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Iniciação aos conceitos fundamentais da Filosofia de Heidegger

II
(Por Francisca Rutigliano)

Uma primeira abordagem do sentido no qual Heidegger concebe o Dasein, a partir de


uma consideração preliminar do λóγος [logos] grego – esboço para uma distinção posterior do
Ser do homem frente à sua determinação moderna enquanto Consciência.

Dissemos em nosso Ensaio anterior que Heidegger cunhou o conceito de utensilidade


para apresentar o teor problemático da Coisa numa perspectiva outra que aquela da
Subsistência. Uma coisa subsistente é todo e qualquer ente suposto em sua concretude possível,
visado para uma determinação categorial, através da qual ele, com seus predicados, são
configurados em sua forma de manifestação seja para um λóγος seja para uma Consciência.
Quando se tratou de determinar o caráter problemático da humanidade do homem (o
ser-homem), o Pensamento grego, notadamente Aristóteles, o primeiro a propor tal
determinação, tomando o homem pela perspectiva da Subsistência (um dado concreto em meio
a outros) apresentou a seguinte definição: o homem é o “vivente que tem λóγος” (ζῷον λόγον
ἔχον).
Heidegger procura esclarecer em que sentido Aristóteles procedeu a esta determinação
específica para o homem, e o faz justamente para distinguir, de partida, o λóγος grego da
Consciência medieval e moderna. Em primeiro lugar, Heidegger mostra que a definição do
homem enquanto um vivente que tem λóγος pressupõe a subsistência de tal vivente na πόλις
[polis].
Para que comecemos a nos orientar na ordem do Pensamento de Heidegger e
compreender como o Filósofo cunha os seus conceitos e o caráter fundamentalmente
existencial que ele lhes atribui, temos aqui um bom exemplo. Estamos considerando a sua
explanação do conceito de homem estabelecido pela Filosofia grega; vemos de imediato que o
Filósofo articula este conceito de homem – ele próprio um conceito complexo: o vivente que
tem λóγος – a um outro conceito, a saber, o de πόλις. Por que tal articulação? Por amor à
prolixidade? Por suposto que não! Talvez por amor à plenitude semântico-existencial que
concerne a tudo que se apresenta na vida, a qual não deve ser tomada a ligeiro nunca por um
Pensamento que se pretende enquanto o porta-voz de seu Ser.
Heidegger articula a polis ao conceito de homem, porque ambos os conceitos só se
esclarecem em reporto um ao outro. Isto no sentido em que o “vivente que tem λóγος” reclama
ser explicado em todas as suas determinações, com efeito, quanto ao seu caráter de “vivente”,
quanto ao sentido próprio do seu “ter” e, por fim, quanto à perspectiva na qual o λóγος é aí
visado. Por outro lado, o conceito de πόλις solicita um esclarecimento de seu teor fenomenal
num sentido mais essencial, que o da compreensão corrente que o toma como meio social
subsistente, ou no sentido inteiramente normativo de Estado, enquanto conjunto das
Instituições preestabelecidas de ordenação e controle da existência de todo. Vejamos:
Em seu Tratado “Os conceitos fundamentais da Filosofia aristotélica”, Heidegger presta
o seguinte esclarecimento do sentido com que Aristóteles apreende o homem em termos de “o
vivente que tem λóγος”: O homem tem logos na medida em que se constitui enquanto um ente
político, ou seja, um vivente que só é enquanto coexistente na πόλις. O homem não é
primeiramente um suposto subsistente portador de um λóγος apreendido enquanto faculdade
interna e daí coexistente com outros subsistentes num espaço dado, isto é, ele mesmo
subsistente para suas relações de trocas e de funcionamento em geral – tampouco a πόλις se
constitui enquanto tal espaço. A πόλις e o homem são, na perspectiva do Pensamento de
Aristóteles, fenômenos simultâneos de subsistência, que se determinam mutuamente em
atendimento às necessidades do movimento factício da existência coexistente orientada de
todo pela possibilidade significação para deliberação permanente.
Se o λóγος não é uma faculdade intrínseca subsistente no homem, qual é o caráter
fenomenal de seu fundamento? Vejamos como Heidegger o esclarece pelo viés do
esclarecimento da πόλις ela mesma, dando um passo para além daquilo o que Aristóteles ele
mesmo concebeu. Heidegger compreende que para Aristóteles, que determina o homem
enquanto o “vivente que tem λóγος”, a πόλις já se encontra pré-figurada no Ser próprio do
homem. Assim, o Passo além procedido por Heidegger se limita a compreender que tal
prefiguração da πόλις no Ser do homem, leva justamente à necessidade de uma determinação
deste Ser numa perspectiva outra que a da Subsistência. A πόλις, diz Heidegger, muito antes de
se constituir num fenômeno trazido ao homem enquanto um acréscimo para sua determinação
enquanto “vivente político” (ζῷον πολιτικόν), determina-se enquanto um caráter do coexistir e
do ser-junto, que são determinações originárias do Ser do homem enquanto Dasein, isto é, ser-
no-mundo no modo da compreensão do Ser.
A coexistência, já subjacente no momento da lida cotidiana designado enquanto ser-
junto – em trato com as coisas num procedimento de conformação regido por um Todo de
conformidade compreendido – tal coexistência implicada esclarece o sentido do primeiro
momento da articulação grega da definição do homem, qual seja, o “vivente”. O vivente é o
coexistente; o coexistir é uma certa forma de ser-com-outrem no qual radica justamente o
surgimento da πόλις. Que forma é esta? Aquela de um coexistir (ser-em um mundo)
compartilhado.
Como isto se dá? O “ser”-com-outrem, o coexistir, ele mesmo é fundado em um
específico “ter”-com-outrem de algo, isto é, em um compartilhar de algo no sentido de um
intercâmbio (κοινωνία) do que é benéfico (συμφέρον) e do que é conforme o bem (ἀγαθόν)
para todas as partes (o bem-comum) (I). Se prestarmos atenção na descrição do conceito, vemos
que neste compartilhamento comum reside o sentido do segundo momento da articulação da
definição grega do homem, qual seja, o “ter” – do vivente. O vivente que tem (λóγος) é o vivente
que traz consigo compartilhado algo enquanto comum a todos, compartilhamento este que é o
que determina em última instância o seu Ser enquanto coexistente – o “benéfico” e o “bem”,
segundo os quais se conforma este ter compartilhado, residem no próprio compartilhamento
não são metas colocadas fora dele; são antes aquilo por motivo do qual (οὗ ἕνεκα) o
intercâmbio, a comunhão, é o que é. (Se se quiser apontar o rasgo metafísico dessa
determinação do homem, temos que dizer somente que este reside no fato de Aristóteles, a
despeito da diferença de encaminhamento, permanecer tributário da determinação do Ser
concedida por Platão em termos de Ideia, “eidos”. Mas este é um assunto que ainda solicita uma
boa preparação para sua abordagem.)
Perguntamos então, o que constitui a especificidade deste “ter-com-outrem de algo”
sobre o qual se funda o coexistir; o que é aí propriamente compartilhado com as determinações
do “do benéfico” e do “bem” comum? Nada mais nada menos que o Mundo. Heidegger procura
deixar claro que Aristóteles determinou o Bem-comum, oriundo da boa-comunhão (κοινωνία
ἀγαθoῦ), a partir do próprio Ser do homem, que unicamente nestes termos se determina
enquanto Ser-político. E Heidegger se esforça ainda por mostrar que Aristóteles traz esta
determinação do Bem-comum ao Ser do homem justamente através do recurso ao λóγος. Em
que sentido? Demonstrando que a comunhão através da qual se forma o que é doméstico
(οἰκία), familiar, só é possível através da fala, ou melhor, de um falar (λέγειν) permanente
(atente-se que o silêncio é um modo da fala), na medida em que o “vivente que tem λóγος” é
um falante com o Mundo que ele tem de seu, de modo compartilhado. O homem se exprime,
fala com os outros falantes (Mundo) de seu Mundo comum. O homem não é primeiro homem
para em seguida falar; o ser-homem tem a possibilidade do seu Ser fundada unicamente sobre
a fala – não ocorresse fala, não se daria homem, não se erigiria πόλις (Mundo), portanto.
Heidegger observa bem que o λóγος, a determinação do terceiro momento da definição
grega do homem, é precisado por Aristóteles num sentido muito bem delimitado. O λóγος é
apenas um grau maior, ainda que essencialmente diferencial, do ser político de todo vivente (II)
– já vemos com isto, que o político esta sendo concebido originariamente enquanto o
comunitário, portanto, para além ou, se se preferir, para aquém de qualquer racionalidade. Os
animais têm através da φωνή (phoné) uma vida comunitária, que lhes constituem já em certo
sentido enquanto vidas políticas (ζῷα πολιτικά), as abelhas, as formigas... O λóγος, por distinção
à φωνή, tem apenas a característica de poder determinar o homem enquanto o vivente
maximamente político. E isto unicamente porque a φωνή não tem o caráter de abordagem que
tem o λóγος, o qual é em essência o caráter de mediação, no sentido da consideração reunidora
e apresentadora – o λóγος reúne, através da consideração algo (um sentido) a algo (coisa) que,
com isto, se deixa expor indicado em seu para-que (no logos semântico) ou denotado em seu o-
quê (no logos apofântico).
Assim, o ente maximamente político, conquanto “tenha” o λóγος, só o tem como um
modo específico do seu ser-no-mundo, que, de nossa parte podemos dizer a título de acréscimo,
é aquele do ὁμιλέω (homiléo), do tratar-com, estar-com no modo da conversação.
Esboçamos aqui uma primeira configuração da determinação do Ser do homem
enquanto Dasein, em reporto à determinação grega do homem enquanto o “vivente que tem
λóγος. Nosso intuito foi deixar indicado de partida que numa tal determinação não se encontra
ainda a figura de nenhuma Consciência deposta sobre o primado da pura atividade
incondicionada, isto é, de um “eu-penso”, como a qual se afigura a Consciência moderna.
Abordaremos a configuração própria desta aqui num próximo Ensaio.

Notas:
(I). É útil observar desde já que este compartilhamento orientado pelo princípio do bem-
comum, não se identifica com o “bem-comum”, fundado na auto-satisfação dos interesses
individuais, suposto pelo moderno liberalismo inglês.
(II) Para o esclarecimento da determinação grega do homem pelo λóγος, cf. Heidegger,
M. “Os conceitos fundamentais da Filosofia Aristotélica”, § 9 e Cf. Aristóteles. “Política” A, 2,
1253 a 9 ss.

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