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Psicologia Clínica e Da Saúde - (Apontamentos) SebentaUA
Psicologia Clínica e Da Saúde - (Apontamentos) SebentaUA
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Psicologia Clínica e da Saúde
O autor não pode de forma alguma ser responsabilizado por eventuais erros ou lacunas existentes. Este documento não
pretende substituir o estudo dos manuais adoptados para a disciplina em questão.
A confrontação do discurso familiar com a observação directa ou fílmica em meio natural constitui uma
metodologia de investigação importante para compreender as relações entre as representações individuais
e colectivas e os estilos comunicacionais e relacionais e para analisar as condições de desenvolvimento e
as práticas de cuidados nos contextos em que ocorrem.
I. PARTE
1. Introdução
A realidade social, económica, cultural, política e familiar estão organizadas como um todo articulado e
como um sistema interactivo que influenciam a saúde, o bem estar e a qualidade de vida das crianças, dos
adultos e das famílias.
Nascer, crescer, viver em situação de pobreza, de guerra, de exílio, de migração e de doença é fonte de
inúmeras formas de violência e exclusão, constituindo um risco, um trauma e um desafio para o indivíduo,
muito em particular, para a criança e a sua família.
Estas problemáticas exigem:
− Abordagens preventivas e interventivas, multidimensionais e pluridisciplinares.
− Um modelo holístico que considere o indivíduo na sua totalidade e complexidade.
− Uma perspectiva da saúde.
As crises de natureza económica não são o único factor de origem, manutenção e aumento da pobreza.
Também as crises de natureza política, epidemiológica e ambiental contribuem para a manutenção ou
aumento da mesma.
Como refere Dubois (2001), a pobreza tem de ser analisada de uma forma plural e, por isso, temos de a
considerar nas suas diferentes dimensões:
− A pobreza monetária
− A pobreza das condições de vida ou de existência
− A pobreza das potencialidades ou das capacidades.
A pobreza é uma das causas mais importantes de doença e mortalidade, traduzindo-se por carências
múltiplas: alimentação incorrecta, água não potável, insegurança habitacional, degradação do meio,
ausência de educação e não acesso aos cuidados de saúde.
Benzeval et al. (1995), num estudo sobre as desigualdades sociais em 14 países diferentes, constataram
que as desigualdades e a pobreza têm inúmeras consequências na saúde dos indivíduos. Os indivíduos
vivendo em condições precárias têm mais doenças, mais sofrimento psicológico, mais deficiências e uma
menor longevidade do que aqueles que vivem sem problemas económicos.
A título comparativo, em Portugal, a esperança de vida aumenta 13 anos nas mulheres (sendo de 79,7
anos) e 11 anos nos homens (72,7 anos) em 2000, números que se aproximam da média comunitária, ou
seja, 75 anos para o sexo masculino e 81 anos para o feminino, estando esta melhoria relacionada com as
melhores condições de vida e de saúde dos cidadãos europeus.
A má nutrição é particularmente mortífera, quando está associada a uma doença infecciosa como a
pneumonia, o paludismo, a rubéola ou a diarreia.
Igualmente, e associado a factores culturais e socioeconómicos, mais de metade das mulheres africanas e
asiáticas sofrem de carências alimentares graves, as quais afectam, particularmente, a saúde das
mulheres grávidas e os recém-nascidos.
Na Ásia do Sul e no Próximo e Médio Oriente, há uma submortalidade das meninas com menos de 5 anos,
devido também a factores culturais. A preferência dada aos meninos, devido, entre outras, a razões
religiosas, económicas e políticas, origina uma insuficiência de cuidados médicos e de cuidados básicos e
de alimentação às meninas, cujo estado de saúde se deteriora.
A mortalidade infantil resulta assim de um processo complexo onde intervêm factores biológicos, mas,
também, factores socioeconómicos, comportamentais, individuais e culturais.
Também as crianças, nos países em desenvolvimento, estão mais sujeitas, para além da má nutrição, a
infecções respiratórias, paludismo, diarreia, rubéola, carência de iodo, o que afecta o absentismo e os
resultados escolares e está na origem de um grande número de mortes de crianças com menos de 5 anos,
registando-se anualmente perto de 11 milhões de mortes destas crianças nestes países.
A Ásia do Sul e de Leste e, sobretudo, a África Subsariana caracterizam-se por uma situação muito grave,
onde a privação de acesso aos equipamentos de saúde, o analfabetismo, a má nutrição e os riscos de
morte se acumulam e multiplicam.
Uma grande parte das mortes de crianças com menos de cinco anos que ocorrem anualmente no mundo
poderia ser evitada, proporcionando às famílias, particularmente às mães e às crianças, melhores
condições de saúde e melhores condições educativas e socioeconómicas.
Os países africanos onde é mais praticado este ritual, com taxas aproximadamente de 90%, são a Somália,
a Etiópia, a Serra Leoa, a Eritreia, o Sudão e a Gâmbia.
Entre os países que praticam este tipo de mutilação existe um de expressão portuguesa que é a Guiné-
Bissau, onde este ritual denominado «fanado» se mantém, as estimativas apontando para 50% de
mulheres excisadas neste país. Entre os grupos étnicos que na Guiné-Bissau mantêm o «fanado» estão
os Mandingas, os Fulas, os Biafadas, os Djacacas os Saracules.
As mães escolarizadas asseguram aos seus filhos e à família melhores condições de vida e transmitem
aos seus filhos comportamentos, atitudes, crenças e estilos de vida mais saudáveis do que as mães que
não receberam qualquer instrução escolar.
As crianças que não são registadas não têm uma existência legal, isto é, não têm uma identidade, um
nome oficial e uma nacionalidade, três elementos indispensáveis à participação em sociedade, aos
cuidados de saúde, nomeadamente, à vacinação, à escolarização e à cidadania.
3. Violência e Saúde
3.1 – Violência Estrutural
As múltiplas formas de violência estão enraizadas nas estruturas socioeconómicas, culturais e políticas e
nas consciências individuais, numa relação interactiva e dinâmica entre condições objectivas e a
subjectividade do ser humano, entre o colectivo e o individual. Com efeito, os diversos tipos de violência
expressam-se de forma associada, onde desajustes, desequilíbrios e conflitos do sistema social,
comunitário e familiar se articulam nos níveis individuais e interpessoais, e onde um conjunto de factores
de risco actua de forma dinâmica e interactiva no indivíduo, na família, na cultura e na comunidade.
A violência estrutural incide sobre as condições de vida das crianças e das famílias, tendo em conta
elementos socioeconómicos, históricos e políticos que tornam vulnerável o desenvolvimento, educação e
saúde da criança. Esta forma de violência, pelo seu carácter, frequentemente reprodutivo e de perenidade,
aparece geralmente como “natural”, “institucionalizada”, “invisível”, como se nela houvesse a acção dos
indivíduos.
“O locus da violência estrutural é exactamente uma sociedade de democracia aparente que, apesar de
conjugar participação e institucionalização e advogar a liberdade e igualdade dos cidadãos, não garante a
todos o pleno acesso a seus direitos.
Nas suas diferentes expressões, a violência estrutural tem várias formas limites de manifestação, das
quais destacamos: a exploração e trabalho infantil, as crianças de rua/sem abrigo e as crianças
institucionalizadas.
A violência familiar, também designada doméstica, constitui uma realidade complexa e multiforme que
envolve a violência física, psicológica, sexual (abuso sexual), a negligência e o abandono.
Na origem da violência familiar, estão implicados factores socioeconómicos, ambientais e culturais, mas
também factores individuais, psicológicos e familiares, como as características da criança e as
expectativas dos pais, o funcionamento familiar, as concepções educativas, a história pessoal e a
personalidade dos pais, a sua saúde e recursos internos, podendo afirmar-se que a violência familiar toca
sobretudo famílias multiproblemáticas.
A violência conjugal, ou seja, mães maltratadas, correm riscos de se tornarem mães maltratantes.
Hunter et al. (1978), nos EUA, num estudo sobre crianças maltratadas e negligenciadas durante o primeiro
ano de vida coloca em evidência três componentes:
− famílias vulneráveis com falta de suporte social;
− crianças com défices biológicos e prematuras;
− contactos reduzidos pais-criança durante a estadia no hospital.
Em Inglaterra, Lynch e Roberts (1997) da análise dos dossiers das crianças maltratadas registaram cinco
factores determinantes:
− mães com menos de 20 anos;
− presença de perturbações emocionais ou psiquiátricas;
− admissão da criança numa unidade de cuidados intensivos;
− inquietude quanto à competência da mãe para cuidar da criança;
− necessidade de interferência do trabalhador social durante a estadia da mãe na maternidade.
Baseando-se numa perspectiva ecológica, Belsky (1980) identifica um conjunto de variáveis que podem
constituir factores e protectores de risco de abusos e maus tratos à criança. Entre os factores de risco,
este autor agrupa vários tipos de factores:
− história de abuso, baixa auto-estima, competências interpessoais reduzidas, baixas capacidades
intelectuais, baixo nível de escolaridade dos pais;
− problemas conjugais e familiares, monoparentalidade, doença, prematuridade da criança, pobreza;
− isolamento, reduzido suporte social e comunitário, desemprego, acontecimentos stressantes;
− aceitação cultural da punição/agressão física, cultural da violência, depressão económica.
As consequências mais frequentes da violência física são lesões abdominais e do sistema nervoso central,
traumatismos cranianos, lesões auditivas e oculares, fracturas de membros, contusões várias, mutilações,
mordeduras, queimaduras, conduzindo muitas desta agressões a invalidez temporária ou permanente e à
morte.
A violência psicológica tem efeitos psicopatológicos graves, com consequências, nomeadamente, ao nível
do desenvolvimento emocional, social e cognitivo, de distúrbios do comportamento, de comportamentos
auto-destrutivos, anti-sociais e de violência, da depressão, do abuso de álcool e drogas.
As crianças vítimas de abusos sexuais, de familiares ou não, são em geral agredidas por aqueles que são
destinados a protegê-las ou que estão em posição de autoridade ou confiança (os membros da família,
vizinhos, professores, educadores, médicos, etc).
Este tipo de violência tem efeitos muito prejudiciais ao nível do desenvolvimento em geral, nomeadamente,
desenvolvimento sexual, emocional, cognitivo e social, podendo favorecer, entre outros: falta de auto-
estima, culpabilidade, isolamento, ansiedade, insónias, ideias suicidárias e auto destrutivas, problemas
ginecológicos e sexuais, gravidezes indesejáveis, enurese, somatização, delinquência e agressividade,
depressão, problemas de aprendizagem e escolares, abandono escolar, consumo de drogas, jogos
sexuais inadequados para a idade ou prostituição e problemas psicossomáticos.
Sobre o abuso sexual na família, Hayez et al. (1999) descreve três tipos de famílias que podem favorecer
este tipo de violência:
− família rígida, com pouca comunicação, onde o pai exerce uma posição de tirania doméstica,
submetendo-se a esposa ou sendo cúmplice deste autoritarismo. Na história destes pais existe, muitas
vezes, transmissão transgeracional destas práticas de abuso;
− famílias fusionais, onde os membros da família estão demasiados «imbricados» e envolvidos uns com
os outros;
− famílias caóticas, onde domina a instabilidade, a insegurança, a falta de regras e as carências
educativas e cognitivas. A promiscuidade, os problemas económicos e o isolamento social estão,
muitas vezes, presentes.
A negligência e abandono representam a falta de cumprimento das obrigações familiares e sociais para
proverem às necessidades físicas e psicológicas das crianças, expressando-se, sobretudo, na falta de
cuidados básicos de higiene e alimentação, de cuidados de saúde e escolares, de afecto, apoio e
supervisão, na ausência de cumprimento dos papéis familiares de cuidados e protecção ou na inversão de
papéis familiares (crianças cuidando dos pais), elementos indispensáveis para um crescimento e
desenvolvimento normais. Podem ter graves consequências ao nível da saúde mental, nomeadamente, na
depressão e perturbar o desenvolvimento cognitivo, psicoafectivo e social da criança.
Muitos estudos confirmam que a violência conjugal continua após a separação, podendo mesmo agravar-
se. Segundo o Departamento de Justiça dos EUA, uma mulher tem mais probabilidade de morrer quando
abandona um marido violento, do que quando fica com ele.
A violência familiar (física, psicológica ou sexual) está pois na origem de múltiplos traumatismos, com
grandes implicações na vida e no futuro da criança e do adulto, da mulher e na saúde física e mental
podendo considerar-se um grave problema de saúde pública e um atentado aos Direitos Humanos. Como
referimos, este tipo de violência tem como consequências lesões e traumatismos físicos, conduzindo
mesmo, por vezes, à morte, e provocando, igualmente sintomas de stress pós-traumático e perturbações
psicológicas graves, das quais destacámos: depressão, isolamento, ansiedade generalizada, baixa auto-
estima e auto-confiança, culpabilidade, ideias de suicídio, problemas de sono, auto-mutilação, abuso de
álcool e drogas, comportamentos anti-sociais e violentos, problemas sexuais, abandono escolar e
deterioração dos resultados escolares, vitimização e maus-tratos e violência a longo termo.
Nos EUA, Elliott et al. (1996), o homicídio constitui, segundo os autores, a segunda causa de morte entre
os adolescentes nos EUA na última década, aparecendo como a principal causa de morte para os
indivíduos afro-americanos entre os 15 e os 24 anos. Para este autor (1998), entre 1984 e 1994, a taxa de
homicídios violentos duplicou entre os adolescentes nos EUA, sendo o número de homicídios de
adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos de idade de 7.354, só no ano de 1990.
As agressões e a violência entre pares e colegas, nomeadamente de bullying, pode ter um grande impacto
na qualidade de vida, bem-estar e saúde em geral, podendo estar na origem de disfuncionamentos
psicológicos e físicos e afectando o funcionamento geral e a auto-estima dos adolescentes. No que
respeita à auto-estima, esta constitui um recurso importante para um melhor funcionamento psicossocial e
para uma melhor saúde e desenvolvimento psicológico, estando a baixa auto-estima associada a um
grande número de problemas, incluindo abuso de drogas e de álcool, depressão, distúrbios alimentares,
problemas sociais, escolares e médicos.
Investigações conduzidas em diversos países, em particular nos EUA, Austrália e Finlândia, sobre as
relações entre saúde mental, queixas de saúde física e a violência entre os colegas adolescentes,
nomeadamente bullying, salientaram:
− a vitimização por colegas está significativamente relacionada com ideias de suicídio, havendo uma
relação entre bullying e ideação suicida;
− taxas elevadas de vitimização estão relacionadas com taxas mais altas de queixas somáticas, com
reclamações e sintomas de doenças físicas;
− vítimas de bullying, comparadas às não vítimas, registavam taxas mais elevadas de problemas de
sono, de queixas físicas, auto-percepção de não estarem bem de saúde e baixa auto-estima.
Também as investigações nos indicam que as taxas mais elevadas de comportamento anti-social e
violento são referidas nas classes sociais mais desfavorecidas e que vivem em meio urbano (Elliott et al.
1980, 1996, Rutter et al.1998). A dureza das condições de vida e o stresse quotidiano em que estas
famílias vivem faz com que tendam a apresentar disfuncionamentos psicológicos e familiares e diversas
formas de psicopatologia e a que não exerçam as competências afectivas e comunicacionais, de apoio,
supervisão, controlo e autoridade na educação dos filhos.
Vários estudos têm revelado que crianças e jovens que vivem em comunidades cronicamente violentas,
em ambientes familiares, sociais e escolares violentos, apresentam sintomas, tais como: jogos e
actividades agressivas; acções violentas como forma de esconder e combater o medo; ansiedade
generalizada e intensa; depressão; baixa auto-estima e auto-confiança; inibição nas actividades,
pensamento e exploração; dificuldades de concentração, de memória e de sono que afectam o
desempenho escolar.
Nos conflitos armados, as crianças e as mulheres são particularmente ameaçadas pela violência e
exploração sexual, nomeadamente, violação, tortura, mutilações e escravatura sexual. Também muitas
jovens e mulheres refugiadas de guerra estão à mercê dos guardas de fronteira, das forças da ordem, dos
militares ou dos responsáveis do campo que exigem favores sexuais.
A situação de guerra caracteriza-se por um confronto face a um perigo vital, brutal e imprevisto, com
consequências graves ao nível da saúde mental e física, tanto do adulto, como da criança.
Nas guerras mais recentes, por exemplo, no Líbano, no Vietname, em Israel, são também descritas
diferentes patologias, nomeadamente:
− descompensações psicóticas, sobretudo nos jovens;
− depressão, ansiedade e sintomas hipocondríacos, sobretudo nos indivíduos mais idosos;
− doenças psicossomáticas e neuroses de guerra, sobretudo nos indivíduos de nível socioeconómico e
cultural mais elevado;
− crises histéricas e estados confusionais, sobretudo nos indivíduos de nível socioeconómico baixo.
Igualmente, o consumo de drogas aumentou sete vezes mais, devido, entre outros:
− ao perigo, ao medo e à insegurança;
− à crise económica;
− à utilização da população e à perda dos bens pessoais;
− à perda de valores morais e sociais;
− à facilidade em aceder à droga a preços baixos.
Entre os factores protectores que contribuíram para a resistência psicológica dos Libaneses à guerra,
contam-se, por exemplo:
− a solidez da estrutura e laços familiares, permitindo aos soldados depois dos combates entrar no seio
da família e encontrar o apoio afectivo e psicossocial para enfrentar a violência e o stresse;
− a valorização dos combatentes, como os defensores da comunidade, da família e da religião;
− a resistência dos Libaneses à ocupação e à guerra e a aceitação desta como fazendo parte da sua
história;
− a tolerância da cultura libanesa, relativamente à expressão pública das emoções, tanto nos homens
como nas mulheres, constituindo um factor de redução do stresse pós-traumático;
− o conceito árabe de fatalismo, desempenhando um papel importante no impacto e aceitação da morte
de camaradas ou de membros da família.
As crianças que convivem com a violência e acontecimentos traumáticos agudos, para além das lesões e
consequências ao nível físico, manifestam problemas emocionais e cognitivos, fobias, perturbações de
memória, isolamento e dificuldades em realizar tarefas diárias. Em contexto de guerra, mesmo que as
crianças não sofram lesões e traumatismos físicos, são afectadas ao nível emocional, social, escolar,
moral e comportamental.
A guerra está na origem de numerosos problemas e traumatismos, dos quais um dos mais importantes é o
stresse pós-traumático. Este distúrbio caracteriza-se pela lembrança e reviver persistente do
acontecimento traumático, por uma redução das actividades ou interesses, por situações de ansiedade,
tais como: medo intenso, pesadelos, reacções de pânico, hipervigilância e problemas de sono.
Este autor considera as atitudes típicas dos jovens, em relação à guerra, de dois tipos: atitudes positivas e
negativas e atitudes de força e de fraqueza. As atitudes «negativas de força» seriam numerosas, estando
56% dos adolescentes, dispostos à vingança e exprimindo ódio pelos alemães. Quanto às «atitudes de
fraqueza», estas seriam igualmente frequentes, manifestando-se em 24% dos jovens, nomeadamente,
através de sentimentos de amargura, de humilhação, de desgosto, de medo, de desespero, de dúvida, de
indiferença, de desânimo e de depressão.
Estudos de John (1941) em crianças que tinham sido evacuadas durante a guerra e que tinham sofrido
bombardeamentos constataram alterações do sono, problemas enuréticos, constatando-se, igualmente,
uma relação directa entre o medo da criança e o medo da mãe.
Num estudo sobre a psicopatologia da criança vítima da guerra, Heuyer (1948) reagrupa as
consequências psíquicas da guerra em três categorias:
− as consequências afectivas;
− as consequências intelectuais e escolares;
− a delinquência infantil e juvenil.
Ao nível das consequências afectivas, os resultados mostram que estas constituem as mais importantes.
Heuyer (1948) distingue dois tipos: as reacções emocionais e simples e os desequilíbrios/perturbações
comportamentais. Os bombardeamentos foram as causas mais imediatas, mais directas e mais profundas
das reacções emocionais simples.
O terrorismo é uma forma de violência física e psicológica que tem vindo a aumentar e que pode ser
exercida sobre o adulto ou a criança, representando uma forma de luta radical de movimentos políticos ou
religiosos contra o poder instituído do próprio estado ou contra estados estrangeiros.
Outros estudos realizados com crianças israelitas sublinham que a guerra dá à criança uma consciência
prematura da morte como parte irreversível da vida. Assim, crianças israelitas repetidamente expostas à
morte, frequentemente traumática, demonstram envelhecer mais cedo e uma maturidade precoce, em
relação às que vivem em ambientes não perturbados.
Os resultados mostram que as crianças órfãs institucionalizadas tinham mais problemas comportamentais
e emocionais do que as que viviam em família, reforçando os resultados de outros estudos que mostram
que quando as crianças estão separadas dos pais apresentam mais distúrbios psíquicos do que, por
exemplo, as crianças que sofrem os bombardeamentos em família. Os meninos, órfãos ou não,
apresentam igualmente mais problemas, e de maior gravidade, do que as meninas.
Yule, Garbarino, face ao conflito armado, quanto maiores os problemas emocionais e de desespero
manifestados pelos pais, maior é a perturbação e o sofrimento da criança.
II. PARTE
1. Introdução
A saúde mental e física, o bem estar e a qualidade de vida, a promoção da saúde, são uma preocupação
cada vez maior dos indivíduos e das sociedades e constituem entidades e processos dinâmicos onde o
psíquico, o biológico, o social e o cultural interagem entre si e o influenciam mutuamente.
Para O´Donnell (1986), a saúde envolve várias dimensões, as quais incluem diferentes áreas que deverão
coexistir de uma forma equilibrada e que agrupa deste modo:
− a saúde emocional – inclui o equilíbrio e a gestão dos estados emocionais, das crises e das
situações de stresse;
− a saúde intelectual – inclui a educação e a realização intelectual e profissional;
− a saúde social – inclui as relações com a família, amigos, pares e comunidade;
− a saúde espiritual – inclui aspectos como a esperança, a fé, a religiosidade, a generosidade, os
objectivos de vida;
− a saúde física – inclui o estado fisiológico, os cuidados básicos, nomeadamente alimentares e
corporais, os cuidados médicos, o controlo de abuso de substâncias (álcool, drogas, tabaco, etc).
Também Thorensen e Eagleston (1985) resumem alguns princípios implicados no conceito de saúde, da
seguinte forma:
− a saúde é mais do que a ausência de patologia física específica;
− a saúde faz parte do estado habitual do indivíduo, fornecendo-lhe a energia e a capacidade para a
organização e implementação das rotinas e actividades diárias, nomeadamente alimentar-se,
descansar, fazer actividade física, relacionar-se com os outros, etc., e para a realização e
programação com sucesso de determinadas tarefas e objectivos;
− a saúde implica um processo dinâmico, temporal e adaptativo que varia em função das exigências
internas e externas percebidas pelo indivíduo e que ocorrem no decorrer do tempo;
− a saúde fica enfraquecida quando não existe suficiente energia, recursos e/ou aptidões para satisfazer
as exigências do quotidiano e conservar um sentimento de harmonia, bem-estar e satisfação;
− a saúde tem de ser compreendida e situada no seu contexto físico, psicológico, social e ecológico.
A promoção da saúde envolve os indivíduos e as comunidades como um todo, tendo como objectivos a
saúde em geral, os determinantes e as actividades que a promovem, a participação pública e o
desenvolvimento de competências e aptidões de resolução de problemas individuais e colectivos.
A conferência de Otawa (OMS, 1986) salientava as seguintes estratégias para a promoção da saúde:
− criação de ambientes físicos e sociais de suporte;
− definição de políticas públicas que promovam a saúde;
− reforço da participação activa dos indivíduos e da comunidade;
− desenvolvimento das aptidões e competências individuais;
− restruturação dos serviços de saúde.
Para muitos autores, dos quais salientamos Good (1997, 1998), Barondess (1979), Kleinman (1978, 1980),
Zempléni (1985), o conceito ocidental de doença e a língua inglesa incluem três termos, desease, illness,
sickness e três realidades diferentes que interagem entre si: a realidade biofísica, psicológica e social.
Estas realidades expressam-se através de dimensões diferentes, ou seja, “ter uma doença”, “sentir-se
doente” e “comportar-se como doente”:
− desease – representa a dimensão biomédica, a realidade biológica de uma alteração objectivamente
verificável no organismo, significa “a doença do médico”;
− illness – representa a realidade psicológica, a dimensão subjectiva, traduz as experiências individuais
do doente em consequência das alterações percepcionadas, das representações e das interacções
com o seu meio, significa a “doença do doente”;
− sickness – é a realidade ou processo psicossocial, representa uma identidade social, um estatuto ou
um papel, “comportar-se como doente”.
Kleinman (1980) desenvolveu a noção de “health care system” que reúne as noções etiológicas e
explicativas, a escolha de tratamentos e os papéis e estatutos atribuídos aquando dos tratamentos,
exprimindo-se nas sociedades complexas por uma estrutura formada por três sectores de assistência à
saúde (popular, tradicional e profissional) podendo os indivíduos utilizar os três sectores.
I – Popular é o campo leigo, não especializado, informal, onde estão incluídos o auto-tratamento, a auto-
medicação, os tratamentos recomendados pelos parentes, amigos, colegas, grupos de culto ou de auto-
ajuda. Inclui geralmente um conjunto de crenças sobre a conservação da saúde.
II – Tradicional está muito presente nas sociedades não ocidentais (africana, indígena, certas sociedades
asiáticas). Determinados indivíduos, designados como curandeiros, são considerados especialistas em
métodos de cura que podem ser seculares, sagrados ou outros.
II – Profissional corresponde à medicina científica ocidental, de que fazem parte médicos, enfermeiros,
técnicos de diagnóstico e terapêutica, etc., incluindo profissões regulamentadas e protegidas pela lei.
O modelo transaccional de Lazarus e Folkman (1984) veio abrir novas perspectivas de investigação em
saúde ao interessar-se pelas transacções entre o indivíduo e o ambiente, ou seja, pelas estratégias
cognitivas, emocionais e comportamentais que o indivíduo utiliza para se adaptar a uma situação aversiva
específica, implicando estas transacções duas fases:
avaliação da situação e dos acontecimentos (avaliação primária e secundária) – estas são
interdependentes e funcionam através de um processo de feedback, envolvendo a avaliação das
exigências criadas pela situação, a avaliação subjectiva do significado de um determinado
estímulo ou factor ambiental (avaliação primária) e a avaliação dos recursos e alternativas de
resposta disponíveis (avaliação secundária);
elaboração de estratégias de adaptação (coping) – estas podem traduzir-se por medidas
comportamentais (procura de ajuda, resolução do problema), emocionais (expressão de afectos
ou repressão) ou cognitivas (avaliação da situação, dos recursos disponíveis, procura de
informação) etc, as quais vão permitir ao indivíduo enfrentar o stresse e a adversidade, tentando
agir e modificar a situação e/ou tentando modificar-se a si mesmo.
Taylor et al. (1997), propõe um modelo ecológico de saúde que tem em conta factores ambientais globais
e factores ambientais proximais.
O meio ambiente influencia a saúde de uma forma complexa implicando numerosos factores que agem
interactivamente. Vários factores ambientais globais como o nível socioeconómico, o grupo étnico/cultural
e o país influenciam a saúde e constituem factor de risco ou factor de protecção, assim como, vários
factores do ambiente próximo, da comunidade, como a família, a escola, o grupo de pares e o meio
profissional podem interferir ao nível da saúde.
As diferenças ao nível socioeconómico e da classe social relativamente à saúde exprimem-se nas classes
desfavorecidas por:
− uma maior percentagem de mortalidade e de doença;
− um maior número de factores e comportamentos de risco para a saúde;
− um maior número de acontecimentos de vida stressantes;
− um mais fraco autocontrolo;
− mais problemas familiares, nomeadamente, mais carências alimentares, mais conflitos e violência,
mais maus tratos e alcoolismo.
Também nas comunidades pobres, há taxas mais elevadas de hipertensão, cancro, doenças
cardiovasculares e respiratórias do que nas comunidades com melhor nível socioeconómico.
As características do ambiente social próximo mais associadas a um mau estado de saúde, são uma fraca
integração social e uma má qualidade de relações sociais, ou seja, relações sociais marcadas pela
hostilidade, conflito e violência são prejudiciais para o bem-estar fisiológico e psicológico do indivíduo.
O meio social proximal proporcionado pela escola e pelo grupo d pares, pode também ser protector ou
patológico para a criança ou jovem. Os conflitos, a violência, o isolamento, a rejeição, assim como certos
modelos comportamentais, podem ser prejudiciais para estes.
Bruchon-Schweitzer et al. (1994, 2001) propõe um modelo biopsicossocial e multifactorial para estudar a
saúde mental e física de uma forma integrada, através da tomada em conta de três grupos de factores.
II – Factores Individuais/Pessoais – Estilos de vida com riscos, estratégias de adaptação, traços e tipos
de personalidade, antecedentes biomédicos, desempenham um papel protector ou de risco.
Há diferentes tipos comportamentais, por exemplo, associados ao risco de doença coronária (Tipo A) e do
cancro (Tipo C). O estilo de personalidade de Tipo A, apresenta um conjunto de características, de
atitudes e comportamentos como impaciência, rapidez, hostilidade, agressividade, ambição,
competitividade, cólera, estando mais associada ao aparecimento de doenças coronárias, ao risco de
cardiopatia posterior.
O estilo de personalidade Tipo C, é um estilo comportamental complexo, ligado a uma história particular, a
conflitos não resolvidos, a uma perda significativa, caracterizando-se por grandes defesas, dificuldades em
exprimir as emoções e afectos, sobretudo os afectos negativos, por sentimentos de culpabilidade,
impotência, cognições depressivas, atitude resignada face à dificuldade e à doença, estilo de coping
evitante, estando este tipo de personalidade mais ligada aos riscos de aparecimento ou desenvolvimento
do cancro.
Quanto aos traços de personalidade Bruchon-Schweitzer (1994, 2001), distingue alguns traços favoráveis
e desfavoráveis para a saúde. Entre os traços patogénicos distingue:
Entre os traços de personalidade favoráveis à saúde e protectores porque moderam os efeitos do impacto
dos acontecimentos adversos, a autora distingue:
O optimismo;
A auto-eficácia;
A resiliência (capacidade de defesa e recuperação de uma pessoa perante factores ou condições
adversas).
Entre os traços gerais da personalidade a autora destaca a afectividade positiva (tenacidade, curiosidade,
prazer, entusiasmo, energia) associada à vitalidade e à saúde enquanto que a afectividade negativa está
ligada à vulnerabilidade.
Nas situações de adversidade e de stresse os indivíduos com locus de controlo interno, que tendem a
percepcionar os acontecimentos como sendo controláveis pelas suas próprias acções e que acreditam que
as consequências de uma situação dependem sobretudo do seu comportamento, tendem a recorrer às
suas aptidões e recursos pessoais para a resolução de problemas e face às situações de stresse têm
menos consequências negativas enfrentando melhor a situação do que os indivíduos com locus de
controlo externo.
O conceito de coping definido por autores como Lazarus et al. (1978) e Folkman et al. (1986) designa as
estratégias específicas que o indivíduo elabora para fazer face a uma situação aversiva e de stresse, estas
estratégias e a sua eficácia dependendo da percepção e avaliação que o indivíduo faz da situação e
variando também de acordo com as características da situação a enfrentar, nomeadamente, da duração,
gravidade e grau de controlo. Constitui um processo adaptativo, específico e em constante mudança.
4. Risco e Vulnerabilidade
4.1 – Definição e factores de risco
Os factores de risco são todas as condições existentes na criança ou no seu ambiente que originam um
risco de morbilidade superior àquele que encontramos na população geral, através de estudos de
epidemiológicos. Estes riscos podem não só afectar a criança como também a sua família e são de
diferente tipo: biológicos, relacionais, sociais/ambientais e familiares.
Para Garmezy (1991), um factor de risco poderá constitui um acontecimento, uma condição orgânica ou
ambiental que aumenta a probabilidade de desenvolver problemas emocionais ou comportamentais. O
risco aumenta com a acumulação de factores de risco, podendo na criança os factores de risco serem
agrupados em três categorias:
− factores centrados na criança (prematuridade, sofrimento neonatal, patologia somática como baixo
peso à nascença e deficiências, gemelaridade, défices cognitivos, separações maternas precoces;
− factores centrados na família (desentendimentos familiares, separação parental, violência familiar,
doença crónica, mental ou física, de um dos progenitores, deficiências cognitivas, alcoolismo,
monoparentalidade, mães adolescentes e/ou imaturas, depressão materna, morte de um familiar);
− factores sócio-ambientais (pobreza, precariedade socioeconómica, desemprego, habitação
degradada, migração, isolamento social, institucionalização).
Também numa revisão da literatura sobre factores de risco para a criança ao nível psicopatológico
Grinzenko et al. (1992) salienta alguns factores específicos:
− factores específicos à criança – sexa masculino, baixas capacidades intelectuais;
− factores específicos à família – distúrbios psiquiátricos dos pais, sobretudo da mãe, conflitos conjugais
A violência, maus tratos familiares e ausência de apoio parental estão associados a uma taxa mais
elevada de sintomas psicossomáticos, a riscos mais elevados de morbilidade, de mortalidade (relação
entre os casos de doença e o número de habitantes de um aglomerado populacional), de depressão e
suicídio, principalmente na criança e adolescente, a desequilíbrios endócrinos e neurovasculares e a
perturbações de desenvolvimento pré-natal e pós-natal.
Também as consequências dos maus tratos e dos abusos sexuais durante a infância podem ter inúmeras
consequências ao nível psicopatológico, nomeadamente, aumento da sintomatologia depressiva, da auto-
mutilação, das tentativas de suicídio, dos comportamentos de agressividade e violência, do consumo de
álcool ou outras substâncias e da baixa auto-estima.
Bowlby definia desde 1980, três tipos de circunstâncias associadas ao risco de perturbações futuras,
nomeadamente depressão:
− a morte de um progenitor na infância;
− a impossibilidade de desenvolver com os pais ou substitutos uma vinculação segura e um modelo de
relação e cuidados de boa qualidade;
− a presença de pais indisponíveis.
Para Kaslow et al. (1994), um meio familiar perturbado, desentendimento conjugal, monoparentalidade,
desemprego, nível educativo baixo, relações pais-filhos conflituosas, incapacidade de dar apoio emocional
à criança e ausência de implicação dos pais na educação ou estilo autoritário, contribuem ao aumento de
risco de depressão e suicídio e de patologias posteriores na criança e no adolescente.
A situação de migração vulnerabiliza o indivíduo e a família. Com efeito as migrações internas (aldeia-
cidade) ou externa (de um país para outro) conduzem a rupturas tanto familiares como sociais e culturais,
fazendo com que o indivíduo ou a família, se sintam isolados ou desenraizados e não possam contar, por
exemplo, com o apoio psicológico e material dos restantes familiares, vizinhos, ou outros membros da
comunidade, nos cuidados à criança, no apoio a algum membro idoso ou doente da família e nas tarefas
domésticas.
As estratégias de avaliação e intervenção ao nível das crianças e das famílias têm muito precocemente de
ser inseridas nos contextos socioculturais e comunitários em que as mesmas vivem e de ter em conta os
múltiplos factores, condições e tipo de riscos que podem afectar a saúde e adaptação da criança e da
família, como sejam:
− riscos biológicos – factores biológicos que duram o período pré-natal, neonatal ou pós-natal podem
afectar a saúde e o desenvolvimento;
− riscos estabelecidos – défices de tipo sensorial, cognitivo, físico, psicossocial, anomalias neurológicas,
perturbações genéticas/congénitas, síndrome de Down (mongolismo), espinha bífida, anomalias
morfológicas (fenda palatina), perturbações atípicas do desenvolvimento, etc.;
− riscos ambientais – experiências precárias, limitadas e de carência durante os primeiros anos de vida,
história de abusos, maus tratos e violência, disfuncionamentos na relação mãe-criança,
Como mostram as investigações de Evans et al. (2000), habitações densamente povoadas e rendimento
familiar baixo têm efeitos nefastos nas crianças. No plano psicológico, estas situações estão associadas a
níveis de sofrimento psíquico elevado nas crianças e a dificuldades nas relações sociais. No plano
fisiológico, diversas medidas como a tensão arterial, a activação do sistema nervoso simpático, secreções
endócrinas indicam um elevado nível de stresse.
Anthony (1982) exemplifica as diferenças quanto aos riscos e à vulnerabilidade, através da metáfora das
três bonecas, uma de vidro, outra de plástico e outra de aço, as quais, tendo sido todas expostas ao
mesmo risco, têm resultados diferentes em termos de vulnerabilidade. Apesar de todas elas receberem
uma pancada igualmente forte, administrada por um martelo, as consequências são diferentes para cada
uma delas: a boneca de vidro parte-se; a boneca de plástico fica com cicatrizes e amachucada; a boneca
de aço fica aparentemente intacta.
Uma das características individuais relacionadas com a vulnerabilidade, que influencia positivamente ou
negativamente na capacidade da adaptação da criança e o seu temperamento. Thomas et al. (1977)
estudaram este problema e consideraram três tipos de bebés: os fáceis, os lentos e os difíceis, consoante
as suas características de reactividade, de regularidade do comportamento e de adaptação às solicitações
do meio. Estes autores concluíram que o risco psicopatológico era maior para os bebés difíceis ou lentos
do que para os bebés fáceis.
Parkes (1991) descrever dois tipos de vulnerabilidade ligadas à infância dos indivíduos marcadas pelo luto
e pela perda:
− a inquietude aprendida predispõe aos distúrbios ansiosos;
− a impotência aprendida aos distúrbios depressivos.
O autor isola na criança factores preditivos ao estado de impotência, tais como, a perda de um pai antes
dos dezassete anos, pais indisponíveis, rejeitantes ou críticos, considerando que os padrões de vinculação
formados durante a infância influenciam as ligações entre os adultos e influenciam indirectamente as
reacções à perda e à ruptura desses laços.
Para cada indivíduo o mesmo acontecimento stressante pode ser, mais ou menos, traumatizante, em
função de variáveis contextuais tais como, a cultura/etnia, o meio familiar, o meio profissional, a
personalidade, a história pessoal, o significado do acontecimento para o indivíduo, a forma como vive o
stresse, o suporte social disponível, o autocontrolo, a independência económica, etc.
Nas crianças, as respostas e sintomas pós-traumáticos, a dimensão dos distúrbios e a intensidade dos
sintomas face a situações adversas e traumáticas dependem não só da intensidade destes
acontecimentos como das diferenças inter-individuais e da resiliência, podendo traduzir-se nos
comportamentos e perturbações através de formas diversas, nomeadamente: desordens de atenção e
agitação psicomotora, insucesso escolar, psicopatias comportamentais como roubos, fugas, negação dos
acontecimentos traumáticos, enurese, sonhos e pesadelos, distúrbios psicossomáticos e alimentares,
tristeza, comportamentos regressivos ao nível comportamental e afectivo, depressão.
Esta autora refere que os traumatismos ao nível da infância estão ligados a acontecimentos exteriores do
meio, provocando transformações internas, distinguindo dois tipos de traumatismos:
1. Provocado por apenas um acontecimento traumático o qual não pode ser antecipado pela criança.
Os comportamentos de repetição, de evitamento e o estado de alerta caracterizam o estado de
stresse pós-traumático;
2. Provém da exposição repetida a acontecimentos exteriores, a sucessão de acontecimentos
stressantes permitindo a antecipação. Os mecanismos de defesa utilizados pela criança são a
negação, a repressão, a identificação ao agressor, o retorno da agressividade contra si própria e a
insensibilidade afectiva.
Bowlby (1992) foi um dos primeiros autores a utilizar o termo de resiliência insistindo no papel da
vinculação na génese da resiliência e definindo-a como «uma força moral, uma qualidade de uma pessoa
que não se desmoraliza, que não se deixa abater».
A resiliência pode ser perspectivada em termos de um processo complexo, resultante de interacções entre
as características do indivíduo e dos contextos ao longo das trajectórias de desenvolvimento. Ela implica a
capacidade de adaptação a condições biológicas e psicossociais adversas, através do desenvolvimento de
recursos intrapsíquicos e de recursos afectivos e sociais que permitem criar um funcionamento psíquico e
uma inserção social adequados.
A resiliência constitui um processo dinâmico e adaptativo que compreende a adaptação positiva numa
situação de adversidade e em que os acontecimentos vividos pelo indivíduo podem contribuir para o seu
desenvolvimento social, afectivo, cognitivo e físico.
Werner (1992, 1993) apresenta a resiliência como resultado de um equilíbrio evolutivo entre o confronto a
elementos adversos (a factores de risco e a vulnerabilidade), e os factores de protecção internos do
indivíduo (competências cognitivas, personalidade, auto-estima) e os factores externos (família alargada,
redes sociais, suporte comunitário).
Para Vanistendael (2000) a resiliência é, antes de tudo, uma capacidade, individual ou familiar, podendo
esta ser promovida através de acções terapêuticas e educativas.
Para Cyrulnik (1999), a resiliência é a capacidade para viver, ter sucesso e desenvolver-se de uma forma
positiva, apesar de situações de adversidade ou de stresse, que implicam o risco de uma saída negativa.
O grau de resiliência está relacionado com factores e processos protectores internos e externos.
A resiliência pode revelar-se a partir de uma situação difícil e adversa a qual pode assumir diversas
modalidades:
− traumatismos repetidos como violência e abusos sexuais vividos em contexto familiar ou extra-familiar;
− traumatismos brutais e pontuais como a morte de um próximo, uma catástrofe natural (tremor de terra,
incêndio), um acto terrorista, uma situação de guerra, um acidente grave de circulação;
− uma deficiência permanente ou uma doença crónica;
− situações de risco como crianças de rua e institucionalizadas, prisão, desemprego crónico, etc.
Rutter (1990) identificou quatro tipo de processos que poderão actuar como protectores em situação de
risco:
− processos que promovem a auto-estima, a auto-confiança e a auto-eficácia, através de relações de
vinculação seguras e estáveis ou do sucesso na realização de tarefas;
Rutter (1990, 1993, 1994) acentua o papel fundamental dos recursos internos do indivíduo para fazer face
a contextos exteriores desfavoráveis e a sua capacidade em recorrer aos potenciais do meio extra-familiar
quando o meio familiar não tem competências. Para este especialista, face a situações de adversidade e
de stresse, os indivíduos adoptam modos de comportamento que reenviam a três tipos de características e
processos ligados ao funcionamento do indivíduo resiliente:
1. Consciência da sua auto-estima e auto-confiança;
2. Consciência da sua auto-eficácia;
3. Abordagens de resolução de problemas sociais.
Diversos estudos dão-nos conta de vários tipos de factores protectores que favorecem a resiliência,
nomeadamente:
− características do indivíduo, como sejam, inteligência superior e temperamento fácil e dócil;
− estabelecimento de relações de qualidade, como por exemplo, existência de uma relação de
vinculação segura com uma figura significativa;
− envolvimento ideológico/político, cultural e religioso na comunidade, o qual está na origem de
«sentimento de pertença»;
− características do meio familiar – coesão e estabilidade familiar, qualidade comunicável entre os
membros da família;
− características extra-familiares, tais como, disponibilidade e acesso a redes sociais e a estruturas de
apoio/suporte social.
O termo «apoio social», também designado por muitos autores como suporte social, é geralmente utilizado
para referir cuidados, consolo, suporte, estima ou ajuda que um indivíduo sente estar a receber dos outros.
No que diz respeito a rede social, distinguem-se dois tipos de proporcionadores de suporte social:
− suporte social formal que inclui os técnicos e os serviços (sociais, hospitalares, educativos,
administrativos), os quais são organizados para proporcionarem apoio formal e assistência (sanitária,
educativa, social, administrativa, jurídica, etc.);
− suporte social informal, onde se incluem os amigos, vizinhos, familiares, os grupos sociais (clubes de
associações, igreja, grupos de apoio) que proporcionam apoio emocional, suporte na vida diária e nas
dificuldades quotidianas.
Bessoles (2001) relaciona estes traços de personalidade protectores de resiliência com organizadores
psíquicos correspondentes, capazes de serem mobilizados no processo de tratamento dos estados
traumáticos:
criatividade – capacidade para criar formações reaccionais e substitutivas;
independência – capacidade em estar sozinho, autonomização;
humor – capacidade de sublimação;
moralidade – capacidade em integrar valores;
competência relacional – implica elementos de socialização;
perspicácia – capacidade de análise, de discernimento e de discriminação;
iniciativa – capacidade de elaboração e de representação das inibições e fobias.
Para Cyrulnik (1998), o indivíduo resiliente, independentemente da idade e do sexo, apresenta algumas
características, tais como: sentido de humor, capacidade de antecipação e planificação, quociente
intelectual elevado, empatia, boas capacidades relacionais, autonomia e eficácia nas relações com o meio.
Garmezy (1991), a partir de investigações em famílias problemáticas e carenciadas, apresenta três tipos
de factores de protecção que favorecem a resiliência e que podem aumentar a auto-estima e a auto-
confiança:
Factores individuais – temperamento e capacidades cognitivas;
Factores familiares – a afectividade, o interesse e a coerência educativa da parte dos pais ou
das pessoas que dispensam cuidados à criança;
Factores de suporte e apoio – nomeadamente, um trabalhador social, um professor acolhedor e
atencioso, ou um organismo de serviço e acção social.
A partir de uma revisão da literatura , Gramezy e Masten (1991) agrupam em três níveis as principais
variáveis que favorecem a protecção nos indivíduos resilientes.
Grizenko et al. (1992), no que diz respeito a factores protectores de risco para a criança e promotores de
resiliência, salienta os seguintes factores:
factores específicos à criança;
factores específicos à família;
factores específicos ambientais.
Ao nível da resiliência, as intervenções psicológicas poderão trabalhar nos indivíduos, crianças e adultos,
alguns elementos, dos quais destacamos:
− a auto-estima e a auto-confiança;
− o optimismo e o sentimento de esperança;
− a iniciativa, a autonomia e a independência;
− as competências sociais, nomeadamente, capacidades relacionais e comunicacionais;
− as capacidades de aptidões para combater o stresse;
− a capacidade para exprimir sentimentos e emoções;
− as atitudes positivas para enfrentar os problemas e as dificuldades;
− elaboração da culpabilidade, vergonha e medo, nomeadamente, em relação aos abusos sexuais e
violências familiares;
− as relações sociais e culturais precárias e o isolamento relacionados com a rejeição, a discriminação e
a exclusão.
6. Síntese Conclusiva
A adaptação ao mundo e à sociedade não é unicamente determinada pelas características, experiências e
sentido individual, mas também pelas experiências exteriores, por um sentido colectivo, pelas significações
culturais e colectivas.
A saúde física e mental não são identidades separadas mas processos dinâmicos e interactivos, onde o
biológico, o psicológico, o cultural e o social se influenciam mutuamente.
Ao longo da vida, a estrutura e a qualidade das interacções sociais têm consequências no funcionamento
psicológico e somático dos indivíduos, no seu bem-estar, qualidade de vida e saúde.
É importante ter em conta que certos comportamentos de riscos e certos estilos de vida correspondem a
«exigências» das condições de vida, a estratégias de adaptação a condições adversas.
O conhecimento dos processos adaptativos biológicos, psicológicos, sociais, ambientais, são importantes
ao nível da compreensão, prevenção e intervenção em saúde.
A resiliência implica a capacidade do Homem para ultrapassar as dificuldades, para realizar-se e projectar-
se na vida. A criança e o indivíduo resiliente são capazes de desenvolver, mesmo em situações adversas,
estratégias de adaptação adequadas.
III. PARTE
1. Introdução
O desenvolvimento e a saúde, nomeadamente infantil, ocorrem através de trajectórias e interacções entre
o biológico, o psicológico, o social e o cultural, factores internos e externos, muito em particular, familiares,
que interagem para influenciar o desenvolvimento e a saúde da criança. O desenvolvimento e a saúde são
processos dinâmicos que resultam das interacções entre o indivíduo e os seus contextos de vida, devendo
os factores de risco ser avaliados e identificados para que se possa fazer prevenção e intervenção.
Bowlby (1951, 1969) considerava que o amor maternal e da família, as interacções afectivas eram tão
importantes à saúde mental da criança e ao equilíbrio futuro, como o são as vitaminas e as proteínas, à
saúde física.
É a mãe, ou o substituto, quem dá um sentido aos primeiros olhares, aos primeiros sorrisos, aos primeiros
choros e balbuciamentos do bebé, que constitui um “espelho de transformação psíquica”. É este espelho,
este eco reenviado à criança pela mãe ou substituto (que deverá ser estável, disponível e gratificante) que
cria no bebé o sentimento de existência, que provocará na criança o desejo de agir, pensar, falar, aprender
e criar.
A solidez destes vínculos e da segurança afectiva, construídos nos primeiros tempos de vida, o sentimento
da criança de ser amada e reconhecida, a disponibilidade e adaptação da mãe, pai ou substituto às
necessidades da criança e a qualidade dos cuidados prestados constituem factores básicos de protecção,
de desenvolvimento, de autonomia e de resiliência, condicionam as escolhas objectais futuras, do
adolescente e do adulto, e a coerência e competência dos comportamentos de mãe e de pai.
As investigações de Spitz (1946, 1968) e de Bowlby (1969) sublinham a vulnerabilidade do bebé, a sua
dependência da mãe ou do substituto, a importância das relações primárias e do ambiente familiar no
desenvolvimento e as consequências negativas das separações e carências maternais precoces e da
institucionalização para o desenvolvimento e saúde, tendo os seus trabalhos contribuído para o
desenvolvimento da teoria d vinculação primária.
O conceito de vinculação é geralmente utilizado para descrever a relação afectiva e privilegiada que a
criança estabelece com a mãe ou outra pessoa significativa nos primeiros anos de vida. Bowlby (1969)
define vinculação como a tendência dos seres humanos para estabelecerem laços afectivos sólidos com
algumas pessoas, particularmente os vínculos previlegiados da criança com os seus cuidadores, tendo
como efeito a criança ficar emocionalmente afectada quando se verificam separações ou perdas
inesperadas e/ou indesejadas.
Para Bowlby, o sistema de vinculação desempenha um papel importante ao longo de toda a vida. Esta
autor, acentua a necessidade de proporcionar à criança oportunidade de desenvolver relações
privilegiadas com os seus cuidadores, colocando em relevo três noções: a continuidade, a disponibilidade
e a sensibilidade às suas necessidades.
A qualidade das experiências relacionais precoces com os pais e outros cuidadores é preditora da
qualidade de adaptação e funcionamento interpessoal do indivíduo nas suas relações significativas na
idade adulta.
Ainsworth et al., esta autora distinguiu tipos diferentes de vinculação, segura e insegura, que reagrupou
deste modo:
− Vinculação segura – este tipo de vinculação caracteriza-se por um equilíbrio entre comportamento de
vinculação e de exploração, verificando-se uma sintonia comunicacional entre a criança e a figura de
vinculação (mãe, pai ou outros), havendo integração dos afectos positivos e negativos de presença e
ausência da figura d vinculação para a criança.
− Vinculação insegura «ambivalente resistente» - caracteriza-se pelo predomínio da vinculação sobre
a exploração e por uma hipervigilância face ao acesso ou contacto à figura de vinculação,
empobrecendo ou inibindo a exploração do meio.
− Vinculação insegura-evitante – caracteriza-se pelo predomínio do comportamento exploratório sobre
o comportamento de vinculação, isto é, após a separação da figura de vinculação, a criança afasta-se
ou ignora essa figura, em vez de procurar a sua proximidade ou contacto.
Ainsworth (1978) defina quatro características que diferenciam as relações de vinculação das outras
relações sociais:
− o processo de proximidade;
− a noção de base de segurança, envolvendo uma exploração mas livre em presença da figura de
vinculação;
− a noção de comportamento de refúgio, com o retorno à figura de vinculação quando o indivíduo
presente uma ameaça ou uma situação ameaçadora;
− as reacções involuntárias face à separação.
Diversas investigações têm evidenciado que a depressão pós-parto materna pode afectar de modo
negativo o desenvolvimento da criança, a qualidade de vinculação e a qualidade dos cuidados prestados.
Crianças cujas mães sofreram depressão pós-parto apresentavam uma vinculação desorganizada ou
insegura durante o segundo ano de vida.
Bretherton (1980) salientou os efeitos de negligência, rejeição e maus-tratos vividos na infância pelos pais,
nos modelos de vinculação, mostrando que as experiências traumáticas na infância tornam as mães e os
pais pouco sensíveis às necessidades da criança e dificultam a construção de vínculos seguros
mãe/pai/criança.
Marvin et al. (1977) mostrou que nos Hausa, na Nigéria, as crianças são educadas numa grande
proximidade com as figuras de vinculação, que respondem de forma rápida às suas solicitações, não
permitindo à criança explorar sozinha o meio devido ao medo de perigos para a criança, havendo uma
atitude muito protectora da parte das figuras de vinculação, que são várias.
No grupo Efé, na Zâmbia, a partilha das tarefas entre várias figuras de vinculação é muito desenvolvida
durante o dia, a fim de assegurar os cuidados físicos e responder o mais rápido possível às necessidades
da criança. Contudo, durante a noite, é só a mãe que se ocupa da criança.
As competências precoces preparam a criança para uma mulher adaptação posterior. As experiências
precoces vivenciadas positivamente dão à criança, ao indivíduo, uma maior capacidade para mobilizar
recursos adaptativos, para se confrontar e lidar de forma mais adequada com novas exigências sociais,
emocionais, cognitivas e relacionais. Contrariamente, as experiências precoces negativas e a insegurança
de vinculação podem aumentar a probabilidade de algumas perturbações na infância e de psicopatologia.
O desenvolvimento motor e sensorial está relacionado com factores culturais, mas, também, com o meio
social, com o estado de nutrição e a qualidade de cuidados e tipos de estimulações à criança.
A teoria da vinculação veio trazer contributos a vários níveis, constituindo uma via de investigação
importante para a compreensão da psicopatologia infantil e do adulto. Também ao nível da pra´tica clínica,
social e educativa vaio trazer inovação e mudança.
A teoria da vinculação veio trazer também contributos ao nível da melhoria do acolhimento à criança e da
modificação das práticas em vários sectores, dos quais destacamos:
− nas condições de hospitalização das crianças;
− no acolhimento à criança nas creches e nos centros de apoio social às crianças.
A família constitui um todo social, com especificidades e necessidades próprias, inserida e influenciada por
um sistema mais vasto de interacções sociais alargadas à comunidade e à sociedade e pelas redes
sociais formais e informais. O apoio à criança passa também por apoiar a família, como um sistema
interactivo, e a própria comunidade.
Collomb et al. (1969, 1973), constatando que em crianças apresentando as mesmas carências de
proteínas, algumas desenvolviam kwashiorkor e outras não, analisaram dados sociodemográficos e
familiares das crianças que desenvolviam este síndrome e as representações e relações no seio das suas
famílias, tendo concluído o seguinte:
− o kwashiorkor é mais frequente nas cidades do que nas zonas rurais;
− é mais frequente nos grupos e famílias que vieram do meio rural para o meio urbano;
− é raro surgir nas famílias e grupos urbanos bem integrados socialmente e na comunidade;
− as famílias que têm crianças com kwashiorkor não têm falta de recursos económicos e alimentares,
não justificando os critérios socioeconómicos habituais este fenómeno;
− o kwashiorkor afecta, sobretudo, o primeiro filho da mesma fratria uterina, por vezes, o segundo e,
raramente, os outros;
− o kwashiorkor não se integra no sistema clássico de representação da doença em África (agressão por
um feiticeiro ou por um espírito), sendo associado a doenças como a diarreia ou a rubéola.
Como várias investigações mostram, as variáveis mais associadas a problemas de saúde, por exemplo
nas crianças, é a falta de afecto e de apoio emocional e um ambiente de violência e conflito na família.
Nas famílias problemáticas, as crianças e jovens elaboram, sobretudo, estratégias disfuncionais face a
acontecimentos stressantes quotidianos, nomeadamente estratégias centradas na emoção: cólera,
ansiedade ou desânimo.
Existem três aspectos do meio familiar que podem afectar a saúde e o desenvolvimento da criança:
− um ambiente carenciado, conflitual, hostil, violento e abusivo;
− relações pais-crianças caracterizadas pela falta de afecto e não fornecendo o apoio afectivo e material
necessário;
− um estilo educativo autoritário e dominador ou incoerente e permissivo, não proporcionando à criança
regras nem bases estruturais.
Os acontecimentos e situações de risco antes dos dezoito anos mais associados a dificuldades e
problemas de saúde futuros são problemas de carácter afectivo duradoiros, por ordem de gravidade
decrescente:
− carências afectivas;
− desentendimentos e disputas familiares;
− ausência dos pais durante, pelo menos, um ano;
− doença ou deficiência grave da mãe;
− doença ou deficiência grave do pai.
É através dos cuidados parentais, muito em particular maternais, pelo contacto físico com a mãe, o pai ou
a pessoa que a transporta, pelas variadas estimulações vestibulares, tácteis, cinestésicas, que a criança
estabelece as suas primeiras relações e as suas primeiras comunicações. Ela descobre assim o mundo,
entra numa cultura, conhece o amor e a ternura e experimenta o sentimento de segurança.
No comportamento de cuidados ao bebé, Ainsworth (1978) distingue duas dimensões relacionadas com a
vinculação da criança aos pais:
Winnicott (1969) fala de «preocupação maternal primária» para designar a disposição particular da mãe
para responder com sensibilidade às necessidades da criança e para lhe proporcionar cuidados
«suficientemente bons».
Nos cuidados que a mãe ou o substituto materno dispensa à criança, Winnicott distingue três tipos de
actividades:
− o «holding» (a mãe suporte psíquico e físico, envelope protector; releva da sensibilidade materna);
− o «handling» (a mãe prestadora de cuidados físicos, proporcionadora de estimulações tácteis,
auditivas, visuais, cinestésicas, no decurso das numerosas interacções e cuidados básicos);
− o «object-presentering» (a mãe proporcionando a abertura e acesso progressivo da criança aos
objectos e ao mundo, nas suas diferentes dimensões e complexidade).
Como refere Belsky (1999), o sistema de cuidados à criança é produto de uma interacção complexa entre
vários factores e determinantes, como sejam as influências contextuais próximas (personalidade dos pais,
temperamento da criança, o tipo de comunicação familiar, o contexto da família e do casamento) e outros
factores como influências biológicas, sensoriais, cognitivas e culturais, desenvolvimento neurobiológico da
mãe, a sua história pessoal, o stresse e o suporte social.
As situações de stresse e ansiedade vão reflectir-se na qualidade do holding e do handling, no modo como
a criança se inscreve no psiquismo materno e paterno e na maneira como o bebé, a criança é cuidada,
manipulada, tida nos braços.
A falta e/ou inadequação de cuidados à criança são responsáveis por muitos disfuncionamentos e
perturbações de desenvolvimento e personalidade que afectam a saúde mental e física da criança e o seu
desenvolvimento e adaptação futura, nomeadamente:
− a negligência permanente das necessidades físicas;
− a negligência permanente das necessidades psicológicas e emocionais básicas, como sejam, afecto,
protecção, proximidade e estimulação;
− as mudanças repetidas das pessoas que cuidam da criança, dificultando a formação de vínculos
seguros e estáveis;
− os princípios rígidos e contraditórios de cuidados à criança.
Nos cuidados e comunicação precoce, podemos falar de «estilos culturais de maternage» e estilos
comunicacionais materno e paterno, segundo o tipo de interacções predominantes.
A comparação transcultural das práticas dos cuidados e de desenvolvimento da criança em idade precoce
vem salientar estes “estilos culturais de maternagem”, em correspondência com as representações
subjacentes, caracterizando-se os mesmos segundo a predominância proximal ou distal das interacções, o
modo de estimulações e contactos com a criança, a utilização ou não de dispositivos materiais no decurso
dos cuidados (por exemplo, na toilette a utilização de instrumentos como banheira, bacia, etc., ou o corpo
do adulto), podendo assim distinguir-se três tipos de estilos:
− “Estilos de maternagem de tipo proximal” - constitui o estilo interactivo predominante em África, na
Ásia e na América Latina, por exemplo, no Brasil. Neste, predominam as interacções tácteis,
cinestésicas, vestibulares e a proximidade corporal entre o adulto e a criança;
− “Estilo de maternagem de tipo distal” - é predominante e característico do tipo de maternagem
ocidental, principalmente norte-americano e norte-europeu. Neste estilo, as interacções passam,
sobretudo, pela voz e pelo contacto visual. Os contactos corporais não são predominantes, mas as
interacções verbais e visuais são muito ricas e predominantes;
− “Estilo de maternagem de tipo proximo-distal” - característico do estilo de maternagem português.
Neste, coexistem harmoniosamente as interacções tácteis e cinestésicas, características do estilo
proximal, e as interacções pela voz e pelo olhar, características do estilo distal.
O estilo materno é mais calmo, mais intelectual e «pedagógico», caracterizando-se por uma tendência a
vocalizar, a cantar, a acariciar a criança, a explicar e a apresentar objectos. O estilo paterno é mais físico,
mais estimulante e «ousado» e menos visual do que o das mães, caracterizando-se por uma tendência a
agitar a criança, a abaná-la, a tocá-la mais fisicamente, a interagir de uma forma lúdica, rítmica, divertida e
destabilizadora.
Pelo seu modo de interacção distintivo, o pai intervem no processo de separação da díade mãe-criança,
favorecendo o acesso da criança à exploração, à independência e à autonomia. O estilo interactivo físico e
excitante do pai, qualifica-o na função de estimulador e emancipador.
As etnoteorias, também designadas por teorias populares ou «naîve», são teorias implícitas que
contribuem para modelar as condições de desenvolvimento e educação, tratando-se de um saber empírico
que os indivíduos e os grupos transmitem de geração em geração, particularmente no seio das famílias,
sofrendo transformações espaciais e temporais.
Nalgumas culturas, uma particularidade comportamental ou física da criança pouco comuns, pode induzir
representações e interpretações que vão condicionar a concepção e as relações com a criança, por
exemplo, na África do Oeste, o caso da criança nit-ku-bon, segundo a terminologia wolof, má pessoa. É
uma criança com um choro particular, agitada ou taciturna, frágil, recusa-se a mamar, engorda ou
emagrece, considerando-se que deseja voltar aos espíritos. É uma criança considerada pelo grupo social
como «marginal», «estranha», com uma identidade incerta, competitiva, desejando ultrapassar os irmãos
ou mesmo eliminá-los, numa cultura onde predomina a cooperação familiar e grupal.
Também na África do Oeste, por exemplo, no Senegal, em caso de mortes sucessivas de crianças numa
mesma fratria, sobretudo, nos três primeiros anos de vida e depois do desmame, (devido a doenças
infecciosas, parasitárias, má nutrição ou outras), utiliza-se a expressão tjird a paxer, dando as
representações tradicionais a estas mortes uma explicação cultural e psicológica. A expressão tjird a paxer
serve para designar a criança que parte e que retorna, significando espírito ou ser maléfico, porque retira à
mãe a possibilidade de assumir a sua principal função, a maternidade.
Devereux (1949) registou que nos Mohaves, onde predomina a concepção que o bebé compreende a
linguagem do adulto desde o nascimento, não existe linguagem bebé, contrariamente ao que acontece na
quase totalidade das sociedades, em que o adulto modela não só o discurso, mas também a altura e
intensidade da voz, em função das competências linguísticas da criança.
Konner (1976), na África Austral, realizou investigações no grupo étnico Kung, tendo verificado que os
bebés pertencentes a este étnico eram na sua maioria capazes de se manterem sentados sem apoio
desde a idade de 50 dias, portanto, antes dos dois meses.
Também Mead (1930) nos dá conta de que em Manus, os cuidados à criança e o comportamento dos pais
são acompanhados pela exigência que a criança faça esforços e adquira grande habilidade física
precocemente, sendo cada progresso e esforço da criança anotados e encorajados e cada hesitação ou
insucesso repreendidos. Segundo a autora, em Manus, a ausência de equilíbrios e segurança física e a
falta de auto-confiança são praticamente desconhecidas dos adultos.
Em Israel, os trabalhos de Ninio (1979) em dois grupos de mães diferentes estratos sócio-profissionais e
em Portugal (Ramos, 1990, 1993) mostraram a relação entre as crenças das mães sobre as
potencialidades comunicacionais e de desenvolvimento dos seus bebés e os contextos sociais.
Do mesmo modo, trabalhos de Lester e Brazelton (1982) mostraram a influência de factores pré e pós-
natais no desenvolvimento, em dois grupos de recém-nascidos zambianos e americanos. Estes autores
registaram uma grande estimulação dos bebés pelas mães zambianas, ou seja, bastante contacto corporal
e estimulação, sendo o bebé constantemente tomado nos braços por toda a família e nunca ficando
sozinho. Por seu lado, os bebés americanos passavam a maior parte do tempo isolados no quarto e
deitados no berço, tendo as mães poucas estimulações e contactos com eles, porque temiam as infecções
e pensavam que eles tinham necessidade de repouso.
Investigações de Devries e Devries (1977), em mães do grupo Digo, população da África do Leste,
mostraram as atitudes educativas e estimulações das mães Digo reflectem as suas concepções e
expectativas em relação à criança, a qual desde as primeiras semanas de vida é considerada um parceiro
activo.
Para estas mães, a criança está preparada para aprender desde o seu nascimento e entre 3 a 5 meses de
idade, ela deve atingir um bom grau de competência social e motora.
Também investigações de Brill et al. (1989), salientam que as mulheres de etnia Bambara, do Mali,
consideram que a criança deverá ser capaz de manter-se sentada desde os quatro meses e adquirir o
controle do esfincter no primeiro aniversário, enquanto que as mães francesas indicam sete meses para a
criança ser capaz de sentar-se e vinte e quatro meses para o controle do esfincter.
O «ideal» de «bebé fácil» seja o bebé que come bem, dorme bem, não chora, não está doente, reunindo-
se ao do «bebé bem desenvolvido», ou seja, um bebé são, com um bom peso e um bom aspecto físico.
Neste estudo são sobretudo as pessoas mais velhas, de meios rurais e de meios socioeconómicos mais
desfavorecidos, aquelas que se mostram mais tolerantes e menos exigentes no que diz respeito às
normas de desenvolvimento da criança, considerando que é necessário respeitar o ritmo e a «natureza»
da criança, não sendo bom «ir contra a natureza», «despertar demasiado cedo o bebé», dando sobretudo
atenção ao apetite e ao sono da criança.
Por seu lado, nos meios socioculturais e económicos mais favorecidos (com maior incidência nas
populações mais jovens e de meios urbano) é mais valorizado um bebé «activo, comunicativo, vivo,
simpático, alegre, atento», bem «desperto» tanto no plano psíquico, como físico. As preocupações
referentes à interacção, à atenção, à boa disposição, à compreensão, reflectem o ideal de
desenvolvimento e facilidade para estes.
O “nicho de desenvolvimento” tem em conta três sub-sistemas principais que funcionam em interacção:
− os contextos físicos/ecológicos e socioculturais nos quais a criança vive o seu quotidiano que
determinam o tipo de cuidados e estilos interactivos;
− As tradições culturais, comportamentos, práticas educativas, de cuidados e protecção. Estes
comportamentos e práticas são adaptados aos contextos ecológicos e socioculturais em que vivem os
membros da família e a comunidade, correspondendo a comportamentos de rotina diária e/ou
estratégias de adaptação a constrangimentos do meio;
− As representações sociais do desenvolvimento e educação, as etnoteorias e crenças dos pais e
educadores sobre a criança, o seu desenvolvimento e educação.
de controlo de determinado comportamento, tendo em conta o que é oportuno organizar num dado
momento.
Assim, este conceito tem em conta as interacções recíprocas entre os diferentes elementos estruturantes
do «nicho de desenvolvimento», mas igualmente as características do «campo de acções possíveis» que
cria as condições de desenvolvimento, socialização e aprendizagem.
A cultura estrutura o indivíduo por intermédio de padrões culturais transmitidos, os quais constituem
modelos, regras e lógicas culturais fornecidas à criança, desde o seu nascimento, pela família e pela
comunidade.
Mead (1930), Bateson e Mead (1938) numa investigação consagrada ao estudo da primeira infância e da
educação na Nova-Guiné, salientam as modalidades de transmissão cultural através de um processo de
aprendizagem que designam por enculturação. Trata-se de um processo de incorporação da cultura, um
processo de interiorização pelo indivíduo das tradições, sistemas de referência e valores do seu grupo,
processo que se faz essencialmente por via inconsciente. Distingue-se da socialização, a qual resulta,
sobretudo, das influências exercidas conscientemente sobre o indivíduo pelo meio envolvente com o qual
está em interacção.
Quanto ao processo de aculturação, este foi definido pela primeira vez por Herkovits em 1938 (Ramos,
1993) como o conjunto de fenómenos que resultam do contacto directo e contínuo entre grupos de
indivíduos de culturas diferentes, com mudanças subsequentes nos tipos e modalidades culturais de um
ou dos restantes grupos.
O indivíduo não é somente o produto da sua cultura, mas também a constrói, a transforma e a recria, em
função de problemáticas diversificadas e dos contextos sócio-históricos e político-culturais, marcados pela
interacção, dinamismo, diversidade e complexidade.
que podem passar despercebidos sem esta dupla perspectiva metodológica de pesquisa.
Ao nível metodológico, a integração do estudo das representações, dos comportamentos e práticas dos
adultos e dos contextos onde se processa a socialização e o desenvolvimentos da criança implica uma
abordagem holística e interaccionista e o recurso a diferentes instrumentos e métodos, o que nos vai
permitir apreender a “situação total”.
A primeira observação fílmica em meio natural sobre a infância foi realizada por L. Lumiére, mostrando a
vida quotidiana de uma família e a criança no seu meio cultural e familiar, através do filme “Le goûter de
bébé”.
Em relação ao método fílmico, é igualmente importante salientar um casal, Bateson e Mead (1942), os
quais foram pioneiros na utilização de uma forma sistemática e metódica em meio natural dos meios
audiovisuais (fotografia e filme) a fim de poderem observar e compreender a dinâmica cultural e os
diferentes processos educativos nos vários grupos que estudaram.
J. Rouch (1948, 1968, 1975) foi igualmente pioneiro na utilização do filme antropológico como método de
investigação em meio natural, muito em particular nas actividades rituais.
A aliança da observação e da escuta, da linguagem verbal e não verbal que o documento fílmico
proporciona constitui ao nível teórico e metodológico, um elemento essencial em diferentes domínios,
nomeadamente, em Ciências da Saúde, em Ciências Sociais e em Ciências da Educação.
Ao mostrarmos e desenvolvermos as imagens aos seus protagonistas, eles, de alguma forma, participam
no processo de construção do filme e de análise das imagens, clarificando ou acrescentando elementos
que não são claros ou explícitos para o investigador e para os próprios protagonistas.
8. Síntese Conclusiva
O conhecimento da variedade das representações, práticas e contextos de desenvolvimento e educação
da criança revela-se indispensável, tanto ao nível da investigação, como da intervenção, muito em
particular, no que diz respeito à prevenção psicológica e social precoce e à formação dos profissionais da
primeira infância, no campo social, da saúde ou educação.
É indispensável uma acção preventiva e interventiva o mais precoce e alargada possível, sendo o apoio à
primeira infância, a primeira etapa essencial de toda a politica de prevenção e intervenção ao nível da
saúde. È igualmente necessário, seja nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, promover a
saúde mental e física da criança, melhorando o diagnóstico, o tratamento, a sensibilização do público, a
comunicação e a educação parental.
IV. PARTE
1. Introdução
O processo migratório, envolvendo rupturas espaciais e temporais, transformações diversas,
nomeadamente mudanças psicológicas, físicas, biológicas, sociais, culturais, familiares, políticas,
implicando a adaptação psicológica e social dos indivíduos e das famílias e diferentes modalidades de
aculturação, constitui um processo complexo, com consequências ao nível da saúde física e psíquica e do
stresse psicológico e social.
O itinerário do imigrante aos cuidados de saúde é marcado pelas suas necessidades mas também pela
sua cultura de origem, pelas suas crenças e práticas, pelo seu conhecimento da cultura, língua e redes do
país de acolhimento. Problemas comunicacionais e incompreensão poderão surgir, nomeadamente ao
nível das concepções de saúde e doença, das formas de curar e prevenir, dos programas de promoção da
saúde e sua inadequação aos destinatários e ao nível do atendimento e dos cuidados de saúde.
A grande maioria dos imigrantes está distribuída por quatro sectores: trabalhadores indiferenciados,
trabalhadores especializados da construção civil, vendedores ambulantes e empregados de serviço
doméstico (SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras).
O número de alunos de origem estrangeira concentra-se sobretudo ao nível do ensino básico (1.º e 2.º
ciclos), verificando-se uma diminuição crescente à medida que se eleva o nível de estudos, ou seja, ensino
secundário e superior, indo ao encontro de outros estudos internacionais sobre estes alunos.
Destas minorias, os alunos africanos (muito em particular, os cabo-verdianos) são os que detêm os
resultados escolares mais desfavoráveis, apresentando elevadas taxas de reprovação e abandono escolar.
precariedade social, o isolamento sociocultural e familiar em que vivem estas crianças e suas famílias,
com os problemas de adaptação migratória.
A escola constituiu para a criança e família migrante um espaço importante de contacto, integração e
inclusão na sociedade de acolhimento e desempenha um papel muito importante para a criança e a sua
família. As famílias depositam na escola (a qual muitas não conheceram, nem frequentaram) as
esperanças e o êxito social não concretizados no país de origem, expectativas que a escola não está,
muitas vezes, em condições de oferecer.
Contudo, a escola em que os pais imigrantes depositam confiança, esperança e via para uma profissão e
êxito social dos seus filhos não consegue responder a estas expectativas, aparecendo, muito
frequentemente, como elemento de exclusão, de reprodução de estereótipos e preconceitos, de insucesso
e de desigualdade, não proporcionando uma efectiva igualdade de oportunidades para os diferentes
grupos étnico-culturais presentes na escola.
Situado entre dois países, duas culturas, duas línguas “o migrante torna-se um indivíduo portador e agente
de cultura, mediador entre dois universos sociais e culturais diferentes.
O processo migratório envolve dois pólos, que o indivíduo migrante terá de gerir.
No segundo pólo, trata-se de “imigrar”, de elaborar, de reconstruir individualmente e num curto espaço de
tempo o que diferentes gerações elaboraram e transmitiram pacientemente.
A vivência migratória envolve a capacidade de fazer face à mudança que a decisão migratória origina, a
capacidade de gerir os sentimentos de abandono, angústia e perda que a ruptura afectiva, física e cultural
desencadeia e a capacidade de reconstrução, de incorporação de elementos do novo meio.
A migração implica no seu processo diferentes fases que o indivíduo migrante terá de gerir. Temos uma
primeira fase de rupturas e transição físico-espacial, marcada pelas dificuldades físicas, habitacionais,
sociais, comunicacionais e relacionais com a sociedade receptora. Segue-se a fase de confronto, de
aprendizagem. Trata-se de fazer face, de reintegrar novos hábitos, valores, padrões de vida. O confronto e
o choque cultural podem constituir fonte de stresse e risco para a saúde mental e física. Numa terceira
fase, o indivíduo vai adoptar diferentes comportamentos e estratégias de adaptação facilitadoras, ou não,
de integração. Há uma consciencialização e decisão do carácter definitivo, ou não, da escolha migratória.
Berry (1989, in Ramos, 1993) distingue quatro tipos de estratégias de adaptação de que resultam quatro
modos de aculturação:
− Assimilação – Processo unilateral, pelo qual os membros de um grupo social, geralmente minoritário,
se apropriam dos elementos culturais de um outro grupo, geralmente maioritário, em detrimento dos
seus padrões culturais e identidade, para se adaptarem às exigências de uma situação desigual de
encontro entre grupos.
− Integração – Manutenção parcial da identidade cultural do grupo étnico-cultural de origem, com uma
participação, mais ou menos activa, dos indivíduos na nova sociedade.
− Separação – Quando o indivíduo tenta preservar a sua identidade cultural, sem procurar estabelecer
relações com a comunidade dominante. Quando é o grupo dominante que impede o estabelecimento
de relações e obriga o indivíduo ou o grupo minoritário a manter as suas características culturais fala-
se de segregação. A diferença essencial entre separação e segregação situa-se no desejo e no poder
que o grupo não dominante tem de decidir a sua orientação.
− Marginalização – O grupo dominante impede o indivíduo de participar no funcionamento das
instituições e na vida social do grupo maioritário, devido a práticas discriminatórias.
O modelo bidimensional proposto por Berry (1987, 1989, 1997) situa as estratégias de inserção dos
indivíduos imigrados entre duas dimensões: a importância dada à herança cultural do grupo de origem e a
importância dada à adaptação da sociedade em que se inserem.
Clanet (1990, p. 63) fala-nos de “integração pluralista”, para designar um modelo de integração que
“combina de maneira paradoxal a assimilação, a diferenciação e a síntese” e a qual considera fundamental
para a coexistência de grupos culturais minoritários no seio de um grupo cultural dominante e maioritário.
As práticas de saúde e educativas das sociedades industrializadas, muito dependentes dos especialistas
da infância, podem colocar em causa os comportamentos tradicionais da famílias migrantes, os pais e as
mães pensando que os seus saberes são maus ou ultrapassados. A situação de conflito cultural e a
insegurança e ansiedade daí resultantes estão na origem de “conflitos maternos” muito prejudiciais para a
relação mãe/criança e interacções familiares.
Falander (1983) salienta que as dificuldades psicológicas, económicas e de adaptação no decurso dos
primeiros anos de imigração podem ter repercussões directas na relação mãe – criança.
Candil e Frost (1972) dão-nos o exemplo de mães americanas de origem Japonesa, as quais sofreram
uma dupla influência, ou seja, elas conservam certas particularidades das mães Japonesas e adoptam, ao
mesmo tempo, alguns comportamentos típicos das mães americanas.
Bastide (1969) salienta que, nas sociedades onde a coesão do grupo migrante é fraca e a aculturação é
grande, constata-se uma ruptura das tradições que origina uma perda de referências e de sentido,
relativamente às práticas de cuidados e educação das crianças.
A investigação de Ramos (1993, 1996) com famílias imigrantes portuguesas na região de Paris, sobre os
cuidados às crianças, mostra que a aculturação da primeira geração corresponde ao esquema proposto
por Abou (1981), ou seja, ela é “parcial” e “sectorial”, adoptando os traços e os modelos de cultura
dominante no sector público das relações secundárias, ao mesmo tempo que mantêm o seu próprio
código cultural no sector privado das relações primárias. Os cuidados à criança fazem parte deste sector
privado das relações primárias.
Esta poderá ser uma aculturação sem problemas, caracterizada geralmente por uma aliança harmoniosa
das práticas tradicionais (modo de transportar a criança, massagens, embalar na rede, nos braços, nas
costas, manutenção da língua materna, etc.), com as práticas originárias da modernidade e do
desenvolvimento, como a utilização de tecnologia doméstica e o recurso aos cuidados e estruturas de
saúde disponíveis no país de acolhimento.
Temos uma aculturação de tipo intermédio, também designada de semi-aculturação, onde as famílias e as
mães adoptam em grande número os comportamentos e hábitos da sociedade de acolhimento, os hábitos
ocidentais considerados como mais “modernos” e “prestigiantes”.
tradicionais sobre as quais se apoiarem, por vezes mães muito jovens, estas famílias e, sobretudo as
mães, não encontram nelas mesmas, nem no meio familiar e social, os recursos necessários para se
adaptarem a um novo meio e cultura e para cuidarem dos seus filhos.
Para Selye (1979), as “doenças de adaptação” seriam o resultado da incapacidade ou diminuição dos
mecanismos de reacção do organismo para se defender dos agentes stressores de uma forma adaptativa,
dando o seu modelo ênfase particular aos aspectos biológicos do stresse. O stresse é para este autor “A
resposta não específica do corpo a qualquer exigência”.
As teorias de Lazarus et al. (1984) e de Seligman et al. (1975, 1987) consideram o stresse como algo que
ocorre sempre que os acontecimentos são avaliados como potencialmente prejudiciais ou quando os
indivíduos percepcionam os seus recursos pessoais ou sociais como insuficientes para fazer face ou
impedir um resultado aversivo.
O stresse ao nível individual poderá estar, por exemplo, relacionado com uma doença ou deficiência grave,
tratamentos e intervenções médicas. Outros factores individuais na infância como maus tratos, abuso
sexual, morte de um progenitor, podem constituir fonte de stresse e de distúrbios psíquicos e físicos.
O stresse ao nível familiar está ligado, entre outros, à organização, estrutura e funcionamento familiar, a
mudanças na família (separação, morte, chegada de um novo membro), a problemas comunicacionais
intrafamiliares, os quais poderão desencadear um número importante de conflitos e patologias
psicológicas e orgânicas.
O stresse social está relacionado com as condições de vida e ambiente social, onde diversos factores, tais
como, o nível socioeconómico, o desenvolvimento do país, a estrutura da comunidade, a etnia/ cultura, a
migração podem intervir.
O modelo transaccional de Lazarus e Folkman (1984) veio colocar em relevo as transacções entre o
indivíduo e o meio e os processos de avaliação e adaptação elaborados pelos indivíduos para enfrentar a
adversidade e o stresse.
O conceito de coping pode envolver assim não só as estratégias comportamentais externas e conscientes,
como também os processos psíquicos e as características mais de carácter inconsciente e internalizadas.
Uma revisão da literatura sobre as estratégias de coping dá-nos conta de diferentes tipos de estratégias:
− coping centrado no problema – visa controlar o problema na origem do sofrimento do indivíduo,
afrontar a situação para resolver o problema;
− coping centrado na emoção – visa a regulação das tensões e do sofrimento emocional originados
pela situação;
− coping evitante – visa reduzir, através de estratégias passivas (fuga, evitamento, negação,
resignação, fatalismo, distracção), a tensão emocional do indivíduo;
− coping vigilante – visa através de estratégias de implicação, vigilância e acção (suporte social,
procura de informações e de meios) enfrentar a situação de modo a resolvê-la.
A variabilidade e a eficácia das estratégias de coping estão relacionadas com as características individuais
e com o tipo, gravidade, duração e grau de controlo da situação enfrentada.
Alguns autores consideram o coping como uma forma de resiliência, podendo as estratégias de coping
contribuir para o fenómeno da resiliência.
Vários autores sublinham que os indivíduos são particularmente vulneráveis ao stress em certos períodos
de desenvolvimento, correspondendo às etapas de transição e de aquisições estruturais. Nos primeiros
anos de vida, os bebés e as crianças de idade pré-escolar são particularmente sensíveis ao stresse
ambiental e à falta de apoio familiar e parental; no período das grandes aprendizagens escolares (leitura,
escrita, cálculo), particularmente dos seis aos dez anos, e na adolescência, período de grandes
transformações psicofisiológicas e de rupturas diversas.
A relação entre stresse e acontecimentos significativos de vida foi analisada por Holmes e Rahe (1967)
através de uma escala de reajustamentos social.
Os acontecimentos significativos de vida são factores de stresse, na medida em que obrigam, muitas
vezes, a uma modificação de hábitos, de relações sociais, de padrões de actividade, a alterações no estilo
de vida.
Eckenrode e Gore (1981) analisam o stresse em termos de acontecimentos de vida e redes de apoio
existente, acentuando um conjunto de variáveis, como a saúde, a educação e o estatuto socioeconómico
que determinam o impacto de um dado agente de stresse. Para estes autores, as redes sociais são uma
forma privilegiada de compreender as origens de perturbação, os problemas psicossociais e os níveis de
isolamento em que os indivíduos se encontram e o papel do suporte social, actuando este apoio como
uma variável atenuante e preventiva do stresse.
No que diz respeito à rede social, distinguem-se dois tipos de proporcionadores de suporte social:
Sobre os efeitos do suporte social na saúde, Singer et Lord (1984) distinguem quatro dimensões:
− o suporte social constitui um recurso positivo para a saúde e para fazer face à adversidade;
− a falta de suporte social é fonte de stresse;
− a perda de suporte social é geradora de stresse;
− o suporte social constitui um factor protector contra as consequências e perturbações provocadas pelo
stresse, constituindo um mediador ou moderador do stresse.
O stresse poderá ter um impacto negativo na saúde física e mental dos indivíduos, estando na origem de
uma grande variedade de problemas psicológicos, psicossomáticos e físicos.
Os indivíduos sob stresse têm mais probabilidade de se envolverem em comportamentos não saudáveis,
como recorrer a tranquilizantes, álcool, tabaco e drogas, de adoptarem piores hábitos alimentares e de
realizarem pouco exercício físico, comportamentos que podem tornar-se prejudiciais à saúde.
Acontecimentos negativos de vida geradores de stresse estão relacionados com certas patologias como
episódios delirantes ou depressivos, tentativas de suicídio, aumento de hospitalizações por sintomas e
episódios esquizofrénicos.
A exposição repetida e prolongada ao stresse gera alterações na resposta imunitária (McKinnon et al.,
1989).
para Ogden (1999) o stresse está associado a numerosas mudanças psicofisiológicas que afectam a
saúde, nomeadamente:
− mudanças em factores psicológicos, como o aumento do medo, ansiedade, cólera e diminuição das
capacidades cognitivas;
− aumento de factores físicos, nomeadamente a tensão arterial, o ritmo cardíaco e o potencial muscular;
− excitação do sistema simpático e aumento de hormonas de stresse como as catecolaminas e
corticosteróides.
Para Grinberg (1986), a reacção mais comum face à experiência de migração é a angústia.
A criança migrante tem de fazer face a uma dupla vulnerabilidade: a dos pais, ligada ao processo
migratório, e a sua, relacionada com a “clivagem” sobre a qual é estruturada. Apesar destas rupturas e
fragilidades, muitas crianças apresentam comportamentos resilientes e conseguem ultrapassar o risco e
ter êxito nas dificuldades a que são submetidas.
O facto da maior parte das migrantes serem originários de meios rurais pobres ou de sociedades não
industrializadas e de terem um baixo nível de escolaridade, particularmente as mulheres, muitas das quais
não frequentaram a escola, torna mais difícil a sua integração em meio urbano industrializado e os
cuidados e educação da criança. Para além disso, o trabalho assalariado das mães no país de
acolhimento, não exercido frequentemente no país de origem, vem trazer muitas mudanças nas relações
familiares e sócio-educativas.
Para Berry (1974, 1987, 1989) (In Ramos, 1993), o stresse social e psicológico devido à aculturação
manifesta-se por problemas psíquicos (depressão, angústia, ansiedade, confusão) e por problemas
identitários, de marginalização, sentimentos de insegurança, perda de auto-estima, etc. para este autor, o
stresse de aculturação poderá ser mais ou menos importante, mas não é inevitável.
Segundo Berry, as relações entre aculturação e stresse são influenciadas por todo um conjunto de
factores como as características sócio-demográficas e psicológicas do indivíduo, as particularidades da
sociedade dominante, os tipos de aculturação e os modos de aculturação.
Em relação às características das sociedades, Murphy (1965) in Berry (1989) refere que a probabilidade
de um nível de stresse elevado é maior nas sociedades monoculturais e assimilacionistas, do que nas
sociedades tolerantes e pluralistas.
A adaptação cultural, social e da saúde do imigrante é dificultada por alguns obstáculos, nomeadamente:
− desconhecimento ou banalização das diferenças em favor das necessidades universais do ser
humano;
− dificuldades e resistência dos profissionais, muitos dos quais consideram que pertence apenas aos
imigrantes o trabalho de adaptação e mudança;
− desconhecimento ou dificuldade em tomar em consideração as circunstâncias migratórias no
atendimento e planificação dos cuidados e programas de saúde;
− maios insuficientes para adaptar culturalmente e com equidade os projectos e programas de saúde;
− condições desiguais de negociação para os grupos étnicos em contexto de parceria.
Investigações mostram que a população migrante constitui um grupo particularmente vulnerável na área
da saúde sexual, particularmente na infecção pelo VIH/SIDA. Este facto prende-se particularmente com
atitudes, crenças e factores culturais na origem, por exemplo, da recusa ou pouca utilização do
preservativo, na existência de múltiplos parceiros.
Os imigrantes constituem igualmente um grupo vulnerável ao nível da saúde mental, salientando vários
estudos problemas emocionais, psicopatológicos e psiquiátricos.
Sobre os comportamentos de saúde dos migrantes, este estudo da OMS revela ainda:
− a importância da medicina tradicional no tratamento e na cura;
− o recurso a medicamentos tradicionais dos seus países de origem;
− a compra de medicamentos sem prescrição médica;
− a solicitação de ajuda quando já se encontram em estado de doença mais grave e a tendência em
Maisondieu (1997) fala de síndrome de exclusão para descrever o sofrimento psicológico e o desespero
característico de muitos imigrantes e refugiados, sobretudo no período inicial, confrontado com a
precariedade das condições de vida e com as mudanças de referências culturais. Trata-se de um
sentimento de vergonha, desespero e impotência, face a uma situação dolorosa e stressante que o
indivíduo não consegue controlar, que o afecta nas suas vivências e expectativas quanto ao futuro, nas
suas relações, nas suas capacidades em exigir e defender os seus direitos, podendo associar-se a outros
sintomas depressivos e pós-traumáticos.
Algumas investigações mostram também uma vulnerabilidade da mãe e do bebé migrante com
depressões e psicoses pós-parto da mãe e um número importante de distúrbios funcionais do bebé, tais
como problemas de sono e de alimentação.
Em contexto migratório as mães, encontrando-se muitas vezes inseguras, ansiosas e em conflito quanto
aos cuidados e atitudes face aos seus filhos, deprimidas e isoladas, não encontram em si mesmas, nem
no ambiente, os recursos e suporte necessário para se adaptarem às exigências de um meio
estrangeiro,“estranho” e diferente, para apoiarem as crianças, nalguns casos, abandonando o
acompanhamento das crianças aos serviços de saúde e escolares. Quanto aos pais, sentindo-se
igualmente isolados e desvalorizados pela precariedade da situação migratória e por não exercerem um
papel ou o modelo de autoridade que exerceriam no seu país de origem, refugiam-se, muitas vezes, no
alcoolismo e na violência.
Para a criança migrante, os riscos são mais importantes quando a migração se processa em certos
períodos críticos de desenvolvimento, particularmente vulneráveis, nomeadamente:
− no nascimento e nos primeiros tempos de vida. A vulnerabilidade do bebé e da mãe poderá exprimir-
se por interacções desarmoniosas e por uma patologia psicossomática.
− No período das grandes aprendizagens escolares, leitura, escrita, cálculo, em que a criança se
encontra disponível para as novas aprendizagens e novos conhecimentos escolares (seis – dez anos).
− Na adolescência, período de grandes transformações psicológicas e físicas, de crise de identidade, de
rupturas múltiplas (com a família, a cultura e a sociedade) e de maturação (ao nível da auto-afirmação,
da conquista de autonomia e da adaptação sexual).
Também para as crianças de migrantes que ficam no país de origem, a separação e fragmentação da
família devido à ausência do pai, muitas vezes do pais e da mãe, poderá ter repercussões ao nível da
socialização, da construção identitária, na adaptação social, escolar e profissional, nos sentimentos de
depressão, abandono e isolamento.
Na maior parte dos países, a principal estrutura institucional de medicina científica é o hospital, com as
suas regras de funcionamento específicas. O hospital tem uma cultura própria, médica, tecnológica,
hierárquica, em relação à qual não está habituada a maioria dos doentes, sendo maiores as dificuldades
no caso dos migrantes.
A primeira dificuldade do doente migrante no hospital verifica-se logo ao acolhimento face às diligências
administrativas, a regras que não domina, ao desconhecimento ou à falta de documentos necessários, ao
não domínio ou insuficiente conhecimento da língua do país de acolhimento e ao analfabetismo, muitos
imigrantes (principalmente os que vêm de países em desenvolvimento e sociedades tradicionais e as
mulheres), não sabem ler nem escrever.
A situação política, legal ou ilegal e social do migrante pode também modificar o seu comportamento face
aos cuidados de saúde e, por vezes, este ser mesmo contraditório segundo os seus medos, expectativas,
etc.
Também certos rituais religiosos, certos elementos considerados como impuros, certas práticas e
procedimentos de higiene e rituais de lavagem, certos hábitos alimentares, etc. podem ser fonte de
incompreensão e de problemas de comunicação entre doentes e técnicos de saúde.
A relação com o corpo é outro elemento que causa, muitas vezes, mal entendidos e dificuldades
comunicacionais entre o utente/doente e os técnicos de saúde. A gestualidade, as mímicas, os toques, os
olhares, o vestuário, as posturas, a noção de pudor variam segundo os grupos e as culturas.
A abordagem sistémica da comunicação (Bateson, 1981, 1985) salienta alguns princípios fundamentais,
nomeadamente:
− A comunicação e um processo dinâmico, interactivo, no qual a unidade de base é, sobretudo, a
relação que se estabelece entre os indivíduos;
− A comunicação não se reduz às mensagens verbais. Também as expressões faciais, os gestos, os
silêncios, as atitudes, as posturas, os comportamentos transmitem uma mensagem;
− Toda a mensagem comporta dois níveis de significação, isto é, transmite não somente um conteúdo
informativo, mas exprime igualmente algo sobre a relação que une os interlocutores;
− A comunicação é determinada pelo contexto no qual ela se inscreve e este contexto envolve as
relações que unem as pessoas que comunicam, o espaço no qual se situa a interacção e a situação
que coloca em relação aos protagonistas;
− uma parte dos problemas e disfuncionamentos ao nível relacional e psicológico está relacionada com
problemas de comunicação.
A percepção é um processo pelo qual o indivíduo selecciona, avalia e organiza os estímulos vindo do
mundo exterior. A cultura tende a produzir percepções diferentes do mundo exterior. Os nossos
sistemas de valores, as nossas crenças, atitudes, a nossa visão do mundo e dos outros, a nossa
organização social e política exercem influência sobre as nossas percepções.
Também o etnocentrismo, ou seja, a tendência a interpretar a realidade a partir dos nossos próprios
critérios e modelos culturais, pode constituir um obstáculo importante à comunicação intercultural.
Existem dois tipos de dimensões culturais que afectam a comunicação:
Os modelos culturais que influenciam a nossa maneira de pensar, de percepcionar, de codificar,
etc,
Os modelos culturais que influenciam as maneira de comunicar com as pessoas pertencentes a
outras culturas.
7 – Síntese Conclusiva
Foram analisados as múltiplas relações, variáveis e factores individuais e colectivos, nomeadamente,
psicológicos, sociais e culturais, implicados no processo migratório e de aculturação, desencadeadores de
stress, ansiedade, conflito, os quais poderão afectar a saúde e a qualidade de vida do adulto, da família e
da criança migrante, assim como a comunicação em contexto de saúde, nomeadamente em contexto
multicultural.
O intercultural implica uma ética da relação humana. A relação intercultural deriva de uma ética pessoal e
de uma ética da alteridade. Comunicar com o outro implica ter em conta a sua identidade na interacção e
as suas reacções à alteridade.
É importante identificar a avaliar a fase de adaptação migratória em que se encontra o imigrante e o modo
de aculturação, no sentido de adaptar as respostas, os cuidados de saúde e a intervenção psicossocial.