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SebentaUA, apontamentos pessoais Disciplina /41048 – Psicologia Clínica e da Saúde

41048
Psicologia Clínica e da Saúde

Autor: SebentaUA, apontamentos pessoais


E-mail: sebentaua@gmail.com
Data: 2008/2009
Livro: Ramos, Mª Natália (2004), Psicologia Clínica e da Saúde, Lisboa, Universidade Aberta
Caderno de Apoio:
Nota: Apontamentos efectuados para o exame da disciplina no ano lectivo 2008/2009

O autor não pode de forma alguma ser responsabilizado por eventuais erros ou lacunas existentes. Este documento não
pretende substituir o estudo dos manuais adoptados para a disciplina em questão.

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PSICOLOGIA CLÍNICA E DA SAÚDE


Introdução Geral
A psicologia no âmbito clínico e da saúde, abrange um vasto campo de intervenção e investigação,
trazendo contributos importantes para a compreensão do desenvolvimento normal e patológico e dos
processos adaptativos individuais e colectivos, para a promoção da saúde e bem-estar mental, físico e
social do indivíduo, dos grupos e das comunidades, para a prevenção, avaliação e tratamento de diversos
disfuncionamentos, traumatismos e perturbações mentais e somáticas.

O estudo da saúde e da doença exige modelos biopsicossociais, holísticos, ecológicos e multifactoriais,


que considerem o indivíduo na sua totalidade e complexidade e a saúde e a doença como conceitos
dinâmicos e complexos, resultantes da interacção de causas múltiplas, internas e externas, que ocorrem
ao longo do tempo e em contextos específicos. Um modelo holístico implica a transformação de atitudes,
representações e comportamentos de todos os indivíduos envolvidos nos processos de saúde e doença,
ou seja, os utentes, os profissionais, os cidadãos e os decisores políticos.

A confrontação do discurso familiar com a observação directa ou fílmica em meio natural constitui uma
metodologia de investigação importante para compreender as relações entre as representações individuais
e colectivas e os estilos comunicacionais e relacionais e para analisar as condições de desenvolvimento e
as práticas de cuidados nos contextos em que ocorrem.

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SAÚDE, SOCIEDADE E DIREITOS HUMANOS.


PROBLEMÁTICAS E INDICADORES PSICOSSOCIAIS E DE SAÚDE

I. PARTE
1. Introdução
A realidade social, económica, cultural, política e familiar estão organizadas como um todo articulado e
como um sistema interactivo que influenciam a saúde, o bem estar e a qualidade de vida das crianças, dos
adultos e das famílias.

Nascer, crescer, viver em situação de pobreza, de guerra, de exílio, de migração e de doença é fonte de
inúmeras formas de violência e exclusão, constituindo um risco, um trauma e um desafio para o indivíduo,
muito em particular, para a criança e a sua família.
Estas problemáticas exigem:
− Abordagens preventivas e interventivas, multidimensionais e pluridisciplinares.
− Um modelo holístico que considere o indivíduo na sua totalidade e complexidade.
− Uma perspectiva da saúde.

2. Sociedade, Desenvolvimento, Saúde e Doença


2.1 – Desenvolvimento, pobreza e exclusão
A exclusão, seja do tipo social, económico, cultural ou devida a comportamentos de auto-exclusão, é um
fenómeno complexo resultante de um processo constituído por rupturas sucessivas com a sociedade, a
cultura e a família. Os indivíduos excluídos encontram-se impedidos do pleno exercício de cidadania que
se traduz no acesso a direitos, tais como, a saúde, a educação, uma vida digna, no acesso a um conjunto
de sistemas sociais básicos em diferentes domínios: económico, social, institucional, territorial, simbólico
(Bruto da Costa, 1998).

As crises de natureza económica não são o único factor de origem, manutenção e aumento da pobreza.
Também as crises de natureza política, epidemiológica e ambiental contribuem para a manutenção ou
aumento da mesma.

Como refere Dubois (2001), a pobreza tem de ser analisada de uma forma plural e, por isso, temos de a
considerar nas suas diferentes dimensões:
− A pobreza monetária
− A pobreza das condições de vida ou de existência
− A pobreza das potencialidades ou das capacidades.

2.1.2 – Desigualdades sociais, pobreza, saúde e doença


Factores socioeconómicos e culturais e as condições sociais e habitacionais das famílias têm influência na
saúde das crianças e dos adultos e estão na origem de patologias várias.

A pobreza é uma das causas mais importantes de doença e mortalidade, traduzindo-se por carências
múltiplas: alimentação incorrecta, água não potável, insegurança habitacional, degradação do meio,
ausência de educação e não acesso aos cuidados de saúde.

Benzeval et al. (1995), num estudo sobre as desigualdades sociais em 14 países diferentes, constataram
que as desigualdades e a pobreza têm inúmeras consequências na saúde dos indivíduos. Os indivíduos
vivendo em condições precárias têm mais doenças, mais sofrimento psicológico, mais deficiências e uma
menor longevidade do que aqueles que vivem sem problemas económicos.

A título comparativo, em Portugal, a esperança de vida aumenta 13 anos nas mulheres (sendo de 79,7
anos) e 11 anos nos homens (72,7 anos) em 2000, números que se aproximam da média comunitária, ou

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seja, 75 anos para o sexo masculino e 81 anos para o feminino, estando esta melhoria relacionada com as
melhores condições de vida e de saúde dos cidadãos europeus.

2.2 Mortalidade infantil e materna


A má nutrição é uma componente relacionada com a precariedade e a pobreza humana e um dos factores
de mortalidade infantil.

A má nutrição é particularmente mortífera, quando está associada a uma doença infecciosa como a
pneumonia, o paludismo, a rubéola ou a diarreia.

Igualmente, e associado a factores culturais e socioeconómicos, mais de metade das mulheres africanas e
asiáticas sofrem de carências alimentares graves, as quais afectam, particularmente, a saúde das
mulheres grávidas e os recém-nascidos.

Na Ásia do Sul e no Próximo e Médio Oriente, há uma submortalidade das meninas com menos de 5 anos,
devido também a factores culturais. A preferência dada aos meninos, devido, entre outras, a razões
religiosas, económicas e políticas, origina uma insuficiência de cuidados médicos e de cuidados básicos e
de alimentação às meninas, cujo estado de saúde se deteriora.

A mortalidade infantil resulta assim de um processo complexo onde intervêm factores biológicos, mas,
também, factores socioeconómicos, comportamentais, individuais e culturais.

Também as crianças, nos países em desenvolvimento, estão mais sujeitas, para além da má nutrição, a
infecções respiratórias, paludismo, diarreia, rubéola, carência de iodo, o que afecta o absentismo e os
resultados escolares e está na origem de um grande número de mortes de crianças com menos de 5 anos,
registando-se anualmente perto de 11 milhões de mortes destas crianças nestes países.

A Ásia do Sul e de Leste e, sobretudo, a África Subsariana caracterizam-se por uma situação muito grave,
onde a privação de acesso aos equipamentos de saúde, o analfabetismo, a má nutrição e os riscos de
morte se acumulam e multiplicam.

Uma grande parte das mortes de crianças com menos de cinco anos que ocorrem anualmente no mundo
poderia ser evitada, proporcionando às famílias, particularmente às mães e às crianças, melhores
condições de saúde e melhores condições educativas e socioeconómicas.

2.2.1 Mutilações sexuais femininas


A mortalidade materna e feminina tão elevada nos países menos desenvolvidos deve-se a insuficiência de
vigilância e cuidados de saúde, a gravidezes múltiplas, à subalimentação, mas, também, às
consequências de gravidezes muito precoces em crianças e jovens cujo crescimento não está completo e
às mutilações sexuais. Estas mutilações são vulgarmente conhecidas pelo termo Mutilação Genital
Feminina (MGF), compreendendo todos os procedimentos que envolvam a remoção parcial ou total dos
órgãos genitais das mulheres ou qualquer dano provocado nos mesmos. Estes três organismos
distinguem quatro tipos de MGF:
− I: Clitoridectomia, excisão parcial ou total do clitóris;
− II: Excisão do clitóris com excisão parcial ou total dos pequenos lábios;
− III: Infibulação ou excisão faraónica, ou seja, excisão de parte ou da totalidade dos órgãos genitais
com o coser/estreitamento da abertura da vagina;
− IV: Procedimentos não classificados que incluem, nomeadamente: o furar ou incisão do clitóris e/ou
lábios; esticar o clitóris e/ou lábios e cauterização do clitóris e do tecido circundante; fazer várias
incisões no tecido à volta do orifício vaginal ou seccionando a vagina; introdução de substâncias
corrosivas ou outros produtos como ervas para provocar hemorragia ou para estreitar ou apertar.

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Várias razões são utilizadas para a justificação destas mutilações sexuais:


− razões de ordem estética e anatómica;
− razões de ordem «moral» no sentido de controlar a sexualidade da mulher e aumentar o seu valor
graças à virgindade;
− razões de ordem cultural, nomeadamente, para a integração social da criança e jovem na comunidade;
− razões de cariz económico.

Os países africanos onde é mais praticado este ritual, com taxas aproximadamente de 90%, são a Somália,
a Etiópia, a Serra Leoa, a Eritreia, o Sudão e a Gâmbia.

Entre os países que praticam este tipo de mutilação existe um de expressão portuguesa que é a Guiné-
Bissau, onde este ritual denominado «fanado» se mantém, as estimativas apontando para 50% de
mulheres excisadas neste país. Entre os grupos étnicos que na Guiné-Bissau mantêm o «fanado» estão
os Mandingas, os Fulas, os Biafadas, os Djacacas os Saracules.

2.3 Mortalidade e Sida


O VIH/SIDA tem múltiplas implicações e consequências ao nível sanitário, psicológico, social e familiar,
que vão desde o isolamento, abandono e rejeição social, à doença e à morte, ao medo e ansiedade, à
diminuição da auto-estima, ao sentimento de perda de controlo, a disfuncionamentos sexuais, a
perturbações familiares, profissionais, socioeconómicas e familiares.

2.4 Educação, saúde e cidadania


Com efeito, é nos países mais pobres que o direito das mulheres à educação é mais desprezado, sendo
fundamental o acesso à educação das crianças, particularmente das meninas. Muito embora tenha havido
ao nível mundial progressos na escolarização feminina, este desenvolvimento é muito desigual segundo
as regiões, constituindo as mulheres quase dois terços dos analfabetos do mundo.

O analfabetismo constitui um entrave ao desenvolvimento global da criança, criando dificuldades na


integração social e laboral futuras, na compreensão e inserção no mundo na sua diversidade e
complexidade e criando obstáculos à participação social, à promoção da saúde e bem estar, à protecção
da criança contra as crescentes e múltiplas formas de violência e exploração.

As mães escolarizadas asseguram aos seus filhos e à família melhores condições de vida e transmitem
aos seus filhos comportamentos, atitudes, crenças e estilos de vida mais saudáveis do que as mães que
não receberam qualquer instrução escolar.

As crianças que não são registadas não têm uma existência legal, isto é, não têm uma identidade, um
nome oficial e uma nacionalidade, três elementos indispensáveis à participação em sociedade, aos
cuidados de saúde, nomeadamente, à vacinação, à escolarização e à cidadania.

3. Violência e Saúde
3.1 – Violência Estrutural
As múltiplas formas de violência estão enraizadas nas estruturas socioeconómicas, culturais e políticas e
nas consciências individuais, numa relação interactiva e dinâmica entre condições objectivas e a
subjectividade do ser humano, entre o colectivo e o individual. Com efeito, os diversos tipos de violência
expressam-se de forma associada, onde desajustes, desequilíbrios e conflitos do sistema social,
comunitário e familiar se articulam nos níveis individuais e interpessoais, e onde um conjunto de factores
de risco actua de forma dinâmica e interactiva no indivíduo, na família, na cultura e na comunidade.

A violência estrutural incide sobre as condições de vida das crianças e das famílias, tendo em conta
elementos socioeconómicos, históricos e políticos que tornam vulnerável o desenvolvimento, educação e
saúde da criança. Esta forma de violência, pelo seu carácter, frequentemente reprodutivo e de perenidade,

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aparece geralmente como “natural”, “institucionalizada”, “invisível”, como se nela houvesse a acção dos
indivíduos.

“O locus da violência estrutural é exactamente uma sociedade de democracia aparente que, apesar de
conjugar participação e institucionalização e advogar a liberdade e igualdade dos cidadãos, não garante a
todos o pleno acesso a seus direitos.

Nas suas diferentes expressões, a violência estrutural tem várias formas limites de manifestação, das
quais destacamos: a exploração e trabalho infantil, as crianças de rua/sem abrigo e as crianças
institucionalizadas.

3.1.1 – Trabalho infantil


Como muitos estudos demonstram, o trabalho infantil tem graves riscos de natureza psicossocial e para a
saúde física e mental, afectando, nomeadamente, o tamanho, o peso e crescimento da criança; os ritmos
e a qualidade do sono; a susceptibilidade a acidentes, a doenças e a agentes químicos físicos; a
exposição da criança a actividades perigosas, a ritmos e a riscos de trabalho para os quais não está
preparada e incompatíveis com o seu desenvolvimento físico e psíquico.

3.1.2 – Crianças de rua


No que diz respeito ao problema das crianças de rua, este tipo de violência que priva a criança dos seus
direitos mais elementares está relacionado com a pobreza, com a total falta de condições familiares para a
sua subsistência, com conflitos familiares e abandono, ou seja, com incapacidade de atender às
necessidades materiais e psicológicas das crianças, tendo vindo a aumentar em todo o mundo e devendo
constituir um desafio e objectivo prioritário para os responsáveis políticos diversos países.

Desinseridos da família, da escola, da cultura e da sociedade, privados de cuidados básicos e de saúde,


sem projectos de vida e de futuro a longo prazo, vivendo um quotidiano violento e desestruturado e o
sentimento de não pertença e de abandono, estas crianças e jovens dessocializados e desaculturados
desenvolvem comportamentos autodestrutivos (abuso de drogas, álcool, suicídio, automutilação) e têm o
seu desenvolvimento emocional, social, cognitivo, físico e moral comprometidos.

3.1.3 – Crianças institucionalizadas


A institucionalização das crianças, como alternativa à pobreza, à miséria, à destruturação social e familiar,
aos maus-tratos e abandono e como meio de protecção, de educação e de ressocialização da criança, tem
revelado alguns benefícios, mas também muitas carências e limitações para assegurar o equilíbrio
psicológico e o pleno desenvolvimento da criança.

São frequentes algumas manifestações clínicas quando as crianças são institucionalizadas,


nomeadamente: isolamento, instabilidade comportamental, inibição motora, depressão e insónia. A
possibilidade de se identificarem a adultos de referência, de conseguirem estabelecer uma relação estável,
segura e positiva com um adulto ou um par e de construírem projectos futuros vai-lhes permitir reconstruir
a sua auto-imagem e a sua identidade, apesar da ausência da família, dos pais e da angústia de
abandono e de perda que lhe estão associadas.

3.2 – Violência familiar


3.2.1 – Definição e determinantes
A família é espaço de protecção, de desenvolvimento, de afecto, de organização estrutural, emocional e
identitária, mas é também espaço de opressão, de conflito, de desestruturação e de violência, podendo
constituir factor de protecção ou de risco.

A violência familiar, também designada doméstica, constitui uma realidade complexa e multiforme que
envolve a violência física, psicológica, sexual (abuso sexual), a negligência e o abandono.

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As carências económicas e o isolamento social, o stresse ambiental e psicológico e as múltiplas


frustrações decorrentes da precariedade das condições de vida, das rupturas familiares, das fracas redes
de apoio, do abuso de álcool ou drogas, são factores que agravam as condições de risco, de maus-tratos
e violência, sobretudo à criança, assim como os conflitos familiares graves (Belsky, 1980, Bifulco & Moran,
1998). A falta de suporte familiar, social e comunitário, o isolamento social e emocional dos pais devido,
entre outros, a mudanças geográficas ou de residência, podem fragilizar os pais e romper os apoios e a
qualidade de cuidados, fundamentais ao bom crescimento e desenvolvimento da criança (Elmer, 1979).

Em inquéritos realizados em Portugal continental sobre os maus-tratos e negligência da criança, verificou-


se a predominância de certos factores, nomeadamente: pais com fraca escolaridade ou analfabetos,
vivendo em situação socioeconómica precária, habitações degradadas e desempregados; hábitos de
consumo de álcool excessivo; factores e valores culturais, tais como concepções relacionadas com a
necessidade de castigos para educar os filhos e com o direito dos pais castigarem e punirem os filhos
(Amaro, 1989).

Na origem da violência familiar, estão implicados factores socioeconómicos, ambientais e culturais, mas
também factores individuais, psicológicos e familiares, como as características da criança e as
expectativas dos pais, o funcionamento familiar, as concepções educativas, a história pessoal e a
personalidade dos pais, a sua saúde e recursos internos, podendo afirmar-se que a violência familiar toca
sobretudo famílias multiproblemáticas.

A violência conjugal, ou seja, mães maltratadas, correm riscos de se tornarem mães maltratantes.

Hunter et al. (1978), nos EUA, num estudo sobre crianças maltratadas e negligenciadas durante o primeiro
ano de vida coloca em evidência três componentes:
− famílias vulneráveis com falta de suporte social;
− crianças com défices biológicos e prematuras;
− contactos reduzidos pais-criança durante a estadia no hospital.

Em Inglaterra, Lynch e Roberts (1997) da análise dos dossiers das crianças maltratadas registaram cinco
factores determinantes:
− mães com menos de 20 anos;
− presença de perturbações emocionais ou psiquiátricas;
− admissão da criança numa unidade de cuidados intensivos;
− inquietude quanto à competência da mãe para cuidar da criança;
− necessidade de interferência do trabalhador social durante a estadia da mãe na maternidade.

Baseando-se numa perspectiva ecológica, Belsky (1980) identifica um conjunto de variáveis que podem
constituir factores e protectores de risco de abusos e maus tratos à criança. Entre os factores de risco,
este autor agrupa vários tipos de factores:
− história de abuso, baixa auto-estima, competências interpessoais reduzidas, baixas capacidades
intelectuais, baixo nível de escolaridade dos pais;
− problemas conjugais e familiares, monoparentalidade, doença, prematuridade da criança, pobreza;
− isolamento, reduzido suporte social e comunitário, desemprego, acontecimentos stressantes;
− aceitação cultural da punição/agressão física, cultural da violência, depressão económica.

Como factores protectores, são destacados:


− história positiva de relação com os pais, boas competências intelectuais e interpessoais;
− criança saudável, equilíbrio familiar e suporte conjugal, segurança económica;
− bom suporte social e comunitário, experiências escolares e com os colegas positivas, valores morais e
religiosos, stresse reduzido;

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− cultura da solidariedade e de partilha, envolvimento comunitário, não valorização da violência,


prosperidade económica.

3.2.2 – Tipos de maus-tratos e consequências


3.2.2.1 – Violência e maus-tratos à criança
Dados estes organismos (OMS, 2002) revelam igualmente que 20% de crianças do sexo feminino e 5 a
10% do sexo masculino sofrem abusos sexuais durante a infância. Segundo este relatório, as meninas
correm mais riscos de negligência, de infanticídio, de prostituição forçada e de abusos sexuais, enquanto
os meninos estão mais sujeitos a violência física e espancamentos.

As consequências mais frequentes da violência física são lesões abdominais e do sistema nervoso central,
traumatismos cranianos, lesões auditivas e oculares, fracturas de membros, contusões várias, mutilações,
mordeduras, queimaduras, conduzindo muitas desta agressões a invalidez temporária ou permanente e à
morte.

A violência psicológica tem efeitos psicopatológicos graves, com consequências, nomeadamente, ao nível
do desenvolvimento emocional, social e cognitivo, de distúrbios do comportamento, de comportamentos
auto-destrutivos, anti-sociais e de violência, da depressão, do abuso de álcool e drogas.

As crianças vítimas de abusos sexuais, de familiares ou não, são em geral agredidas por aqueles que são
destinados a protegê-las ou que estão em posição de autoridade ou confiança (os membros da família,
vizinhos, professores, educadores, médicos, etc).

Este tipo de violência tem efeitos muito prejudiciais ao nível do desenvolvimento em geral, nomeadamente,
desenvolvimento sexual, emocional, cognitivo e social, podendo favorecer, entre outros: falta de auto-
estima, culpabilidade, isolamento, ansiedade, insónias, ideias suicidárias e auto destrutivas, problemas
ginecológicos e sexuais, gravidezes indesejáveis, enurese, somatização, delinquência e agressividade,
depressão, problemas de aprendizagem e escolares, abandono escolar, consumo de drogas, jogos
sexuais inadequados para a idade ou prostituição e problemas psicossomáticos.

Sobre o abuso sexual na família, Hayez et al. (1999) descreve três tipos de famílias que podem favorecer
este tipo de violência:
− família rígida, com pouca comunicação, onde o pai exerce uma posição de tirania doméstica,
submetendo-se a esposa ou sendo cúmplice deste autoritarismo. Na história destes pais existe, muitas
vezes, transmissão transgeracional destas práticas de abuso;
− famílias fusionais, onde os membros da família estão demasiados «imbricados» e envolvidos uns com
os outros;
− famílias caóticas, onde domina a instabilidade, a insegurança, a falta de regras e as carências
educativas e cognitivas. A promiscuidade, os problemas económicos e o isolamento social estão,
muitas vezes, presentes.

A negligência e abandono representam a falta de cumprimento das obrigações familiares e sociais para
proverem às necessidades físicas e psicológicas das crianças, expressando-se, sobretudo, na falta de
cuidados básicos de higiene e alimentação, de cuidados de saúde e escolares, de afecto, apoio e
supervisão, na ausência de cumprimento dos papéis familiares de cuidados e protecção ou na inversão de
papéis familiares (crianças cuidando dos pais), elementos indispensáveis para um crescimento e
desenvolvimento normais. Podem ter graves consequências ao nível da saúde mental, nomeadamente, na
depressão e perturbar o desenvolvimento cognitivo, psicoafectivo e social da criança.

3.2.2.2 Violência conjugal


É designada violência conjugal a violência que é, em geral, cometida no interior do casal e infligida,
sobretudo, pelos homens contra as mulheres, companheiras ou esposas.

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Muitos estudos confirmam que a violência conjugal continua após a separação, podendo mesmo agravar-
se. Segundo o Departamento de Justiça dos EUA, uma mulher tem mais probabilidade de morrer quando
abandona um marido violento, do que quando fica com ele.

3.2.3 – Consequências da violência familiar e experiências de violência e saúde futuras


O estudo assinala ainda os efeitos posteriores dos abusos sexuais durante a infância para os jovens e
adultos do sexo masculino, nomeadamente: distúrbios psicopatológicos, mais ou menos graves,
problemas de consumo de drogas múltiplas, problemas de identidade sexual e graves disfuncionamentos
sexuais, adopção de comportamentos de alto risco e transformação da criança vítima de abusos em adulto
agressor e abusador.

A violência familiar (física, psicológica ou sexual) está pois na origem de múltiplos traumatismos, com
grandes implicações na vida e no futuro da criança e do adulto, da mulher e na saúde física e mental
podendo considerar-se um grave problema de saúde pública e um atentado aos Direitos Humanos. Como
referimos, este tipo de violência tem como consequências lesões e traumatismos físicos, conduzindo
mesmo, por vezes, à morte, e provocando, igualmente sintomas de stress pós-traumático e perturbações
psicológicas graves, das quais destacámos: depressão, isolamento, ansiedade generalizada, baixa auto-
estima e auto-confiança, culpabilidade, ideias de suicídio, problemas de sono, auto-mutilação, abuso de
álcool e drogas, comportamentos anti-sociais e violentos, problemas sexuais, abandono escolar e
deterioração dos resultados escolares, vitimização e maus-tratos e violência a longo termo.

A prevenção e a intervenção exige uma abordagem holística que tenha em conta:


− Os contextos e os factores determinantes da violência familiar, as vítimas de abusos e violência e os
abusadores;
− Políticas e estratégias que promovam uma informação, educação e formação adequadas
relativamente a esta problemática dos profissionais, dos jovens e do público em geral, uma legislação
adequada, uma melhor especialização e articulação dos diferentes serviços que acolhem e apoiam as
vítimas e ainda uma melhoria e alargamento das estruturas e tipos d apoio, muito em particular, de
apoio psicológico.

3.3 – Violência juvenil e comportamentos anti-sociais


Lawrence (1998) salienta que, nos EUA, entre 74% e 98% dos crimes são cometidos por crianças e jovens
em escolas, distinguindo entre comportamentos anti-sociais, a venda e consumo de drogas, uso de armas,
roubos, vandalismo, bullying (agressões, injúrias, ameaças e intimidações) e diversas formas de violência
para com os colegas, professores e funcionários.

Nos EUA, Elliott et al. (1996), o homicídio constitui, segundo os autores, a segunda causa de morte entre
os adolescentes nos EUA na última década, aparecendo como a principal causa de morte para os
indivíduos afro-americanos entre os 15 e os 24 anos. Para este autor (1998), entre 1984 e 1994, a taxa de
homicídios violentos duplicou entre os adolescentes nos EUA, sendo o número de homicídios de
adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos de idade de 7.354, só no ano de 1990.

As agressões e a violência entre pares e colegas, nomeadamente de bullying, pode ter um grande impacto
na qualidade de vida, bem-estar e saúde em geral, podendo estar na origem de disfuncionamentos
psicológicos e físicos e afectando o funcionamento geral e a auto-estima dos adolescentes. No que
respeita à auto-estima, esta constitui um recurso importante para um melhor funcionamento psicossocial e
para uma melhor saúde e desenvolvimento psicológico, estando a baixa auto-estima associada a um
grande número de problemas, incluindo abuso de drogas e de álcool, depressão, distúrbios alimentares,
problemas sociais, escolares e médicos.

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Investigações conduzidas em diversos países, em particular nos EUA, Austrália e Finlândia, sobre as
relações entre saúde mental, queixas de saúde física e a violência entre os colegas adolescentes,
nomeadamente bullying, salientaram:

− a vitimização por colegas está significativamente relacionada com ideias de suicídio, havendo uma
relação entre bullying e ideação suicida;
− taxas elevadas de vitimização estão relacionadas com taxas mais altas de queixas somáticas, com
reclamações e sintomas de doenças físicas;
− vítimas de bullying, comparadas às não vítimas, registavam taxas mais elevadas de problemas de
sono, de queixas físicas, auto-percepção de não estarem bem de saúde e baixa auto-estima.

Também as investigações nos indicam que as taxas mais elevadas de comportamento anti-social e
violento são referidas nas classes sociais mais desfavorecidas e que vivem em meio urbano (Elliott et al.
1980, 1996, Rutter et al.1998). A dureza das condições de vida e o stresse quotidiano em que estas
famílias vivem faz com que tendam a apresentar disfuncionamentos psicológicos e familiares e diversas
formas de psicopatologia e a que não exerçam as competências afectivas e comunicacionais, de apoio,
supervisão, controlo e autoridade na educação dos filhos.

Vários estudos têm revelado que crianças e jovens que vivem em comunidades cronicamente violentas,
em ambientes familiares, sociais e escolares violentos, apresentam sintomas, tais como: jogos e
actividades agressivas; acções violentas como forma de esconder e combater o medo; ansiedade
generalizada e intensa; depressão; baixa auto-estima e auto-confiança; inibição nas actividades,
pensamento e exploração; dificuldades de concentração, de memória e de sono que afectam o
desempenho escolar.

3.4 – Violência e conflitos armados


3.4.1 – Abordagem e dimensões da violência em contexto de guerra
Os conflitos armados e a violência têm aumentado, destacando-se entre os vários factores os efeitos da
globalização. Esta, incrementando a fragmentação e a marginalização de alguns países e grupos, tem
alargado as desigualdades e fragilização dos direitos sociais, aumentado a concorrência e a luta pela
posse de recursos, as quais, associadas a outros factores, aumentam a probabilidade de conflitos políticos
e a violência.

Estes conflitos armados têm afectado grandemente a saúde, o desenvolvimento, a adaptação e a


escolarização de crianças. Com efeito, a experiência da guerra expõe a família e a criança a graves fontes
de violência, de stresse e ansiedade (vivências de morte, prisão, tortura, ferimentos seus ou de familiares,
tiroteios e bombardeamentos, lares destruídos, fome e privação, fuga e exílio), deixando profundos e
duradouros traumatismos psicológicos e físicos, em particular na criança, e privando esta de educação, de
toda a ordem e de regularidade no seu quotidiano e na sua vida familiar, escolar e social.

Nos conflitos armados, as crianças e as mulheres são particularmente ameaçadas pela violência e
exploração sexual, nomeadamente, violação, tortura, mutilações e escravatura sexual. Também muitas
jovens e mulheres refugiadas de guerra estão à mercê dos guardas de fronteira, das forças da ordem, dos
militares ou dos responsáveis do campo que exigem favores sexuais.

O desmoronamento das estruturas sociais e sanitárias e o desaparecimento de protecção jurídica


provocados por um conflito armado cria um contexto onde as relações sexuais de tornam facilmente
violentas e passageiras, implicando um número maior de parceiros. Também o pessoal militar dispõe, em
geral, de poucas informações sobre a prevenção do VIH/SIDA e conhece uma taxa de infecção pelo vírus
mais elevada que o resto da população.

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A situação de guerra caracteriza-se por um confronto face a um perigo vital, brutal e imprevisto, com
consequências graves ao nível da saúde mental e física, tanto do adulto, como da criança.

3.4.2 – Efeitos da guerra na população adulta


Nos diferentes estudos realizados aquando da primeira guerra mundial, as principais patologias descritas
foram os estados confusionais e a histeria de conversão.

Na segunda guerra mundial, as principais patologias assinaladas foram:


− estados psicóticos agudos;
− distúrbios psicossomáticos, sobretudo nas camadas de nível socioeconómico elevado;
− as neuroses de guerra, caracterizadas, nomeadamente, por inibição de actividade, atitudes
regressivas, distúrbios emocionais acompanhados por agressividade ou choro, medo intenso,
obsessões, pesadelos, enquadrando-se alguns dos sintomas descritos no que se chama de stresse
pós-traumático.

Nas guerras mais recentes, por exemplo, no Líbano, no Vietname, em Israel, são também descritas
diferentes patologias, nomeadamente:
− descompensações psicóticas, sobretudo nos jovens;
− depressão, ansiedade e sintomas hipocondríacos, sobretudo nos indivíduos mais idosos;
− doenças psicossomáticas e neuroses de guerra, sobretudo nos indivíduos de nível socioeconómico e
cultural mais elevado;
− crises histéricas e estados confusionais, sobretudo nos indivíduos de nível socioeconómico baixo.

Igualmente, o consumo de drogas aumentou sete vezes mais, devido, entre outros:
− ao perigo, ao medo e à insegurança;
− à crise económica;
− à utilização da população e à perda dos bens pessoais;
− à perda de valores morais e sociais;
− à facilidade em aceder à droga a preços baixos.

Entre os factores protectores que contribuíram para a resistência psicológica dos Libaneses à guerra,
contam-se, por exemplo:
− a solidez da estrutura e laços familiares, permitindo aos soldados depois dos combates entrar no seio
da família e encontrar o apoio afectivo e psicossocial para enfrentar a violência e o stresse;
− a valorização dos combatentes, como os defensores da comunidade, da família e da religião;
− a resistência dos Libaneses à ocupação e à guerra e a aceitação desta como fazendo parte da sua
história;
− a tolerância da cultura libanesa, relativamente à expressão pública das emoções, tanto nos homens
como nas mulheres, constituindo um factor de redução do stresse pós-traumático;
− o conceito árabe de fatalismo, desempenhando um papel importante no impacto e aceitação da morte
de camaradas ou de membros da família.

3.4.3 – Efeitos da guerra na população infantil e juvenil


Investigações sobre as crianças em situação de guerra apontam para a ansiedade generalizada,
depressão, problemas de sono e enurese, nocturna, medos e terrores nocturnos, dificuldades
comportamentais e cognitivas, comportamentos de oposição, de agressividade e de regressão, problemas
de memória e de concentração, podendo conduzir a dificuldades de aprendizagem permanentes e a
insucesso escolar, pessimismo em relação ao futuro, comportamentos anti-sociais e auto-destrutivos, tais
como abuso de substâncias e actos de violência.

As crianças que convivem com a violência e acontecimentos traumáticos agudos, para além das lesões e
consequências ao nível físico, manifestam problemas emocionais e cognitivos, fobias, perturbações de

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memória, isolamento e dificuldades em realizar tarefas diárias. Em contexto de guerra, mesmo que as
crianças não sofram lesões e traumatismos físicos, são afectadas ao nível emocional, social, escolar,
moral e comportamental.

A guerra está na origem de numerosos problemas e traumatismos, dos quais um dos mais importantes é o
stresse pós-traumático. Este distúrbio caracteriza-se pela lembrança e reviver persistente do
acontecimento traumático, por uma redução das actividades ou interesses, por situações de ansiedade,
tais como: medo intenso, pesadelos, reacções de pânico, hipervigilância e problemas de sono.

Este autor considera as atitudes típicas dos jovens, em relação à guerra, de dois tipos: atitudes positivas e
negativas e atitudes de força e de fraqueza. As atitudes «negativas de força» seriam numerosas, estando
56% dos adolescentes, dispostos à vingança e exprimindo ódio pelos alemães. Quanto às «atitudes de
fraqueza», estas seriam igualmente frequentes, manifestando-se em 24% dos jovens, nomeadamente,
através de sentimentos de amargura, de humilhação, de desgosto, de medo, de desespero, de dúvida, de
indiferença, de desânimo e de depressão.

Estudos de John (1941) em crianças que tinham sido evacuadas durante a guerra e que tinham sofrido
bombardeamentos constataram alterações do sono, problemas enuréticos, constatando-se, igualmente,
uma relação directa entre o medo da criança e o medo da mãe.
Num estudo sobre a psicopatologia da criança vítima da guerra, Heuyer (1948) reagrupa as
consequências psíquicas da guerra em três categorias:
− as consequências afectivas;
− as consequências intelectuais e escolares;
− a delinquência infantil e juvenil.

Ao nível das consequências afectivas, os resultados mostram que estas constituem as mais importantes.
Heuyer (1948) distingue dois tipos: as reacções emocionais e simples e os desequilíbrios/perturbações
comportamentais. Os bombardeamentos foram as causas mais imediatas, mais directas e mais profundas
das reacções emocionais simples.

O terrorismo é uma forma de violência física e psicológica que tem vindo a aumentar e que pode ser
exercida sobre o adulto ou a criança, representando uma forma de luta radical de movimentos políticos ou
religiosos contra o poder instituído do próprio estado ou contra estados estrangeiros.

Outros estudos realizados com crianças israelitas sublinham que a guerra dá à criança uma consciência
prematura da morte como parte irreversível da vida. Assim, crianças israelitas repetidamente expostas à
morte, frequentemente traumática, demonstram envelhecer mais cedo e uma maturidade precoce, em
relação às que vivem em ambientes não perturbados.

Os resultados mostram que as crianças órfãs institucionalizadas tinham mais problemas comportamentais
e emocionais do que as que viviam em família, reforçando os resultados de outros estudos que mostram
que quando as crianças estão separadas dos pais apresentam mais distúrbios psíquicos do que, por
exemplo, as crianças que sofrem os bombardeamentos em família. Os meninos, órfãos ou não,
apresentam igualmente mais problemas, e de maior gravidade, do que as meninas.

Yule, Garbarino, face ao conflito armado, quanto maiores os problemas emocionais e de desespero
manifestados pelos pais, maior é a perturbação e o sofrimento da criança.

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ABORDAGEM SISTÉMICA E MULTIFACTORIAL DA SAÚDE.


RISCO, VULNERABILIDADE E RESILIÊNCIA

II. PARTE
1. Introdução
A saúde mental e física, o bem estar e a qualidade de vida, a promoção da saúde, são uma preocupação
cada vez maior dos indivíduos e das sociedades e constituem entidades e processos dinâmicos onde o
psíquico, o biológico, o social e o cultural interagem entre si e o influenciam mutuamente.

A resiliência (capacidade de resistência) ajuda a compreender a reacção do comportamento humano face


a contextos e a situações variadas de stresse e adversidade e a compreender o funcionamento dos
indivíduos que conheceram carências relacionais e sociais graves, múltiplas situações traumáticas e que
conseguiram ultrapassar.

2. Saúde, Qualidade de Vida, Doença e Cultura


2.1 – Saúde, qualidade de vida e promoção da saúde
A OMS (1948) definia a saúde como o estado completo de bem-estar físico, mental e social e não apenas
a ausência de doença ou incapacidade. Em 1986, a Organização Mundial de Saúde (OMS) completa esta
definição considerando que a saúde envolve a capacidade dos indivíduos ou grupos para realizarem as
suas aspirações e satisfazerem as suas necessidades, assim como, para lidarem ou modificarem o meio
que os envolve. A saúde constituiria um recurso para o desempenho e para a vida quotidiana e uma
dimensão da qualidade de vida. Para este organismo (OMS, 1984, 1994), a qualidade de vida é um
conceito holístico que reúne o conjunto de recursos (sociais, individuais, físicos) necessários ao indivíduo
para a realização dos seus objectivos e aspirações e para a satisfação das suas necessidades aos
diferentes níveis.

Para O´Donnell (1986), a saúde envolve várias dimensões, as quais incluem diferentes áreas que deverão
coexistir de uma forma equilibrada e que agrupa deste modo:
− a saúde emocional – inclui o equilíbrio e a gestão dos estados emocionais, das crises e das
situações de stresse;
− a saúde intelectual – inclui a educação e a realização intelectual e profissional;
− a saúde social – inclui as relações com a família, amigos, pares e comunidade;
− a saúde espiritual – inclui aspectos como a esperança, a fé, a religiosidade, a generosidade, os
objectivos de vida;
− a saúde física – inclui o estado fisiológico, os cuidados básicos, nomeadamente alimentares e
corporais, os cuidados médicos, o controlo de abuso de substâncias (álcool, drogas, tabaco, etc).

Também Thorensen e Eagleston (1985) resumem alguns princípios implicados no conceito de saúde, da
seguinte forma:
− a saúde é mais do que a ausência de patologia física específica;
− a saúde faz parte do estado habitual do indivíduo, fornecendo-lhe a energia e a capacidade para a
organização e implementação das rotinas e actividades diárias, nomeadamente alimentar-se,
descansar, fazer actividade física, relacionar-se com os outros, etc., e para a realização e
programação com sucesso de determinadas tarefas e objectivos;
− a saúde implica um processo dinâmico, temporal e adaptativo que varia em função das exigências
internas e externas percebidas pelo indivíduo e que ocorrem no decorrer do tempo;
− a saúde fica enfraquecida quando não existe suficiente energia, recursos e/ou aptidões para satisfazer
as exigências do quotidiano e conservar um sentimento de harmonia, bem-estar e satisfação;
− a saúde tem de ser compreendida e situada no seu contexto físico, psicológico, social e ecológico.

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A promoção da saúde envolve os indivíduos e as comunidades como um todo, tendo como objectivos a
saúde em geral, os determinantes e as actividades que a promovem, a participação pública e o
desenvolvimento de competências e aptidões de resolução de problemas individuais e colectivos.

A conferência de Otawa (OMS, 1986) salientava as seguintes estratégias para a promoção da saúde:
− criação de ambientes físicos e sociais de suporte;
− definição de políticas públicas que promovam a saúde;
− reforço da participação activa dos indivíduos e da comunidade;
− desenvolvimento das aptidões e competências individuais;
− restruturação dos serviços de saúde.

2.2 – Saúde, doença e cultura


O psiquismo, o corpo e a cultura estão estreitamente relacionados nas questões de saúde e doença,
sendo estes, conceitos interactivos complexos que necessitam de ser compreendidos através de
diferentes abordagens e disciplinas.

Para muitos autores, dos quais salientamos Good (1997, 1998), Barondess (1979), Kleinman (1978, 1980),
Zempléni (1985), o conceito ocidental de doença e a língua inglesa incluem três termos, desease, illness,
sickness e três realidades diferentes que interagem entre si: a realidade biofísica, psicológica e social.
Estas realidades expressam-se através de dimensões diferentes, ou seja, “ter uma doença”, “sentir-se
doente” e “comportar-se como doente”:
− desease – representa a dimensão biomédica, a realidade biológica de uma alteração objectivamente
verificável no organismo, significa “a doença do médico”;
− illness – representa a realidade psicológica, a dimensão subjectiva, traduz as experiências individuais
do doente em consequência das alterações percepcionadas, das representações e das interacções
com o seu meio, significa a “doença do doente”;
− sickness – é a realidade ou processo psicossocial, representa uma identidade social, um estatuto ou
um papel, “comportar-se como doente”.

Kleinman (1980) desenvolveu a noção de “health care system” que reúne as noções etiológicas e
explicativas, a escolha de tratamentos e os papéis e estatutos atribuídos aquando dos tratamentos,
exprimindo-se nas sociedades complexas por uma estrutura formada por três sectores de assistência à
saúde (popular, tradicional e profissional) podendo os indivíduos utilizar os três sectores.

I – Popular é o campo leigo, não especializado, informal, onde estão incluídos o auto-tratamento, a auto-
medicação, os tratamentos recomendados pelos parentes, amigos, colegas, grupos de culto ou de auto-
ajuda. Inclui geralmente um conjunto de crenças sobre a conservação da saúde.

II – Tradicional está muito presente nas sociedades não ocidentais (africana, indígena, certas sociedades
asiáticas). Determinados indivíduos, designados como curandeiros, são considerados especialistas em
métodos de cura que podem ser seculares, sagrados ou outros.

II – Profissional corresponde à medicina científica ocidental, de que fazem parte médicos, enfermeiros,
técnicos de diagnóstico e terapêutica, etc., incluindo profissões regulamentadas e protegidas pela lei.

3. Modelos Interaccionistas e Multifactoriais em Saúde


A psicologia no domínio da saúde oferece-nos alguns modelos sistémicos e ecológicos que ajudam a
compreender as influências e as interacções do indivíduo e do meio na protecção da saúde mental e física
ou no desencadear da perturbação e doença, que favorecem a compreensão das estratégias emocionais,
comportamentais, psicossociais e perceptivo-cognitivas que os indivíduos adoptam perante certas
situações de adversidade e de stresse, face a condicionalismos sociais, ambientais, psicológicos e
biológicos.

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O modelo transaccional de Lazarus e Folkman (1984) veio abrir novas perspectivas de investigação em
saúde ao interessar-se pelas transacções entre o indivíduo e o ambiente, ou seja, pelas estratégias
cognitivas, emocionais e comportamentais que o indivíduo utiliza para se adaptar a uma situação aversiva
específica, implicando estas transacções duas fases:
 avaliação da situação e dos acontecimentos (avaliação primária e secundária) – estas são
interdependentes e funcionam através de um processo de feedback, envolvendo a avaliação das
exigências criadas pela situação, a avaliação subjectiva do significado de um determinado
estímulo ou factor ambiental (avaliação primária) e a avaliação dos recursos e alternativas de
resposta disponíveis (avaliação secundária);
 elaboração de estratégias de adaptação (coping) – estas podem traduzir-se por medidas
comportamentais (procura de ajuda, resolução do problema), emocionais (expressão de afectos
ou repressão) ou cognitivas (avaliação da situação, dos recursos disponíveis, procura de
informação) etc, as quais vão permitir ao indivíduo enfrentar o stresse e a adversidade, tentando
agir e modificar a situação e/ou tentando modificar-se a si mesmo.

Taylor et al. (1997), propõe um modelo ecológico de saúde que tem em conta factores ambientais globais
e factores ambientais proximais.

O meio ambiente influencia a saúde de uma forma complexa implicando numerosos factores que agem
interactivamente. Vários factores ambientais globais como o nível socioeconómico, o grupo étnico/cultural
e o país influenciam a saúde e constituem factor de risco ou factor de protecção, assim como, vários
factores do ambiente próximo, da comunidade, como a família, a escola, o grupo de pares e o meio
profissional podem interferir ao nível da saúde.

As diferenças ao nível socioeconómico e da classe social relativamente à saúde exprimem-se nas classes
desfavorecidas por:
− uma maior percentagem de mortalidade e de doença;
− um maior número de factores e comportamentos de risco para a saúde;
− um maior número de acontecimentos de vida stressantes;
− um mais fraco autocontrolo;
− mais problemas familiares, nomeadamente, mais carências alimentares, mais conflitos e violência,
mais maus tratos e alcoolismo.

Também ao nível socioeconómico há factores que afectam a saúde, tais como:


− rendimento insuficiente, habitação degradada ou superpovoada;
− desemprego familiar, emprego precário e falta de qualificação;
− habitação em bairros degradados com acessibilidade difícil aos cuidados de saúde.

Também nas comunidades pobres, há taxas mais elevadas de hipertensão, cancro, doenças
cardiovasculares e respiratórias do que nas comunidades com melhor nível socioeconómico.

As características do ambiente social próximo mais associadas a um mau estado de saúde, são uma fraca
integração social e uma má qualidade de relações sociais, ou seja, relações sociais marcadas pela
hostilidade, conflito e violência são prejudiciais para o bem-estar fisiológico e psicológico do indivíduo.

O meio social proximal proporcionado pela escola e pelo grupo d pares, pode também ser protector ou
patológico para a criança ou jovem. Os conflitos, a violência, o isolamento, a rejeição, assim como certos
modelos comportamentais, podem ser prejudiciais para estes.

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O modelo biopsicossocial de Green e Shellenberger (1991) distingue factores biológicos, psicológicos e


sociais favoráveis e desfavoráveis para a saúde e bem-estar dos indivíduos. Nos factores biológicos
favoráveis distingue:
− factores genéticos (relaxamento, alimentação equilibrada, exercício físico, ausência de
comportamentos aditivos);
− factores psicológicos (relações interpessoais positivas, auto-eficácia, auto-controlo, controlo do stresse,
cognições e afectividade positivas);
− factores sociais (responsabilidade social, pertença a grupos sociais e comunitários (família, clubes,
associações).

Nos factores desfavoráveis para a saúde e bem-estar, os autores distinguem:


− factores biológicos (alimentação desequilibrada, falta de exercício físico, doenças, poluição);
− factores psicológicos (depressão, ansiedade, cognições e afectividade negativas, stresse, fracas
capacidades de coping);
− factores sociais (isolamento, violência, pobreza)

Bruchon-Schweitzer et al. (1994, 2001) propõe um modelo biopsicossocial e multifactorial para estudar a
saúde mental e física de uma forma integrada, através da tomada em conta de três grupos de factores.

I – Factores Ambientais, nomeadamente características sociodemográficas, rede social, traumatismos e


acontecimentos de vida stressantes, exposição a factores de risco.

II – Factores Individuais/Pessoais – Estilos de vida com riscos, estratégias de adaptação, traços e tipos
de personalidade, antecedentes biomédicos, desempenham um papel protector ou de risco.

Há diferentes tipos comportamentais, por exemplo, associados ao risco de doença coronária (Tipo A) e do
cancro (Tipo C). O estilo de personalidade de Tipo A, apresenta um conjunto de características, de
atitudes e comportamentos como impaciência, rapidez, hostilidade, agressividade, ambição,
competitividade, cólera, estando mais associada ao aparecimento de doenças coronárias, ao risco de
cardiopatia posterior.

O estilo de personalidade Tipo C, é um estilo comportamental complexo, ligado a uma história particular, a
conflitos não resolvidos, a uma perda significativa, caracterizando-se por grandes defesas, dificuldades em
exprimir as emoções e afectos, sobretudo os afectos negativos, por sentimentos de culpabilidade,
impotência, cognições depressivas, atitude resignada face à dificuldade e à doença, estilo de coping
evitante, estando este tipo de personalidade mais ligada aos riscos de aparecimento ou desenvolvimento
do cancro.

Quanto aos traços de personalidade Bruchon-Schweitzer (1994, 2001), distingue alguns traços favoráveis
e desfavoráveis para a saúde. Entre os traços patogénicos distingue:

 a hostilidade – relacionada com as doenças cardiovasculares;


 a afectividade negativa – expressando-se por tristeza, ansiedade, culpabilidade, inquietude,
desânimo, etc.;
 o nervosismo – compreende os afectos negativos (depressão, ansiedade, hostilidade,
culpabilidade) implicando uma labilidade do sistema nervoso e relacionado com queixas e
sintomas somáticos;
 a ansiedade – traço – seria uma subdimensão do nervosismo, sendo associada a diversas
patologias somáticas (asma, úlcera, enxaqueca) e à hipertensão;
 a depressão – distúrbio do humor dependente de numerosos factores psicológicos e/ou
bioquímicos, cognições negativas e depressivas.

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Entre os traços de personalidade favoráveis à saúde e protectores porque moderam os efeitos do impacto
dos acontecimentos adversos, a autora distingue:
 O optimismo;
 A auto-eficácia;
 A resiliência (capacidade de defesa e recuperação de uma pessoa perante factores ou condições
adversas).

Entre os traços gerais da personalidade a autora destaca a afectividade positiva (tenacidade, curiosidade,
prazer, entusiasmo, energia) associada à vitalidade e à saúde enquanto que a afectividade negativa está
ligada à vulnerabilidade.

Nas situações de adversidade e de stresse os indivíduos com locus de controlo interno, que tendem a
percepcionar os acontecimentos como sendo controláveis pelas suas próprias acções e que acreditam que
as consequências de uma situação dependem sobretudo do seu comportamento, tendem a recorrer às
suas aptidões e recursos pessoais para a resolução de problemas e face às situações de stresse têm
menos consequências negativas enfrentando melhor a situação do que os indivíduos com locus de
controlo externo.

III – Factores e Processos transaccionais – implica as transacções indivíduo-meio, o impacto de certos


factores ambientais e de determinados factores individuais, na adaptação do indivíduo, na sua saúde,
bem-estar e qualidade de vida ou na inadaptação e disfuncionamento, ou seja, na insatisfação e mau-estar,
na doença e na morte.

O conceito de coping definido por autores como Lazarus et al. (1978) e Folkman et al. (1986) designa as
estratégias específicas que o indivíduo elabora para fazer face a uma situação aversiva e de stresse, estas
estratégias e a sua eficácia dependendo da percepção e avaliação que o indivíduo faz da situação e
variando também de acordo com as características da situação a enfrentar, nomeadamente, da duração,
gravidade e grau de controlo. Constitui um processo adaptativo, específico e em constante mudança.

4. Risco e Vulnerabilidade
4.1 – Definição e factores de risco
Os factores de risco são todas as condições existentes na criança ou no seu ambiente que originam um
risco de morbilidade superior àquele que encontramos na população geral, através de estudos de
epidemiológicos. Estes riscos podem não só afectar a criança como também a sua família e são de
diferente tipo: biológicos, relacionais, sociais/ambientais e familiares.

Para Garmezy (1991), um factor de risco poderá constitui um acontecimento, uma condição orgânica ou
ambiental que aumenta a probabilidade de desenvolver problemas emocionais ou comportamentais. O
risco aumenta com a acumulação de factores de risco, podendo na criança os factores de risco serem
agrupados em três categorias:
− factores centrados na criança (prematuridade, sofrimento neonatal, patologia somática como baixo
peso à nascença e deficiências, gemelaridade, défices cognitivos, separações maternas precoces;
− factores centrados na família (desentendimentos familiares, separação parental, violência familiar,
doença crónica, mental ou física, de um dos progenitores, deficiências cognitivas, alcoolismo,
monoparentalidade, mães adolescentes e/ou imaturas, depressão materna, morte de um familiar);
− factores sócio-ambientais (pobreza, precariedade socioeconómica, desemprego, habitação
degradada, migração, isolamento social, institucionalização).

Também numa revisão da literatura sobre factores de risco para a criança ao nível psicopatológico
Grinzenko et al. (1992) salienta alguns factores específicos:
− factores específicos à criança – sexa masculino, baixas capacidades intelectuais;
− factores específicos à família – distúrbios psiquiátricos dos pais, sobretudo da mãe, conflitos conjugais

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graves e divórcio, baixo nível educacional da mãe;


− factores específicos ambientais – baixo nível socioeconómico.

4.1.1 – Variabilidade dos factores de risco


As experiências precoces, particularmente no primeiro ano de vida, a depressão pós-parto materna, os
factores familiares e ambientais, como o stresse precoce, a negligencia e a falta de sensibilidade parental,
o abuso sexual, a violência e os conflitos familiares, a colocação familiar ou institucional, têm uma
influência importante no desenvolvimento da criança e na saúde mental e física, constituem factores de
risco para a psicopatologia adulta, podendo afectar posteriormente a qualidade dos cuidados parentais,
das relações interpessoais e de adaptação psicológica do indivíduo.

A violência, maus tratos familiares e ausência de apoio parental estão associados a uma taxa mais
elevada de sintomas psicossomáticos, a riscos mais elevados de morbilidade, de mortalidade (relação
entre os casos de doença e o número de habitantes de um aglomerado populacional), de depressão e
suicídio, principalmente na criança e adolescente, a desequilíbrios endócrinos e neurovasculares e a
perturbações de desenvolvimento pré-natal e pós-natal.

Também as consequências dos maus tratos e dos abusos sexuais durante a infância podem ter inúmeras
consequências ao nível psicopatológico, nomeadamente, aumento da sintomatologia depressiva, da auto-
mutilação, das tentativas de suicídio, dos comportamentos de agressividade e violência, do consumo de
álcool ou outras substâncias e da baixa auto-estima.

Bowlby definia desde 1980, três tipos de circunstâncias associadas ao risco de perturbações futuras,
nomeadamente depressão:
− a morte de um progenitor na infância;
− a impossibilidade de desenvolver com os pais ou substitutos uma vinculação segura e um modelo de
relação e cuidados de boa qualidade;
− a presença de pais indisponíveis.

Para Kaslow et al. (1994), um meio familiar perturbado, desentendimento conjugal, monoparentalidade,
desemprego, nível educativo baixo, relações pais-filhos conflituosas, incapacidade de dar apoio emocional
à criança e ausência de implicação dos pais na educação ou estilo autoritário, contribuem ao aumento de
risco de depressão e suicídio e de patologias posteriores na criança e no adolescente.

A situação de migração vulnerabiliza o indivíduo e a família. Com efeito as migrações internas (aldeia-
cidade) ou externa (de um país para outro) conduzem a rupturas tanto familiares como sociais e culturais,
fazendo com que o indivíduo ou a família, se sintam isolados ou desenraizados e não possam contar, por
exemplo, com o apoio psicológico e material dos restantes familiares, vizinhos, ou outros membros da
comunidade, nos cuidados à criança, no apoio a algum membro idoso ou doente da família e nas tarefas
domésticas.

As estratégias de avaliação e intervenção ao nível das crianças e das famílias têm muito precocemente de
ser inseridas nos contextos socioculturais e comunitários em que as mesmas vivem e de ter em conta os
múltiplos factores, condições e tipo de riscos que podem afectar a saúde e adaptação da criança e da
família, como sejam:
− riscos biológicos – factores biológicos que duram o período pré-natal, neonatal ou pós-natal podem
afectar a saúde e o desenvolvimento;
− riscos estabelecidos – défices de tipo sensorial, cognitivo, físico, psicossocial, anomalias neurológicas,
perturbações genéticas/congénitas, síndrome de Down (mongolismo), espinha bífida, anomalias
morfológicas (fenda palatina), perturbações atípicas do desenvolvimento, etc.;
− riscos ambientais – experiências precárias, limitadas e de carência durante os primeiros anos de vida,
história de abusos, maus tratos e violência, disfuncionamentos na relação mãe-criança,

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desorganização familiar, desemprego, pobreza, falta de estimulação social, cognitiva, etc.

A exposição crónica a stressores incontroláveis, como os barulhos e a superpopulação habitacional e


residencial, diminui as expectativas quanto às possibilidades de controlo e aumenta as probabilidades de
humor depressivo, de doença, de sobreestimulação do sistema nervoso parasimpático e ainda de
diminuição da resposta imunitária.

Como mostram as investigações de Evans et al. (2000), habitações densamente povoadas e rendimento
familiar baixo têm efeitos nefastos nas crianças. No plano psicológico, estas situações estão associadas a
níveis de sofrimento psíquico elevado nas crianças e a dificuldades nas relações sociais. No plano
fisiológico, diversas medidas como a tensão arterial, a activação do sistema nervoso simpático, secreções
endócrinas indicam um elevado nível de stresse.

4.2 – Definição e dimensões da vulnerabilidade


A vulnerabilidade corresponde ao conjunto de factores que predispõem a criança para desenvolver uma
perturbação, implicando a existência de factores de risco.

A vulnerabilidade é um estado de menor resistência às contrariedades e agressões, tem em conta a


variabilidade individual, pode ser definitiva ou temporária, imediata ou diferida, ser generalizada ou estar
limitada a um determinado sector e resulta da interacção entre diversos factores.

Anthony (1982) exemplifica as diferenças quanto aos riscos e à vulnerabilidade, através da metáfora das
três bonecas, uma de vidro, outra de plástico e outra de aço, as quais, tendo sido todas expostas ao
mesmo risco, têm resultados diferentes em termos de vulnerabilidade. Apesar de todas elas receberem
uma pancada igualmente forte, administrada por um martelo, as consequências são diferentes para cada
uma delas: a boneca de vidro parte-se; a boneca de plástico fica com cicatrizes e amachucada; a boneca
de aço fica aparentemente intacta.

A vulnerabilidade pode considerar-se através de duas dimensões principais:


− vulnerabilidade individual, devido às predisposições genéticas, ao desenvolvimento e à personalidade;
− vulnerabilidade ambiental/social, devido às carências socioeconómicas, às adversidades do meio e às
relações sociais inadequadas, tais como, divórcio, monoparentalidade e conflitos familiares.

Uma das características individuais relacionadas com a vulnerabilidade, que influencia positivamente ou
negativamente na capacidade da adaptação da criança e o seu temperamento. Thomas et al. (1977)
estudaram este problema e consideraram três tipos de bebés: os fáceis, os lentos e os difíceis, consoante
as suas características de reactividade, de regularidade do comportamento e de adaptação às solicitações
do meio. Estes autores concluíram que o risco psicopatológico era maior para os bebés difíceis ou lentos
do que para os bebés fáceis.

Parkes (1991) descrever dois tipos de vulnerabilidade ligadas à infância dos indivíduos marcadas pelo luto
e pela perda:
− a inquietude aprendida predispõe aos distúrbios ansiosos;
− a impotência aprendida aos distúrbios depressivos.

O autor isola na criança factores preditivos ao estado de impotência, tais como, a perda de um pai antes
dos dezassete anos, pais indisponíveis, rejeitantes ou críticos, considerando que os padrões de vinculação
formados durante a infância influenciam as ligações entre os adultos e influenciam indirectamente as
reacções à perda e à ruptura desses laços.

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Para cada indivíduo o mesmo acontecimento stressante pode ser, mais ou menos, traumatizante, em
função de variáveis contextuais tais como, a cultura/etnia, o meio familiar, o meio profissional, a
personalidade, a história pessoal, o significado do acontecimento para o indivíduo, a forma como vive o
stresse, o suporte social disponível, o autocontrolo, a independência económica, etc.

4.2.1 – Vulnerabilidade, stresse e traumatismo


A acumulação de factores de stresse pode ter um efeito multiplicador e conduzir a rupturas de resiliência
em indivíduos avaliados como resilientes anteriormente.

Os indivíduos, crianças ou adultos, confrontados com situações ou acontecimentos traumáticos, por


exemplo, situações de guerra, terrorismo, acidentes, cataclismos, violação, etc.) podem desenvolver
reacções, designadas de síndrome pós-traumático ou stresse pós-traumático (SPT). Na DSM-IV, o stresse
pós-traumático corresponde a uma desordem psicopatológica associada a uma reacção patológica
ansiogénica resultante da exposição a um acontecimento geralmente fora do habitual e capaz de originar
perturbação emocional intensa na maior parte dos indivíduos. Para a DSM-IV, os sintomas pós-
traumáticos são, nomeadamente, os seguintes:
− o reviver de forma persistente do acontecimento traumático (pesadelos repetitivos, pensamentos,
imagens ou percepções);
− hiperactividade vegetativa (palidez, suor, taquicardia), hipervigilância, irritabilidade ou explosões de
raiva;
− enfraquecimento dos afectos e evitamento das recordações e de tudo o que está relacionado com o
acontecimento traumático.

Nas crianças, as respostas e sintomas pós-traumáticos, a dimensão dos distúrbios e a intensidade dos
sintomas face a situações adversas e traumáticas dependem não só da intensidade destes
acontecimentos como das diferenças inter-individuais e da resiliência, podendo traduzir-se nos
comportamentos e perturbações através de formas diversas, nomeadamente: desordens de atenção e
agitação psicomotora, insucesso escolar, psicopatias comportamentais como roubos, fugas, negação dos
acontecimentos traumáticos, enurese, sonhos e pesadelos, distúrbios psicossomáticos e alimentares,
tristeza, comportamentos regressivos ao nível comportamental e afectivo, depressão.

Terry (1991) enumera quatro características importantes relativamente às crianças traumatizadas:


− comportamentos repetitivos;
− medos específicos ligados ao traumatismo;
− intrusão repetitiva das recordações;
− mudanças de atitudes em relação às pessoas e aos projectos de vida e de futuro.

Esta autora refere que os traumatismos ao nível da infância estão ligados a acontecimentos exteriores do
meio, provocando transformações internas, distinguindo dois tipos de traumatismos:
1. Provocado por apenas um acontecimento traumático o qual não pode ser antecipado pela criança.
Os comportamentos de repetição, de evitamento e o estado de alerta caracterizam o estado de
stresse pós-traumático;
2. Provém da exposição repetida a acontecimentos exteriores, a sucessão de acontecimentos
stressantes permitindo a antecipação. Os mecanismos de defesa utilizados pela criança são a
negação, a repressão, a identificação ao agressor, o retorno da agressividade contra si própria e a
insensibilidade afectiva.

5. Resiliência – Resistência, Reconstrução e Adaptação


5.1 – Definição e Abordagens
A resiliência consiste na capacidade do indivíduo para resistir, adoptar um funcionamento positivo ou
competência face a uma situação de adversidade, face a riscos e a ameaças externas e internas, para

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ultrapassar de modo favorável um acontecimento negativo ou, ainda, a capacidade de reconstrução na


sequência de uma experiência traumática.

A resiliência, segundo as diferentes perspectivas, tem sido considerada como um processo de


reconstrução psíquica e de adaptação, como um funcionamento ou como uma característica derivada de
uma capacidade.

Bowlby (1992) foi um dos primeiros autores a utilizar o termo de resiliência insistindo no papel da
vinculação na génese da resiliência e definindo-a como «uma força moral, uma qualidade de uma pessoa
que não se desmoraliza, que não se deixa abater».

A resiliência pode ser perspectivada em termos de um processo complexo, resultante de interacções entre
as características do indivíduo e dos contextos ao longo das trajectórias de desenvolvimento. Ela implica a
capacidade de adaptação a condições biológicas e psicossociais adversas, através do desenvolvimento de
recursos intrapsíquicos e de recursos afectivos e sociais que permitem criar um funcionamento psíquico e
uma inserção social adequados.

A resiliência constitui um processo dinâmico e adaptativo que compreende a adaptação positiva numa
situação de adversidade e em que os acontecimentos vividos pelo indivíduo podem contribuir para o seu
desenvolvimento social, afectivo, cognitivo e físico.

Werner (1992, 1993) apresenta a resiliência como resultado de um equilíbrio evolutivo entre o confronto a
elementos adversos (a factores de risco e a vulnerabilidade), e os factores de protecção internos do
indivíduo (competências cognitivas, personalidade, auto-estima) e os factores externos (família alargada,
redes sociais, suporte comunitário).

Para Vanistendael (2000) a resiliência é, antes de tudo, uma capacidade, individual ou familiar, podendo
esta ser promovida através de acções terapêuticas e educativas.

Para Cyrulnik (1999), a resiliência é a capacidade para viver, ter sucesso e desenvolver-se de uma forma
positiva, apesar de situações de adversidade ou de stresse, que implicam o risco de uma saída negativa.

O grau de resiliência está relacionado com factores e processos protectores internos e externos.

A resiliência pode revelar-se a partir de uma situação difícil e adversa a qual pode assumir diversas
modalidades:
− traumatismos repetidos como violência e abusos sexuais vividos em contexto familiar ou extra-familiar;
− traumatismos brutais e pontuais como a morte de um próximo, uma catástrofe natural (tremor de terra,
incêndio), um acto terrorista, uma situação de guerra, um acidente grave de circulação;
− uma deficiência permanente ou uma doença crónica;
− situações de risco como crianças de rua e institucionalizadas, prisão, desemprego crónico, etc.

5.2 – Abordagem dos factores de protecção


5.2.1 – Factores de protecção
Punamaki (1986) mostrou uma boa situação económica e social constitui um factor de protecção, por
exemplo, em tempo de guerra, tendo os pais de meios sociais e económicos precários mais dificuldades
em controlar o stresse face às situações de bombardeamentos.

Rutter (1990) identificou quatro tipo de processos que poderão actuar como protectores em situação de
risco:
− processos que promovem a auto-estima, a auto-confiança e a auto-eficácia, através de relações de
vinculação seguras e estáveis ou do sucesso na realização de tarefas;

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− processos que reduzem o impacto de risco, através da alteração do significado de risco e do


envolvimento e exposição à situação de risco;
− processos que diminuem a probabilidade de aumento de reacções negativas à exposição ao risco;
− processos que promovem novas situações e oportunidades de desenvolvimento pessoal.

Rutter (1990, 1993, 1994) acentua o papel fundamental dos recursos internos do indivíduo para fazer face
a contextos exteriores desfavoráveis e a sua capacidade em recorrer aos potenciais do meio extra-familiar
quando o meio familiar não tem competências. Para este especialista, face a situações de adversidade e
de stresse, os indivíduos adoptam modos de comportamento que reenviam a três tipos de características e
processos ligados ao funcionamento do indivíduo resiliente:
1. Consciência da sua auto-estima e auto-confiança;
2. Consciência da sua auto-eficácia;
3. Abordagens de resolução de problemas sociais.

Diversos estudos dão-nos conta de vários tipos de factores protectores que favorecem a resiliência,
nomeadamente:
− características do indivíduo, como sejam, inteligência superior e temperamento fácil e dócil;
− estabelecimento de relações de qualidade, como por exemplo, existência de uma relação de
vinculação segura com uma figura significativa;
− envolvimento ideológico/político, cultural e religioso na comunidade, o qual está na origem de
«sentimento de pertença»;
− características do meio familiar – coesão e estabilidade familiar, qualidade comunicável entre os
membros da família;
− características extra-familiares, tais como, disponibilidade e acesso a redes sociais e a estruturas de
apoio/suporte social.

O termo «apoio social», também designado por muitos autores como suporte social, é geralmente utilizado
para referir cuidados, consolo, suporte, estima ou ajuda que um indivíduo sente estar a receber dos outros.

No que diz respeito a rede social, distinguem-se dois tipos de proporcionadores de suporte social:
− suporte social formal que inclui os técnicos e os serviços (sociais, hospitalares, educativos,
administrativos), os quais são organizados para proporcionarem apoio formal e assistência (sanitária,
educativa, social, administrativa, jurídica, etc.);
− suporte social informal, onde se incluem os amigos, vizinhos, familiares, os grupos sociais (clubes de
associações, igreja, grupos de apoio) que proporcionam apoio emocional, suporte na vida diária e nas
dificuldades quotidianas.

Bessoles (2001) relaciona estes traços de personalidade protectores de resiliência com organizadores
psíquicos correspondentes, capazes de serem mobilizados no processo de tratamento dos estados
traumáticos:
 criatividade – capacidade para criar formações reaccionais e substitutivas;
 independência – capacidade em estar sozinho, autonomização;
 humor – capacidade de sublimação;
 moralidade – capacidade em integrar valores;
 competência relacional – implica elementos de socialização;
 perspicácia – capacidade de análise, de discernimento e de discriminação;
 iniciativa – capacidade de elaboração e de representação das inibições e fobias.

Para Cyrulnik (1998), o indivíduo resiliente, independentemente da idade e do sexo, apresenta algumas
características, tais como: sentido de humor, capacidade de antecipação e planificação, quociente
intelectual elevado, empatia, boas capacidades relacionais, autonomia e eficácia nas relações com o meio.

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Garmezy (1991), a partir de investigações em famílias problemáticas e carenciadas, apresenta três tipos
de factores de protecção que favorecem a resiliência e que podem aumentar a auto-estima e a auto-
confiança:
 Factores individuais – temperamento e capacidades cognitivas;
 Factores familiares – a afectividade, o interesse e a coerência educativa da parte dos pais ou
das pessoas que dispensam cuidados à criança;
 Factores de suporte e apoio – nomeadamente, um trabalhador social, um professor acolhedor e
atencioso, ou um organismo de serviço e acção social.

A partir de uma revisão da literatura , Gramezy e Masten (1991) agrupam em três níveis as principais
variáveis que favorecem a protecção nos indivíduos resilientes.

1. Factores de protecção individuais


2. Factores de protecção familiar;
3. Factores extra-familiares.

Grizenko et al. (1992), no que diz respeito a factores protectores de risco para a criança e promotores de
resiliência, salienta os seguintes factores:
 factores específicos à criança;
 factores específicos à família;
 factores específicos ambientais.

Para Gilligan (1997), o funcionamento resiliente de um indivíduo apoia-se em três domínios:


− sentimento de auto-estima;
− sentimento de auto-eficácia;
− sentimento de segurança.

5.2.2 – Protecção e experiências precoces


Para Werner e Smith (1982), uma vinculação forte com pelo menos uma pessoa que cuida da criança
durante o seu primeiro ano de vida constitui um elemento importante de resiliência.

5.2.3 – Protecção e cultura


Em relação ao impacto da cultura nas situações e traumatismos de guerra, vários determinantes,
nomeadamente, a presença de uma comunidade cultural de pertença, a ideologia política, as crenças
religiosas e as atitudes em relação à violência podem ter um efeito protector ao nível da saúde mental e da
resiliência.

5.2.4 – Protecção e contexto psico-ambiental


Ao nível psico-ambiental, o potencial de um lugar para favorecer a adaptação entre o indivíduo, a família e
o meio e o seu bem-estar é também um elemento importante e protector. Steele (1973) distingue seis
funções do meio as quais são elementos protectores para o indivíduo:
− proporcionar abrigo e segurança;
− proporcionar as necessidades de contacto social;
− proporcionar a identificação simbólico/cultural;
− proporcionar a realização de tarefas;
− proporcionar satisfação;
− proporcionar crescimento.

5.3 – Importância, dificuldades e limites


5.3.1 – Importância da resiliência
A família, a escola e a comunidade são espaços onde a criança vive e cresce, sendo contextos que podem
promover a resiliência da criança através de um conjunto de elementos, nomeadamente:

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− atenção, cuidados e apoio;


− expectativas e objectivos claros, elevados e adaptados às capacidades da criança;
− encorajamento à participação activa da criança na vida familiar, escolar e comunitária;
− estabelecimento de ligações construtivas e fortes com, pelo menos, uma pessoa (pais, professores,
amigos);
− relações formais e informais de apoio intra ou intergeracionais;
− sentido de coerência, de confiança e de pertença, incluindo a filiação religiosa, cultural, desportiva ou
política.

Ao nível da resiliência, as intervenções psicológicas poderão trabalhar nos indivíduos, crianças e adultos,
alguns elementos, dos quais destacamos:
− a auto-estima e a auto-confiança;
− o optimismo e o sentimento de esperança;
− a iniciativa, a autonomia e a independência;
− as competências sociais, nomeadamente, capacidades relacionais e comunicacionais;
− as capacidades de aptidões para combater o stresse;
− a capacidade para exprimir sentimentos e emoções;
− as atitudes positivas para enfrentar os problemas e as dificuldades;
− elaboração da culpabilidade, vergonha e medo, nomeadamente, em relação aos abusos sexuais e
violências familiares;
− as relações sociais e culturais precárias e o isolamento relacionados com a rejeição, a discriminação e
a exclusão.

5.3.2 – Dificuldades e limites


Ao nível das situações familiares graves, nomeadamente da violência, a tomada em conta do trauma e
sofrimento e do recuso aos processos resilientes é um domínio que apresenta algumas limitações e
merece mais aprofundamento e investigação.

Face a um acontecimento traumático e violento, não há imunidade ou invulnerabilidade ao stresse, mas


sim diferentes modelos de resposta, mais ou menos adaptativos. Investigações clínicas acentuam que, em
certos casos, o indivíduo resiliente não se constrói sem algum sofrimento psíquico e que o trauma pode
ser mascarado por um comportamento resiliente.

6. Síntese Conclusiva
A adaptação ao mundo e à sociedade não é unicamente determinada pelas características, experiências e
sentido individual, mas também pelas experiências exteriores, por um sentido colectivo, pelas significações
culturais e colectivas.

A saúde física e mental não são identidades separadas mas processos dinâmicos e interactivos, onde o
biológico, o psicológico, o cultural e o social se influenciam mutuamente.

Ao longo da vida, a estrutura e a qualidade das interacções sociais têm consequências no funcionamento
psicológico e somático dos indivíduos, no seu bem-estar, qualidade de vida e saúde.

É importante ter em conta que certos comportamentos de riscos e certos estilos de vida correspondem a
«exigências» das condições de vida, a estratégias de adaptação a condições adversas.

O conhecimento dos processos adaptativos biológicos, psicológicos, sociais, ambientais, são importantes
ao nível da compreensão, prevenção e intervenção em saúde.

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A resiliência implica a capacidade do Homem para ultrapassar as dificuldades, para realizar-se e projectar-
se na vida. A criança e o indivíduo resiliente são capazes de desenvolver, mesmo em situações adversas,
estratégias de adaptação adequadas.

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SAÚDE, CULTURA E DESENVOLVIMENTO.


PERSPECTIVAS DE PREVENÇÃO E INVESTIGAÇÃO.

III. PARTE
1. Introdução
O desenvolvimento e a saúde, nomeadamente infantil, ocorrem através de trajectórias e interacções entre
o biológico, o psicológico, o social e o cultural, factores internos e externos, muito em particular, familiares,
que interagem para influenciar o desenvolvimento e a saúde da criança. O desenvolvimento e a saúde são
processos dinâmicos que resultam das interacções entre o indivíduo e os seus contextos de vida, devendo
os factores de risco ser avaliados e identificados para que se possa fazer prevenção e intervenção.

2. Experiências Precoces, Vinculação e Desenvolvimento na Infância


2.1 – Importância das experiências precoces e de vinculação
É a necessidade e satisfação primária de contacto e afecto, é a segurança encontrada nos braços da mãe,
do pai ou de outros adultos cuidadores, que permitem à criança construir-se psiquicamente, autonomizar-
se e desenvolver-se saudavelmente.

Bowlby (1951, 1969) considerava que o amor maternal e da família, as interacções afectivas eram tão
importantes à saúde mental da criança e ao equilíbrio futuro, como o são as vitaminas e as proteínas, à
saúde física.

É a mãe, ou o substituto, quem dá um sentido aos primeiros olhares, aos primeiros sorrisos, aos primeiros
choros e balbuciamentos do bebé, que constitui um “espelho de transformação psíquica”. É este espelho,
este eco reenviado à criança pela mãe ou substituto (que deverá ser estável, disponível e gratificante) que
cria no bebé o sentimento de existência, que provocará na criança o desejo de agir, pensar, falar, aprender
e criar.

A solidez destes vínculos e da segurança afectiva, construídos nos primeiros tempos de vida, o sentimento
da criança de ser amada e reconhecida, a disponibilidade e adaptação da mãe, pai ou substituto às
necessidades da criança e a qualidade dos cuidados prestados constituem factores básicos de protecção,
de desenvolvimento, de autonomia e de resiliência, condicionam as escolhas objectais futuras, do
adolescente e do adulto, e a coerência e competência dos comportamentos de mãe e de pai.

As investigações de Spitz (1946, 1968) e de Bowlby (1969) sublinham a vulnerabilidade do bebé, a sua
dependência da mãe ou do substituto, a importância das relações primárias e do ambiente familiar no
desenvolvimento e as consequências negativas das separações e carências maternais precoces e da
institucionalização para o desenvolvimento e saúde, tendo os seus trabalhos contribuído para o
desenvolvimento da teoria d vinculação primária.

O conceito de vinculação é geralmente utilizado para descrever a relação afectiva e privilegiada que a
criança estabelece com a mãe ou outra pessoa significativa nos primeiros anos de vida. Bowlby (1969)
define vinculação como a tendência dos seres humanos para estabelecerem laços afectivos sólidos com
algumas pessoas, particularmente os vínculos previlegiados da criança com os seus cuidadores, tendo
como efeito a criança ficar emocionalmente afectada quando se verificam separações ou perdas
inesperadas e/ou indesejadas.

Para Bowlby, o sistema de vinculação desempenha um papel importante ao longo de toda a vida. Esta
autor, acentua a necessidade de proporcionar à criança oportunidade de desenvolver relações
privilegiadas com os seus cuidadores, colocando em relevo três noções: a continuidade, a disponibilidade
e a sensibilidade às suas necessidades.

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A qualidade das experiências relacionais precoces com os pais e outros cuidadores é preditora da
qualidade de adaptação e funcionamento interpessoal do indivíduo nas suas relações significativas na
idade adulta.

2.2 – Padrões de vinculação


Bowlby e Roberston (1952) distinguem três modos sucessivos de reacções da criança em idade precoce à
separação temporária da mãe ou do meio familiar habitual (pai, irmãos, etc):
− uma fase de sofrimento agudo com choro e gritos;
− uma fase de desespero com perturbação intensa e isolamento;
− uma fase de desvinculação, na qual a criança aceita os cuidados de qualquer substituto materno,
parecendo perder toda a vinculação com a mãe.

Ainsworth et al., esta autora distinguiu tipos diferentes de vinculação, segura e insegura, que reagrupou
deste modo:
− Vinculação segura – este tipo de vinculação caracteriza-se por um equilíbrio entre comportamento de
vinculação e de exploração, verificando-se uma sintonia comunicacional entre a criança e a figura de
vinculação (mãe, pai ou outros), havendo integração dos afectos positivos e negativos de presença e
ausência da figura d vinculação para a criança.
− Vinculação insegura «ambivalente resistente» - caracteriza-se pelo predomínio da vinculação sobre
a exploração e por uma hipervigilância face ao acesso ou contacto à figura de vinculação,
empobrecendo ou inibindo a exploração do meio.
− Vinculação insegura-evitante – caracteriza-se pelo predomínio do comportamento exploratório sobre
o comportamento de vinculação, isto é, após a separação da figura de vinculação, a criança afasta-se
ou ignora essa figura, em vez de procurar a sua proximidade ou contacto.

Ainsworth (1978) defina quatro características que diferenciam as relações de vinculação das outras
relações sociais:
− o processo de proximidade;
− a noção de base de segurança, envolvendo uma exploração mas livre em presença da figura de
vinculação;
− a noção de comportamento de refúgio, com o retorno à figura de vinculação quando o indivíduo
presente uma ameaça ou uma situação ameaçadora;
− as reacções involuntárias face à separação.

Diversas investigações têm evidenciado que a depressão pós-parto materna pode afectar de modo
negativo o desenvolvimento da criança, a qualidade de vinculação e a qualidade dos cuidados prestados.
Crianças cujas mães sofreram depressão pós-parto apresentavam uma vinculação desorganizada ou
insegura durante o segundo ano de vida.

Bretherton (1980) salientou os efeitos de negligência, rejeição e maus-tratos vividos na infância pelos pais,
nos modelos de vinculação, mostrando que as experiências traumáticas na infância tornam as mães e os
pais pouco sensíveis às necessidades da criança e dificultam a construção de vínculos seguros
mãe/pai/criança.

2.3 – Vinculação e cultura


No Quénia, nos Gusii, a divisão das tarefas entre a mãe e as muitas figuras de vinculação é devidamente
estabelecida, ocupando-se a mãe dos cuidados físicos e da saúde da criança, enquanto que as outras
figuras de vinculação se ocupam das actividades sociais e lúdicas.

Marvin et al. (1977) mostrou que nos Hausa, na Nigéria, as crianças são educadas numa grande
proximidade com as figuras de vinculação, que respondem de forma rápida às suas solicitações, não

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permitindo à criança explorar sozinha o meio devido ao medo de perigos para a criança, havendo uma
atitude muito protectora da parte das figuras de vinculação, que são várias.

No grupo Efé, na Zâmbia, a partilha das tarefas entre várias figuras de vinculação é muito desenvolvida
durante o dia, a fim de assegurar os cuidados físicos e responder o mais rápido possível às necessidades
da criança. Contudo, durante a noite, é só a mãe que se ocupa da criança.

2.4 – Vinculação, desenvolvimento e saúde – Benefícios e contributos


Os estilos de vinculação precoce desempenham um papel fundamental no desenvolvimento posterior dos
indivíduos, sendo a qualidade de vinculação, o estilo de vinculação segura, propício à adaptação social e
emocional, à exploração do mundo e ao desenvolvimento de um conjunto de capacidades, tais como, a
curiosidade, a exploração e o jogo, o auto-controlo e a auto-confiança, capacidades cognitivas e sociais,
etc., componentes importantes de resiliência nos indivíduos.

Investigações sobre a importância da vinculação segura no desenvolvimento emocional e social e na


saúde mental salientam efeitos positivos da vinculação segura a diferentes níveis:
− ao nível da competência individual (da resiliência, da auto-estima e auto-confiança);
− ao nível da competência com os adultos (da obediência, cumprimento de regras e independência);
− ao nível da competência com colegas e pares (da empatia, cooperação e resolução de conflitos).

As competências precoces preparam a criança para uma mulher adaptação posterior. As experiências
precoces vivenciadas positivamente dão à criança, ao indivíduo, uma maior capacidade para mobilizar
recursos adaptativos, para se confrontar e lidar de forma mais adequada com novas exigências sociais,
emocionais, cognitivas e relacionais. Contrariamente, as experiências precoces negativas e a insegurança
de vinculação podem aumentar a probabilidade de algumas perturbações na infância e de psicopatologia.

O desenvolvimento motor e sensorial está relacionado com factores culturais, mas, também, com o meio
social, com o estado de nutrição e a qualidade de cuidados e tipos de estimulações à criança.

A teoria da vinculação veio trazer contributos a vários níveis, constituindo uma via de investigação
importante para a compreensão da psicopatologia infantil e do adulto. Também ao nível da pra´tica clínica,
social e educativa vaio trazer inovação e mudança.

Ao nível da prevenção e intervenção precoce, veio dar contributos vários, nomeadamente:


− na necessidade de ter em conta a criança inserida na sua família e na comunidade, os acontecimentos
da vida real, a compreensão do desenvolvimento e adaptação da criança e o acesso à parentalidade;
− na importância das observações mãe-pai-criança;
− no papel fundamental da sensibilidade e da resposta parental e familiar aos sinais e às necessidades
da criança e na qualidade da relação mãe-criança;
− na importância das representações de vinculação;
− na reflexão sobre os efeitos prejudiciais das carências precoces, nomeadamente, das crianças
institucionalizadas;
− na melhoria das terapias mãe-criança.

A teoria da vinculação veio trazer também contributos ao nível da melhoria do acolhimento à criança e da
modificação das práticas em vários sectores, dos quais destacamos:
− nas condições de hospitalização das crianças;
− no acolhimento à criança nas creches e nos centros de apoio social às crianças.

Ao nível da política social, o prolongamento da licença de maternidade, a licença parental e a actividade


laboral a tempo parcial, foram medidas apoiadas baseadas na teoria da vinculação.

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3. Família, Saúde e Prevenção


3.1 – Importância da Família
O sentimento de pertença a uma família, a uma comunidade, a uma cultura, dá um sentimento de
segurança interna que favorece o desenvolvimento da criança e a resiliência.
As crianças que crescem em famílias que proporcionam segurança e afecto aprendem a gerir melhor as
emoções e os afectos, as separações e a fazer face aos problemas quotidianos.

Em Portugal os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) referentes ao «Inquérito à Ocupação do


Tempo – 1999» mostram que as famílias representam a principal fonte de prestação de cuidados às
crianças e adultos, ou seja, cuidados básicos, cuidados por motivo de doença, idade, deficiência e que a
maior parte desses cuidados é assegurada pelas mulheres.

A família constitui um todo social, com especificidades e necessidades próprias, inserida e influenciada por
um sistema mais vasto de interacções sociais alargadas à comunidade e à sociedade e pelas redes
sociais formais e informais. O apoio à criança passa também por apoiar a família, como um sistema
interactivo, e a própria comunidade.

Esta participação e intervenção paterna precoce constitui um elemento fundamental de estruturação


psíquica do bebé e vem beneficiar a relação com a mãe e com a criança e o seu desenvolvimento, vindo
ainda dar um contributo e apoio psicológico e material importante ao nível familiar.

O reconhecimento da importância psicológica e social do pai para o desenvolvimento e saúde da criança


está consignado na própria legislação em todos os países da União Europeia, inclusive em Portugal.

3.2 – Contextos e relações familiares


3.2.1 – Mudança de contextos culturais e saúde
A modificação dos modos de vida e das relações sociais e familiares, do sistema de representações
podem originar disfuncionamentos familiares e isolamento familiar e comunitário que podem afectar a
saúde e o desenvolvimento da criança, por exemplo, no caso do kwashiorkor. Este é um síndrome de má
nutrição grave na criança, surgindo devido a carências alimentares graves por volta do período do
desmame. As crianças sofrendo de kwashiorkor apresentam anorexia mental, depressão, desordens
psicossomáticas e distúrbios do comportamento, tais como: agressividade, recusa de contacto, fragilidade
emocional, perturbações da linguagem, perturbações relacionais graves, falta de interesse pelo mundo
exterior. Ao nível físico, há uma perda de peso importante, problemas cutâneos (despigmentação, etc.),
modificação da cor e textura dos cabelos.

Collomb et al. (1969, 1973), constatando que em crianças apresentando as mesmas carências de
proteínas, algumas desenvolviam kwashiorkor e outras não, analisaram dados sociodemográficos e
familiares das crianças que desenvolviam este síndrome e as representações e relações no seio das suas
famílias, tendo concluído o seguinte:
− o kwashiorkor é mais frequente nas cidades do que nas zonas rurais;
− é mais frequente nos grupos e famílias que vieram do meio rural para o meio urbano;
− é raro surgir nas famílias e grupos urbanos bem integrados socialmente e na comunidade;
− as famílias que têm crianças com kwashiorkor não têm falta de recursos económicos e alimentares,
não justificando os critérios socioeconómicos habituais este fenómeno;
− o kwashiorkor afecta, sobretudo, o primeiro filho da mesma fratria uterina, por vezes, o segundo e,
raramente, os outros;
− o kwashiorkor não se integra no sistema clássico de representação da doença em África (agressão por
um feiticeiro ou por um espírito), sendo associado a doenças como a diarreia ou a rubéola.

3.2.2 – Experiências familiares, desenvolvimento e saúde

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Como várias investigações mostram, as variáveis mais associadas a problemas de saúde, por exemplo
nas crianças, é a falta de afecto e de apoio emocional e um ambiente de violência e conflito na família.
Nas famílias problemáticas, as crianças e jovens elaboram, sobretudo, estratégias disfuncionais face a
acontecimentos stressantes quotidianos, nomeadamente estratégias centradas na emoção: cólera,
ansiedade ou desânimo.

Existem três aspectos do meio familiar que podem afectar a saúde e o desenvolvimento da criança:
− um ambiente carenciado, conflitual, hostil, violento e abusivo;
− relações pais-crianças caracterizadas pela falta de afecto e não fornecendo o apoio afectivo e material
necessário;
− um estilo educativo autoritário e dominador ou incoerente e permissivo, não proporcionando à criança
regras nem bases estruturais.

A maior perturbação que o divórcio e a separação provocam na criança e no adolescente é a depressão,


reunindo esta uma tríade de sintomas, tais como, o sofrimento psíquico, a inibição psicomotora e a perda
da auto-estima e tendo repercussões na vida emocional e afectiva, nos resultados escolares, na
adaptação social e profissional.

Os acontecimentos e situações de risco antes dos dezoito anos mais associados a dificuldades e
problemas de saúde futuros são problemas de carácter afectivo duradoiros, por ordem de gravidade
decrescente:
− carências afectivas;
− desentendimentos e disputas familiares;
− ausência dos pais durante, pelo menos, um ano;
− doença ou deficiência grave da mãe;
− doença ou deficiência grave do pai.

4. Práticas e Estilos de Cuidados Parentais


4.1 – Práticas de cuidados, desenvolvimento e saúde
As práticas de cuidados às crianças ocupam uma parte do tempo que a família despende com a criança,
transmitem-se de geração em geração, no seio das famílias, sendo incorporadas muito cedo pela criança
e, apesar de serem consideradas actividades banais e repetitivas, constituem um domínio complexo e de
grande importância para o desenvolvimento e saúde da criança.

É através dos cuidados parentais, muito em particular maternais, pelo contacto físico com a mãe, o pai ou
a pessoa que a transporta, pelas variadas estimulações vestibulares, tácteis, cinestésicas, que a criança
estabelece as suas primeiras relações e as suas primeiras comunicações. Ela descobre assim o mundo,
entra numa cultura, conhece o amor e a ternura e experimenta o sentimento de segurança.

Os cuidados e as práticas de educação precoce situam-se na continuidade dos cuidados – nutrição,


protecção – que o feto recebe durante a vida intra-uterina, vindo assegurar à criança a protecção
necessária à sua sobrevivência e saúde, constituindo momentos privilegiados de interacções sensoriais e
afectivas entre o adulto e a criança.

Os diferentes cuidados ao bebé, nomeadamente, o banho, a toilette, as massagens, a amamentação, o


adormecimento, constituem os primeiros gestos sobre o seu corpo, são ocasião para o bebé de
numerosas e ricas interacções e estimulações, sendo também ocasião para a mãe e o pai exprimirem
sentimentos e emoções e expressarem as suas competências parentais. Como salienta Winnicott (1972, p.
14), são ocasião para a mãe exprimir afectos e emoções e «nascer» enquanto mãe no psiquismo do bebé.

No comportamento de cuidados ao bebé, Ainsworth (1978) distingue duas dimensões relacionadas com a
vinculação da criança aos pais:

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− a sensibilidade, ou seja, a capacidade da mãe em compreender e interpretar correctamente os sinais


emitidos pela criança;
− a capacidade para responder rapidamente e de maneira adequada às solicitações da criança.

Winnicott (1969) fala de «preocupação maternal primária» para designar a disposição particular da mãe
para responder com sensibilidade às necessidades da criança e para lhe proporcionar cuidados
«suficientemente bons».

Nos cuidados que a mãe ou o substituto materno dispensa à criança, Winnicott distingue três tipos de
actividades:
− o «holding» (a mãe suporte psíquico e físico, envelope protector; releva da sensibilidade materna);
− o «handling» (a mãe prestadora de cuidados físicos, proporcionadora de estimulações tácteis,
auditivas, visuais, cinestésicas, no decurso das numerosas interacções e cuidados básicos);
− o «object-presentering» (a mãe proporcionando a abertura e acesso progressivo da criança aos
objectos e ao mundo, nas suas diferentes dimensões e complexidade).

Como refere Belsky (1999), o sistema de cuidados à criança é produto de uma interacção complexa entre
vários factores e determinantes, como sejam as influências contextuais próximas (personalidade dos pais,
temperamento da criança, o tipo de comunicação familiar, o contexto da família e do casamento) e outros
factores como influências biológicas, sensoriais, cognitivas e culturais, desenvolvimento neurobiológico da
mãe, a sua história pessoal, o stresse e o suporte social.

As situações de stresse e ansiedade vão reflectir-se na qualidade do holding e do handling, no modo como
a criança se inscreve no psiquismo materno e paterno e na maneira como o bebé, a criança é cuidada,
manipulada, tida nos braços.

Também as próprias características do bebé desempenham um papel fundamental na qualidade dos


cuidados parentais, podendo certas características da criança, despertar, ou não, as competências e
comportamentos de cuidados.

A falta e/ou inadequação de cuidados à criança são responsáveis por muitos disfuncionamentos e
perturbações de desenvolvimento e personalidade que afectam a saúde mental e física da criança e o seu
desenvolvimento e adaptação futura, nomeadamente:
− a negligência permanente das necessidades físicas;
− a negligência permanente das necessidades psicológicas e emocionais básicas, como sejam, afecto,
protecção, proximidade e estimulação;
− as mudanças repetidas das pessoas que cuidam da criança, dificultando a formação de vínculos
seguros e estáveis;
− os princípios rígidos e contraditórios de cuidados à criança.

4.2 – Estilos culturais de cuidados


O cuidar humano, os cuidados às crianças são um fenómeno universal, mas as suas expressões,
processos e estilos variam segundo as diferentes culturas e género.

Nos cuidados e comunicação precoce, podemos falar de «estilos culturais de maternage» e estilos
comunicacionais materno e paterno, segundo o tipo de interacções predominantes.

A comparação transcultural das práticas dos cuidados e de desenvolvimento da criança em idade precoce
vem salientar estes “estilos culturais de maternagem”, em correspondência com as representações
subjacentes, caracterizando-se os mesmos segundo a predominância proximal ou distal das interacções, o
modo de estimulações e contactos com a criança, a utilização ou não de dispositivos materiais no decurso

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dos cuidados (por exemplo, na toilette a utilização de instrumentos como banheira, bacia, etc., ou o corpo
do adulto), podendo assim distinguir-se três tipos de estilos:
− “Estilos de maternagem de tipo proximal” - constitui o estilo interactivo predominante em África, na
Ásia e na América Latina, por exemplo, no Brasil. Neste, predominam as interacções tácteis,
cinestésicas, vestibulares e a proximidade corporal entre o adulto e a criança;
− “Estilo de maternagem de tipo distal” - é predominante e característico do tipo de maternagem
ocidental, principalmente norte-americano e norte-europeu. Neste estilo, as interacções passam,
sobretudo, pela voz e pelo contacto visual. Os contactos corporais não são predominantes, mas as
interacções verbais e visuais são muito ricas e predominantes;
− “Estilo de maternagem de tipo proximo-distal” - característico do estilo de maternagem português.
Neste, coexistem harmoniosamente as interacções tácteis e cinestésicas, características do estilo
proximal, e as interacções pela voz e pelo olhar, características do estilo distal.

4.3 – Estilos materno e paterno de cuidados


Investigações salientam igualmente que, numa mesma cultura, os estilos de comunicação materno e
paterno diferenciam-se e completam-se. As interacções dos pais com as crianças em idade precoce são
mais estimulantes, mais lúdicas, mais físicas, mais descontínuas e menos «convencionais» do que as
interacções das mães, as quais são mais verbais, mais visuais, mais calmas, mais contínuas e mais
«convencionais».

O estilo materno é mais calmo, mais intelectual e «pedagógico», caracterizando-se por uma tendência a
vocalizar, a cantar, a acariciar a criança, a explicar e a apresentar objectos. O estilo paterno é mais físico,
mais estimulante e «ousado» e menos visual do que o das mães, caracterizando-se por uma tendência a
agitar a criança, a abaná-la, a tocá-la mais fisicamente, a interagir de uma forma lúdica, rítmica, divertida e
destabilizadora.

Pelo seu modo de interacção distintivo, o pai intervem no processo de separação da díade mãe-criança,
favorecendo o acesso da criança à exploração, à independência e à autonomia. O estilo interactivo físico e
excitante do pai, qualifica-o na função de estimulador e emancipador.

5. Etnoteorias e Desenvolvimento da Criança


5.1 – Definição e importância das etnoteorias
Nos diferentes grupos, sociedades e épocas, pais e adultos, em geral, desenvolvem representações,
teorias populares, etnoteorias (segundo a terminologia utilizada pelos diferentes autores) sobre a criança,
o seu desenvolvimento, a sua saúde e educação. Estas concepções, teorias, sistemas de crenças, sobre a
natureza, necessidades e competências da criança, sobre os seus ritmos de desenvolvimento, sobre as
formas de cuidar, estimular e educar, variam no espaço e no tempo em função dos contextos histórico-
sociais e ecológico-culturais e respondem a expectativas e valores culturais e a exigências do quotidiano.
Inseridas num “nicho cultural e de desenvolvimento”, articulando o universal e o particular, o individual e o
colectivo, o público e o privado, estas representações, etnoteorias, são teorias implícitas que contribuem
para modelar as condições de desenvolvimento e educação e a adaptação da criança.

Um dos seus objectivos é assegurar a coerência do grupo e favorecer o desenvolvimento de competências


e comportamentos que permitem à criança integrar-se no seu grupo social e cultural. Elas são elemento
organizador dos comportamentos humanos e procuram estruturar o desenvolvimento da criança muito
precocemente, através de significações e de esquemas culturalmente pertinentes e coerentes de
interpretação dos processos de desenvolvimento e dos comportamentos.

As etnoteorias, também designadas por teorias populares ou «naîve», são teorias implícitas que
contribuem para modelar as condições de desenvolvimento e educação, tratando-se de um saber empírico
que os indivíduos e os grupos transmitem de geração em geração, particularmente no seio das famílias,
sofrendo transformações espaciais e temporais.

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A grande diversidade de práticas de cuidados e de desenvolvimento colocam em evidência a grande


variedade de ideologias e de sistemas de valores na origem dessas práticas, a diversidade de
representações culturais sobre a criança.

5.2 – Etnoteorias e perspectiva transcultural


A análise dos cuidados à criança em diferentes culturas e as etnoteorias ajudam a compreender as
interpretações individuais do psiquismo humano que se exprimem de modo diferente nas diferentes
culturas.

Nalgumas culturas, uma particularidade comportamental ou física da criança pouco comuns, pode induzir
representações e interpretações que vão condicionar a concepção e as relações com a criança, por
exemplo, na África do Oeste, o caso da criança nit-ku-bon, segundo a terminologia wolof, má pessoa. É
uma criança com um choro particular, agitada ou taciturna, frágil, recusa-se a mamar, engorda ou
emagrece, considerando-se que deseja voltar aos espíritos. É uma criança considerada pelo grupo social
como «marginal», «estranha», com uma identidade incerta, competitiva, desejando ultrapassar os irmãos
ou mesmo eliminá-los, numa cultura onde predomina a cooperação familiar e grupal.

Também na África do Oeste, por exemplo, no Senegal, em caso de mortes sucessivas de crianças numa
mesma fratria, sobretudo, nos três primeiros anos de vida e depois do desmame, (devido a doenças
infecciosas, parasitárias, má nutrição ou outras), utiliza-se a expressão tjird a paxer, dando as
representações tradicionais a estas mortes uma explicação cultural e psicológica. A expressão tjird a paxer
serve para designar a criança que parte e que retorna, significando espírito ou ser maléfico, porque retira à
mãe a possibilidade de assumir a sua principal função, a maternidade.

Devereux (1949) registou que nos Mohaves, onde predomina a concepção que o bebé compreende a
linguagem do adulto desde o nascimento, não existe linguagem bebé, contrariamente ao que acontece na
quase totalidade das sociedades, em que o adulto modela não só o discurso, mas também a altura e
intensidade da voz, em função das competências linguísticas da criança.

Konner (1976), na África Austral, realizou investigações no grupo étnico Kung, tendo verificado que os
bebés pertencentes a este étnico eram na sua maioria capazes de se manterem sentados sem apoio
desde a idade de 50 dias, portanto, antes dos dois meses.

Também Mead (1930) nos dá conta de que em Manus, os cuidados à criança e o comportamento dos pais
são acompanhados pela exigência que a criança faça esforços e adquira grande habilidade física
precocemente, sendo cada progresso e esforço da criança anotados e encorajados e cada hesitação ou
insucesso repreendidos. Segundo a autora, em Manus, a ausência de equilíbrios e segurança física e a
falta de auto-confiança são praticamente desconhecidas dos adultos.

Em Israel, os trabalhos de Ninio (1979) em dois grupos de mães diferentes estratos sócio-profissionais e
em Portugal (Ramos, 1990, 1993) mostraram a relação entre as crenças das mães sobre as
potencialidades comunicacionais e de desenvolvimento dos seus bebés e os contextos sociais.

Do mesmo modo, trabalhos de Lester e Brazelton (1982) mostraram a influência de factores pré e pós-
natais no desenvolvimento, em dois grupos de recém-nascidos zambianos e americanos. Estes autores
registaram uma grande estimulação dos bebés pelas mães zambianas, ou seja, bastante contacto corporal
e estimulação, sendo o bebé constantemente tomado nos braços por toda a família e nunca ficando
sozinho. Por seu lado, os bebés americanos passavam a maior parte do tempo isolados no quarto e
deitados no berço, tendo as mães poucas estimulações e contactos com eles, porque temiam as infecções
e pensavam que eles tinham necessidade de repouso.

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Investigações de Devries e Devries (1977), em mães do grupo Digo, população da África do Leste,
mostraram as atitudes educativas e estimulações das mães Digo reflectem as suas concepções e
expectativas em relação à criança, a qual desde as primeiras semanas de vida é considerada um parceiro
activo.

Para estas mães, a criança está preparada para aprender desde o seu nascimento e entre 3 a 5 meses de
idade, ela deve atingir um bom grau de competência social e motora.

A destacar igualmente o trabalho de Hopkins, as mães originárias da Jamaica, questionadas quando a


criança tinha um mês de vida, davam uma idade mais precoce para a aquisição da posição sentada e para
o andar, confirmando-se depois pela observação, que os seus filhos tinham controlado essas etapas do
desenvolvimento mais precocemente do que as crianças de origem inglesa e indiana. A precocidade do
desenvolvimento da criança de origem jamaicana estava directamente ligada à prática de ginástica
neonatal regular e às crenças das mães, em relação à importância dessas práticas.

Também investigações de Brill et al. (1989), salientam que as mulheres de etnia Bambara, do Mali,
consideram que a criança deverá ser capaz de manter-se sentada desde os quatro meses e adquirir o
controle do esfincter no primeiro aniversário, enquanto que as mães francesas indicam sete meses para a
criança ser capaz de sentar-se e vinte e quatro meses para o controle do esfincter.

O «ideal» de «bebé fácil» seja o bebé que come bem, dorme bem, não chora, não está doente, reunindo-
se ao do «bebé bem desenvolvido», ou seja, um bebé são, com um bom peso e um bom aspecto físico.

Neste estudo são sobretudo as pessoas mais velhas, de meios rurais e de meios socioeconómicos mais
desfavorecidos, aquelas que se mostram mais tolerantes e menos exigentes no que diz respeito às
normas de desenvolvimento da criança, considerando que é necessário respeitar o ritmo e a «natureza»
da criança, não sendo bom «ir contra a natureza», «despertar demasiado cedo o bebé», dando sobretudo
atenção ao apetite e ao sono da criança.

Por seu lado, nos meios socioculturais e económicos mais favorecidos (com maior incidência nas
populações mais jovens e de meios urbano) é mais valorizado um bebé «activo, comunicativo, vivo,
simpático, alegre, atento», bem «desperto» tanto no plano psíquico, como físico. As preocupações
referentes à interacção, à atenção, à boa disposição, à compreensão, reflectem o ideal de
desenvolvimento e facilidade para estes.

6. Modelos Sistémicos e Ecológicos de Desenvolvimento


6.1 – Modelo psico-cultural
J. e B. Whiting (1975, 1978) têm em conta os meios culturais, físicos e sociais onde se processa a
socialização e desenvolvimento da criança, propondo um modelo que designam de «Psico-cultural», para
o estudo dos cuidados, desenvolvimento e educação da criança. Este modelo insiste nas relações
estreitas entre a ecologia física, a história social e cultural, a estrutura económico-social e política, as
crenças mágico-religiosas, os rituais, etc., de um grupo e o tipo de cuidados e modo de educação das
crianças.

6.2 – Modelo ecológico


Bronfenbrenner (1979) sublinha no seu modelo «Ecológico» que o contexto familiar e o comportamento
dos pais são influenciados pelo contexto ecológico em que vive a criança e a família. Há uma influência
sobre o desenvolvimento do «ambiente ecológico», englobando-se este o contexto imediato e a inter-
relação entre os vários níveis estruturais e sub-sistemas que o compõem, os quais são interdependentes e
dinâmicos, uma acção num sistema repercultindo-se e produzindo mudanças noutros níveis.

Este autor distingue assim quatro sub-sistemas:

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− Microssistema – Engloba o conjunto de actividades e relações desenvolvidas nos contextos onde o


indivíduo participa activamente, como sejam o lar, a creche, a escola;
− Mesossitema – Envolve as inter-relações entre dois ou mais contextos em que o indivíduo participa
activamente, por exemplo, as interacções entre a família e a escola, a família e a comunidade;
− Exossistema – Implica um ou mais contextos onde os indivíduos não estão directamente envolvidos,
mas onde determinadas situações que aí ocorrem afectam ou são afectadas pelo contexto imediato do
indivíduo, por exemplo, trabalho dos pais, meios de transporte, assistência médico-social;
− Macrossistema – Envolve as crenças, os sistemas de valores, os padrões culturais, os factores
sociais, as ideias quanto às formas de cuidar, de educar e proteger a criança e que influenciam o
funcionamento dos outros sub-sistemas.

6.3 – Modelo ecológico -cultural


Ogbu (1981), no seu modelo «ecológico-cultural», considera as concepções sobre a criança e as práticas
de cuidados e educativas estreitamente relacionadas com os valores culturais e religiosos, com a
percepção do êxito social e das competências instrumentais valorizadas e dominantes numa dada
sociedade, com a organização social e com o sistema económico. Para este autor, a adaptação de um
grupo social ao seu meio ambiente é vista como uma resposta cultural, possuindo cada grupo um modo
particular de adaptação ditado pela cultura.

6.4 – Modelo de “nicho de desenvolvimento”


O conceito de “nicho de desenvolvimento”, elaborado pelos autores norte-americanos Super & Harkness
(1986, 1997), a partir do conceito de “nicho ecológico” utilizado pelos biologistas e etologistas aquando do
estudo do organismo nas suas reacções ao meio natural, é um conceito que integra conhecimentos de
várias disciplinas relativas ao desenvolvimento e educação da criança no seu contexto cultural. Este
modelo conceptual engloba todas as influências susceptíveis de agirem sobre a criança desde a vida pré-
natal, permitindo ultrapassar o clássico debate sobre a preponderância dos factores hereditários ou do
meio sobre o desenvolvimento. O meio e o indivíduo são concebidos como dois sistemas abertos que
interagem constantemente.

O “nicho de desenvolvimento” tem em conta três sub-sistemas principais que funcionam em interacção:
− os contextos físicos/ecológicos e socioculturais nos quais a criança vive o seu quotidiano que
determinam o tipo de cuidados e estilos interactivos;
− As tradições culturais, comportamentos, práticas educativas, de cuidados e protecção. Estes
comportamentos e práticas são adaptados aos contextos ecológicos e socioculturais em que vivem os
membros da família e a comunidade, correspondendo a comportamentos de rotina diária e/ou
estratégias de adaptação a constrangimentos do meio;
− As representações sociais do desenvolvimento e educação, as etnoteorias e crenças dos pais e
educadores sobre a criança, o seu desenvolvimento e educação.

6.5 – Modelo de “nicho de desenvolvimento e aprendizagem”


A partir do conceito de «nicho de desenvolvimento» de Super & Harkness, Reed (1993) e Reed & Bril
(1996) propõem o conceito de «nicho de desenvolvimento e aprendizagem».

O «nicho de desenvolvimento e aprendizagem» oferece um «campo de acções possíveis», cujas


características principais podem ser definidas tendo em conta quatro dimensões:
− uma acção pode ser mais ou menos encorajada pelo meio;
− certos objectos, instrumentos, podem estar mais ou menos disponíveis no meio familiar e social da
criança;
− em todas as sociedades existem regras sobre os papéis dos diferentes actores em função das
situações e dos objectos que convém utilizar;
− a organização do «campo de acções possíveis» varia segundo a idade e o nível de desenvolvimento e

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de controlo de determinado comportamento, tendo em conta o que é oportuno organizar num dado
momento.

Assim, este conceito tem em conta as interacções recíprocas entre os diferentes elementos estruturantes
do «nicho de desenvolvimento», mas igualmente as características do «campo de acções possíveis» que
cria as condições de desenvolvimento, socialização e aprendizagem.

6.6 – Modelo eco-cultural


Berry (1976, 1992), através de um modelo designado de «eco-cultural», considera o comportamento
individual determinado em grande parte pela cultura, constituindo esta uma resposta adaptada do grupo às
condições ecológicas, socioeconómica e históricas. Este modelo distingue dois níveis: o nível individual,
compreendendo as características psicológicas individuais (as representações e comportamentos
observáveis); e o nível grupal ou colectivo, englobando os contextos ecológicos ou eco-sistemas
(interacções entre populações e características ambientais) e os contextos sociopolíticos (formas de
organização dos estados-nações e das sociedades).

6.7 – Modalidades de transmissão cultural


Os modelos conceptuais apresentados reenviam-nos e são pertinentes para a compreensão de alguns
conceitos importantes nas experiências formadoras, ao nível da infância, e nas modalidades de adaptação
e de transmissão cultural, nomeadamente, a enculturação, a socialização e a aculturação.

A cultura estrutura o indivíduo por intermédio de padrões culturais transmitidos, os quais constituem
modelos, regras e lógicas culturais fornecidas à criança, desde o seu nascimento, pela família e pela
comunidade.

Mead (1930), Bateson e Mead (1938) numa investigação consagrada ao estudo da primeira infância e da
educação na Nova-Guiné, salientam as modalidades de transmissão cultural através de um processo de
aprendizagem que designam por enculturação. Trata-se de um processo de incorporação da cultura, um
processo de interiorização pelo indivíduo das tradições, sistemas de referência e valores do seu grupo,
processo que se faz essencialmente por via inconsciente. Distingue-se da socialização, a qual resulta,
sobretudo, das influências exercidas conscientemente sobre o indivíduo pelo meio envolvente com o qual
está em interacção.

Quanto ao processo de aculturação, este foi definido pela primeira vez por Herkovits em 1938 (Ramos,
1993) como o conjunto de fenómenos que resultam do contacto directo e contínuo entre grupos de
indivíduos de culturas diferentes, com mudanças subsequentes nos tipos e modalidades culturais de um
ou dos restantes grupos.

O indivíduo não é somente o produto da sua cultura, mas também a constrói, a transforma e a recria, em
função de problemáticas diversificadas e dos contextos sócio-históricos e político-culturais, marcados pela
interacção, dinamismo, diversidade e complexidade.

7. O Método Fílmico no Estudo das Práticas de Cuidados e Interacções Precoces


7.1- Perspectivas Metodologias
A confrontação do discursos familiar e colectivo com os dados da observação directa e/ou fílmica
constituiu uma metodologia importante, a qual permite, nomeadamente:
 explicitar e analisar os comportamentos e as práticas de cuidados nas suas especificidades e
universais;
 favorecer a compreensão da relação complexa entre as representações individuais e colectivas,
os estilos culturais de maternagem, as práticas de cuidados, de saúde e de educação e os
contextos sociais, culturais e familiares;
 captar o significado de gestos quotidianos, banais e insignificantes, mas, todavia, importantes e

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que podem passar despercebidos sem esta dupla perspectiva metodológica de pesquisa.

Ao nível metodológico, a integração do estudo das representações, dos comportamentos e práticas dos
adultos e dos contextos onde se processa a socialização e o desenvolvimentos da criança implica uma
abordagem holística e interaccionista e o recurso a diferentes instrumentos e métodos, o que nos vai
permitir apreender a “situação total”.

7.2 – Importância do método fílmico


O filme constitui um método científico para estudar, observa e analisar de forma ordenada, rigorosa,
repetida, diferida e minuciosa, o Homem, os seus comportamentos, as suas actividades, as suas formas
de comunicar e as relações que estabelece com os outros e com o seu meio.

A observação fílmica envolve o conjunto de actividades do investigador relativas tanto às actividades de


registo das imagens, como à observação e análise da imagem relativa ao processo filmado.

A primeira observação fílmica em meio natural sobre a infância foi realizada por L. Lumiére, mostrando a
vida quotidiana de uma família e a criança no seu meio cultural e familiar, através do filme “Le goûter de
bébé”.

Em relação ao método fílmico, é igualmente importante salientar um casal, Bateson e Mead (1942), os
quais foram pioneiros na utilização de uma forma sistemática e metódica em meio natural dos meios
audiovisuais (fotografia e filme) a fim de poderem observar e compreender a dinâmica cultural e os
diferentes processos educativos nos vários grupos que estudaram.

J. Rouch (1948, 1968, 1975) foi igualmente pioneiro na utilização do filme antropológico como método de
investigação em meio natural, muito em particular nas actividades rituais.

A observação através do método fílmico oferece numerosas vantagens, nomeadamente:


− facilita a macro e a micro-análise temporal das actividades e das interacções;
− permite apreender o desenvolvimento contínuo e global dos comportamentos e actividades;
− permite a análise da comunicação não só verbal, mas também gestual e postural;
− permite uma observação diferida, repetida, minuciosa e captar em detalhe os movimentos , as
posturas, as mímicas, os comportamentos mais discretos de uma actividade.

O método de observação sequencial fílmica permite igualmente evidenciar:


− como as técnicas do corpo, no sentido da definição de Mauss - “A maneira como os homens, em cada
sociedade, de uma forma tradicional sabem servir-se do seu corpo”;
− como as práticas educativas e rituais de maternagem transmitem um “saber” e um “saber fazer”, que
vai muito para além do que os protagonistas estão, muitas vezes, conscientes de realizar.

A aliança da observação e da escuta, da linguagem verbal e não verbal que o documento fílmico
proporciona constitui ao nível teórico e metodológico, um elemento essencial em diferentes domínios,
nomeadamente, em Ciências da Saúde, em Ciências Sociais e em Ciências da Educação.

Ao mostrarmos e desenvolvermos as imagens aos seus protagonistas, eles, de alguma forma, participam
no processo de construção do filme e de análise das imagens, clarificando ou acrescentando elementos
que não são claros ou explícitos para o investigador e para os próprios protagonistas.

8. Síntese Conclusiva
O conhecimento da variedade das representações, práticas e contextos de desenvolvimento e educação
da criança revela-se indispensável, tanto ao nível da investigação, como da intervenção, muito em

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particular, no que diz respeito à prevenção psicológica e social precoce e à formação dos profissionais da
primeira infância, no campo social, da saúde ou educação.

É indispensável uma acção preventiva e interventiva o mais precoce e alargada possível, sendo o apoio à
primeira infância, a primeira etapa essencial de toda a politica de prevenção e intervenção ao nível da
saúde. È igualmente necessário, seja nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, promover a
saúde mental e física da criança, melhorando o diagnóstico, o tratamento, a sensibilização do público, a
comunicação e a educação parental.

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ADAPTAÇÃO, SAÚDE E DOENÇA EM CONTEXTO MIGRATÓRIO E INTERCULTURAL

IV. PARTE
1. Introdução
O processo migratório, envolvendo rupturas espaciais e temporais, transformações diversas,
nomeadamente mudanças psicológicas, físicas, biológicas, sociais, culturais, familiares, políticas,
implicando a adaptação psicológica e social dos indivíduos e das famílias e diferentes modalidades de
aculturação, constitui um processo complexo, com consequências ao nível da saúde física e psíquica e do
stresse psicológico e social.

O itinerário do imigrante aos cuidados de saúde é marcado pelas suas necessidades mas também pela
sua cultura de origem, pelas suas crenças e práticas, pelo seu conhecimento da cultura, língua e redes do
país de acolhimento. Problemas comunicacionais e incompreensão poderão surgir, nomeadamente ao
nível das concepções de saúde e doença, das formas de curar e prevenir, dos programas de promoção da
saúde e sua inadequação aos destinatários e ao nível do atendimento e dos cuidados de saúde.

2. O Fenómeno Migratório – Emigração/Imigração em Portugal. Alguns Indicadores


2.1 – Dinâmicas e variáveis sócio-demográficas
O fenómeno migratório envolve uma realidade multiforme, englobando o fenómeno da emigração e da
imigração, envolvendo não só as migrações internacionais como as migrações internas, por exemplo,do
meio rural para as cidades.

O comportamento migratório é um comportamento determinado por um conjunto complexo de factores. A


decisão migratória depende das condições sociais, económicas e políticas do país de origem e do país de
acolhimento, das motivações e aptidões individuais, sendo em geral mas determinada pelo
constrangimento do que pelo desejo, podendo falar-se de imigração voluntária ou involuntária, permanente
ou provisória.

A grande maioria dos imigrantes está distribuída por quatro sectores: trabalhadores indiferenciados,
trabalhadores especializados da construção civil, vendedores ambulantes e empregados de serviço
doméstico (SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras).

2.2 – Adaptação escolar das crianças migrantes


Sobre a escolarização das crianças migrantes, o Secretariado “Entreculturas” do Ministério da Educação
(criado em 1991) fornece-nos alguns dados sobre a multiculturalidade ao nível do ensino básico e
secundário, nomeadamente, sobre a frequência e resultados escolares das crianças migrantes e de
minorias étnicas nas escolas portuguesas.

O número de alunos de origem estrangeira concentra-se sobretudo ao nível do ensino básico (1.º e 2.º
ciclos), verificando-se uma diminuição crescente à medida que se eleva o nível de estudos, ou seja, ensino
secundário e superior, indo ao encontro de outros estudos internacionais sobre estes alunos.
Destas minorias, os alunos africanos (muito em particular, os cabo-verdianos) são os que detêm os
resultados escolares mais desfavoráveis, apresentando elevadas taxas de reprovação e abandono escolar.

Para os especialistas, o “semilinguismo”, ou seja, o domínio insuficiente tanto da língua materna


(assegurando a função simbólica e fundamental na estruturação psíquica e cultural como da língua
segunda (assegurando a função instrumental e a adaptação social) contribui para os atrasos e dificuldades
de linguagem e de aprendizagem e para o insucesso escolar.

Sobre o insucesso escolar destas crianças, se a qualidade de estrangeiro, os problemas linguísticos,


culturais e psicológicos poderão contribuir para este problema, este está igualmente relacionado com a

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precariedade social, o isolamento sociocultural e familiar em que vivem estas crianças e suas famílias,
com os problemas de adaptação migratória.

A escola constituiu para a criança e família migrante um espaço importante de contacto, integração e
inclusão na sociedade de acolhimento e desempenha um papel muito importante para a criança e a sua
família. As famílias depositam na escola (a qual muitas não conheceram, nem frequentaram) as
esperanças e o êxito social não concretizados no país de origem, expectativas que a escola não está,
muitas vezes, em condições de oferecer.

Contudo, a escola em que os pais imigrantes depositam confiança, esperança e via para uma profissão e
êxito social dos seus filhos não consegue responder a estas expectativas, aparecendo, muito
frequentemente, como elemento de exclusão, de reprodução de estereótipos e preconceitos, de insucesso
e de desigualdade, não proporcionando uma efectiva igualdade de oportunidades para os diferentes
grupos étnico-culturais presentes na escola.

A educação intercultural na escola, introduzindo um currículo multicultural, estratégias e intervenções


educativo/pedagógicas interculturais, disposições contra a discriminação, uma formação adequada às
necessidades individuais das crianças e uma maior comunicação entre a escola, a família e a sociedade,
poderá desempenhar um papel importante na prevenção do insucesso escolar e das patologias que
podem estar na origem e promover a auto-estima e bem-estar das crianças e das famílias migrantes ou
não.

3. Migração, Aculturação e Adaptação


3.1 – Processo migratório e mudança
A migração constitui um processo complexo, contraditório, bipolar, uma experiência de perda, ruptura,
mudança, vivenciada pelo indivíduo de uma forma mais ou menos traumatizante ou harmoniosa, segundo
os seus recursos psicológicos e sociais, as características da sociedade e as condições de acolhimento do
país receptor.

A migração e a aculturação, repartindo o indivíduo entre tradições e hábitos culturais de origem


profundamente enraizados e elementos novos da cultura de acolhimento, colocam o indivíduo numa
situação difícil e muitas vezes ambivalente.

Situado entre dois países, duas culturas, duas línguas “o migrante torna-se um indivíduo portador e agente
de cultura, mediador entre dois universos sociais e culturais diferentes.

O processo migratório envolve dois pólos, que o indivíduo migrante terá de gerir.

No primeiro pólo, trata-se de “emigrar”, de sair, de abandonar, de perder o “envelope” protector e


tranquilizante dos lugares, dos objectos, das pessoas, das sensações, dos hábitos, da língua, primeiras
marcas e elementos nos quais se estruturou o funcionamento psíquico e cultural.

No segundo pólo, trata-se de “imigrar”, de elaborar, de reconstruir individualmente e num curto espaço de
tempo o que diferentes gerações elaboraram e transmitiram pacientemente.

A vivência migratória envolve a capacidade de fazer face à mudança que a decisão migratória origina, a
capacidade de gerir os sentimentos de abandono, angústia e perda que a ruptura afectiva, física e cultural
desencadeia e a capacidade de reconstrução, de incorporação de elementos do novo meio.

As mudanças são, com efeito, múltiplas e podemos reagrupá-las do seguinte modo:


− Mudanças físicas (novo meio, nova habitação, novos hábitos de vida);
− Mudanças biológicas (nova alimentação, novas doenças);

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− Mudanças sociais e familiares (novas relações interindividuais e intergrupais, novos padrões de


actividade e de relações sociais, novos papéis familiares);
− Mudanças culturais (a educação, a religião e a língua são muitas vezes modificadas pelas da
sociedade de acolhimento);
− Mudanças psicológicas (ao nível das motivações, das aptidões, da identidade individual e cultural);
− Mudanças políticas (perda de autonomia).

A migração implica no seu processo diferentes fases que o indivíduo migrante terá de gerir. Temos uma
primeira fase de rupturas e transição físico-espacial, marcada pelas dificuldades físicas, habitacionais,
sociais, comunicacionais e relacionais com a sociedade receptora. Segue-se a fase de confronto, de
aprendizagem. Trata-se de fazer face, de reintegrar novos hábitos, valores, padrões de vida. O confronto e
o choque cultural podem constituir fonte de stresse e risco para a saúde mental e física. Numa terceira
fase, o indivíduo vai adoptar diferentes comportamentos e estratégias de adaptação facilitadoras, ou não,
de integração. Há uma consciencialização e decisão do carácter definitivo, ou não, da escolha migratória.

As numerosas mudanças e fases implicadas no processo migratório obrigam o indivíduo a atravessar


várias crises de identidade com reajustamentos sucessivos ao nível psíquico e podem ser traumatizantes
para a formação do sentimento de identidade.

3.2 – Estratégias de adaptação e aculturação


A migração implica a adaptação do indivíduo a uma cultura, língua, regras culturais e de funcionamento
diferentes, a um novo meio, muitas vezes hostil, tendo o mesmo de atravessar diferentes etapas e
desenvolver estratégias de adaptação que lhe permitem resolver as dificuldades relacionadas com a
condição de imigrante, de que resultam diferentes modalidades de aculturação.
O conceito de aculturação foi definido pela primeira vez em 1936, por três antropólogos, Redfield, Linton e
Herskovitz, como o conjunto de transformações culturais resultantes dos contractos contínuos e directos
entre dois grupos culturais independentes.

Berry (1989, in Ramos, 1993) distingue quatro tipos de estratégias de adaptação de que resultam quatro
modos de aculturação:
− Assimilação – Processo unilateral, pelo qual os membros de um grupo social, geralmente minoritário,
se apropriam dos elementos culturais de um outro grupo, geralmente maioritário, em detrimento dos
seus padrões culturais e identidade, para se adaptarem às exigências de uma situação desigual de
encontro entre grupos.
− Integração – Manutenção parcial da identidade cultural do grupo étnico-cultural de origem, com uma
participação, mais ou menos activa, dos indivíduos na nova sociedade.
− Separação – Quando o indivíduo tenta preservar a sua identidade cultural, sem procurar estabelecer
relações com a comunidade dominante. Quando é o grupo dominante que impede o estabelecimento
de relações e obriga o indivíduo ou o grupo minoritário a manter as suas características culturais fala-
se de segregação. A diferença essencial entre separação e segregação situa-se no desejo e no poder
que o grupo não dominante tem de decidir a sua orientação.
− Marginalização – O grupo dominante impede o indivíduo de participar no funcionamento das
instituições e na vida social do grupo maioritário, devido a práticas discriminatórias.

O modelo bidimensional proposto por Berry (1987, 1989, 1997) situa as estratégias de inserção dos
indivíduos imigrados entre duas dimensões: a importância dada à herança cultural do grupo de origem e a
importância dada à adaptação da sociedade em que se inserem.

Clanet (1990, p. 63) fala-nos de “integração pluralista”, para designar um modelo de integração que
“combina de maneira paradoxal a assimilação, a diferenciação e a síntese” e a qual considera fundamental
para a coexistência de grupos culturais minoritários no seio de um grupo cultural dominante e maioritário.

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O processo de aculturação “acompanha-se de mudanças culturais diversas, espaciais e temporais e


provoca a perda, a aquisição, a transformação, a substituição e a reinterpretação de traços culturais dos
grupos em presença” (Ramos, 2001, p. 165).

3.3 – Família, maternagem e aculturação


A migração, tal como a aculturação, origina modificações na estrutura social e familiar, com consequências
na adaptação psicológica e social do indivíduo e do grupo.

As práticas de saúde e educativas das sociedades industrializadas, muito dependentes dos especialistas
da infância, podem colocar em causa os comportamentos tradicionais da famílias migrantes, os pais e as
mães pensando que os seus saberes são maus ou ultrapassados. A situação de conflito cultural e a
insegurança e ansiedade daí resultantes estão na origem de “conflitos maternos” muito prejudiciais para a
relação mãe/criança e interacções familiares.

Falander (1983) salienta que as dificuldades psicológicas, económicas e de adaptação no decurso dos
primeiros anos de imigração podem ter repercussões directas na relação mãe – criança.

Candil e Frost (1972) dão-nos o exemplo de mães americanas de origem Japonesa, as quais sofreram
uma dupla influência, ou seja, elas conservam certas particularidades das mães Japonesas e adoptam, ao
mesmo tempo, alguns comportamentos típicos das mães americanas.

Bastide (1969) salienta que, nas sociedades onde a coesão do grupo migrante é fraca e a aculturação é
grande, constata-se uma ruptura das tradições que origina uma perda de referências e de sentido,
relativamente às práticas de cuidados e educação das crianças.

Investigações realizadas em Inglaterra, Austrália e Canadá, relativas ao aleitamento materno, mostram


que após a emigração, as mulheres originárias de África, Antilhas, Ásia do Sudoeste, China e Índia
amamentavam menos os filhos ou faziam-nos por um período de tempo mais curto.

A investigação de Ramos (1993, 1996) com famílias imigrantes portuguesas na região de Paris, sobre os
cuidados às crianças, mostra que a aculturação da primeira geração corresponde ao esquema proposto
por Abou (1981), ou seja, ela é “parcial” e “sectorial”, adoptando os traços e os modelos de cultura
dominante no sector público das relações secundárias, ao mesmo tempo que mantêm o seu próprio
código cultural no sector privado das relações primárias. Os cuidados à criança fazem parte deste sector
privado das relações primárias.

3.4 – Maternagem e modalidades de aculturação


Relativamente aos comportamentos familiares, mais concretamente às práticas de maternagem, de
cuidados à criança, encontramos diferentes modalidades de aculturação.

Esta poderá ser uma aculturação sem problemas, caracterizada geralmente por uma aliança harmoniosa
das práticas tradicionais (modo de transportar a criança, massagens, embalar na rede, nos braços, nas
costas, manutenção da língua materna, etc.), com as práticas originárias da modernidade e do
desenvolvimento, como a utilização de tecnologia doméstica e o recurso aos cuidados e estruturas de
saúde disponíveis no país de acolhimento.

Temos uma aculturação de tipo intermédio, também designada de semi-aculturação, onde as famílias e as
mães adoptam em grande número os comportamentos e hábitos da sociedade de acolhimento, os hábitos
ocidentais considerados como mais “modernos” e “prestigiantes”.

A desaculturação é a modalidade onde encontramos o maior desenraizamento, isolamento,


desorganização e psicopatologia. Isoladas, desenraizadas, deprimidas, faltando-lhes referências

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tradicionais sobre as quais se apoiarem, por vezes mães muito jovens, estas famílias e, sobretudo as
mães, não encontram nelas mesmas, nem no meio familiar e social, os recursos necessários para se
adaptarem a um novo meio e cultura e para cuidarem dos seus filhos.

4. Stresse e Saúde em Situação de Migração e Aculturação


4.1 – Stresse, acontecimentos de vida, estratégias de coping e suporte social
4.1.1 – Definição de stresse
O conceito de stresse foi utilizado pela primeira vez na física e significativa pressão, exigência, grande
esforço realizado sobre os objectos, materiais ou pessoas.

O stresse é um fenómeno complexo, implicando interacções indivíduo-meio e interacções intersistemas e


intrasistemas. O stresse funciona em estreita relação com outras variáveis transaccionais do meio (suporte
social, estratégias de coping) e com diversos sistemas fisiológicos e biopsicossociais.

Para Selye (1979), as “doenças de adaptação” seriam o resultado da incapacidade ou diminuição dos
mecanismos de reacção do organismo para se defender dos agentes stressores de uma forma adaptativa,
dando o seu modelo ênfase particular aos aspectos biológicos do stresse. O stresse é para este autor “A
resposta não específica do corpo a qualquer exigência”.

Para Lazarus e Folkman:


“O stresse é uma relação particular entre o indivíduo e o ambiente, a qual é avaliada e considerada pelo
indivíduo como algo que sobrecarrega ou ultrapassa os seus recursos e prejudica o seu bem-estar”.

As teorias de Lazarus et al. (1984) e de Seligman et al. (1975, 1987) consideram o stresse como algo que
ocorre sempre que os acontecimentos são avaliados como potencialmente prejudiciais ou quando os
indivíduos percepcionam os seus recursos pessoais ou sociais como insuficientes para fazer face ou
impedir um resultado aversivo.

Temos diferentes categorias de stresse: o stresse individual, familiar, profissional e social.

O stresse ao nível individual poderá estar, por exemplo, relacionado com uma doença ou deficiência grave,
tratamentos e intervenções médicas. Outros factores individuais na infância como maus tratos, abuso
sexual, morte de um progenitor, podem constituir fonte de stresse e de distúrbios psíquicos e físicos.

O stresse ao nível familiar está ligado, entre outros, à organização, estrutura e funcionamento familiar, a
mudanças na família (separação, morte, chegada de um novo membro), a problemas comunicacionais
intrafamiliares, os quais poderão desencadear um número importante de conflitos e patologias
psicológicas e orgânicas.

O stresse profissional poderá estar relacionado:


− com as condições e características da tarefa;
− com as características relacionais;
− com as características da carreira.

O stresse social está relacionado com as condições de vida e ambiente social, onde diversos factores, tais
como, o nível socioeconómico, o desenvolvimento do país, a estrutura da comunidade, a etnia/ cultura, a
migração podem intervir.

O modelo transaccional de Lazarus e Folkman (1984) veio colocar em relevo as transacções entre o
indivíduo e o meio e os processos de avaliação e adaptação elaborados pelos indivíduos para enfrentar a
adversidade e o stresse.

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4.1.2 – Stresse e estrategias de Coping


O stresse implica um desequilíbrio entre as exigências e a situação de agressão do meio ambiente e os
recursos do indivíduo para fazer face, ou seja, as capacidades de “coping”. Este inclui as estratégias
cognitivas e comportamentais utilizadas pelos indivíduos para gerir uma situação difícil, considerada
ameaçadora e causadora de stresse, assim como as reacções emocionais negativas originadas por esse
acontecimento. As estratégias de coping são determinadas pelas características individuais e do contexto.

O conceito de coping pode envolver assim não só as estratégias comportamentais externas e conscientes,
como também os processos psíquicos e as características mais de carácter inconsciente e internalizadas.

Uma revisão da literatura sobre as estratégias de coping dá-nos conta de diferentes tipos de estratégias:
− coping centrado no problema – visa controlar o problema na origem do sofrimento do indivíduo,
afrontar a situação para resolver o problema;
− coping centrado na emoção – visa a regulação das tensões e do sofrimento emocional originados
pela situação;
− coping evitante – visa reduzir, através de estratégias passivas (fuga, evitamento, negação,
resignação, fatalismo, distracção), a tensão emocional do indivíduo;
− coping vigilante – visa através de estratégias de implicação, vigilância e acção (suporte social,
procura de informações e de meios) enfrentar a situação de modo a resolvê-la.

A variabilidade e a eficácia das estratégias de coping estão relacionadas com as características individuais
e com o tipo, gravidade, duração e grau de controlo da situação enfrentada.

Alguns autores consideram o coping como uma forma de resiliência, podendo as estratégias de coping
contribuir para o fenómeno da resiliência.

4.1.3 – Stress, acontecimentos de vida e suporte social


O meio familiar pode originar ou agravar a situação stressante mostrando vários estudos que o stress e as
dificuldades de adaptação são mais frequentes nos meios familiares violentos e desorganizados.

Vários autores sublinham que os indivíduos são particularmente vulneráveis ao stress em certos períodos
de desenvolvimento, correspondendo às etapas de transição e de aquisições estruturais. Nos primeiros
anos de vida, os bebés e as crianças de idade pré-escolar são particularmente sensíveis ao stresse
ambiental e à falta de apoio familiar e parental; no período das grandes aprendizagens escolares (leitura,
escrita, cálculo), particularmente dos seis aos dez anos, e na adolescência, período de grandes
transformações psicofisiológicas e de rupturas diversas.

A relação entre stresse e acontecimentos significativos de vida foi analisada por Holmes e Rahe (1967)
através de uma escala de reajustamentos social.

Os acontecimentos significativos de vida são factores de stresse, na medida em que obrigam, muitas
vezes, a uma modificação de hábitos, de relações sociais, de padrões de actividade, a alterações no estilo
de vida.

Eckenrode e Gore (1981) analisam o stresse em termos de acontecimentos de vida e redes de apoio
existente, acentuando um conjunto de variáveis, como a saúde, a educação e o estatuto socioeconómico
que determinam o impacto de um dado agente de stresse. Para estes autores, as redes sociais são uma
forma privilegiada de compreender as origens de perturbação, os problemas psicossociais e os níveis de
isolamento em que os indivíduos se encontram e o papel do suporte social, actuando este apoio como
uma variável atenuante e preventiva do stresse.

No que diz respeito à rede social, distinguem-se dois tipos de proporcionadores de suporte social:

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− suporte social formal, que inclui os técnicos e os serviços;


− suporte social informal, onde se incluem os amigos, vizinhos, familiares, os grupos sociais.

Sobre os efeitos do suporte social na saúde, Singer et Lord (1984) distinguem quatro dimensões:
− o suporte social constitui um recurso positivo para a saúde e para fazer face à adversidade;
− a falta de suporte social é fonte de stresse;
− a perda de suporte social é geradora de stresse;
− o suporte social constitui um factor protector contra as consequências e perturbações provocadas pelo
stresse, constituindo um mediador ou moderador do stresse.

4.2 – Stresse, saúde e doença


Diversas investigações confirmam uma relação do stresse e dos acontecimentos de vida adversos com
problemas de saúde mental e física.

O stresse poderá ter um impacto negativo na saúde física e mental dos indivíduos, estando na origem de
uma grande variedade de problemas psicológicos, psicossomáticos e físicos.

Os indivíduos sob stresse têm mais probabilidade de se envolverem em comportamentos não saudáveis,
como recorrer a tranquilizantes, álcool, tabaco e drogas, de adoptarem piores hábitos alimentares e de
realizarem pouco exercício físico, comportamentos que podem tornar-se prejudiciais à saúde.

Acontecimentos negativos de vida geradores de stresse estão relacionados com certas patologias como
episódios delirantes ou depressivos, tentativas de suicídio, aumento de hospitalizações por sintomas e
episódios esquizofrénicos.

A exposição repetida e prolongada ao stresse gera alterações na resposta imunitária (McKinnon et al.,
1989).

para Ogden (1999) o stresse está associado a numerosas mudanças psicofisiológicas que afectam a
saúde, nomeadamente:
− mudanças em factores psicológicos, como o aumento do medo, ansiedade, cólera e diminuição das
capacidades cognitivas;
− aumento de factores físicos, nomeadamente a tensão arterial, o ritmo cardíaco e o potencial muscular;
− excitação do sistema simpático e aumento de hormonas de stresse como as catecolaminas e
corticosteróides.

A associação stresse e doença pode fazer-se de diferentes formas:


− o stresse pode originar um aumento das catecolaminas o que pode conduzir a doença renal e ao
aumento da formação de coágulos sanguíneos que aumenta as hipóteses de um ataque cardíaco;
− o stresse causa um aumento de corticosteróides, que podem conduzir a atrites;
− o stresse provoca aumentos das catecolaminas e corticosteróides, o que afecta o sistema imunológico,
ficando o indivíduo mais susceptível a infecções;
− o stresse pode causar um aumento da secreção de ácidos no estômago o que pode provocar úlceras;
− o stresse pode também provocar os ataques cardíacos, através de um aumento da resposta
cardiovascular e um aumento das hipóteses de dano ou alteração das artérias pela formação de
placas ou depósitos de gordura.

4.3 – Stresse, saúde e aculturação


A migração representa um stresse psicológico e social mais ou menos significativo, uma experiência
traumática que pode originar traumatismos “silenciosos” e múltiplos.

Para Grinberg (1986), a reacção mais comum face à experiência de migração é a angústia.

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A criança migrante tem de fazer face a uma dupla vulnerabilidade: a dos pais, ligada ao processo
migratório, e a sua, relacionada com a “clivagem” sobre a qual é estruturada. Apesar destas rupturas e
fragilidades, muitas crianças apresentam comportamentos resilientes e conseguem ultrapassar o risco e
ter êxito nas dificuldades a que são submetidas.

O facto da maior parte das migrantes serem originários de meios rurais pobres ou de sociedades não
industrializadas e de terem um baixo nível de escolaridade, particularmente as mulheres, muitas das quais
não frequentaram a escola, torna mais difícil a sua integração em meio urbano industrializado e os
cuidados e educação da criança. Para além disso, o trabalho assalariado das mães no país de
acolhimento, não exercido frequentemente no país de origem, vem trazer muitas mudanças nas relações
familiares e sócio-educativas.
Para Berry (1974, 1987, 1989) (In Ramos, 1993), o stresse social e psicológico devido à aculturação
manifesta-se por problemas psíquicos (depressão, angústia, ansiedade, confusão) e por problemas
identitários, de marginalização, sentimentos de insegurança, perda de auto-estima, etc. para este autor, o
stresse de aculturação poderá ser mais ou menos importante, mas não é inevitável.

Segundo Berry, as relações entre aculturação e stresse são influenciadas por todo um conjunto de
factores como as características sócio-demográficas e psicológicas do indivíduo, as particularidades da
sociedade dominante, os tipos de aculturação e os modos de aculturação.

Em relação às características das sociedades, Murphy (1965) in Berry (1989) refere que a probabilidade
de um nível de stresse elevado é maior nas sociedades monoculturais e assimilacionistas, do que nas
sociedades tolerantes e pluralistas.

5. Problemas Psicossociais e de Saúde da População Migrante


5.1 – Saúde e doença – contextos e factores psico-sócio-culturais
Os migrantes constituem um grupo de risco ao nível da saúde mental e física.

A adaptação cultural, social e da saúde do imigrante é dificultada por alguns obstáculos, nomeadamente:
− desconhecimento ou banalização das diferenças em favor das necessidades universais do ser
humano;
− dificuldades e resistência dos profissionais, muitos dos quais consideram que pertence apenas aos
imigrantes o trabalho de adaptação e mudança;
− desconhecimento ou dificuldade em tomar em consideração as circunstâncias migratórias no
atendimento e planificação dos cuidados e programas de saúde;
− maios insuficientes para adaptar culturalmente e com equidade os projectos e programas de saúde;
− condições desiguais de negociação para os grupos étnicos em contexto de parceria.

Investigações mostram que a população migrante constitui um grupo particularmente vulnerável na área
da saúde sexual, particularmente na infecção pelo VIH/SIDA. Este facto prende-se particularmente com
atitudes, crenças e factores culturais na origem, por exemplo, da recusa ou pouca utilização do
preservativo, na existência de múltiplos parceiros.

Os imigrantes constituem igualmente um grupo vulnerável ao nível da saúde mental, salientando vários
estudos problemas emocionais, psicopatológicos e psiquiátricos.

Sobre os comportamentos de saúde dos migrantes, este estudo da OMS revela ainda:
− a importância da medicina tradicional no tratamento e na cura;
− o recurso a medicamentos tradicionais dos seus países de origem;
− a compra de medicamentos sem prescrição médica;
− a solicitação de ajuda quando já se encontram em estado de doença mais grave e a tendência em

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fazê-lo em horas mais tardias ou nos fins de semana;


− a preferência por curas rápidas mesmo que isso dependa de formas múltiplas e simultâneas de
tratamento;
− uma certa desconfiança em relação ao pessoal médico.

Maisondieu (1997) fala de síndrome de exclusão para descrever o sofrimento psicológico e o desespero
característico de muitos imigrantes e refugiados, sobretudo no período inicial, confrontado com a
precariedade das condições de vida e com as mudanças de referências culturais. Trata-se de um
sentimento de vergonha, desespero e impotência, face a uma situação dolorosa e stressante que o
indivíduo não consegue controlar, que o afecta nas suas vivências e expectativas quanto ao futuro, nas
suas relações, nas suas capacidades em exigir e defender os seus direitos, podendo associar-se a outros
sintomas depressivos e pós-traumáticos.

5.2 – A saúde da família e da criança migrante


Ao nível da saúde mental, vários autores salientam um conjunto de problemáticas que surgem com mais
ou menos frequência na população migrante: estados de ansiedade e depressão, crises de angústia,
psicoses delirantes, neuroses fóbicas ou obsessivas, doença psicossomática, alcoolismo e toxicomanias.

Algumas investigações mostram também uma vulnerabilidade da mãe e do bebé migrante com
depressões e psicoses pós-parto da mãe e um número importante de distúrbios funcionais do bebé, tais
como problemas de sono e de alimentação.

Em contexto migratório as mães, encontrando-se muitas vezes inseguras, ansiosas e em conflito quanto
aos cuidados e atitudes face aos seus filhos, deprimidas e isoladas, não encontram em si mesmas, nem
no ambiente, os recursos e suporte necessário para se adaptarem às exigências de um meio
estrangeiro,“estranho” e diferente, para apoiarem as crianças, nalguns casos, abandonando o
acompanhamento das crianças aos serviços de saúde e escolares. Quanto aos pais, sentindo-se
igualmente isolados e desvalorizados pela precariedade da situação migratória e por não exercerem um
papel ou o modelo de autoridade que exerceriam no seu país de origem, refugiam-se, muitas vezes, no
alcoolismo e na violência.

Para a criança migrante, os riscos são mais importantes quando a migração se processa em certos
períodos críticos de desenvolvimento, particularmente vulneráveis, nomeadamente:
− no nascimento e nos primeiros tempos de vida. A vulnerabilidade do bebé e da mãe poderá exprimir-
se por interacções desarmoniosas e por uma patologia psicossomática.
− No período das grandes aprendizagens escolares, leitura, escrita, cálculo, em que a criança se
encontra disponível para as novas aprendizagens e novos conhecimentos escolares (seis – dez anos).
− Na adolescência, período de grandes transformações psicológicas e físicas, de crise de identidade, de
rupturas múltiplas (com a família, a cultura e a sociedade) e de maturação (ao nível da auto-afirmação,
da conquista de autonomia e da adaptação sexual).

Também para as crianças de migrantes que ficam no país de origem, a separação e fragmentação da
família devido à ausência do pai, muitas vezes do pais e da mãe, poderá ter repercussões ao nível da
socialização, da construção identitária, na adaptação social, escolar e profissional, nos sentimentos de
depressão, abandono e isolamento.

6. O Utente/Doente Migrante e os Cuidados de Saúde


6.1 – Problemas do utente/doente em contexto hospitalar
A estrutura social, económica, política e cultural produz diferentes tipos de sistemas médicos e
comportamentos distintivos em relação à saúde e à doença. Porém, muitas vezes, o sistema médico oficial
não tem em conta factores como a pobreza, as crises económicas, o exílio e a migração.

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Na maior parte dos países, a principal estrutura institucional de medicina científica é o hospital, com as
suas regras de funcionamento específicas. O hospital tem uma cultura própria, médica, tecnológica,
hierárquica, em relação à qual não está habituada a maioria dos doentes, sendo maiores as dificuldades
no caso dos migrantes.

A hospitalização do doente migrante aumenta de dificuldades quando o pessoal de saúde, em vez de


adoptar uma atitude de compreensão, impõe ai doente condutas e atitudes, da quais ele não compreende
a lógica e o sentido ou que são, por vezes, contraditórias com os seus hábitos e costumes e com as suas
crenças.

A primeira dificuldade do doente migrante no hospital verifica-se logo ao acolhimento face às diligências
administrativas, a regras que não domina, ao desconhecimento ou à falta de documentos necessários, ao
não domínio ou insuficiente conhecimento da língua do país de acolhimento e ao analfabetismo, muitos
imigrantes (principalmente os que vêm de países em desenvolvimento e sociedades tradicionais e as
mulheres), não sabem ler nem escrever.

Também a dificuldade do migrante em compreender os quadros referenciais sociais e simbólicos aumenta


os preconceitos e as dificuldades de comunicação com os técnicos de saúde e a ansiedade e angústia do
doente migrante.

A situação política, legal ou ilegal e social do migrante pode também modificar o seu comportamento face
aos cuidados de saúde e, por vezes, este ser mesmo contraditório segundo os seus medos, expectativas,
etc.

Também certos rituais religiosos, certos elementos considerados como impuros, certas práticas e
procedimentos de higiene e rituais de lavagem, certos hábitos alimentares, etc. podem ser fonte de
incompreensão e de problemas de comunicação entre doentes e técnicos de saúde.

A relação com o corpo é outro elemento que causa, muitas vezes, mal entendidos e dificuldades
comunicacionais entre o utente/doente e os técnicos de saúde. A gestualidade, as mímicas, os toques, os
olhares, o vestuário, as posturas, a noção de pudor variam segundo os grupos e as culturas.

6.2 – Comunicação e cuidados de saúde


A comunicação é um processo bidireccional, contínuo, dinâmico, interactivo, irreversível, que se produz
num dado contexto físico e social, influenciando o comportamento. A comunicação é um conceito
integrador, que permite redimensionar e repensar as relações entre os indivíduos, entre o indivíduo e a
sociedade e entre a sociedade e a cultura. A comunicação é um fenómeno social complexo, estando cada
acto de transmissão de uma mensagem integrado numa matriz cultural, num conjunto de códigos e de
regras que tornam possíveis e mantêm as relações entre os membros de uma mesma cultura ou sub-
cultura.

A abordagem sistémica da comunicação (Bateson, 1981, 1985) salienta alguns princípios fundamentais,
nomeadamente:
− A comunicação e um processo dinâmico, interactivo, no qual a unidade de base é, sobretudo, a
relação que se estabelece entre os indivíduos;
− A comunicação não se reduz às mensagens verbais. Também as expressões faciais, os gestos, os
silêncios, as atitudes, as posturas, os comportamentos transmitem uma mensagem;
− Toda a mensagem comporta dois níveis de significação, isto é, transmite não somente um conteúdo
informativo, mas exprime igualmente algo sobre a relação que une os interlocutores;
− A comunicação é determinada pelo contexto no qual ela se inscreve e este contexto envolve as
relações que unem as pessoas que comunicam, o espaço no qual se situa a interacção e a situação
que coloca em relação aos protagonistas;

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− uma parte dos problemas e disfuncionamentos ao nível relacional e psicológico está relacionada com
problemas de comunicação.

6.3 – Comunicação intercultural e saúde


A comunicação implica uma relação que se estabelece entre os indivíduos, a partir de significações
comuns que os mesmos, atribuem à comunicação verbal (palavras, entonações) assim como à
comunicação não verbal (expressões faciais, gestos, olhares, posturas, posturas, posições no espaço,
objectos, vestuário, etc.). Estas significações são aprendidas e variam em função de factores
sociodemográficos e culturais.

A comunicação intercultural envolve os problemas e processos de interacção verbais e não verbais


entre indivíduos pertencentes a grupos ou subgrupos culturais diferentes em contextos situacionais
variados e a variação cultural na percepção dos objectos, dos comportamentos e dos acontecimentos
sociais.

A percepção é um processo pelo qual o indivíduo selecciona, avalia e organiza os estímulos vindo do
mundo exterior. A cultura tende a produzir percepções diferentes do mundo exterior. Os nossos
sistemas de valores, as nossas crenças, atitudes, a nossa visão do mundo e dos outros, a nossa
organização social e política exercem influência sobre as nossas percepções.

Também o etnocentrismo, ou seja, a tendência a interpretar a realidade a partir dos nossos próprios
critérios e modelos culturais, pode constituir um obstáculo importante à comunicação intercultural.
Existem dois tipos de dimensões culturais que afectam a comunicação:
 Os modelos culturais que influenciam a nossa maneira de pensar, de percepcionar, de codificar,
etc,
 Os modelos culturais que influenciam as maneira de comunicar com as pessoas pertencentes a
outras culturas.

Para L. Samovar et al, um principio fundamental da comunicação intercultural é a consciencialização de


que o mundo que percepcionamos e em relação ao qual comunicamos, poderá não ser o mesmo mundo,
vivenciado por uma pessoa de outra cultura e que ela procura exprimir.

Para desenvolver a competência na comunicação e nas relações interculturais, é necessário a tomada de


consciência do grau de determinismo cultural dos nossos comportamentos, é importante desenvolver a
“consciencialização cultural”. Esta constitui um processo de aprendizagem cultural, visando a capacidade
de analisar o mundo do ponto de vista de uma outra cultura, visando desenvolver as competências para
reconhecer as diferenças e a pluralidade (Hopes). Este autor identifica cinco domínios, onde uma
consciência insuficiente das diferenças culturais pode introduzir dificuldades e problemas na comunicação:
 Os esquemas perceptivos – cada indivíduo interpreta o mundo diferentemente e os membros de
um grupo cultural desenvolvem esquemas de percepção que diferem dos de outros grupos
culturais, diferenças que podem originar dificuldades na comunicação.
 Os princípios e valores culturais – subjacente aos comportamentos dos membros de um grupo
cultural estão os princípios e valores que são partilhados pelos membros de um grupo.
 Os modelos cognitivos – estes modelos diferem segundo os grupos culturais e influenciam a
comunicação.
 Os comportamentos rotineiros – a cultura conduz a rotinas, a hábitos comportamentais diferentes
e influencia a maneira de nos comportarmos no espaço e no tempo, em relação às crianças, aos
adultos, aos pais, em relação ao passado, ao presente e ao futuro.
 Os estilos de comunicação – cada cultura desenvolve o seu próprio estilo de comunicação.

Para desenvolver as aptidões de comunicação intercultural e facilitar a compreensão recíproca entre


indivíduos, grupos e culturas, é necessário:

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SebentaUA, apontamentos pessoais Disciplina /41048 – Psicologia Clínica e da Saúde

 Desenvolver a compreensão da cultura,


 Aprender a conhecer-se a si mesmo e à sua própria cultura, É importante aprender a identificar os
seus sentimentos e atitudes,
 Aprender a descobrir os quadros de referência dos outros, aprender a conhecer os códigos
culturais respectivos, o que permitirá estabelecer relações mais abertas e mais flexíveis.
 Evitar julgamentos rápidos e superficiais, evitar os estereótipos e as atitudes etnocêntricas. O que
permitirá escutar e colocar-se no lugar do outro, de forma a tentar compreender as coisas do seu
ponto de vista o que permitirá descentrar-se,
 Desenvolver a empatia, as capacidades empáticas, o que implica a capacidade de se colocar no
lugar do outro,
 Dispor de tempo para comunicar, para compreender uma situação, estar atento às mensagens
silenciosas da comunicação não verbal, assim como aprender a respeitar os ritmos e os estilos de
comunicação próprios de cada indivíduo e de cada cultura,
 Desenvolver estratégias e intervenções educativas interculturais, incluindo uma formação centrada
sobre a informação, nomeadamente sobre a história e a cultura dos diferentes grupos ou
comunidades presentes no mesmo espaço social,
 Desenvolver estratégias e intervenções educativo/pedagógicas que conduzam à descentração, ao
respeito e reconhecimento do outro, das identidades, das diversidades, numa sociedade cada vez
mais plural, heterogénea e globalizada.

7 – Síntese Conclusiva
Foram analisados as múltiplas relações, variáveis e factores individuais e colectivos, nomeadamente,
psicológicos, sociais e culturais, implicados no processo migratório e de aculturação, desencadeadores de
stress, ansiedade, conflito, os quais poderão afectar a saúde e a qualidade de vida do adulto, da família e
da criança migrante, assim como a comunicação em contexto de saúde, nomeadamente em contexto
multicultural.

O intercultural implica uma ética da relação humana. A relação intercultural deriva de uma ética pessoal e
de uma ética da alteridade. Comunicar com o outro implica ter em conta a sua identidade na interacção e
as suas reacções à alteridade.

É importante identificar a avaliar a fase de adaptação migratória em que se encontra o imigrante e o modo
de aculturação, no sentido de adaptar as respostas, os cuidados de saúde e a intervenção psicossocial.

A formação em comunicação, nomeadamente em situação intercultural, é fundamental ao conjunto da


população, cidadãos ou intervenientes sanitários, sociais, educativos, políticos, dos média.

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