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Research in Spec Educ Needs - 2016 - Brito - O MOVIMENTO SURDO NO BRASIL A BUSCA POR DIREITOS
Research in Spec Educ Needs - 2016 - Brito - O MOVIMENTO SURDO NO BRASIL A BUSCA POR DIREITOS
doi: 10.1111/1471-3802.12214
escolas e classes especiais para surdos (MOURA, 2000; Rio de Janeiro em 1987 e desde ent~ao comandada por
SOARES, 2005). Tampouco os ativistas surdos faziam estes. Nesse documento, cuja elaboracß~ao foi coordenada
uma associacß~ao direta entre esse tipo de comunicacß~ao e pela linguista Tanya Amara Felipe, defende-se basica-
alguma forma de identidade cultural surda. Convem notar, mente a tese de que as lınguas de sinais s~ao lınguas nat-
entretanto, que os documentos do movimento surdo ja urais, completas e equivalentes do ponto de vista
traziam refer^encias a comunicacß~ao sinalizada, por vezes gramatical as lınguas orais. Assim sendo os surdos bra-
denominada como linguagem mımica, ainda que a defesa sileiros, por serem usuarios de uma lıngua de sinais, s~ao
da sua import^ancia e oficializacß~ao n~ao tivesse adquirido a membros de uma minoria linguıstica e cultural e, por-
prioridade e o significado que viria a ter na decada tanto, devem ser reconhecidos pela sociedade e pelo
seguinte (BRITO, 2013). Estado (FENEIS, 1993). Ficava tambem demarcada
nesse documento a opcß~ao do movimento surdo pelo uso
Foi ao longo dos anos 1990 que o movimento surdo con- do termo lıngua brasileira de sinais (libras) para se
vergiu no sentido de promover uma campanha para a ofi- referir a lıngua de sinais dos surdos brasileiros.
cializacß~ao dessa forma de comunicacß~ao sinalizada, tendo
por objetivo buscar, por forcßa da lei, o reconhecimento Ainda que, nessa epoca, as teses expressas nesse docu-
social e jurıdico que lhe havia sido historicamente mento apenas comecßassem a ser incorporadas e aceitas
negado (SOUZA, 1998; BRITO, 2013). Essa demanda, pelos membros do movimento, elas ja circulavam ha
contudo, n~ao se vinculou, originalmente, a bandeiras ou alguns anos em diferentes grupos e projetos acad^emicos
categorias pelas quais o movimento surdo e bastante con- sobre a libras e o bilinguismo, por exemplo, nas ativi-
hecido nos dias de hoje, como o bilinguismo e a defesa dades de pesquisa, ensino e extens~ao desenvolvidas pelas
da cultura e identidade surda. A justificativa baseava-se, linguistas Eulalia Fernandes e Lucinda Ferreira Brito,
antes de qualquer coisa, nos direitos sociais de cidadania, respectivamente na Universidade Estadual do Rio de
em especial o direito a comunicacß~ao em igualdade de Janeiro (UERJ) e na Universidade Federal do Rio de
oportunidade com o ouvinte nas varias esferas da vida Janeiro (UFRJ).
social. Portanto, o que estava em jogo, quando se passou
a reivindicar, por exemplo, o direito ao atendimento por Nesse sentido, esse documento pode ser visto como uma
interpretes em servicßos p
ublicos essenciais ou o direito evid^encia da interacß~ao que se constituıra, por varias
ao uso da comunicacß~ao sinalizada nas escolas e classes raz~oes e em diferentes contextos – desde a participacß~ao
especiais para surdos, era a luta por participacß~ao plena de surdos como sujeitos de pesquisas linguısticas ate a
em igualdade de condicßo~es, conforme preconizava o atuacß~ao deles como instrutores de libras em projetos de
lema do AIPD, e n~ao qualquer tipo de reconhecimento educacß~ao bilıngue – entre um conjunto de intelectuais,
de uma particularidade cultural ou linguıstica (BRITO, principalmente do campo da linguıstica, da educacß~ao dos
2013). surdos e da surdez, e ativistas surdos, e que propiciara
um interc^ambio de conhecimentos e experi^encias que aca-
Foi em torno das reivindicacß~ oes por cidadania plena que bou por imprimir novas ideias e sentidos ao ativismo
o grupo Surdos Venceremos, liderado pelo ator e ativista polıtico de alguns membros do movimento surdo.
surdo Nelson Pimenta de Castro, organizou uma passeata
que mobilizou cerca de duas mil pessoas, surdas e ouvin- Todavia, os efeitos desse documento n~ao foram imediatos
tes, na orla da Praia de Copacabana, na cidade do Rio de na alteracß~ao do discurso hegem^onico e das praticas do
Janeiro, no dia 25 de setembro de 1994, constituindo-se movimento. Foi com o passar dos anos, ja na segunda
como marco da ascens~ao do movimento social surdo no metade da decada de 1990, que as ideias e as categorias
Brasil, por causa do numero de participantes e da expres- enunciadas nesse documento – e em outros materiais de
siva producß~ao cultural que engendrou, como cartazes, conteudo semelhante que passaram a ser veiculados –
faixas, vıdeos, slogans e sımbolos relacionados a defesa foram sendo apropriadas pelos ativistas surdos em difer-
dos direitos dos surdos e a valorizacß~ao da lıngua de sinais entes localidades do paıs, transformando-se gradativa-
(BERENZ, 2003). mente no conteudo principal de uma nova ideologia que
viria a alicercßar a construcß~ao da identidade coletiva do
Conquanto essa primeira grande passeata tenha sido real- movimento e a producß~ao de codigos culturais e quadros
izada principalmente sob a egide do discurso dos dire- interpretativos sobre a surdez e a lıngua de sinais partilha-
itos de cidadania da pessoa com defici^encia, ja e dos entre seus membros (ASSIS SILVA, 2012; BRITO,
possıvel notar, um ano antes de ela ocorrer, o primeiro 2013).
registro documental da guinada discursiva que viria se
consolidar no movimento surdo ao longo dos anos A partir dessa guinada, o movimento surdo que, na sua
1990. Trata-se do documento As comunidades surdas primeira fase, a semelhancßa de seus cong^eneres no
reivindicam os seus direitos linguısticos (FENEIS, campo do movimento social das pessoas com defici^encia,
1993), produzido e divulgado pela Federacß~ao Nacional concentrava o seu foco na luta por direito de cidadania,
de Educacß~ao e Integracß~ao dos Surdos (Feneis), uma passou a produzir e circular esse novo discurso, que
organizacß~ao fundada por ativistas surdos na cidade do Assis Silva (2012) bem categorizou como discurso da
surdez como particularidade etnico-linguıstica, o qual de S~ao Paulo, na I Confer^encia dos Direitos e Cidadania
passou a ser cada vez mais nutrido na lat^encia e demon- dos Surdos do Estado de S~ao Paulo.
strado na visibilidade do movimento social (MELUCCI,
1996). Houve, por conseguinte, uma mudancßa na justi- Enquanto tais eventos se desenrolavam, varias estrategias
ficativa ideologica dada a oficializacß~ao da libras, posto eram adotadas pelo movimento surdo para convencer os
que se passou a defend^e-la por causa do seu estatuto lin- parlamentares a colocarem em pauta e votarem favoravel-
guıstico e pelo fato de que, por se tratar de uma lıngua mente no projeto da lei de libras, como visitas aos seus
visoespacial, ela representava o elemento constitutivo e gabinetes, manifestacß~oes em frente ao Congresso, con-
produtor de uma cultura surda e de uma identidade vites para eventos culturais produzidos pelo movimento e
surda. Em outras palavras, ap os essa guinada discursiva, abaixo-assinados. Tais press~oes foram importantes para
a bandeira da oficializacß~ao n~ao era mais carregada em que, finalmente, sob o olhar de mais de uma centena de
nome da cidadania, por igualdade de oportunidade; mas, ativistas surdos e ouvintes, no dia tr^es de abril de 2002, o
sim, por identidade, por direitos linguısticos e culturais projeto da lei de libras fosse aprovado pelo Senado, para
(Brito, 2013). logo depois ser encaminhado a sancß~ao presidencial, a
qual se deu no dia 24 de abril seguinte.
Imbuıdos desse novo discurso, sem, contudo, abdicar do
discurso da luta por cidadania, ativistas do movimento A analise do percurso de aprovacß~ao dessa lei evidencia o
surdo ligados a Feneis e a Federacß~ao Nacional de Pais e protagonismo dos ativistas surdos, pois, antes de qualquer
Amigos dos Surdos (Fenapas) resolveram levar a cam- coisa, a propria ideia da necessidade de se ter uma lei
panha pela oficializacß~ao da libras ao Congresso Nacional, para reconhecer legalmente a libras em ^ambito nacional
visando a aprovacß~ao de uma lei que reconhecesse legal- foi uma criacß~ao do movimento surdo, no sentido que
mente a libras como lıngua em nıvel nacional. Depois de emergiu das interacß~oes sociais e producß~oes culturais ocor-
oes infrutıferas, esses ativistas afinal con-
varias reuni~ ridas entre os seus membros. Alem de ter sido uma ideia
seguiram o apoio de alguns parlamentares federais a essa oriunda desses ativistas, e uma aspiracß~ao por eles acalen-
causa, o que resultou na apresentacß~ao de um projeto de tada por anos a fio, a oficializacß~ao da libras tornou-se a
lei a esse respeito no plenario do Senado, no ano de bandeira que engendrou ou que esteve presente nas mais
1996. A partir daı, iniciou-se uma longa tramitacß~ao de expressivas acß~oes coletivas produzidas pelo movimento
quase seis anos pelas duas Casas legislativas do Con- surdo entre os anos de 1990 e 2002, tais como a
gresso Nacional. promocß~ao de cursos dessa lıngua para a formacß~ao de
interpretes e capacitacß~ao de instrutores surdos, as passea-
Ao mesmo tempo em que ocorria o lobby junto aos par- tas, reivindicacß~oes e busca de apoio junto a org~aos esta-
lamentares, o discurso linguıstico-cultural da surdez, que tais, a constituicß~ao do Comit^e Pro-oficializacß~ao da Libras,
se engendrara com a participacß~ao decisiva de um con- a formulacß~ao e entrega de documentos, manifestos e
junto de intelectuais, continuou a sua impressionante abaixo-assinados a autoridades publicas, a conducß~ao das
ascens~ao n~ao so no interior do movimento surdo, como associacß~oes locais e regionais de surdos para se obter a
tambem na academia, ganhando cada vez mais espacßo e aprovacß~ao de leis municipais e estaduais de reconheci-
legitimidade nas linhas de pesquisa, nos cursos, eventos mento da libras e o lobby junto a parlamentares.
e producß~ oes cientıficas. Criou-se, alias, toda uma
tradicß~ao de pesquisa a partir dele, os chamados Estados Evidentemente, a constatacß~ao do protagonismo do movi-
Surdos, produto e produtor dessa configuracß~ao discursiva mento surdo no processo historico que culminou na
(SKLIAR, 2005). Ademais, formou-se, com base nele, criacß~ao da lei de libras n~ao exclui o reconhecimento da
toda uma geracß~ao de acad^emicos ouvintes e surdos, import^ancia da participacß~ao de intelectuais – inclusive,
muitos dos quais oriundos dos quadros do movimento porque muitos deles compuseram as redes de relaciona-
surdo, e que a eles permaneceram ligados, circulando mento do movimento – nem do apoio fundamental de
entre academia e movimento social (STROBEL, 2008; org~aos publicos, que se transformaram em pecßas funda-
ASSIS SILVA, 2012). mentais da estrutura de oportunidades polıticas (TAR-
ROW, 2009) que se abriu ao movimento a partir da
Foi esse discurso da surdez como particularidade etnico- redemocratizacß~ao brasileira. Tampouco se minimiza o
linguıstica que embalou a passeata do movimento surdo, credito devido aos parlamentares envolvidos na
ocorrida no dia 24 de abril de 1999, na cidade de Porto tramitacß~ao do projeto de lei da libras que se manifestaram
Alegre (THOMA; KLEIN, 2010), que culminou no ato e votaram a seu favor. N~ao obstante, ha que se sublinhar
polıtico de entrega do documento A educacß~ ao que nos o fato de que as acß~oes coletivas produzidas pelo movi-
surdos queremos (FENEIS, 1999), mais um importante mento social surdo, no contexto da campanha pela oficial-
momento da visibilidade do movimento, com a demon- izacß~ao da libras, foram determinantes para que hoje
stracß~ao p
ublica das novas ideias que embasavam as suas exista, no Brasil, a lei n 10.436, de 2002.
producß~ oes culturais e reivindicacß~
oes ao sistema polıtico-
institucional. Foi assim tambem em 2000, em Brasılia, no Conflicts of interest
I Festival de Arte e Cultura Surda, e em 2001, na cidade The author declares that there are no conflicts of interest.