subita-
mente.
“... Karen Egenes, a mulher que ele quer
na direção de suas operações de franquia. O
que você acha disso?”
Eu vi essa mulher com um tom diferente...
mais pálido.
“Bruce? Alô, Bruce?”, insistia Cindy.
Wayne olhou para ela. “Desculpe. Eu esta-
va pensando numa coisa.”
“Enquanto eu estava falando? Você nem
me ouviu.”
“Ouvi, sim.”
“E o que foi que eu disse?”
“Que queria que eu conhecesse Karen Ege-

99
nes, a garota-maravilha do marketing.”
Cindy encostou a ponta do dedo na língua
e desenhou um número “1” no ar. “OK! Não
quero colocar você contra ninguém, mas ela é
a pessoa menos indicada para o trabalho. É
superficial, ambiciosa, independente...”
“Do jeito que você fala, ela se parece muito
com alguém que já trabalha lá.”
Cindy beliscou o braço de Wayne. “Eu sabia
que você ia dizer isso, mas não somos pareci-
das. Eu sou dedicada a meu pai e à compa-
nhia. Tudo o que ela quer é um salário de
mais de um milhão de dólares.”
“Se conseguir gerar lucros, ela merece. Li a
respeito do trabalho que Karen fez para as lo-
jas Dança Com Vídeos. Parece que ela conhe-
ce bem o negócio de varejo.”
“Mas nosso negócio são biscoitos, Bruce,
não videocassetes e discos de videolaser. Se o
trabalho dela não der certo e a Biscoitos Mer-
ritt afundar, papai vai perder uma fábrica de
chocolates e eu vou ter que trabalhar para vi-
ver... talvez até na Fundação Wayne.”
“Você não ia gostar. Ouvi dizer que o pa-
trão é durão.”
“É mesmo? Pois eu ouvi dizer que o cara é
um gatinho.”

100
Os dois dirigiram-se para a escadaria, com
Wayne tentando tirar a misteriosa mulher da
cabeça.

III

Antes de sentar-se na última fila, embaixo


do balcão, a mulher de lilás desceu o corredor
para ver os afrescos na abóboda do teatro, ce-
nas vividas das grandes óperas: Madame But-
terfly, Die Fledermaus, Aída e, é claro, A Flauta
Mágica. Ela sorriu quando reconheceu Papage-
no entre os personagens, com sua roupa de
penas e a flauta em forma de um gato pulan-
do sobre a presa. Os olhos e o sorriso do ani-
mal estavam cheios de amor e otimismo.
Como soara linda A Flauta Mágica quando a
ouviu por acaso pela primeira vez anos atrás.
Nessa época trabalhava nas ruas divertindo as
pessoas. Para se esconder da chuva, correu
para baixo da marquise para se proteger,
quando um trecho da abertura chegou aos
seus ouvidos. As melodias, os violinos delica-
dos e os metais orgulhosos, a alegria que a
música Conseguira criar naquela noite insípida
e na sua vida ainda mais insípida. Depois en-
traram as vozes, lindas, emocionantes, duran-

101
te a ária de A Rainha da Noite.
Vestida como estava, com olhares desagra-
dáveis vindos de gerentes, subgerentes, sub-
subgerentes e outros idiotas prepotentes, ela
havia saído da rua principal, entrando na ruela
ao lado do teatro. Lá, sentou-se no chão de
concreto e ficou ouvindo. Durante o intervalo,
um sujeito que trabalhava no teatro deu-lhe
um cobertor para se cobrir.
O maestro LaDolce havia sido o regente
aquela noite, e no dia seguinte ela lhe escre-
veu dizendo o quanto tinha se emocionado
com o espetáculo. O maestro, então, convi-
dou-a para uma série de conferências que fa-
ria no Conservatório de Música Clássica. Ela
compareceu, e lá conheceu Megan, a filha
dele; algum tempo depois as duas jovens pas-
savam horas conversando sobre música e Mo-
zart.
Fazia tanto tempo, e, no entanto, estava
tudo tão vivido em sua memória. Ela olhou
para o bilhete de entrada em sua mão. Espe-
rava que esta noite também fosse memorável
agora que iria ver, e não apenas ouvir, a ópe-
ra.
Selina Kyle ajustou a bolsa que pendia de
seu ombro e dirigiu-se para seu lugar, um sor-

102
riso demonstrando suas doces lembranças.
Além disso, estava entre as pessoas mais ricas
de Gotham City os criminosamente ricos, que
fariam dela uma rica criminosa. Ela os obser-
vara do saguão, prestando atenção nos no-
mes, catalogando os colares e broches, as
abotoaduras e os prendedores de gravata de
brilhantes.
Arte e comércio, coexistindo em harmonia.
O que mais uma pessoa poderia querer?

IV

“Então, o que acha da Karen?”


Bruce Wayne entrou no seu camarote de-
pois de Cindy Merritt. Inclinou-se por sobre o
balaústre de metal e espiou a plateia, ainda
parcialmente vazia, à procura da mulher que
vira no lobby.
“Pelo amor de Deus, Bruce, não vá pular!
Karen não é assim tão desagradável!”
Bruce conseguia enxergar apenas até a fi-
leira S, pois o balcão impedia que visse as sete
últimas fileiras. A mulher não estava em ne-
nhum dos camarotes visíveis.
“Bruce? Bruce, você está ‘Pensando numa
Coisa — Parte 2’?”

103
“Não. Estava procurando alguém.”
“Alguém que eu conheça?”
“Não sei ao certo nem se eu a conheço”,
respondeu, acomodando-se na cadeira.
Cindy franziu a testa. “Mais um capítulo das
aventuras de Bruce Wayne, O Mestre das Eva-
sivas. E quanto a Karen? Poderia me dar uma
opinião direta sobre ela?”
Wayne colocou a mão no queixo. “Franca-
mente, eu acho Karen muito simpática.”
“Não...”
“Ela é inteligente, articulada e tem um óti-
mo senso de humor.”
“Você está se referindo àquelas piadas a
respeito de massa para as massas e que o ne-
gócio é um doce? Bruce, os trocadilhos são
horríveis!”
“Funcionam nos anúncios.”
“Por favor”, resmungou Cindy. “Estamos co-
brando dois dólares por cada cem gramas de
massa assada. Temos que ter mais classe!”
“Elitista. Você está começando falar como o
John.”
Cindy torceu a boca, mas antes que pudes-
se responder, a porta do camarote da esquer-
da se abriu e John Taylor entrou, seguido por
Michael Savran. Cindy sorriu educadamente

104
enquanto seus olhos soltavam faíscas em dire-
ção a Wayne.
Michael Savran sentou-se na cadeira mais
próxima a Wayne. Os longos cabelos negros
do jovem regente estavam repartidos ao meio
e caíam de ambos os lados do rosto; tinha um
nariz aquilino levemente arrebitado e os lábios
finos e apertados.
Taylor acenou para Wayne, e Savran esten-
deu a mão por cima da divisória para cumpri-
mentá-lo.
“Boa noite, senhor Savran.”
“Senhor Wayne”, retorquiu o regente,
abrindo um largo sorriso. “A partir de amanhã,
maestro Savran.”
“A partir de amanhã”, concordou Wayne. “A
batuta ainda pertence ao maestro LaDolce.”
Era Savran quem assumiria a direção musi-
cal do teatro quando o septuagenário Clifford
LaDolce se aposentasse, após o espetáculo
desta noite. A nomeação de Savran fora uma
surpresa. A comunidade artística esperava que
o lugar ficasse com a filha de LaDolce, Megan,
que havia substituído o pai em numerosas
ocasiões, com grande sucesso. Mas John fizera
campanha por Savran, cuja família recente-
mente se tomara uma generosa patrocinadora

105
da ópera, e o Conselho resolvera seguir sua
recomendação.
Depois que Wayne apresentou Cindy, a por-
ta do camarote da direita se abriu. A belíssima
Megan entrou, acompanhada de Wendy, sua
mãe; Savran recostou-se rapidamente em sua
cadeira enquanto as duas tomavam seus luga-
res.
Wayne ficou entre Megan, sua mãe e Sa-
vran, de modo que elas pudessem olhar à es-
querda sem que seus olhos cruzassem com os
de Savran.
Megan conversou com Wayne por vários
minutos, agradecendo a carta de recomenda-
ção que ele havia escrito em apoio à sua indi-
cação e contando seus planos de ensinar na
universidade e ajudar seu pai a escrever suas
memórias.
“Talvez eu mesma escreva alguma coisa”,
ela disse. “Uma ópera-rock sobre corridas de
caminhões.”
“Eu produzo”, sorriu Wayne.
Durante a conversa, Wendy olhava cons-
tantemente para o relógio, acompanhando
com os olhos enquanto os músicos afinavam
os instrumentos no poço da orquestra. “São
oito horas”, anunciou a mulher grisalha. “Por

106
que a orquestra ainda está aquecendo?”
Megan olhou para ela. “Papai logo vai apa-
recer.”
“Ele já deveria ter vindo.”
“Dá um tempo, mamãe. Não é uma noite
muito fácil para ele.”
“Para nenhum de nós”, Wendy respondeu
em voz alta. “Não me surpreenderia se ele ain-
da estivesse no camarim, chorando. Nada me
surpreenderia. Sua própria filha...”
“Mamãe...”
“O que eles fizeram com você...”
Balançando a cabeça, Wendy virou o rosto
em direção à porta, olhou por um momento e
consultou o relógio novamente.
“Agora, já são mais de oito horas”, disse.
“Há algo errado.”
“Senhora LaDolce”, interferiu Wayne, “gos-
taria que eu fosse verificar se está tudo em or-
dem?”
“Não, obrigada. Ele só recebe a mulher, a
filha ou seu auxiliar antes de um espetáculo.”
Ela se inclinou em direção ao palco e voltou.
“Megan, você iria?”
“Mamãe, quinze minutos atrás ele disse
que queria ficar sozinho.”
“Eu sei. Mas estou preocupada. Ele passou

107
o dia chateado,” Lançou um olhar duro em di-
reção ao camarote de Taylor. “Na verdade, a
semana toda.”
Megan olhou para Wayne e deu de ombros.
“Eu vou”, respondeu, “mas, se conheço papai,
ele provavelmente está indo para o pódio de-
vagar, vai chegar lá antes que eu consiga vol-
tar, e vou perder a abertura.”
Franzindo a testa, Wendy disse: “Não é ne-
nhum Don Giovanni.”
Quando a filha se levantou, Wendy deu a
ela o canhoto do seu ingresso. “Leve isso. Se-
não podem não deixar você entrar de novo.”
“A senhora do maestro não está muito fe-
liz”, comentou Cindy dirigindo-se a Wayne.
“Eu também não fiquei muito feliz com o
resultado, mas foi uma decisão política. No en-
tanto, o teatro precisa de uma fonte regular
de patrocínio, e os Savran são muito ricos.
“Você também, mas eu detestaria ouvi-lo
tocar oboé.”
Wayne sorriu, e Cindy pediu licença para ir
ao toalete. Enquanto ela estava ausente, ele
passou a observar o teatro, que ficava mais
cheio a cada instante. Havia muitas mulheres
de branco ou de preto, umas poucas em ousa-
dos vermelhos ou azuis, mas nenhuma de li-

108
lás. Ele já havia concluído que vira aquela mu-
lher vestida com uma outra roupa que não um
vestido de noite, mas onde? Nas quadras de
tênis? Nas cocheiras?
Wayne olhou o relógio; agora, era ele que
estava preocupado. Isso era muito atípico do
maestro.
A porta do camarote de Taylor se abriu su-
bitamente, e Wayne prestou atenção quando a
auxiliar inclinou-se para falar com os ocupan-
tes.
“Senhor Taylor, estamos com um problema
lá embaixo. O senhor poderia me acompa-
nhar?”
“Qual é o problema?”
“Por favor, senhor”, ela respondeu, “venha.”
Taylor saiu, seguido por Savran. Um mo-
mento depois, Bruce Wayne saiu apressada-
mente de seu camarote e seguiu-os.

A porta do camarote encontrava-se aberta,


e o maestro estava deitado no sofá, imóvel.
Seu assistente, Alfonse, estava ajoelhado ao
seu lado.
Taylor parou na porta, com o rosto empali-

109
decendo ao ver o regente.
“Alfonse... pelo amor de Deus, o que acon-
teceu?”
“Não sei”, Alfonse respondeu com lágrimas
correndo pelo rosto. “O maestro pediu para fi-
car só, como sempre, mas, quando desci para
buscá-lo, ele estava caído no chão.”
Taylor passou a língua pelos lábios enquan-
to estudava o aposento.
Atrás dele, a auxiliar disse, “O Dr. Trias está
na plateia. Eu mandei chamá-lo.”
Taylor assentiu, seus olhos cinzentos pou-
saram em Alfonse. “Onde está a batuta?”
“Eu não sei. Quando cheguei, não vi nem a
batuta, nem o cilindro.”
“Meu Deus”, exclamou Michael Savran, fe-
chando os olhos e pondo a mão na testa.
“Ligue para a polícia”, ordenou Taylor, e vi-
rando-se para Savran. “Prepare-se. Você vai
reger A Flauta Mágica esta noite.”
Savran ergueu as sobrancelhas. “O quê?
Quer que eu prossiga com o espetáculo depois
disso?”
“Não podemos cancelar.”
“John, as pessoas entenderiam.”
“Os nossos credores não entenderiam.”
“Mas os meus pais”, protestou Savran,

110
“queriam estar presentes na minha estreia em
Gotham.”
“Eles vão compreender. Por favor, vá se
preparar. Vou fazer o anúncio.”
Ouvindo tudo do corredor, Bruce Wayne vi-
rou-se e caminhou em direção ao saguão. Ele
sabia algo que essas pessoas não sabiam;
uma coisa que o preocupava profundamente:
a batuta não era a única coisa que havia desa-
parecido.
Megan LaDolce, também.

VI

Um lanterninha aproximou-se de outro na


passagem entre o saguão e a plateia, a pou-
cos passos de onde Selina estava sentada.
“Você sabe por que o atraso?”
“Deixe-me adivinhar. O pão-duro do Taylor
resolveu passar o chapéu, como no ano passa-
do.”
“Não. Lembra quando ele decidiu mandar
um guarda embora e economizar uns duzentos
dólares? Bem, alguém deu uma pancada na
cabeça do maestro LaDolce, deixou-o estirado
no chão e roubou a batuta.”
Para Selina aquilo foi como um murro no

111
estômago; alguns segundos se passaram até
que ela conseguisse respirar novamente.
“O maestro está bem?”
“Não sei. Ainda está desmaiado.”
“O Taylor pirou?”
“Não, mas ouvi dizer que está mais aborre-
cido pela batuta do que por LaDolce.”
Suas vozes desapareceram quando o san-
gue começou a pulsar nos ouvidos de Selina.
Está acontecendo de novo, e eu não posso
permitir isso... Eu não vou permitir isso.
Houve um tempo em sua vida que, como
um gato preto, ela parecia trazer azar para as
pessoas que eram bondosas com ela. Sua
irmã, que teria sido morta se não fosse pelo
Batman; sua amiga Holly, tantas outras. Pes-
soas demais. Selina pensou que aquilo tinha
passado.
Pelo jeito, não tinha.
Levantou-se como se estivesse em transe e
andou em direção à porta. A música do maes-
tro LaDolce havia lhe dado esperança e alegria
quando estava sem amigos, ajudara-a a en-
contrar paz quando sua vida estava de cabeça
para baixo. Quem quer que tivesse ousado fa-
zer isso pagaria.
Selina cruzou o saguão e entrou no toalete

112
feminino; estava vazio. Abriu a janela, entrou
em um box, trancou a porta, pendurou sua
bolsa no gancho e tirou o vestido.
O uniforme cinzento estava por baixo. Ela
vestiu o capuz e depois enfiou um par de lu-
vas, em que cada dedo era equipado com uma
garra afiada na ponta. Flexionou as mãos, pe-
gou um chicote da bolsa e o prendeu na cintu-
ra.
Como Selina Kyle, ela nunca estava livre de
culpas e remorsos, de fraquezas humanas e
carências emocionais. Provavelmente nunca
estaria. Mas como Mulher-Gato, era uma outra
pessoa, que não se constrangia com regras e
convenções, não temia homens ou mulheres,
não tinha vergonha do passado ou preocupa-
ções com o futuro. Como Mulher-Gato, só
existia o presente, e sobre isto ela tinha con-
trole; tudo com a graça e a força da criatura
da qual emprestara o nome.
Depois de certificar-se que não havia nin-
guém por perto, pegou a bolsa, foi até a jane-
la e saiu por ela, deslizando pelo beco lateral
com movimentos rápidos e fluentes. Fechando
a janela, deixou seus pertences atrás de uma
lata de lixo e tomou a direção da rua.

113
VII

A Mulher-Gato movia-se rapidamente, aga-


chada, escolhendo o caminho com os olhos, os
ouvidos e o nariz. Mantinha os braços estica-
dos e as mãos abertas, garras em alerta. Seus
olhos moviam-se constantemente, estudando
a rua à sua frente, os muros escuros de tijolos
de ambos os lados do beco, que ainda estava
úmido devido à lavagem da tarde.
O teatro ficava num bairro conhecido, e ela
sabia que os guardas noturnos dali normal-
mente iam para a Cozinha da Loree quando
acabavam o turno. Seu plano era ir até a porta
dos fundos, tentar localizar o guarda que havia
trabalhado ali à noite, atraí-lo para fora e des-
cobrir se tinha visto alguém entrando ou sain-
do, e se a batuta havia realmente chegado ao
camarim do maestro. Talvez o guarda tivesse
sido pago para entregar a batuta a alguém, ou
para deixar alguém entrar...
Parou subitamente na porta dos fundos do
teatro e ajoelhou-se. Com a mão direita, pe-
gou um pequeno retângulo de papelão entre
as garras.
Um canhoto de ingresso para um camarote
do primeiro andar. Alguém que estava lá den-

114
tro esta noite tinha saído... provavelmente
pela porta dos fundos.
Havia apenas duas saídas do beco: subindo
a escada de incêndio ou indo em direção à
rua. Certamente, fosse quem fosse a pessoa
que tivesse esse ingresso, não voltou ao teatro
depois de ter saído. Então, o mais provável é
que tivesse ido para a rua. E, nesse caso, po-
deria haver um registro de sua partida.

VIII

“Harleigh, eu estou com um produtor exe-


cutivo na linha dizendo que está recebendo li-
gações de telespectadores impacientes. Existe
alguém aí que saiba o que está acontecendo?”
O diretor Eric Berkowitz estava sentado ao
lado dos controles do caminhão de reporta-
gem, estacionado em frente ao teatro. Estava
com um telefone em um ouvido e um fone de
ouvido no outro, c o microfone transmitia suas
palavras para a apresentadora Harleigh Kidd.
“Eric”, respondeu ela, “não estamos conse-
guindo nada aqui, apenas a confirmação de
que houve um atraso.”
“O que jamais teríamos descoberto sozi-
nhos”, resmungou Eric. Virou-se para o opera-

115
dor de VT sentado ao seu lado. “Aaron, vá lá
dentro e veja o que consegue descobrir.”
Depois que Aaron saiu, Berkowitz voltou
sua atenção para a tela. As entrevistas de Har-
leigh com as celebridades recém-chegadas ti-
nham mais um minuto no ar. Depois disso,
como já havia dito ao produtor executivo, en-
traria com chamadas de outros programas da
PBS.
O diretor não ouviu quando alguém entrou
no carro e chegou até onde estava. E só per-
cebeu que não estava sozinho quando ela ti-
rou o fone de seus ouvidos, jogando-o no seu
colo.
“Você gravou a Thomas Avenue esta
noite?”, perguntou a Mulher-Gato.
Berkowitz olhou à sua esquerda. A máscara
cinzenta da intrusa estava a centímetros do
seu rosto, e seu olhar percorreu rapidamente
os gelados olhos azuis da intrusa, chegando
até as orelhas pontudas no alto da máscara.
Ele riu. “O que você fez, pegou isso no
guarda-roupa? E o que está acontecendo?
Uma brincadeira de gato e rato?”
“A rua. Você filmou a rua?”
“Nós filmamos tudo. Ei, por que não volta
lá pra dentro? Nós temos um monte de teles-

116
pectadores assistindo a isso, sabia?”
A Mulher-Gato olhou a parede cheia de
equipamentos e viu uma máquina de vídeo
embaixo de um dos monitores. Esticou um
dedo comprido e apertou rewind. A fita come-
çou a voltar.
“Ei! Você não pode mexer aí! Isso vai para
o ar!”
Berkowitz esticou a mão em direção à
máquina, mas parou instantaneamente ao
sentir uma garra afiada embaixo do queixo.
“Não faça isso!”, chiou a Mulher-Gato.
Uma voz gritava ao telefone, mas ela tirou
o aparelho da mão dele e desligou. Ficou as-
sistindo enquanto a fita mostrava a marquise,
os admiradores boquiabertos, a rua... e uma
caminhonete preta saindo do beco.
O telefone tocou. Berkowitz olhou para o
aparelho, mas não disse nada. O sangue es-
corria do pequeno ferimento embaixo do seu
queixo.
A Mulher-Gato apertou pause e observou
os números no canto da tela. A caminhonete
tinha saído às 8:11 indo em direção ao norte
pela Thomas. Ficou olhando quando virou para
o leste na Robinson Avenue e desapareceu na
escuridão.

117
O telefone continuava tocando. Berkowitz
olhou para o aparelho de novo.
“O que eu faço?” perguntou. “Se eu não
atender...”
A dor no seu queixo desapareceu de repen-
te, e o diretor olhou para trás. A porta traseira
estava aberta, e ele estava só.
Vagarosamente, pegou o telefone e a voz
do outro lado explodiu.
“Berkowitz! O que você pensa que está fa-
zendo? Por que não atendeu?”
“Você acreditaria”, ele respondeu, atônito,
“se eu dissesse que um gato comeu minha lín-
gua?”

IX

Depois de sair do hall, Bruce Wayne correu


para o seu Rolls-Royce, que estava na gara-
gem no subsolo. Abriu a porta e, por trás de
janelas escuras, pegou uma valise num com-
partimento embaixo do banco. Tirou o casaco
e a gravata borboleta.
O crime e a identidade daquela mulher não
saíam da sua cabeça enquanto ele abria a ma-
leta e pegava o uniforme. Por que essa sensa-
ção de que estavam relacionados? Pensou a

118
respeito do roubo... a respeito do desapareci-
mento de Megan... a respeito da mulher e seu
vestido lilás.
Sua postura! Ele percebeu subitamente que
isso é que era familiar, não o rosto. Ela cami-
nhava com os ombros bem para trás, a cabeça
ligeiramente para a frente, os braços soltos,
furtiva naquele vestido justo...
Furtiva... como um gato.
Bruce Wayne vestiu o uniforme rapidamen-
te. Depois de assegurar-se de que o estacio-
namento estava vazio, saiu do carro e subiu a
rampa que o levaria até a frente do teatro e,
como suspeitava, de encontro a uma adversá-
ria conhecida.

Uma leve nevasca começava a cair quando


a Mulher-Gato atravessou a rua, subiu a esca-
da de incêndio da Biblioteca Musical Finger e
correu para o telhado. Movia-se rapidamente,
tentando alcançar a caminhonete. Se se apres-
sasse, talvez conseguisse avistá-la, ainda que
de relance.
O bairro era um dos mais velhos da cidade,
dominado por antigos edifícios de três ou qua-

119
tro andares onde artistas, músicos e escritores
moravam antes que o lugar decaísse, durante
os últimos dez anos. Uma vez em cima da bi-
blioteca, atravessou os velhos telhados em di-
reção ao norte e parou uma vez para olhar a
Robinson Avenue.
A neve na rua tornava fácil identificar os
carros. Agachada no parapeito do prédio, a
Mulher-Gato dirigiu o olhar aguçado desde o
West Park, passando pela estrada ao norte,
até perto das docas ao leste, com seus car-
gueiros, armazéns cavernosos e o heliporto.
As docas.
Ela estudou a área cuidadosamente. Será
que o ladrão estaria planejando tirar a batuta
da cidade naquela mesma noite, usando um
barco ou helicóptero? As coisas iam ficar terri-
velmente quentes na cidade, especialmente
com Batman e a polícia trabalhando no caso.
Somente um idiota ficaria por aqui muito tem-
po.
A estrada a essa hora já deveria estar um
ninho de tropas estaduais. O porto fazia senti-
do.
Ela olhou ao longo da Robinson, que ia di-
reto até o rio, a um quilômetro e meio de
onde estava. Ela observa os caminhões, táxis,

120
carros particulares, na medida em que se diri-
giam para o leste. Por acaso, notou um moto-
ciclista impaciente, depois um táxi, puxar para
a esquerda desviando-se de um veículo vaga-
roso.
Uma caminhonete.
Não dava para saber se era preta, mas a
distância e o tempo conferiam. Ela observou
quando o veículo entrou numa rua lateral —
mas então, perdeu-a de vista atrás do edifício
da Capitania dos Portos.
Levantando-se, a Mulher-Gato lembrou-se
de todos os anos em que havia andado por
aquelas ruas. Reviu os prédios, suas fachadas,
as passagens pouco conhecidas entre eles ou
por cima deles, lugares que descobrira quando
tentava despistar a polícia... ou Batman. De-
pois de uma rápida olhada para baixo, saltou
por cima do parapeito, estalando o chicote en-
quanto caía.
Seu cálculo de tempo foi perfeito. A longa
tira de couro pegou numa haste do poste de
iluminação e o metal se curvou, sem quebrar;
a Mulher-Gato sabia que deveria se pendurar
pelo tempo exato de amortecer sua queda. Jo-
gando o corpo para cima, afrouxou os braços
para deixar o chicote desenrolar, puxando-o

121
em sua direção quando completou o salto.
Aterrissando de quatro na calçada, passou ve-
lozmente por um casal que havia saído para
aproveitar a noite coberta de neve.
“Alice, era um super-herói!”, o homem gri-
tou. “Três anos em Gotham City e eu final-
mente vi um!”
A Mulher-Gato desapareceu antes que a
mulher pudesse se virar para vê-la. Usou seu
chicote numa escultura em relevo de um pré-
dio para pular por cima de uma cerca de metal
ao lado do Museu de Arte do Oeste; caindo do
outro lado, cortou caminho pelo meio do quar-
teirão e saiu em um cemitério povoado com
túmulos de artistas e escritores. Atravessou o
lugar pulando por cima das lápides.
Quando saiu do outro lado, deu a volta no
edifício da Capitania dos Portos e partiu em di-
reção ao rio, a apenas dois quarteirões de dis-
tância.

XI

Sob a marquise deserta, o oficial de polícia


Jack Gish estava interrogando um homem visi-
velmente agitado e ansioso em frente a uma
unidade móvel de transmissão de TV. De vez

122
em quando o homem passava um lenço sujo
de sangue debaixo do queixo.
“Eu não sei quem era ela”, disse Eric
Berkowitz enquanto mascava nervosamente
um chiclete. “Tudo o que posso dizer é que ela
estava usando uma roupa cinzenta, como uma
fantasia, com garras e um rabo, e que foi em-
bora depois de assistir à gravação.”
“Eia fazia parte do elenco?”
“Não sei.”
“Você diz que ela foi embora. Ela estava de
carro?”
“Acho que não.”
“E foi para onde?”
“Não sei.”
“Senhor Berkowitz, o que o senhor sabe
exatamente?”
“Que ela... desapareceu. Num momento,
ela estava ali, com uma garra no meu pesco-
ço, e de repente desapareceu.” Uma voz pro-
funda falou atrás deles, “Ela se interessou por
alguma coisa que viu na fita de gravação?”
Os dois homens viraram-se e olharam para
a figura imponente, vestida num uniforme cin-
za e azul. A borda pontuda de sua capa balan-
çava suavemente atrás de suas botas escuras;
o dourado e o negro do seu famoso símbolo

123
de morcego aparecia por cima de braços po-
derosos cruzados sobre o peito largo. Os olhos
de Berkowitz se arregalaram.
“Boa noite, Batman”, disse o policial Gish,
erguendo a mão até a ponta do quepe. Depois
adotou uma postura mais ereta.
“A fita”, repetiu Batman. “O que chamou a
atenção dela na fita?”
Berkowitz engoliu o chiclete. “Ela... ela pa-
receu zangada com uma caminhonete preta.
Não sei por quê.”
“Tem certeza de que não sabe para onde
ela foi? Não viu nenhuma sombra, não ouviu
ruído de freadas ou alguém gritando na rua?”
Berkowitz balançou a cabeça.
“Essa caminhonete que ela viu, para onde
foi?”
“Entrou na Robinson”, respondeu
Berkowitz. virando-se e apontando, “em dire-
ção ao leste. Eu poderia mostrar a fita se...”
O diretor parou de falar quando se voltou;
o vingador mascarado havia partido. O policial
estava olhando para cima, franzindo os olhos.
“Foi assim”, comentou Berkowitz, seguindo
o olhar do policial em direção ao horizonte.
“O quê?”
“Eu estava dizendo que essa pessoa vestida

124
de gato desapareceu... assim!”

XII

O porto acompanhava o rio por mais de um


quilômetro. A Mulher-Gato subiu em cima de
um vagão parado ao lado de um armazém; à
sua esquerda, rebocadores e balsas batiam si-
lenciosamente contra os pilares. Havia algum
movimento nos barcos ancorados mais abaixo
no rio, mas não aqui — e esse era o motivo
pelo qual a caminhonete tinha vindo para essa
parte do rio. Este era o lugar onde alguém po-
deria transferir coisas roubadas sem ser visto.
Infelizmente, não era possível ver a cami-
nhonete em lugar nenhum, e eia supôs que o
veículo deveria ter entrado em um dos três ar-
mazéns neste lado do porto. Pulando de cima
do vagão, ela correu de um armazém para ou-
tro, ouvindo.
Ouviu sons no segundo; deu a volta até
uma porta de aço e viu marcas recentes de
pneus na neve. Parou em frente à porta e se
aproximou, prestando atenção nas vozes aba-
fadas que vinham de dentro.
“... não gosto da ideia de botá-la pra na-
dar.”

125
“Nem eu, Harvey, mas que outra escolha
nós temos? Se a deixarmos solta, ela vai nos
identificar nos álbuns da polícia em segundos.
E, se a deixarmos aqui, o velho Whispery vai
ficar com medo e fugir.”
“Podíamos levá-la conosco...”
“E fazer o quê? Ficar com ela pra sempre?”
“Deixa o Whispery decidir.”
“Ele vai decidir que o problema é nosso. E
aí a gente faz o quê? Não podemos nem de-
nunciá-lo... ou a ela.”
Depois de um breve silêncio, o que havia
falado primeiro disse: “Então, estou fora, Alex.
Eu não vou me envolver em assassinato.”
“Você já está envolvido em sequestro e no
roubo da batuta. Isso dá quinze anos. Se en-
carou até aqui, pode ir até o fim.” Que escória,
pensou a Mulher-Gato. Eram esses os sujeitos
que estava procurando. Soltando um suspiro
de raiva, deu um passo atrás e olhou para
cima. Havia uma luminária a uns três metros
de altura, e uma janela mais de sete metros
acima... muito alto para alcançar. Abrir a porta
poderia ser desastroso: eles provavelmente ti-
nham revólveres e estavam com uma refém, o
que tornava a situação ainda mais complicada.
A única solução seria conseguir que eles vi-

126
essem até ela. A Mulher-Gato aproximou-se da
porta. “Psiu! Vocês dois!”
Os homens pararam de se mover.
“Eu sei que estão aí dentro!”, disse. “Sou
uma amiga, tenho notícias para vocês.”
Depois de um longo silêncio, Alex pergun-
tou: “Que tipo de notícia?”
“Eu estava passando pelo teatro e por aca-
so vi o que estavam fazendo no beco. Não se
preocupem... eu sou limpeza. Vocês se lem-
bram do caminhão da TV na frente do teatro?”
“Sim...”
“Bem, eles também viram vocês.”
Ela ouviu Harvey dizer um palavrão; Alex
mandou que calasse a boca.
“Como você sabe?”, perguntou Alex.
“Porque um homem saiu correndo com
uma câmera de vídeo quando estavam indo
embora. Ele filmou quando vocês viraram na
Robinson.”
“Não acredito em você.”
“Problema de vocês. Eu só estava tentando
ajudar.”
“E mesmo que tivessem visto a gente”, dis-
se Alex, “e daí? Ninguém vai imaginar onde
estamos... a não ser que alguém conte.”
“Não serei eu”, replicou a Mulher-Gato.

127
“Sou uma fora-da-lei também. Foi por isso que
achei que poderiam precisar de ajuda. Uma
carona para algum lugar... usar o telefone do
carro. Sei lá, qualquer coisa.”
Harvey gritou: “Como eles poderiam saber
o que estávamos fazendo? Nós poderíamos es-
tar retirando alguma coisa do teatro.”
“E a batuta?”, perguntou a Mulher-Gato.
Silêncio. Então Alex falou: “Como você sabe
disso? Não dava pra você ter visto. Estava
dentro de um saco.”
A Mulher-Gato ouviu passos. A voz de Alex
ficando mais alta, chegando mais perto. Ela ti-
rou o chicote da cintura.
“Eu ouço rádio”, respondeu. “Só se fala nis-
so. A polícia vai somar dois mais dois... ou en-
tão Batman.
Alex parou a um ou dois metros da porta. A
Mulher-Gato recuou um pouco, para fora da li-
nha de tiro. Ele poderia estar saindo tanto
para negociar como para atirar. Em todo caso,
teria de abrir a porta, e ela estaria preparada.
“Espere um pouco”, disse Alex. “Eu quero
pensar um pouco a respeito.”
“Sem problema”, respondeu a Mulher-Gato,
e estalou o chicote no ar.

128
XIII

As catracas gemeram quando a porta foi


sendo levantada. Houve três clarões — à es-
querda, no meio e à direita — e o revólver si-
lenciou.
Não havia mais nenhuma luz lá dentro;
Alex tinha apagado. Porém, agachada na lumi-
nária logo acima da porta, a Mulher-Gato já ti-
nha deduzido a posição dele a partir dos tiros.
Com o chicote ainda enrolado na luminária,
segurou o cabo com força e lançou-se para
baixo, as pernas esticadas, os dedos dos pés
erguidos de modo que os calcanhares ficas-
sem na frente.
Seu pé esquerdo acertou Alex no peito; ele
atirou enquanto caía para trás, a bala atingiu a
parte de cima da porta e ricocheteou na escu-
ridão.
A Mulher-Gato caiu sobre seu pé direito e
se agachou na frente de Alex, arremetendo
contra ele de ombro. Ele caiu numa pilha de
caixas e ela segurou-o ali, apertando sua gar-
ganta com a mão direita e agarrando a mão
do revólver com a esquerda. A arma cuspiu
balas para o lado, atingindo a caminhonete.
“Alex!”, berrou Harvey, e o segundo bandi-

129
do começou a avançar lentamente, no escuro.
A Mulher-Gato soltou a garganta e o pulso
de Alex, agarrando-o pela jaqueta com as
duas mãos, então virou-o de encontro a lateral
da caminhonete. Girando o corpo com a perna
esticada, deu um pontapé na cabeça do agres-
sor, que escorregou para o chão sem um ge-
mido.
Agachando-se novamente, ela lançou-se na
direção dos passos.
“Ale...”
Harvey interrompeu o grito quando a Mu-
lher-Gato atacou, as duas mãos esticadas na
direção da voz. As garras da sua mão direita
atingiram seu tórax, atravessando casaco e ca-
misa, e cravando-se em seu peito.
“Ahhhhhhhhh!”
Ele ainda gritava quando a Mulher-Gato
caiu de costas e o viu atirar duas vezes no lo-
cal onde ela havia estado. Agarrou o pulso
dele com as duas mãos e girou com força para
baixo; o osso partiu, ele largou a arma e seus
joelhos dobraram. Quando caiu em sua dire-
ção, ela colocou os pés na sua barriga, dobrou
as pernas e o jogou para frente.
Depois, passou a observar o local. Em um
canto escuro, era possível distinguir a forma

130
de uma pessoa mulher, parecia sentada em
uma cadeira, amarrada e amordaçada. A prisi-
oneira ia ter que esperar mais alguns minutos.
Harvey estava no chão, e a Mulher-Gato
subiu em cima dele num segundo, apertando
seu peito com o joelho e enfiando duas garras
embaixo do seu queixo. Com a outra mão,
agarrou-o pelos cabelos e puxou. Ele gritou de
dor.
“Você vai abrir o jogo, Harvey?”
“Vou, vou!”, gritou ele. “Eu não queria fazer
isto, as coisas saíram de controle. Foi culpa do
Alex.”
“Vá com calma...”
“Olha, eu precisava de dinheiro, admito. O
sindicato, minha ex-mulher, Joe O e seus ca-
pangas. Eu não sei por que estou sempre me-
tido em encrenca...”
A Mulher-Gato levantou-se, segurou Harvey
pela jaqueta, atirando-o com força contra um
caixote. Seus pulmões se esvaziaram de uma
vez, e ela jogou-o novamente no caixote.
Agora ele estava quieto.
Deixando-o cair no chão, ajoelhou-se com
uma perna sobre ele novamente, suas garras
pegando-o pela garganta. “Tudo bem se a
gente começar de cima?”

131
Ele assentiu.
“Bom. Qual é a história?”
Antes que ele pudesse responder, Alex se
mexeu à esquerda deles. A perna livre da Mu-
lher-Gato soltou um pontapé e o colocou para
dormir de novo, e seu olhar voltou-se para
Harvey. Mesmo sob a luz pálida da luminária,
conseguiu ver que os olhos de seu opositor es-
tavam aterrorizados.
“Estou esperando”, disse. “Comece me di-
zendo quem são vocês.”
Ele engoliu em seco. “Meu nome é Harvey
Helper. Trabalho nas docas... eu e meu super-
visor ali, Alex Burgess.”
“Quem contratou vocês? Quem é Whis-
pery?”
“Eu não sei...”
A Mulher-Gato apertou um pouco mais as
garras na garganta dele. “Tente adivinhar... ra-
pidamente.”
“Juro por Deus que não sei! Tinha uma voz
sussurrante, tanto podia ser homem como mu-
lher.”
“OK. Continue.”
“Essa pessoa que sussurrava ligou um dia,
a troco de nada. Disse que sabia que fazíamos
bicos depois do trabalho...”

132
“Bicos?”
“Transportar mobília, quebrar a cara de al-
guém, ou cobrar uma dívida. Essa voz disse
para irmos até a porta de serviço do teatro.
Quando chegamos lá, o Whispery abriu só um
pouco a porta... disse para irmos até o cama-
rim e foi embora. Depois que derrubamos o
maestro, ela entrou.” Ele moveu os olhos em
direção à prisioneira. “Não esperávamos isso...
juro. Eu não queria machucar ninguém.”
“Mas ela viu vocês, então tiveram de levá-
la.”
Ele assentiu.
“O Whispery vai vir aqui?”
“Não sei. Nós tínhamos que estacionar a
caminhonete aqui e colocar a chave do arma-
zém no vagão. Íamos receber o dinheiro daqui
a dois dias.”
“Onde está a chave?”
Ele pegou a chave no bolso e entregou.
“Nenhum sinal de código?”
“Nada. Quando terminássemos aqui, deve-
ríamos apagar a luz e ir embora.”
A Mulher-Gato levantou e deu um pontapé
na têmpora direita do sujeito.
“Você já era”, falou, e andou na direção da
prisioneira.

133
XIV

Quando se aproximou e conseguiu ver me-


lhor quem estava amarrada, a Mulher-Gato pa-
rou de repente.
“Megan?”, exclamou. “Megan LaDolce?”
A prisioneira fez um som gutural e lutou
com a corda enquanto a Mulher-Gato se apro-
ximava. Mas, antes que pudesse soltá-la, uma
voz profunda e familiar soou atrás dela.
“Não se mova.”
A Mulher-Gato ergueu-se lentamente e en-
carou a figura imponente em pé na soleira da
porta, sua silhueta destacada pela luz.
“Batman, como sabia que eu estava aqui?”
“Não existem muitas pessoas capazes de
atravessar a cidade pelos telhados. Eu segui
suas pegadas na neve.” Ele avançou, incli-
nando-se para olhar os homens no chão.
“Desde quando se interessa por artigos musi-
cais?”
“Você entendeu tudo errado”, ela respon-
deu. “Eu não roubei a batuta.”
A Mulher-Gato notou o batarangue na mão
dele, pronto para ser lançado se tentasse fugir.
Ela já havia experimentado aquilo antes; pul-

134
so, tornozelos, cintura, sua pontaria era inex-
plicável.
“Eu sei que você não roubou. Mas estava
ajudando esses dois a encontrá-la? É por isso
que estava na ópera hoje à noite?”
Aquela havia pego a Mulher-Gato de sur-
presa: às vezes, ela achava que Batman era
mediúnico. Mas a indignação logo tomou o lu-
gar da surpresa.
“Eu estava lá para ouvir música, Batman, e
quer saber o que deve fazer com suas suposi-
ções?”
“Desculpe”, ele disse. “Por outro lado, uma
amante da música não acharia essa batuta de-
sejável?”
Enquanto ele falava, a Mulher-Gato havia
passado uma garra por baixo da mordaça da
prisioneira. Quando rasgou-a com um puxão,
as palavras literalmente explodiram da boca de
Megan.
“Batman, essa mulher me ajudou. Se não
fosse por ela, eu estaria morta!”
Batman parou, impenetrável e assustador
no escuro. A Mulher-Gato foi para trás de Me-
gan e começou a desamarrar as cordas.
“Foi tão horrível”, continuou Megan. “Algum
de vocês esteve no teatro? Papai está bem?”

135
“Não sei”, replicou Batman. “Eu vou levá-la
até ele.”
Ele olhou fixo para a Mulher-Gato. “A batu-
ta?”
“Na caminhonete.”
Batman foi até lá para verificar, pegou as
cordas que prendiam Megan e usou-as para
amarrar os ladrões. Depois de colocá-los na
caminhonete, dirigiu-se às duas mulheres.
“Obrigado”, disse para a Mulher-Gato, de-
pois apontou para os dois na caminhonete.
“Eles deram alguma informação?”
“Nada. Seja quem for que contratou os
dois, não falou muito.”
Esfregando os pulsos machucados, Megan
andou até a Mulher-Gato. “Sua voz me soa fa-
miliar. Não conheço você de algum lugar?”
A Mulher-Gato assentiu.
“Não vou perguntar de onde, mas obrigada
por tudo que fez.”
Batman dirigiu-se a sua nêmesis: “Quer
uma carona de volta?”
“Acho que vou ficar com os telhados. Mas
por que não se encontra comigo no teatro em
uma hora? Tenho alguns palpites a respeito de
quem está por trás de tudo isso.”
Ele concordou, caminhou até a porta do ar-

136
mazém e esticou a mão para cima. “Não es-
queça isto”, falou, jogando o chicote em sua
direção.
Ela fez um aceno com o chicote e ficou ob-
servando enquanto os dois entravam na cami-
nhonete e ia embora. Quando eles se afasta-
ram, ela desapareceu na noite para esperar...

XV

A lancha veio subindo o rio no escuro. O pi-


loto desacelerou, desligou o motor a vários
metros do píer e se aproximou silenciosamen-
te. Quando a lancha bateu suavemente na pi-
lastra, o ocupante saltou para a terra, amarrou
o barco e ficou esperando.
Deitada em cima do vagão, a Mulher-Gato
sorriu. Ela sabia que alguém apareceria assim
que os noticiários dissessem que o roubo ha-
via sido bem-sucedido. Um objeto como aque-
la batuta era muito valioso para ser deixado
sozinho por muito tempo.
Observou o sujeito em pé no píer. Ele olhou
primeiro para o armazém, depois para o va-
gão. Andou uns passos para a direita, depois
para a esquerda e em seguida ficou novamen-
te imóvel — provavelmente para ter certeza de

137
que sua chegada não fora notada.
Convencido de que não havia ninguém ali,
o homem dirigiu-se para o vagão rapidamente,
autoconfiante e ansioso.
A Mulher-Gato esperou, a mão pousada na
lateral; viu quando ele chegou no vagão, abriu
um pouco a porta e colocou a mão para den-
tro...
A felina uniformizada fez sua jogada, e o
homem gritou quando a porta se fechou pren-
dendo sua mão. Ele não percebeu quando a
Mulher-Gato saltou do vagão e aterrissou atrás
dele. Xingando, puxou a porta, voltou-se e deu
de cara com a ladra felina.
“O homem da chave”, ela rugiu com des-
prezo, empurrando seu queixo com a mão. O
homem cambaleou até bater de costas no va-
gão, onde foi preso por um chicote que aper-
tava sua garganta.
O sujeito estava sufocado pela pressão do
chicote, o sangue escorrendo pelos cantos da
boca.
“Você arruinou a minha noite”, rosnou a
Mulher-Gato, “e, se não me contar tudo o que
sabe, vou arrancar sua pele.” Ele levantou a
mão para empurrá-la, mas ela apertou ainda
mais o chicote, quase o estrangulando.

138
“Não me aborreça, rapaz!”
“Não consigo... respirar”, ele murmurou.
“Você quer respirar?”
“Sim...”
A Mulher-Gato deu um passo atrás e o ho-
mem desabou, ficando de joelhos. Depois, deu
a volta, ficou atrás dele e colocou o cabo do
chicote debaixo de seu queixo.
“Que tal? Você gosta de respirar?”
Ele fez que sim com a cabeça.
“Bem, se quiser continuar respirando, me
diga quem é você!”
Ele disse.
“Ouvi falar de você. De onde eu conheço
esse nome?” Ele disse a ela quem era. As coi-
sas ficaram mais claras. “Foi você quem con-
tratou aqueles dois palhaços, Alex e Harvey?”
Ele disse que não... outra pessoa havia fei-
to isso. “Alguém do teatro?”
Ele hesitou. Ela apertou um pouco mais o
cabo do chicote. “Quem contratou os dois e
por quê?”
Ele contou tudo.
Quando terminou, a Mulher-Gato deu um
passou para trás, contemplando a figura pa-
tética.
“Vou deixar você ir embora”, disse ela.

139
“Pode dizer que é um palpite meu, mas acho
que em breve você estará no mesmo lugar
onde todos os ladrões de colarinho branco ter-
minam.”
Com isso, a Mulher-Gato desapareceu em
direção ao edifício da Capitania dos Portos e
do bairro dos teatros, mais adiante.

XVI

O vento soprava em rajadas geladas, e Bat-


man estava agachado ao lado de uma chami-
né no telhado da ópera. Uma estátua do ma-
estro Roberto Kanini, do século dezenove,
dourada e gasta pelo tempo, erguia-se acima
dele, a batuta erguida, pronto para reger o rit-
mo da cidade.
O maestro LaDolce tinha voltado a si antes
que sua filha retornasse, e recusando-se a ser
levado para o hospital até que ela fosse en-
contrada. Batman a levou até o camarim, deu
a batuta ao maestro, entregou os dois malfei-
tores para a polícia e saiu para esperar a Mu-
lher-Gato — supondo que ela tinha a intenção
de aparecer.
Olhou para a cidade, pensando, como fazia
frequentemente, sobre a infinidade de segre-

140
dos escondidos sob aqueles telhados, os inú-
meros mistérios atrás daquelas luzes. Segre-
dos como o da Mulher-Gato e seu amor pela
ópera. Arrependia-se por ter deduzido que,
por ser quem era, não seria capaz de apreciar
Mozart. Sentia-se envergonhado, porém sem
culpa.
Enquanto olhava a neve, inspecionando os
telhados, sentindo-se absolvido por estar con-
fiando na palavra da Mulher-Gato, uma forma
vaga e esguia apareceu no horizonte. Ela ha-
via marcado uma hora e, cumprindo a palavra,
estava chegando. Batman já se sentia intriga-
do com o que mais ela poderia saber sobre o
caso; que fosse partilhar isso com ele era ain-
da mais intrigante. Muitos de seus inimigos
mostravam-se imprevisíveis, mas a ambição e
a megalomania costumavam prevalecer em
seus motivos. A Mulher-Gato era mais comple-
xa. Como os animais de quem emprestava o
nome, convivia com alguns demônios, e tinha
uma alma que ele mal conseguia compreen-
der.
Do outro lado do beco, o chicote da Mu-
lher-Gato enrolou-se na escada de incêndio na
altura do segundo andar, e ela saltou. Quando
chegou ao topo, laçou uma das barras de ferro

141
que cercavam a torre e subiu. Estava ofegante
quando se postou ao lado de Batman, sua res-
piração formando pequenas nuvens de vapor.
Ele esperou um momento até que ela se recu-
perasse e então se aproximou. “Desculpe se
ofendi você lá no armazém.”
“Você não poderia saber por que eu estava
na ópera, ou o quanto respeito o maestro La-
Dolce.”
“Não, mas é bom lembrar de vez em quan-
do que não se deve confiar em estereótipos.”
A Mulher-Gato relaxou um pouco. “Você es-
tava no teatro hoje, em sua outra identidade,
imagino.”
Ele fez que sim com a cabeça.
“E você me reconheceu. O que achou de
mim na minha identidade normal?”
“Eu teria prestado atenção em você mesmo
que não fosse a única que não estivesse de
branco ou preto.”
A Mulher-Gato olhou para o outro lado, cru-
zando as mãos. Batman deu mais um passo
em sua direção. “As coisas não têm que ser do
jeito que são. Gostaria de conversar?”
“Não a meu respeito”, ela retorquiu. “Eu
gosto da minha vida.”
“Gosta?”

142
“Considerando como comecei, sim.” Olhou
para Batman. “A verdade é que o resto da so-
ciedade me frustra, especialmente os persona-
gens de colarinho branco que tiram o sangue
de todos nós. Pessoas como Arthur Savran. O
nome te diz alguma coisa?”
“É claro. O pai de Michael Savran, proprie-
tário de galerias de arte no mundo inteiro.”
“E o receptador que ia ficar com a batuta
roubada.” Batman fez um gesto de surpresa.
“Como é que você sabe disso?”
“Sinto muito, mas menti lá no armazém, eu
tinha que acertar uma conta. Aqueles dois pa-
lhaços me disseram que alguém viria buscar a
batuta, então fiquei esperando e bati um papo
com ele. Disse quem era seu sócio e quem
deixou os dois homens entrarem na ópera.
Talvez você reconheça o nome.” A Mulher-Gato
contou a Batman, e deu os detalhes do negó-
cio.
Quando terminou, ele disse: “Como pode
ter certeza de que ele estava falando a verda-
de?”
“Só os mortos não mentem... mas Arthur
estava bem próximo da morte quando pergun-
tei essas coisas. Ele não teria coragem para
mentir.”

143
“Espere por mim aqui”, disse Batman. Pu-
lou por cima da cerca, saltou do telhado para
a escada de incêndio e desapareceu na escuri-
dão.

XVII

Ele entrou no teatro pela saída de incêndio,


de modo a não chamar atenção... ainda. De
pé no lado de dentro, no recesso escuro da
saída de emergência, ouviu Pamina e o prínci-
pe Tamino trocarem juras de amor no fim do
primeiro ato. Esperou até que as portas dos
camarotes começassem a se abrir.
Os socialites de Gotham City saíram para o
corredor, e ficaram surpresos e em silêncio à
medida que avistavam Batman, sem saber se
deveriam reconhecer sua presença ou fingir
que não o viam. A maior parte sorriu nervosa-
mente, ou apenas acenou com a cabeça ao
passarem por ele.
Nesse momento, os ocupantes dos camaro-
tes quatro e cinco saíram.
“Eu seria capaz de matar o Bruce”, dizia
Cindy Merritt para John Taylor. “Se quisesse
assistir a isso sozinha, eu poderia ter alugado
a fita do Bergman. Ou da Dança com Vídeos,

144
só para transformar a noite num desastre tot...

Interrompeu a sentença no meio e olhou fi-
xamente. “É o Batman?”
John Taylor desviou a atenção de Cindy e
olhou para onde ela estava olhando.
“Boa noite, senhor Taylor”, disse Batman,
saindo da semi-escuridão.
A movimentação no corredor parou subita-
mente, e todos ficaram com os olhos grudados
na figura uniformizada.
Taylor deu uma tossida com o punho em
frente à boca. “Ouvi dizer que nos ajudou a
encontrar a batuta. Parabéns, você merece
nossa mais profunda gratidão.”
“Poderia ter uma palavra com o senhor?”
“Comigo? Alguma informação nova sobre o
crime?” Batman concordou.
“Entendo. Hã... onde gostaria de conver-
sar?”
Batman abriu a porta e deu um passo
atrás.
“Ah, a cidade noturna... seu escritório.”
O presidente do Conselho ajeitou o paletó
do smoking e andou empertigado até a porta.
Uma vez na escada de incêndio, virou-se e en-
carou o Cavaleiro das Trevas.

145
“Muito bem, o que está acontecendo?”
“Temos uma confissão de Arthur Savran.”
“Uma confissão? O que ele fez?”
“Fechou um negócio infeliz com você, apa-
rentemente. Concordou em ser o intermediário
na venda da batuta roubada para um colecio-
nador estrangeiro. O seguro de dois milhões
de dólares teriam ido para os russos, mas os
Savran teriam conseguido duas ou três vezes
mais que isso do colecionador, doando a maior
parte para a ópera e guardando o resto.”
Taylor deu uma risadinha. “Uma trama dig-
na de Puccini.”
“Em troca do dinheiro”, Batman continuou,
“você concordou em nomear Michael Savran o
novo maestro no lugar de Megan LaDolce. Ele
é um sujeito medíocre, mas você estava dis-
posto a fazer o acordo. Qualquer coisa para
sobreviver.”
“Isso é um absurdo. Assim como você, ali-
ás... mais um herói popular que não sabe es-
colher o alfaiate.”
“O que tem a dizer, John?”, perguntou.
Taylor olhou-o com ódio.
“O mais estranho, senhor Taylor, é que não
consigo ver nada de errado com seus objeti-
vos, apenas com seus métodos. Por que recor-

146
rer ao crime?”
“Crime? Que crime? Supondo que esteja di-
zendo a verdade, quem sairia prejudicado? O
público não se importa com a batuta, e hoje
em dia os russos só pensam nas suas planta-
ções de trigo. O dinheiro do seguro seria bem-
vindo para eles. Eu repito, Batman: onde está
o crime? O que foi destruído?” Batman chegou
mais perto, olhou fundo nos olhos raivosos de
Taylor.
“Várias carreiras, senhor Taylor, incluindo a
sua própria e a de Michael Savran. Ele vai ter
que renunciar....”
“Não! Eu não fiz nada moralmente errado.”
“Os tribunais podem não concordar.”
“Os tribunais?”, Taylor subitamente inter-
rompeu a encenação. “Você espera que eu
seja julgado com justiça pelas mesmas pesso-
as que há mais de um século não fazem nada
pela arte em Gotham City?”
Retrocedeu em direção à escada e come-
çou a descer.
“Se eu tiver um júri pelos meus pares, não
apenas eles vão me absolver como vão me
agradecer.”
“Volte para cá, senhor Taylor.”
“Não posso fazer isso, assim como não po-

147
dia permitir que a ópera fenecesse durante mi-
nha gestão.”
“Ninguém estava culpando você de nada
até esta noite.”
“E depois desta noite? Eu não vou para a
cadeia! Eu tinha que fazer o que fiz!” Virou-se
e começou a correr. “Foi tudo pela arte!”
Batman pegou seu batarangue, mas não
teve chance de atirá-lo pois Taylor foi puxado
para trás e para o alto, soltando todo o ar dos
pulmões. Ficou balançando para a frente e
para trás, vários metros acima do solo, preso
por uma tira de couro em volta da cintura. A
parte de cima do laço improvisado estava en-
rolado em uma escultura de pedra que decora-
va o edifício, o focinho de um sorridente leão.
A Mulher-Gato olhou para baixo a partir de
um parapeito de pedra.
“Você deixou o maestro LaDolce levar uma
pancada na cabeça, senhor Taylor. Só por isso
eu deveria descer e usá-lo como saco de pan-
cada.” Ela sorriu. “Quem parece absurdo ago-
ra, seu verme pomposo?”
Batman desceu a escada e, com um puxão
no chicote, a Mulher-Gato soltou sua presa
nos braços dele.
“Assegure-se de que coloquem esse rato

148
em um lugar onde as sonatas não brilhem”,
disse ela, ao voltar para o telhado antes de
desaparecer na noite.

XVIII

Depois de entregar Taylor à polícia, Batman


voltou ao telhado do teatro, esperando encon-
trar a Mulher-Gato. Mas ela havia partido, o
que o deixou desapontado, mas não surpreso.
Vinda da parte de baixo, através da cúpula,
ouviu a trovejante recepção recebida pelo ma-
estro LaDolce ao ser trazido de volta ao palco.
Sentiu uma certa satisfação, como sempre,
mas olhando a cidade experimentou também
uma sensação de vazio. Percebeu que quase
fizera contato com a Mulher-Gato, mas depois
a perdera.
Talvez em alguma outra ocasião, pensou,
esperançoso. Ela ainda tem mais seis vidas
que posso tentar alcançar.
Quando voltou-se para partir, avistou um
recado escrito na neve da cúpula. Prendendo
seu batarangue numa barra de ferro, inclinou-
se para ler:

BATMAN...

149
VOLTEI PARA OUVIR O RESTO DA ÓPERA.
BATUTAS NÃO FAZEM O MEU GÊNERO, MAS
VI UM COLAR DE ESMERALDAS QUE DESPER-
TOU MINHA FANTASIA. SERÁ QUE VOU CON-
SEGUIR?

Ele balançou a cabeça. Então, eles iam se


encontrar novamente, e antes do esperado.
Mas ele não ia sair atrás da mulher de lilás. Ia
deixar que ela apreciasse a ópera, e persegui-
ria a Mulher-Gato mais tarde.
Erguendo-se no telhado, partiu e perdeu-se
rapidamente na noite, na música e em seus
pensamentos.

150
Lágrimas de Uma Mariposa
ED GORMAN
(para Joc Orlando)
m

David Fisher: 198-

Um dia nada especial. Pelo menos em par-


te. Começa o trabalho às oito e vinte e dois.
Três reuniões com clientes para encher a ma-
nhã, uma reuniãozinha de quinze minutos com
a nova funcionária da biblioteca jurídica (belas
pernas), uma partida de squash na hora do al-
moço (iogurte com uvas passas depois), e en-
tão uma longa tarde-entrando-pela-noite de
preparações. Um julgamento importante co-
meçando em dois dias. O tipo de coisa que lhe
daria sociedade na firma, se ganhasse. (E ele
pretende ganhar). E depois o estacionamento,
onde o espera seu doce BMW.
E então a noite das ruas da cidade
escuridão e neon; fumaça de ônibus e de
marijuana; calor de verão e risadas de prosti-
tutas.
drogados e prostitutas e assassinos e per-
vertidos; um homem vomitando na calçada;

151
uma mendiga na esquina gritando com al-
guém que não está lá e
Ele recita para si mesmo o Ele Deveria.
Ele Deveria ir para casa porque é bem ca-
sado.
Ele Deveria ter mais respeito por si mesmo,
por sua esposa e seus dois filhos em vez de se
entregar a esse impulso terrível.
Ele Não Deveria pôr em risco sua carreira
de advogado transando com prostitutas.
Mas
Mas anos atrás, recém-saído da faculdade,
costumava agir assim e era muito excitante
E por alguma razão
(talvez toda a pressão no trabalho nesses
últimos dias)
Por alguma razão, quer fazer só mais uma
vez
Só uma vez
Porque
ama o perigo. Nem sabe bem por quê. O
perigo torna o sexo excitante, como nos tem-
pos do colégio, quando tudo era deliciosamen-
te proibido.
E então
Ele a vê.
Jovem. Tem até um ar assustado. Bem lá

152
na esquina. As outras putas, com pintura de
guerra e blusas de verão suadas, olhando para
ela com ódio invejoso.
Ele a vê
e sem pensar
pára no meio-fio
e ela se debruça na janela do carro e diz

Brett Ewing: 198-

“Ei.”
Ela nem acredita no que vê.
A) Um BMW conversível, novinho. Tão lindo
e brilhante e vermelho no neon embaçado da
noite.
B) Um rapaz bonito, cheio de classe, com
um corte de cabelo de cinquenta dólares e um
terno de verão muito caro.
C) A mão de um cavalheiro estendida, con-
vidando-a para entrar no carro.
Ela está na cidade há sete semanas e todos
os seus michês foram bregas e imundos, inclu-
indo um cara que fedia tanto que ela vomitou
depois.

153
Uma coisa bonita, romântica de verdade
Como ela entra no carro
E ele acelera
E nenhum dos dois diz uma palavra
Só ficam ouvindo Anita Baker no toca-fitas
E viajam ao longo do rio
A brisa fresca
Luzes dos arranha-céus como uma aquare-
la amarela-e-vermelha na superfície escura e
tremeluzente do rio
E ele pega sua mão como se fosse um en-
contro de namorados e não um programa
E correm e correm e correm Sem trocar pa-
lavras
Só toques
E olhares
E
Por pior e mais decaída que a sua vida ti-
vesse se tornado, o sonho continuava. O so-
nho de Cinderela, onde o belo príncipe vem
salvá-la. Será que é ele o belo príncipe?
Talvez, pensa, talvez ele seja o príncipe.
E daí a umas duas semanas — depois dele
a instalar num lindo apartamento perto de
Carver Park — talvez não precise mais traba-
lhar nas ruas, porque, para ser franca, ela não
gosta muito disso.

154
Ela tem medo
E todas as vezes que se olha no espelho
pensa: Cadela. Você é uma cadela.
E então ela ficaria muito, muito, muito feliz
se acontecesse como na história de Cinderela
e eles se apaixonassem e

Ele descobre um cantinho rio abaixo, mui-


tas e muitas milhas rio abaixo
E, ainda sem falar, estaciona o carro e tro-
cam de banco, ela com as pernas abertas so-
bre ele
e
E, depois, ele diz: “Como você se chama?”
“Brett.”
“Brett? Verdade?” Sorri. “Acho que nunca
conheci uma Brett.”
É claro que em Iowa não se chamava as-
sim. Há oito semanas, numa cidadezinha cha-
mada Dysart, ela era Donna Mae Hamilton.
“Brett Ewing”, ela diz.
“Ora! Que é isso?”
“É verdade.”
Ele ri. Uma risadinha bonita. “Se você está
dizendo... Sabe como eu me chamo?”

155
“Como?”
“Lance Sterling.”
Agora é a vez dela rir. “Cai na real!”
“Se você pode se chamar Brett Ewing, por
que não posso me chamar Lance Sterling?”
Ela faz uma coisa que nunca fez antes com
um cara: lhe dá um beijo. Um beijo de verda-
de.
“Uau”, ele diz.
“Eu gosto de você de verdade, Lance Ster-
ling.”
“E eu gosto de você de verdade, Brett
Ewing.”
A noite termina quarenta e cinco minutos
depois, numa esquina de Gotham.
Com David Fisher prestes a encarar uma
esposa a quem ama e a quem não quer mago-
ar de jeito nenhum
E com Donna Mae Hamilton prestes a enca-
rar três outros caras, antes que esta noite ter-
mine
Homens que nem sonharia cm beijar de
verdade Homens que ririam se ela lhes falasse
de seu sonho de Cinderela

Mulher-Gato: 1º de abril de 199-, 21


horas e 28 minutos

156
A noite é sua amiga; ela pode se esconder
em seu abraço escuro. A noite toca a sua
música, uma sinfonia de luar e sombras.
Assim como ela é sombra. Como ela é
gato.
Observe-a agora, em Gotham, saltando de
um telhado a outro, seguindo um homem na
calçada do gueto, sete andares abaixo.
Assim como o homem também segue a jo-
vem prostituta — que neste momento percebe
a presença dele — meio quarteirão à frente.
A prostituta aperta o passo. “Merda! É ele!”,
resmunga para si mesma. “Merda!”
Mais depressa. Mais depressa.
E o homem, também. Mais depressa. Mais
depressa.
E assim acontece, como acontece em tan-
tas ruas urbanas, todas as noites do ano.
Estupro. Ou morte. Ou ambos.
O homem. Mais perto, mais perto agora.
A prostituta chega à viela. Olha para trás. E
estremece.
“Ei”, diz ele. “Você!”
Ela começa a correr.
E é então que ele a alcança.
Agarra a moça pelos ombros. E a empurra

157
para a viela.
Onde ratos de olhos vermelhos e gatos de
olhos cor de lua-da-meia-noite... observam,
então
“Você se lembra de mim? Lembra?”, diz ele.
A raiva dele é esmagadora.
A lâmina de um canivete brilha ao luar.
“Cadela! Cadela desgraçada!”
Lâmina na garganta, enquanto ela tenta
gritar, mas a mão dele, rápida, aperta com for-
ça a boca macia.
“Cadela!”
O joelho dela sobe. O único golpe que co-
nhece.
Mas ele gira com habilidade e enterra a
faca em seu ombro. Cortando. Cortando.
Desta vez, o grito se perde na noite.
“Cadela!”
Ele se lança contra ela de novo, quando os
ratos e os gatos olham para cima e vêem
a forma felina da Mulher-Gato silhuetada
contra os tijolos sujos das casas da viela,
quando
voa, os pés descendo direto nas costas do
assassino,
jogando-o de cabeça contra a parede.
Mas, quando a Mulher-Gato chega ao chão,

158
a garota ferida cai para a frente, obrigando a
Mulher-Gato a segurá-la enquanto o assassino
sangue correndo do nariz quebrado
corre, os passos ressoando, fugindo, fugin-
do.
“Filha da puta!”, ele continua a gritar, meio
delirante. “Filha da puta!”
E então também se funde com a noite,
além do alcance até da Mulher-Gato, cambale-
ando para dentro do seu carro e foge. Foge.

Selina Kyle: 1º de abril de 199-, 23


horas e 47 minutos

“Você não o reconheceu?”


“Não.”
“Mas ele perguntou: você se lembra de
mim?”
“É. Foi isso.”
“E aí esfaqueou você?”
“Pois é. Queria cortar minha garganta, mas
eu me mexi e ele me deu uma facada no om-
bro.”
“E como está o ombro?”
“Tudo bem. Quer dizer, não machucou mui-
to, eu acho.”
“Eu é que não queria ter levado essa faca-

159
da.”
Brett Ewing sorri. “Você é muito legal. Obri-
gada. Tenho um relacionamento de merda
com as outras mulheres. É bom relaxar e con-
versar com outra mulher.”
Estão no apartamento de Selina, Brett dei-
tada no sofá e Selina sentada na cadeira. Brett
nem imagina que Selina e a Mulher-Gato são a
mesma pessoa. A Mulher-Gato levou Brett
para cima e bateu na porta. Arizona, a garota
que mora no apartamento de Selina, atendeu
e ajudou a levar Brett para dentro. A Mulher-
Gato disse boa noite e foi embora, fingindo
sair do prédio. Mas, na verdade, entrou pela
janela dos fundos e se apresentou como Seli-
na, a amiga de Arizona que dividia o aparta-
mento com ela.
Brett, fumando um cigarro, olha para o teto
e diz: “Acho que você já adivinhou o que eu
sou.”
“É mesmo?”
“Uma puta.”
Selina sorri com ternura para a moça triste.
Ela já foi muito parecida com Brett. “Isso é o
que você faz. Não o que você é.”
“Obrigada por dizer isso.”
“E verdade. Você pode sair dessa quando

160
quiser.”
“E fazer o quê? Ser garçonete?”
“Que tal voltar para a escola e terminar o
colegial?” Arizona sai bocejando do banheiro.
Parece estar confortável e quentinha em seu
roupão cor-de-rosa. “Vou até a varanda fumar
um cigarro e depois vou para a cama. Só queri
a dizer boa noite.”
Saindo da sala, há uma varanda que dá
para a viela sete andares abaixo. É gostoso fi-
car lá, olhar a cidade e sentir a brisa fresqui-
nha. Não há grades nem telas e, com a janela
aberta, parece que se está na rua.
“Boa noite”, diz Selina.
“Boa noite”, diz Brett. “Obrigada por me
ajudar a limpar a ferida.”
“Ainda acho que a gente devia ter chamado
a polícia”, diz Arizona.
Brett balança a cabeça. “Já fui em cana
tantas vezes que é ridículo ir atrás da polícia.”
Arizona já se viu na pele de Brett; concorda
com tristeza e desaparece pela porta de um
dos quartos.
Brett apaga o cigarro, recosta-se na almo-
fada e olha para Selina. “Sei quem estava me
seguindo.”
“Você reconheceu o cara?”

161
“Não reconheci. Mas sei quem é. É o “Mari-
posa”, o cara que apareceu nos noticiários no
mês passado.”
Selina não queria assustar Brett, por isso
não tinha tocado no assunto.
Nos últimos dezenove dias, seis prostitutas
tinham sido selvagemente esfaqueadas em
Gotham. Na testa de cada uma delas, em ba-
tom vermelho berrante, o assassino tinha es-
crito: MARIPOSA. Daí o nome que recebeu da
mídia.
“Acho que você tem razão”, diz Selina.
“Mas é isso que eu acho estranho.”
“O quê?”
“Foi um lance pessoal.”
“Pessoal?”
“É. Não foi como se estivesse atacando
uma puta qualquer. É como se soubesse quem
eu sou... e me odiasse. Pessoalmente.”
Selina olha para Brett por um longo mo-
mento e depois diz: “Qual é a sua altura?”
“Um metro e sessenta. Por quê?”
“E quanto você pesa?”
“Uns cinquenta quilos.”
“Com uma peruca seria fácil.”
“Fácil? Não entendi.”
Selina sorri. “Acho que eu também não.

162
Mas, depois de uma boa noite de sono, a gen-
te revê meu plano para ver se faz sentido.” Ela
se levanta, pronta para lavar o rosto, vestir o
pijama e se jogar na cama. “Tem certeza de
que não quer dormir na minha cama e me dei-
xar dormir no sofá?”
“Já incomodei bastante, Selina. O sofá está
ótimo.”
“Você é quem sabe...”, diz Selina, indo em
direção ao banheiro. “Boa noite.”

Brett Ewing: 3 de abril de 199-

Noite. Tempestade. Água imunda e cinzen-


ta transbordando dos bueiros. Faróis revelando
a chuva inclinada, prateada. Um grande porre
fazendo três pessoas, inclusive um tira gordo e
de ar cansado, saírem no aguaceiro. As luzes
dos semáforos, vermelho-amarelo-verde, uma
aquarela na escuridão.
Uma mulher solitária, de guarda-chuva,
anda pela rua da cidade. Aparentemente, ela
não tem pressa. Sorri para uma gatinha enso-
pada e assustada que tenta desesperadamen-
te encontrar abrigo.
Ela se abaixa. Pega a gatinha e a coloca no
bolso da capa. Estilo mãe-canguru.

163
Brett Ewing. Andando. Recuperada o sufici-
ente para dar duro nas esquinas. A bunda bo-
nita e arredondada sob a capa verde-limão. A
gatinha estica a patinha para ela. “Miau.”
Brett rindo. Rindo.
Dois quarteirões adiante, ela finalmente vê
algum movimento. Uma esquina dominada por
adolescentes, garotas e garotos. Avenida dos
Frangos, como é conhecida. Uma vitrine aber-
ta e iluminada, onde os garotos exibem suas
mercadorias enquanto os trouxas passam de
carro e olham abobalhados — com o dinheiro
suado pronto, nas mãos suadas. Ela espera
nunca ser tão patética quanto os caras com
quem já andou, para ter um pouco de sexo.
Agora, chega mais perto. Vê melhor os ga-
rotos. A distância, parece ser uma mercadoria
muito boa.
Mas de perto:
Dor. Medo. Desespero. De um tipo que só
um adolescente que vende seu corpo conhece.
E todos entorpecidos pelas drogas, que tam-
bém ajudam a esquecer as histórias de horror
que correm por aí. Uma puta que foi encontra-
da num parque com os seios arrancados. Um
garoto de programas que foi castrado algumas
noites depois. E sempre, sempre, alguém de

164
quatorze, quinze ou dezesseis anos descobrin-
do que é HIV positivo.
E então ela pára, quando alguém diz: “Ei,
olha aquela capa verde-limão! É Brett! Ei,
Brett!” Mas eles não têm certeza, pois o
guarda-chuva cobre parte de seu rosto.
Ela resolve ir embora antes que alguém se
aproxime.
Volta pelo mesmo caminho.
A gatinha molhada pondo sua linda cara
para fora do bolso da capa e fazendo “miau”
de novo.
Meio quarteirão. Passos. Os seus.
Então, outros passos.
Os dele. Ou assim ela espera.
Imaginou que ele estivesse por perto da
Avenida dos Frangos. Esperando por ela. Pro-
vavelmente esteve por lá nas últimas duas noi-
tes, enquanto ela se recuperava na casa de
Selina.
De repente, fica quente dentro da capa.
Suor. E um leve cheiro de borracha.
“Miau.”
“Tudo bem, gatinha. Vou levar você pra mi-
nha casa.”
Passos. Mais rápidos agora. Dela.
Passos. Mais rápidos agora. Dele.

165
Quando chega à viela, ela se agacha, su-
mindo na escuridão.
Precisa agir depressa agora. Deixa cair as
roupas de Brett Ewing para revelar... a Mulher-
Gato.
Sobe rapidamente pela parede de tijolos,
escondendo-se num patamar do terceiro an-
dar.

Agora, o Mariposa entra na viela. Correndo.


Sem fôlego. O canivete bem visível na mão di-
reita enluvada.
Ele pára. Olha à sua volta.
Para onde ela foi?
Ninguém podia fugir tão depressa.
Cadela, ele pensa. Cadela. E aperta o cani-
vete com a mão enluvada.
Ele pára de correr. Ela deve ter ido mesmo
embora.
E era ela quem realmente ele queria. As
outras foram apenas um treino para Brett
Ewing. (A teatralidade do nome agora o enoja.
Uma maldita caipira vem à cidade grande para
faturar com o que tem no meio das pernas.
Cadela.)

166
Olha mais uma vez à sua volta.
Ninguém à vista.
Joga o canivete no bolso, volta-se lenta-
mente e vai saindo da viela.
De repente, pára e olha para cima, para a
chuva que cai sobre seu corpo.
Como se implorasse a Deus por uma graça.
Cadela.

Às vezes, é preciso esperar. Paciência. A


Mulher-Gato poderia pegá-lo agora, mas quer
saber mais sobre o Mariposa, para que, quan-
do a polícia vier atrás dele, haja um belo fla-
grante.
Observa a aparência dele, anota a placa do
carro quando o BMW arranca.
Acaricia a gatinha. “Vamos para casa, be-
ber um leite bem quentinho."

David Fisher: 3 de abril de 199-

“Você anda tão cansado ultimamente. E pa-


rece que essa dor de garganta não passa.”
Ele está deitado na escuridão, ouvindo sua
esposa, Sara. Chegou em casa já faz duas ho-

167
ras. Depois de Brett Ewing tê-lo enganado
nem sabe como.
Está na mesma cama em que seus dois fi-
lhos foram concebidos. Onde abraçou a espo-
sa com tanta ternura na noite em que a mãe
dela morreu, e onde ela o abraçou quando o
pai dele foi morto naquele terrível acidente de
carro.
Antes, era tudo tão superficial com Sara,
seus sentimentos. Na faculdade tinha gostado
dela. Basicamente porque era uma maravilha
num biquíni. A melhor do mundo. Uma festa
para seus olhos. A inveja dos outros rapazes.
E os primeiros anos de casamento também
não haviam sido muito profundos. Sara era es-
sencialmente um ornamento, para seus pa-
trões admirarem. E David certamente não ti-
nha nada contra ter um trunfo a mais para fa-
zer farol.
Mas, de alguma forma, na noite em que
sua primeira filha nasceu, ao ver o rosto da
mulher exausto, mas ainda adorável, quando
lhe mostrou seu bebê, passou a amá-la, ad-
mirá-la e respeitá-la de uma maneira que nun-
ca tinha julgado possível. Esposa. Amante.
Irmã. Mãe. Amiga. Ela era tudo para ele.
E então, naquela noite, vários anos depois,

168
com Brett Ewing...
“Você está muito quieto, meu bem. A noite
foi dura no escritório?”
“É”, diz ele. “O patrão está no meu pé de
novo.”
“Juro que aquele homem fica menstruado.”
“Acho que sim.”
Ele quer contar a ela agora. Agora mesmo.
Acabar com isso de uma vez.
Mas, quando abre a boca e começa a falar,
ele a vê como uma bela caloura na faculdade;
depois, então brilhando de branco no casa-
mento e na noite em que Kate nasceu
e não pode falar
as palavras, as horríveis palavras não
saem.

“Você está molhado de suor.”


“Um pesadelo, eu acho.”
“Melhor trocar de pijama.”
Meio da noite. Escuridão. Chuva tambori-
lando na janela. No pesadelo ele está de novo
no consultório do Dr. Birnbaum e o médico
vem entrando pela porta com uma única folha
de papel na mão e diz

169
e foi aí que David acordou gritando como
acorda gritando três, quatro noites por sema-
na quando o Dr. Birnbaum entra pela porta
com uma única folha de papel na mão e diz

No banheiro, ele esvazia a bexiga e se olha


no espelho.
Você lhe deve a verdade. Agora, droga!
Agora mesmo e sem desculpas.
Mas, depois de vestir um pijama seco e vol-
tar para a cama, ele ouve a mulher ressonan-
do suavemente nas sombras.
Hoje, não. Amanhã à noite. Com certeza.
Fica aliviado.
Meu Deus, e a coragem para dizer a verda-
de?

Selina Kyle: 4 de abril de 199-

Na cidade há um cara a quem Selina sem-


pre pede para levantar a ficha de pessoas que
está perseguindo. O cara vive numa cadeira de
rodas, vítima de um motorista bêbado, mas
praticou até se tornar uma espécie de poeta
na arte de ganhar uns bons trocados com o

170
computador.
“Este é o número da placa do carro dele”,
diz Selina.
“E como você está?”
“Ótima.”
“Se algum dia eu me livrar desta carroça,
você me dá o prazer da primeira dança?”
“Das primeiras dez danças.”
“Você é legal, sabia?”
“Você, também.”
Ela ouve o barulho do teclado quando ele
digita o número da placa do carro do Maripo-
sa. “Esse cara é barra-pesada?”
“Muito.”
“Acho que vai levar umas duas horas.”
“Legal. Obrigada, Richard.”
“Besteira.”

Ele telefona uma hora depois. Como sem-


pre, já terminou.
Diz o nome, idade, endereço, ocupação, sa-
lário, clube, limite de crédito e estado de saú-
de do cara.
“Meu Deus”, ela diz ao ouvir a informação
sobre o estado de saúde de David Fisher.

171
“É”, diz Rich. “Pobre coitado.”

Brett Ewing: 4 de Abril de 199-

Não aguento mais. Engaiolada há três dias.


Vou sair para andar um pouco. Selina ainda
não está de volta ao cair da noite.
Escrevo um bilhete para ela: Fui andar no
parque. Volto logo. Beijos.
Choveu pouco antes de escurecer. O ar da
cidade está com um cheiro bom. Frio. Mas
agradável.
Caminha pelo parque, a grama verdinha e
os arbustos com um cheiro intenso na escuri-
dão. As luzes da rua começando a acender.
Provavelmente, Selina ficará muito brava, mas
estava ficando com claustrofobia no aparta-
mento.
Ela grita.
Um bêbado sai cambaleando de trás de um
arbusto.
Pensa instantaneamente: o Mariposa!
“Oi, benzinho”, diz o bêbado.
Meu Deus, ele está chegando perto.
Ela o empurra. Começa a andar mais de-
pressa. Entrando ainda mais no parque.
Sempre associa balões amarelos, verme-

172
lhos e cor-de-rosa com parques. E o gosto de
cachorro-quente quentinho, com muita mos-
tarda. Neste verão, ela vai voltar a este mes-
mo parque e trazer Selina e Arizona; e as três
vão se divertir muito.
Desta vez, não é um bêbado patético e ino-
fensivo.
Desta vez
sua mão tapa a sua boca
Desta vez
a faca dele encontra a garganta dela
Desta vez
os lábios dele cospem as palavras: “Cadela
nojenta”
Desta vez é o Mariposa.

Mulher-Gato: 4 de abril de 199-

Fui andar no parque. Volto logo. Beijos.


Selina lê o bilhete sem acreditar. Porque
Brett saiu sozinha, com o assassino ainda à
solta? E depois de tantas recomendações para
trancar todas as portas...

Dez minutos depois, uma figura escura e

173
prateada, recortada apenas pela luz pálida da
lua, atravessa as sombras do parque da cida-
de; sombras nas quais amantes de todos os
sexos se escondem em sussurros e luxúria
desvairada; sombras nas quais o assaltante
amargo e o perturbado sexual solitário espe-
ram suas vítimas.
Sombras nas quais um homem chamado
David Fisher golpeia a jovem Brett Ewing com
sua faca...
A Mulher-Gato ouve soluços; desliza entre
árvores; escorrega por um barranco de pedras
até um riacho e um bosque de salgueiros.
E agora um grito abafado.
“Brett!”, ela chama.
Outro grito abafado.
A Mulher-Gato olha à sua volta.
Onde está Brett?
Outro grito. Desta vez, de dor.
Onde está ela?
A Mulher-Gato vê a pequena ponte orna-
mental, que as crianças gostam de atravessar
de bicicleta.
Sob a ponte, há uma grande manilha para
a água da chuva.
Agora avança depressa, lançando-se sobre
a ponte e pulando na água rasa que cobre o

174
lodo.
E os vê.
David Fisher cortou o rosto de Brett e está
prestes a atravessar sua garganta com a faca.
Brett chuta freneticamente, tentando em-
purrá-lo, mas ele é forte demais.
Está tão tomado pela raiva que não vê nem
ouve a Mulher-Gato, até ser tarde demais. Até
ela o chutar na cintura e golpeá-lo na nuca.
Quando ele se volta, a perna direita da Mu-
lher-Gato se lança para cima e o apanha na vi-
rilha.
Ele grita, afundando de joelhos no lodo.
Brett soluça, e se joga nos braços da Mu-
lher-Gato repetindo: “Eu vou morrer, Mulher-
Gato! Eu vou morrer!”

Mulher-Gato: 5 de abril de 199-

David Fisher está bebendo o bourbon que a


Mulher-Gato lhe ofereceu. Brett está enrolando
um cigarro. Miles Davis toca baixinho no gra-
vador, como um hino fúnebre, “Round Mid-
night”. Um hino fúnebre é apropriado no mo-
mento. Como sempre, a gatinha que a Mulher-
Gato encontrou na outra noite está bebendo
tranquilamente seu leite.

175
Da porta, Arizona diz: “Vou tomar um café
e dar uma volta.”
“Já é tarde. Tenha cuidado”, diz a Mulher-
Gato.
Arizona sai. Ouviu a conversa quando os
três chegaram, há uma hora. Não consegue
mais aguentar a tensão e o desespero. Precisa
sair dali.
Quando ela sai, a Mulher-Gato diz: “David,
eu poderia ter entregue você à polícia ontem à
noite. Mas, achei que você e Brett precisavam
conversar, primeiro. E é isso que vocês vão fa-
zer agora: conversar.”
David está no sofá; Brett chora de vez em
quando. David parece oscilar entre a raiva fria
e a depressão.
“Você devia ter feito o teste”, diz ele pela
décima quarta vez naquela noite.
“David, sou uma droga de uma caipira, cer-
to? Fugi para a cidade e algumas semanas de-
pois estava com AIDS. Como é que eu ia sa-
ber?”
Ele explode outra vez. “Por que não obri-
gou os caras a usarem camisinha?”
A raiva dele ecoa na sala silenciosa.
“Não é esse o tipo de conversa que imagi-
nei”, diz a Mulher-Gato suavemente.

176
Mas, quando Brett começa a chorar outra
vez, soluçando. David fecha a cara de novo.
“Você sabe o que deve fazer, David”, diz a
Mulher-Gato. “Deve dizer a Brett que a per-
doa, que sabe que não foi culpa dela. E depois
precisa se entregar à polícia e confessar que
matou as prostitutas por desespero, ao saber
que é HIV positivo. E então tem que dizer a
verdade à sua esposa e pedir a ela que faça o
teste também.”
“Só porque o teste deu positivo, isso não
quer dizer que vamos ficar doentes”, diz Brett
com esperança, mas sem acreditar muito.
“Não me arrependo de ter matado”, diz David,
tomado pela raiva outra vez.
“Daqui a alguns dias, quando se acalmar,
vai se arrepender, David”, diz a Mulher-Gato.
Ele fecha a cara e olha pela janela.
E então, sem aviso algum, salta do sofá,
joga a bebida no rosto de Brett e se lança so-
bre ela, esbofeteando-a várias vezes.
A Mulher-Gato já está em pé. Ela o agarra
e empurra com tanta força, que ele tropeça na
borda do sofá e cai de cara no chão.
Tenta se levantar, mas a Mulher-Gato ainda
não terminou. Ela o agarra pelos cabelos, ba-
tendo sua cabeça contra a parede.

177
“Se você pode ficar com raiva, David, eu
também posso. Não é fácil para eu sentir
pena, sabendo que você matou aquelas mu-
lheres. Eu estou tentando ser caridosa e lhe
dar uma trégua. Mas, se tocar numa mulher
outra vez...”
Ela o deixa cair como um saco no chão.
Senta-se no braço da poltrona. Brett está
chorando de novo, o rosto enterrado nas
mãos. Selina se inclina e a abraça, amiga e
mãe ao mesmo tempo.
Então, o choro se transforma em soluços e
Brett estende os braços como uma criança. A
Mulher-Gato a segura no colo, acariciando-lhe
os cabelos e repetindo: “Está tudo bem, Brett.
Está tudo bem.”
Nenhuma das duas percebe quando David
se levanta
(minha vida acabou, não posso encarar mi-
nha mulher, minha filha e meus amigos)
e atravessa rapidamente a sala até a varan-
da aberta, onde
(uma vez viu um filme sobre uma águia e o
modo como ela usa as correntes de ar; talvez
ele possa usar as correntes de ar) e faz tudo
sem pensar
sai até a varanda e corre para o parapeito

178
da janela e
(ele se vê fazendo a primeira comunhão,
parecendo um santinho
e se lembra da briga com Mick Dolan,
quando Dolan fez um comentário sobre seu
pai
e se lembra de que estava patinando na-
quele anoitecer de dezembro, com Mary Lou
Malloy, a garota mais bonita do colégio; dos
últimos raios de sol brilhando vermelhos sobre
o gelo
e lembra)
está caindo caindo
(lembrando agora de sua esposa, na noite
em que sua primeira filha nasceu; aquele bri-
lho etéreo nos olhos dela, a mãe eterna;
e lembrando como a gente se sente, deita-
do com sua garotinha que dorme, o cheiro
doce dos cabelos dela e o seu ressonar suave
e ronronante
e lembrando)
está caindo
caindo
e em algum lugar alguém está gritando:
“David, não! David!” está caindo caindo
toda a história e toda a memória prestes a
colidirem com o chão de tijolos de uma viela,

179
numa péssima zona de Gotham
está caindo
e toda a luz e todos os sons morrerão com
ele; porque, mesmo que alguma coisa conti-
nue, já não estará aqui para ver e compreen-
der
caindo
está caindo

Selina Kyle/Brett Ewing: 10 de abril


de 199-

O sacerdote está dizendo a última prece ao


lado do túmulo. Duas mulheres com véus e
vestidos pretos soluçam. Uma é velha, a outra
jovem. Junto à mulher jovem está uma garoti-
nha loira muito bonita, parecendo confusa
com tudo aquilo. Por que papai está naquela
caixa comprida e brilhante? E por que estão
enterrando a caixa no chão? Papai não vai
sentir frio no chão?
Selina e Brett estão sobre a colina, obser-
vando de cima o funeral, a longa procissão de
carros brilhantes e caros, as cinquenta e pou-
cas pessoas chorosas que agora se afastam do
espetáculo da morte, representado pela cova
estreita no chão. Algum dia, todas essas pes-

180
soas serão protagonistas de seus próprios fu-
nerais.
Não pergunte por quem os sinos dobram,
pensa Selina. E fica imaginando se o bilhete
anônimo que mandou à esposa de David
Fisher, aconselhando-a a fazer um teste de
HIV, chegará às mãos dela no dia seguinte.
Espera que sim. Quanto mais cedo, melhor.
David escolheu levar seus segredos para o
túmulo. O resultado positivo do teste. O assas-
sinato das prostitutas. E Selina está disposta a
deixar que ele guarde seus segredos na escu-
ridão fria da terra.
Mas, quer que a esposa de David saiba so-
bre o teste de HIV para que — no caso de seu
teste também dar positivo — não passe a do-
ença para mais ninguém.
“É triste”, diz Brett.
“Muito triste.”
“Também tenho medo, Selina.”
“Eu sei”, diz Selina, pondo o braço em volta
da cintura da garota e levando-a para o cano.
A morte não deveria ter vez num dia ensolara-
do como este, quando os girassóis parecem
crianças brincando sob o céu azul, e a primeira
borboleta da primavera passa diante de nos-
sos olhos.

181
“Vamos alugar uma canoa?”, diz Selina.
“No duro? Parece divertido.”
“Podemos levar um lanche.”
“Puxa, Selina, que boa ideia!”
Caminham em silêncio, observando uma
velha ajoelhar-se com dificuldade diante de
um túmulo, onde coloca um vaso de gerânios.
A velha faz o sinal da cruz e inclina a cabeça.
“Tento odiá-lo”, diz Brett quando chegam
ao carro. “Mas não consigo.”
“É", Selina diz com melancolia. “Eu também
não.”
E então entram no carro e se afastam.

182
Caça Mortal
GARY COHN
m

1.

Eu gostei do cara, de verdade. Há muito


tempo que alguém não me fazia baixar a guar-
da assim, me abandonar. Claro que ele era
rico. Um bilionário do Texas. Um cara legal...
levando-se em conta que era um bilionário do
Texas. Seu ramo não era o petróleo, mas
software de computador. O dinheiro de seu pai
viera do petróleo, mas só restavam alguns mi-
lhões quando Arley e sua irmã Lynette herda-
ram tudo, uns dez anos atrás. Dinheiro de raiz,
como ele dizia, dando risada. Quando alguns
desses caras começam a falar no dinheiro que
têm, eu os imagino como perus gordos assa-
dos esperando que eu os devore. Mas não Ar-
ley Kincaid.
Quando falava como ele e a irmãzinha Ly-
nette haviam feito uma fortuna, aquilo soava
como a maior aventura do mundo, um jogo
perigoso contra mais frios assassinos de algu-
ma corporação maligna. Ele era lindo. Isso

183
também ajudava. Era alto e moreno, e andava
como um cowboy. Ombros largos e quadris es-
treitos, olhos de um cinza esfumaçado, com
rugas de sorriso nos cantos. Seus cabelos es-
pessos e ondulados eram da cor de ouro ve-
lho. E ainda havia aquele sorriso emoldurando
uma fala doce e arrastada. A primeira vez que
o vi, quase não acreditei: ele era tão perfeito
que parecia uma piada. O meu tipo de piada.
E era engraçado. Um homem que me faz rir
com ele, e não dele, é uma coisa rara. Quando
Arley contava como seu pai tinha perdido sua
primeira fortuna numa aposta, ou como ele e
Lynette quase perderam as suas da mesma
forma, seus olhos cintilavam, e a forma como
zombava de si mesmo era irresistível. Sem
dúvida, Arley Kincaid me fez baixar a guarda
mesmo.
Eu o conheci na ópera. Um evento benefi-
cente patrocinado pela Fundação Wayne. Eu
usava um vestido curto de seda negro, espe-
rando que Bruce Wayne estivesse lá... e tor-
cendo para que não estivesse. Ele não estava.
Essas situações me fascinam. Odeio a música,
adoro a companhia. Todas as fortunas num
raio de cento e cinquenta quilômetros de Go-
tham aparecem para fazer sua parte pelos de-

184
safortunados. Essa em especial era para as
Vítimas do Fundo dos Sobreviventes ao Corin-
ga. Todos aqueles órfãos e viúvas desconheci-
dos. Quem se importa? Eu compareço para co-
nhecer, cumprimentar... e caçar. A sra. Under-
hill Cox deve estar usando suas esmeraldas
Rani. Talvez eu ouça ela dizendo que está hos-
pedada com Roddy na suíte presidencial do
DuPree Palace Hotel. Buffy e Hewitt promete-
ram uma visita antes que ela volte à Filadélfia.
Eu decido fazer a visita naquela noite. Mais
tarde. De uniforme. É difícil resistir às esmeral-
das Rani. Por isso, durante o intervalo, eu es-
tava tomando champanha com alguns ricaços
de smoking. Eles sempre usam smoking nes-
sas ocasiões. Havia um banqueiro querendo
entrar nas minhas sedas. Eu queria entrar no
cofre dele. Estávamos negociando. Foi quando
percebi Arley Kincaid, encostado numa coluna
de mármore, tomando bourbon puro. Também
vestia um smoking, que lhe caía muito bem,
observei.
Estava sozinho, me observando trabalhar
no banqueiro; sua expressão era arrogante e
jocosa. Desafiador. Tremendamente sensual.
Eu nunca consigo resistir a desafios. Nossos
olhos se encontraram e o banqueiro percebeu

185
que não era mais o alvo da minha atenção.
“Desculpe, Errol... acabo de ver meu primo
ali. Há anos que não falo com ele. Espero que
compreenda.” Dei um tapinha afetuoso em seu
rosto, apenas para manter o interesse, e andei
até Arley Kincaid.
“Achando graça de alguma coisa?”, pergun-
tei.
“De você, querida. Imaginava que Selina
Kyle estaria atrás de caça maior.”
“Você, por exemplo?”
“Talvez.”
“E porque acha que sabe algo a respeito de
Selina Kyle?”
“Eu fiz minha lição de casa.”
“Como vou saber se você vale a pena?”,
provoquei.
“Você pode conferir jantando comigo.”
Que diabo. Ele era atraente, cheirava à ri-
queza, tinha postura, e tinha razão — ban-
queiros velhos e gordos representavam deca-
dência. Fugimos da ópera e saímos para jan-
tar.
Seu carro estava estacionado em frente ao
teatro. Um Jaguar XJ12 conversível vermelho.
Quando entrei, ele provocou: “Eu disse que ti-
nha feito minha lição de casa.” Era uma noite

186
quente de junho, e ele baixou a capota.
“Prefiro os modelos antigos... XK 120, XKE”,
falei. “Mas pelo menos você acertou a marca.”
Havia uma mesa reservada para nós no Le
Chat Noir, o melhor restaurante nouvelle de
Soho. “Está certo, parceiro, eu tenho uma
queda por temas felinos. Mas, por que será
que o nosso encontro de hoje não me parece
casual?”, perguntei.
Ele sorriu. “Confesso... estou planejando
isso há algum tempo. Desde a primeira vez em
que vi sua foto numa revista, desejei jantar
com a Mulher-Gato,”
“Você está sem sorte. Ela se aposentou...
vai ter que se contentar com a boa e velha Se-
lina.”
“Não me pareceu lá na ópera, querida.
Você estava trabalhando naquele teatro. Eu
conheço você.”
“E por que acha isso?”
Ele se inclinou e pegou minha mão. Sua
voz era suave, porém envolvente. “Conheço
você porque somos iguais. Somos predadores,
querida. Vamos atrás do que desejamos. Prin-
cipalmente se pertencer a outra pessoa.”
“E isso tudo, esse jantar, significa que você
está me caçando?”, perguntei.

187
“Bem... eu prefiro pensar que é mútuo.
Toma as coisas mais emocionantes, não
acha?”
E nossa conversa prosseguiu. Sem perce-
ber, eu fui baixando a guarda. Ele era charmo-
so, inteligente, atraente e engraçado. Pedimos
filé au poivre malpassado. Ele me falou sobre
o Texas, eu falei sobre Gotham. Me falou de
sua família. Eu não falei sobre a minha. Toma-
mos uma garrafa de vinho. Depois, outra. Con-
versamos sobre caçadas.
“Sabe, eu e Lynette — minha irmã e sócia
nos negócios — caçamos juntos desde crian-
ças. Esquilos, coelhos, lobos, pumas e ursos.
Na verdade, o velho rancho do meu pai na-
quele deserto do Texas é uma espécie de re-
serva de caça particular, frequentada por nós e
alguns companheiros. E, quando entramos no
mundo dos negócios, percebemos que não era
muito diferente.” Ele não estava bêbado, mas
o seu sotaque texano aumentava com a bebi-
da. “Pegamos os concorrentes como se fossem
coelhos! Quando chegamos nos lobos e ursos,
bem, alguns deles quase nos pegaram, mas
no final a Kincaid Software Systems sempre
chegava em primeiro!”
“Eu sei, tenho duas mil ações.”

188
“Ah, tem? Está mais de cento e doze a
ação”.
“Eu sei.”
Sorrimos um para o outro. Àquela altura,
estávamos de mãos dadas em cima da mesa.
“Você ainda é apenas Selina, ou a Mulher-Gato
também está aqui?”
Levei a mão dele até meus lábios e dei uma
mordidinha no seu polegar. “Acho que ela está
a caminho...”
Ele tinha um loft em Gotham, não muito
longe de onde estávamos. Eu também não es-
tava bêbada, mas quando ele me convidou
para conhecer o apartamento, eu concordei.
Sem vacilar.
O lugar era amplo, arejado e luxuoso. Al-
guns dos troféus de Arley estavam expostos.
Os lobos e ursos não me incomodaram, mas
não aprovei os grandes felinos.
Logo depois, estávamos no sofá, atracados
e tirando as roupas. Foi pura paixão animal,
beijos ardentes, corpos se pressionando, semi-
nus, e então acabou.
Fiquei nos seus braços, arranhando com
delicadeza os cabelos do seu peito.
“Acho que a Mulher-Gato está aqui”, disse
ele, com uma risadinha.

189
“Talvez esteja”, concedi.
“Eu realmente gostaria de ver você naquele
traje...”, sussurrou. “Na verdade, gostaria de
despir você dele.”
“Acha que pode lidar com ela?”, provoquei.
“A Mulher-Gato tem garras afiadas.”
“Eu correria o risco.”
Resolvi correr o meu risco. “O traje está na
minha bolsa”, confessei.
“Achei que tinha dito que ela estava apo-
sentada.”
“Eu menti”, respondi, desvencilhando-me
dos seus braços. “Por que não me espera na
cama? Não vou demorar.”
No banheiro, pendurei meu vestido de seda
e vesti o traje colante. Com ele, eu sempre me
sentia forte, sensual e audaciosa.
Coloquei a máscara, flexionei as garras.
Isto era uma novidade, ir para a cama de um
amante como Mulher-Gato.
Saí do banheiro com a luz acesa, sabendo
que me deixaria na contraluz, e entrei no
quarto.
Arley estava na cama, esperando. Bonito.
Quando me viu, ele disse: “Meu Deus! É sen-
sacional!”
Eu arqueei, me estiquei, flexionei as garras.

190
Pensei: porque não fazer um espetáculo? Pro-
duzir um pouco de tensão. Me senti sinuosa,
insinuante, sensual. “Tem certeza de que está
pronto pra mim?” perguntei, soltando um gru-
nhido sensual na voz.
“Ah, sim, querida... desde o começo”, ele
respondeu. Em seguida, puxou uma arma de-
baixo do travesseiro e atirou em mim.

2.

Acordei numa jaula. O dia estava raiando, e


o sol batia em meu rosto. Então, me lembrei
de Kincaid atirando em mim. “Imbecil, imbecil,
imbecil!” gritei, esmurrando as barras da jaula.
Finalmente parei, recuperei o fôlego e olhei ao
redor. Eu estava nua, deitada numa cama de
palha. Num dos cantos, havia uma vasilha de
água e um pouco de carne crua. Em outro
canto, uma caixa de areia. O que estava acon-
tecendo afinal?
A jaula tinha três metros por quatro, com
quatro de altura, e estava exposta ao sol. Não
havia nada ao redor, a não ser pequenos ar-
bustos, com montanhas a distância. A manhã
se arrastava, o calor era abrasador, e eu me
sentia péssima. Enganada. Trancada numa

191
jaula no meio de um deserto.
Examinei o local onde Arley me alvejara
nas costelas. Havia um pequeno furo. Com
certeza um dardo com tranquilizante. Havia
também alguns furos no meu braço direito, o
que significava que eles me drogaram. Eu ti-
nha fome e sede. Decidi comer a carne e be-
ber a água.
Depois de algum tempo, ouvi um motor.
Pouco depois, um jipe parou perto da minha
jaula. Trazia quatro pessoas, três homens e
uma mulher loira, forte e bonita, mais ou me-
nos da minha idade e constituição física. O
motorista era Arley Kincaid.
Os outros dois homens tinham mais ou me-
nos a idade de Kincaid. Um parecia uma fui-
nha, e trazia um grande Colt de ação simples
pendurado baixo na cintura, como um pistolei-
ro. Vestia-se como Glenn Ford num filme de
cowboy. O outro homem era grande e aparen-
temente lento. Usava camiseta, jeans, e um
boné onde se lia “Winchester”. Os quatro des-
ceram do jipe e se postaram em frente à jaula,
me avaliando.
“Bom”, disse Arley para os outros, “ela é ou
não é uma beleza?”
“Puxa, Arley... é a Mulher-Gato mesmo!”

192
disse o grandão.
“Ela não parece tão perigosa”, observou a
mulher. “Você devia ter pegado o Batman.”
Ele acariciou o braço dela. “Uma coisa de
cada vez, Lynette. Vamos ver como essa funci-
ona, depois vamos atrás da caça maior.”
Rosnei para a mulher, o que chamou sua
atenção. “Sou perigosa o suficiente para ar-
rancar seus olhos, sua cadela!”, falei, virando-
me para Arley. “Kincaid, o que significa isso?”,
exigi.
“Uau! Ela tem fibra!”, disse o grandão. “Nua
e indefesa numa jaula e ainda consegue fazer
ameaças!”
“Eu disse que devíamos ter cortado a lín-
gua dela, Arley”, observou o sujeito baixinho.
“Não gosto quando elas falam.”
“Ei, Billy-Ray, nós não somos selvagens.” E
Arley virou-se para mim. “Selina, querida, este
aqui é Billy-Ray Jenkins, Bubba Bell e minha
irmã Lynette. Eu comentei com você sobre
nosso pequeno clube de caça, lembra-se? Seja
bem-vinda ao clube.”
“Agora, ouça. Nós vamos abrir sua jaula e
nos afastar daqui. Você tem duas horas para
se esconder, depois partimos para caçá-la.”
“Como assim, me caçar?”

193
“Ora, nós caçamos juntos desde crianças.
As caças locais começaram a ficar entediantes,
por isso, passamos a importar outros animais
— leões, tigres, elefantes, rinocerontes. Mas
até isso ficou chato depois de algum tempo.”
“Um dia, Bubba trouxe um garoto que ha-
via lhe pedido carona. Ele era um rapaz bem
esperto... demorou quase um dia para ser
pego.”
“Aquilo foi bem divertido”, observou Bubba.
“Essa é a coisa mais doente que já ouvi!”,
disse a eles.
“Não. fica muito mais doente”, respondeu
Arley. “Isso foi um ano atrás, e já fizemos
umas cinco caçadas desse tipo desde então.
Tentamos encontrar caça mais difícil... o últi-
mo foi um sargento das Forças Especiais que
Lynette pegou num bar perto de Fort Bliss. Ela
acabou com ele sozinha!”
“E agora é a minha vez?”, perguntei.
“Exatamente. Como eu disse, vi sua foto
numa revista e achei que seria perfeita. E aqui
estamos nós.”
“Puxa, Kincaid, e eu gostei de você”, sus-
surrei.
“Eu sei, querida... era com isso que eu con-
tava.” Ele tirou uma chave e destrancou a por-

194
ta da jaula. Todos subiram no jipe. Arley apon-
tou para o Leste. “Se eu fosse você, iria para
aquela direção, Selina. Tem bastante cobertura
logo depois das colinas.” Dito isso, todos parti-
ram.
Abri a porta e caí no chão. Eu começava a
me sentir melhor à medida que as drogas per-
diam o efeito, mas ainda tinha sede. Bem, Se-
lina, que história de amor, hein? Será que ain-
da dá pra salvar essa relação? É a mesma coi-
sa de sempre. Garoto encontra garota, eles se
apaixonam, o garoto droga a garota e a leva
ao seu rancho para caçá-la até a morte com
seus amigos. Fiquei pensando se ele ia me
empalhar para colocar na sala de troféus.
Bem, primeiro, eles teriam que me pegar.
Rumei para o norte. Se Kincaid sugeriu o
leste, qualquer outra direção seria uma esco-
lha melhor. Enquanto corria, as coisas ficavam
mais claras para mim.
O solo machucava meus pés, mas procurei
não pensar na dor, tentando evitar espinhos e
arbustos, as piores coisas. Vi uma raposa, um
casal de coelhos, um par de abutres voando
em círculos.
Enquanto corria, avaliava minhas chances.
Será que poderia achar uma estrada e fugir

195
dali? Pouco provável. Lembrei-me de Arley di-
zendo que seu rancho cobria milhares de
acres. Sem dúvida, os caçadores conheciam
este território bem mais do que eu. Será que
eles viriam todos juntos?
Pensei no coldre de pistoleiro que o baixi-
nho usava. Cada um devia ter uma especiali-
dade, sua própria maneira de caçar. Provavel-
mente, estariam agora apostando quem me
pegaria primeiro, e viriam atrás de mim um de
cada vez. Pelos meus cálculos, partiriam mais
ou menos ao meio-dia.
Eu precisava de algo para vestir. E ali só
havia ramos de arbustos secos e cactos espi-
nhosos. Mas talvez eu conseguisse uma arma.
Depois, pensei no Boina Verde que Lynette ha-
via matado. Esses caras são peritos em sobre-
vivência, e aquela vaca acabou com ele. Pen-
sar nisso não me fez muito bem.
Enquanto corria, eu contava os segundos.
Mais ou menos meia hora mais tarde parei
para fazer minhas contas. Calculei que me dis-
tanciara uns cinco quilômetros da jaula. Já
corri várias maratonas, e sabia que poderia
manter aquele ritmo quase indefinidamente,
se não machucasse muito os pés, se encon-
trasse um pouco de água, e se a temperatura

196
não continuasse subindo.
Eu tinha escolhido um pequeno grupo de
colinas como objetivo, e agora estava entre
elas. Montanhas se erguiam ao noroeste, e eu
estaria melhor lá em cima do que aqui, em
campo aberto. Pelo menos, poderia encontrar
alguma cobertura nas montanhas.
Mas, afinal, onde eu estava? Lynette tinha
dado carona ao soldado em Fort Bliss. Conheci
alguns soldados no passado. Pelo menos um
deles estava aquartelado em Fort Bliss, perto
de... de onde? El Paso. Perto de El Paso. Na
ponta ocidental do Texas. Com o Novo México
ao norte. Eu não sabia muito sobre a região,
mas sabia que era pouco povoada.
Um local árido, deserto. Boa parte, formado
de planaltos salinos. Nas montanhas, porém,
eu poderia encontrar água, algo para comer.
Havia alguns pinheiros, a dois ou três quilôme-
tros. No trajeto, notei cactos de diversas for-
mas e tamanhos. Eu já tinha lido em algum lu-
gar que era possível obter água abrindo um
cacto. Que tipo de cacto?
Saco, eu sou uma gata urbana. O que sabia
eu sobre o Texas? Bem, eu precisava aprender
logo. Comecei a correr de novo.

197
3.

O território se abriu novamente num deser-


to entre as colinas e as montanhas. Era um lu-
gar irregular, com partes de solo duro, seco e
espinhoso, onde nada crescia, e grandes espa-
ços de areia. A areia se amontoava em dunas,
com quase quatro metros de altura. Extensas
canaletas, algumas chegando a quilômetros,
rachavam o solo do deserto. Deve haver mui-
tas enchentes rápidas por aqui durante a esta-
ção das chuvas, pensei.
Pelos meus cálculos, as montanhas esta-
vam a uns 8 quilômetros ainda. Mas as distân-
cias são enganosas no deserto, e minha avali-
ação estava bem aquém da verdade. Agora,
calculava que elas deviam estar a mais de
duas vezes aquela distância. Eu já estava cor-
rendo há bem mais de uma hora. O calor já
começava a me afetar. O suor escorrendo no
rosto queimava meus olhos. Meus pés sangra-
vam por vários cortes, por isso parei de olhar
para eles. Um vento forte começou a chicote-
ar, soprando cristais cortantes na minha nu-
dez. A areia se misturava com o suor e escor-
ria pela minha pele.
Foi nesse momento que um deles me loca-

198
lizou. Bem longe, atrás de mim, o vento trouxe
um grito agudo e desmaiado. Era um autênti-
co “IA-HUUU!” de vaqueiro. No alto das dunas,
a mais ou menos dois quilômetros de mim, um
homem cavalgava um cavalo preto. Era o cara
grandão que Arley chamara de Bubba. Ele
desceu galopando duna abaixo, seu cavalo
chutando nuvens de areia. Acelerei meu pas-
so. Não havia cobertura até pelo menos um
quilômetro em qualquer direção. Se ele resol-
vesse me dar um tiro, seria o meu fim.
Mas Bubba pretendia atirar em mim. Quan-
do seu cavalo começou a ganhar distância, ele
girou um laço sobre a cabeça. Estava brincan-
do de vaqueiro, e eu era o novilho. Corri em
círculos, tentando evitar que ele me laçasse.
Quando estava a apenas alguns passos. Bubba
jogou a corda, me acertando. Porém, eu saltei
antes que ele pudesse me puxar. E continuei
correndo.
“Puxa, garota, você é rápida!”, gritou. “Isso
tá ficando bem divertido!” O cavalo, enorme,
estava em cima de mim. E o animal era bom.
Não importava o quanto eu me desviasse, ele
continuava avançando. Bubba começou a brin-
car, usando o cavalo para me guiarem direções
diferentes. Eu estava começando a ficar can-

199
sada.
Pouco depois, ele atirou o laço novamente.
Tentei escapar, mas não consegui. O laço
apertou-se no meu tornozelo esquerdo, e caí
de cara no chão. O impacto da queda me tirou
o ar e, antes que pudesse me recuperar, Bub-
ba estava fora do cavalo e em cima de mim
como um vaqueiro. Fez um nó em torno dos
meus pulsos, amarrando-os nas costas. Depois
me virou.
O canalha sorria. “Isto é o que eu chamo
de um serviço bem-feito”, falou, “Poderia ter
atirado em você de longe, mas eu queria algo
mais... não é justo que só Arley tenha aprovei-
tado essa parte!” Enquanto falava, ele tentava
abrir minhas pernas com o joelho. Me esquivei
e lutei, mas ele era muito maior e mais forte,
e eu estava de mãos amarradas.
Ele começou a tirar o cinto, e eu senti a
corda um pouco mais folgada nos meus pul-
sos. “Depois, vou estrangular você... ou duran-
te, talvez...” estava dizendo.
Lancei a cabeça para a frente, golpeando
seu rosto com a testa. A pancada o atordoou
por um segundo. Golpeei com a cabeça de
novo e desta vez prendi seu nariz nos meus
dentes.

200
Ele gritou, e eu senti a cartilagem se que-
brando. Balancei a cabeça de um lado para o
outro, como um tubarão querendo arrancar
um pedaço de carne da perna de um homem,
aumentando o aperto dos meus dentes no na-
riz dele. Ele abriu os braços e me acertou um
murro na cabeça. Aquilo fez com que eu o sol-
tasse. Ele se ergueu, cobrindo o rosto com as
mãos. O sangue escorria entre seus dedos.
Rapidamente, eu me levantei e, num instante,
estava livre da corda. Depois ficamos olhando
um para o outro. Rosnei e chiei para ele.
“Sua cadela! Você bordeu beu dariz!” Bub-
ba puxou uma grande faca Bowie da cintura e
veio em minha direção. Quando avançou, usei
a corda como se fosse um chicote. A ponta
acertou seu nariz, fazendo com que ele recu-
asse, uivando de dor.
Lancei a corda em sua direção mais uma
vez, agora no pulso que segurava a faca. Ouvi
um estalido gratificante, e a faca caiu no chão.
O pulso estava quebrado.
Bubba gritou e saltou para cima de mim.
Desviei-me com facilidade. Pela primeira vez
naquele dia eu me sentia com a situação sob
controle. Era uma sensação agradável. Quan-
do passou por mim, acertei-o na perna com

201
uma virada. Ele tropeçou, e eu meti o cotovelo
na sua nuca.
Ele caiu de cara no chão, eu mergulhei.
Plantei o joelho esquerdo nas suas costas,
prendendo-o junto ao solo e passei a corda
em volta de seu pescoço. “Então, você ia me
estrangular, não é?”, ronronei no seu ouvido
enquanto ele se engasgava. “Deste jeito? É
assim que ia fazer?” Ele não respondeu, apoia-
do sobre os joelhos e as mãos, tentando agar-
rar minha perna direita. Cruzei as duas pernas
ao redor dele, encaixando meu tornozelo direi-
to debaixo da perna esquerda. E apertei, até
sentir que os músculos das minhas coxas qua-
se estalavam. Curvei o corpo e ouvi o estalo
de suas costelas. Ossos quebrados. Ele des-
maiou. Apertei mais ainda a corda no seu pes-
coço.
Quando relaxei o aperto, ele ainda se con-
torcia. Talvez conseguisse sobreviver. Talvez
não. Eu fiquei ali deitada, tentando recuperar
o fôlego. Meu coração batia forte. Desejei que
diminuísse o ritmo. Fiquei em pé.
Eu queria as roupas dele. Arranquei sua ca-
miseta. As botas eram grandes demais. Uma
pena. Meus pés estavam um horror. As meias
dele talvez ajudassem. Comecei a arrancar

202
suas calças quando um resfolegar me assus-
tou. O calor e a luta deviam ter me perturba-
do, pois eu me esquecera completamente do
cavalo. Agora, percebia que ele era minha pas-
sagem de volta para sair daquela situação.
Mas o cavalo não queria nada comigo. Re-
linchava e refugava. Eu não conseguia me
aproximar, e havia um rifle Winchester na car-
tucheira pendurada na sua sela. Aquela arma
poderia aumentar em muito as minhas chan-
ces. Mas, quando tentei pegar a arma, fui atin-
gida por um coice no ombro esquerdo. A pan-
cada me jogou no chão, e eu me ergui sobre
os joelhos a tempo de ver o cavalo correndo
de volta pelo caminho de onde viera.
Meu ombro estava amortecido. Meu braço
esquerdo pendia inerte ao meu lado. Apalpei
minha clavícula com a mão direita. Nada,
nada, nada... Ai!
Não parecia um fratura grave, mas naque-
las circunstâncias era grave o suficiente. Dro-
ga, eu não deveria ter tentado alcançar o ca-
valo e a arma!
Voltei ao Bubba e continuei tirando suas
roupas. A respiração dele era curta e entrecor-
tada. Percebi que podia usar minha mão es-
querda se não girasse o ombro, e isso facilitou

203
meu trabalho. Tirei o relógio do pulso dele, co-
loquei no meu. Era bom, um Cartier. Marcava
uma e quinze. Mais tarde do que eu imagina-
va. Encontrei fósforos no bolso, um molho de
chaves de automóvel.
Um cartão na sua carteira identificou-o
como Robert Elliot Buell, vice-presidente de re-
lações-públicas da Kincaid Software, Inc. Havia
cartões de crédito, algumas centenas de dóla-
res em dinheiro, uma foto de sua esposa e fi-
lho. Aposto que ela se sentia muito orgulhosa
do seu Bubba. Outros cartões me informaram
que era membro do Rotary Club de El Paso, do
Lions Club, da Câmara de Comércio. Realmen-
te um cidadão de destaque. Guardei os fósfo-
ros e o dinheiro.
Logo depois, eu estava vestida com algu-
mas das roupas de Bubba. As calças eram inú-
teis, muito largas e compridas. Usei a camiseta
como um minivestido, amarrado na cintura
com um pedaço de corda. A faca descansava
na bainha ao meu lado. As grossas meias de
algodão de Bubba cobriam minhas pernas
quase até os joelhos. Os fósforos e o dinheiro
estavam dentro da meia direita.
O boné era ajustável e protegia meus olhos
do sol. Usei o cinto de Bubba para prender

204
meu braço esquerdo no peito. Quanto menos
me movesse, menos doeria. Cortei também
um pedaço de corda de quatro metros para
usar como chicote, enrolei na mão direita. Jo-
guei o que restou da corda numa depressão
do terreno, juntamente com as botas, calças e
a carteira de Bubba. Olhei para mim mesma
com minha nova vestimenta. “Selina, você
sempre teve sensibilidade para moda.”
Bubba soltou um gemido. Chutei sua cabe-
ça, ele ficou quieto. Droga, tinha sede. O sol
estava alto. Lembrei de ter lido uma vez que a
temperatura podia chegar a quase 50 graus no
deserto. Eu não tinha a menor dúvida. Se não
encontrasse algo para beber logo, estaria real-
mente encrencada. Parti outra vez rumo às
montanhas.

4.

Encontrei uma canaleta que seguia mais ou


menos na direção que eu queria ir. Imaginei
que a água correndo montanha abaixo segui-
ria o mesmo curso sempre que chovia. Aquela
canaleta estava lá há muitos anos.
E tinha aproximadamente cinco metros de
profundidade e cerca de sete de largura. Seu

205
melhor aspecto era a prateleira formada pela
erosão na parte superior. Se eu me encostasse
na parede, meus perseguidores não me veri-
am nem se olhassem direto para baixo. A ou-
tra virtude é que era relativamente fresca, pois
a prateleira sombreava o fundo. A única des-
vantagem era a dificuldade de descer nela
com meu braço ferido. E com certeza, seria
ainda mais difícil sair de lá rapidamente, caso
fosse necessário.
Mantive um trote fácil e confortável. Estava
me deslocando nesse passo há umas duas ho-
ras, quando tive sorte. A canaleta fez uma cur-
va e avistei uma pequena poça de água no
lado que mantinha o chão abrigado do sol.
Mergulhei o rosto. Recolhi água na concha
das mãos e bebi profundamente. Era alcalina,
mas melhor do que um pires de leite fresco.
Joguei água no pescoço e nas costas. Tirei as
meias de Bubba e enfiei meus pés dilacerados
na água. Doeu como o inferno, mas também
foi muito bom. Fechei os olhos, saboreando o
momento.
Porém, um rugido surdo alertou meus sen-
tidos. O grande felino estava em pé do outro
lado da poça de água. Eu havia invadido seu
território, e ele estava me comunicando o fato.

206
Era um leopardo, um macho adulto. Tinha
tranquilamente setenta e cinco quilos de mús-
culos, dentes e garras num casaco pintado.
Rosnou para mim, mostrando caninos de cinco
centímetros. Continuei sentada, forçando-me a
relaxar. Se existe algo que eu conheço, são fe-
linos. Ele não estava com fome, nem sequer
particularmente zangado. Estava apenas abor-
recido por eu ter invadido seu espaço.
“Belo gatão”, falei delicadamente. “Puxa,
que belo gatinho. Legal.” Imitei um profundo
rugido de leopardo na garganta. Fiz o ruído
suave que os leopardos fazem quando estão
felizes e satisfeitos.
Isso o deixou interessado e ele inclinou a
cabeça para mim, curioso. Ele sabia que eu
não era um leopardo. Pelo menos, não parecia
nem cheirava como um leopardo. Mas eu soa-
va como um. Finalmente, decidiu que eu não
era uma ameaça. Lançou-me outro rugido
para me informar quem era o chefe, depois
abaixou a cabeça para tomar água.
“Cara, você é realmente lindo”, sussurrei
para ele. “O que será que está fazendo aqui?
Não sabe que está no continente errado?” Cla-
ro que eu sabia o que ele estava fazendo ali.
Era caça para o clube de Kincaid, assim como

207
eu.
“O que você fez, gatinho? Descobriu como
evitar os caçadores? Há quanto tempo está
aqui?” Ele se sentou, olhando para mim. De-
pois bocejou, se espreguiçou e começou a se
lamber. Então, agora uma humana com meias
roubadas estava tomando sua água e fazendo
ruídos felinos. Grande coisa. Ele se adaptaria.
Fosse qual fosse o tempo que ele estava enga-
nando os Kincaids e seus companheiros, ele
havia se dado bem dentro das circunstâncias.
Era um sobrevivente. E, se ele conseguira so-
breviver, eu também conseguiria.
O som de um helicóptero se aproximando
interrompeu meus devaneios. O leopardo er-
gueu-se, correndo rapidamente ao longo da
canaleta. Encostei na parede, esperando que a
prateleira me cobrisse.
O helicóptero passou rasante ao longo da
canaleta. Depois ouvi o estampido de fuzis de
alto poder de fogo. Arrisquei-me, arrastando-
me pelas paredes até poder espiar sobre a
borda.
Eu estava bem mais perto das montanhas.
O suficiente para tentar correr até a floresta
que começava ali perto.
O leopardo corria pelo deserto em direção

208
à floresta, perseguido pelo helicóptero. O fuzil
disparou novamente, e o grande felino trope-
çou. Depois, levantou-se e correu novamente.
Saí da canaleta e comecei a agitar meu
braço bom no ar. Quando o leopardo mudou
de direção, o helicóptero fez uma curva e o se-
guiu. Por um momento, o nariz do aparelho
estava apontado diretamente para mim. Eles
tinham que me ver. “Ei, seus canalhas!”, gritei.
“É a mim que vocês querem! Estou aqui!”
Claro que o helicóptero se desviou do felino
e veio em minha direção. O leopardo conti-
nuou correndo para a floresta. E eu, também.
Segui um caminho que me levaria até a flores-
ta em um ponto a quase um quilômetro do lo-
cal onde o leopardo entrara.
O fuzil disparou e uma bala levantou areia
a um metro à minha esquerda. Continuei cor-
rendo. Aquele tiro fora apenas para me assus-
tar. Eu já tinha entendido. Eles gastaram um
bocado de tempo para me trazer aqui, e não
iam querer me pegar de um helicóptero. Não
seria esportivo. Quanto aos tiros no leopardo,
foram apenas para passar o tempo. Agora, eu
era a caça outra vez.
Então, cheguei à floresta e olhei para trás.
O helicóptero estava pousando. Arley Kincaid

209
estava nos controles, com Billy-Ray ao seu
lado.
Quando o aparelho pousou, Billy-Ray sal-
tou. “Não se preocupe, Arley”, ouvi quando
gritava acima do ruído do motor, “eu posso
com ela! Agora, saia daqui... é a minha vez!”
Ele tinha um walkie-talkie na mão. “Eu chamo
para você me apanhar quando tiver acabado!”
E começou a correr em direção à floresta,
walkie-talkie numa mão, fuzil na outra. O col-
dre de pistoleiro chicoteando em seu quadril.
O helicóptero levantou vôo em direção ao
leste. Apostei comigo mesma que a cabana de
caça deles era naquela direção. Aprofundei-me
na mata. Billy-Ray vinha atrás de mim, e eu
queria estar pronta para ele.
Meu ombro doía, mas assim mesmo eu me
sentia melhor do que havia sentido o dia intei-
ro. A água tinha ajudado e agora a sombra
fresca das árvores era um abrigo bem-vindo
contra o brilho do sol.
Eu sabia de que forma lidar com Billy-Ray,
mas queria antes me embrenhar mais na flo-
resta. Finalmente encontrei uma agradável cla-
reira entre as árvores. Encostei-me numa ár-
vore e esperei.
Minha exposição em espaço aberto era tão

210
inesperada que Billy-Ray no início nem me no-
tou. Entrou na clareira de cabeça baixa, se-
guindo minhas pegadas, o fuzil apoiado no
braço. Quando me viu, ficou imóvel, a boca
aberta.
“Que diabos está fazendo aí em pé, garo-
ta?” Apontou o fuzil para mim. “Não tem graça
se você não tentar fugir!” Afastei-me da árvo-
re. Estávamos nos encarando, a menos de três
metros de distância. Ele tinha o cano do fuzil
apontado para o meu abdômen.
“Parece que você teve um dia difícil”, falou.
“Talvez queira acabar logo com esse sofrimen-
to.”
“Creio que não, Billy-Ray”, respondi, soltan-
do um sedutor ronronado na voz. “Sei o que
você quer realmente.” Deixei que a corda se
desenrolasse da minha mão até que a maior
parte dela descansasse no chão. Eu tinha feito
um nó pesado, do tamanho de um punho fe-
chado, na ponta da corda. “Você quer um de-
safio, um duelo. É por isso que usa esse col-
dre, certo?” Ele lambeu os lábios e apertou os
olhos. Estava tentando me entender. Continuei
falando.
“Então, vai ser você o homem que matou a
Mulher-Gato. Mas não com esse fuzil. Vai que-

211
rer me dar alguma chance, certo?”
“Aonde quer chegar?”
“A um duelo, Billy-Ray. Quem saca mais
rápido.”
“Você não está armada.”
“É verdade”, falei movendo minha corda.
“Mas tenho isto.”
Ele começou a rir. “Você é louca mesmo”,
disse descansando o fuzil. Ficamos nos enca-
rando. Ele parou de rir. “Tudo bem, então, mas
foi você que me convenceu”, comentou, a voz
traindo um tom agudo. Amarrou o coldre na
coxa com as tiras de couro cru que dele pendi-
am, enrolou as mangas, abriu as pernas, flexi-
onou os dedos na coronha do Colt. “Quando
estiver pronta, Mulher-Gato.”
“Você, primeiro, Billy-Ray.”
Ele moveu os olhos dos meus até a corda
enrolada na minha mão, depois voltou aos
meus olhos.
E então partiu para a arma.
A corda estalou ao meu golpe. O estalo de
um chicote na verdade é uma explosão sonora
em miniatura. Passei muito tempo usando e
estudando chicotes. É como atirar uma pedra
ou dar um soco, o movimento não começa no
braço, mas sim na perna de apoio. A velocida-

212
de se transmite pelo impulso dos quadris, de-
pois se acelera através do ombro, pelo braço
que se estende e ao longo do chicote, até que
a força seja concentrada na ponta... e o que
quer que a ponta atinja. Agora, eram quatro
metros de corda atirados em direção a Billy-
Ray, com um nó rígido do tamanho de um pu-
nho fechado na ponta. Era como ser atingido
por um direto na ponta de um braço de dez
metros.
O nó acertou Billy-Ray na ponta do queixo
antes que seu Colt estivesse completamente
fora do coldre. O estalo do seu pescoço que-
brando ecoou o estalo da corda. Sua mão
afrouxou e a arma caiu de volta no coldre.
Billy-Ray caiu para trás, morto.
Cutuquei-o com a ponta do pé, só para ter
certeza. “Eu convenci mesmo você a fazer
isso, não foi, Billy-Ray? Você tinha razão... de-
via ter cortado minha língua.”

5.

Encontrei a pequena caverna pouco antes


do pôr-do-sol. Meu dia tinha melhorado consi-
deravelmente depois que matei Billy-Ray. Ele
era um cara pequeno e suas roupas me servi-

213
ram muito bem. Até mesmo suas botas me
serviram quando calcei as meias dele por cima
das de Bubba. Mantive o boné de Bubba. Acho
que todo caçador gosta de um troféu de vez
em quando.
Considerei levar o fuzil de caça, mas desis-
ti. Talvez Rambo conseguisse manusear aquela
coisa com uma mão, mas não eu. O Colt esta-
va ótimo e usá-lo afivelado no quadril me pro-
porcionava uma indiscutível sensação de segu-
rança. Normalmente não gosto de armas, mas
abri uma exceção hoje. Meu ombro ainda me
causava agonia sempre que o movia de forma
errada, mas mantive meu braço imobilizado e
tentei ignorar a dor.
Encontrei um agradável riachinho na mata.
Esperei escurecer e bebi até me saciar. Avistei,
um coelho que viera tomar água. Matei o bi-
chinho da mesma forma que matei Billy-Ray, e
esfolei-o com a faca de Bubba. Considerei a
ideia de cozinhar o animal, mas a fumaça po-
deria atrair Arley e Lynette. Comi o coelho cru.
Não tinha muita carne, e continuei com fome.
Mas era melhor do que nada.
A caverna ficava quase oculta atrás de um
amontoado de arbustos. Não era muito maior
do que a jaula em que eu começara o dia mas

214
eu me sentia muito mais em casa. Estava co-
meçando a escurecer e a temperatura caía ra-
pidamente.
Melhor não ser pega ao ar livre.
Assim que entrei para passar a noite, o
walkie-talkie de Billy-Ray chiou.
Logo depois: “Billy-Ray... aonde diabos está
você?” Era Arley Kincaid.
Não consegui resistir. Liguei o falante.
“Sinto muito, Arley, ele partiu há mais ou
menos duas horas.”
“Partiu...? Selina, sua cadela... você o ma-
tou!”
“É a lei da selva, meu caro, matar ou mor-
rer. E, a propósito, você nunca deveria chamar
uma gata de ‘cadela’.”
“Onde você está?”
“Você deve estar brincando. Acho que não
funciona bem sob pressão, Kincaid. A propósi-
to, como está Bubba?”
“Ainda estava vivo quando foi encontrado.”
“E agora?”
“Não.” Sua voz soou trêmula.
“Escuta, Kincaid, vou fazer uma proposta.
Vamos encerrar esse assunto. Você me deixa ir
embora e prometo que não volto procurando
você e sua irmã. O que me diz?”

215
Ouvi vozes discutindo no outro lado, depois
Lynette falou. “Acha que somos burros? Co-
nhecemos a sua reputação. A Mulher-Gato
nunca se contenta com um empate, sempre
tem que vencer. Bem, desta vez, você vai per-
der.”
“Como achar melhor. Vejo vocês dois ama-
nhã.” Desliguei o walkie-talkie, depois bati nele
com uma pedra até ter certeza de que não
funcionaria mais.
Agachei-me na frente da caverna. A toca
da Mulher-Gato. Batman tem a Batcaverna,
pensei. Eu tenho isto.
Eu tinha me esquecido de como eram as
noites no campo.
As estrelas pareciam incríveis, espetacula-
res. Enchiam o céu de luz. Depois surgiu a lua,
iluminando a floresta. Fiquei na frente da ca-
verna por um tempo, contando estrelas caden-
tes e pensando nos homens. Eu já tinha me
dado mal com amantes outras vezes, mas isto
era demais.
Talvez devesse contar minha história num
programa de TV. Dava até para imaginar. Eu,
ali no palco, com várias outras mulheres de
coração partido, todas esperando para contar
suas histórias. Então, eu diria ao apresenta-

216
dor: “Bem, meu namorado e seus amigos me
drogaram, me levaram até um rancho no Te-
xas, me soltaram nua para me caçar até a
morte.” O apresentador ia balançar a cabeça e
parte da plateia gritaria: “Conta, gracinha! Va-
mos lá, garota!” Depois, o apresentador cha-
maria Arley para contar a sua versão da histó-
ria.
Sinto muito, pensei, mas Arley não vai po-
der contar nada a ninguém depois de amanhã.
Puxa, estava ficando frio. Aqui, a gente frita
de dia e congela à noite. Hora de deitar. Entrei
na caverna, me enrolei na jaqueta de Billy-Ray
e adormeci.
Fui acordada por um som arrastado. Fiquei
alerta imediatamente. Encostei-me na parede
e ergui a arma de Billy-Ray. Havia alguma coi-
sa na caverna comigo. Ouvi sua respiração.
Peguei uma caixa de fósforos do bolso da ja-
queta e acendi um palito. O leopardo estava
na caverna comigo, deitado de lado, ofegante.
E havia arrastado o que parecia uma anca de
antílope com ele. Era isso que tinha me acor-
dado.
Olhamos um para o outro. Ele parecia tão
surpreso em me ver quanto eu ao vê-lo. Am-
bos tremíamos de frio.

217
Emiti meus ruídos amistosos de leopardo. A
última coisa que queria era ter de matá-lo. Ele
me olhou com curiosidade de novo. Ronronei e
rosnei. Ele, também. Depois ergueu-se sobre
as patas, dolorosamente, percebi. Rosnou sua-
vemente e começou a se moverem minha di-
reção. Hesitei, não querendo puxar o gatilho.
Logo depois, ele estava perto demais para eu
atirar. Abaixou a cabeça e esfregou-se na mi-
nha perna. O fósforo apagou.
Acendi outro. O leopardo estava encostado
em mim, ronronando. Toquei-o com cuidado,
depois com mais confiança. Afaguei seu pelo,
acariciei-o atrás das orelhas. Ele adorou. Ma-
gia de Mulher-Gato, acho.
Examinei-o com cuidado, para ver se esta-
va ferido. Finalmente encontrei um buraco
sangrento no lado direito do quadril. A bala o
havia pego apenas de raspão. Fizemos ruídos
de leopardo juntos e partilhamos a anca do
antílope. Ele comeu a maior parte. Acho que
eu não estava com muita fome. Depois, dormi-
mos abraçados. Assim era mais quente.

6.

Acordei ao amanhecer. A caverna estava

218
impregnada com o cheiro forte do felino, mas
o leopardo já havia partido. Levantei-me com
dificuldade. Meu braço esquerdo estava ador-
mecido. Tentei mover os dedos da mão es-
querda, mas não consegui. Também não con-
segui vestir a jaqueta, por isso deixei-a na ca-
verna.
O primeiro passo foi uma agonia. Ainda
bem que eu não havia tirado as botas de Billy-
Ray antes de dormir, ou não seria capaz de
calçá-las de novo.
Depois de alguns passos, meus pés come-
çaram a aceitar a dor. Fui até o riacho. Pelo
menos, eu tinha água.
Quando me inclinei para lavar o rosto, vi
uma mancha cinzenta no canto do olho. Girei
naquela direção, sacando o Colt do coldre. Um
chicote estalou e a arma voou da minha mão.
Senti uma cutilada dolorosa nos meus dedos,
e vi Lynette na minha frente, segurando um
chicote.
Ela estava usando o meu uniforme. A cade-
la estava usando o meu uniforme de Mulher-
Gato!
“Miaaauu”, fez ela. “Você está um lixo! Pa-
tética! Nunca mereceu este uniforme! Eu sou a
Mulher-Gato agora. Você é apenas mais uma

219
imitadora e vai ser um prazer matá-la!”
Tentei alcançar a faca no meu cinto, mas
ela estalou o chicote outra vez e a faca foi ar-
rancada do meu quadril. Olhei ao lado. A bai-
nha fora rasgada, assim como minhas calças,
e escorria sangue pela minha perna. Ela era
boa com aquela coisa, isso eu não podia ne-
gar.
“É isso que quer, Lynette? Me cortar em pe-
daços sem me dar uma chance de reagir?”
“Reagir? Não me faça rir, querida”, ela res-
pondeu. “Lembra aquele Boina Verde de que
falei ontem? Ele era grande, rude, forte e bo-
nito. Mais de cem quilos, fácil. Sabe como eu o
matei? Com as mãos. Um contra o outro. Uma
luta justa.” Jogou o chicote no chão, ergueu
uma mão vestida de luva e garras e arranhou
o ar. “Agora, se quiser tirar o seu uniforme da
nova Mulher-Gato, vai ter que atacar e tentar!”
Aproximei-me dela de forma sinuosa, meu
lado direito na frente. Lutar com ela com um
braço só não ia ser fácil. Principalmente por-
que ela estava postada, esperando que eu me
movesse. Assim que eu me expusesse, a cade-
la me atingiria, e eu sabia por experiência pró-
pria o tipo de ferimento que aquelas garras
podiam fazer. Só que nunca tinha estado neste

220
lado delas antes.
Quando ela estava quase ao meu alcance,
simulei um passo de impulso, como se fosse
chutá-la. Ela estava suficientemente nervosa
para responder, girando para se defender do
chute. Isso foi o suficiente. Eu havia feito ela
se expor. Mudei meu movimento no contrapé,
girando num chute circular que a acenou na
nuca, fazendo com que rolasse no chão. Mas,
antes que pudesse capitalizar meu golpe, ela
rolou numa queda ukemi e estava em pé no-
vamente. Ela era boa mesmo. Talvez, se eu
estivesse bem e descansada, fosse capaz de
enfrentá-la. Mas não hoje.
Ela fez uma combinação de golpes, come-
çando com um chute lateral de aproximação,
depois dando uma série de golpes com as
duas mãos. Bloqueei, me esquivei e contra-
ataquei, mas não consegui deixar de ser atin-
gida e rasgada pra valer. Ela me aceitou com
um golpe no plexo solar, me tirando a respira-
ção. Me atingiu com a mão esquerda no peito,
me deixando marcada por arranhões sangren-
tos. Recuei, mas ela me deu um pontapé no
ombro ferido. A força do chute me mandou
vários metros para trás, e caí de costas num
arbusto. Acho que desmaiei por um segundo,

221
mas, quando me recuperei, ela estava se apro-
ximando para acabar comigo.
Foi aí que avistei o Colt de Billy-Ray, caído
num arbusto a não mais de quinze centímetros
da minha mão direita. Num movimento rápido,
peguei a arma, engatilhei e mirei. Lynette es-
tancou. Mas não estava assustada. Ainda não.
“Ora, Selina”, começou ela, sibilando meu
nome, “nós dissemos que seria uma luta lim-
pa.''
Dito isto, saltou em minha direção, garras
abertas, e eu disparei. A primeira bala atingiu-
a no peito, atirando-a para trás. A segunda
quase arrancou seu braço direito. A terceira
rasgou sua garganta. Levantei-me e cambaleei
até onde estava caída. Ela me olhou, os olhos
embaçados, moribundos. “Aquelas palavras fo-
ram suas, Lynette”, falei, “não minhas. Além
disso desde quando os gatos lutam limpo?”
Foi então que uma flecha atingiu minha
coxa direita. Caí gritando de dor e choque, um
clarão vermelho nos olhos. Rolei de lado, pro-
curando a arma, mas não estava em nenhum
lugar ao alcance.
Arley Kincaid saiu da floresta.
Ficou me olhando por cima, da mesma for-
ma que eu tinha olhado a irmã dele um mo-

222
mento antes. Tinha outra flecha no arco,
apontada diretamente ao meu coração. Deu
uma olhada rápida em Lynette, depois voltou
sua atenção a mim.
“Você é muito boa, querida, muito boa.
Tudo que eu esperava e mais ainda. Conse-
guiu pegar os três, de um jeito ou de outro.” O
canalha estava sorrindo. Eu tinha acabado de
matar sua irmã e seus dois melhores amigos
e, agora, por estar prestes a me matar, ele es-
tava sorrindo!
“Você nem se importa de eles estarem
mortos?” perguntei.
“Claro que sim. Mas acidentes de caça
acontecem.”
“Pensei que gostasse da sua irmã.”
“Vou gostar muito mais da parte dela nos
negócios. E agora é a sua vez.” Ele começou a
puxar o arco. A dor na minha perna era insu-
portável, mas eu não podia deixar que perce-
besse isso. Olhei para além dele, nos galhos e
árvores da floresta. E comecei a rir.
Aquilo mexeu com ele. Relaxou a corda do
arco e me lançou um olhar intrigado. “Estou
prestes a matar você e está rindo de mim. Por
que isso?” perguntou.
“Porque sei algo que você não sabe”, res-

223
pondi.
“E o que seria?”
“Sei que não sou eu quem vai morrer.”
Seu rosto se abriu numa expressão de es-
panto. Depois, ouviu um rosnado atrás dele. E
começou a se virar...
Tenho certeza de que o impacto do leopar-
do matou Arley. Se não, foram as afiadas gar-
ras que o evisceraram um instante depois. Ou
as presas que arrancaram seu rosto. De qual-
quer forma, ele morreu.

7.

Desmaiei duas vezes tentando arrancar a


flecha da minha coxa, mas finalmente conse-
gui. Amarrei um torniquete ao redor da perna
e o sangramento parou. Acho que a flecha não
acertou nenhuma das artérias principais.
Usando o arco de Arley como muleta, capen-
guei por entre as árvores. O jipe estava espe-
rando na beira do deserto. Como havia achado
chaves no bolso de Arley, deduzi que estivesse
por perto. Felizmente, dispunha de transmis-
são automática, pois eu não tinha a menor
vontade de lidar com embreagem e alavanca
de câmbio naquele momento.

224
Levou um pouco de tempo, mas finalmente
o leopardo subiu e sentou-se ao meu lado. Dei
partida no jipe e apontei para o leste.
Menos de uma hora depois, parei numa ca-
bana de caça. Era grande, com uma casa de
alvenaria e um celeiro. O helicóptero estava na
parte de trás e havia vários automóveis de
luxo estacionados ao lado da casa. Uma estra-
da de terra levava ao sul.
O leopardo me ajudou a descer do jipe. En-
trei na casa mancando, o leopardo me seguin-
do cautelosamente, rosnando aos aromas hu-
manos no interior. Não fiquei surpresa ao
constatar que a casa estava vazia.
Havia um caixote aberto no meio da sala
de estar. Eu tinha vindo de Gotham lá dentro.
Minha bolsa e meu vestido de seda estavam
na caixa. Verifiquei a bolsa. Minha carteira ain-
da estava lá. Eu estava de volta.
Encontrei um banheiro, me lavei e cuidei de
meus ferimentos o melhor possível. Depois
dormi.
Mais tarde, revistei a casa. Havia troféus de
caça por toda a parte. Curiosamente, nenhu-
ma pessoa empalhada. No armário de Lynette,
encontrei calças e blusas limpas e um blazer.
Quando acabei de me vestir, inspecionei-me

225
no espelho. Nada mal, considerando-se a situ-
ação.
O leopardo estava calmo, andando pela
casa e dormindo no sofá. Mas estava inquieto.
Não parava de me dizer que era hora de ir em-
bora.
“Só preciso fazer uns telefonemas”, disse a
ele. Passei a próxima meia hora no telefone,
fazendo arranjos. Quando vissem as chamadas
internacionais na próxima conta telefônica, os
Kincaids... ah, bobagem minha, eles não iam
ver a próxima conta, não é?
Minha última ligação foi para Otto, meu
agente financeiro.
“Selina, que bom falai com você! Onde es-
teve esses dias?”
“Tirei umas pequenas férias. Aliás, estarei
fora da cidade por algumas semanas.”
“Férias! Que maravilha! É tão raro você fa-
zer isso. Para onde vai?”
“Quênia. Um amigo meu quer ir para casa
e vou cuidar para que seja bem instalado.” Co-
cei o leopardo atrás das orelhas. Ele lambeu
minha mão com sua língua áspera.
“Parece delicioso, Selina. Quer que eu cuide
de alguma coisa enquanto estiver fora?”
“Na verdade, sim. Quero que venda todas

226
as minhas ações da Kincaid Software.”
“Mesmo? Mas elas estão tão bem.”
“Acho que isso vai mudar rapidamente.
Gostaria que se livrasse dessas ações assim
que desligarmos o telefone.”
“Claro. Mais alguma coisa?”
“Não até eu estar de volta em Gotham.
Tchau, Otto.”
O leopardo aceitou a coleira que improvisei.
Expliquei que era apenas pelas aparências e
acho que ele entendeu. Saímos da casa, tendo
o cuidado de trancar a porta. Por um momen-
to, fiquei olhando o quarteto de carros de luxo
estacionado ao lado da casa. “Hum...”, pergun-
tei ao leopardo, “qual deles vamos pegar?” Ele
rosnou suavemente.
“Tem toda razão”, falei. “A escolha perfei-
ta.”
Pegamos o Jaguar.

227
O misterioso Cavaleiro das Trevas, cuja luta
em nome da justiça não pode ser detida pela
atração por uma oponente felina...

Uma ladra noturna, sorrateira e sensual,


que deixa as marcas de garras afiadas naque-
les que ousam se meter em seu caminho...

Batman e Mulher-Gato.

Ele tem sede de justiça.

Ela prefere a luxúria.

Quando acontece o encontro inevitável dos


habitantes das sombras, o guinchar do morce-
go e o rosnar da gata ecoam pelas ruas de
Gotham City!

E você será testemunha deste confronto!

CONTOS DE BATMAN
VOLUME 2: APRESENTANDO
MULHER-GATO

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