Você está na página 1de 465

MAX WEBER

ECONOMIA E SOCIEDADE
Fundamentos da Sociologia Compreensiva

Volume 1

Tradução da quinta edição revista,


anotada e organizada por
Johannes Winckelmann

Tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa


Revisão técnica de Gabriel Cohn

EDITORA

U n B
Título original: Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehenden Soziologie

©J.C.B. Mohr (Paul Siebeck)Tübingen 1972

Direitos exclusivos para edição em língua portuguesa adquiridos pela

Editora Universidade de Brasília


Caixa Postal 04551
70919 Brasília, DF

Preparação e editoração de originais: Maria Carolina Araújo e Mitsue Morissawa

Revisão de provas:
Mauro Caixeta de Deus e Teresa Cristina Brandão

Supervisão gráfica: Antônio Batista Filho e Elmano Rodrigues Pinheiro

Capa: Luiz Eduardo Resende de Brito

ISBN 85-230-0314-2

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Weber, Max, 1864-1920.


Economia e sociedade : fundamentos da sociologia compreensiva / Max Weber
; tradução de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa ; revisão técnica de Gabriel
Cohn. — Brasília, D F : Editora Universidade de Brasília, 1991

Tradução da quinta edição revista, anotada e organizada por Johannes Win-


ckelmann.

ISBN: 85-230-0314-2

1. Economia 2. Sociedade I . Winckelmann, Johannes. I I . Título.

91-1205 CDD;g;

índices paia catálogo sistemático:


1. Economia 330
2. Sociedade : Sociologia 301
E m m e m ó r i a de m i n h a m ã e
H e l e n a Weber (nascida Fallenstein)
1844 — 1919
SUMÁRIO

Volume 1

Alguns problemas conceituais e de t r a d u ç ã o e m Economia e sociedade. (Gabriel


Cohn) xiii
Prefácio à quinta e d i ç ã o xvii
Prefácio à quarta e d i ç ã o xxxi
Prefácio à p r i m e i r a e d i ç ã o xxxix
Prefácio à segunda e d i ç ã o xli

P r i m e i r a Parte

T e o r i a das Categorias S o c i o l ó g i c a s

Capítulo I . Conceitos sociológicos fundamentais 3—35

§ 1 . Conceito da Sociologia e do "sentido'' da a ç ã o social 3


I. Fundamentos m e t o d o l ó g i c o s 4
II. Conceito de a ç ã o social 13
§ 2. Elementos determinantes da a ç ã o social 15
§ 3 A r e l a ç ã o social 16
§ 4. Tipos de a ç õ e s sociais: uso, costume 17
§ 5 Conceito de o r d e m legítima 19
§ 6. Tipos de o r d e m legítima: c o n v e n ç ã o e direito 20
§ 7. Fundamentos da v i g ê n c i a da o r d e m legítima: tradição, crença, estatuto 22
§ 8. Conceito de luta 23
§ 9 Relação comunitária e r e l a ç ã o associativa 25
§ 10. Relações abertas e relações fechadas 27
§ 11. Imputabilidade das ações. Relações de representação 29
§ 12. Conceitos e tipos de associação 30
§ 13. O r d e n s de uma associação 31
§ 14. O r d e m administrativa e o r d e m reguladora 32
§ 15. E m p r e s a e associação de e m p r e s a , u n i ã o , instituição 32
§ 16. Poder, d o m i n a ç ã o 33
§ 17. Associação política, associação hierocrática 34
a p í í u l o I I . Categorias sociológicas fundamentais d a gestão e c o n ó m i c a . 37—138
1. Conceito de g e s t ã o e c o n ô m i c a 37
2. Conceito de utilidade 40
3 O r i e n t a ç ã o e c o n ô m i c a da a ç ã o 41
4. Medidas típicas da g e s t ã o e c o n ô m i c a nacional 42
5. T i p o s de associações e c o n ô m i c a s 44
6. Meios de troca, meios de pagamento, d i n h e i r o 45
7. C o n s e q ü ê n c i a s primárias do uso típico de dinheiro. C r é d i t o . 49
8. Situação de m e r c a d o , mercabilidade, liberdade de m e r c a d o , r e g u l a ç ã o do
mercado 50
9. Racionalidade f o r m a l e racionalidade m a t e r i a l da e c o n o m i a 52
10. Racionalidade do c á l c u l o e m d i n h e i r o 53
11. Conceitos e tipos de a q u i s i ç ã o 56
12. C á l c u l o e m e s p é c i e e e c o n o m i a n a t u r a l 62
13. C o n d i ç õ e s da racionalidade f o r m a l do c á l c u l o e m d i n h e i r o 68
14. E c o n o m i a de troca e e c o n o m i a planificada 68
15. T i p o s de distribuição e c o n ô m i c a de serviços (generalidades). 72
§ 16. 17. F o r m a s de articulação técnica de serviços 75
18. F o r m a s sociais de distribuição de serviços 77
19. A p r o p r i a ç ã o da utilização de serviços 80
20. A p r o p r i a ç ã o dos meios de o b t e n ç ã o 84
2 1 . A p r o p r i a ç ã o dos serviços de c o o r d e n a ç ã o 88
§ 22. 23 E x p r o p r i a ç ã o dos trabalhadores da posse dos meios de o b t e n ç ã o 89-"
24. Profissão e f o r m a s de divisão das profissões 91
24a. F o r m a s principais da a p r o p r i a ç ã o e relações n o m e r c a d o 94
25- C o n d i ç õ e s de serviços rentáveis: a d a p t a ç ã o , habilidade, inclinação ao traba-
lho etc 99
26. Relações comunitárias estranhas à rentabilidade dos serviços: f o r m a s de co-
munismo 101
27. B e n s d e capital, c á l c u l o de capital 102
§ 28. 29. 29a. Conceito e f o r m a s de c o m é r c i o 103
30. C o n d i ç õ e s d o g r a u m á x i m o de racionalidade f o r m a l do c á l c u l o de capital 107
3 1 . T e n d ê n c i a s típicas da o r i e n t a ç ã o " c a p i t a l i s t a " das atividades aquisitivas 109
32. A r e g u l a m e n t a ç ã o m o n e t á r i a no Estado m o d e r n o e os diversos tipos de di-
nheiro: d i n h e i r o corrente 111
• 33- D i n h e i r o limitado 117
i 34. D i n h e i r o e m f o r m a de notas 119
i 35- Validade f o r m a l e v a l i d a d e m a t e r i a l do d i n h e i r o 120
' 36. Meios e fins da política monetária 121
E x c u r s o s o b r e a teoria estatal do d i n h e i r o 125
i 37. I m p o r t â n c i a extramonetária das associações políticas p a r a a e c o n o m i a 130
í 38. O financiamento de associações políticas 130
i 39. R e p e r c u s s ã o s o b r e as economias privadas 134
i 40. Influência da e c o n o m i a sobre a f o r m a ç ã o de associações 135
í 4 1 . O s motivos determinantes da g e s t ã o e c o n ô m i c a 136

l a p i t u l o I I I . O s tipos d e d o m i n a ç ã o 139—198

1. A v i g ê n c i a da legitimidade

i 1 . D e f i n i ç ã o , c o n d i ç ã o e tipos de d o m i n a ç ã o . Legitimidade 139


ECONOMIA E SOCIEDADE ÍX

§ 2. O s três tipos puros de d o m i n a ç ã o legítima: d o m i n a ç ã o r a c i o n a l , d o m i n a ç ã o


tradicional, d o m i n a ç ã o carismática 141

2. A d o m i n a ç ã o legal c o m q u a d r o administrativo b u r o c r á t i c o
§ § 3 - 4 . D o m i n a ç ã o legal: tipo p u r o mediante q u a d r o administrativo b u r o c r á t i c o . 142
§ 5 A administração b u r o c r á t i c o - m o n o c r á t i c a 145

3 A d o m i n a ç ã o tradicional
§§ 6. 7. D o m i n a ç ã o tradicional 148
§§ 7a. 8. G e r o n t o c r a c i a , p a t r i a r c a l i s m o , p a t r i m o n i a l i s m o 151
§ 9. D ó m i n a ç ã o patrimonial-estamental 155
§ 9a. D o m i n a ç ã o tradicional e e c o n o m i a 156

4. D o m i n a ç ã o carismática
§ 10. D o m i n a ç ã o carismática, suas características e relações c o m u n i t á r i a s 158

5. A rotinização d o c a r i s m a
§§ 1 1 . 12. 12a. A rotinização d o c a r i s m a e seus efeitos 161

6. Feudalismo
§ 12b. Feudalismo, f e u d a l i s m o d e f e u d o 167
§ 12c. F e u d a l i s m o de p r e b e n d a e outros tipos de feudalismo 171
§ 13. C o m b i n a ç ã o dos d i v e r s o s tipos de d o m i n a ç ã o 173

7. A reinterpretação antiautoritária d o c a r i s m a
§ 14. A reinterpretação antiautoritária do c a r i s m a 175

8. Colegialidade e divisão de poderes


§ 15 Colegialidade e d i v i s ã o de poderes 178
§ 16. D i v i s ã o especificada de poderes 186
§ 17. Relações da divisão de poderes políticos c o m a e c o n o m i a 187

9. Partidos
§ 18. Conceito e natureza dos partidos 188

10. A d m i n i s t r a ç ã o d e associações alheia à d o m i n a ç ã o


e administração de representantes
§ 19- A d m i n i s t r a ç ã o de associações a l h e i . à d o m i n a ç ã o e administração de r e p r e -
sentantes 190
§ 20. A d m i n i s t r a ç ã o de m e m b r o s h o n o r á r i o s 191

1 1 . Representação
§ 2 1 . Natureza e f o r m a s da representação 193
§ 22. R e p r e s e n t a ç ã o p o r representantes de interesse 196

Capítulo IV. Estamentos e classes 199—206

1. Conceitos
§ 1 . Situação de classe, classe, classe proprietária 199
X MAX WEBER

§ 2. Classe aquisitiva, classe social 201


§ 3- Situação estamental, estamento 202

Apêndice

Segunda Parte

A E c o n o m i a e as O r d e n s e Poderes Sociais

C a p í t u l o L A e c o n o m i a e as o r d e n s s o c i a i s 209—227

§ 1 . O r d e m jurídica e o r d e m e c o n ô m i c a 209
§ 2. O r d e m jurídica, c o n v e n ç ã o e costume 215
§ 3- Importância e limites da c o a ç ã o jurídica p a r a a economia 223

C a p í t u l o I I . Relações e c o n ô m i c a s das c o m u n i d a d e s ( e c o n o m i a e socieda-


de) e m geral 229—242

§ 1 . Natureza da economia. C o m u n i d a d e e c o n ô m i c a , comunidade de g e s t ã o


e c o n ô m i c a e comunidade de r e g u l a ç ã o e c o n ô m i c a 229
§ 2. Relações e c o n ô m i c a s " a b e r t a s " e " f e c h a d a s " 231
§ 3. F o r m a s de comunidades e interesses e c o n ô m i c o s 233
§ 4. T i p o s de o b t e n ç ã o de serviços e c o n ô m i c o s p o r comunidades " d e gestão
e c o n ô m i c a " e as f o r m a s de economia 237
§ 5. Efeitos do p r o v i m e n t o das necessidades e da distribuição dos encargos nas
comunidades. O r d e n s de r e g u l a ç ã o e c o n ô m i c a 239

C a p í t u l o I I I . T i p o s de relação c o m u n i t á r i a e d e relação associativa e m seus


aspectos e c o n ô m i c o s 243—265

§ 1. A comunidade doméstica 243


§ 2. C o m u n i d a d e de v i z i n h a n ç a , comunidade e c o n ô m i c a e c o m u n a 246
§ 3- As relações sexuais na comunidade doméstica 249
§ 4. O clã e a r e g u l a ç ã o das relações sexuais. C o m u n i d a d e d o m é s t i c a , de clã,
d e vizinhança e política 250
§ 5. Relações c o m a o r g a n i z a ç ã o militar e e c o n ô m i c a . O " d i r e i t o de bens no
m a t r i m ô n i o ' ' e o direito hereditário 254
§ 6. A dissolução da comunidade doméstica: m o d i f i c a ç õ e s de sua p o s i ç ã o funcio-
nal e crescente " c a l c u l a b i l i d a d e " . Nascimento das m o d e r n a s sociedades
mercantis 258
§ 7. O desenvolvimento para o oikos 262

Capítulo IV. Relações comunitárias étnicas 267—277

§ 1 . A pertinência à " r a ç a " 267


§ 2. Nascimento da idéia de coletividade étnica. C o m u n i d a d e lingüística e de
culto 268
ECONOMIA E SOCIEDADE XÍ

§ 3. R e l a ç ã o c o m a comunidade política. " T r i b o " e " p o v o " 274


§ 4. Nacionalidade e prestígio cultural 275

C a p í t u l o V. S o c i o l o g i a d a r e l i g i ã o ( t i p o s d e r e l a ç õ e s c o m u n i t á r i a s r e l i g i o -
sas) 279—418

§ I O nascimento das religiões 279


§ 2. O mago e o sacerdote 294
§ 3 Conceito de deus. Ética religiosa. T a b u 295
§ 4. O " p r o f e t a " 7., 303
§ 5 Congregação 310
§ 6 Saber sagrado. S e r m ã o . C u r a de almas 314
§ 7. Estamentos, classes e religião 320
§ 8. O problema da teodicéia 350
§ 9. S a l v a ç ã o e renascimento 355
§ 10. Os caminhos de s a l v a ç ã o e sua influência sobre a c o n d u ç ã o da v i d a 357
§ 1 1 . Ética religiosa e " m u n d o " 385
§ 12. As religiões mundiais e o " m u n d o " 404

Capítulo V I . O mercado 419 422


Alguns problemas conceituais
e de tradução em Economia e sociedade

No f i n a l dos anos 30 R a y m o n d A r o n escrevia, e m l i v r o sobre a Sociologia alemã


contemporânea, que n ã o era o caso de introduzir Max Weber na França, já que "todos
os sociólogos conhecem Wirtschaft und Gesellschaft, a construção mais m o n u m e n t a l
que se tenha tentado nas ciências s o c i a i s " . Fina i r o n i a , ainda mais q u a n d o dita por
quem f o r a buscar na A l e m a n h a o contato c o m autores que a tradição d u r k h e i m i a n a
procurava manter à distância. Passado meio s é c u l o , ainda seria t e m e r á r i o a f i r m a r que
todos os s o c i ó l o g o s , n ã o s ó da França mas do m u n d o , c o n h e ç a m Economia e sociedade
para além das referências e das passagens obrigatórias. Mas é este o ponto; é consenso
universal que n i n g u é m que tenha alguma coisa a v e r c o m , n o m í n i m o , a Sociologia,
a Ciência Política e a História possa passar ao largo daquele que se f i r m a definitivamente
como o grande clássico do pensamento político-social neste século. C l a r o que n ã o cabe
exigir de cada qual o estudo desse m o n u m e n t o na íntegra, n e m mesmo quando se
trate de u m w e b e r i a n o (afinal, a p r o p o r ç ã o de w e b e r i a n o s que atravessaram Economia
e sociedade de ponta a ponta é da mesma o r d e m da dos marxistas que estudaram
os três volumes de O capitai, mas n ã o é preciso ser uma coisa o u outra p a r a saber
que são ambas obras indispensáveis, para se ter s e m p r e à m ã o ) .
Vale a pena, portanto, neste momento e m que Economia e sociedade começa
a ser editado na íntegra n o B r a s i l , apresentar ao leitor deste p r i m e i r o v o l u m e alguns
dos principais problemas de leitura — e, c o n s e q ü e n t e m e n t e , de t r a d u ç ã o — que nele
se encontram, c o m as razões para as soluções adotadas
A base para a presente t r a d u ç ã o é a quinta e d i ç ã o revista da v e r s á o - p a d r ã o da
o b r a , organizada a partir da segunda e d i ç ã o por Johannes W i n c k e l m a n n , a q u e m se
deve a minuciosa e x p o s i ç ã o da sua história editorial reproduzida neste v o l u m e . Justifi-
ca-se o e s f o r ç o de W i n c k e l m a n n , especialmente quando consideramos que Economia
e sociedade é e m grande medida uma obra póstuma, organizada a partir da gigantesca
massa de manuscritos legados por Weber a sua viúva, Marianne, responsável pela p r i m e i -
r a e d i ç ã o , e mais tarde confiados aos cuidados editoriais de W i n c k e l m a n n . N ã o é este
o lugar para e x a m i n a r as controvérsias que se v ê m avolumando sobre a o r g a n i z a ç ã o
da o b r a e até m e s m o sobre a sua unidade interna. U m a única referência já p o d e r á
indicar q u ã o vasta é a matéria para debate, no caso. É que seu p r ó p r i o título está
sujeito a d ú v i d a s bastante plausíveis, que remetem à p r i m e i r a das mencionadas dificul-
dades de tradução. O c o r r e que o termo "sociedade'' (Gesellschaft) n ã o e x p r i m e conceito
central na terminologia w e b e r i a n a , na qual é substituído nos momentos decisivos por
u m a e x p r e s s ã o que designa mais propriamente as relações interindividuais constitutivas
da sociedade d o que esta c o m o rede de relações já dada Esta expressão — Vergesells-
chaftung — poderia ser traduzida diretamente por " s o c i a l i z a ç ã o " Mas esta s o l u ç ã o
foi abandonada, n ã o somente porque poderia induzir a confusões e m algumas passagens
xiv MAX WEBER

c o m o t a m b é m p o r q u e c o n v i n h a realçar o aspecto de r e l a ç ã o e, portanto, de ação social


e n v o l v i d o na análise w e b e r i a n a . Optou-se, assim, pela f o r m a " r e l a ç ã o associativa",
até p o r q u e , na c o n c e p ç ã o w e b e r i a n a , a Vergesellschaftung é explicitamente u m a " r e l a -
ç ã o s o c i a l " , c o m o se pode v e r nos p a r á g r a f o s 3 e 9 do p r i m e i r o capítulo. E m confor-
midade c o m isso o t e r m o " r e l a ç ã o c o m u n i t á r i a " traduz Vergemeinschaftung.
O u t r a c o n s e q ü ê n c i a da natureza p ó s t u m a da o b r a é a carência de unidade termino-
lógica, resultado da circunstância de que nela se associam escritos de p e r í o d o s diferentes
da p r o d u ç ã o w e b e r i a n a , n u m a seqüência definida pela o r d e m dos temas e n ã o pela
o r d e m c r o n o l ó g i c a da r e d a ç ã o . O c o r r e que as questões conceituais f o r a m trabalhadas
por Weber e m duas oportunidades. A p r i m e i r a e m 1913, n u m texto da m a i o r impor-
tância, " s o b r e algumas categorias da Sociologia C o m p r e e n s i v a " , n o q u a l é desenvolvido
pela p r i m e i r a v e z o inovador q u a d r o conceituai destinado a s e r v i r às análises daquilo
que mais tarde seria publicado sob o título " E c o n o m i a e s o c i e d a d e " , e a segunda naquilo
que seria o capítulo p r i m e i r o desta o b r a , sobre os "conceitos s o c i o l ó g i c o s fundamen-
t a i s " , redigido e m 1918. Procurou-se nesta t r a d u ç ã o u n i f o r m i z a r a terminologia confor-
m e a v e r s ã o de 1918 ( p r i m e i r o capítulo deste v o l u m e ) . Para isto f o i efetuada u m a " t r a d u -
ç ã o " dentro da t r a d u ç ã o : da terminologia de 1913 p a r a a de 1918, s e m p r e que se tratava
de evitar as confusões que poderiam ser causadas, por exemplo, pela circunstância de
que aquilo que e m 1918 se denomina " a ç ã o social" era " a ç ã o comunitária" e m 1913-
Finalmente, dois esclarecimentos de m a i o r alcance, de natureza conceituai e quan-
to à tradução. O p r i m e i r o diz respeito ao conceito de sentido, que desempenha papel
central na obra w e b e r i a n a . O p r o b l e m a , a q u i , diz respeito à ê n f a s e de W e b e r no caráter
"'ty^tivcjSo swttido d q g ç ã f f X d ™ ! * p r e o c u p a ç ã o de W e b e r e m n ã o d e i x a r dúvidas^
quanto a isso, de que na sua análise a a ç ã o social é e x a m i n a d a pelo p r i s m a do sentido
que ela assume para o agente, portanto " s u b j e t i v a m e n t e " nesta a c e p ç ã o rigorosamente
não-psicológica do termo, é de tal o r d e m que ele p r ó p r i o reconhece, já n o texto de
1913, o caráter " p e d a n t e " das suas insistentes explicitações t e r m i n o l ó g i c a s , que se justifi-
cava pelo que esses conceitos tinham de polemicamente inovador. D a d a a centralidade
dessa q u e s t ã o da natureza subjetiva do sentido associado à a ç ã o , W e b e r p r o c u r a cercá-la
por todos os lados. A e x p r e s s ã o mais completa que ele usa p a r a isso tem sua t r a d u ç ã o
mais adequada (ainda que n ã o inteiramente satisfatória) por "sentido subjetivamente
v i s a d o " . C l a r o que é suficiente falar epi "sentido s u b j e t i v o " o u e m "sentido v i s a d o " ,
c o m o se faz aqui n o mais das vezes. M e s m o admitindo que o t e r m o " s u b j e t i v o " tem
indesejáveis ressonâncias psicológicas, o p r o b l e m a m a i o r reside n o termo " v i s a d o " .
Sua a m b i g ü i d a d e , n o caso, consiste e m que, e m b o r a remeta ao agente ( e , portanto,
à d i m e n s ã o " s u b j e t i v a " nesta a c e p ç ã o estrita), " v i s a d o " pode ser entendido c o m o uma
referência subjetiva a algo já dado, que seria o p r ó p r i o " s e n t i d o " . E aí reside o pesadelo
t e r m i n o l ó g i c o w e b e r i a n o , que ele buscava e x o r c i z a r mediante a a c u m u l a ç ã o de qualifi-
cativos. É que, entendida a coisa deste modo, teríamos de volta exatamente aquilo
que Weber queria(evitàr, a saber, u m sentido " o b j e t i v o " , já dado independentemente
do curso de a ç ã o ocTagente. E s s e n c i a l e m Weber, contudo, é que o sentido da a ç ã o
não é algo já dado que de algum m o d o seja " v i s a d o " pelo agente c o m o " m e t a " da
sua a ç ã o mas é a representação que ele, c o m o agente, tem do c u r s o da sua a ç ã o e
que comanda a sua e x e c u ç ã o . Se isso n ã o fosse ainda mais pedante do que o p r ó p r i o
Weber, caberia falar de u m "sentido subjetivamente r e p r e s e n t a d o " , p a r a d e i x a r claro
que o que conta na a ç ã o e a torna efetiva n ã o é o seu sentido sem mais mas o modo
como o agente o representa para si ao conduzi-la. Dessa f o r m a seria possível evitar a impres-
são de que o sentido já estivesse de alguma forma " p r o n t o " antes de se encetar a ação e
fosse portanto uma referência objetiva já dada. No esquema analítico weberiano tudo passa
pelas concepções o u representações que os agentes (sempre individuais, e m última instância)
ECONOMIA E SOCIEDADE XV

têm dos motivos, meios e fins das ações sociais e m que se envolvem. Daí a dimensãosuô/et/Va
da ação. E motivos, meios e fins têm, para o agente, caráter significativo. Daí a dimensão
de sentido da ação.
Um segundo problema de grande alcance apresenta-se n o tratamento das categorias
fundamentais da ação econômica, no segundo capítulo. É que, ao examinar seu tema central
neste ponto — as formas de racionalidade da ação econômica — Weber constrói u m par
conceituai de decisiva importância na sua argumentação. Trata-se do contraste entre Haus-
halt, que aqui se traduz por "gestão patrimonial", e Erwerbswirtschaft, que se traduz por
"gestão aquisitiva". Esses conceitos e sua tradução merecem u m comentário.
O termoHaushalt tem equivalente direto e m inglês (household)mas n ã o e m português.
Na pioneira edição da Fondo de Cultura E c o n ó m i c a (a primeira tradução integral de Econo-
mia e sociedade no mundo, e m 1944) coordenada por J o s é Medina Echevarria adota-se u m
termo perfeitamente aceitável, e m princípio: hacienda, quedaria "fazenda". Estafoi t a m b é m
a opção dos tradutores brasileiros Régis Barbosa e K a r e n Elsabe Barbosa, no excelente texto-
base que elaboraram para esta édição. N ã o m e parece, contudo, uma solução satisfatória,
mesmo admitindo que dificilmente, n o caso, haverá uma que satisfaça plenamente. Ainda
que abrindo m ã o da elegância e mesmo da busca de uma equivalência inequívoca, foi adota-
do um critério que aliás está presente ao longo de toda esta tradução: na ausência de equiva-
lentes diretos, usem-se termos que explicitem a referência central na construção do conceito
por Weber. Central, no caso, é a referência a uma f o r m a de gestão. Essa referência, aliás,
é intrínseca ao próprio termo usado, tanto e m Haushalt quanto e m household os sufixos
halt ou hold remetem à n o ç ã o , muito significativa no caso, de " m a n u t e n ç ã o " . Adotou-se
assim a forma "gestão patrimonial". E por que "patrimonial"? Uma tradução literal daria
"doméstica", já que na origem do termo a l e m ã o , e t a m b é m inglês, está a n o ç ã o de domus,
ou de oikos (o que nos remeteria à origem do termo " e c o n o m i a " ) Por trás de tudo isso
está a idéia de patrimônio; daí poder-se sustentar a tradução "fazenda". E é disto mesmo
que se trata: da gestão de u m patrimônio n u m p e r í o d o dado, tendo e m vista o suprimento
de necessidades, com base n u m orçamento. Mais do que o instrumento básico de gestão,
o orçamento define o seu critério, no caso: trata-se de operar no interior de limites fixos,
dados de antemão. E m contraste c o m isso, a gestão aquisitiva, como o nome indica, opera
conforme u m critério expansivo, voltado para o aumento; n ã o simplesmente de incremento
patrimonial mas de expansão da capacidade de a ç ã o econômica, de "poder de disposição
sobre bens" para usar a terminologia weberiana. Por u m lado, suprimento de necessidades
relativas a u m patrimônio dado no início do período; pelo outro, gestão orientada prospecti-
vamente para a busca de vantagens n o final d o período. Os problemas que esse par conceituai
permite formular são dos mais interessantes, como o texto demonstra.
D e modo geral, a equipe envolvida na elaboração desta versão final do texto buscou
conciliar três exigências difíceis de serem satisfeitas simultaneamente, n o caso de u m a obra
com as enormes dificuldades da de Weber: rigor conceituai, fidelidade ao estilo do autor
e — o mais difícil — legibilidade como requisito m í n i m o , já que a fluência e a elegância
poderiam ser aumentadas, sem dúvida, mas às custas do cumprimento das outras duas exi-
gências, de que n ã o se poderia abrir m ã o .
Finalmente, c o n v é m esclarecer que as passagens entre colchetes seguidas da abrevia-
tura N T , que ocorrem ao longo do texto, n ã o são do original mas f o r a m acrescentadas
na versão final desta tradução c o m o apx)io à leitura, sem qualquer pretensão ao rigor cien-
tífico.

S ã o Paulo, julho de 1991

GABRIEL COHN
Prefácio à quinta edição

No p r e f á c i o à nova e d i ç ã o de Wirtschaft und Gesellschaft [ E c o n o m i a e Sociedade],


quarta e d i ç ã o , 1956, f o r a m relacionados vários aspectos reveladores da estrutura ine-
rente da o b r a , c o m referência a u m artigo de seu organizador que e x a m i n a os respectivos
pormenores 1 . Essa i n d i c a ç ã o sobre as e x p o s i ç õ e s mais específicas ficou restrita, n o
mais das vezes, a notas de r o d a p é , e o c o n t e ú d o p e r m a n e c e u s e m ser lido. C o m o
não f i c a r a m suficientemente nítidas, nas e x p o s i ç õ e s anteriores, a lógica interna da o b r a
e a necessidade premente de reestruturação da matéria efetuada na nova e d i ç ã o , reto-
ma-se a questão neste p r e f á c i o à n o v a e d i ç ã o revisada (quinta edição). Pretende-se,
nesta v e r s ã o definitiva, demonstrar de n o v o , de m o d o conciso mas consistente, a estru-
tura irrecusável da disposição sistemática (mais exatamente t i p o l ó g i c a ) da o b r a . A o lado
disto mostrar-se-á que t a m b é m as partes finais inacabadas, tanto da p r i m e i r a quanto
da segunda parte de Economia e sociedade s ã o inequivocamente reconstruíveis a partir
da c o n c e p ç ã o estrutural, da idéia compositora unitária da o b r a .
A l é m das c o n s i d e r a ç õ e s de natureza mais " t é c n i c a " , o n o v o p r e f á c i o pretende,
portanto 1 ) , explicitar sumariamente a idéia compositora imanente a ser extraída do
curso das idéias, relativa à o r d e m reconstruída da matéria tratada por Max W e b e r ,
assim c o m o 2 ) expor, pelo menos e m e s b o ç o , o efeito dos princípios fundamentais
de sua Sociologia, isto é, o significado m e t ó d i c o do "sentido s u b j e t i v o " e o c o n t e ú d o
sistemático da teoria p o r ele desenvolvida sobre a a ç ã o social e 3 ) s o b r e o escalonamento
desta r u m o a f o r m a ç õ e s sociais cada v e z mais abrangentes.
A estruturação da matéria na n o v a e d i ç ã o , elaborada pelo organizador e apoiada
estritamente na r e d a ç ã o do texto, foi ocasionalmente contestada na A l e m a n h a , servindo,
p o r é m , de base p a r a todas as traduções mais recentes. S e r v e m de e x e m p l o os casos
da segunda e d i ç ã o espanhola (1964), da p r i m e i r a e segunda e d i ç ã o italiana (1961, 1968),
da e d i ç ã o norte-americana e m três v o l u m e s (1968) e da e d i ç ã o francesa cujo p r i m e i r o
v o l u m e foi publicado e m 1971. Entretanto, a t r a d u ç ã o norte-americana apresenta subdi-
visões adicionais dos capítulos e as duas e d i ç õ e s citadas por ú l t i m o n ã o i n c o r p o r a r a m
a parte final c o m o título "Sociologia do E s t a d o " , compilada pelo organizador a l e m ã o
a partir de diversos trabalhos escritos na última fase da v i d a de Max Weber. No entre-
tempo, novas análises d o texto e estudos aprofundados da bibliografia e m que se baseia
a obra n ã o somente r e v e l a r a m grande n ú m e r o de e r r o s a s e r e m corrigidos, c o m o tam-
b é m l e v a r a m à c o n c l u s ã o de que a curta e x p o s i ç ã o sobre " O s três tipos puros da d o m i -
n a ç ã o l e g í t i m a " , incluída na r e e d i ç ã o de 1956, n ã o cabe n o contexto do manuscrito,
mas s i m no â m b i t o das r e f l e x õ e s do artigo sobre algumas categorias da Sociologia
C o m p r e e n s i v a , de 1913, tendo por isso de ser eliminada da nova e d i ç ã o 2 .

1 Winckelmann, Johannes. Max Weber opus posthumum. Ztschr. f. d ges. Staatswiss. vol. 105, 1949, p.
368-387; cf. nota 5 no prefácio à 4? edição.
2 Por pormenores, cf. o prefácio de Max Weber, à terceira edição de Wissenschaftslehre, 1968, p. K - X .
xviii MAX WEBER

Q u a n d o , e m 1952, o editor pediu ao presente autor para c o m e ç a r o trabalho


da nova e d i ç ã o , por este proposta, da p r i n c i p a l obra sociológica de Max Weber, h a v i a ,
c o m o ponto de partida, algumas d e c l a r a ç õ e s do p r ó p r i o Max Weber: o programa global,
redigido por ele c o m o redator da coletânea Grundriss der Sozialòkonomik (GdS) [Fun-
damentos da E c o n o m i a Social], publicada pela p r i m e i r a v e z e m 1915, n o relatório anual
de 1914 da E d i t o r a J . C . B . Mohr (Paul S i e b e c k ) , o s u m á r i o sistemático da " d i v i s ã o da
obra c o m p l e t a " , incorporado por Max Weber aos v o l u m e s avulsos ainda por ele mesmo
editados, de GdS e, a l é m disso, o m e s m o s u m á r i o completo c o m o a n ú n c i o editorial
na p r i m e i r a e d i ç ã o do l i v r o Bankpolitik, de F e l i x S o m a r y , publicado e m 1915 pela
mesma editora. Tanto o relatório da editora (1915) quanto o a n ú n c i o (do mesmo a n o )
r e l a c i o n a v a m p a r a cada contribuição à o b r a completa o n o m e do autor previsto. O
último v o l u m e editado sob a r e d a ç ã o de Max Weber (seção V 1) de GdS foi publicado
e m 1918, e ainda a e d i ç ã o definitiva e integral da s e ç ã o V I I foi publicada, e m 1922,
c o m o plano completo da " d i v i s ã o da o b r a c o m p l e t a " . Cada u m a dessas estruturações
sistemáticas de GdS c o m p r e e n d e u , ao m e s m o tempo, a disposição, desenvolvida por
Max Weber, de sua própria contribuição a este m a n u a l sistemático, disposição que repro-
duzimos no p r e f á c i o à quarta e d i ç ã o deste v o l u m e .
A p u b l i c a ç ã o na seqüência de GdS, que segue a s e ç ã o V, p r i m e i r a p a n e (1918),
foi a p r i m e i r a entrega do p r ó p r i o Max Weber, preparada ainda p o r ele m e s m o para
impressão e publicada e m 1 9 2 1 , após sua morte. Apresenta a seguinte página de rosto:

GRUNDRISS

der

SOZIALÒKONOMIK

I I I . Abteilung
Wirtschaft u n d Gesellschaft.

D i e Wirtschaft u n d die gesellschaftlichen


O r d n u n g e n u n d Mâchte.

Bearbeitet

von

MAX W E B E R

E r s t e r Teil.

D e u m a análise cuidadosa disso resulta a certeza de que Max Weber n ã o m o d i f i c o u


nada e m p r i n c í p i o na estruturação da matéria de toda a s e ç ã o I I I , especialmente d e
sua p r ó p r i a c o n t r i b u i ç ã o , projetada apenas c o m o u m a (a p r i m e i r a ) de suas partes p r i n c i -
ECONOMIA E SOCIEDADE xix

pais. O GdS completo f o i dividido e m cinco l i v r o s e subdividido e m nove seções. D e n t r o


do p r i m e i r o l i v r o , " F u n d a m e n t o s da E c o n o m i a " , as p r i m e i r a s s e ç õ e s traziam títulos
como " E c o n o m i a e ciência e c o n ô m i c a " ( I ) " E c o n o m i a e n a t u r e z a " ( I I 1), " E c o n o m i a
e técnica" ( I I 2 ) , e assim, c o n s e q ü e n t e m e n t e , o título da s e ç ã o I I I e r a : " E c o n o m i a e
sociedade", e foi subdividido nas seguintes duas partes principais:

Seção I I I

E c o n o m i a e sociedade

I . A E c o n o m i a e as ordens e poderes sociais. Max Weber.

I I . D e s e n v o l v i m e n t o dos sistemas e ideais p o l í t i c o - e c o n ô m i c o s


e político-sociais. E. von Philippovich.

Comparando-se c o m isso a página de rosto definida pelo p r ó p r i o Max Weber


para a p r i m e i r a entrega de sua e x p o s i ç ã o ( v e r a c i m a ) , percebe-se claramente que ele,
desde o princípio, tinha determinado o título de sua c o n t r i b u i ç ã o e o m a n t i v e r a . E r a
o seguinte: " A E c o n o m i a e as ordens e poderes s o c i a i s " . O n ú m e r o " I " colocado na
página de rosto e m cima deste título e e m b a i x o da i n d i c a ç ã o " s e ç ã o I I I " etc. resultou
do fato de essa c o n t r i b u i ç ã o ter sido projetada c o m o p r i m e i r a parte p r i n c i p a l da s e ç ã o
I I I , cuja segunda parte p r i n c i p a l f o r a reservada p a r a E u g e n V. Philippovich. Este h a v i a
publicado, e m 1910, na m e s m a editora, u m a coletânea de c o n f e r ê n c i a s , c o m o título
Die Entwicklung der wirtschaftspolitischer Ideen in 19. Jahrhundert. Faleceu, p o r é m ,
em 1917, e Max Weber, s e m dúvida, partiu da conjetura de que apareceria outro redator
para continuar e atualizar o manuscrito deixado p o r Philippovich. Isso foi realizado,
de fato, p o r E d u a r d H e i m a n n , s ó que, depois, na impressão da segunda e d i ç ã o da
seção I (1924), toda aquela parte f o i agregada a esta. E m todo caso, desistiu-se, após
a morte de Max W e b e r , do plano de integrá-la na s e ç ã o I I I , abandonando-se assim
sua c o n c e p ç ã o compositora básica p a r a a s e ç ã o " E c o n o m i a e sociedade". Pois, segundo
ele, a p r i m e i r a p a n e p r i n c i p a l c o m p r e e n d e a p e r c e p ç ã o e m p í r i c a , isto é, partiria do
ser h u m a n o , agindo e m p i r i c a m e n t e e de seu m u n d o de existência para expor o processo
constitutivo da sociedade. A segunda parte p r i n c i p a l ficaria reservada para a perspectiva
da história das idéias, isto é, ao e x a m e das idéias (os sistemas e os ideais) a partir
do movimento (aparentemente) p u r o d e pensamento.
Por f i m o aditamento " P r i m e i r a P a r t e " , que segue ao título " A E c o n o m i a e as
ordens e poderes s o c i a i s " de Max W e b e r , explica-se por ser destinado a anteceder
as exposições conceituais e m e t ó d i c a s , a p r i m e i r a parte, portanto, de sua contribuição,
denominada pelo organizador, de acordo c o m a e x p r e s s ã o de Marianne W e b e r 3 , " T e o r i a
das categorias s o c i o l ó g i c a s " . A essa parte Max Weber n ã o tinha dado subtítulo, m a s
a designa às vezes por " I n t r o d u ç ã o g e r a l ( c o n c e i t u a i ) " e, noutra o c a s i ã o , por "Sociologia
g e r a l " 4 , enquanto que a segunda parte (que ainda jazia e m sua e s c r i v a n i n h a ) ficou
reservada para a análise e e x p o s i ç ã o da matéria.
Essa situação, no momento da morte de Max Weber, mostra que ele havia mantido,
e m p r i n c í p i o , o plano que originalmente esboçara p a r a sua contribuição (assim c o m o
o de toda a s e ç ã o Uíf. A p u b l i c a ç ã o da obra póstuma de Max Weber, e m 1922, destruiu

3 Weber, Marianne. Max Weber — Ein Lebensbild. 1926, p. 687 e seg., 709
4 Weber, Max Wirtschaft und Gesellschaft, 5 ed., p. 1 (nota prelim ), 63 (item 1), 212
5 As divergências determinadas por ele mesmo foram expostas detalhadamente no prefácio à quarta edição

deste volume: Wirtschaft und Gesellschaft, 5 ed , p XXVU.


XX MAX WEBER

essas articulações compositoras, substituiu sua p á g i n a de rosto por outra — m o d i f i -


cando-a e m pontos essenciais, o que fez do título da s e ç ã o o título do v o l u m e i n t e i r o ,
e l i m i n a n d o a segunda p a n e principal correspondente — , e introduziu tanto uma estrutu-
r a ç ã o própria da matéria que d e i x a v a completamente de lado o e s b o ç o do p r ó p r i o
Max Weber, quanto a sua divisão e m três partes, criada pela própria editora e objetiva-
mente n ã o justificada.
A l é m das declarações do p r ó p r i o Max W e b e r e da e d i ç ã o antiga, havia, para prepa-
r a r u m a n o v a e d i ç ã o , três outras p u b l i c a ç õ e s para s e r e m consultadas na revisão: as
análises l ó g i c o - m e t ó d i c a s nas e x p o s i ç õ e s impressas de Max Weber sobre a lógica e meto-
dologia das ciências culturais e sociais, c o l e ç ã o que, após sua morte, recebeu da organi-
zadora o título Aufsätze zur Wissenschaftslehre [Exposições sobre a teoria das ciências],
1922, dedicadas especialmente à r e l a ç ã o entre o conceito e o concebido, assim como
as referências na biografia de Max Weber por Marianne W e b e r (1926J 5 , a l é m das refle-
x õ e s já mencionadas do presente autor sobre as c o n c e p ç õ e s compositoras da " O b r a
p ó s t u m a de Max W e b e r " 7 . Por outro lado, n ã o existia n e n h u m manuscrito do p r ó p r i o
Max Weber para a o b r a , e t a m b é m n ã o h a v i a provas das partes por ele preparadas
para impressão.
A s s i m , a tarefa de elaborar a nova e d i ç ã o antes de 1956 tinha dois objetivos.
Por u m lado tratava-se de r e c u p e r a r a estrutura do pensamento e a c o n e x ã o interna
da grande Sociologia de Max Weber e de realizá-las na nova e d i ç ã o , embora o nexo
c o m a outra e x p o s i ç ã o , baseada na história das idéias, ficasse suspenso. Por outro lado,
importava e m e l i m i n a r , na medida do possível, as i n ú m e r a s mutilações e os erros tipo-
gráficos do texto, que chegavam a privá-lo de sentido. Para a p u b l i c a ç ã o , essas duas
tarefas t i n h a m u m caráter essencialmente conservador. Pois, a l é m de toda d e p u r a ç ã o ,
importava sobretudo reconstituir, c o m a m a i o r fidelidade possível, a c o n c e p ç ã o compo-
sitora na c o n d u ç ã o das idéias de Max Weber c o m o sendo o elemento mais essencial
da f o r ç a persuasiva de sua Sociologia específica, e n ã o desenvolver u m esquema p r ó p r i o
de pensamento, por mais plausível que fosse. E , t a m b é m na revisão do texto, apesar
de ser indicado descobrir e r e v e r todas as dúvidas possíveis, n ã o se podia substituir
p o r i n v e n ç õ e s próprias passagens, p o r mais duvidosas o u m e s m o erradas que fossem,
das quais n ã o se pudesse c o m p r o v a r , c o m toda certeza, a f o r m a correta. Acrescenta-se
ainda o estado de nossas bibliotecas naquela é p o c a . Pois, apesar de o organizador do
texto ter usado, naquele tempo, as mais diversas bibliotecas públicas e de institutos
universitários, n e m de longe se p ô d e pensar na possibilidade de consultar pelo menos
a m a i o r i a das obras necessárias, simplesmente porque n ã o estavam disponíveis. Se,
apesar de tudo, a e d i ç ã o anterior, apresenta grande n ú m e r o de conjeturas cautelosas,
pode-se constatar hoje que apenas muito poucas delas t i v e r a m de ser revogadas o u
substituídas p o r outras soluções.
Nessas c o n d i ç õ e s , n ã o restava alternativa ao organizador do texto, naquela é p o c a ,
s e n ã o reconhecer claramente a o b r i g a ç ã o de d e i x a r no texto u m n ú m e r o considerável
de passagens duvidosas sem c o r r i g i r , s e m poder considerar-se autorizado a intervenções
improvisadas, arbitrárias. Isto se aplica, e m grande parte, aos capítulos I e V I I , assim
c o m o à " T i p o l o g i a das c i d a d e s " , na segunda parte da nova edição. Restava apenas
e x p r i m i r , no p r e f á c i o à quarta e d i ç ã o , a esperança de que u m dia reaparecesse o manus-
crito de Economia e sociedade.
E s s e desejo n ã o ficou completamente sem resposta, de m o d o que, pelas razões
mais diversas, p ô d e - s e enfrentar outra revisão e c o r r e ç ã o da o b r a , e m condições total-

6 Weber, Marianne Lebensbild, op. cit., p. 425, 687 e seg., 709.


" Ver acima, nota 1.
ECONOMIA E SOCIEDADE xxi

mente novas. É que desde e n t ã o registraram-se algumas circunstâncias da m a i o r impor-


tância para a nova e d i ç ã o do o r i g i n a l a l e m ã o que se fez necessária.
Antes de mais nada, a descoberta do manuscrito dos capítulos I e V I I da segunda
parte de Economia e sociedade foi u m acontecimento de importância fundamental,
que n ã o apenas possibilitou u m a revisão autêntica do texto dessas partes da o b r a , mas
também p e r m i t i u tomar exato conhecimento do m é t o d o usado pelo autor e da extensão
em que se v a l e u de outra literatura. T a n t o a ' ' Sociologia do D i r e i t o ' ' quanto a ' ' Sociologia
do E s t a d o " de Max Weber existem, entrementes, c o m o e d i ç õ e s avulsas 8 . F o i possível
tornar acessíveis, passo a passo, os resultados da revisão às traduções estrangeiras.
Uma p o s i ç ã o especial ocupa nesse caso, a e d i ç ã o norte-americana. Mediante íntima
c o l a b o r a ç ã o por mais de quatro anos, conseguiu-se obter revisões do texto e conheci-
mentos da bibliografia inteiramente proveitosos p a r a ambas as e d i ç õ e s a s e r e m elabo-
radas. É m e u desejo reiterar a q u i m i n h a g r a t i d ã o aos professores D r . G u e n t h e r Roth
e Claus Wittlich pela c o l o c a ç ã o de i n ú m e r o s problemas, indicações, i n f o r m a ç õ e s e pela
assistência no tratamento do texto e na c o m p i l a ç ã o da bibliografia. S e m essa c o l a b o r a ç ã o
frutífera, alguns problemas que a crítica do texto teria de enfrentar p e r m a n e c e r i a m
certamente sem s o l u ç ã o . A l é m disso, a análise contínua do texto, necessária p a r a a
nova e d i ç ã o a l e m ã , r e n d e u ainda u m n ú m e r o m a i o r de c o r r e ç õ e s . Por conseguinte,
talvez possamos agora enunciar a esperança de que a v e r s ã o do texto atualmente elabo-
rada resista à análise crítica. N ã o se e x c l u i , c o m isso, a possibilidade de surgir u m
outro posicionamento do p r o b l e m a , talvez até inteiramente novo. S e m as partes do
manuscrito que faltam, a revisão do texto n ã o pode ser considerada u m a tarefa definiti-
vamente acabada.
E m c o n s e q ü ê n c i a disso, o índice das c o r r e ç õ e s do texto tinha de ser considera-
velmente expandido. E m contrapartida, o a p ê n d i c e que tratava da Sociologia da Música
de Max Weber teve de ser s u p r i m i d o , depois de a editora ter decidido atualizar a e d i ç ã o
avulsa desta o b r a importante, confiando a revisão a m ã o s competentes. Para m a i o r
clareza, o índice foi dividido e m índice o n o m á s t i c o e índice de assuntos; ambos f o r a m
ampliados e m vários itens e adaptados à nova e d i ç ã o .
D e acordo c o m as idéias dos redatores e organizadores da e d i ç ã o norte-americana,
o presente autor, c o m a a p r o v a ç ã o do editor, dedicou-se a a m p l i a r consideravelmente
os comentários críticos ao texto. Na quarta e d i ç ã o , estes s e r v i a m principalmente —
abstraindo-se algumas poucas explicações de conceitos e indicações sobre e x p o s i ç õ e s
em outros lugares da obra de Max Weber — p a r a justificar m o d i f i c a ç õ e s o u m a n u t e n ç ã o
do texto. Cheguei à c o n c l u s ã o de que isso, nesta f o r m a , n ã o é suficiente e, e m conse-
qüência, ampliei a finalidade dos c o m e n t á r i o s . Os c o m e n t á r i o s críticos ao texto s e r v e m
agora a três finalidades, tendo, p o r é m , ao m e s m o tempo, de ser limitados a estas.
Servem:
1) para esclarecer conceitos, assim c o m o p a r a legitimar a c o r r e ç ã o ou c o n f i r m a ç ã o
de trechos duvidosos do texto;
2 ) para indicar, na f o r m a de c o m e n t á r i o s , outras passagens da obra completa
de Max Weber, a f i m de demonstrar as c o n e x õ e s internas nesta o b r a ;
3 ) para documentar indicações bibliográficas, resultantes diretamente do texto,
assim c o m o para citar literatura a que se r e f e r e o u e m que se apóia o c o n t e ú d o do
texto.
Na medida e m que a bibliografia destina-se a esclarecer o c o n t e ú d o do texto,
citamos, e m p r i m e i r o lugar, títulos e edições que estavam à disposição do p r ó p r i o

Weber, Max. Staatssoziologie, 2. ed , 1966; Weber, Max. Rechtssoziologie, 2. ed., 1967.


xxii MAX WEBER

Max Weber. Para o esclarecimento de conceitos e fatos o u p a r a a c o l o c a ç ã o de problemas


que e x t r a p o l a m o texto, r e c o r r e m o s t a m b é m à literatura mais atual. Inegavelmente,
a descoberta da bibliografia originalmente usada p o r Max W e b e r ao escrever a o b r a
é principalmente u m assunto da ciência a l e m ã , que, pela r e c u p e r a ç ã o das bibliotecas,
n o entretempo e pelo grande progresso nas r e e d i ç õ e s de l i v r o s neste país, tornou-se
mais fácil de levar a cabo.

II

A idéia compositora da p r i m e i r a parte, r e i m p r e s s a s e m alterações, p o r é m inaca-


bada, que permite reconhecer a divisão e m cinco capítulos, é desde logo transparente.
Mas n ã o se pode e x c l u i r a possibilidade de ela c o m p r e e n d e r u m total de seis capítulos,
caso se suponha que Max W e b e r tivesse destinado outro capítulo (fora da tipologia
g e r a l do projetado capítulo V ) à e s q u e m á t i c a classificatória da pretendida " i n v e s t i g a ç ã o
das f o r m a s de comunidade r e l i g i o s a " 9 . E m s u m a , pode-se reconhecer, sem d ú v i d a ,
que a p r i m e i r a parte, iniciando c o m mínima socialia, o u seja, c o m o comportamento
e a a ç ã o sociologicamente relevantes do i n d i v í d u o c o m o "caso-limite típico-ideal" da
teoria, ascende às relações sociais. D a í alcança a a ç ã o social conjunta (mas n ã o organi-
zada associativamente) de pessoas, u n i õ e s e grupos e finalmente as f o r m a ç õ e s sociais,
c u l m i n a n d o na unidade da associação política, n o d o m í n i o territorial que hoje e m dia
lhe é típico e n o m o d e r n o Estado institucionalizado. S e g u e m os complexos abrangentes
de ações orientadas p a r a a sociedade: economia e d o m i n a ç ã o , depois as camadas, grupos
e associações (classes e estamentos), e m especial, pretendendo-se concluir esta parte,
n u m quinto c a p í t u l o 9 2 , c o m u m a e x p o s i ç ã o g e r a l dos tipos de a ç ã o orientada para a
comunidade e p a r a a sociedade. Mas, c o m o já foi dito, n ã o se pode e x c l u i r a possibilidade
de Max Weber ter destinado u m sexto capítulo separado à tipologia especial das f o r m a s
religiosas de comunidade e sociedade.
Cabe aqui observar o quanto Max Weber s e m p r e a p r o x i m a v a sua sociologia dos
mínima socialia, v a l e dizer, d o sentido subjetivo concreto da a ç ã o social i n d i v i d u a l
e coletiva e das associações intencionalmente formadas. Isso se mostra especialmente
e m seu intenso interesse nas seitas, das quais a f i r m a v a repetidamente que represen-
t a v a m , pelo menos e m princípio, nas a ç õ e s conjuntas, contrárias e paralelas dos agentes,
o a r q u é t i p o de toda m o d e r n a sociedade h u m a n a . Isso se aplica particularmente às f o r m a s
da v i d a associativa, que, exatamente p o r isso, prestam-se de m a n e i r a excelente ao estudo
do caráter das seitas 1 0 . A c i m a disso, a f i r m o u ele, a seita, " n u m sentido importante
para todo o início dos tempos modernos, é o a r q u é t i p o daquelas f o r m a ç õ e s sociais
de grupos que hoje m o l d a m a ' o p i n i ã o pública', os 'valores culturais' e as 'individualida-
d e s ' " 1 1 . O s grupos ( e m sentido a m p l o ) , c o m o relações sociais perenes (tendo ou n ã o
o caráter de associações) constituíam, portanto, p a r a ele, o ponto de partida e o objeto
e m p í r i c o p r i m á r i o de toda análise e teoria sociológica.
Q u a n t o à estruturação do pensamento na segunda parte, a o r d e m do m a n u s c r i t o ,
reconstituída segundo o e s b o ç o do p r ó p r i o Max W e b e r , já pode ser deduzida, de m a n e i r a
puramente formal, do fato de que agora as diversas partes se encadeiam e se juntam
s e m violência, e conformes ao sentido. A p o s i ç ã o dos diversos capítulos e s e ç õ e s entre

9 Wirtschaft und Gesellschaft, 5 ed., p. 360.


* Wirtschaft und Gesellschaft, p. 43, 58, 67, 73, 75
10 Arch. f. Sozialwiss. u. Sozialpol., v. XXXI, 1910, p. 587; Ges. Aufs, z Soziologie u. Sozialpolitik, p.
442; Ges Aufs. z. Religionssoz., v. 1, p 217.
11 Arch. f. Sozialwiss. u. Sozialpol , v. XXX 1910, p. 202.
ECONOMIA E SOCIEDADE xxiii

si, assim c o m o as transições que os l i g a m , e v i d e n c i a m a idéia compositora da o b r a


como anexo coerente de sentido de u m todo e c o m o s e q ü ê n c i a de pensamento essencial-
mente didática, n a qual as remissões às passagens anteriores o u posteriores do texto
realmente e n c o n t r a m nestas suas c o r r e s p o n d ê n c i a s adequadas — c o m algumas raras
e x c e ç õ e s 1 2 . A l é m disso, os títulos dos capítulos — "Sociologia da R e l i g i ã o " , "Sociologia
do D i r e i t o " , "Sociologia da D o m i n a ç ã o " e "Sociologia do E s t a d o " — f o r a m anunciados
literal e expressamente p o r Max W e b e r e m seu ú l t i m o manuscrito acabado de Economia
e sociedade e assim ligitimados 1 3 .
A l é m disso, entretanto, pode-se c o m p r o v a r t a m b é m o sentido da estruturação
da matéria c o m referência ao conteúdo desta, revelando-se sua idéia compositora ine-
rente. A seguir, citarei e x p o s i ç õ e s que já apresentei noutro lugar e m resposta a obje-
ções14.
A análise e e x p o s i ç ã o da matéria da segunda parte inicia c o m duas e x p o s i ç õ e s
gerais que resultam da metodologia específica de Max Weber. Por u m lado, r e f e r e m - s e
à relação entre o m o d o de v e r s o c i o l ó g i c o - e m p í r i c o e o jurídico ou n o r m a t i v o , de
modo g e r a l , nas relações recíprocas entre seus objetos. Isto significa concretamente
a relação de p r i n c í p i o entre a economia e as ordens sociais. Por outro lado, o texto
passa a e x p l i c a r as relações mais gerais entre economia e sociedade, sua r e l a ç ã o de
dependência m ú t u a e os efeitos e m p í r i c o s recíprocos desta. Desta f o r m a , estes dois
capítulos ( I e I I ) constituem a transição da p r i m e i r a parte que, segundo Max W e b e r ,
e x p õ e as "categorias mais gerais da S o c i o l o g i a " , p a r a a segunda parte, c o m sua análise
concreto-empírica das f o r m a s especiais das sociedades, ordenadas segundo as relações
de sentido específicas e características existentes entre elas.
O e x a m e d o manuscrito do capítulo I (da segunda p a r t e ) r e v e l a que o grande
algarismo r o m a n o I a ele anteposto foi escrito pelo p r ó p r i o Max W e b e r 1 5 .
A análise e e x p o s i ç ã o que seguem, iniciando-se c o m o capítulo I I I , c o m e ç a m c o m
a f o r m a de comunidade mais restrita e mais especial: a família (comunidade doméstica),
ascendendo daí progressivamente a comunidades (unidades de sentido) cada v e z mais
abrangentes: o clã, a associação de v i z i n h o s , a comunidade militar e e c o n ô m i c a , a
associação c o m u n a l . E m cada capítulo s ã o mais abrangentes as comunidades tratadas
— as comunidades étnicas (capítulo I V ) — a tribo e a n a ç ã o — as relações de todas
as comunidades citadas c o m a religiosa e a política. Seguem-se imediatamente os tipos
de comunidades religiosas (capítulo V ) que, na figura das religiões universais, s ã o apre-
sentados c o m a pretensão de abranger todos os demais tipos de comunidades.
O tratamento das a ç õ e s orientadas p a r a o mercado, que c o m e ç a o capítulo V I
incompleta, inicia-se c o m a d e c l a r a ç ã o de que todos os tipos de comunidades até e n t ã o
tratados baseiam-se somente n u m a r a c i o n a l i z a ç ã o parcial, diferente para cada tipo,
da estrutura significativa, enquanto que o m e r c a d o , ao p r o m o v e a cabal racionalização
das a ç õ e s sociais p o r ele abrangidas e m cada caso, revela-se o p r ó p r i o arquétipo das
relações societárias. Mas Max Weber diz m a i s nesse capítulo. U m a v e z que a discussão
dos processos no m a r c a d o constitui o c o n t e ú d o essencial da E c o n o m i a Social, n ã o há
necessidade de e x p o r neste contexto o mecanismo especificamente e c o n ô m i c o do mer-
cado e da f o r m a ç ã o dos p r e ç o s — na p r i m e i r a parte, Max Weber escreve sobre a situação
da luta pelos p r e ç o s n o mercado. C a b e aqui acrescentar que ele apresentou,

12 Wirtschaft und Gesellschaft, 5 ed., p. 187, 235, 239, 594, 613, 758.
15 Wirtschaft und Gesellschaft, p. 18 e seg. 25, 27 e seg., 30, 38, 157, 168.
1 4 Windcelmann, Johannes. Max Weber grosse Soziologie. Arch. f. Rechts- und Sozialphil. v. XLIII, 1957,

p. 117-124
1 5 Os pormenores cf minha introdução à segunda edição de: Weber, Max. Rechtssoziologie, p 52.
xxiv MAX WEBER

na p r i m e i r a parte, u m a Sociologia e c o n ô m i c a c o m classificações detalhadas, de m o d o


que o tratamento conciso e inacabado da r e l a ç ã o associativa no mercado encontra aí
sua c o r r e s p o n d ê n c i a classificatória. N ã o cabe, portanto, o b j e ç ã o contra d e i x á - l o no
lugar previsto pelo autor. A l é m disso, o capítulo encontra, aí, e m termos sistemáticos,
seu e s p a ç o estruturalmente adequado. Nos capítulos anteriores, já f o r a m preludiadas
as relações c o m as comunidades políticas, e isso se repete n ã o apenas ao tratar da
socialização no m e r c a d o c o m o t a m b é m a última frase do capítulo sobre o mercado
refere-se literalmente a essa r e l a ç ã o c o m a comunidade política. A o m e s m o tempo,
p o r é m , evidencia-se a r e l a ç ã o concreta do mercado e de sua legalidade específica c o m
a o r d e m e a comunidade jurídicas.
D e v i d o precisamente a essa r e l a ç ã o íntima, Max W e b e r pretendera originalmente
tratar das comunidades políticas e do condicionamento social do direito c o m seus efeitos
sobre a sociedade n u m capítulo c o m u m , sob o título " A comunidade política". P o r é m ,
decidiu logo depois abandonar essa idéia e tratar da Sociologia do D i r e i t o n u m a expo-
sição completa específica; e é assim que a encontramos nos manuscritos por ele deixados
(capítulo V I I ) . É u m dos casos muitos raros e m que o p r ó p r i o Max Weber afastou-se
do e s b o ç o de seu plano, c o m o c o m p r o v a o manuscrito. E m c o a s e q ü ê n c i a disso, os
assuntos restantes do capítulo V I I planejado f o r a m reunidos n u m capítulo particular
( V I I I ) " C o m u n i d a d e s p o l í t i c a s " , o que é adequado à c o e r ê n c i a do pensamento nessas
e x p o s i ç õ e s e compreende, ao m e s m o tempo, a distribuição do poder entre os grupos
dentro das comunidades políticas: classes, estamentos, partidos. A p r o x i m i d a d e do direi-
to e m face do mercado e da economia, p o r u m lado, a intimidade da r e l a ç ã o entre
a f o r m a ç ã o de comunidades políticas e a constituição das f o r m a s de d o m i n a ç ã o , por
outro lado, e, por f i m , o f e n ô m e n o estrutural de que a comunidade jurídica costuma
o u pode ser menos abrangente do que a política, e esta, p o r sua v e z , menos abrangente
do que a d o m i n a ç ã o , l e v a r a m à disposição mercado-direito-comunidade política-do-
m i n a ç ã o . Estes três últimos capítulos ( V I I a D Q s ã o , e m conjunto, os mais pormenorizados
de toda a o b r a , e certamente n ã o é e r r a d a a s u p o s i ç ã o de que Max Weber tenha tido
u m interesse muito especial p o r eles.
A perspectiva da articulação imanente da c o n c e p ç ã o torna-se assim evidente, e
a estruturação interna da o r d e m do pensamento constitui, sem d ú v i d a , u m a parte da
f o r ç a c o m p r o b a t ó r i a do l i v r o . Por isso essa estruturação n ã o pode ser interrompida
ou até m e s m o destruída sem ser posta e m dúvida a compreensibilidade do conjunto.
Revela-se, assim, na estruturação do texto da grande Sociologia de Max Weber,
e m sua f o r m a autêntica, seu elemento compositor g e r a l : a a m p l i a ç ã o contínua da esfera
das f o r m a s sociais de a ç ã o , r e l a ç ã o e o r g a n i z a ç ã o e, c o m isso, a a m p l i a ç ã o das unidades
de sentido sociologicamente relevantes. E , p o r conseguinte, é t a m b é m evidente q u e ,
tanto histórica quanto sistematicamente r e s e r v a v a m - s e para coroamento da obra socioló-
gica completa, a análise e e x p o s i ç ã o da instituição do Estado racionalmente constituído,
c o m o última f o r m a de d o m i n a ç ã o , por enquanto. T a m b é m , no extenso capítulo sobre
a d o m i n a ç ã o , o p r ó p r i o texto d e i x a transparecer claramente sua idéia diretriz. Come-
ç a n d o c o m a análise da d o m i n a ç ã o burocrática, que no contexto foi colocada expressa
e justificadamente no início das e x p o s i ç õ e s 1 6 , o texto ganha fluência no desenvolvimento
da análise e e x p o s i ç ã o . E t a m b é m na perspectiva histórica a e x p o s i ç ã o aproxima-se
gradativamente d o desenvolvimento mais recente especificamente institucional-estatal
e, ao m e s m o tempo, racional-legal, após o f i m do Estado p a t r i m o n i a l absolutista. A

16 Wirtschaft und Gesellschaft. 5 ed., p. 550 (em relação à p. 579> isso corresponde ao procedimento

paralelo na primeira parte, p. 122, 124 [nota preliminar à segunda seção].


ECONOMIA E SOCIEDADE XXV

obra baseia-se, portanto, n u m a c o n c e p ç ã o estruturadora cuidadosamente equilibrada,


coerente tanto sistemática quanto historicamente e que n ã o d e v e ser abandonada. A o
contrário, é especialmente apta a aumentar, de m a n e i r a excelente, a f o r ç a persuasiva
do curso do pensamento e, assim, a legibilidade do l i v r o .
Permito-me dedicar algumas palavras à c o l o c a ç ã o da s e ç ã o sobre a cidade s u l
e norte-européia. Max W e b e r s e m p r e u n i u , e m suas obras mais diversas, c o m o caracte-
rística sua a c o n d i ç ã o de particular; mais especificamente, de associação política a u t ô n o -
m a 1 7 . E l e depreende a especificidade do desenvolvimento das cidades ocidentais, e m
c o m p a r a ç ã o c o m todas as demais f o r m a ç õ e s urbanas, do caráter político especial das
cidades e u r o p é i a s , do fato de t e r e m elas sido " c o m u n i d a d e s " a u t ô n o m a s c o m direitos
políticos p r ó p r i o s 1 8 . Por isso, a tipologia das cidades, na f o r m a e m que f o i concebida,
tem seu lugar, sem d ú v i d a — e e m coincidência c o m o plano — , na Sociologia da
d o m i n a ç ã o , e precisamente ali onde f o i colocada: p o r razões sistemáticas, e m sua parti-
cularidade c o m o associação r e v o l u c i o n á r i a , a p ó s as f o r m a s da d o m i n a ç ã o política, e,
por considerações históricas, c o m o p r e c u r s o r a da constituição e administração racional
do Estado, antes da e x p o s i ç ã o destas.
O manuscrito de " A e c o n o m i a e as ordens e poderes s o c i a i s " , redigido antes
da Primeira G u e r r a e inacabado, d e i x o u e m aberto, p a r a e x p o s i ç ã o posterior, as s e ç õ e s
previstas sobre o Estado m o d e r n o e os modernos partidos políticos. Isso n ã o foi realiza-
do, p o r é m , dado o falecimento p r e m a t u r o do autor. Nessas circunstâncias, a parte
que falta (Sociologia do E s t a d o 1 9 ) , neste c o m p ê n d i o escrito p o r Max Weber conscien-
temente p a r a fins didáticos, f o i completada p a r c i a l e provisoriamente, no interesse
dos estudantes e da pesquisa, a partir de três de suas obras impressas que tratam dessa
problemática. Para i n c o r p o r a r sistematicamente as passagens escolhidas, s e r v i u n ã o
apenas o e s b o ç o de p l a n o de Max W e b e r , mas t a m b é m a disposição p o r ele ditada
em seu último curso n ã o terminado sobre a Sociologia do Estado. C u m p r i a aí explicitar
a relação das partes escolhidas, quanto ao pensamento e à sistemática, c o m a obra
global, evidenciando seu " l u g a r t i p o l ó g i c o " indubitável. A s e ç ã o completada f o i assina-
lada expressamente — c o m o já havia sido feito nos dois prefácios às novas e d i ç õ e s
(1956, 1972) e nos c o m e n t á r i o s ao texto — no lugar e m que foi i n c o r p o r a d a , na nota
de r o d a p é (início da s e ç ã o 8, d o capítulo DC, v o l u m e 2 ) , p a r a indicar c o m o c o n t r i b u i ç ã o
que n ã o foi escrita, nesta f o r m a , pelo p r ó p r i o Max Weber. A idéia de que a o r g a n i z a ç ã o
racional da administração, c o m a prática de princípios administrativos racionais pelos
Estados territoriais, tem o r i g e m nas comunidades políticas particulares das cidades autô-
nomas era u m a doutrina repetidamente p r o n u n c i a d a por Max Weber. A s s i m , as exposi-
ções sobre a m o d e r n a Sociologia d o Estado constituem u m a c o n t i n u a ç ã o sistematica-
mente adequada da tipologia das cidades. Nesta s e ç ã o f i n a l f o r a m incluídas, de outros
contextos correspondentes, somente aquelas f o r m u l a ç õ e s de Max Weber que sé enqua-
dram c o m o teses n u m a Sociologia da d o m i n a ç ã o . A o incluí-las, coube — diferentemente
do tratamento dos capítulos anteriores de Economia e sociedade—adaptar parcialmente
as e x p o s i ç õ e s às outras partes, procedimento adequado a u m a o b r a científica e ademais,
c o m p ê n d i o de estudos, e m c o n t r a p o s i ç ã o ao panfleto político. E m face das exigências
rígidas do p r ó p r i o autor quanto à objetividade e ao caráter neutro da Sociologia cientí-
fica, n ã o p a r e c e r i a justificável outro procedimento. O s textos originais completos das
respectivas e x p o s i ç õ e s estão todos acessíveis ao p ú b l i c o nas três p u b l i c a ç õ e s separadas,

17 Wirtschaftsgeschichte; Abriss der universalen Sozial- und Wirtschaftsgeschichte, 3- ed., 1958, p. 273 e
seg.; Gesammelte politische Schriften, 3- ed., 1971, p. 508, 513-
1 8 Ges. Aufsätze zur Religionssoziologie, v. 1 . , p. 291.
" Wirtschaft und Gesellschaft, p. 168.
xxvi MAX WEBER

cuja temática ultrapassa de longe a escolha utilizável p a r a Economia e sociedade. Pode-


se, portanto, r e c o r r e r a eles e m qualquer m o m e n t o p a r a leitura complementar. S e u
caráter a u t ô n o m o e m nada é prejudicado pela i n c o r p o r a ç ã o p a r c i a l , p a r a fins de ilustra-
ç ã o , n a Sociologia da d o m i n a ç ã o 2 0 .

III

Chegamos agora a u m a b r e v e e l u c i d a ç ã o do significado m e t o d o l ó g i c o da categoria


do "sentido subjetivamente v i s a d o " e das c o n s e q ü ê n c i a s da a ç ã o social na Sociologia
de Max W e b e r 2 1 . Isso se c o n t r a p õ e p o r inteiro a u m a c o n c e p ç ã o teórica segundo a
qual o sentido subjetivo de cada agente i n d i v i d u a l e m nada contribui p a r a as relações
reais entre as a ç õ e s e somente o sentido f u n c i o n a l objetivo dos eventos e das instituições
observáveis pode despertar o interesse da pesquisa. A isso o p õ e - s e a idéia de que é
s e m p r e a a ç ã o social que p r o v o c a (produz o u m a n t é m ) os f e n ô m e n o s sociologicamente
relevantes e de que o acesso à a ç ã o h u m a n a necessariamente passa pela intenção h u -
mana.
A sociologia de Max W e b e r distingue claramente entre o sentido objetivo (tanto
de sistemas de sentido quanto de artefatos de sentido concretos) e o sentido subjetivo-
i n t e n c i o n a l 2 2 . A l é m disso, poder-se-ia, s e m d ú v i d a — e m c o n c o r d â n c i a c o m A l e x a n d e r
v o n S c h e l t i n g 2 3 — distinguir, c o m o caso subordinado, o sentido causal ao q u a l corres-
ponde, n o m e s m o nível m e t o d o l ó g i c o , o sentido objetivo-funcional. Isso se justifica
tanto mais se considerarmos que, na área d o m é t o d o quantitativo-teórico, a terminologia
de causa e efeito pode tornar-se inadequada p a r a f o r m u l a r relações funcionais entre
magnitudes. Neste caso, é necessário que " n o lugar de enunciados sobre relações de
causa e e f e i t o . . . o c o r r a m enunciados sobre relações funcionais entre magnitudes exata-
mente m e n s u r á v e i s , expresso, portanto, e m termos m a t e m á t i c o s " 2 4 .
O sentido "subjetivamente v i s a d o " da a ç ã o social i n d i v i d u a l , m e s m o sendo c o n -
ceito definitório limite, n ã o constitui u m sentido isolado solitário; p e l a contrário, coinci-
d e m nele, na m a i o r i a dos casos, o sentido subjetivo e o f u n c i o n a l . A l é m disso, a o r i e n -
tação da a ç ã o abrange necessariamente o sentido a s e r esperado do comportamento
o u dos agentes participantes potenciais. Pois toda a ç ã o social orienta-se, por d e f i n i ç ã o ,
pela situação objetiva e p o r suas c o n e x õ e s de efeitos. Isso aplica-se m e s m o à a ç ã o
i r r a c i o n a l , e m g r a u indeterminável, enquanto que a a ç ã o tradicional consiste de p e r
si n u m a a c o m o d a ç ã o contínua ao que é dado e transmitido pela tradição. Max Weber
ressalta reiteradamente essa contínua orientação adequada à situação voltada para o
estado objetivamente c o m p r e e n s í v e l das circunstâncias. S e r v e m nisso c o m o referências
tanto o v a l o r preexistente quanto oS fatos e modos de funcionamento da c o n s t e l a ç ã o

2 0 Uma explicação detalhada depreende-se da introdução e dos comentários a: Weber, Max. Staatsso-

ziologie; Soziologie der rationalen Staatsanstalt und der modernen politschen Parteien und Parlamente 2.
ed., 1966.
2 1 Uma investigação pormenorizada encontra-se em: Girndt, Helmut. Das soziale Handeln als Grundkategorie

erfahrungswissenschaftlicher Soziologie. (Publicações do Max Weber Institut da Universidade de Munique,


U 1967.
2 2 Windtelmann, Johannes. Max Webers Verständnis von Mensch und Gesellschaft, (Gedächtnisschrift der

Universität München zur 100. Wiederkehr von Max Webers Geburtstag, 1964 [1966], p. 223 e seg.
2 3 Schelting, Alfexander von. Die logische Theorie der historischen Kulturwissenschaft von Max Weber und

im besonderen sein Begriff des Ideal typus. Arch. f. Soz. wiss. u. Soz. pol., v. 49, 1922, p. 686 e seg.
[Cap. V]; do mesmo autor: Max Webers Wissenschaftslehre (1934), p 354 e seg.
2 4 Stegmüller, Wolfgang. Das Problem der Kausalität (Probleme der Wissenschaftstheorie, Festschrift f. Victor

Kraft, org. por Ernst Topitsch, Wien, 1960, p. 171, 190), p. 182.
ECONOMIA E SOCIEDADE XXVÜ

objetiva das c o n d i ç õ e s e dos meios adequados de enfrentá-la de acordo c o m os objetivos


visados, além da contínua o r i e n t a ç ã o pela conduta atual o u v i r t u a l dos outros partici-
pantes da a ç ã o social. A a ç ã o i n d i v i d u a l e o sentido concreto s ã o alimentados, desde
o início, c o m c o n t e ú d o s e referências significativos objetivos. A l é m disso, precisamente
esse estado intencional inicial subordina-se, na sua realização, ao processo s o c i o l ó g i c o :
cada i n d i v í d u o é socializado junto c o m sua intenção e a ç ã o . Nas a ç õ e s conjuntas, p a r a -
lelas e contrárias de u m ou vários indivíduos, acontecem inevitavelmente processos
de m o d i f i c a ç ã o e f u s ã o d o sentido. É da essência d o " p r o c e s s o de s o c i a l i z a ç ã o " e de
todo o enredamento d o i n d i v í d u o nele que intenções e a ç õ e s s e j a m levadas a o p e r a r
no conjunto das circunstâncias sociais e do processo permanente de societarização.
Se n ã o fosse assim, n ã o existiria o p r o b l e m a e s p e c í f i c o da Sociologia: o resultado da
interação mostra, na m a i o r i a dos casos, u m sentido modificado, p o r assim dizer, sociali-
zado, investido n o resultado da a ç ã o conjunta social. E os d o m í n i o s de sentido, que
se i n i c i a m c o m o i n d i v í d u o c o m o agente social e se t o r n a m cada v e z mais abrangentes,
podem levar — comparadas à q u e l a situação inicial — a u m a t r a n s f o r m a ç ã o m á x i m a
do sentido e dos resultados das ações. Isto é, o agente i n d i v i d u a l tem de participar
na constituição do sentido objetivo-funcional das relações e instituições c o m que l i d a ,
incorporando-as cada v e z m a i s — ao p r e ç o de sua própria participação ativa nesses
fenômenos.
Por conseguinte, temos c o m o complexos que a b r a n g e m inevitavelmente cada indi-
v í d u o e n v o l v i d o n u m a a ç ã o socialmente orientada: 1 ) a situação inicial objetiva (que
inclui o comportamento a ser esperado de outros), 2 ) a causalidade de finalidade, meios
e conseqüências secundárias; 3 ) o c o n t e ú d o f u n c i o n a l objetivo da r e l a ç ã o o u da configu-
ração de sentido e m questão; 4 ) o fato de que tanto o sentido intencional quanto o
funcional são impostos à f o r m a ç ã o social, s e m p r e de n o v o , pelo ser h u m a n o socializado,
sendo possível, neste caso, que as c o n c e p ç õ e s de finalidade de u m a m i n o r i a m a i o r
ou m e n o r dos participantes s e j a m eliminadas ao se f o r m a r e m pactos o u maiorias; e,
finalmente, 5 ) o processo de modificação do significado o u da f u n ç ã o , o que leva a
uma situação diferente, " i m p o n d o - s e " , portanto, aos participantes e provocando-os
a enfrentá-la de novo. E s s a d i v e r g ê n c i a entre a finalidade intencional e a f u n ç ã o efetiva
(muitas vezes n ã o pretendida) de u m a f o r m a ç ã o o u instituição social, n a f o r m a de u m a
m o d i f i c a ç ã o do significado social, assim c o m o de uma m o d i f i c a ç ã o efetiva das circuns-
tâncias socialmente decisivas (social change), é u m f e n ô m e n o e m p í r i c o f r e q ü e n t e m e n t e
observado 2 5 . O processo de socialização significa, portanto, u m a i n c o r p o r a ç ã o c o m p l e x a
do i n d i v í d u o , de suas intenções o u interações, e m relações o u associações sociais m a i s
abrangentes. E isso acontece seja e m v i r t u d e de seu interesse (por sua situação de
interesses, e a f i n a l e m v i r t u d e do h á b i t o ) o u pelo e x e r c í c i o do poder, pela c o e r ç ã o ,
portanto. As a c o m o d a ç õ e s necessárias às representações, instituições e poderes sociais
podem, portanto, corresponder inteiramente ao p r ó p r i o interesse do indivíduo, servin-
do talvez de meios p a r a r e a l i z a r outros objetivos de suas ações.
Para dar u m e x e m p l o de c o m o Max W e b e r demonstra as articulações de u m a
a m p l i a ç ã o do c o n t e ú d o e do â m b i t o de sentido mediante a orientação pelo sentido
funcional, indicamos o caso da economia m o n e t á r i a 2 6 . O dinheiro c o m o instituição
social é u m sistema objetivo de sentido. O processo social e c o n ô m i c o - m o n e t á r i o é u m
â m b i t o de sentido objetivo e, ao m e s m o tempo, u m sistema de relações funcionais:
u m c o m p l e x o d e finalidade, meios e conseqüências secundárias. Para o sentido subjeti-

25 Sobre a transformação do sentido de associações ver, por exemplo, Wirtschaft und Gesellschaft, 5. ed.,
p. 118-119 (§40) cf. p. 204(§3>
26 Wirtschaft und Gesellschaft, 5. ed., p. 382.
xxviii MAX WEBER

v ã m e n t e visado c o i n c i d e m aí, portanto, os fatores objetivo e subjetivo tanto na o r i e n -


tação objetiva dotada de sentido quanto na o r i e n t a ç ã o subjetiva intencional. Efetua-se
esta n ã o apenas p e l o sistema de sentido ( d i n h e i r o ) e pela situação concreta à qual o
agente seja confrontado, n ã o apenas p o r cada p a r c e i r o individual nas relações e c o n ô m i -
c o - m o n e t á r i a s e pela finalidade objetiva intencional da a ç ã o p r ó p r i a , mas igualmente,
pelo c o m p l e x o das f u n ç õ e s monetárias e pelo que possa ser realizado por meio deste.
Patenteia-se, assim, u m escalonamento do c o n t e ú d o significativo dos processos,
relações e regularidades sociais: a intenção do i n d i v í d u o na a ç ã o social constitui a unida-
de i n f e r i o r na escala conceituai; acima desta situa-se a estrutura de sentido interno
às relações sociais, c o m s e u equilíbrio interno. A c i m a delas, p o r sua vez, encontram-se
os objetivos superiores de associações baseadas e m acordos m ú t u o s c o m estruturas
mais o u m e n o s soltas o u de associações (organizadas) cujos estatutos f i x a m finalidade
específica. Mesmo nestas pode acontecer u m a m o d i f i c a ç ã o da finalidade, e m v i r t u d e
de m u d a n ç a do r u m o da a ç ã o organizada, e isso independentemente da a p r o v a ç ã o
decidida o u tácita dos participantes o u associados. Mas já as c o n c e p ç õ e s sobre a finali-
dade, n o m o m e n t o da f u n d a ç ã o de associações c o m finalidade fixada nos estatutos,
significam a c r i a ç ã o de u m sentido supra-individual. A m o d i f i c a ç ã o da finalidade pode
ser efetuada modificando-se estatutos o u decidindo-se a c o r r e ç ã o das ações organizadas
estatutariamente discrepantes p o r meio de u m a " r e v o l u ç ã o " . Neste ú l t i m o caso, portan-
to, pela substituição dos m e m b r o s dos ó r g ã o s que e x e r ç a m suas f u n ç õ e s de maneira
divergente p o r outra equipe c o m diretivas conformes aos estatutos. Nessas c o n d i ç õ e s ,
a interpretação do sentido fica, portanto, c o m os m e m b r o s da associação. No caso
das associações de d o m i n a ç ã o baseadas n u m a o r d e m de d o m i n a ç ã o estatuída, trata-se
de finalidades das a ç õ e s associativas impostas pelo quadro administrativo, com apro-
v a ç ã o majoritária. A m a i o r i a , por sua v e z , constitui-se, nas f o r m a s modernas de demo-
cracias associativas, de associações c o m estruturas semelhantes, c o n f o r m e Max Weber
observara p r i m e i r o nos Estados Unidos da A m é r i c a do Norte. As " r e v o l u ç õ e s " dentro
das existentes " r e g r a s do j o g o " democráticas consistem n u m " r e n d e r de g u a r d a " legal-
mente efetuado. A circunstância de que pode h a v e r e realmente há r e v o l u ç õ e s f o r a
da legalidade n ã o se o p õ e a isso.
C o m a integração progressiva e m contextos de relações sociais, especialmente
nos de caráter permanente, e mais ainda de o r g a n i z a ç ã o e m associações, d i m i n u i , por-
tanto, na m a i o r i a dos casos, a possibilidade dos indivíduos de fazer v a l e r seus respectivos
objetivos e finalidades subjetivos, desde que n ã o consigam elevar estes a uma volonté
de tous, permanecendo m i n o r i a s . Isto se aplica especialmente à crescente e x t e n s ã o
e desenvolvimento de c o r p o r a ç õ e s territoriais, nas quais, entretanto, v a i se ampliando,
ao m e s m o tempo, a m a r g e m p a r a realizar intenções e interesses n ã o ligados à associação,
o que pode levar casualmente à f o r m a ç ã o de u m a volonté de tous modificada ou de
caráter diferente. E m contrapartida, a volontégénérale pode representar e n t ã o o sentido
funcional objetivo das atividades da associação, o q u a l , entretanto — c o n f o r m e v i m o s
— , pode ser a l c a n ç a d o t a m b é m por parte da volonté de tous, sendo tanto incorporável
c o m o m o d u l á v e l . Nestas c o n d i ç õ e s , sob f o r m a s empíricas de d o m i n a ç ã o o u associação
livre-democrática, a volonté de tous é f o r m a d a p o r maiorias simples ou qualificadas.
É evidente, portanto, que Max Weber n ã o reduz a realidade social a algo c o m o
a orientação das a ç õ e s , e t a m b é m n ã o se pode fazer a o b j e ç ã o de que ele, ao falar
da a ç ã o social, p õ e c o m o absoluto, ilicitamente, u m elemento parcial do processo social.
Muito m e n o s ainda considera ele a a ç ã o social do ponto de vista solipsístico, no sentido
de n ã o e x i s t i r e m coisas, mas somente a ç õ e s , na f o r m u l a ç ã o de B e r g s o n 2 7 Max Weber

27 Bergson, Henri. Matière et mémoire (1896), primeira tradução alemã: 1908.


ECONOMIA E SOCIEDADE XXÍX

apenas se o p õ e decididamente ao hipostasiamento de personalidades coletivas que refle-


tem e agem 'por si m e s m a s ' 2 8 . A o m e s m o tempo, ele i n c o r p o r o u p r o f u n d a m e n t e a
enérgica sentença de Kant, que considera u m e s c â n d a l o da filosofia e do j u í z o h u m a n o
em geral negar, apesar de toda a " r e v o l u ç ã o do p e n s a m e n t o " , a realidade objetiva
do mundo e x t e r i o r 2 9 . É que justamente Max W e b e r indica expressamente o fato de
as disciplinas e m p í r i c a s , " o n d e q u e r que se trate das relações reais entre seus o b j e t o s " ,
não p o d e r e m proceder de outra m a n e i r a a n ã o ser sobre a base do " r e a l i s m o i n g ê n u o " ,
"mas, dependendo do caráter qualitativo do objeto, de f o r m a d i v e r s a " 3 0 .
À a ç ã o social confronta-se inevitavelmente o conjunto do m u n d o objetivo-con-
creto. E m todo caso, ressalta inequivocamente Max W e b e r , a a ç ã o social vincula-se
às "situações objetivas condicionantes" de s e u ponto de partida c o n c r e t o 3 1 : isto é , à
constelação objetivamente dada das c o n d i ç õ e s , realizando-se nas bases destas. N ã o se
trata aí, de m o d o a l g u m , de u m confronto direto entre a ç ã o e situação, mas s e m p r e
de uma c o n c a t e n a ç ã o de ambas in actu-. pela o r i e n t a ç ã o (subjetiva) do agente na situação
inicial, pelas esperanças reais p o r este nutridas, pela causalidade entre f i m e meios,
pela possibilidade anterior-subjetiva (e a posterior-objetiva), pela probabilidade estatís-
tica do sucesso intencionado 3 2 . Através desses fatores intermediários, a situação objetiva
favorece—no caso da c o n s i d e r a ç ã o r a c i o n a l , orientada pelo f i m — a escolha de d e t e r m i -
nada decisão (ou várias). S ã o essas circunstâncias concreta o u geralmente favorecedoras
às quais se dirige o interesse especial das ciências empíricas e que constituem a base
da c o m p r e e n s ã o das regularidades e probabilidades empíricas.
As ações dos participantes orientam-se, portanto, continuamente pelos processos
" a s e r e m e s p e r a d o s " , e n ã o p o d e m ser realizadas sem p e r c e p ç ã o concreta do desenvol-
vimento de circunstâncias e dos m é t o d o s e s e m perspectivação da finalidade visada.
A c o m p r e e n s ã o (antecipada e c o n t í n u a ) desses processos e regularidades efetua-se, no
nível da a ç ã o cotidiana, pela e x p e r i ê n c i a primária. Na área das ciências, isso se d á ,
inicialmente, pela experiência e m p í r i c a , metodicamente p u r i f i c a d a , e, afinal, na c o m -
preensão f u n c i o n a l , f o r m u l a d a e m termos m a t e m á t i c o s . Para as ciências que se ocupam
da a ç ã o importa, e n t ã o , principalmente v e r i f i c a r até que ponto e de que m a n e i r a a
ação h u m a n a , de m a n e i r a r e c o n h e c í v e l , t e m participação colaboradora nesses processos
e regularidades. T a m b é m desses fatos (de a ç ã o ) pode ser obtido conhecimento nomo-
lógico.
As intenções, interações e c o o p e r a ç õ e s de seres humanos interessados e orientados
atuam continuamente sobre fatos e contextos na sociedade e na história, e podem i n -
fluenciá-las e f o r m á - l a s até u m certo g r a u geralmente indeterminável: se n ã o fosse
assim, n ã o h a v e r i a ações. Mas, da m e s m a m a n e i r a , o desenvolvimento das circunstâncias
e os contextos da realidade social-histórica d e t e r m i n a m o m u n d o ideal e as intenções
de seres humanos praticamente ativos, u m a v e z que estes — e m v i r t u d e da experiência
social — conhecem as circunstâncias e os contextos, e por eles se orientam. C o m refe-
rência a eles, portanto, f o r m a m , n o conjunto deste m u n d o m a t e r i a l , seus interesses
materiais e ideais e d e s e n v o l v e m a f i n a l objetivos que p a r t e m do que é " d a d o " ( o u
do que c o n s i d e r a m c o m o t a l ) e de possibilidades objetivas (adequadas) inerentes a este

28 Wirtschaft und Gesellschaft, 5- ed., p. 6 (item 9 ) 13 (§ 3, item 2>, cf. Wissenschaftslehre, 3 ed., p.
439.
2 9 Kant, Immanuel. Vorrede zur 2. Aufl. der Kritik der reinen Vernunft (1787) nota à p. XXXIX-XL.
50 Wissenschaftslehre, 3. ed., p. 437.
3 1 Ver, por exemplo, Wirtschaft und Gesellschaft, 5- ed., p. 227, acima.
3 2 Conforme também o comentário esclarecedor em: Weber, Max. Economy and society, ed. by Guenther

Roth and Claus Wittich, New York, 1968, v. 1, p. 59, nota 13 (Talcott Parsons)
XXX MAX WEBER

" d a d o " p a r a conseguir, c o m meios apropriados, o objetivamente possível de f o r m a ç ã o


e t r a n s f o r m a ç ã o da realidade, n o sentido das respectivas metas. Nesse processo, os
objetivos dos diversos indivíduos socialmente ativos s ã o diversos — c o n f o r m e a respec-
tiva idéia sobre a situação inicial e a dos interesses: há tantas divergências entre os
interesses quanto diferenças nas p e r c e p ç õ e s e c o n c e p ç õ e s . D e m a n e i r a alguma trata-se
de conceber essa espontaneidade c o m o p u r a r e p r o d u ç ã o ; s e m p r e s ã o desenvolvidas
e seguidas na prática, e m p r o j e ç õ e s especulativas, orientações das ações c o m vistas
ao f i m .
Nisso e e m c o n c o r d â n c i a c o m as tendências opostas da realidade entre si a a f i r m a -
ç ã o de Max W e b e r 3 3 , de que os interesses d e t e r m i n a m as a ç õ e s sociais dos seres h u m a n o s ,
i n c l u í d o t a m b é m o confronto c o m as cruel necessities of life, encontra c o r r e s p o n d ê n c i a
na c o n c l u s ã o complementar, igualmente p o r ele acentuada, de que as p e r c e p ç õ e s e
c o n c e p ç õ e s de agentes humanos costumam ser determinadas de m a n e i r a significativa
e e m grande parte pela situação social, e c o n ô m i c a e política e m que eles se encontram.
Ambas as c o n c l u s õ e s estão t a m b é m cientificamente relacionadas, c o m o perspectivas
explicativas de caráter heurístico, e a b a r c a m assim aquela pluralidade de causações
opostas que cabe demonstrar n o caso i n d i v i d u a l .
Trata-se, portanto, de desenvolver u m saber n o m o l ó g i c o , tanto dos contextos
objetivos, expondo-se estes t a m b é m de m a n e i r a quantitativa-teórica, quanto das inten-
ç õ e s racionais e i r r a c i o n a i s das a ç õ e s , das orientações c o m vistas ao f i m e dos processos
dotados de sentido. N e n h u m e x a m e compreensivo-interpretativo dos motivos determi-
nantes das a ç õ e s humanas sociais é i ma g i n á ve l s e m esse p a t r i m ô n i o de saber n o m o l ó -
gico. O conhecimento significativo-interpretativo das m o t i v a ç õ e s , p o r sua vez, pode
— e d ev e — ser transformado e m saber n o m o l ó g i c o . É s ó dessa m a n e i r a que fica
garantido aquele excedente do conhecimento c o m p r e e n s i v o e m o p o s i ç ã o ao abstrato
— pela inclusão do ser h u m a n o . Conhecimento do q u a l Max Weber partia, conside-
rando-o u m a aspiração específica das ciências que tratam das ações e do ser h u m a n o ,
e m cujo â m b i t o suas interpretações abrangentes i n c lu í a m, s e m p r e de n o v o , justamente
a Sociologia.
D e v o m e u s agradecimentos ao Professor D r . A n t o n Spitaler, pelo aconselhamento
na transcrição de expressões semitas e árabes, ao Professor D r . Wolfgang M ü l l e r e
ao D r . J ü r g e n V o n B e c k e r a t h , pelas i n f o r m a ç õ e s egiptológicas, aos Professores D r .
W e n e r Betz, D r . K n u t B o r c h a r d t , D r . K a r l f r i e d G r ü n d e r , D r . R e i n h a r d Lauth, D r . Rainer
Lepsius, D r . G e r h a r d t O e s t r e i c h , D r . K o n r a d Zweigert e ao D r . W e r n e r D i e i n , por infor-
m a ç õ e s e indicações científicas especiais. A g r a d e ç o ao Sr. Stefan Vogt tanto pela elabo-
r a ç ã o d o índice o n o m á s t i c o quanto pela adaptação deste e do índice de assuntos, e m
muitos itens ampliado pelo organizador do texto a nova contagem de páginas. G o s t a r i a
t a m b é m de e x p r e s s a r novamente meus sinceros agradecimentos a meus antigos colabo-
radores n o Max Weber Institut da Universidade de Munique, D r a . Elisabeth K o n a u e
D r . G e r t Schmidt, pela assistência n a c o n f i r m a ç ã o de grande n ú m e r o de r e f e r ê n c i a s
bibliográficas. E especialmente a g r a d e ç o ao bibliotecário D r . Franz Merta, da Biblioteca
Estadual da B a v i e r a , por sua disposição incansável de assistir na bibliografia p a r a os
comentários.

Munique, v e r ã o de 1976.

JOHANNES WlNCKELMANN

33 Ges. Aufsätze zur Religionssoziologie, v. 1, p. 252.


Prefácio à quarta edição

A obra p ó s t u m a p r i n c i p a l d e Max W e b e r apresenta-se aqui de f o r m a m o d i f i c a d a


e desprendida do contexto da o b r a coletiva Grundriss der Sozialòkonomik (GdS) [ F u n d a -
mentos da E c o n o m i a S o c i a l ] , da qual constituiu até agora a s e ç ã o I I I . A n o v a e d i ç ã o
foi realizada segundo os princípios expostos p e l o organizador na revista Zeitschrift
für die gesamte Staatswissenschaft1. A idéia fundamental é simples. A p r i m e i r a parte
da grande Sociologia de Max W e b e r , que c o n t é m a teoria dos conceitos, foi escrita
após a p r i m e i r a G u e r r a M u n d i a l , nos anos de 1918 a 1920. O manuscrito da segunda
parte, ao contrário, foi redigido antes da P r i m e i r a G u e r r a Mundial e, exceto algumas
inserções posteriores, nos anos de 1911 a 1913- O autor d e u notícia da existência anterior
deste manuscrito, pela p r i m e i r a vez, na nota introdutória a seu artigo sobre as categorias
sociológicas de 1913 2 - Max W e b e r p u b l i c o u o plano de sua c o n t r i b u i ç ã o destinada ao
GdS, s e ç ã o I I I : " E c o n o m i a e s o c i e d a d e " , depois de já ter aparecido o manuscrito m a i s
antigo, no r e s u m o sobre a " d i v i s ã o das obras completas", adicionado inicialmente a
cada v o l u m e da coletânea que foi aparecendo a partir de 1914 3 . U m a v e z que o m a n u s -
crito da parte mais antiga n ã o foi submetido a n e n h u m a profunda revisão, n ã o é de
se a d m i r a r que seus respectivos componentes coincidam c o m o plano original. A s s i m ,
este r e v e l a a idéia compositora da o b r a . O manuscrito mais n o v o desenvolve e n t ã o
a p r i m e i r a s e ç ã o do plano p a r a u m a ampla teoria classificatória das categorias, que,
entretanto, p e r m a n e c e u inacabada. O p r ó p r i o plano de Max W e b e r p a r a seu c o m p ê n d i o
da sociologia c o m p r e e n s i v a , impresso mais adiante p a r a fins de ilustração e p a r a possi-
bilitar a c o m p a r a ç ã o , s e r v i u de base, quanto ao c o n t e ú d o , p a r a a e d i ç ã o atual da o b r a .
A m a n u t e n ç ã o do título d o l i v r o Economia e sociedade r e q u e r algumas palavras
de justificação. A " D i v i s ã o da obra c o m p l e t a " , mostra que a s e ç ã o I I I tinha o título
geral de " E c o n o m i a e s o c i e d a d e " 4 , mas estava subdividida, p o r sua v e z , e m duas s e ç õ e s
principais, das quais somente a p r i m e i r a , c o m o título " A E c o n o m i a e as ordens e
poderes s o c i a i s " 5 , f o r a redigida p o r Max Weber. Na realidade, este e r a o título p r e v i s t o
da c o n t r i b u i ç ã o de Max W e b e r que continha sua grande sociologia p a r a o conjunto
do GdS. N ã o obstante, esta última e mais abrangente o b r a de Max W e b e r a d q u i r i u
fama m u n d i a l sob o título " E c o n o m i a e sociedade". É que, c o m a p u b l i c a ç ã o da p á g i n a
de rosto original modificada da p r i m e i r a e d i ç ã o , abandonara-se a idéia de i n c o r p o r a r
a segunda c o n t r i b u i ç ã o à s e ç ã o I I I , e o título r e z a v a então: " S e ç ã o I I I . E c o n o m i a e

1 Max Webers Opus Posthumum (Ztschr. f. d. ges. Staatswiss., v. 105, 1949, p. 368 e seg )
2 Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie (Logos, v. IV, 1913, p. 253 e seg.) reproduzido em
Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, 2. ed. 1951, p 427 e seg.
3 Uma exposição muito detalhada da "Divisão da obra completa", citando-se cada contribuição e seu autor

previsto, traz também o relatório de atividades do ano de 1914, publicado em 1915, da editora J.C.B. Mohr
(Paul Siebeck) (p. 9-13) A disposição nele contida da contribuição de Max Weber corresponde literalmente
à divisão Impressa nos volumes avulsos de Grundriss der Sozialökonomik, isto é, àquilo que, com todo
direito, pode ser designado como plano original.
* Em correspondência, por exemplo, às partes "Economia e ciência econômica", "Economia e natureza"
e "Economia e técnica".
5 Para a outra parte desta seção estava previsto, como autor, Eugen von Philippovich Pormenores no estudo

citado na nota 1.
xxxii MAX WEBER

sociedade. Redigida p o r Max W e b e r " . A s s i m , a c o n t r i b u i ç ã o de Max W e b e r , desde s u a


p u b l i c a ç ã o n o ano de 1922, preenchia sozinha toda a s e ç ã o I I I , sob o título desta: Econo-
mia e sociedadé. Se p a r a o futuro seria conservado este título da o b r a , m e s m o e m
sua f o r m a a u t ô n o m a , independente daquela c o l e t â n e a , a r a z ã o decisiva disso é d u p l a .
C o m vistas à matéria, é decisivo que n o f u t u r o o corpo p r i n c i p a l da o b r a , toda a segunda
parte, voltará a l e v a r a d e s i g n a ç ã o de " A E c o n o m i a e as ordens e poderes s o c i a i s " ,
precedido apenas pela p r i m e i r a parte, " T e o r i a das categorias s o c i o l ó g i c a s " , de o r i g e m
posterior e n ã o denominada pelo p r ó p r i o Max W e b e r , enquanto que o título Economia
e sociedade que compreende ambas as partes, mostra-se, quanto à matéria, muito ade-
quado a este f i m . Sob o aspecto prático, esse título p a r a a Sociologia de Max Weber
já está introduzido desde o início, e é usual m e n c i o n á - l o e citá-lo apenas desta f o r m a .
A seguir r e p r o d u z i m o s o plano o r i g i n a l , sob o título da s e ç ã o , somente no referente
à c o n t r i b u i ç ã o do p r ó p r i o Max Weber.

ECONOMIA E SOCIEDADE

A E c o n o m i a e as ordens e poderes sociais

1. Categorias das ordens sociais


Economia e Direito em sua relação fundamental
Relações econômicas das associações em geral
2. Comunidade doméstica, oikos e empresa
3. Associação de vizinhos, clã e comunidade
4. Relações de comunidades étnicas
5. Comunidades religiosas
Condicionamento de classe das religiões; religiões mundiais e mentalidade econômica
6. A relação comunitária no mercado
7. A associação política
As condições de desenvolvimento do Direito. Estamentos, classes, partidos. A nação.
8. A dominação
a) Os três tipos da dominação legítima
b) Dominação política e hierocrática
c) A dominação ilegítima. Tipologia das cidades
d) O desenvolvimento do Estado moderno
e) Os partidos políticos modernos

E x t e r n a m e n t e , a nova e d i ç ã o distingue-se e m sua estruturação do plano original


de Max Weber e m vários aspectos. O s dois corpos do manuscrito colocam-se cada v e z
sob u m tema diferente. E n q u a n t o que o manuscrito mais recente desenvolve a tipologia
dos conceitos, o mais antigo apresenta u m a e x p o s i ç ã o das relações e desenvolvimentos
s o c i o l ó g i c o s . No título da p r i m e i r a entrega de Economia e sociedade, ainda organizada
pelo p r ó p r i o Max Weber e que t r o u x e o c o m e ç o das e x p o s i ç õ e s conceituais inacabadas,
estas s ã o designadas c o m o a " p r i m e i r a p a n e " , o que é confirmado tanto pelas f r e q ü e n t e s
referências, na teoria das categorias, à " e x p o s i ç ã o detalhada" posterior quanto pela
o b s e r v a ç ã o , na segunda parte, sobre a "Sociologia g e r a l " distinta da e x p o s i ç ã o detalha-
d a 7 . E m c o n s e q ü ê n c i a disso, a nova e d i ç ã o e x p e r i m e n t o u u m a bipartição na " t e o r i a

6 Para citar uma exposição mais detalhada, permitimo-nos indicar o tratado mencionado acima, p. XXV,
nota 1, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft (especialmente às p. 370-371, 373, 376-377.
7 Wirtschaft und Gesellschaft. 4. ed. p. 212.
ECONOMIA E SOCIEDADE XXXÜi

das categorias s o c i o l ó g i c a s " e na e x p o s i ç ã o da matéria c o m a d e s i g n a ç ã o d e ' 'A E c o n o m i a


e as ordens e poderes s o c i a i s " 8 .
A p r i m e i r a parte r e p r o d u z inalterada a v e r s ã o da p r i m e i r a entrega organizada
pelo p r ó p r i o Max Weber. S ó que os subtítulos de Max Weber, que estruturam o texto,
foram insertos t a m b é m n o s u m á r i o entre a divisão dos p a r á g r a f o s , e os e s b o ç o s de
uma tipologia dos estamentos, encontrados nos escritos p ó s t u m o s , f o r a m anexados
como " a p ê n d i c e " , a p ó s o capítulo sobre estamentos e classes. A segunda parte traz
o texto do manuscrito mais antigo n u m a disposição das matérias correspondente ao
plano original de Max W e b e r ; n o entanto, a estruturação efetuada desta parte se distingue
em quatro pontos daquele plano. E m c o n c o r d â n c i a c o m as e d i ç õ e s anteriores, as duas
subseções restantes d o t ó p i c o 1 do plano f o r a m destinadas a s e r e m capítulos separados;
os tópicos 2 e 3 f o r a m reunidos n u m capítulo ú n i c o , e a Sociologia do D i r e i t o , que
existia e m f o r m a acabada a u t ô n o m a , foi anteposta, c o m o capítulo independente, ao
capítulo que correspondia ao t ó p i c o 7 restante do plano. T u d o isso deve ter resultado
do manuscrito p ó s t u m o , q u a n d o da p u b l i c a ç ã o anterior. U m ú l t i m o desvio de Max
Weber de seu plano o r i g i n a l consiste e m que p a r a os tópicos 8 d e 8 e deste foi previsto
inicialmente u m tratamento separado do desenvolvimento do Estado m o d e r n o e dos
partidos políticos modernos. E m o p o s i ç ã o a isso, Max Weber relegou, na teoria das
categorias entregue por ele m e s m o à i m p r e s s ã o no ano de 1920, a e x p o s i ç ã o material
da estrutura e f u n ç ã o dos partidos p a r a a Sociologia do E s t a d o 9 . A l é m disso, u m a v e z
que os parlamentos c a r a c t e r i z a v a m o tipo do m o d e r n o " E s t a d o legal c o m constituição
representativa" ( e , p o r conseguinte, s ã o tratados p o r Max Weber e m sua particularidade
como ó r g ã o do E s t a d o 1 0 ) , mas, por sua parte, " n ã o p o d e m ser e x p l i c a d o s " , e m s u a
função, " s e m a interferência dos p a r t i d o s " 1 1 , parece impossível u m tratamento separado
das modernas f o r m a s estruturais do Estado, dos partidos e dos parlamentos. As exposi-
ções referentes ao Estado r a c i o n a l , ao parlamento e aos partidos f o r a m reunidas, por
isso, n u m a ( ú l t i m a ) s e ç ã o única dentro do capítulo que trata da Sociologia da d o m i n a ç ã o .
Nestes quatro pontos, o plano o r i g i n a l de Max Weber pode considerar-se, de fato,
por ele abandonado, e m v i r t u d e de suas próprias e x p o s i ç õ e s .
Na segunda parte, modificada e m sua disposição segundo as propostas desenvol-
vidas pelo organizador do texto, os antigos títulos e especificações do c o n t e ú d o dos
capítulos e p a r á g r a f o s e x p e r i m e n t a v a m várias alterações, na medida e m que a necessi-
dade da nova estruturação adaptada ao plano original e a e x i g ê n c i a de u m a c o m p o s i ç ã o
do c o n t e ú d o mais adequada ao sentido as sugeriam; p o r outro lado, sua r e d a ç ã o difere
parcialmente t a m b é m da do plano, a f i m de se ajustar mais intimamente à e d i ç ã o do
texto. E m c o m p a r a ç ã o c o m as propostas anteriores do presente autor, alguns desses
títulos f o r a m f o r m u l a d o s c o m m a i o r precisão. Isso se aplica especialmente à s e ç ã o
7 1 2 do capítulo DC, cujo título foi restabelecido na c o n c i s ã o característica de Max W e b e r ,
e m c o n c o r d â n c i a c o m o plano o r i g i n a l , já que, segundo a indicação autêntica de Max
Weber, agora incluida na s e ç ã o 8 1 3 , n ã o pode h a v e r d ú v i d a de c o m o ele entende o
sentido da categoria da " d o m i n a ç ã o l e g í t i m a " ; esta surgiu p r i m e i r o n o â m b i t o da c i v i l i -
z a ç ã o ocidental m e d i t e r r â n e a , e m c o n s e q ü ê n c i a da constituição política das cidades

8 Cf. também: Weber, Marianne. Max Weber — ein Lebensbild. 1. ed. 1926, p. 425, 675, 687 e seg.,
709).
9 Wirtschaft und Gesellschaft, p. 168.
1 0 Ibid., 5.ed., p. 856.
1 1 Ibid., p. 172, n?4.
1 2 Contagem das seções a seguir conforme a 5 ed
1 5 Ibid., 5.ed., p. 827.
xxxiv MAX WEBER

c o m o comunidades a u t ô n o m a s " l i v r e s " — " l i v r e s : n ã o n o sentido da liberdade de d o m i -


n a ç ã o violenta, mas, s i m , n o sentido de. ausência de poder dos príncipes, l e g í t i m o
e m v i r t u d e da tradição (e na m a i o r i a dos casos consagrado pela r e l i g i ã o ) c o m o fonte
exclusiva de toda autoridade".
No que se r e f e r e ao tratamento do p r ó p r i o texto, este, c o m e x c e ç ã o das alterações
acima mencionadas na estruturação, nos títulos e nas especificações do c o n t e ú d o , foi
f o r m a d o das e d i ç õ e s anteriores. Entretanto, f o i submetido a u m a meticulosa revisão.
E l i m i n a r a m - s e todos os e r r o s tipográficos evidentes, assim c o m o enganos casuais do
manuscrito, a p ó s cuidadoso e x a m e das fontes. Q u a s e todas as c o r r e ç õ e s do texto pro-
postas p o r Otto H i n z e 1 4 p u d e r a m ser admitidas. C o m e x c e ç ã o das c o r r e ç õ e s necessárias
daí resultantes, abstivemo-nos de qualquer i n t e r v e n ç ã o no p r ó p r i o texto. Somente n a
s e ç ã o V (inacabada) do capitulo I X da segunda parte procedemos, e m três lugares,
a transposições do texto, a f i m de chegar a u m a estruturação concludente 1 5 . O a p ê n d i c e
m ú s i c o - s o c i o l ó g i c o foi comparado c o m a p r i m e i r a e d i ç ã o d o escrito avulso do a n o
de 1921, verificando-se nesta o c a s i ã o que nela t a m b é m n ã o se podia confiar por c o m -
pleto. Várias deficiências do texto da investigação de Max Weber c o m respeito à raciona-
lidade e Sociologia da Música p o d i a m ser eliminadas.
Pelas i n f o r m a ç õ e s solicitamente dadas c o m respeito a u m a série de expressões
estrangeiras na área i n d o l ó g i c a , orientalista e e t n o l ó g i c a e os vários i n c ô m o d o s i m p l i -
cados nisto, q u e r o expressar aqui t a m b é m m e u s i n c e r o agradecimento aos pastores
D r . E r n s t L. D i e t r i c h , Wiesbaden, Professor D r . Otto Eissfeldt, H a l l e Saale, Professor
D r . H e l m u t h V. Glasenapp, T ú b i n g e n , Professor D r . H e l l m u t Ritter, Frankfurt/Main
e Professor D r . F r a n z T e r n e r , H a m b u r g o . D o m e s m o modo, estou cordialmente agrade-
cido aos professores D r . C a r l Schmitt, Plettemberg, D r . Rolf Stõdter, H a m b u r g o , e
o antigo Professor D r . C a r l B r i n k m a n n , T ú b i n g e n , pelo esclarecimento de alguns termos
especiais. O Professor D r . Walter Gerstenberg, T ú b i n g e n , p o r f i m , encarregou-se, pelo
que estou muito grato, da revisão de vários conceitos da teoria da música assim c o m o
da revisão f i n a l do texto da Sociologia da música. Somente a solicitude altruísta de
todas as pessoas citadas possibilitou conseguir u m texto confiável da obra p ó s t u m p r i n -
cipal de Max Weber. E n ã o e m ú l t i m o lugar, m e u agradecimento dirige-se ao editor,
Sr. H a n s G. S i e b e c k , q u e se d e c i d i u a c e i t a r m i n h a proposta de u m a m o d i f i c a ç ã o
f u n d a m e n t a l da o b r a e m e c o n f i o u a e x e c u ç ã o da t a r e f a a s s i m colocada, a g r a d e c e n -
d o - l h e t a m b é m p e l a a m p l a assistência prestada p e l a e d i t o r a na r e a l i z a ç ã o d o o b j e t i v o
visado.
O manuscrito de Economia e sociedade n ã o podia ser consultado, u m a v e z q u e
é impossível e n c o n t r á - l o e talvez deva ser considerado perdido. Se mais tarde v i e r
a ser encontrado, u m a n o v a revisão do texto terá de averiguar se as versões e as d i v e r s a s
conjeturas formuladas, assim c o m o os títulos dos capítulos, seções e p a r á g r a f o s da
segunda parte p o d e m ser mantidos o u n ã o . É possível que neste caso possam s e r p r e e n -
chidas as lacunas existentes na presente e d i ç ã o .
D i f e r e n t e sob todos os aspectos é a última s e ç ã o do último capítulo, adicionada
para concluir a segunda parte. A Sociologia do Estado pretendida p o r Max W e b e r n ã o
foi escrita. O u s a m o s aqui — essencialmente c o m intenção didática — a tentativa de
fechar esta lacuna mediante a inserção das idéias fundamentais de Max W e b e r na área
da Sociologia d o Estado, retiradas de sua Wirtschaftsgeschichte [História da economia]16,

14 Na recensão da segunda edição de Wirtschaft und Gesellschaft (Schmoll. ft>., ano 50, 1926, p. 87-88).
15 Wirtschaft und Gesellschaft, 4 ed., 665-669, 684-685, 690-695; 5-ed., p 657-661, 676-677, 681-687).
16 Wirtschaftsgeschichte Abriss der universalen Sozial- und Wirtschaftsgeschichte. 1 ed., 1923; 2.ed., 1924;

3 ed. completa, 1958.


ECONOMIA E SOCIEDADE XXXV

t a m b é m da e d i ç ã o p ó s t u m a , assim c o m o do tratado político Parlament und Regierung


ím neugeordneten Deutschland [Parlamento e governo na Alemanha da nova ordem
política]17 e da c o n f e r ê n c i a Politik ais Beruf [Política como vocação]™. T a l ousadia de-
fronta-se c o m reparos consideráveis e tinha de ser cuidadosamente ponderada. N o
artigo mencionado no p r i n c í p i o 1 9 , o organizador do texto mostrou quanto o pensamento,
o trabalho docente e a atividade de conferencista da última é p o c a produtiva de Max
Weber foi dedicado a esta p r o b l e m á t i c a , cuja e x p o s i ç ã o dentro do q u a d r o de sua Socio-
logia da d o m i n a ç ã o precisava ainda de u m a e l a b o r a ç ã o , de m o d o que já existem impres-
sas partes isoladas desta, ainda que essencialmente na f o r m a de trabalhos preparatórios.
A inserção, de caráter ilustrativo, do processo s o c i o l ó g i c o da f o r m a ç ã o do " E s t a d o "
racional nas s e ç õ e s instrutivas e nas e x p o s i ç õ e s sobre a teoria do Estado dos três escritos
acima mencionados, adota e m sua c o n c r e t i z a ç ã o os conceitos e temas da obra p r i n c i p a l
e os a n i m a c o m plasticidade i n t e r n a , p a r a documentar, assim, ao m e s m o tempo, o
lugar ideal-sistemático das c o n s i d e r a ç õ e s . A i n d a que n ã o tenham recebido do autor
sua c o n f i g u r a ç ã o definitiva p a r a a obra p r i n c i p a l , as idéias fundamentais sobre a Socio-
logia do Estado elaboradas p o r Max W e b e r , nos últimos anos de sua v i d a , e p r e f o r m a d a s
nos escritos mencionados enquadram-se de m a n e i r a surpreendente na c o n c e p ç ã o global
que transparece na n o v a e d i ç ã o de Economia e sociedade e i l u m i n a m a unidade da
c o n e x ã o de pensamento de toda a Sociologia da d o m i n a ç ã o do autor. D o reconhe-
cimento dessa c o n e x ã o interna resulta, ao m e s m o tempo, a estruturação do pensamento
nas exposições detalhadas sobre a Sociologia do Estado, colocadas n o f i m da o b r a p r i n c i -
pal, conforme a subdivisão adotada. O título p r i n c i p a l da s e ç ã o 8 expressa seu p r o p ó s i t o
efetivo de acordo c o m o p l a n o o r i g i n a l e a terminologia de Max Weber. A divisão
em parágrafos e a escolha dos títulos t i n h a m de ser efetuadas pelo organizador do
texto. A esta disposição f o r a m adaptadas a s e l e ç ã o e a sucessão das partes impressas,
efetuando-se muitas transposições e deixando-se de lado todas as e x p o s i ç õ e s que n ã o
se r e f e r e m a aspectos estruturais e fundamentais. O texto é aqui t a m b é m , exceto u m a
ínfima frase de transição dificilmente prescindível, o de Max Weber; somente f o r a m
eliminados os puros juízos valorativos, e a v e r s ã o do texto f o i várias vezes transferida
do modo de a l o c u ç ã o ao de enunciado. U m a vez que os escritos originais estão acessíveis
ao p ú b l i c o , n ã o deve h a v e r r e p a r o s contundentes contra esta m a n e i r a de tratar o texto
para os fins especiais desta e d i ç ã o . Cabe agradecer particularmente ao proprietário
da editora D u n c k e r & H u m b l o t , D r . H a n s B r o e r m a n n , editor dos três escritos consul-
tados para a s e l e ç ã o , pela a m á v e l a u t o r i z a ç ã o da r e p r o d u ç ã o das passagens escolhidas
do texto.

No entanto, n ã o pode h a v e r d ú v i d a alguma sobre a circunstância de que se trata,


neste empenho, de u m s u c e d â n e o e que aquilo que na s e l e ç ã o efetuada foi organizado
segundo aspectos sistemáticos figura c o m o pars pro toto, n ã o sendo esgotada pelas
e x p o s i ç õ e s existentes a temática de u m a Sociologia do Estado. H á de se aceitar, a l é m
disso, certa falta de homogeneidade na e d i ç ã o . Esta reside n ã o apenas na circunstância
da m o d i f i c a ç ã o p a r c i a l da e x p o s i ç ã o o r i g i n a l mediante aditamentos e omissões. Para
justificá-la pode-se fazer v a l e r o fato de que os aditamentos que transmitem as palavras
de Max Weber apenas indiretamente já estão publicados e que na s e ç ã o adicionada
nada aparece que n ã o esteja impresso e — e m sua irregularidade estilística — documen-
tado c o m o seu pensamento e c o n v i c ç ã o . Acrescenta-se, antes de mais nada, o caráter
diverso d o estilo de pensamento das esparsas manifestações que, feitas pelo pesquisador

17 Escrito no verão de 1917, revisado e publicado em 1918.


19 Proferida como conferência no inverno de 1918-1919; impressa no outono de 1919
19 Ztschr. f. d ges Staatswiss., v. 105, p. 372, 376, 386.
XXXV i MAX WEBER

e m seu lugar ocasional p a r a fins de e x p l i c a ç ã o e m o t i v a ç ã o , v o l t a m a ser colocadas


agora, c o m a c o o r d e n a ç ã o , e m seu " l u g a r t i p o l ó g i c o " , c o n f o r m e sua origem teórica.
Cabe aqui l e m b r a r que t a m b é m as diversas camadas do manuscrito de Economia e
sociedade pertencem aos mais diversos p e r í o d o s e que nele coexistem, por toda parte,
as f o r m a s de pensamento sintético-tipológica, genético-analística e p o l ê m i c a , c o m o cor-
responde ao m o d o do trabalho e ao impulso d o pensamento de Max Weber.
Por f i m , cabe ter e m conta que a s e ç ã o 8 traz ( p o r e x t r a t o ) idéias fundamentais
de Max W e b e r sobre a Sociologia d o Estado, tomadas de outros escritos, e ( e m p a r t e )
aditamentos, mas que ambos f i g u r a v a m originalmente e m outros contextos, n ã o h a v e n -
do sido destinados a f o r m a r parte de Economia e sociedade. Especialmente as partes
reproduzidas de Parlamento e governo f o r a m escritas, e m grande p a n e , com intenções
político-programáticas. Na nota p r e l i m i n a r a esta "Crítica política do estamento dos
f u n c i o n á r i o s e da o r g a n i z a ç ã o p a r t i d á r i a " , de 1918, o autor ressalta que ela " n a d a
de novo diz a u m especialista e m D i r e i t o Público, mas t a m b é m n ã o se cobre c o m a
autoridade de u m a ciência. Pois as posições últimas tomadas pela vontade n ã o p o d e m
ser decididas c o m os meios de u m a c i ê n c i a . " Suas e x p o s i ç õ e s naquele tratado c u l m i n a m
c o m a e l a b o r a ç ã o de determinada f o r m a de Estado e na consciente tomada de p o s i ç ã o
e m seu favor: a democracia parlamentar, tal c o m o se desenvolveu desde a segunda
metade do s é c u l o X I X . E o ponto de vista a partir do qual se julga neste caso não
é o estritamente e m p í r i c o da " c i ê n c i a n e u t r a " 2 0 diante das atitudes sociais observadas.
Aplicam-se neste ponto as próprias palavras de Max Weber: " P a r a toda a o p i n i ã o parti-
dária — e t a m b é m , por e x e m p l o , p a r a a m i n h a — há fatos extremamente i n c ô m o d o s " 2 1 .
Max Weber ter-se-ia decididamente recusado a admitir e m sua obra suas opiniões aqui
reproduzidas, nessa f o r m a e m que n ã o são científicas n o sentido da "Sociologia n ã o
v a l o r a t i v a " 2 2 . E l e manifestou claramente sua o p i n i ã o acerca disso c o m referência ao
tratamento crítico do governo parlamentar de gabinete por W i l h e l m H a s b a c h 2 3 . S e ,
apesar disso, o fazemos aqui, c o m todas as expressas restrições acima m e n c i o n a d a s ,
é porque estas e x p o s i ç õ e s de princípio de Max Weber salientam de f o r m a plástica suas
idéias sobre a sociologia do Estado, cabendo atribuir-lhes u m a importância tão e l u ci -
dativa p a r a o conhecimento que, por mais que se qu e i ra respeitar a m e m ó r i a do autor,
n ã o se deve p r i v a r delas, e m seu v e r d a d e i r o " l u g a r t i p o l ó g i c o " , aquele que busca
c o m p r e e n d e r a Sociologia de Max Weber c o m o u m todo.

Reconhecendo esses pontos de vista, pode parecer j ustif içada a tentativa de p r o p o r -


cionar, por motivos didáticos e e m acabamento da o b r a , u m a vista geral da c o n c e p ç ã o
e da matéria conjuntas, p r o c u r a n d o assim evitar que as idéias teóricas fundamentais
de Max Weber sobre a Sociologia do Estado racional, esparsas e m lugares diversos
f o r a da obra p r i n c i p a l , passem despercebidas o u desconhecidas n o contexto sistemático
do significado u n i v e r s a l e m que se e n c o n t r a m na verdade.
Essa o r d e m de idéias e a i n c o r p o r a ç ã o parcial de determinadas s e ç õ e s a que
aqui se procedeu n ã o d e v e m levar a ignorar o significado p r ó p r i o , c o m o u m todo,
da c o n f e r ê n c i a de Max Weber Política como vocação, cuja atualidade continua intocada.
Nela, as e x p o s i ç õ e s teóricas dos pressupostos sociológicos de u m a atividade r a c i o n a l
do Estado e da o r g a n i z a ç ã o partidária m o d e r n a são apenas p r e l i m i n a r e s , enquanto
que s e u v e r d a d e i r o interesse, expresso n o título, constitui a situação de conflito especí-
fica e m que se encontra inevitavelmente o político profissional, nas c o n d i ç õ e s de existên-

20 Wirtschaft und Gesellschaft, p. 113-


21 Wissenschaftslehre, 2.ed., p. 587 (3.ed., p. 603).
22 Wirtschaft und Gesellschaft, p. 140.
23 Ibid., p. 173.
ECONOMIA E SOCIEDADE XXXVÜ

cia do s é c u l o X X . E n q u a n t o que o peso intelectual da própria c o n f e r ê n c i a se concentra


nas possibilidades e c o n s e q ü ê n c i a s da v i d a política profissional e, antes de mais nada,
nas e x p o s i ç õ e s f i l o s ó f i c o - m o r a i s sobre os conflitos internos entre política e ética, interes-
sam a u m a Sociologia teórica apenas as idéias s o c i o l ó g i c a s fundamentais. E m conse-
qüência, precisamente a temática peculiar daquele escrito n ã o pertence ao â m b i t o da
e x p o s i ç ã o intitulada "Sociologia do E s t a d o " . Por isso, nada f o i i n c o r p o r a d o aqui deste
assunto essencial do famoso escrito.
Todos os e s f o r ç o s dedicados à estruturação e c o n f o r m a ç ã o do texto de Economia
e sociedade n ã o p o d e m desfazer o fato de que, ao m o r r e r , Max W e b e r d e i x o u sua
grande Sociologia sem levá-la a cabo. Isso se aplica tanto ao plano global quanto a
todas as seções inacabadas da p r i m e i r a e segunda partes, e nesta última especialmente
à Sociologia do E s t a d o 2 4 e à e x p o s i ç ã o da teoria das r e v o l u ç õ e s 2 5 . Mas refere-se t a m b é m
ao fato de que n ã o foi dado a Max Weber integrar n o resto d o manuscrito o aparato
dos conceitos elaborado p o r ele a p ó s 1918, n a teoria das categorias da p r i m e i r a p a r t e 2 6 .
Assim, quanto à terminologia, o texto reflete ainda a p o s i ç ã o de pensamento do artigo
c o n t e m p o r â n e o , do ano de 1913, sobre as categorias. Por isso, as e x p l i c a ç õ e s desse
artigo, n o que se r e f e r e aos conceitos fundamentais nele tratados, s ã o s e m p r e pressu-
postas p a r a a c o m p r e e n s ã o da segunda parte, e m v e z da tipologia dos conceitos da
p r i m e i r a parte. S ó podemos d a r a q u i , portanto, o quadro da c o n c e p ç ã o global, na
medida e m que está preenchido. D e n t r o dos limites assim tratados, esperamos, entre-
tanto, ter conseguido obter u m texto logicamente estruturado que esclareça a estrutura
interna da o b r a e a contextura de seu pensamento c o m o u m a unidade de sentido.
E n t ã o teria sido a l c a n ç a d o o objetivo que orientou o organizador do texto: a b r i r a
uma c o m p r e e n s ã o ampliada a o b r a p r i n c i p a l de Max Weber mediante a m a i o r facilidade
de leitura e o acesso mais fácil a seu curso do pensamento — e m b e n e f í c i o da pesquisa,
do ensino e da cultura intelectual.

O b e r u r s e l , v e r ã o de 1955

JoHANNES WlNCKELMANN

24 Wirtschaft und Gesellschaft, p. 168.


25 Ibid., p. 155.
24 Wissenschaftslehre, 2.ed., p. 427eseg.
Prefácio à primeira edição

A c o n t i n u a ç ã o de Economia e sociedade, publicada nesta entrega e nas duas q u e


se seguirão, encontrava-se nos escritos p ó s t u m o s do autor. Esses escritos f o r a m fixados
antes do c o n t e ú d o da p r i m e i r a entrega: a teoria sistemática dos conceitos s o c i o l ó g i c o s .
Essencialmente, isto é, c o m e x c e ç ã o de alguns complementos posteriormente inseridos,
são dos anos de 1911 a 1913. É que a parte sistemática, que provavelmente teria tido
continuação, pressupunha para o pesquisador o d o m í n i o consumado da matéria e m p í -
rica que pretendia i n c o r p o r a r a u m a teoria dos conceitos s o c i o l ó g i c o s mais precisa
possível. Por outro lado, a c o m p r e e n s ã o e a d a p t a ç ã o dessa teoria pelo leitor facilita-se
substancialmente pela e x p o s i ç ã o mais descritiva dos f e n ô m e n o s sociológicos. Mas tam-
b é m nessas partes, que p o d e r i a m ser designadas c o m o Sociologia " c o n c r e t a " e m contra-
posição à " a b s t r a t a " da p r i m e i r a parte, a e n o r m e matéria histórica já está organizada
"sistematicamente", diferente de u m a e x p o s i ç ã o puramente descritiva, p o r m e i o de
conceitos " i d e a l - t í p i c o s " . ( U m a f o r m a principalmente descritiva foi escolhida apenas
para a parte sobre " A c i d a d e " , que constitui u m a unidade f e c h a d a . ) Mas, enquanto
que na p r i m e i r a parte abstrata o histórico a que se r e c o r r e p o r toda parte s e r v e substan-
cialmente de meio para ilustrar os conceitos, e n t r a m agora, ao contrário, os conceitos
ideal-típicos a s e r v i ç o da c a p t a ç ã o compreensiva das séries de fatos, das instituições
e dos desenvolvimentos da História u n i v e r s a l .
A p u b l i c a ç ã o desta o b r a p r i n c i p a l p ó s t u m a do autor o f e r e c e u , naturalmente, várias
dificuldades. Para a estruturação de todo o material n ã o existiu plano algum. O plano
original, e s b o ç a d o nas páginas X e X I d o p r i m e i r o v o l u m e de Grundriss der Sozialõko-
nomik (Gds) o f e r e c e u alguns pontos de r e f e r ê n c i a , mas e m aspectos substanciais já
fora abandonado. Por isso, a o r d e m dos capítulos tinha de ser decidida pela organizadora
do texto e seu colaborador. Algumas seções são inacabadas e têm de p e r m a n e c e r assim.
A especificação do c o n t e ú d o dos capítulos só fora fixada para a "Sociologia do D i r e i t o " .
Alguns exemplos empregados para esclarecer importantes processos típicos, assim c o m o
algumas teses de importância especial, repetem-se várias vezes, mas cada vez sob u m
â n g u l o diferente. É possível que o autor, se lhe tivesse sido dado r e v e r de f o r m a coerente
a obra completa, teria retirado algumas coisas. A organizadora do texto podia permitir-se
isso somente com umas poucas passagens. A d e c i f r a ç ã o dos manuscritos, para a qual
cabe grande mérito aos t i p ó g r a f o s da editora, particularmente a v e r s ã o correta das
numerosas expressões especializadas de o r i g e m estrangeira para designar instituições
não-européias e coisas semelhantes, d e u lugar a muitas dúvidas e consultas, e é possível
q u e , apesar do a m á v e l apoio de diversos especialistas, tenham o c o r r i d o imprecisões.
A organizadora contou c o m a assistência do D r . Melchior Palyi, s e m cuja colabo-
r a ç ã o dedicada e abnegada teria sido impossível levar a cabo a tarefa, que assim a d q u i r i u
mérito duradouro.

Heidelberg, outubro de 1921.

MARIANNE W E B E R
Prefácio à segunda edição

A obra f o i depurada de e r r o s tipográficos e, p a r a mais fácil manuseio, d i v i d i d a


em dois volumes. A l é m disso, foi-lhe acrescentado c o m o a p ê n d i c e o "tratado m ú s i c o - s o -
c i o l ó g i c o " , mas s e m incluir o c o n t e ú d o deste n o índice de assuntos, cuja revisão por
ora n ã o foi possível.
Parecia adequado i n c o r p o r a r este trabalho difícil, publicado p r i m e i r o c o m o b r o -
chura isolada c o m p r e f á c i o do Prof. D r . T . K r o y e r s , que teve o grande m é r i t o de revisar
as expressões especializadas, à q u e l a obra s o c i o l ó g i c a de Max Weber c o m que m a n t é m
relação mais p r ó x i m a — ainda que indireta. Constitui o p r i m e i r o elemento de u m a
Sociologia da A r t e planejada pelo autor. Nessa p r i m e i r a investigação das f o r m a s musicais
do O r i e n t e e do Ocidente p r o v o c o u funda i m p r e s s ã o e m Max Weber a descoberta de
que t a m b é m e justamente na música — esta arte que aparentemente nasce, de f o r m a
mais p u r a , d o sentimento — a ratio desempenha u m papel tão importante. É que sua
peculiaridade, no Ocidente, está condicionada p o r u m racionalismo de caráter especí-
fico: o m e s m o que está presente nas ciências e e m todas as instituições estatais e sociais.
Quando se ocupava deste tema comentou ele n u m a carta: " P r o v a v e l m e n t e e s c r e v e r e i
sobre certas c o n d i ç õ e s sociais da m ú s i c a , a partir das quais se explica que somente
nós temos u m a música ' h a r m ô n i c a ' , e m b o r a outros círculos culturais tenham u m o u v i d o
muito mais f i n o e apresentem u m a cultura musical muito mais intensa. É estranho
— esta é, c o n f o r m e v e r e m o s , u m a 'obra dos m o n g e s ' . "

Heidelberg, m a r ç o de 1925.

MARIANNE WEBER
Primeira parte

TEORIA DAS CATEGORIAS SOCIOLÓGICAS


Capítulo I

CONCEITOS SOCIOLÓGICOS FUNDAMENTAIS

Nota preliminar. O método destas definições conceituais introdutórias, dificilmente dispen-


sáveis mas que inevitavelmente parecem abstratas e estranhas à realidade, não pretende de modo
algum ser algo novo. Ao contrário, apenas deseja formuiar de maneira mais adequada e um
pouco mais correta (o que justamente por isso talvez pareça pedante) aquilo que toda Sociologia
empírica de fato quer dizer quando fala das mesmas coisas. Isto se aplica também ao emprego
de expressões aparentemente não habituais ou novas. E m comparação com o artigo "Über einige
Kategorien der verstehenden Soziologie" ["Sobre algumas categorias da Sociologia Compreen-
siva"] em Logos IV (1913, p. 253 e seg. [Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, terceira
ed., p. 427 e seg. ]), a terminologia foi oportunamente simplificada e, portanto, modificada em
vários pontos para ser mais compreensivel. Claro que a exigência de popularização incondicional
nem sempre seria compatível com a máxima precisão conceituai, havendo a primeira de ceder
à última.
Sobre o conceito de "compreensão", compare Allgemeine Psychopatologie, de K. Jaspers
(algumas observações de Rickert, na segunda edição de Grenzen der naturwissenschaftlichen
Begrifssbildung [1913, p. 514-523], e particularmente de Simmel em Problemen der Geschichts-
philosophie, também se referem a este conceito) Quanto à metodologia, remeto aqui, como
já o fiz diversas vezes, às exposições de F. Gottl, no escrito Die Herrschaft des Worts, ainda
que esta obra esteja escrita em estilo difícil e nem sempre alcance estruturar completamente
o pensamento. Quanto à matéria, refiro-me sobretudo à bela obra de F. Tönnies, Gemeinschaft
und Gesellschaft; além disso, ao livro fortemente desorientador de R. Stammler, Wirtschaft und
Recht nach der materialistichen Geschichtsauffassung, e à minha crítica a este, em Archiv für
Sozialwissenschaft XXIV (1907, [Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, terceira edição,
p. 291 e seg. ]), a qual já contém, em grande parte, os fundamentos do que segue. Da metodologia
de Simmel (na Soziologie e na Philosophie des Geldes) distancio-me ao diferenciar logo o "sen-
tido" visado do "sentido" objetivamente válido, que ele não apenas deixa de distinguir como
propositadamente permite que se confundam amiúde.

§ 1 . Sociologia ( n o sentido aqui entendido desta p a l a v r a empregada c o m tantos


significados d i v e r s o s ) significa: u m a ciência que pretende c o m p r e e n d e r interpretati-
v a m e n t e a ação social e assim explicá-la causalmente e m s e u curso e e m seus efeitos.
Por " a ç ã o " entende-se, neste caso, u m comportamento h u m a n o (tanto faz tratar-se
de u m f a z e r externo o u interno, de omitir o u p e r m i t i r ) sempre que e na medida e m
que o agente o u os agentes o relacionem c o m u m . s e n t i d o snbjativn ,Açãr> " s o c i a l " ,
por sua v e z , significa u m a a ç ã o que, quanto a seu sentido visado pelo agente ó u os
agentes, se r e f e r e ao comportamento de outros, orientando-se por este e m seu curso.
4 MAX WEBER

I. Fundamentos metodológicos

1. "Sentido" é o sentido subjetivamente visado: a ) n a realidade a, num caso historicamente


lado, por um agente, ou j3, em média e aproximadamente, numa quantidade dada de casos,
Delos agentes, ou b) num tipo puro conceitualmente, construído pelo agente ou pelos agentes
xtncebidos como típicos. Não se tratante modo algunvde um sentido objetivamente "correto"
2LL i1 p " m spntiHn ' y r r r l i r l r i r n " nhtidn pnr i n m ç i r i n m r t i t i s i n Ninn r n i r l r i rtifrrrnra rntrr
is ciências empíricas da ação, a Sociologia e a História, e todas as ciências dogmáticas, a Jurispru-
dência, aLógica, a Ética e a Estética, que pretendem investigar em seus objetos o sentido "correto"
; "válido".
2. Os limites entre uma ação com sentido e um comportamento simplesmente reativo
como aqui o chamamos), não relacionado com um sentido visado pelo agente, são inteiramente
luidos. Uma parte muito importante de todo comportamento sociologicamente relevante, espe-
halmente a ação puramente tradicional (ver abaixo), situa-se na fronteira entre ambos. E m alguns
:asos de processos psicofísicos não temos ações com sentido, isto é, compreensíveis e, em outros,
;stas somente existem para os especialistas; processos místicos e, por isso, não comunicáveis
idequadamente em palavras não podem ser compreendidos plenamente pelos que não tenham
icesso a esse tipo de experiências. Por outro lado, não é pressuposto da compreensibilidade
ie uma ação a capacidade de produzir, com os próprios recursos, uma ação análoga: "Não
é preciso ser César para compreender César". A possibilidade de "reviver" completamente a
ação é importante para a evidência da compreensão, mas não é condição absoluta para a interpre-
tação do sentido. -Componentes compreensíveig_c_aãg compreensíveis de um processo estão.
muitaS VeZeS mi<:tiireHr.c P r < j . | a r j p n n H r . f n n t r c yi
3. Toda interpretação, assim como toda ciência em geral, pretende alcançar "evidência".
A evidência da compreensão pode ser de caráter [a] racional (e, neste caso, ou lógico ou matemá-
tico), ou [b] intuitivamente compreensivo (emocional, receptivo-artístico). No domínio da ação,
é racionalmente evidente, antes de mais nada, o que se compreende intelectualmente, de modo
cabal e transparente, em sua conexão de sentido visãdaT Intuitivamente evidente, no caso da
ação, é o que se revive plenamente em sua conexão emocional experimentada. Racionalmente
compreensíveis, isto é, neste caso, direta e inequivocamente apreensíveis em seu sentido intelec-
tual, são principalmente, e em grau máximo, as conexões de sentido que se encontram na relação
de proposições matemáticas entre si. Compreendemos inequivocamente o que significa, quanto
ao sentido, quando alguém utiliza, pensando ou argumentando, a proposição 2 x 2 ='4 ou
o teorema pitagórico, ou quando extrai uma cadeia de conclusões lógicas de maneira "correta"
(conforme nossos hábitos de pensar). O mesmo ocorre quando ele, partindo de "fatos de expe-
riência" que consideramos "conhecidos" e de finalidades dadas, tira em sua ação as conseqüências
daí inequivocamente resultantes (conforme nossa experiência) relativas à espécie de meios a
serem empregados. Toda interpretação de uma ação desse tipo, racionalmente orientada por
um fim, possui — quanto â compreensão dos meios empregados — um grau máximo de evidência
Com menor grau de evidência, mas suficiente para nossas exigências de explicação, compreen-
demos também aqueles "erros" (inclusive "enredamento" de problemas) nos quais poderíamos
incorrer ou de cuja formação podemos ter a experiência intuitiva. Ao contrário, muitas vezes
não conseguimos compreender, com plena evidência, alguns dos "fins" últimos e "valores"
pelos quais podem orientar-se, segundo a experiência, as ações de uma pessoa; eventualmente
conseguimos apreendê-los intelectualmente mas, por outro lado, quanto mais divergem de nossos
próprios valores últimos, tanto mais dificuldade encontramos em torná-los compreensíveis por
uma revivência mediante a imaginação intuitiva. Nessas condições, temos de contentar-nos, con-
forme o caso, com sua interpretação exclusivamente intelectual, ou, eventualmente, quando
até esta tentativa falha, aceitá-los simplesmente como dados. Trata-se, neste caso, de tornar
inteligível para nós o desenrolar da ação por eles motivadas, a partir de seus pontos de orientação
interpretados intelectualmente na medida do possível, ou intuitivamente revividos, na maior
aproximação possível. A esta classe pertencem, por exemplo, muitas ações virtuosas, religiosas
e caritativas para quem é insensível a elas, do mesmo rfiodo que muitos fanatismos de extremo
racionalismo ("direitos humanos") para quem, por sua vez, se aborrece radicalmente desses
ECONOMIA E SOCIEDADE 5

pontos de orientação. Impulsos afetivos (medo, cólera, ambição, inveja, ciúme, amor, entusias-
mo, orgulho, sede de vingança, piedade, dedicação, apetências de toda espécie) e as reações
irracionais (do ponto de vista cia ação racional, orientada por um fim) que deles resultam podem
ser revividos por nós emocionalmente e com tanto mais evidência quanto mais suscetíveis sejamos
a esses mesmos afetos-, em todo caso, porém, mesmo que ultrapassem absolutamente por sua
intensidade nossas próprias possibilidades, conseguimos compreendê-los intuitivamente e avaliar
intelectualmente seus efeitos sobre a orientação e os meios da ação.
Para a consideração científica que se ocupa com a construção de tipos, todas as conexões
de sentido irracionais do comportamento afetivamente condicionadas e que influem sobre a
ação são investigadas e expostas, de maneira mais clara, como "desvios" de um curso construído
dessa ação, no qual ela é orientada de maneira puramente racional pelo seu fim. Na explicação
de um " pânico financeiro'', por exemplo, é conveniente averiguar primeiro como se teria proces-
sado a ação sem influências de afetos irracionais, para registrar depois aqueles componentes
irracionais como "perturbações". Do mesmo modo, quando se trata de uma ação política ou
militar, é conveniente verificar primeiro como se feria desenrolado a ação caso se tivesse conheci-
mento de todas as circunstâncias e de todas as intenções dos protagonistas e a escolha dos meios
ocorresse de maneira estritamente racional orientada pelo fim, conforme a experiência que
consideramos válida. Somente esse procedimento possibilitarájymputação-eausaLdos desvios
às jrrariopalidaHes q i i f r - T T y - r r t n r i ' ^ ' ™ ^ " ^ " " 1 ^ ' ^ «i-i r r . m p 7 w n e i h i l i H a H g evidente e de
sua inequivocabilidade — ligada à racionalidade —, a construção de uma ação orientada pelo
fim de maneira estritamente racional serve, nesses casos, à Sociologia como fipo ("tipo ideal").
Permite compreender a ação real, influenciada por irracionalidades de toda espécie (afetos, erros),
como "desvio" do desenrolar a ser esperado no caso de um comportamento puramente racional.
Nessa medida, e somente por esse motivo de conveniência metodológica, o método da
Sociologia "Compreensiva" é "racionalista". No entanto, é claro que esse procedimento não
deve ser interpretado como preconceito racionalista da Sociologia, mas apenas como recurso
metodológico. Não se pode, portanto, imputar-lhe a crença em uma predominância efetiva do
racional sobre a vida. Pois nada pretende dizer sobre a medida em que na realidade ponderações
racionais da relação entre meios e fins determinam ou não as ações efetivas. (Não se pode
negar, de modo algum, o perigo de interpretações racionalistas no lugar errado. Toda a expe-
riência confirma, infelizmente, sua existência.)
4. Processos e objetos alheios ao sentido são levados em consideração por todas as ciências
ocupadas com a ação: como ocasião, resultado, estímulo ou obstáculo da ação humana. "Alheio
ao sentido" não é idêntico a "inanimado" ou "não-humano". Todo artefato, uma máquinaqaor
gY 5*mpln, p"^e get intefpwtado « BompMeatBde n pnrtir dft iifntid? qup a ação hum?""
(com finalidades possivelmente muito diversas) proporcionou (ou pretendeu proporcionar) à
sua produção e utilização; sem o recurso a esse sentido permanecerá inteiramente incompreem
»<yp| X) compreensível nele é, pn^anto, cpp r^T&^r\^ g^jo hiimnpi seja como "meio seja
como 'Tim concebido pelo agente ou pelos agentes e que orienta suas ações. Somente nessas
categorias realiza-se a compreensão dessa classe de objetos. Alheios ao sentido permanecem,
ao contrário, todos os processos ou estados — animados, inanimados, extra-humanos e humanos
— que não tenham um conteúdo de sentido "subjetivo", na medida em que não entrem em
relações com a ação como "meios" ou "fins", mas representem apenas a ocasião, o estímulo
ou o obstáculo desta. A grande inundação que deu origem à formação do Dollart, no fim do
século X I I I [(1277)], tem (talvez) um significado "histórico" como estímulo a certos processos
de migração de considerável alcance. A mortalidade e o ciclo orgânico da vida em geral: do
desvalimento da criança até o do ancião, têm naturalmente alcance sociológico de primeira ordem
em virtude dos diversos modos em que a ação humana se orientou e se orienta por essas circuns-
tâncias. Outra categoria diferente constituem as proposições empíricas suscetíveis de compreen-
são sobre o desenrolar de fenômenos psíquicos e psicofisiológicos (cansaço, rotina, memória
etc., mas, também, por exemplo, euforias típicas ligadas a determinadas formas de mortificação,
diferenças típicas nos modos de reação quanto à rapidez, maneira, inequivocidade etc.). Mas,
em última instância, a situação é a mesma dos outros fatos não suscetíveis de compreensão:
do mesmo modo que a pessoa atuante na prática, a consideração compreensiva os aceita como
"dados" com os quais há de contar.
6 MAX WEBER

Há ainda a possibilidade de que a investigação futura descubra regularidades não suscetíveis


de compreensão em comportamentos específicos dotados de sentido, por menos que isto tenha
acontecido até agora. Diferenças na herança biológica (das "raças"), por exemplo, teriam de
ser aceitas pela Sociologia como dados desde que e na medida em que se pudessem apresentar
provas estatísticas concludentes de sua influência sobre o modo de comportamento sociologi-
camente relevante — especialmente, portanto, sobre o modo como se dá na ação social a refe-
rência ao seu sentido —, do mesmo modo que a Sociologia aceita fatos fisiológicos do tipo
da necessidade de alimentação ou dos efeitos da velhice sobre as ações. E o reconhecimento
de seu significado causal nada alteraria, naturalmente, nasjarefasxk-SacialQgia (e das ciências
que se ocupam com a ação, em geral) compreender interpretativamente as ações orientadas
por um sentido. Ela se limitaria a inserir, em determinados pontos de suas conexões de motivos,
interpretáveis de maneira compreensível, fatos não suscetíveis de compreensão (por exemplo,
relações típicas de freqüência entre determinadas finalidades das ações ou do grau de sua raciona-
lidade típica e o índice craniano ou a cor da pele ou quaisquer outras qualidades fisiológicas
hereditárias), o que já hoje em dia ocorre nesta área (ver acima)
5. Compreensão pode significar: 1) compreensão atual do sentido visado de uma ação
(inclusive de uma manifestação) "Compreendemos", por exemplo, de maneira atual, o sentido
da proposição 2 x 2 = 4 que ouvimos ou lemos (compreensão racional atual de pensamentos),
ou um ataque de cólera que se manifesta na expressão do rosto, interjeições e movimentos
irracionais (compreensão irracional atual de afetos), ou o comportamento de um lenhador ou
de alguém que põe a mão na maçaneta para fechar a porta ou que aponta com o fuzil para
um animal (compreensão racional atual de ações) Mas, compreensão pode significar também:
2)compreensãoexp//'cafjVa: "compreendemos", pelos motivos, que sentido tem em mente aquele
que pronurtcia ou escreve a proposição 2 x 2 = 4, para fazê-lo precisamente nesse momento
e nessa situação, quando o vemos ocupado com um cálculo comercial, uma demonstração cientí-
fica, um cálculo técnico ou outra ação a cuja conexão "pertence" aquela proposição pelo sentido
que nós atribuímos a ela, quer dizer, a proposição adquire uma conexão de sentido compreensível
para nós (compreensão racional de motivação) Compreendemos as ações de tirar lenha ou de
apontar com o fuzil não apenas de maneira atual, mas também pelos motivos, quando sabemos
que o lenhador executa essa ação para ganhar um salário ou para consumo próprio ou para
recrear-se (racional), ou então "porque descarregou uma excitação" (irracional), ou quando
sabemos que o atirador age assim obedecendo a uma ordem de executar alguém, ou combatendo
um inimigo (racional), ou por vingança (de maneira afetiva, e neste sentido, irracional) Final-
mente, compreendemos, pelos motivos, a cólera, quando sabemos que a origem dela é o ciúme,
a vaidade ofendida ou a honra ferida (ação afetivamente condicionada; portanto, irracional pelos
motivos) Todas estas são conexões de sentido compreensíveis, cuja compreensão consideramos
uma explicação do curso efetivo da ação. "Explicação" significa, portanto, para uma ciência
ocupada com o sentido da ação, algo como: apreensão da conexão de sentido a que pertence
uma ação compreensível de maneira atual, segundo seu sentido subjetivamente visado (sobre
o significado causal desta "explicação" ver item 6 ) E m todos estes casos, incluídos os processos
afetivos designaremos o sentido subjetivo do evento e também o da conexãO'de sentido como
sentido "visado" (ultrapassando assim o uso habitual que fala de "visar", neste sentido, somente
quando se trata de ações racionais e intencionalmente orientadas por um f i m )
6. "Compreensão" significa em todos estes casos: apreensão interpretativa do sentido
ou da conexão de sentido: a ) efetivamente visado no caso individual (na consideração histórica),
ou b) visado em média e aproximadamente (na consideração sociológica em massa), ou c ) o
sentido ou conexão de sentido a ser construído cientificamente (como "ideal-típico") para o
tipo puro (tipo ideal) de um fenômeno freqüente. Construções ideal-típicas desta classe são,
por exemplo, os conceitos e as "leis" estabelecidos pela teoria pura da economia. Expõem como
sç desenrolaria uma ação humana de determinado caráter se estivesse orientada pelo fim de
maneira estritamente racional, sem perturbação por erros e afetos, e se, além disso, estivesse
orientada exclusiva e inequivocamente por um único fim (o econômico) A ação real decorre
apenas em raros casos (Bolsa) mesmo então só aproximadamente, tal como foi construída no
tipo ideal. (Sobre a finalidade de tais construções ver [meu artigo em] Archiv für Sozialwissenschaft,
XIX, p. 64 e seg. [Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre, p. 190 e seg. ] e abaixo tópico 11.
ECONOMIA E SOCIEDADE

Todainterpretaçâo__pretende alcançar-evidcncia (tópico 3 ) Mas nenhuma interpretação,


por mais^êvidente que seja quanto ao sentido, pode pretender, como tal e em virtude desse
caráter de evidência, ser também a interpretação causal válida. E m si, nada mais é do que uma
hipótese causal de evidência particular, a) E m muitos casos, supostos "motivos" e "repressões"
(isto é, desde logo, motivos não reconhecidos) ocultam ao próprio agente o nexo real da orien-
tação de sua ação, de modo que também seus próprios testemunhos subjetivamente sinceros
têm valor apenas relativo. Neste caso, cabe à Sociologia a tarefa de averiguar essa conexão
e fixá-la pela interpretação, ainda que não tenha sido elevada à consciência, ou, o que se aplica
à maioria dos casos, não o tenha sido plenamente, como conexão "visada" concretamente: um
caso-limite da interpretação do sentido, b) manifestações externas da ação que consideramos
"iguais" ou "parecidas" podem basear-se em conexões de sentido bem diversas para o respectivo
agente ou agentes; e "compreendemos'' também ações extremamente divergentes, ou até opostas
quanto ao sentido, em face de situações que consideramos "idênticas" entre si (exemplos na
obra de Simmel, Die Probleme der Geschichtsphilosophie). c) Diante das situações dadas, os
agentes humanos ativos estão freqüentemente expostos a impulsos contrários que se antagonizam,
todos eles "compreensíveis'' para nós. Mas, seja qual for a intensidade relativa com que costumam
se manifestar as diversas referências ao sentido envolvidas na "luta dos motivos" igualmente
compreensíveis para nós, é algo que, em regra e segundo toda a experiência, não se pode
avaliar seguramente e, em grande número de casos, nem aproximadamente. Somente o resultado
efetivo da luta dos motivos nos esclarece a esse respeito. Como em toda hipótese, é imprescindível,
portanto, o controle da interpretação compreensiva do sentido, pelo resultado no curso efetivo
da ação. Esse controle só pode ser alcançado, com precisão relativa, nos casos especialmente
adequados a este fim e infelizmente raros de experiências psicológicas. Também por meio da
estatística, mas apenas em grau muito variado de aproximação, nos casos (igualmente limitados)
de fenômenos em massa de natureza enumerável e inequívoca quanto a sua imputabilidade.
De resto, há apenas a possibilidade de comparar o maior número possível de processos da
vida histórica ou cotidiana que sejam quase idênticos mas que difiram num único ponto decisivo:
o "motivo" ou "impulso" a ser examinado cada vez com respeito a sua significação prática.
Isto constitui uma tarefa importante da Sociologia comparada. E m muitos casos, entretanto,
só resta o meio inseguro da "experiência ideal", quer dizer, a eliminação imaginada de certos
componentes da cadeia de motivos e a construção do desenvolvimento enfão provável da ação,
para alcançar uma imputação causal.
A chamada "lei de Gresham", por exemplo, é uma interpretação racionalmente evidente
da ação humana em condições dadas e sob o>pressuposto ideal-típico de uma ação orientada
por seu objetivo, de maneira puramente racional. Até que ponto a ação real corresponde a
essa lei é uma coisa que somente pode ensinar-nos a experiência (expressável, a princípio, em
alguma forma "estatística") sobre o desaparecimento efetivo da circulação das classes de moedas
que a regulamentação monetária fixa abaixo de seu valor; essa experiência comprova, de fato,
a validade muito ampla da lei. Na verdade, o curso do conhecimento foi este: primeiro existiram
as observações empíricas e em seguida foi formulada a interpretação. Sem esta interpretação
bem-sucedida, nossa pretensão à causalidade permaneceria evidentemente insatisfeita. Mas, por
outro lado, sem a prova de que o desenrolar idealmente construído do comportamento se realiza
em alguma medida na prática, esse tipo de lei, por mais evidente que seja, seria uma construção
sem valor algum para o conhecimento da ação real. Neste exemplo, é concludente a concordância
entre adequação de sentido e prova empírica, e há número suficiente de casos para considerar
a prova suficientemente segura. A brilhante hipótese de Eduard Meyer sobre a importância causal
das batalhas de Maratona, Salamina e Platéia para o desenvolvimento peculiar da cultura helénica
(e, com isso, da ocidental) — hipótese explorável quanto ao sentido e apoiada em processos
sintomáticos (atitudes dos oráculos e profetas helénicos para com os persas) — apenas pode
ser fortalecida pela prova obtida dos exemplos do comportamento dos persas nos casos de vitória
(Jerusalém, Egito, Asia Menor) e, portanto, tem de permanecer necessariamente incompleta em
muitos aspectos. A considerável evidência racional da hipótese forçosamente serve de apoio
nesse ponto. Mas, em muitos casos de imputação histórica muito evidente na aparência, não
há possibilidade alguma de uma prova desse tipo. E m conseqüência, a imputação permanece
definitivamente "hipótese".
8 MAX WEBER

7. Denominamos "motivo" uma conexão de sentido que, para o próprio agente ou para
o observador, constitui a "razão" de um comportamento quanto ao seu sentido. Denominamos
"adequado quanto ao sentido" um comportamento que se desenrola de maneira articulada quan-
do afirmamos, conforme os hábitos médios de pensar e sentir, que a relação entre seus compo-
nentes constitui uma conexão de sentido típica (costumamos dizer "correta"). Ao contrário, é
"causalmente adequada" uma seqüência de fenômenos na medida em que, segundo as regras
da experiência, existe a possibilidade de que se efetue sempre da mesma maneira. (Segundo
essas definições, é adequada quanto ao sentido, por exemplo, a solução correta de um problema
aritmético, de acordo com as normas correntes de calcular ou pensar. Causalmente adequada
— no âmbito das ocorrências estatísticas — é a probabilidade existente, conforme as regras
comprovadas da experiência, de uma solução "correta" ou "falsa" — do ponto de vista de
nossas atuais normas, portanto também de um "erro de cálculo" ou de um "enredamento de
problemas" típicos.) A explicação causal significa, portanto, a verificação de que, de acordo
com determinada regra de probabilidade avaliável ou no raro caso ideal numericamente expres-
sável, a determinado evento observado (interno ou externo) segue outro evento determinado
(ou aparece juntamente com ele).
Uma interpretação causal correta de uma ação concreta significa: que o desenrolar externo
e o motivo são conhecidos de maneira exata e, ao mesmo tempo, compreensível quanto ao
sentido em seu nexo. Uma interpretação causal correta de uma ação típica (tipo de ação compreen-
sível) significa: que o desenrolar considerado típico tanto se apresenta como adequado quanto
ao sentido (em algum grau) quanto pode ser confirmado (em algum grau) como causalmente
adequado. Na ausência da adequação de sentido, apenas temos uma probabilidade estatística
incompreensível (ou não completamente compreensível), mesmo que exista regularidade máxima
do desenrolar (tanto do externo quanto do psíquico) e esta possa ser fixada numericamente
com a maior precisão. Por outro lado, mesmo a adequação de sentido mais evidente somente
pode ser considerada uma proposição causal correta para o alcance do conhecimento sociológico
na medida em que se comprove a existência de uma probabilidade (determinável de alguma
forma) de que a ação costuma desenrolar-se, de fato e com determinada freqüência ou aproxi-
mação (em média ou no caso "puro"), da maneira adequada quanto ao sentido. Apenas aquelas
regularidades estatísticas que correspondem a um sentido visado compreensível de uma ação
social são (conforme a definição aqui empregada) tipos de ações compreensíveis e, portanto,
"regras sociológicas". E constituem tipos sociológicos de acontecimento real apenas aquelas
construções racionais de ações compreensíveis pelo sentido que possam ser observadas na reali-
dade pelo menos com alguma aproximação. Nem de longe ocorre que, paralelamente à adequação
de sentido inteligível, cresça sempre a probabilidade efetiva da freqüência de um desenrolar
correspondente. Pois apenas a existência externa pode mostrar em cada caso se isso se dá ou
não. Há estatísticas (de mortalidade, de fadiga, de rendimento de máquinas, de quantidade de
chuva) tanto de processos alheios ao sentido quanto de processos dotados de sentido. A estatística
sociológica (de criminalidade, de profissões, de preços, de cultivo), entretanto, se limita aos
últimos. (Naturalmente são freqüentes os casos que compreendem ambos, por exemplo, a estatís-
tica das colheitas.)
* 8 . Processos e regularidades, que, por serem incompreensíveis, não podem ser qualifi-
cados como "fatos" ou regras "sociológicas", conforme a definição aqui empregada, nem por
isso são menos importantes. Também não o são para a Sociologia no sentido aqui adotado (que
implica a limitação à "Sociologia Compreensiva", que a ninguém deve nem pode ser imposta).
Só que, como é metodologicamente inevitável, ocupam uma posição distinta das ações compreen-
síveis: a de "condições", "ocasiões", "obstáculos" ou "estímulos" destas.
9. Ação como orientação compreensível pelo sentido do próprio comportamento sempre
existe para nós unicamente na forma de comportamento de um ou vários indivíduos.
Pata outros fins de conhecimento talvez possa ser útil ou necessário conceber o indivíduo,
por exemplo, como uma associação de "células" ou um complexo de reações bioquímicas, ou
sua vida "psíquica" como algo constituído por diversos elementos individuais (como quer que
sejam qualificados). Sem dúvida, obtêm-se desse modo conhecimentos valiosos (regras causais).
Contudo, nós não compreendemos o comportamento expresso em regras desses elementos. Tam-
bém não o compreendemos quando se trata de elementos psíquicos, e tanto menos quanto maior
ECONOMIA E SOCIEDADE 9

a precisão, no sentido das ciências naturais, com que são concebidos: jamais é este o caminho
certo para chegar a uma interpretação que se baseia no sentido visado. ^ra_a_Sociologia_(no
sentido aqui adotado, assim como para a História), r> nhjptn a ser investigado é precisamente
a conexão de se/ir/do-das-ações. Podemos procurar observar e investigar, em princípio, pelo
menos, o comportamento das unidades fisiológicas, das células, por exemplo, ou de elementos
psíquicos quaisquer, obter regras ("leis") correspondentes e, apoiando-nos nestas, "explicar"
fenômenos isolados, isto é, subsumi-los a regras. A interpretação das ações, entretanto, somente
leva em consideração esses fatos e regras na medida em que e no sentido de que o faz com
outros fatos quaisquer (por exemplo, fatos físicos, astronômicos, geológicos, botânicos, zooló-
gicos, fisiológicos, anatômicos, psicopatológicos alheios ao sentido ou condições científico-na-
turais de fatos técnicos)
Para outros fins de conhecimento (por exemplo, jurídicos) ou para finalidades práticas,
por outro lado, pode ser conveniente e mesmo inevitável tratar de determinadas formações
sociais ("Estado", "cooperativa", "sociedade por ações", "fundação")como se fossem indivíduos
(por exemplo, como detentores de direitos e deveres ou como agentes em ações juridicamente
relevantes) Para a interpretação compreensível das ações pela Sociologia, ao contrário, essas
formações nada mais são do que desenvolvimentos e concatenações de ações específicas de
pessoas individuais, pois só estas são portadoras compreensíveis para nós de ações orientadas
por um sentido. Não obstante, a Sociologia não pode ignorar, mesmo para os próprios fins,
aquelas formações conceituais de caráter coletivo próprias a outras concepções. Pois a interpre-
tação da ação mantém com aqueles conceitos coletivos as três relações seguintes: a ) ela mesma
se vê freqüentemente obrigada a trabalhar com conceitos coletivos bastante semelhantes (muitas
vezes denominados de forma inteiramente idêntica), se quiser chegar a alguma terminologia
compreensível. Por exemplo, a linguagem jurídica, bem como a cotidiana, designa como "Estado"
tanto o conceito jurídico quanto aquela realidade da ação social diante da qual a regulamentação
jurídica pretende vigência. Para a Sociologia, a realidade "Estado" não necessariamente se com-
põe exclusiva ou justamente de seus elementos juridicamente relevantes. E , em todo caso, não
existe para ela uma personalidade coletiva "em ação". Quando fala do "Estado", da "nação",
ou da "sociedade por ações", da "família", da "corporação militar" ou de outras "formações"
semelhantes, refere-se meramente a determinado curso da ação social de indivíduos, efetivo
ou construído como possível. Atribui assim ao conceito jurídico que emprega, em virtude de
sua precisão e caráter habitual, um sentido inteiramente distinto. A interpretação da ação deve
tomar nota do fato fundamentalmente importante de que aquelas formações coletivas, que fazem
parte tanto do pensamento cotidiano quanto do jurídico (ou de outras disciplinas), são represen-
tações de algo que em pane existe e em parte pretende vigência, que se encontram na mente
de pessoas reais (não apenas dos juízes e funcionários, mas também do "público") e pelas quais
se orientam suas ações. Como tais, têm importância causal enorme, muitas vezes até dominante
para o desenrolar das ações das pessoas reais. Isto se aplica especialmente às representações
de algo que deve ter vigência (ou não a deve t e r ) (Um "Estado" moderno existe em grande
medida dessa maneira — como complexo de específicas ações conjuntas de pessoas —, porque
determinadas pessoas orientam suas ações pela idéia de que este existe ou deve existir dessa
forma, isto é, de que estão em vigor regulamentações com aquele caráter juridicamente orientado.
Voltaremos a este assunto.) Ainda que, para a terminologia própria da Sociologia (ver a acima),
seja possível, embora pedante e prolixo, eliminar totalmente esses conceitos empregados pela
linguagem corrente, não apenas para as pretensões jurídicas de vigência, mas também para
designar processos reais e substituí-los por palavras inteiramente novas, é claro que esse procedi-
mento seria impossível diante desse fato tão importante. O método da chamada Sociologia "orga-
nicista' ' (tipo clássico: o brilhante livro de Schäff le, Bau und Leben des sozialen Körpers) procura
explicar a ação social conjunta partindo de u m ' 'todo'' — por exemplo, uma' 'economia nacional''

— dentro do qual o indivíduo e seu comportamento são interpretados da mesma maneira que,
por exemplo, a fisiologia trata da situação de um "órgão" dentro da "economia" do organismo
— isto é, do ponto de vista da "conservação" deste) (Compare o famoso dito, em aula, de
um fisiólogo: "§ X. O baço. Do baço, senhores, nada sabemos. Isso quanto ao baço!" De fato,
aquela pessoa "sabia" bastante acerca do baço: posição, tamanho, forma etc. Somente não soube
dizer nada sobre a "função", e a essa incapacidade chamou "não saber nada".) Não examinaremos
10 MAX WEBER

aqui até que ponto, em outras disciplinas, esse tipo de consideração funcional das "panes"
de um "todo" tem de ser (necessariamente) de caráter definitivo: é sabido que a Bioquímica
e a Biomecânica principalmente não poderiam contentar-se com tal consideração. Para uma
Sociologia interpretativa, esse modo de exprimir-se pode: 1) servir para fins de ilustração prática
e de orientação provisória (sendo nesta função muito útil e necessário — ainda que também
possa ser prejudicial no caso de uma superestimação de seu valor cognoscitivo ou de um falso
realismo conceituai), e 2) em certas circunstâncias, somente ele pode nos ajudar a descobrir
aquela ação social cuja compreensão interpretativa seja importante para explicar determinada
conexãer-Mas somente nesse ponto começa o trabalho da Sociologia (tal como aqui o entendemos)
É que, no caso das "formações sociais" (em oposição aos "organismos"), estamos em condições
de realizar uma coisa que ultrapassa a simples constatação de conexões e regras ("leis")funcionais
e que está eternamente negada a todas as "ciências naturais" (no sentido do estabelecimento
de regras causais para processos e fenômenos e formações da "explicação" dos processos particu-
lares a partir dessas regras), precisamente a "compreensão" das ações dos indivíduos nelas envol-
vidos, enquanto que, ao contrário, não podemos "compreender" o comportamento, por exem-
plo, das células, mas apenas registrá-lo funcionalmente e determiná-lo segundo as regras às
quais está submetido. Esta vantagem da explicação interpretativa em face da explicação observa-
dora tem, entretanto, seu preço: o caráter muito mais hipotético e fragmentário dos resultados
obtidos pela interpretação. Mas, mesmo assim, esta constitui precisamente o ponto específico
do conhecimento sociólogico.
Até que ponto pode ser-nos "compreensível" pelo sentido o comportamento de animais
e vice-versa — ambas as coisas num sentido altamente inseguro e problemático em suâ extensão
—, e até que ponto, portanto, poderia haver uma sociologia das relações entre homens e animais
(animais domésticos, animais de caça — muitos animais "compreendem" ordens, cólera, amor,
intenções agressivas e reagem perante essas atitudes, evidentemente não apenas de maneira
mecânica, instintiva, mas muitas vezes de alguma forma na qual transparece a consciência de
um sentido e a orientação pela experiência) é um problema do qual não trataremos aqui. No
fundo, o grau em que compreendemos intuitivamente o comportamento de "homens primitivos"
não é essencialmente superior. Mas, quanto aos métodos seguros de constatar a situação subjetiva
do animal, estes em pane não existem, em pane são bastante insuficientes: como é sabido,
os problemas da psicologia animal são tão interessantes como espinhosos. Existem e são particu-
larmente conhecidas sociedades animais das mais diversas espécies: "famílias" monógamas e
polígamas, rebanhos, alcatéias e, por fim, "Estados" com divisão de funções. (O grau da diferen-
ciação funcional dessas sociedades animais não corresponde, de modo algum, ao grau da diferen-
ciação evolutiva morfológica ou dos órgãos alcançada pela respectiva espécie animal. Assim,
por exemplo, a diferenciação funcional das térmitas e, por conseguinte, a de seus artefatos,
é muito maior do que a das formigas e das abelhas.) É evidente que, na maioria desses casos,
a investigação tem de aceitar como definitiva, por enquanto, a consideração puramente funcional:
o estudo das funções decisivas que têm os tipos particulares de indivíduos ("reis", "rainhas",
"operários", "soldados", "zangões", "reprodutores", "rainhas substitutas" etc.)na preservação
das respectivas sociedades animais, istoé, na alimentação, defesa, propagação e renovação dessas
sociedades. Tudo o que ultrapassou os limites dessa consideração foram, por muito tempo, puras
especulações ou investigações referentes ao grau em que predisposições hereditárias, por um
lado, e o meio ambiente, por outro, participam na formação dessas disposições "sociais". (Assim,
particularmente, as controvérsias entre Weismann — cuja "onipotência da cultivação pela nature-
z a " se fundamenta, em considerável grau, em deduções extra-empíricas — e Gotte.) Mas há
um ponto em que os pesquisadores sérios estão completamente de acordo, essa limitação ao
conhecimento funcional é uma injunção que se espera ser apenas provisória. (Veja-se, por exem-
plo, para a situação atual da pesquisa sobre as térmitas, o escrito de Escherich, 1909 ) Não
se trata de limitar-se à percepção relativamente fácil da "importância para a preservação" das
funções de cada um daqueles tipos diferenciados e de buscar saber de que modo torna-se expli-
cável aquela diferenciação, seja rejeitando a herança de determinadas qualidades seja admitindo-a
(e, neste caso, em nome de que interpretação desse pressuposto) mas de saber também: 1)
o que é que decide o início da diferenciação num indivíduo ainda neutro e indiferenciado,
e 2) o que leva o indivíduo diferenciado a comportar-se (em média) de uma maneira que de
ECONOMIA E SOCIEDADE 11

fato serve ao interesse de preservação do grupo diferenciado. Onde quer que houvesse progresso
na pesquisa desses aspectos este ocorreu pela demonstração experimental (ou suposição) de
estímulos químicos ou fatos fisiológicos (processos de nutrição, castração parasitária etc.) nos
respectivos indivíduos isolados. Até que ponto há a esperança problemática de tornar-se veros-
símil, por meios experimentais, a existência de uma orientação "psicológica" e "pelo sentido",
é uma coisa que hoje nem os próprios especialistas poderiam dizer. Um quadro controlável
da psique desses animais individuais que vivem em sociedades, sobre a base de uma "compreen-
são" orientada pelo sentido, parece, mesmo considerado como meta ideal, apenas alcançável
dentro de limites muito estreitos. E m todo caso, não se pode esperar chegar por este caminho
à "compreensão" da ação social humana. Muito pelo contrário, nesta área trabalha-se, eprecisa-se
trabalhar com analogias humanas. Talvez possamos esperar que essas analogias, algum dia, nos
sejam úteis para resolver o seguinte problema: como avaliar, nas fases primitivas da diferenciação
social humana, a área da diferenciação puramente mecânica, instintiva, em relação ao que o
indivíduo compreende pelo sentido e, em continuação, ao que cria de maneira consciente e
racional. A Sociologia Compreensiva terá de aceitar, sem dúvida, o fato de que também para
o homem, nas fases primitivas, o primeiro componente é absolutamente predominante, e não
deverá se esquecer de que este, nas fases posteriores de sua evolução, continua a exercer influên-
cia constante (e influência decisiva) Toda ação "tradicional" (§ 2) e boa parte do "carisma"
(capítulo III), enquanto germe de "contaminação" psíquica e, por isso, portador de "estímulos
de desenvolvimento" sociológicos, estão muito próximas, com transições imperceptíveis, daque-
les processos apenas biologicamente explicáveis, não suscetíveis de interpretação ou apenas frag-
mentariamente interpretáveis, quanto aos motivos. Mas tudo isso não dispensa a Sociologia Com-
preensiva da tarefa, com plena consciência de seus estreitos limites, de fazer o que só ela pode
fazer.
Os diversos trabalhos de Othmar SPAN — ricos de idéias aceitáveis, ocasionalmente prejudi-
cadas por equívocos e, sobretudo, por argumentos baseados em juízos puramente valorativos
alheios à investigação empírica—têm sem dúvida razão em sublinhar a importância, por ninguém
seriamente contestada, da colocação prévia do problema da funcionalidade (procedimento que
ele chama "método universalista") para toda a Sociologia. Certamente temos de saber primeiro
quais são as ações que têm importância funcional, do ponto de vista da "conservação" (mas,
além disso e sobretudo, também da peculiaridade cultural) e do desenvolvimento em determinada
direção de um tipo de ação social, antes de poder fazer a pergunta: qual é a origem dessas
ações? Quais são os motivos que as determinam? Precisa-se saber primeiro quais são as tarefas
de um " r e i " , um "funcionário", um "empresário", um "rufião", um "mágico" — quais são
as ações típicas (pois só elas o enquadram numa dessas categorias) que têm importância para
a análise e nela serão consideradas, antes de começar a fazer a própria análise ("referência
ao valor'' no sentido de H. Rickert) Mas só essa análise, por sua vez, realiza o que a compreensão
sociológica das ações de indivíduos tipicamente diferenciados (e só de indivíduos humanos) pode
e deve realizar. E m todo caso, cabe eliminar o enorme equívoco de que um método "indivi-
dualista" significa uma valoração individualista (em qualquer sentido), tal como a opinião de
que o caráter inevitavelmente racionalista (em termos relativos) da conceituação significa a crença
no predomínio de motivos racionais ou até uma valoração positiva do "racionalismo". Também
uma economia socialista teria de ser compreendida, pela Sociologia, de maneira "individualista",
isto é, interpretando-se as ações dos indivíduos — os tipos de "funcionários" que nela existem
—, do mesmo modo que, por exemplo, os processos de troca se compreendem mediante a
teoria da utilidade marginal (ou qualquer outro método "melhor" que um dia se encontre,
mas que seja semelhante nesre aspecto) Pois, também nesse caso, o decisivo trabalho empírico-
sociológico começa com a pergunta: que motivos determinaram e determinam os funcionários
e membros individuais dessa "comunidade" a se comportarem de tal maneira que ela chegou
a existir e continua existindo? Toda conceituação funcional (partindo de um "todo") realiza
apenas o trabalho preparatório para isso, trabalho que — quando efetuado de maneira adequada
— é sem dúvida útil e indispensável.
10. As "leis", como são habitualmente designadas por algumas proposições da Sociologia
Compreensiva — por exemplo, a " l e i " de Gresham — , são probabilidades típicas, confirmadas
pela observação, de determinado curso de ações sociais a ser esperado em determinadas condi-
12 MAX WEBER

ções, e que são compreensíveis a partir de motivos típicos e do sentido típico visado pelos agentes.
São compreensíveis e inequívocas, em grau máximo, quando o curso típico observado baseia-se
em motivos racionais orientados por fins (ou quando, por razões de conveniência, estes são
tomados como base do tipo metodicamente construído), e quando a relação entre meio e fim,
segundo a experiência, é inequívoca (no caso do meio "inevitável") Nesse caso é admissível
a afirmação de que, se se agisse de maneira rigorosamente racional, ter-se-ia de agir necessa-
riamente dessa maneira e de nenhuma outra (pois os agentes, no serviço de seus fins inequivo-
camente definidos, dispõem, por razões "técnicas", apenas desses meios e de nenhum outro)
Mas precisamente esse caso mostra, por outro lado, como é errôneo considerar como fundamento
"último" da Sociologia Compreensiva alguma "psicologia". Por "psicologia" cada qual entende,
hoje em dia, coisa diferente. Determinados fins metodológicos, no caso de um tratamento de
certos processos na base das ciências naturais, justificam a separação entre o "físico" e o "psíqui-
co", coisa que, nesre sentido, é estranha a disciplinas que se ocupam com a ação. Os resultados
de uma ciência psicológica que unicamente investiga o "psíquico", no sentido da metodologia
das ciências naturais e com os meios próprios a estas ciências, e, portanto, não se ocupa —
o que é uma coisa completamente diferente — da interpretação do comportamento humano
quanto a seu sentido, quaisquer que sejam seus métodos, podem, naturalmente, bem como
os de qualquer outra ciência, ser importantes, no caso concreto, para a investigação sociológica
e, em muitos casos, o são em alto grau. Mas, em termos gerais, as relações que a Sociologia
tem com a Psicologia não são mais íntimas do que as que tem com todas as outras ciências.
O erro está no conceito do "psíquico": tudo o que não é "físico" seria "psíquico". Mas, certa-
mente, não é coisa "psíquica" o sentido de um exemplo aritmético que alguém tenha em mente.
A consideração racional de uma pessoa sobre se determinada ação é proveitosa ou não para
determinados interesses dados, em vista das conseqüências a serem esperadas, e a decisão resul-
tante são coisas cuja compreensão nem por um fio é facilitada por considerações psicológicas.
Mas é precisamente em tais pressupostos racionais que a Sociologia (incluída a Economia) funda-
menta a maioria de suas "leis". Na explicação sociológica dos aspectos irracionais das ações,
ao contrário, a Psicologia Compreensiva pode prestar, sem dúvida, serviços de importância deci-
siva. Mas isto em nada altera a situação metodológica fundamental.
11. A Sociologia constrói — o que já foi pressuposto várias vezes como óbvio — conceitos
de tipos e procura regras gerais dos acontecimentos. Nisso contrapõe-se à História, que buscar
a análise e imputação causal de ações, formações e personalidades individuais culturalmente
importantes. A conceituação da Sociologia encontra seu material, como casos exemplares e essen-
cialmente, ainda que não de modo exclusivo, nas realidades dã ação consideradas também rele-
vantes do ponto de vista da História. Forma seus conceitos e procura suas regras sobretudo
também levando em conta se, com isso, pode prestar um serviço à imputação causal histórica
dos fenômenos culturalmente importantes. Como em toda ciência generalizadora, seus conceitos,
devido à peculiaridade de suas abstrações, têm de ser relativamente vazios quanto ao conteúdo,
diante da histórica realidade concreta. O que pode oferecer, em compensação, é a maior univoci-
dade dos. conceitos. Alcança-se esta maior univocidade pelo ótimo possível de adequação de
sentido, tal como o pretende toda a conceituação sociológica. Esta adequação pode ser alcançada
em sua forma mais plena no caso de conceitos e regras racionais (orientados por valores ou
por fins) Mas a Sociologia procura também exprimir fenômenos irracionais (místicos, proféticos,
inspiracionais, afetivos) em conceitos teóricos e adequados por seu sentido. E m todos os casos,
racionais como irracionais, ela se distancia da realidade, servindo para o conhecimento desta
da forma seguinte: mediante a indicação do grau de aproximação de um fenômeno histórico
a um ou vários desses conceitos torna-se possível classificá-lo [quanto ao tipo]. O mesmo fenô-
meno histórico, por exemplo, pode ter, numa parte de seus componentes, caráter "feudal",
noutra parte, caráter "patrimonial", numa terceira, "burocrático" e, numa quarta, "carismático".
Para que com estas palavras se exprima algo unívoco, a Sociologia, por sua vez, deve delinear
tipos "puros" ('ideais") dessas configurações, os quais mostram em si a unidade conseqüente
de uma adequação de sentido mais plena possível, mas que, precisamente por isso, talvez sejam
tão pouco freqüentes na realidade quanto uma reação física calculada sob o pressuposto de
um espaço absolutamente vazio. Somente desta maneira, partindo do tipo puro ("ideal"), pode
realizar-se uma casuística sociológica. É óbvio que, além disso, a Sociologia também utiliza even-
ECONOMIA E SOCIEDADE 13

tualmente o tipo médio, do gênero dos tipos empírico-estatísticos: construção que não requer
especial esclarecimento metodológico. Mas quando ela fala de casos "típicos", refere-se sempre
ao tipo ideal. Este, por sua vez, pode ser racional ou irracional, ainda que na maioria dos casos
seja racional (sempre, por exemplo, na teoria econômica) e em todo caso se construa com adequa-
ção de sentido.
Deve-se compreender claramente que, no domínio da Sociologia, somente se podem cons-
truir "médias' ' e, portanto, ' 'tipos médios" com alguma univocidade quando se trata de diferenças
de grau entre ações qualitativamente iguais, determinadas por um sentido. Existem tais casos.
Na maioria das vezes, porém, as ações histórica ou sociologicamente relevantes estão influen-
ciadas por motivos qualitativamente heterogêneos, entre os quais não se pode obter uma ' ' média' '
propriamente dita. As construções típico-ideais da ação social feitas pela teoria econômica, por
exemplo, são, portanto, "estranhas à realidade" no sentido de que — neste caso — costumam
perguntar: como se agiria no caso ideal de uma racionalidade puramente orientada por um
fim, o econômico, para poder compreender a ação real determinada também, pelo menos em
parte, por inibições ligadas à tradição, por elementos afetivos, por erros, por considerações
e propósitos não-econômicos, l)na medida em que realmente esteve co-determinada por motivos
racionais econômicos, no caso concreto, ou costuma sê-lo no caso médio, 2) mas também para
facilitar o conhecimento de seus motivos reais precisamente mediante a distância entre seu curso
real e o típico-ideal? O mesmo aplica-se a uma construção típico-ideal de uma atitude de rejeição
do mundo conseqüente, misticamente condicionada, perante a vida (por exemplo, em face da
política e da economia) Ouantomais nítida e inequivocamente se construam esses tipos ideais,.
qnjinrn mais alheios do mundo estejam, neste sentido, tanto melhor prestarão s e u s e r y i ç o j e r m i -
"rjéÇira rloccifirotóriq hpm rcmq jTenn<;ririimenff Na prárira nín~prr<rpdp dA õnTrTTnrma
a imputação causal concreta que a História faz de acontecimentos isolados, quando, por exemplo,
para explicar o desenvolvimento da campanha militar de 1866, põe-se (único procedimento possí-
vel) a averiguar primeiro (teoricamente), tanto para Moltke quanto para Benedek, como cada
um dos dois, reconhecendo plenamente a própria situação e a do inimigo, teria agido no caso
de absoluta racionalidade orientada pelos fins, para comparar o resultado com as ações reais
e então explicar causalmente a diferença observada (condicionada talvez por falsas informações,
erros, conclusões errôneas, temperamento pessoal ou considerações não-estratégicas) Também
neste caso se emprega (de modo latente) uma construção racional típico-ideal.
Mas os conceitos construtivos da Sociologia são típico-ideais não apenas externa como
também internamente. A ação real sucede, na maioria dos casos, em surda semiconsciência
ou inconsciência de seu "sentido visado". O agente mais o "sente", de forma indeterminada,
do que o sabe ou tem "clara idéia" dele; na maioria dos casos, age instintiva ou habitualmente.
Apenas ocasionalmente e, no caso de ações análogas em massa, muitas vezes só em poucos
indivíduos, eleva-se à consciência um sentido (seja racional, seja irracional) da ação. Uma ação
determinada pelo sentido efetivamente, isto é, claramente e com plena consciência, é na realidade
apenas um caso-limite. Toda consideração histórica e sociológica tem dê ter em conta essgjato
ao analisar a realidade. Mas isto não deve impedir que a Sociologia construa seus conceitos
mediante a classificação do possível "sentido subjetivo", isto é, como se a ação, seu decorrer
real, se orientasse conscientemente por um sentido. Sempre que se trata da consideração da
realidade concreta, tem de ter em conta a distância entre esta e a construção hipotética, averi-
guando a natureza e a medida desta distância
É que metodologicamente se está muitas vezes perante a escolha entre termos imprecisos
ou precisos. Mas, quando precisos, serão irreais e "típico-ideais". Neste caso, porém, os últimos
são cientificamente preferíveis. (Veja sobre tudo isto [o ensaio sobre a objetividade nas ciências
sociais (N.T.)] Archiv für Sozialwissenschaft, X K , loc. cit. [cf. acima, p. 6, tópico 6 ] )

II. Conceito de ação social


I A ação social (incluindo omissão ou tolerânciaforienta-se pelo comportamento de outroSj
seja este passado, presente ou esperado como futuro (vingança por ataques anteriores, defesa
contra ataques presentes ou medidas dêlIeFêsã~pira enfrentar ataques futuros) Os "outros"
14 MAX WEBER

podem ser indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade indeterminada de pessoas completa


mente desconhecidas ("dinheiro", por exemplo, significa um bem destinado à troca, que o agente
aceita no ato de troca, porque sua ação está orientada pela expectativa de que muitos outros,
porém desconhecidos e em número indeterminado, estarão dispostos a aceitá-lo também, por
sua pane, num ato de troca futuro)
2. Nem todo tipo de ação — também de ação externa — é "ação social" no sentido aqui
adotado. A ação externa, por exemplo, n ã o o é , quando se orienta exclusivamente pela expectativa
de determinado comportamento de obietos materiais. O comportamento interno só é ação social
quando se orienta pelas áçoes de outros. Não o é, por exemplo, o comportamento religioso,
quando nada mais é do que contemplação, oração solitária etc. A atividade econômica (de um
indivíduo) unicamente o é na medida em que também leva em consideração o comportamento
de terceiros. De maneira muito geral e formal isso já acontece, portanto, quando ela tem em
vista a aceitação por terceiros do próprio poder efetivo de disposição sobre bens econômicos.
De um ponto de vista material: quando, por exemplo, durante o consumo, também leva em
consideração os futuros desejos de terceiros, orientando por estes, entre outros fatores, as pró-
prias medidas para "poupar". Ou quando, na produção, faz dos futuras desejos de terceiros
a base de sua própria orientação etc.
3. Nem todo tipo de contato entre pessoas tem caráter social, senão apenas um compor-
tamento que, quanto ao sentido, se orienta pelo comportamento de outra pessoa. Um choque
entre dois ciclistas, por exemplo, é um simples acontecimento do mesmo caráter de um fenômeno
natural. Ao contrário, já constituiriam "ações sociais" as tentativas de desvio de ambos e-o xinga-
mento ou a pancadaria ou a discussão pacífica após o choque.
4. A ação social não é idêntica a) nem a uma ação homogênea de várias pessoas, b) nem
a qualquer ação influenciada pelo comportamento de outras, a) Quando na rua, ao começar
uma chuva, muitas pessoas abrem ao mesmo tempo os guarda-chuvas, a ação de cada um (normal-
mente) não está orientada pela ação dos outros, mas a ação de todos orienta-se, de maneira
homogênea, pela necessidade de proteção contra a água. b) É sabido que a ação do indivíduo
está fortemente influenciada pelo simples fato de ele se encontrar dentro de uma "massa" aglome-
rada em determinado local (objeto das investigações da "psicologia das massas", à maneira,
por exemplo, dos estudos de Le B o n ) ação condicionada pela massa. E massas dispersas, também,
ao irifluírem sobre o indivíduo (por exemplo, por intermédio da imprensa), por meio de ações
simultâneas ou sucessivas de muitos, percebidas como tais, podem tornar a ação do indivíduo
condicionada pela massa ; Determinados tipos de reações são facilitados ou dificultados pelo
simples fato de o indivíduo se sentir parte de u m a ' 'massa". Por conseguinte, determinado aconte-
cimento ou comportamento humano pode provocar os mais diversos tipos de sentimentos: alegria;
cólera, entusiasmo, desespero ou paixões de todas as espécies, os quais não sucederiam (ou
não tão facilmente) no indivíduo isolado, como conseqüência — sem que exista, entretanto
(pelo menos na maioria dos casos), uma relação de sentido entre o comportamento do indivíduo
e o fato de ele fazer parte de uma massa. Uma ação que, em seu curso, se determina ou se
co-determina, de maneira apenas reativa, pelo simples fato de haver uma situação de "massa",
sem que haja uma relação de sentido com essa situação, não seria "ação social" no sentido
aqui adotado do termo. A distinção, entretanto, é naturalmente muito fluida. Pois não apenas
na pessoa do demagogo, por exemplo, mas também ná massa do público pode existir, em grau
diferente e suscetível a diversas interpretações, uma relação de sentido com a situação de "massa".
Além disso, a simples "imitação" da ação de outra pessoa (cuja importância, com toda a razão,
foi ressaltada por G. Tarde) não pode ser considerada uma ação especificamente "social" quando
é puramente reativa, sem orientação da ação própria pela alheia quanto ao sentido. Neste caso
o limite é tão fluido que muitas vezes a distinção parece impossível. Mas Qjsimples fato de
alguém adotar para si determinado comportamento observado em outras pessoas e que lhe parece
conveniente para seu fins não é ação social em nosso sentido. Pois nesse caso o agente não
orienta sua ação pelo comportamento de outros, mas, a observação desse comportamento permi-
tiu-lhe conhecer determinadas probabilidades objetivas, e é por estas que orienta sua ação.
Sua ação está determinada causalmente pela de outra pessoa e não pelo sentido inerente àquela.
Quando, ao contrário, se imita, por exemplo, um comportamento alheio porque está "na moda",
porque é considerado tradicional, exemplar ou "distinto" com respeito a determinada classe
ECONOMIA E SOCIEDADE 15

social, ou por outros motivos semelhantes, então existe uma relação de sentido — seja referente
ao comportamento da pessoa imitada, de terceiros ou de ambos. Entre esses casos há, natural-
mente, transições. Ambos — o condicionamento pela massä e a imitação — são fluidos e repre-
sentam casos-limite da ação social que freqüentemente encontraremos, por exemplo, ao examinar
a ação tradicional (§ 2 ) A causa da fluidez, nesses, bem como em vários outros casos, está
em que aijrientaçãopelo comportamento alheio e o sgnüdo da ação própria nem sempre podepnj
ser verificados clafametjte. nem sempre são conscientes e ainda mais raramente são completa]
mente conscientes. Por isso nem sempre é possível distinguir, com toda certeza, a mera "influên-
cia" da "orientação" pelo sentido. Mas podem ser separadas conceitualmente, ainda que, natural*
mente, a imitação puramente "reativa" tenha sociologicamente pelo menos o mesmo alcance
daquela imitação que representa uma "ação social" propriamente dita. É que de modo algum
a Sociologia tem que ver somente com a "ação social", mas esta constitui (para o gênero de
Sociologia de que aqui se trata) o fato central, o fato que, para ela, como ciência, é, por assim
dizer, o elemento constitutivo. Mas com isto nada se afirma a respeito da importância deste
em relação a outros fatos.

§ 2. A a ç ã o social, c o m o toda a ç ã o , pode ser determinada: 1 ) de modo racional


referente-a-ftfís. por expectativas quanto ao comportamento de objetos do m u n d o exte-
rior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas c o m o " c o n d i ç õ e s " o u " m e i o s "
para alcançar fins p r ó p r i o s , ponderados e perseguidos racionalmente, c o m o sucesso;
2 ) de modo racional referente a valores-, pela crença consciente n o v a l o r — é t i c o ,
estético, religioso o u qualquer que seja sua interpretação — absoluto e inerente a deter-
minado comportamento c o m o t a l , independentemente do resultado; ò)demodo afetivo,
especialmente emocional-, p o r afetos o u estados emocionais atuais; A) de modo tradicio-
nal: p o í costume arraigado. ^

1. O comportamento estritamente tradicional — do mesmo modo que a imitação puramente


reativa (veja o § ánterior) — encontra-se por completo no limite e muitas vezes além daquilo
que se pode chamar, em geral, ação orientada "pelo sentido". Pois freqüentemente não passa
de uma reação surda a estímulos habituais que decorre na direção da atitude arraigada. A grande
maioria das'ações cotidianas habituais aproxima-se desse tipo, que se inclui na sistemática não
apenas como caso-limite mas também porque a vinculação ao habitual (voltaremos mais tarde
a este assunto) pode ser mantida conscientemente, em diversos graus e sentidos-, nesse caso,
esse tipo se aproxima ao do tópico 2.
2. O comportamento estritamente afetivo está, do mesmo modo, no limite ou além daquilo
que é ação conscientemente orientada "pelo sentido"; pode ser uma reação desenfreada a um
estímulo não-cotidiano. Trata-se de sublimação, quando a ação afetivamente condicionada apare-
ce como descarga consciente do estado emocional: nesse caso encontra-se geralmente (mas nem
sempre) no caminho para a "racionalização" em termos valorativos ou para a ação referente
a fins, ou para ambas.
3- A ação afetiva e a ação racional referente a valores distinguem-se entre si pela elaboração
consciente dos alvos últimos da ação e pela orientação conseqüente e planejada com referência
a estes, no caso da última. Têm em comum que, para elas, o sentido da ação não está no resultado
que a transcende, mas sim na própria ação em sua peculiaridade. Age de maneira afetiva quem
satisfaz sua necessidade atual de vingança, de gozo, de entrega, de felicidade contemplativa
ou de descarga de afetos (seja de maneira bruta ou sublimada)
Age de maneira puramente racional referente a valores quem, sem considerar as conse-
qüências previsíveis, age a serviço de sua convicção sobre o que parecem ordenar-lhe o dever,
a dignidade, a beleza, as diretivas religiosas, a piedade ou a importância de uma "causa" de
qualquer natureza. E m todos os casos, a ação racional referente a valores (nó sentido de nossa
terminologia) é uma ação segundo "mandamentos" ou de acordo com "exigências" que o agente
cré dirigidos a ele. Somente na medida em que a ação humana se orienta por tais exigências
— o que acontece em grau muito diverso, na maioria dos casos bastante modesto — falaremos
de racionalidade referente a valores. Conforme veremos, possui significação bastante para ser
16 MAX WEBER

destacada como tipo especial, embora, de resto, não se pretenda dar aqui uma classificação
completa dos tipos de ação.
4. Age de maneira racional referente a fins quem orienta sua ação "pelos fins, meios e
conseqüências secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às conseqüên-
cias secundárias, assim como os diferentes fins possíveis entre si: isto é, qugm não a g e n e m .
de modo afetivo (e particularmente não-emocional) n e m d e m o d o t r a d i c i o n a T Ã decisão entre
finsèxuiiscqüências concorrentes e incompatíveis, por sua vez, podésér orientada racionalmente
com referência a valores: nesse caso, a ação só é racional com referência a fins no que se
refere aos meios. Ou também o agente, sem orientação racional com referência a valores, na
forma de "mandamentos" ou "exigências", pode simplesmente aceitar os fins concorrentes e
incompatíveis como necessidades subjetivamente ciadas e colocá-los numa escala segundo süa
urgência conscientemente ponderada, orientando sua ação por essa escala, de modo que as
necessidades possam ser satisfeitas nessa ordem estabelecida (princípio da "utilidade marginal").
A orientação racional referente a valores pode, portanto, estar em relações muito diversas com
a orientação racional referente a fins. Do ponto de vista da racionalidade referente a fins, entre-
tanto, a racionalidade referente a valores terá sempre caráter irracional, e tanto mais quanto
mais eleve d valor pelo qual se orienta a um valor absoluto; pois quanto mais considere o valor
próprio da ação (atitude moral pura, beleza, bondade absoluta, cumprimento absoluto dos deve-
res) tanto menos refletirá as conseqüências dessa ação. Mas também a racionalidade absoluta
referente a fins é essencialmente um casolimite construído.
5. Só muito raramente a ação, e particularmente a ação social, orienta-se exclusivamente
de uma òu de outra destas maneiras. E , naturalmente, esses modos de orientação de modo
algum representam uma classificação completa de todos os tipos de orientação possíveis, senão
tipos conceitualmente puros, criados para fins sociológicos, dos quais a ação real se aproxima
mais ou menos ou dos quais — ainda mais freqüentemente — ela se compõe. Somepte os resul-
tados podem provar sua utilidade para nossos fins.

§ 3- Por " r e l a ç ã o " social entendemos o comportamento reciprocamente referido


quanto ~á seu c o n t e ú d o de sentido p o r u m a pluralidade de agentes e que se orienta
por essa referência. A r e l a ç ã o social consiste, portanto, completa e exclusivamente
na probabilidade de que se aja socialmente n u m a f o r m a indicável (pelo sentido), n ã o
importando, por enquanto, e m que se baseia essa pr.obabilidade.

1. Um mínimo de relacionamento reciproco entre as ações de ambas as partes é, portanto,


a característica conceituai. O conteúdo pode ser o mais diverso: luta, inimizade, amor sexual,
amizade, piedade, troca no mercado, "cumprimento" ou "contorno" ou "violação" de um acor-
do, "concorrência" econômica, erótica ou de outro tipo, comunidade estamental, nacional ou
de classe (no caso de estas últimas, além de meras características comuns, produzirem "ações
sociais" — voltaremos a isso mais tarde) O conceito, portanto, nada diz a respeito de que
exista "solidariedade" entre os agentes ou precisamente o contrário.
2. Sempre se trata do sentido empírico visado pelos participantes no caso concreto, em
média oq no tipo "puro" construído, e nunca do sentido normativamente "correto" ou metafisi-
camente "verdadeiro". A relação social consiste exclusivamente, mesmo no caso das chamadas
"formações sociais" como "Estado", "Igreja", "cooperativa", "matrimônio" e t c , na probabi-
lidade de haver, no passado, no presente ou no futuro e de forma indicável, ações reciprocamente
referidas, quanto ao sentido. Deve-se sempre ter em conta isso, para evitar a "substancialização"
desses conceitos. Um "Estado", por exemplo, deixa de "existir" sociologicamente tão logo desa-
pareça a probabilidade de haver determinados tipos de ação social orientados pelo sentido.
Essa probabilidade pode ser muito grande ou extremamente pequena. No mesmo sentido e
na mesma medida em que ela realmente (pelo que se estima) existiu ou existe, existiu ou existe
também a respectiva relação social. Não há outro sentido claro que se possa vincular à afirmação
de que, por exemplo, determinado "Estado" ainda "existe" ou deixou de "existir".
3. Não se afirma de modo algum que, no caso concreto, os participantes da ação reciproca-
mente referida ponham o mesmo sentido na relação social ou se adaptem internamente, quanto
ECONOMIA E SOCIEDADE 17

ao sentido, à atitude do parceiro, que exista, portanto, "reciprocidade" nesre sentido da palavra.
"Amizade", "amor", "piedade", "fidelidade contratual", "sentimento de solidariedade nacio-
nal", de um lado, podem encontrar-se, do outro lado, com atividades completamente diferentes.
Nesse caso, os participantes ligam a suas ações um sentido diverso: a relação é, assim, por
ambos os lados, objetivamente "unilateral". Mas mesmo nessas condições há reciprocidade,
na medida em que o agente pressupõe determinada atitude do parceiro perante a própria pessoa
(pressuposto talvez completa ou parcialmente errôneo) e orienta por essa expectativa sua ação,
o que pode ter, e na maioria das vezes terá, conseqüências para o curso da ação e a forma
da relação. Naturalmente, esta é apenas objetivamente "bilateral" quando há "correspondêhcias"
quanto ao conteúdo do sentido, segundo as expectativas médias de cada um dos participantes.
Por exemplo, quando, diante da atitude do pai, o filho mostra, pelo menos aproximadamente,
a atitude que o pai (no fcaso concreto, em média ou tipicamente) espera. Uma relação social
baseada plena e inteiramente, quanto ao sentido, em atitudes correspondéntes por ambos os
lados é na realidade um caso-limite. Por outro lado, a ausência da bilateralidade somente exciui,
segundo nossa terminologia, a existência de uma "relação social" quando tenha essa conse-
qüência: que falte de fato uma referência recíproca das ações de ambas as partes. Transições
de todas as espécies constituem aqui, como sempre na realidade, a regra e não a exceção. .
4. Uma relação social pode ter um caráter inteiramente transitório, bem como implicar
permanência, isto é, que exista a probabilidade da repetição contínua de um comportamento
correspondente ao sentido (considerado como tal e, por isso, esperado) A "existência" de uma
relação social nada mais significa do que a presença dessa probabilidade, maior ou menor,
de que ocorra unja ação correspondente aq sentido, o que sempre se deve ter em conta para
evitar idéias falsas. A afirmação de que uma "amizade" ou um "Estado" existe ou existiu significa,
portanto, pura e exclusivamente: nós (os observadores) julgamos que há ou houve a probabilidade
de que, por causa de determinada atitude de determinadas pessoas, se agirá de determinada
maneira indicável, de acordo com um sentido visado em média, e mais nada (compare tópico
2 ) A alternativa, inevitável na consideração jurídica, de que uma disposição de direito com
determinado sentido tenha ou não validade (em termos jurídicos), de que uma relação de direito
ou bem existe ou deixa de existir, não se aplica, portanto, à consideração sociológica.
5. O conteúdo do sentido de uma relação social pode mudar: numa relação política, por
exemplo, a solidariedade pode transformar-se numa colisão de interesses. Neste caso, é apenas
uma questão de conveniência terminológica e do grau de continuidade na transformação dizer
que se criou uma "nova" relação ou que a anterior continua com novo "conteúdo do sentido".
Também é possível que esse conteúdo seja em parte perene, em parte variável.
6. O conteúdo do sentido que constitui de maneira perene uma relação social pode ser
expresso na forma de "máximas", cuja observação média ou aproximada os participantes esperam
do ou dos parceiros e pelas quais orientam (em média ou aproximadamente) suas próprias ações.
Isto ocorre tanto mais quanto mais a ação, segundo seu caráter geral, se oriente de maneira
racional — seja referente a fins, ou a valores. No caso de uma relação erótica ou afetiva em
geral (de piedade, pòr exemplo), a possibilidade de uma formulação racional do conteúdo do
sentido visado é naturalmente muito menor do que, por exemplo, no caso de uma relação contra-
tual de negócios.
7. O conteúdo do sentido de uma relação social pode ser combinado por anuência recípro-
ca. Isto significa que os participantes fazem promessas referentes a seu comportamento futuro
(comportamento mútuo ou outro qualquer) Cada um dos participantes — desde que pondere
racionalmente — considera então, em condições normais (e com diverso grau de certeza), que
o outro orientará sua ação pelo sentido da promessa tal como ele (o agente) a entende. Este
orienta sua própria ação de maneira racional, em parte referida a fins (com maior ou menor
"lealdade" ao sentido da promessa) em parte a valores, isto é, no caso, ao dever de "observar",
por sua vez, o acordo contraído segundo o seu sentido para ele. Isto em antecipação do assunto
ao qual voltaremos nos §§ 9 e 13-

§ 4. Podem ser observadas, na a ç ã o social, regularidades de fato, isto é, o c u r s o


de uma a ç ã o repete-se s e m p r e c o m o m e s m o agente o u (às vezes s i m u l t a n e a m e n t e )
18 MAX WEBER

é c o m u m entre muitos agentes, c o m sentido tipicamente h o m o g ê n e o . C o m estes ripos


de cursos das a ç õ e s ocupa-se a Sociologia, e m o p o s i ç ã o à História, que trata da i m p u t a ç ã o
causal de c o n e x õ e s singulares importantes, isto é , relevantes p a r a o destino [do â m b i t o
cultural de referência ( N . T . ) ] .
D e n o m i n a m o s uso a probabilidade efetivamente dada de u m a regularidade na
o r i e n t a ç ã o da a ç ã o social, q u a n d o e na medida e m que a probabilidade dessa r e g u l a r i -
dade, dentro de determinado c í r c u l o de pessoas, está dada unicamente pelo e x e r c í c i o
efetivo. C h a m a m o s o uso costume, q u a n d o o e x e r c í c i o se baseia n o hábito inveterado.
D i z e m o s , ao c o n t r á r i o , que a regularidade é condicionada pela "situação de interesses"
("condicionada por interesses"), quando e na medida e m que a probabilidade de sua
existência e m p í r i c a depende unicamente de que os indivíduos o r i e n t e m p o r expectativas
suas ações puramente racionais referentes a fins.

1. O uso inclui também a "moda". Chamamos um uso "moda", em contraposição ao


"costume", quando (em exata oposição ao caso do costume) o fato da novidade de determinado
comportamento é a fonte da orientação das ações. A moda tem seu lugar próximo à "convenção"
porque, como esta, nasce (na maioria das vezes) de interesses de prestígio estamentais. Não
trataremos dela mais de perto neste lugar.
2. Chamamos "costume", em contraposição à "convenção" e ao "direito", uma norma
não garantida externamente e à qual o agente de fato se atém, seja de maneira "irrefletida",
seja por "comodidade" ou por outras razões quaisquer, e cuja provável observação, pelasmesmas
razões, ele pode esperar de outras pessoas pertencentes ao mesmo círculo. O costume, neste
sentido, não é uma coisa que está "em vigor": não se exige de ninguém que a ele se atenha.
Naturalmente, a transição entre ele e a convenção válida ou o direito é absolutamente fluida.
Por toda parte a tradição efetiva é a mãe do que tem vigência. É "costume" hoje que tomemos
determinado tipo de café-da-manhã, mas isto não é, de modo algum, "obrigatório" (a não ser
para hóspedes de um hotel), e nem sempre foi costume. O modo de se vestir, ao contrário,
ainda que oriundo do "costume", hoje em grande parte não é mais costume, mas convenção.
Sobre uso e costume podem ser lidos com proveito, ainda hoje, os respectivos parágrafos em
JHERING, Zweck im Recht, volume I I . Compare-se também P. OERTMANN, Rechtsordnung und Verkehrs-
sitte ( 1 9 1 4 ) , e, obra mais recente, E. WEIGEUN, Sitte, Recht und Moral, 1919 (que concorda comigo
em oposição a Stammler)
3. Grande número de regularidades muito salientes no decorrer das ações sociais, particu-
larmente (mas não apenas) das ações econômicas, não se baseia na orientação por alguma norma
considerada "vigente" nem no costume, mas unicamente na circunstância de que o modo de
agir dos participantes, por sua própria natureza, melhor corresponde, em média, a seus xnreresses
normais, subjetivamente avaliados, e que por essa avaliação subjetivai esse conhecimento orien-
tam sua ação: assim, por exemplo, as regularidades na formação dos preços no mercado " l i v r e " .
No mercado, os interessados orientam sua ação (o " m e i o " ) pelos próprios interesses econômicos
subjetivos típicos (o " f i m " ) e pelas expectativas, igualmente típicas, que nutrem a respeito da
ação presumível dos outros (as "condições" para alcançar seu f i m ) Desta maneira, quanto mais
rigorosa a racionalidade referente a fins em suas ações, tanto maior a semelhança de suas reações
perante determinadas situações. Disso decorrem homogeneidades, regularidades e continuidades
na atitude e na ação, às vezes muito mais estáveis do que as que existem quando a ação se
orienta por normas e deveres considerados de fato "obrigatórios" por determinado círculo de
pessoas. Esse fenômeno de que a orientação exclusiva pela situação de interesses, próprios e
alheios, produz efeitos análogos aos que se procura impor — muitas vezes em vâo — pelo
estabelecimento de normas, provocou grande interesse especialmente na área econômica: pode-
se dizer que foi uma das fontes do nascimento da economia como ciência. Existe, entretanto,
de forma análoga, em todos os domínios da ação. Constitui, por seu caráter consciente e interna-
mente independente, o pólo oposto de todas as espécies de vinculação interna mediante a submis-
são ao "costume" puramente habitual, bem como de toda entrega a normas em que se acredita,
orientando-se por um valor. Um componente essencial da "racionalização" da ação é a substi-
tuição da submissão interna ao costume habitual pela adaptação planejada a determinadas situa-
ECONOMIA E SOCIEDADE 19

ções de interesses. Esse processo, no entanto, não esgota o conceito da "racionalização" da


ação. Pois pode suceder que esta corra, de maneira positiva, em direção a uma racionalização
consciente de valores, porém, de maneira negativa, às custas não apenas do costume mas igual-
mente da ação afetiva, e finalmente também em direção à ação puramente racional referente
a fins e não crente em valores, às custas da ação racional referente a valores. Ainda nos ocupa-
remos em várias ocasiões destapolissemia do conceito de "racionalização" da ação. (Pormenores
sobre o conceito, no final. )
4. A estabilidade do (mero) costume baseia-se na circunstância de que quem não orienta
por ele suas ações age de maneira "imprópria", isto é, tem de aceitar maiores ou menores
incomodidades e inconveniências enquanto a maioria das pessoas de seu círculo, em suas ações,
continua a contar com a existência do costume e por ele se orienta.
A estabilidade da situação de interesses fundamenta-se, de maneira semelhante, na circuns-
tância de que quem não orienta suas ações pelo interesse dos outros — não "contando" com
este — provoca a resistência deles ou chega a um resultado não desejado nem previsto, correndo,
portanto, o risco de prejudicar seus próprios interesses.

§ 5- T o d a a ç ã o , especialmente a a ç ã o social e, p o r sua v e z , p a r t i cu l a r m e n t e a


relação social p o d e m ser orientadas, p e l o lado dos participantes, pela representação
da existência de u m a ordem legítima. A probabilidade de que isto o c o r r a de fato chama-
mos " v i g ê n c i a " da o r d e m e m questão.

1 . Para nós, a "vigência" de uma ordem significa, portanto, algo mais do que a mera
regularidade, condicionada pelo costume ou pela situação de interesses, do decorrer de uma
ação social. Quando empresas transportadoras de móveis anunciam regularmente nos jornais,
perto das datas em que se realiza a maioria das mudanças, essa "regularidade" está condicionada
pela "situação de interesses". Quando um merceeiro ambulante procura determinados fregueses
em determinados dias do mês ou da semana, isto se deve ou a um costume adquirido ou a
sua situação de interesses (determinado turno em sua clientela) Quando, ao contrário, um funcio-
nário público comparece todos os dias, à mesma hora, à repartição, isto se explica (também,
mas) não apenas pelo hábito (costume) e (também, mas) não apenas por sua situação de interesses,
segundo a qual pudesse agir ou não segundo sua conveniência. Explica-se (em regra: também)
pela "vigênria" de. uma orcjem (regulamento de serviço), como mandamento, cuja violação não
apenas seria prejudicial, mas — normalmente — também é abominada de maneira racional
referente a valores, pnr se_q " y n r i m e n r n dn Hever" (ainda que com graus muito variados de
eficácia)
2. Ao conteúdo do sentido de uma relação social chamamos^) "ordem" somente nos
casos em que a ação se orienta (em média e aproximadamente) p o T " m a x í m a s " indicáveis, e
somente falamos b) de "vigência" dessa ordem quando a orientação efetiva por aquelas máximas
sucede, entre outros motivos, também (quer dizer, num grau que tenha algum peso na prática)
porque estas são consideradas vigentes com respeito à a ç ã o x seja como obrigações, seja como
modèlos dê comportamento. Na realidade, a orientação das ações com referência a uma ordem
ocorre nos participantes por motivos muito diversos. Mas a circunstância de que, ao lado dos
outros motivos, para pelo menos uma parte dos agentes essa ordem aparece como algo modelar
ou obrigatório e, por isso, como devendo ter vigência, aumenta naturalmente, e muitas vezes
em grau considerável, a probabilidade de que por ela se orientem as ações. Uma ordem observada,
somente por motivos racionais com referência a um fim, é, em geral, muito mais mutável d©
que a orientação por essa ordem unicamente em virtude do costume, em conseqüência do hábito
de determinado comportamento, sendo esta a forma mais freqüente da atitude interna. Mas
esta, por sua vez, é ainda mais mutável do que uma ordem que aparece com o prestígio de
ser modelar ou obrigatória, ou, conforme dizemos, "legítima". As transições entre uma orien-
tação puramente tradicional ou puramente racional referente a fins por uma ordem e a crença
em sua legitimidade são, naturalmente, inteiramente fluidas na realidade.
3 Pode-se "orientar" a ação pela vigência de uma ordem não apenas "cumprindo" o
sentido dessa ordem (conforme é entendido em média) Também no caso de se "contornar"
20 MAX WEBER

ou ' violar" esse sentido pode atuar a probabilidade em algum grau de sua vigência (como norma
obrigatória) E m primeiro lugar, isso acontece de maneira puramente racional referente a fins.
O ladrão orienta sua ação pela "vigência" da legislação penal: ao ocultá-la. A "vigência" da
ordem, para determinado círculo de pessoas, exprime-se no fato de ele fer de ocultar a violação
dela. Mas, abstraindo-se deste caso-limite: muitas vezes, a violação da ordem se limita a número
maior ou menor de transgressões parciais, ou se procura, com maior ou menor grau de boa-fé,
apresentá-la como legítima. Ou existem de fato interpretações diferentes do sentido da ordem,
das quais — para a Sociologia — cada uma tem "vigência" na medida em que efetivamente
determina as ações. Para a Sociologia não há dificuldade em reconhecer a vigência paralela
de diversas ordens, contraditórias entre si, no mesmo círculo de pessoas. Pois mesmo o indivíduo
pode orientar suas ações por diversas ordens contraditórias. E não apenas sucessivamente, o
que acontece todo dia, mas também dentro de uma única ação. Uma pessoa envolvida num
duelo orienta sua ação pelo código de honra, mas, ocultando essa ação ou, em vez disso, apresen-
tando-se ao tribunal, orienta-a pelo código penal. Quando, entretanto, a violação do sentido
(conforme é entendido em média) de uma ordem ou o ato de contorná-la se converte em regra,
então a ordem passa a ter "vigência" limitada ou, finalmente, deixa de existir. Entre a vigência
e a não-vigência de uma ordem não há, portanto, para a Sociologia, alternativa absoluta, como
existe para a jurisprudência (em virtude de sua finalidade inevitável) Existem transições fluidas
entre os dois casos, e pode haver, conforme já observamos, vigência paralela de ordens contradi-
tórias entre si, o que significa que cada uma delas vige na medida em que há a probabilidade
de que a ação efetivamente se oriente por ela.
Conhecedores da literatura pertinente lembram-se, sem dúvida, do papel que o conceito
de "ordem" desempenha no livro de R. Stammler, citado na nota preliminar deste capítulo
[p. 3] — livro certamente escrito, como todas suas obras, em estilo brilhante, mas profundamente
equívoco e confundindo os problemas de maneira fatal. (Compare minha crítica citada no mesmo
lugar — infelizmente numa forma um tanto dura devido ao desgosto que senti perante tal confu-
são. ) Stammler não apenas deixa de distinguir entre a vigência empírica e a normativa como
também desconhece que a ação social não se orienta unicamente por "ordens", e sobretudo
converte, de um modo que carece de toda lógica, a ordem em "forma" da ação social, impon-
do-lhe, em relação ao "conteúdo", um papel semelhante ao que a "forma" desempenha na
teoria do conhecimento (prescindindo-se de todos os demais erros) Na realidade, a ação (primor-
dialmente) econômica (capítulo I I ) orienta-se, por exemplo, pela idéia da escassez de meios
disponíveis para satisfazer determinadas necessidades, em relação às (presumíveis) necessidades,
e também pela ação futura e previsível de terceiros que têm em vista os mesmos meios. Ao
fazê-lo, contudo, orienta-se na escolha de suas medidas "econômicas", além disso por aquelas
"ordens" que o agente conhece como leis e convenções "em vigor", isto é, das quais ele sabe
que sua transgressão provocará determinadas reações de terceiros. Estes simples fatos empíricos
foram confundidos por Stammler de maneira inextricável. Acima de tudo, afirma ele que é
conceitualmente impossível uma relação causal entre a "ordem" e a ação real. Entre a vigência
normativa, jurídico-dogmática de uma ordem e o curso empírico de uma ação não há, de fato,
relação causal, senão que aí somente cabe perguntar: está "atingido" juridicamente o curso
empírico da ação pela ordem (corretamente interpretada)? Deve esta, portanto, ter vigência
(normativa) para ele? E, em caso positivo, o que é que ela estabelece, para ele, como norma
vigente e obrigatória? Ao contrário, entre a probabilidade de que a ação se oriente pela represen-
tação da vigência de uma ordem que, em média, se entende de determinada maneira, e a ação
econômica existe, evidentemente (em determinados casos), uma relação causal, no sentido habi-
tual da palavra. Para a Sociologia, precisamente aquela probabilidade da orientação por esta
representação, e mais nada, " é " a ordem vigente.

§ 6. A legitimidade de u m a o r d e m pode estar garantida-.


I . unicamente pela atitude interna, e neste caso:
1. de m o d o afetivo: por entrega sentimental;
2. de m o d o racional referente a valores: pela crença e m sua vigência absoluta,
sendo ela a e x p r e s s ã o de valores supremos e obrigatórios (morais, estéticos
o u outros quaisquer),
ECONOMIA E SOCIEDADE 21

3- de m o d o religioso: pela crença de que de sua o b s e r v â n ci a depende a o b t e n ç ã o


de bens de salvação;
I I . t a m b é m ( o u somente) pelas expectativas de determinadas c o n s e q ü ê n c i a s exter-
nas, portanto: pela situação de interesses, mas: p o r expectativas de determinado gênero.
U m a o r d e m é denominada:
a ) convenção, quando sua v i g ê n c i a está garantida externamente pela probabi-
lidade de que, dentro de determinado círculo de pessoas, u m comportamento discor-
dante tropeçará c o m a r e p r o v a ç ã o ( r e l a t i v a m e n t e ) g e r a l e praticamente sensível;
b ) direito, quando está garantida externamente pela probabilidade da coação (físi-
ca o u psíquica) e x e r c i d a por determinado q u a d r o de pessoas cuja f u n ç ã o específica
consiste e m f o r ç a r a o b s e r v a ç ã o dessa o r d e m o u castigar sua v i o l a ç ã o .

Sobre convenção, veja, além de Jhering, op. cit., Weigelin, op. cit., e F . TÕNNIES, Die Sitte
(1909)

1. Chamamos convenção o'' costume'' que, no interior de determinado círculo de pessoas,


é tido como "vigente" e está garantido pela reprovação de um comportamento discordante.
E m oposição ao direito (no sentido aqui adotado da palavra), falta o quadro de pessoas especial-
mente ocupadas em forçar sua observação. Quando Stammler pretende distinguir a convenção
do direito pela "voluntariedade" absoluta da submissão no caso da primeira, não está de acordo
com o uso corrente da palavra nem acerta no caso de seus próprios exemplos. A observação
da convenção (no sentido corrente da palavra) — por exemplo, da forma habitual de saudação,
do modo de vestir-se, dos limites de forma e conteúdo nas relações com outras pessoas —
constitui uma exigência absolutamente séria ao indivíduo, tenha esta caráter obrigatório ou mode-
lar, não a deixando à livre escolha — como, por exemplo, o simples "costume" de preparar
a comida de determinada maneira. Uma falta contra a convenção ("costume estamental")é castí^
gada freqüentemente com muito mais rigor, pela conseqüência eficaz e sensível do boicote social;
declarado pelos membros do próprio estamento, do que o poderia fazer qualquer forma de
coação jurídica. O que falta é apenas o quadro de pessoas especialmente ocupadas em garantir'
seu cumprimento (juízes, procuradores, funcionários administrativos, executores e t c ) , mas a;
transição é fluida. O caso-limite da garantia convencional de uma ordem, em transição papá
a garantia jurídica, é a aplicação do boicote formal, anunciado e organizado. Este, em nossa
terminologia, já seria um meio de coação jurídica. Não nos interessa aqui a circunstância de
que a convenção está também protegida por outros meios além da simples reprovação (por
exemplo, pela aplicação do direito doméstico no caso de um comportamento contrário à conven-
ção) Pois o decisivo é que, nestes casos, quem aplica os meios de coação (muitas vezes bem
drásticos) em virtude da reprovação convencional, é o indivíduo, e não um quadro de pessoas
especialmente encarregadas dessa função.
2. Para nós, o decisivo no conceito do "direito" (que para outros fins pode ser definido
de maneira completamente diferente) é a existência de um quadro coativo. Este, naturalmente,
de modo algum precisa ser semelhante ao que hoje em dia é habitual. E m particular, não é
necessária a existência de uma instância "judiciária". O próprio clã (em casos de vingança de
sangue ou de lutas internas) pode representar esse quadro coativo quando de fato estão em
vigor, para a forma de sua reação, ordens de qualquer espécie. No entanto, este caso está no
extremo limite do que ainda se pode chamar "coação jurídica". Ao "direito internacional",
como é sabido, foi negada repetidamente a qualidade de "direito" porque carece de um poder
coativo supra-estatal. Segundo a terminologia aqui adotada (como conveniente) não se pode
qualificar, na realidade, de "direito" uma ordem garantida externamente apenas pela expectativa
de reprovação ou represálias, isto é, convencionalmente e pela situação de interesses, sem que
exista um quadro de pessoas particularmente encarregadas de impor seu cumprimento. Com
a terminologia jurídica, entretanto, pode muito bem ocorrer o contrário. Os meios coativos
são irrelevantes. Neles se inclui também, por exemplo, a "admoestação fraternal" — costumeira
em algumas seitas como meio mais suave de coação aos pecadores — desde que esteja ordenada
por uma norma e executada por um quadro de pessoas. O mesmo se aplica à repreensão censória
22 MAX WEBER

como meio de garantir normas "morais" de comportamento, e muito mais ainda à coação psíquica
exercida pelos meios disciplinares da Igreja propriamente ditos. Existe, portanto, um "direito"
hierocraticamente garantido do mesmo modo que um "direito" garantido politicamente ou pelos
estatutos de uma associação, ou pela autoridade doméstica de cooperativas ou de uniões. Segundo
esta definição do conceito, as normas estabelecidas para convivência estudantil também consti-
tuem "direito". O caso do § 888, 2 da RZPO [Reichszivilprozessordnung, ordem de processos
civis (N.T.)] (direitos inexecutáveis) evidentemente tem seü lugar ali. As leges imperfectae e
"obrigações naturais" são formas da linguagem jurídica em que se expressam indiretamente
limites ou condições da aplicação da coação jurídica. Neste sentido, uma "norma das relações
humanas" coativamente estabelecida também constitui "direito" (§§ 157 e 242 do Código Civil
( B G B ) Sobre o conceito dos "bons costumes" (que merecem aprovação e, por isso, são sancio-
nados pelo direito), compare Max- Rümelin em Schwãb. Heimatgabe für Th. Hãring (1918).
• 3 Nem toda ordem vigente tem necessariamente caráter geral e abstrato. A "norma jurídi-
ca" em vigor e a "decisão jurídica" de um caso concreto nem sempre foram separadas uma
da outra de maneira tão estrita como hoje o consideramos normal. Uma "ordem" pode aparecer
também como ordem unicamente de uma situação concreta Os respectivos detalhes fazem parte
da Sociologia do Direito. Por questões de conveniência, trabalharemos por enquanto, salvo refe-
rência em contrário, com a concepção moderna da relação entre norma jurídica e decisão jurídica.
4. Ordens "externamente" garantidas podem, ao mesmo tempo, também estar garantidas
"internamente". Para a Sociologia, as relações entre direito, convenção e "ética" não constituem
problema. Um padrão "ético", para ela, caracteriza-se por adotar como norma, para a ação
humana que pretende para si o predicado de "moralmente boa", determinada espécie de crença
racional referente a valores, do mesmo modo que a ação que pretende para si o predicado
de "bela" se orienta por padrões estéticos. Neste sentido, representações de normas éticas podem
influir sobre as ações de maneira muito profunda, mesmo carecendo de toda garantia externa.
Isto ocorre geralmente quando sua transgressão quase não toca em interesses alheios. Por outra
parte, estão freqüentemente garantidas pela religião. Mas, podem também estar garantidas (no
sentido da terminologia aqui empregada) pela convenção: reprovação da transgressão e boicote,
ou até, juridicamente, por reações penais ou policiais ou conseqüências civis. Toda ética efetiva-
mente "vigente" — no sentido da Sociologia — costuma estar garantida, em considerável grau,
pela probabilidade da reprovação, no caso da transgressão, isto é, de maneira convencional.
Por outro lado, nem todas as ordens convencional ou juridicamente garantidas pretendem para
si (ou pelo menos, não necessariamente) o caráter de normas éticas. As segundas, que muitas
vezes têm caráter puramente racional referente a fins, geralmente o fazem ainda muito menos
do que as primeiras. O problema de se uma representação de vigência normativa difundida
entre muitas pessoas pertence ou não ao domínio da "ética" (sendo, em caso negativo, "simples"
convenção ou "simples" norma jurídica) só pode ser decidido, pela Sociologia empírica, com
referência àquele conceito do "ético" que efetivamente é ou era válido no círculo de pessoas
em questão Por isso, não cabe a ela fazer afirmações gerais sobre esse assunto.

§ 7. Vigência legítima pode ser atribuída a uma o r d e m , pelos agentes:


a ) e m v i r t u d e da tradição, vigência do que sempre assim f o i ;
ò ) e m virtude de uma crença afetiva (especialmente e m o c i o n a l ) vigência do novo
re .dado o u do e x e m p l a r ;
• e m irtude de uma crença racional referente a valores: vigência do que se
reconheceu c o m o absolutamente v á l i d o ;
d) em virtude de u m estatuto existente e m cuja legalidade se acredita
galidade [d] pode ser considerada legítima [pelos participantes]:
n v i r t u d e de u m acordo entre os interessados;
/3)em v i r t u d e da i m p o s i ç ã o (baseada na d o m i n a ç ã o julgada legítima de homens
sobre h o m e n s ) e da submissão correspondente [veja § 13].

Todos os pormenores (salvo alguns conceitos a serem definidos) têm seu lugar na Sociologia
do poder ou na do Direito. Limitamo-nos aqui às seguintes observações:
ECONOMIA E SOCIEDADE 23

1. A vigência de uma ordem em virtude de sustentar-se o caráter sagrado da tradição


é a forma mais universal e mais primitiva. O medo de danos de origem mágica fortaleceu a
inibição psíquica diante de toda mudança nas formas habituais de comportamento, e os vários
interesses, que costumam estar vinculados à manutenção da submissão à ordem vigente, atuam
no sentido da conservação desta ordem. Voltaremos a este assunto no capítulo I I I .
2. Primitivamente, a criação consciente de ordens novas apresentou-se quase sempre sob
a forma de oráculos proféticos ou, pelo menos, de revelações profeticamente sancionadas e,
como tais, tidas por sagradas, mesmo no caso dos estatutos dos aisimnetas [autores de ordenações
legais ( N T . ) ] helénicos. A submissão dependeria então da crença na legitimidade'do profeta.
Prescindindo-se da revelação profética, a criação de ordens novas, isto é, consideradas "novas",
só foi possível nas épocas em que dominava um tradicionalismo rigoroso, sendo tratadas então
como se, na realidade, tivessem vigorado desde sempre, porém não bem reconhecidas, ou tives-
sem estado temporariamente obscurecidas, tendo sido redescobertas.
3. O tipo mais puro da vigência aceita de modo racional referente a valores está repre-
sentado pelo "direito natural". Não se pode negar a influência real e não insignificante de seus
preceitos logicamente deduzidos sobre as ações, por mais limitada que seja em face de suas
pretensões ideais. Cabe distinguir estes preceitos tanto do direito revelado, quanto do estatuído
ou do tradicional.
4. A forma de legitimidade hoje mais corrente é a crença na legalidade, a submissão
a estatutos estabelecidos pelo procedimento habitual e formalmente correto. Nestas condições,
a oposição entre ordens pactuadas e ordens impostas é apenas relativa, pois, quando a vigência
.de uma ordym pactuada nãn reside num acordo unânime—o que, nos tempos passadosTfreqüBn-
temente foi considerado indispensável para alcançar a verdadeira legitimidade — mas na submis-
são efetiva, dentro de determinado círculo de pessoas, dos discordantes à vontade da maioria
— caso muito freqüente —, temos, na realidade, a imposição desta vontade à minoria. O caso
contrário, em que minorias violentas ou, pelo menos, mais enérgicas e inescrupulosas impõem
ordens, que afinal são consideradas legítimas também pelos que no começo a elas se opuseram,
é extremamente freqüente. Quando o meio legal para a criação ou modificação de ordens é
a "votação", observamos freqüentemente que a vontade minoritária alcança a maioria formal
e que a maioria a ela se submete, quer dizer: que o caráter majoritário é apenas aparência.
A crença na legalidade de ordens pactuadas remonta a tempos muito remotos e também se
encontra, às vezes, entre os chamados povos primitivos: neste caso, porém, quase sempre comple-
tada pela autoridade dos oráculos.
5. A disposição de uma ou várias pessoas de se submeter à imposição de uma ordem
— desde que o decisivo não seja simples medo ou motivos racionalmente ponderados, ligados
a um fim, mas a existência de idéias de legalidade — pressupõe a crença na autoridade em
algum sentido legítima daquele ou daqueles que impõem essa ordem. Trataremos disso separada-
mente (§§ 13 e 16, e capítulo I I I )
6. E m regra, a disposição de se submeter a uma ordem — desde que não se trate de
estatutos completamente novos — está condicionada por uma mistura de vinculação à tradição
e de idéias de legalidade — prescindindo-se das mais diversas situações de interesses. E m muitos
casos, as pessoas em cujas ações se mostra essa submissão não têm consciência de se tratar
de costume, convenção ou direito. Cabe então à Sociologia averiguar o gênero típico de vigência
em questão.

§ 8. U m a relação social denomina-se luta quando as ações se o r i e n t a m pelo p r o p ó -


sito d e i m p o r a própria vontade contra a resistência do ou dos parceiros. D e n o m i n a m o s
" p a c í f i c o s " aqueles meios de luta que n ã o consistem e m violência física efetiva. A luta
" p a c í f i c a " é " c o n c o r r ê n c i a " quando se trata da pretensão f o r m a l m e n t e pacífica de obter
para si o poder de disposição sobre oportunidades desejadas t a m b é m por outras pessoas.
H á ^ " c o n c o r r ê n c i a r e g u l a d a " , na medida e m que esta, e m seus fins e meios, se orienta
por u m a o r d e m . À luta (latente) pela existência, isto é, pelas possibilidades de v i v e r
o u de s o b r e v i v e r , que se dá entre indivíduos o u tipos humanos s e m que haja intenções
dirigidas contra outros, denominamos " s e l e ç ã o " : " s e l e ç ã o s o c i a l " q u a n d o se trata das
24 MAX WEBER

possibilidades que pessoas concretas t ê m n a v i d a ; " s e l e ç ã o b i o l ó g i c a " quando se trata


das probabilidades de sobrevivência d o p a t r i m ô n i o g e n é t i c o .

1. Entre as formas de luta há as mais diversas transições, sem interrupção da continuidade:


desde a luta sangrenta, dirigida à aniquilação da vida do adversário e alheia a toda regra, até
o combate entre cavaleiros convencionalmente regulado (grito do arauto antes da batalha de
Fontenoy: "Messieurs les Anglais, tirez les premiers") e o desafio esportivo com suas regras,
desde a "concorrência" erótica desregrada pelos favores de uma mulher ou a luta concorrencial
por possibilidades de troca submetida à ordem do mercado, até as "concorrências" artificiais
reguladas ou a campanha eleitoral. A separação conceituai da luta [não] violenta justifica-se
pela peculiaridade de seus meios normais e pelas conseqüências sociológicas particulares que
acarreta e que resultam destes meios (veja capítulo I I e mais adiante).
2. Toda luta ou concorrência típica e em massa leva, a longo prazo, finalmente à "seleção"
daqueles que possuem em maior grau as qualidades pessoais mais importantes, em média, para
triunfar na-luta — não obstante as inúmeras intervenções possíveis da sorte ou do azar. Quais
sejam essas qualidades — se a força física ou a astúcia inescrupulosa, a intensidade do rendimento
intelectual ou a força dos pulmões e a técnica demagógica, a devoção perante os superiores
ou perante as massas aduladas, a originalidade criativa ou a facilidade de adaptação social, as
qualidades extraordinárias ou as que se elevam sobre as médias da massa —, isto se decide
pelas condições da luta ou da concorrência, às quais, além de todas as qualidades individuais
ou de massa imagináveis, pertencem também as ordens pelas quais se orienta o comportamento
das pessoas na luta, de maneira seja tradicional seja racional referente a valores ou a fins. Cada
uma dessas ordens influi sobre as probabilidades na "seleção social". Nem roda seleção social,
no sentido aqui adotado, é "luta". O conceito de "seleção social", como tal, nada mais significa
do que determinados tipos de comportamento e, eventualmente, qualidades pessoais têm prefe-
rência quando se trata da possibilidade de entrar em.determinada relação social (como "amante",
"marido", "deputado", "funcionário público", "contratador de obras", "diretor-geral", "em-
presário bem-sucedido" etc.) Nada diz, portanto, sobre a questão de se essa possibilidade de
preferência social se adquire por meio de "luta" nem sobre o problema de se com ela se melhora
a probabilidade de sobrevivência biológica do tipo em questão ou de se acontece o contrário.
Scxpente falaremos de "luta" quando efetivamente existe uma situação d&£Qgçg&êB£Í?
Seguhd<7ensina ã experiência, a luta é inevitávêTde'"Tato apenas no sentido de "seleção", e
em princípio o é apenas no sentido de seleção biológica. A seleção é "eterna" porque não se
pode imaginar meio algum para eliminá-la de modo global. Uma ordem pacifista de observância
mais rigorosa sempre só poderá regular os meios, os oBjetosx e a direção da luta no sentido
da eliminação de alguns (determinados) deles. Isto significa que outros meios de luta continuam
a levar à vitória, na concorrência (aberta) ou — imaginando-se esta também eliminada (o que
só seria possível de modo teórico ou utópico) — na seleção (latente) referente às probabilidades
de vida e de sobrevivência, favorecendo aquelas pessoas que deles dispõem, seja como patrimônio
genético seja como produto da educação. A seleção social constitui empiricamente a barreira
contra uma eliminação da luta, e a biológica a constitui em princípio.
3. Cabe distinguir, naturalmente, entre a luta do indivíduo pelas possibilidades de vida
e de sobrevivência e a "luta" e a "seleção" das relações sociais. No caso destas últimas, esses
conceitos só podeni ser empregados em sebtido figurado, pois as "relações" existem apenas
como ações humanas de determinado sentido. Uma "seleção" ou "luta" entre elas significa,
portanto, que determinada espécie de ação, com o tempo, é suplantada por outra, seja das
mesmas pessoas seja de outras. Isto pode ocorrer de maneiras diversas. A ação humana pode:
a ) dirigir-se conscientemente à perturbação de determinadas relações sociais concretas ou, de
modo geral, de relações sociais organizadas em determinada forma, isto é, a perturbar o curso
das ações correspondentes ao sentido dessas relações, ou a impedir seu nascimento ou sua subsis-
tência (um "Estado", por meio de guerra ou revolução; uma "conspiração", por meio de repres-
são sangrenta; o "concubinato", por meio de medidas policiais; negócios "usurários", recusan-
do-lhes a proteção jurídica e penalizando-os), ou a influenciá-las, favorecendo a subsistência
de determinada categoria de relações às custas das outras: tanto um indivíduo isolado quanto
muitos indivíduos associados podem estabelecer para si tais objetivos. Mas pode ocorrer também:
ECONOMIA E SOCIEDADE 25

b) que o curso da ação social e suas condições determinantes, de todas as espécies, levem ao
resultado acessório, não intencionado, de que para determinadas relações concretas ou determi-
nadas categorias de relações (isto é, as respectivas ações) diminua progressivamente sua probabi-
lidade de subsistência ou de nova formação. No caso de mudanças, todas as condições naturais
ou culturais, de qualquer natureza, atuam de algum modo no sentido de modificar estas probabi-
lidades para as mais diversas espécies de relações sociais. Cada qual está livre de falar, também
nestes casos, de uma "seleção" das relações sociais — por exemplo, dos "Estados" — na qual
triunfa o "mais forte" (no sentido de "mais adaptável") Mas deve-se ter em conta que esta
chamada "seleção" nada tem a ver com a seleção dos tipos humanos nem no sentido social
nem no biológico, e que, em cada caso concreto, cabe perguntar pela causa que produziu o
deslocamento das probabilidades para esta ou aquela forma de ação social e de relações sociais,
ou que destruiu uma relação social ou permitiu sua subsistência em face das demais, considerando
que estas causas são tão múltiplas que parece impróprio abrangê-las com uma fórmula única.
Há então sempre o perigo de introduzir valorações incontroladas na investigação empírica e,
sobretudo, de fazer a apologia de um resultado que muitas vezes está individualmente condicio-
nado no caso particular e, nesta acepção do termo, tem caráter puramente "casual". Nos últimos
anos já houve exemplos mais do que abundantes disso, pois a simples eliminação de uma relação
social (concreta ou qualitativamente especificada), muitas vezes condicionada exclusivamente
por causas concretas, não prova, de modo algum, sua incapacidade geral de "adaptação".

§ 9. U m a r e l a ç ã o social denomina-se " r e l a ç ã o c o m u n i t á r i a " q u a n d o e na m e d i d a


e m que a atitude na a ç ã o social — n o caso particular o u e m m é d i a o u n o tipo p u r o
— repousa n o sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva o u tradicio-
nalmente) a o mesmo grupo.
U m a r e l a ç ã o social denomina-se " r e l a ç ã o associativa" q u a n d o e na m e d i d a e m
que a atitude na a ç ã o social repousa n u m ajuste o u n u m a união de interesses r a c i o n a l -
mente motivados ( c o m r e f e r ê n c i a a v a l o r e s o u fins). A r e l a ç ã o associativa, c o m o caso
típico, pode repousar especialmente (mas n ã o u n i c a m e n t e ) n u m acordo r a c i o n a l , por
declaração recíproca. E n t ã o a a ç ã o correspondente, q u a n d o é r a c i o n a l , está orientada:
a) de m a n e i r a racional r e f e r e n t e a v a l o r e s , pela crença n o c o m p r o m i s s o próprio-, b)
de m a n e i r a racional r e f e r e n t e a fins pela expectativa da lealdade da outra parte.

L A terminologia lembra a distinção estabelecida por F. Tònnies em súa obra fundamental


GemeinschaftundGesellschaft, entre "comunidade" e "sociedade". De acordo com seus próprios
fins, contudo, Tõnnies atribuiu desde logo a esta distinção um conteúdo muito específico, que
não tem utilidade para nossos propósitos. Os tipos mais puros da relação associativa são: a)
a troca estritamente racional referente a fins e livremente pactuada, no mercado: um compromisso
momentâneo entre interesses opostos, porém complementares; b) a união livremente pactuada
e puramente orientada por determinados fins-, um acordo sobre uma ação contínua, destinado
em seus meios e propósitos exclusivamente à persecução dos interesses objetivos (econômicos
ou outros) dos participantes; c ) a união de correligionários, racionalmente motivada com vista
a determinados valores: a seita racional, na medida em que prescinde do cultivo de interesses
emocionais e afetivos e somente quer estar ao serviço de uma " causa". (Apenas em casos especiais,
entretanto, isso ocorre em seu tipo puro.)
2. A relação comunitária pode apoiar-se em todas as espécies de fundamentos afetivos,
emocionais ou tradicionais: uma confraria inspirada, uma relação erótica, uma relação de pieda-
de, uma comunidade "nacional", uma tropa unida por sentimentos de camaradagem. Compreen-
de-se mais facilmente esse tipo no exemplo da comunidade familiar. A grande maioria das relações
sociais, porém, tem caráter, em parte, comunitário e, em parte, associativo. '\Toda relação sócia}/
por mais que se limite, de maneira racional, a determinado fim e por mais prosaica que seja
(por exemplo, à freguesia) pode criar valores emocionais que ultrapassam o fim primitivamente
intencionado. Toda relação associativa, que ultrapassa a simples ação momentânea executada
por uma união que se propõe determinado fim, isto é, que seja de mais longa duração, estabele-
26 MAX WEBER

cendo relações sociais entre determinadas pessoas e não se limitando, desde o princípio, a certas
tarefas objetivas — como, por exemplo, a relação associativa numa unidade do exército, numa
classe da escola, num escritório, numa oficina —, mostra, porém em grau muito diverso, essa
tendência. Ao contrário, uma relação social que, por seu sentido normal, é comunitária pode
ser orientada inteira ou parcialmente de modo racional referido a fins, por parte de alguns
ou de todos os participantes. Difere muito, por exemplo, o grau em que um grupo familiar
é sentido por seus membros como "comunidade" ou aproveitado como "relação associativa".
O conceito de "relação comunitária" é definido aqui, deliberadamente, de maneira muito ampla
e que abrange situações bastante heterogêneas.
3- A relação comunitária constitui normalmente, por seu sentado visado, a mais radical
antítese da luta. Mas isto não deve enganar-nos sobre o fato de, mesmo dentro das mais íntimas
dessas relações, serem bem normais, na realidade, todas as espécies de pressão violenta exercida
sobre as pessoas de natureza mais transigente. Do mesmo modo, a "seleção" dos tipos, que
leva às diferenças entre as probabilidades de viver e sobreviver, tanto ocorre dentro das comuni-
dades como em outras situações. As relações associativas^ ao contrário, muitas vezesnadajnais.
s ã o d f w p ç rnmpropnissos PtUr p ~ '"tprrsspfi nntngónicoí, ijnc wliminnm gpBESãSãã parte rim
bbjetosjãu meios da luta (ou pelo menos tentam fazê-lo), deixando em pé a própria oposição
"démteresses e a concorrência pelas melhores possibilidades. "Luta" e comunidade são conceitos
relativos; a luta tem formas bem diversas, determinadas pelos meios (violentos ou "pacíficos")
e a maior ou menor brutalidade com que se aplicam. É um fato, como já disse, que toda ordem
de ações sociais, qualquer que seja sua natureza, deixa em pé, de alguma forma, a seleção
efetiva na competição dos diversos tipos humanos por suas possibilidades de vida.
4. Nem sempre o fato de algumas pessoas terem em comum determinadas qualidades
ou determinado comportamento ou se encontrarem na mesma situação implica uma relação
cornunitária.^Por exemplo, a circunstância de pessoas terem em comum aquelas qualidâdeâJhiokk
gicas hereditárias consideradas características "raciais" não significa, de per q"p entrej^l^l
exista uma relação comunitária. Pode ocorrer que, devido à limitação do commercium e connu-
bium imposta pelo mundo circundante, cheguem a eníontrar-se numa situação homogênea,
isolada diante desse mundo circundante. Mas, mesmo que reajam de maneira homogênea a
essa situação, isto ainda não constitui uma relação comunitária; tampouco esta se produz pelo
simples "sentimento" da situação comum e das respectivas conseqüências. Somente quando,
em virtude desse sentimento, as pessoas começam de alguma forma a orientar seu comportamento
pelo das outras, nasce entre elas uma relação social — que não é apenas uma relação entre
cada indivíduo e o mundo circundante —, e só na medida em que nela se manifesta o sentimento
de pertencer ao mesmo grupo existe uma "relação comunitária". Entre os judeus, por exemplo,
essa atitude é relativamente rara — excluídos os círculos sionistas e algumas outras relações
associativas que representam interesses judaicos — , e muitas vezes até é desaprovada. Determi-
nada linguagem comum, criada pela tradição homogênea dentro da família ou da vizinhança,
facilita em alto grau a compreensão rècíproca e, portanto, a formação de relações sociais de
todas as espécies. Mas isto, de per si, não implica uma relação comunitária, mas apenas facilita
o contato entre os membros dos respectivos grupos e, portanto, a formação de relações associa-
tivas. Facilita estas relações, em primeiro lugar, entre os indivíduos e não pelo fato de falarem
a mesma linguagem mas em virtude de outros interesses quaisquer: a orientação pelas normas
da linguagem comum constitui, portanto, em primeiro lugar, apenas um meio para o entendi-
mento entre ambas as partes e não o conteúdo do sentido das relações sociais. Somente a existência
de contrastes conscientes em relação a terceiros pode criar, "nos participantes da mesma lingua-
gem, um sentimento de comunidade e relações associativas cujo fundamento de existência, de
maneira consciente, é a linguagem comum. A participação num "mercado" (sobre o conceito,
veja capítulo II), por sua vez, tem natureza diferente. Cria relações associativas entre os partici-
pantes individuais na troca e uma relação social (de "concorrência", sobretudo) entre, os que
pretendem trocar e que, por isso, têm de orientar seu comportamento pelo dos outros partici-
pantes. Mas, fora disso, somente surgem relações associativas na medida em que alguns dos
participantes fazem algum tipo de acordo, por exemplo, com o fim de aumentar suas oportu-
nidades na luta por melhores preços, ou todos os participantes o fazem a fim de regular e
assegurar suas transações (O mercado e a economia de troca que sobre este se fundamenta
ECONOMIA E SOCIEDADE 27

representam o tipo mais importante da influência recíproca das ações pela pura e simples situação
de interesses, fenômeno característico da economia moderna.)

§ 10. U m a r e l a ç ã o social (tanto faz se comunitária o u associativa) será designada


aberta p a r a f o r a , q u a n d o e na m e d i d a e m que a participação naquela a ç ã o r e c í p r o c a ,
que a constitui segundo o c o n t e ú d o de seu sentido, n ã o é negada, p o r sua o r d e m
vigente, a n i n g u é m que efetivamente esteja e m c o n d i ç õ e s e disposto a tomar parte
nela. A o contrário, é chamada fechada p a r a f o r a q u a n d o e na medida e m que o c o n t e ú d o
de seu sentido o u sua o r d e m vigente e x c l u i , limita o u liga a participação a determinadas
c o n d i ç õ e s , O caráter aberto ou fechado pode estar condicionado de m a n e i r a tradicional,
afetiva o u r a c i o n a l , c o m vista a valores ou fins. O caráter fechado, por motivos racionais
deve-se especialmente à seguinte circunstância: u m a r e l a ç ã o social pode p r o p o r c i o n a r
aos participantes determinadas oportunidades de satisfazer seus interesses, interiores
ou exteriores, seja c o m vista ao f i m o u ao resultado, seja através dâ a ç ã o solidária
ou e m v i r t u d e do e q u i l í b r i o de interesses incompatíveis. Q u a n d o os participantes dessa
relação esperam de sua p r o p a g a ç ã o melhores possibilidades p a r a si mesmos, n o que
se r e f e r e ao aspecto quantitativo, qualitativo, de s e g u r a n ç a o u de v a l o r destas oportuni-
dades, interessa-lhes seu caráter aberto; quando, ao contrário, eles e s p e r a m obter essas
vantagens de sua m o n o p o l i z a ç ã o , interessa-íhes seu caráter fechado para fora.
U m a r e l a ç ã o social fechada pode garantir a seus participantes determinadas possi-
bilidades monopolizadas da seguinte f o r m a : a ) c o m o possibilidades livres; b ) c o m o
possibilidades qualitativa e quantitativamente reguladas o u racionadas; o u c ) c o m o possi-
bilidades apropriadas p o r indivíduos o u grupos, por tempo ilimitado e relativa o u plena-
mente inalienáveis (fechamento p a r a dentro) Às possibilidades objeto de a p r o p r i a ç ã o
denominamos " d i r e i t o s " . Segundo a o r d e m vigente, a a p r o p r i a ç ã o pode efetuar-se
c o m referência: 1 ) a m e m b r o s de determinadas comunidades e sociedades — p o r e x e m -
plo, comunidades domésticas; o u 2 ) a indivíduos, e neste caso: a ) d e u m m o d o puramente
pessoal; o u b ) de m a n e i r a que, q u a n d o m o r r e o usufrutuário das possibilidades, u m a
ou várias pessoas ligadas a este p o r u m a r e l a ç ã o social o u p o r nascimento (parentesco),
ou outras por ele designadas, t o m e m s e u lugar e m r e l a ç ã o às possibilidades apropriadas
(apropriação hereditária). Por f i m , pode realizar-se. 3 ) de m a n e i r a que o usufrutuário
esteja mais o u menos l i v r e a ceder as possibilidades, mediante u m acordo: a ) a determi-
nadas pessoas o u b ) a outras pessoas quaisquer ( a p r o p r i a ç ã o alienável). Aos participantes
de u m a relação social fechada denominamos sócios-, n o caso de u m a r e g u l a ç ã o da partici-
p a ç ã o , desde que esta lhes garanta a a p r o p r i a ç ã o de determinadas possibildades, serão
sócios com direitos. C h a m a m o s propriedade (do i n d i v í d u o , da comunidade o u da socie-
dade) as possibilidades hereditariamente apropriadas por este o u aquelas; caso sejam
alienáveis, designamo-las p r o p r i e d a d e livre.

A "penosa" definição destas situações, aparentemente inútil, é um exemplo de que precisa-


mente o "evidente por si mesmo" (por ser habitual em virtude da experiência concreta) é o
que menos costuma ser "pensado".
1. a ) Fechadas com caráter tradicional costumam ser, por exemplo, aquelas comunidades
nas quais a participação se fundamenta em relações familiares.
£>) Fechadas com caráter afetivo costumam ser as relações pessoais que se baseiam em
sentimentos (por exemplo, relações eróticas ou, muitas vezes, de piedade)
c ) Fechadas (relativamente) com caráter racional referente a valores costumam ser comuni-
dades de fé de caráter estrito.
d) Fechadas com caráter racional referente a fins são, no caso típico, associações econô-
micas de caráter monopolista ou plutocrático.
Seguem-se alguns exemplos tomados ao acaso.
28 MAX WEBER

O caráter aberto ou fechado de uma relação associativa efetiva baseada na mesma lingua-
gem depende do conteúdo de seu sentido (conversação em oposição à troca de informações
de natureza íntima ou relativas a negócios) As relações no mercado, na maioria dos casos,
costumam ser abertas. E m muitas relações comunitárias e associativaspodemos observar alterna-
damente sua expansão e seu fechamento. Assim, por exemplo, nas corporações e nas cidades
democráticas da Antiguidade e da Idade Média, cujos membros, em certas épocas, estavam interes-
sados em assegurar suas possibilidades por meio de maior força e, por isso, pretendiam aumentar
seu número, enquanto que, em outras épocas, interessados em manter o valor de seu monopólio,
pretendiam a limitação deste número. Também não é raro esse fenômeno em comunidades
monásticas e seitas religiosas que, no interesse da manutenção do nível ético ou por causas
materiais, abandonam a propaganda religiosa para buscar o isolamento. A ampliação do mercado
com vista ao aumento das vendas e a limitação monopolista do mesmo encontram-se, de maneira
semelhante, lado a lado. A propagação de determinada linguagem é, hoje, conseqüência normal
dos interesses de editores e escritores, em oposição ao caráter secreto e estamentalmente fechado
de determinados tipos de linguagem, não raro nas épocas anteriores.
2. O grau e os meios da regulação e do fechamento para fora podem ser muito diversos,
de modo que a transição entre o estado aberto e o regulado e fechado é fluida: ençontramos
as mais diversas gradações nas condições de participação, como provas de admissão e noviciados,
aquisição de um título sob determinadas condições, votação secreta em todos os casos de admis-
são, qualidade de membro ou admissão por nascimento (herança) ou em virtude da participação
livre em determinadas atividades ou — no caso de apropriação e fechamento para dentro —
mediante a adquisição de um direito apropriado. "Regulação" e "fechamento" para fora são,
portanto, conceitos relativos. Entre um clube elegante, uma representação teatral acessível a
todo comprador do ingresso e a reunião de um partido político em busca de apoios; entre
um culto aberto a todos, o de uma seita e os mistérios de uma sociedade secreta existem inúmeras
transições imagináveis.
3. O fechamento para dentro — entre os próprios participantes e nas relações que estes
mantêm uns com os outros — pode também adotar as formas mais diversas. Por exemplo, uma
casta ou uma corporação, fechadas para fora ou, talvez, uma associação da Bolsa podem permitir
a seus membros concorrer livremente entre si por todas as possibilidades monopolizadas, ou,
ao contrário, limitar rigorosamente para cada um deles determinadas possibilidades, como clien-
telas ou objetos de negócios, apropriadas vitaliciamente ou por herança (especialmente na índia)
e de caráter alienável; uma comunidade de camponeses, fechada para fora, pode permitir a
seus membros o livre usufruto dos bens comuns ou conceder a cada família um contingente
rigorosamente limitado; uma associação de colonizadores, fechada para fora, pode conceder
e garantir o livre aproveitamento da terra ou determinados lotes, com caráter de apropriação
permanente; e tudo isso com inúmeras transições e gradações imagináveis. Historicamente, por
exemplo, o fechamento para dentro das expectativas de feudos, prebendas e cargos e sua apro-
priação pelos usufrutuários tomaram formas muito diversas e, do mesmo modo, tanto a expec-
tativa quanto à ocupação de determinados empregos — sendo o desenvolvimento dos "conselhos
dos operários" talvez (mas não necessariamente) o primeiro passo — podem mostrar gradações
desde o closedshop até o direito a determinado emprego (medida prévia: proibição de demissão
sem assentimento dos representantes dos operários) Todos os detalhes têm seu lugar numa
análise particular do assunto. O grau mais elevado de apropriação permanente existe nas possibi-
lidades garantidas ao indivíduo (ou a determinadas associações de indivíduos, por exemplo,
comunidades domésticas, clãs e famílias) de tal forma que-. 1) em caso de morte, sua transferência
a determinadas mãos está regulada e garantida pelas ordens vigentes, ou que: 2) os usuf ruturários
da possibilidade podem transmiti-la livremente a terceiros quaisquer, os quais se tornam assim
participantes da relação social: esta, em semelhante caso de uma plena apropriação para dentro,
e ao mesmo tempo uma relação (relativamente) aberta para fora (desde que a adquisição da
qualidade de membro não esteja ligada ao assentimento dos outros sócios com direitos)
4. Motivos para o fechamento de relações sociais podem ser: a ) a manutenção de uma
alta qualidade e, por isso, (eventualmente) do prestígio e das probabilidades inerentes de honra
e (eventualmente) de ganho. Exemplo: comunidades de ascetas, de monges (particularmente,
na índia, [ordens] de monges mendicantes) de seitas (os puritanos!) associações de guerreiros,
ECONOMIA E SOCIEDADE 29

de funcionários de ministérios ou outros funcionários públicos e de cidadãos, com caráter político


(por exemplo, na Antiguidade), e corporações de artesãos; b) escassez das probabilidades em
relação às necessidades (de consumo) (' 'espaço vital alimentício' ' ) monopólio de consumo (arqué-
tipo, a comunidade de camponeses na Idade Média) c ) escassez das possibilidades de ganho
("espaço vital de ganho"), monopólio de ganho (arquétipo-, as uniões corporativas ou as antigas
associações de pescadores etc.) Na maioria das vezes, o motivo a se combina com o b ou o c.

§ 11. U m a r e l a ç ã o social pode ter p a r a os participantes, segundo sua o r d e m tradi-


cional o u estatuída, a c o n s e q ü ê n c i a de que determinadas a ç õ e s a ) de cada u m dos
participantes se imputam a todos os demais (' ' companheiros solidários' ' ) o u b) de deter-
minados participantes ( " r e p r e s e n t a n t e s " ) se imputam a todos os demais (os " r e p r e s e n -
tados"), de m o d o que tanto as probabilidades quanto as c o n s e q ü ê n c i a s , p a r a o b e m
o u p a r a o m a l , r e c a i a m sobre estes últimos. O poder de r e p r e s e n t a ç ã o (pleno p o d e r )
pode, segundo as ordens vigentes: 1) estar a p r o p r i a d o e m todos os seus graus e quali-
dades (pleno poder p o r direito p r ó p r i o ) o u 2 ) estar concedido, t e m p o r á r i a o u p e r m a -
nentemente, ao possuidor de determinadas características; o u 3 ) estar transmitido, tem-
porária o u permanentemente, p o r determinados atos dos participantes da r e l a ç ã o social
ou de terceiros (pleno poder estatuído). Sobre as c o n d i ç õ e s nas quais relações sociais
(comunidades o u sociedades) a p a r e c e m c o m o relações de solidariedade o u de r e p r e s e n -
tação, s ó se pode dizer, de m o d o g e r a l , que o decisivo, e m p r i m e i r o lugar, é o g r a u
e m que as respectivas a ç õ e s t e n h a m c o m o f i m : a ) a luta violenta; o u b ) a troca pacífica.
D e resto, trata-se s e m p r e de circunstâncias peculiares que s ó se p o d e m a v e r i g u a r na
análise de cada caso particular. Naturalmente, essa c o n s e q ü ê n c i a aparece m e n o s nas
relações sociais que, p o r meios p a c í f i c o s , p e r s é g u e m bens puramente ideais. O f e n ô -
m e n o de solidariedade o u de r e p r e s e n t a ç ã o c a m i n h a muitas v e z e s , mas n e m s e m p r e ,
paralelo c o m o g r a u de fechamento p a r a f o r a .

1. A "imputação" pode significar, na prática: a ) solidariedade ativa ou passiva: pela ação


de um dos participantes, todos os demais se consideram responsáveis, do mesmo modo que
ele mesmo; por outro lado, todos estão considerados legitimados, no mesmo grau que o próprio
agente, a desfrutar das possibilidades asseguradas por essa ação. A responsabilidade pode existir
perante espíritos e deuses, portanto, estar orientada religiosamente. Pode também existir perante
homens, e neste caso, de forma convencional, a favor ou contra sócios com direitos (vingança
de sangue contra ou por membros do mesmo clã, represálias contra concidadãos e compatriotas),
ou, de forma jurídica (medidas penais contra parentes ou membros da comunidade doméstica
ou de qualquer outra comunidade, responsabilidade pessoal por dívidas dos membros de uma
comunidade doméstica ou de uma sociedade mercantil, de uns para com os outros e em favor
mútuo) Também a responsabilidade perante os deuses teve (para as comunidades primitivas
dos israelitas, cristãos e puritanos) conseqüências historicamente muito importantes, b) A impu-
tação pode significar também (em seu grau mínimo) que, numa relação social fechada, segundo
sua ordem tradicional ou estatuída, os participantes aceitam como legal, com respeito a seu
próprio comportamento, a disposição sobre possibilidades de qualquer espécie (especialmente
econômicas) assumida por um representante. ("Validade" das disposições da "direção" de uma
"união" ou do representante de uma associação política ou econômica sobre bens materiais
que, segundo a ordem vigente, estão destinados a servir a "fins próprios da associação".)
2. A situação de "solidariedade" existe tipicamente: a ) nas tradicionais comunidades fami-
liares ou vitalícias (tipo: casa e clã) b) nas relações fechadas que mantêm as possibilidades mono-
polizadas por medidas próprias violentas (este tipo é representado por associações políticas,
especialmente nos tempos passados, mas que em sentido mais amplo existem ainda na época
atual, particularmente na guerra) c ) e m relações associativas criadas para fins de ganho, quando
o empreendimento é dirigido pessoalmente pelos participantes (este tipo é representado pela
sociedade mercantil aberta) d)sdu determinadas circunstâncias, em relações associativas criadas
para fins de trabalho (este tipo é representado pelo arre) na Rússia) A situação de ' ' representação' '
30 MAX WEBER

existe tipicamente em uniões formadas para determinados fins e associações estatuídas, especial-
mente quando se junta e administra um "patrimônio" destinado ao respectivo " f i m " (trataremos
disso na Sociologia do Direito)
3 Pode-se dizer que o poder representativo é concedido segundo determinadas "caracte-
rísticas" quando, por exemplo, se atribui pela ordem de idade ou critérios semelhantes.
4. Todos os detalhes dete assunto não podem ser expostos de forma geral, mas apenas
na análise sociológica de situações particulares. A situação mais antiga e mais geral pertinente
é a represália, tanto como vingança quanto para assegurar para si um penhor.

§ 12. C h a m a m o s "associação" uma r e l a ç ã o social fechada para f o r a o u cujo regula-


m e n t o limita a participação q u a n d o a o b s e r v a ç ã o de sua o r d e m está garantida pelo
comportamento de determinadas pessoas, destinado particularmente a esse propósito:
de u m dirigente e, eventualmente, u m quadro administrativo que, dado o caso, t ê m
t a m b é m , e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s , o poder de representação. O exercício da d i r e ç ã o
o u a participação nas ações do quadro administrativo — os "poâbres de governo"
— p o d e m estar a ) apropriados o u b) delegados a determinadas pessoas, segundo a
o r d e m vigente da associação o u segundo determinadas características, o u a pessoas
a s e r e m escolhidas de determinada f o r m a , e m caráter permanente o u t e m p o r á r i o o u
para determinados casos. C h a m a m o s " a ç ã o da associação'\a j à a ç ã o do p r ó p r i o quadro
administrativo, legítima e m virtude do poder de g o v e r n o o u de r e p r e s e n t a ç ã o , e que
se r e f e r e à realização da o r d e m vigente, e f b ) a a ç ã o dos participantes da associação
[ c o m respeito a esta (veja t ó p i c o 3, a b a i x o ) ] dirigida pelas o r d e n a ç õ e s deste quadro
administrativo.

1. É indiferente, por agora, para o conceito adotado, se se trata de uma relação comunitária
ou de uma relação associativa. Basta, para nós, a existência de um "dirigente" — chefe de
família, direção da união, gerente comercial, príncipe, presidente do Estado, principal da igreja
— cuja ação se dirija à realização da ordem da associação, porque esse tipo específico de ação
— que não se limita a orientar-se pela ordem vigente, mas se dirige a impô-la coativamenté
— acrescenta sociologicamente à situação da "relação social" fechada uma nova característica
de importância prática, pois nem toda relação comunitária ou relação associativa fechada é uma
"associação": não o são, por exemplo, uma relação erótica ou uma comunidade de clã sem
chefe.
2. A "existência" de uma associação depende por completo da "presença" de um dirigente
e, eventualmente, de um quadro administrativo, isto é, em termos mais precisos, da existência
da probabilidade de haver uma ação de pessoas indicáveis, cujo sentido consiste em pôr em
prática a ordem da associação-, da existência, portanto, de pessoas "dispostas" a agir nese sentido,
em dado caso. Por agora, é conceitualmente indiferente em que se baseia essa disposição: seja
em devoção tradicional, afetiva ou racional referente a valores (deveres de feudo, de cargo
ou de serviço) seja em interesses racionais referentes a fins (de receber um salário etc.) Do
ponto de vista sociológico e para nossa terminologia, a associação não consiste, portanto, senão
na probabilidade da realização daquela ação, orientada de uma das maneiras expostas. Se falta
a probabilidade dessa ação de um quadro indicável de pessoas (ou de uma pessoa individual
indicável) existe, segundo nossa terminologia, apenas uma "relação social", mas não uma "asso-
ciação". Enquanto existe a probabilidade daquela ação, "existe" também, do ponto de vista
sociológico, a associação, mesmo que mudem as pessoas que orientam suas ações pela ordem
em questão. (A forma de nossa definição pretende incluir, desde o princípio, precisamente esta
circunstância.)
3. a) Além da ação do próprio quadro administrativo ou sob a direção deste pode também
haver uma ação específica, com curso típico, dos outros participantes, orientada pela ordem
da associação e cujo sentido consiste em garantir a realização desta ordem (por exemplo, tributos
ou serviços pessoais de todas as espécies: serviço militar, de jurado etc.) b) A ordem vigente
pode também conter normas pelas quais deve orientar-se em outras coisas a ação dos participantes
ECONOMIA E SOCIEDADE 31

da associação (por exemplo, na "associação Estado", "a ação econômica privada, que não serve
à imposição coativa da vigência da ordem, mas a interesses particulares, deve orientar-se pelo
direito " c i v i l " ) Aos casos de a pode-se denominar "ação relativa à associação", aos de b, "ação
regulada pela associação". Chamamos "ação associativa" somente a do próprio quadro adminis-
trativo e, além disso, todas as relativas à associação por este dirigida segundo um plano. Uma
"ação associativa" para todos os membros seria, por exemplo, uma guerra que um Estado "con-
duz", uma "petição" acordada pela presidência de uma associação ou um "contrato" feito pelo
dirigente e cuja "validade" se impõe aos membros e se lhes imputa (§ 11) e, além disso, todos
os processos "judiciais" e "administrativos" (veja também § 14).

U m a associação pode ser: a ) a u t ô n o m a o u h e t e r ô n o m a ; b) autocéfala o u hetero-


céfala. A u t o n o m i a significa, e m o p o s i ç ã o à h e t e r o n o m i a , que a o r d e m da associação
n ã o é estatuída por estranhos, mas pelos p r ó p r i o s m e m b r o s enquanto tais (não impor-
tando a f o r m a e m que isto se realize). Autocefalia significa que o dirigente da associação
e o quadro administrativo s ã o nomeados segundo a o r d e m da associação e n ã o , c o m o
no caso da heterocefalia, p o r estranhos ( n ã o importando a f o r m a e m que se realize
a nomeação).

Há heterocefalia, por exemplo, na nomeação dos governadores das províncias canadenses


(pelo governo central do Canadá) Uma associação heterocéfala pode ser autônoma e uma autocé-
fala, heterônoma. Também é possível que uma associação, em ambos os aspectos, seja em parte
uma coisa e em parte a outra. Os estados-membro do império alemão, apesar de sua autocefalia,
eram heterônomos no âmbito da competência imperial e autônomos dentro de sua própria compe-
tência (em questões escolares e eclesiásticas, por exemplo) A Alsácia-Lorena, como parte da
Alemanha [antes de 1918], era autônoma, dentro de certos limites, porém heterocéfala (o impe-
rador nomeava o governador) Todos esses fenômenos podem também existir parcialmente.
Uma associação que seja tanto heterocéfala quanto inteiramente heterônoma (como, por exemplo,
um regimento dentro de um exército) deve considerar-se, em regra, como "parte" de uma
associação mais abrangente. Se este é o caso ou não, depende do grau efetivo de independência
na orientação das ações, no caso particular, e terminologicamente trata-se de uma pura questão
de conveniência.

§ 13. As ordens estatuídas de u m a r e l a ç ã o associativa p o d e m nascer a ) p o r a c o r d o


livre o u b) p o r i m p o s i ç ã o e s u b m i s s ã o . O poder g o v e r n a m e n t a l n u m a associação p o d e
pretender p a r a si o p o d e r l e g í t i m o p a r a a i m p o s i ç ã o d e ordens novas. C h a m a m o s consti-
tuição de u m a associação a probabilidade efetiva d e h a v e r s u b m i s s ã o ao p o d e r impo-
sitivo do g o v e r n o existente, segundo medida, m o d o e c o n d i ç õ e s . A estas c o n d i ç õ e s
podem pertencer, especialmente, segundo a o r d e m vigente, a consulta o u o assenti-
mento de determinados grupos o u f r a ç õ e s dos m e m b r o s da associação, a l é m de outras
condições de natureza mais diversa. *
As ordens de u m a a s s o c i a ç ã o p o d e m impor-se n ã o apenas a seus m e m b r o s c o m o
t a m b é m a n ã o - m e m b r o s aos quais se a p l i c a m determinadas c o n d i ç õ e s de fato. Estes
fatos p o d e m especialmente consistir n u m a r e l a ç ã o territorial (presença, nascimento,
e x e c u ç ã o de determinadas a ç õ e s dentro d e determinado t e r r i t ó r i o ) " v i g ê n c i a territo-
r i a l " . A u m a a s s o c i a ç ã o , c u j a o r d e m pretende, de p r i n c í p i o , v i g ê n c i a t e r r i t o r i a l , denomi-
namos " a s s o c i a ç ã o t e r r i t o r i a l " , sendo indiferente se t a m b é m p a r a dentro, perante os
m e m b r o s da associação, se limita o u n ã o a pretender semelhante v i g ê n c i a (o que é
possível e acontece, p e l o m e n o s e m e x t e n s ã o l i m i t a d a )

1. "Imposta" no sentido desta terminologia é toda ordem que não nasça de um acordo
pessoal e livre de todos os participantes. Isso inclui, portanto, a "decisão majoritária" à qual
se submete a minoria. Por isso, a legitimidade da decisão majoritária (veja mais adiante na Sócio-
32 MAX WEBER

logia da dominação e do Direito), durante longo tempo não foi aceita e permaneceu problemática
(aindarios estamentos da Idade Média e até na época atual, rta obschtschina russa)
2. Também os acordos formalmente "livres", como é geralmente sabido, são muitas vezes,
na realidade, impostos (assim, por exemplo, na obschtschina). Neste caso, para a Sociologia
só importa a situação efetiva.
3- O conceito de "constituição" que aqui usamos é também o empregado por Lassalle.
Não é idêntico ao da constituição "escrita" ou, em geral, ao da constituição no sentido jurídico.
O problema sociológico é unicamente este: quando, para quais assuntos e dentro de quais limites
e — eventualmente — sob quais condições especiais (por exemplo, aprovação de deuses ou
sacerdotes ou assentimento de corpos eleitorais etc.) os membros da associação se submetem
ao dirigente e estão à disposição dele o quadro administrativo e a ação associativa, no caso
de ele "ordenar" alguma coisa, especialmente no caso de se tratar da imposição de ordens
novas.
4. O tipo principal da "vigência territorial" imposta está representado pelas normas penais
e algumas outras "disposições jurídicas" em associações políticas, que pressupõem, para a aplica-
ção da ordem, a presença, o nascimento, o local da ação, o lugar de pagamento etc. dentro
do território da associação. (Compare o conceito de "corporação territorial" tle Gierke e Preuss.)
ri~X
§ 14. Denominamos_orde/n administrativa u m a o r d e m que regula a a ç ã o j s s o c i a -
-íjya. À q u e l a que regula outras açoèTsoctaís", garantindcPàtx agentes aypo§sit)ilidades
que p r o v ê m dessa r e g u l a ç ã o , d e n o m i n a m o s "ordem reguladora". Uma associação
orientada unicamente por ordens do p r i m e i r o tipo denomina-se " a s s o c i a ç ã o adminis-
t r a t i v a " ; quando se orienta somente pelas ordens do último tipo é u m a associação regu-
ladora.

1. É evidente que a maioria das associações tem tanto a primeira qualidade quanto a
segunda; uma associação unicamente reguladora seria, por exemplo, um "Estado de direito"
puro de um absoluto laissez faire, teoricamente imaginável (o que faria supor, todavia, que
a regulação do setor monetário passasse para as mãos da economia privada)
2. Sobre o conceito de "ação associativa" veja § 12, tópico 3 O conceito de "ordem adminis-
trativa" inclui todas as normas que pretendem vigência para o comportamento tanto do quadro
administrativo quanto dos membros "em relação à associação", como se costuma dizer. Isto é,
pretendem vigência para todos aqueles fins cuja realização as ordens da associação procuram asse-
gurar mediante determinadas ações planejadas e positivamente prescritas, a serem executadas pelo
quadro administrativo e os demais membros. Numa organização econômica absolutamente comu-
nista isto abrangeria quase rodas as ações sociais; num Estado de direito absoluto, por outro lado,
apenas as ações dos juízes, da polícia, dos jurados e dos soldados, além das atividades legislativas
e eleitorais. E m geral — mas nem sempre em particular — a separação entre as ordens adminis-
trativa e reguladora coincide com a separação entre o "direito público" e o "direito privado"
numa associação política. (Pormenores na Sociologia do Direito [§ 1].)

§ 15. D e n o m i n a m o s empresa u m a a ç ã o contínua que persegue determinados fins,


eassociação de empresa u m a r e l a ç ã o associativa cujo quadro administrativo age continua-
mente c o m vista a determinados fins. t
D e n o m i n a m o s união u m a associação baseada n u m acordo e cuja o r d e m estatuída
só pretende v i g ê n c i a para os m e m b r o s que pessoalmente se associaram.
D e n o m i n a m o s instituição u m a associação cuja o r d e m estatuída se i m p õ e , c o m (rela-
tiva) eficácia, a toda a ç ã o c o m determinadas características que tenha lugar dentro de
determinado â m b i t o de vigência.

1. Sob o conceito de "empresa" inclui-se naturalmente também a realização de atividades


políticas e hierúrgicas [de caráter religioso (N. T . ) ] , assuntos de uma união etc., desde que apresen-
tem a característica da continuidade na persecução de seus fins.
ECONOMIA E SOCIEDADE 33

2. " U n i ã o " e "instituição" são ambas associações com ordens racionalmente estatuídas
(segundo um plano). Ou, mais corretamente: uma associação, na medida em que tenha ordens
racionalmente estatuídas, chama-se, em nossa terminologia, "u n i ã o " ou "instituição". Uma "insti-
tuição" é sobretudo o próprio Estado junto com todas suas associações heterocéfalas e — desde
que suas ordens estejam racionalmente estatuídas — a igreja. As ordens de uma "instituição"
pretendem vigência para toda pessoa à qual se aplicam determinadas características (nascimento,
domicílio, utilização de determinados serviços), sendo indiferente se pessoalmente se associou
— como no caso da união — ou não e, menos ainda, se participou ou não na elaboração dos
estatutos. São, portanto, ordens impostas, no sentido específico da palavra. A instituição pode
ser especialmente uma associação territorial.
3. A oposição entre união e instituição é relativa. As ordens de uma união podem afetar
os interesses de terceiros, e pode-se impor a estes o reconhecimento da vigência destas ordens,
tanto por usurpação e arbitrariedade por parte da união quanto por ordens legalmente estatuídas
(por exemplo, o direito das sociedades por ações).
4. É evidente que aos conceitos de "união" e "instituição" não se pode subordinar, de
maneira abrangente, a totalidade de todas as associações imagináveis. Constituem apenas "pólos"
opostos (como, por exemplo, no domínio religioso, a "seita" e a "Igreja").

§ 16. Poder significa toda probabilidade de i m p o r a própria vontade n u m a r e l a ç ã o


social, m e s m o contra resistênciais, seja qual f o r o fundamento dessa probabilidade.
Dominação é a probabilidade de encontrar o b e d i ê n c i a a u m a o r d e m de determi-
nado c o n t e ú d o , entre determinadas pessoas indicáveis; disciplina é a probabilidade
4 mcontrar o b e d i ê n c i a p r o n t a , automática e e s q u e m á t i c a a u m a o r d e m , entre u m a
p.. ' 'de indicável de pessoas, e m v i r t u d e de atividades treinadas.

1. O conceito de "poder" é sociologicamente amorfo. Todas as qualidades imagináveis


de uma pessoa e todas as espécies de constelações possíveis podem pôr alguém em condições
de impor sua vontade, numa situação dada. Por isso, o conceito sociológico de "dominação"
deve ser mais preciso e só pode significar a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem.
2. O conceito de "disciplina" inclui o "treino" na obediência em rrissa, sem crítica nem
resistência.

A situação ,de d o m i n a ç ã o está ligada à presença efetiva de alguém mandando


eficazmente e m outros, mas n ã o necessariamente à existência de u m q u a d r o a d m i n i s -
trativo n e m à de u m a associação; p o r é m certamente — pelo menos e m todos os casos
n o r m a i s — à existência de um dos dois. T e m o s u m a associação de dominação na medida
e m que seus m e m b r o s , c o m o tais, estejam submetidos a relações de d o m i n a ç ã o , e m
v i r t u d e da o r d e m vigente.

1. O pai de família domina sem quadro administrativo. O chefe beduíno, que levanta
contribuições junto às caravanas, pessoas e bens que passam por sua fortaleza nas rochas, domina
todas aquelas pessoas diversas e indeterminadas que não formam associação alguma, apoiando-se
em seu séquito, que, dado o caso, lhe serve como quadro administrativo para impor-se coativa-
mente. (Teoricamente imaginável seria também semelhante dominação pior pane de um indivíduo
desprovido de quadro administrativo.)
2. Uma associação é sempre, em algum grau, associação de dominação, em virtude da
existência de um quadro administrativo. Só que o conceito é relativo. A associação de dominação,
como tal, é normalmente também associação administrativa. A peculiaridade da associação é
determinada pela forma em que é administrada, pelo caráter do círculo de piessoas que exercem
a administração, pelos objetos administrados e pelo alcance que tem a dominação. As duas primei-
ras características, por sua vez, depjendem principalmente do caráter dos fundamentos de legitimi-
dade da dominação (sobre estes, veja capítulo I I I )
34 MAX WEBER

§ 17 A u m a associação d e d o t a i p a ç ã o d e n o m i n a n j Q S associação política, quando


e na medida è m q u é sua subsisEShcía e a v i g e n C l a r i e S u ã s o r d e n s , dentro de determinado
território g e o g r á f i c o , estejam garantidas de m o d o c o n t í n u o mediante a m e a ç a e a aplica-
ç ã o de c o a ç ã o física p o r parte do q u a d r o administrativo. U m a empresa com caráter
de instituição política denominamos Estado, q u a n d o e na m e d i d a e m que seu quadro
administrativo r e i v i n d i c a c o m êxito o monopólio legítimo da c o a ç ã o física para realizar
as ordens vigentes. U m a a ç ã o social, e especialmente a de u m a associação, é "politica-
mente o r i e n t a d a " , q u a n d o e na m e d i d a e m que tenha p o r f i m a influência da direção
de u m a associação política, particularmente a a p r o p r i a ç ã o o u e x p r o p r i a ç ã o , a n o v a
distribuição o u atribuição de poderes governamentais [de f o r m a n ã o violenta (veja tópi-
co 2, no f i m do parágrafo)].
U m a associação de d o m i n a ç ã o denomina-se associação hierocrática q u a n d o e na
medida e m que se aplique c o a ç ã o psíquica, concedendo-se o u recusando-se bens de
salvação ( c o a ç ã o hierocrática). U m a empresa hierocrática com caráter de instituição
é denominada igreja quando e na medida e m que s e u q u a d r o administrativo pretenda
para si o monopólio da legítima c o a ç ã o hierocrática.

1. É evidente que, para associações políticas, a coação física não constitui o único meio
administrativo, tampouco o normal. Na verdade, seus dirigentes servem-se de todos os meios
possíveis para alcançar seus fins. Entretanto, a ameaça e, eventualmente, a aplicação desta coação
são seu meio específico e constituem a ultima ratio sempre que falhem os demais meios. Não
são somente as associações políticas que empregaram e empregam a coação física como meio
legítimo. Fazem-no também o clã, a comunidade doméstica e outros grupos de pessoas; na
Idade Média, em determinadas circunstâncias, todos os autorizados a portar armas. Além da
circunstância de que a coação física se aplica (pelo menos como um meio entre outros) para
garantir a realização de "ordens", a associação política está também caracterizada pelo fato
de que pretende, para determinado território, a dominação de seu quadro administrativo e suas
ordens, e a garante por meios coativos. Onde quer que essa característica se aplique a associações
que empregam meios coativos — por exemplo, comunidades de aldeia, comunidades domésticas,
associações corporativas ou de trabalhadores ("conselhos") —, estas devem ser consideradas,
no que se refere a esre aspecto, associações políticas.
2. Não é possível definir uma associação política — mesmo o "Estado" — com referência
ao fim de sua "ação da associação". Desde os cuidados do abastecimento de alimentos até a
proteção das artes não existe nenhum fim que as associações políticas não tenham perseguido,
em algum tempo, pelo menos ocasionalmente, e desde a garantia da segurança pessoal até a
jurisdição, nenhum que tenham perseguido todas as associações. Por isso, o caráter "político"
de uma associação só pode ser definido por aquele meio — às vezes elevado ao fim em si
— que não é sua propriedade exclusiva, porém constitui um elemento específico e indispensável
de seu caráter: a coação física. Isso não corresponde exatamente ao uso corrente da linguagem;
este é inútil para nossos fins na ausência de maior precisão. Fala-se da "política de divisas"
do banco estatal, da "política financeira" da direção de uma união, da "política escolar" de
um município, referindo-se ao tratamento e à condução planejada de determinado assunto obje-
tivo. De forma muito mais característica, separa-se o aspecto ou o alcance "político" de um
assunto, o funcionário "político", o jornal "político", a revolução "política", a união "política",
o partido "político" e a conseqüência "política" de outros aspectos ou características — econô-
micos, culturais, religiosos etc. — das respectivas pessoas, coisas ou processos. Ao fazê-lo, consi-
dera-se tudo aquilo que está ligado às relações de dominação dentro da associação "política"
(conforme costumamos dizer), istoé, dentro do Estado, e que pode produzir, impedir ou fomentar
a manutenção ou a transformação ou a subversão dessas relações, em oposição a pessoas, coisas
e processos que nada têm a ver com isso. Também neste uso corrente da linguagem, procura-se,
portanto, a característica comum nomeio, na "dominação", istoé, no modo como esta se exerce
pelos poderes estatais, excluindo-se o fim a que serve a dominação. Por isso, pode-se afirmar
que a definição que nos serve de fundamento constitui apenas uma precisão do uso corrente
ECONOMIA E SOCIEDADE 35
da linguagem, acentuando esta claramente o que de fato é o elemento específico: a coação
física (efetiva ou eventual). Sem dúvida, a linguagem corrente chama "associações políticas"
não apenas os próprios executores da coação física considerada legítima como também, por
exemplo, partidos e clubes que buscam a influência (também a expressamente não violenta)
sobre as ações políticas das respectivas associações. Por nossa parte, separamos essa espécie
de ação social, como ação "politicamente orientada", da ação "política" propriamente dita (da
ação associativa, realizada pelas próprias associações políticas, no sentido do § 12, tópico 3).
3. É recomendável definir o conceito de Estado em correspondência com seu tipo moder-
no, uma vez que este, em seu pleno desenvolvimento, é inteiramente moderno. Cabe, porém,
abstrair de seus fins concretos e variáveis, variabilidade que vivemos precisamente em nossa
época. A característica formal do Estado atual é a existência de uma ordem administrativa e
jurídica que pode ser modificada por meio de estatutos, pela qual se orienta o funcionamento
da ação associativa realizada pelo quadro administrativo (também regulado através de estatuto)
e que pretende vigência não apenas para os membros da associação — os quais pertencem
a esta essencialmente por nascimento — senão, também, de maneira abrangente, para toda
ação que se realize no território dominado (portanto, à maneira da instituição territorial). É
característica também a circunstância de que hoje só existe coação física "legítima", na medida
em que a ordem estatal a permita ou prescreva (por exemplo, deixando ao chefe da família
o "direito de castigo físico", um resto do antigo poder legítimo, por direito próprio, do senhor
da casa que se estendia até a disposição sobre a vida e a morte dos filhos e dos escravos).
Esse caráter monopólico do poder coativo do Estado é uma característica tão essencial de sua
situação atual quanto seu caráter racional, de "instituição", e o contínuo, de "empresa".
4. Para o conceito de associação hierocrática, a natureza dos bens de salvação prometidos
— deste mundo ou do outro, externos ou internos —, não pode ser característica decisiva,
mas apenas a circunstância de que sua administração pode constituir o fundamento da dominação
espiritual de homens. Para o conceito de "Igreja", ao contrário, é característico, de acordo
com o uso corrente (e adequado) da linguagem, o caráter (relativamente) racional de instituição
e de empresa que se manifesta na natureza de suas ordens e de seu quadro administrativo,
e sua pretensão de dominação monopólica. De acordo com a tendência normal da instituição
eclesiástica, esta se caracteriza por dominação territorial hierocrática e articulação territorial
(em paróquias) sendo uma questão de cada caso particular a de quais sejam os meios adequados
para dar força a essa pretensão de monopólio. Mas historicamente o monopólio de dominação
territorial não foi tão essencial para a Igreja quanto para a associação política, e hoje o é muito
menos ainda. O caráter de "instituição" e especialmente a circunstância de que já se "nasce"
dentro de uma Igreja a distingue da "seita", cuja característica consiste em ser uma "união"
e em só aceitar como membros os religiosamente qualificados que pessoalmente se associam.
(Os pormenores pertencem à Sociologia da Religião.)
Capítulo II

CATEGORIAS SOCIOLÓGICAS FUNDAMENTAIS


DA GESTÃO ECONÔMICA

Afora preliminar. Neste capítulo, não pretendemos, de modo algum, desenvolver uma "teo-
ria econômica", mas apenas definir alguns conceitos freqüentemente usados nesta obra e exami-
nar certas relações sociológicas elementares dentro da vida econômica. Também aqui a forma
da conceituação está determinada puramente por razões de conveniência. Conseguimos evitar
completamente, em nossa terminologia, o discutido conceito de "valor". No que se refere à
terminologia de K. BUCHER, SÓ a modificamos, nas respectivas passagens (sobre a divisão do traba-
lho), quando, para nossos fins, parecia conveniente fazê-lo. Qualquer "dinâmica" fica, por en-
quanto, fora de nossa consideração. ,

§ 1 . U m a a ç ã o será denominada " e c o n o m i c a m e n t e orientada" na medida e m


que, segundo seu sentido visado, esteja r e f e r i d a a cuidados de satisfazer o desejo de
obter certas utilidades. D e n o m i n a m o s " g e s t ã o e c o n ô m i c a " o e x e r c í c i o pacífico do poder
de disposição que primariamente é economicamente orientado, havendo " g e s t ã o e c o n ô -
mica r a c i o n a l " q u a n d o tem caráter racional c o m referência a fins e de acordo c o m
umplano. D e n o m i n a m o s " e c o n o m i a " a g e s t ã o e c o n ô m i c a autocéfala e contínua, haven-
do " e m p r e s a e c o n ô m i c a " quando, a l é m de continuidade, ela apresente a o r g a n i z a ç ã o
característica de u m a empresa.

U J á observamos antes (capítulo I , § 1, I I , 2, p. 14) que a gestão econômica em si não


é necessariamente ação social.
2. A definição da gestão econômica tem de ser a mais geral possível e expressar claramente
que todos os processos e objetos "econômicos" adquirem seu caráter como tais unicamente
pelo sentido que neles põe a ação humana — como fim, meio, obstáculo ou resultado acessório.
Só que não é possível expressá-lo, como às vezes acontece, dizendo que a gestão econômica
é um fenômeno "psíquico", pois o preço, a produção de bens e mesmo a "valorização subjetiva"
destes — sendo prdcessos reais — estão longe de se limitar à esfera "psíquica". No entanto,
a expressão significa uma coisa correta: esses processos têm um sentido visado peculiar, e só
este constitui sua unidade e os torna compreensíveis. A definição da gestão econômica, além
disso, tem de receber uma forma que também abranja a moderna economia aquisitiva, não
podendo, portanto, partir das "necessidades de consumo" e sua "satisfação", seqão, por um
lado, do fato (que também se aplica ao puro interesse em ganhar dinheiro) de que certas uülidades
são desejadas, e, por outro lado, do fato (que também se aplica à pura economia de satisfação
de necessidades, mesmo em sua forma mais primitiva) de que se procura satisfazer esse desejo
Capítulo I I

CATEGORIAS SOCIOLÓGICAS FUNDAMENTAIS


DA GESTÃO ECONÔMICA

Nota preliminar. Neste capítulo, não pretendemos, de modo algum, desenvolver uma "teo-
ria econômica", mas apenas definir alguns conceitos freqüentemente usados nesta obra e exami-
nar certas relações sociológicas elementares dentro da vida econômica Também aqui a forma
da conceituação está determinada puramente por razões de conveniência Conseguimos evitar
completamente, em nossa terminologia, o discutido conceito de "valor" No que se refere à
terminologiá de K. BUCHER, só a modificamos, nas respectivas passagens (sobre a divisão do traba-
lho), quando, para nossos fins, parecia conveniente fazê-lo. Qualquer "dinâmica" fica, por en-
quanto, fora de nossa consideração.

§ 1. U m a a ç ã o será denominada "economicamente orientada" na medida em


que, segundo seu sentido visado, esteja referida a cuidados de satisfazer o desejo de
obter certas utilidades. D e n o m i n a m o s " g e s t ã o e c o n ô m i c a ' ' o exercício pacífico do poder
de disposição que primariamente é economicamente orientado, havendo " g e s t ã o e c o n ô -
mica r a c i o n a l " quando tem caráter racional com referência a fins e de acordo com
u m plano. D e n o m i n a m o s " e c o n o m i a " a gestão e c o n ô m i c a autocéfala e contínua, haven-
do " e m p r e s a e c o n ô m i c a " quando, a l é m de continuidade, ela apresente a o r g a n i z a ç ã o
característica de u m a empresa.

1. Já observamos antes (capítulo I , § 1, I I , 2, p. 14) que a gestão econômica em si não


é necessariamente ação social.
2. A definição da gestão econômicajtem de ser a mais geral possível e expressar claramente
que todos os processos e objetos "econômicos" adquirem seu caráter como tais unicamente
pelo sentido que neles põe a ação humana — como fim, meio, obstáculo ou resultado acessório
Só que não é possível expressá-lo, como às vezes acontece, dizendo que a gestão econômica
é um fenômeno "psíquico", pois o preço, a produção de bens e mesmo a "valorização subjetiva"
destes — sendo processos reais — estão longe de se limitar à esfera "psíquica". No entanto,
a expressão significa uma coisa correta: esses processos têm um sentido visado peculiar, e só
este constitui sua unidade e os torna compreensíveis A definição da gestão econômica, além
disso, tem de receber uma forma que também abranja a moderna economia aquisitiva, não
podendo, portanto, partir das "necessidades de consumo" e sua "satisfação", senão, por um
lado, do fato (que também se aplica ao puro interesse em ganhar dinheiro) de que certas utilidades
são desejadas, e, por outro lado, do fato (que também se aplica à pura economia de satisfação
de necessidades, mesmo em sua forma mais primitiva) de que se procura satisfazer esse desejo
38 MAX WEBER

mediante determinadas provisões (por mais primitivas ou tradicionalmente arraigadas que sej am).
3. Denominamos "ação economicamente orientada", em oposição à "gestão econômica",
toda ação que esteja primariamente orientada a ) por outros fins, mas em seu curso toma em
consideração a "situação econômica" (a necessidade subjetivamente reconhecida da provisão
econômica), ou b) por essa situação, empregando, porém, como meio a coação física, isto é,
toda ação que também se determina pela situação econômica, mas que não se orienta por ela
em primeiro lugar ou não o faz de maneira pacífica. "Gestão econômica" significa, portanto,
para nós, uma orientação subjetiva eprimariamente econômica. (Subjetiva porque o que importa
é a crença na necessidade da provisão, e não a necessidade obj etiva desta.) No caráter'' subj etivo''
desse conceito, isto é, na circunstância de que o sentido visado da ação lhe imprime o caráter
de gestão econômica, insiste com razão R. LIEFMANN, apesar de supor, injustamente, que todos
os demais [autores] dizem o contrário.
4. Toda classe de ação pode ser economicamente orientada, inclusive a ação violenta
(por exemplo, a ação bélica: guerras de rapina, guerras comerciais). A este respeito, foi sobretudo
Franz Oppenheimer quem opôs com razão ao meio "econômico" o meio "político". É de fato
conveniente separar este último aspecto da "economia". A orientação prática para a violência
se opõe fortemente ao espírito da "economia" — no sentido corrente da palavra. Por isso não
cabe designar a apropriação imediata e violenta de bens alheios e a imposição real e imediata
de determinado comportamento de outros por meio da luta como gestão econômica. É evidente
que a troca não é o único meio econômico, mas apenas um entre outros, ainda que dos mais
importantes. E também é evidente que a provisão economicamente orientada e formalmente
pacífica que se preocupa com os meios e os resultados de futuras ações violentas (armamento,
economia de guerra) é "economia" do mesmo modo que qualquer outra ação desse gênero.
Toda "política" racional serve-se da orientação econômica em seus meios, e toda política
pode pôr-se a serviço de fins econômicos. Do mesmo modo, a economia — nem toda, mas
nossa economia moderna, em nossas condições modernas — precisa da garantia do poder de
disposição pela coação jurídica do Estado. Isto é: pela ameaça de eventuais medidas coativas
para garantir a manutenção e aplicação dos poderes de disposição formalmente "legítimos".
Mas a economia que dessa maneira se protege não tem, ela mesma, caráter coativo.
~ Nada revela melhor o equívoco na afirmação de que a economia (qualquer que seja sua
definição) é conceitualmente apenas "meio" — em oposição, por exemplo, ao "Estado" etc.
— do que o fato de que precisamente o Estado só pode ser definido a partir do meio que
hoje monopoliç^mente emprega (a coação física). Se economia significa algo, então na prática
ela é a escolha previdente entre fins precisamente, ainda que se oriente pela escassez dos meios
que parecem disponíveis e acessíveis para estes vários fins. n
5. Nem toda ação racional quanto a seus meios podè ser chamada "gestão econômica
racional" ou, em geral, "gestão econômica". Especialmente não devem ser empregados como
idênticos os termos "economia" e "técnica"JA "técnica" de uma ação significa para nós a suma
dos meios nela empregados, em oposição ao sentido ou fim pelo qual, em última instância,
se orienta (in concreto}, a técnica "racional" significa uma aplicação de meios que, consciente
e planejadamente, está orientada pela experiência e pela reflexão, e, em seu máximo de raciona-
lidade, pelo pensamento científico. O que concretamente se entende pior "técnica" é, portanto,
fluido: o sentido último de uma ação concreta, considerado dentro de um complexo de ações,
pode ser de natureza "técnica", isto é, constituir um meio em relação àquele complexo; mas,
em relação à ação concreta, essa função técnica (técnica do ponto de vista daquele complexo
de ações)constitui o "sentido", e os meios que aplica são sua "técnica". Técnica, neste sentido,
existe, portanto, em toda ação: técnica da oração, técnica da ascese, técnica do pensamento
e da pesquisa, técnica mnemónica, técnica da educação, técnica da dominação política ou hiero-
crática, técnica administrativa, técnica erótica, técnica militar, técnica musical (de um virtuoso,
por exemplo), técnica de um escultor ou pintor, técnica jurídica etc., e todas elas são suscetíveis
aos mais diversos graus de racionalidade. Sempre que se apresentar úma "questão técnica",
isto significa que existem dúvidas sobre os meios mais racionais. O critério de racionalidade
para a técnica é, entre outros também, o famoso princípio do "esforço mínimo": o resultado
ótimo em comparação com os meios a serem aplicados (não "com os meios — absolutamente
— mínimos") O princípio aparentemente equivalente vale também para a economia (como,
ECONOMIA E SOCIEDADE 39

em geral, para toda ação racional), porém, num sentido diferente. Na medida em que se trata
de "técnica" pura, na acepção que damos à palavra, interessam a esta unicamente os meios
mais apropriados para chegar a determinado resultado, que aceita como finalidade dada e indiscu-
tível. E m comparação com outros que talvez ofereçam o mesmo grau de perfeição, segurança
e durabilidade do resultado, esses meios têm de ser também os mais econômicos quanto ao
esforço que exigem. E m comparação com outros, a saber, desde que sejam imediatamente compa-
ráveis os graus de esforço quando se busca o mesmo resultado por caminhos diversos. À técnica
pura não interessam, nesse processo, as demais necessidades. Por exemplo, ela resolveria o
problema de se construir de ferro ou de platina determinado elemento tecnicamente indispensável
de uma máquina — desde que concretamente houvesse quantidade suficiente desta última matéria
para chegar a determinado resultado concreto em questão — unicamente sob o aspecto de como
alcançar a maior perfeição no resultado e em qual dos dois caminhos, em comparação com
o outro, seria menor o dispêndio de outros elementos (de trabalho, por exemplo) Mas, quando
passa a considerar a diferença na raridade de ferro e de platina, em relação à demanda total
— o que hoje costuma fazer todo "técnico", ainda no laboratório químico —, sua orientação
já não é "puramente técnica" (no sentido aqui adotado da palavra) mas também econômica.
Do ponto de vista da "gestão econômica", problemas "técnicos" significam o exame dos "custos"
— questão fundamentalmente importante para a economia, mas que, dentro de seu círculo de
problemas, sempre toma esta forma: como se realizará a satisfação de outras necessidades (atuais
e qualitativamente diferentes ou futuras e qualitativamente homogêneas, dependendo do caso)
quando, para satisfazer esta necessidade, se empregam agora esses meios. (Tratam deste proble-
ma, de forma análoga, a obra de VON GOTTL, Grundriss der Sozialökonomik, seção I I , 2; de
maneira excelente e pormenorizada, as exposições de R. LIEFMANN, Grundsätze der Volkswirts-
chaftslehre, vol. I , p. 334 e seg. [2? ed. 1920, p. 327 e seg. ]. É equivocada a redução "em última
instância" de todos os "meios" ao "esforço de trabalho" )
Pois a questão de quanto "custa", em termos relativos, a aplicação de determinados meios
para alcançar determinado fim, de natureza técnica, está concatenada, em última instância, com
a da aplicabilidade de meios (entre eles, sobretudo, a força de trabalho) para fins diversos.
De natureza "técnica" (no sentido da palavra aqui adotado) é, por exemplo, o problema de
quais os tipos de dispositivos que se devem empregar para mover determinada espécie de carga
ou para extrair produtos de minas a determinada profundidade, e quais deles sejam os mais
"apropriados"; o que significa, entre outras coisas, os que levem ao resultado com um mínimo
relativo (em relação ao resultado) de trabalho efetivo. O problema adquire caráter "econômico"
quando a questão é a seguinte: se — no caso de uma economia de troca — os gastos em dinheiro
serão compensados pela venda dos produtos obtidos, ou se — no caso de uma economia planifi-
cada — se pode colocar à disposição da obra em questão os trabalhadores e meios de produção
necessários para sua realização, sem prejudicar outros interesses de abastecimento, considerados
mais importantes. E m ambos os casos trata-se de um problema de comparação de finalidades.
A economia orienta-se, em primeiro lugar, pelo fim aplicado; a técnica, pelo problema dos
meios a serem aplicados (dado o f i m ) A circunstância de que toda atividade técnica se fundamenta
em determinado fim aplicado é no fundo sem importância para a questão da racionalidade "técni-
ca", do ponto de vista puramente conceituai (mas não, de fato) Técnica racional, segundo a
definição aqui empregada, pode também estar a serviço de finalidades para as quais não existe
demanda alguma. Assim alguém poderia, como puro passatempo "técnico", produzir ar atmosfé-
rico, fazendo uso dos meios técnicos mais modernos, sem que se possa objetar um mínimo
contra a racionalidade de seu procedimento; do ponto de vista econômico, sua ação, em condições
normais, seria irracional porque não existe nenhuma necessidade de se preocupar com o abasteci-
mento desse produto (compare VON GOTH-OITUUENFELD em Grundriss der Sozialökonomik, II, 2)
A orientação econômica do chamado desenvolvimento tecnológico pelas possibilidades de lucro
é um dos fatos fundamentais da história da técnica. Mas não foi exclusivamente esta orientação
econômica — por mais importante que tenha sido — que indicou à técnica o caminho de seu
desenvolvimento. Houve também, em parte, o jogo de idéias e a meditação de ideólogos "alheios
ao mundo", em parte, interesses fantásticos ou dirigidos ao além, em pane, problemas artísticos
e outros motivos extra-econômicos. No entanto, em todos os tempos e especialmente hoje, o
fator principal para o desenvolvimento técnico é o condicionamento econômico; sem o cálculo
40 MAX WEBER

racional como base da economia, isto é, sem condições histórico-econômicas de natureza extrema-
mente concreta, não teria nascido a técnica racional. A circunstância de termos incluído expressa-
mente, já no conceito inicial, aquilo que caracteriza a economia em oposição à técnica, deve-se
ao ponto de partida sociológico. Do caráter de "continuidade" segue-se, para a Sociologia, prag-
maticamente a avaliação dos fins entre si e em relação aos "custos" (na medida em que estes
sejam algo diferente da renúncia a determinado fim em favor de outros mais urgentes). Uma
teoria econômica, ao contrário, faria bem em incluir aquela característica desde o princípio.
6. No conceito sociológico da "gestão econômica" não deve faltar a característica do poder
de disposição, já que pelo menos a economia aquisitiva se realiza por completo na forma de
contratos de troca, isto é, na aquisição planejada de poderes de disposição. (Dessa maneira
estabelece-se a relação com o "Direito".) Mas também toda outra organização da economia
implica alguma distribuição efetiva dos poderes de disposição, orientando-se, porém, por princí-
pios completamente diferentes dos da economia privada de hoje, que garante estes poderes
juridicamente a economias particulares com caráter autônomo e autocéfalo. Pois ou os dirigentes
(socialismo) ou os membros (anarquismo) têm de poder contar com o poder de disposição sobre
a mão-de-obra dada e as utilidades existentes: este fato pode ser terminologicamente disfarçado,
porém não eliminado por via interpretativa. Nem os meios pelos quais se garante — seja de
forma convencional, seja de forma jurídica —essa disposição, nem a circunstância de ela poder
carecer de qualquer garantia externa, podendo-se apenas contar com ela com segurança (relativa),
em virtude de certo costume ou de determinada situação de interesses, têm importância do
ponto de vista conceituai, por mais indispensável que sejam, sem dúvida, para a economia moder-
na, as garantias jurídicas com caráter coativo. O fato de aquela categoria ser conceitualmente
indispensável para a consideração econômica da ação social não significa, portanto, que a ordem
jurídica garantidora dos poderes de disposição seja igualmente indispensável para a conceituação,
por mais indispensável que possa parecer do ponto de vista empírico.
7. No conceito de "poder de disposição" incluímos também a possibilidade — efetiva
ou de alguma forma garantida — de dispor sobre a própria força de trabalho (o que não se
aplica automaticamente — por exemplo, aos escravos)
8. Uma teoria sociológica da economia se vê obrigada a introduzir desde logo em suas
categorias o conceito de "bens" (como acontece no § 2), pois ela se ocupa com aquele tipo
de "ação" que recebe seu sentido específico do resultado das cogitações (apenas teoricamente
isoláveis) dos agentes econômicos. De outra maneira pode (talvez) proceder a teoria econômica,
cujos resultados teóricos constituem a base da Sociologia econômica — ainda que esta, em certos
casos, tenha de criar seus próprios conceitos.

§ 2. Por " u t i l i d a d e s " entendemos s e m p r e as probabilidades (reais o u supostas)


concretas e particulares de aplicabilidade presente o u futura, consideradas c o m o tais
por u m o u vários agentes e c o n ô m i c o s cuja presumível importância c o m o meios para
os fins desse agente (ou desses agentes) orienta suas atividades e c o n ô m i c a s .
As utilidades p o d e m ser serviços prestados p o r objetos n ã o - h u m a n o s (coisas) ou
p o r homens. Aos objetos suscetíveis de prestar serviços úteis de natureza qualquer
denominamos " b e n s " , e às utilidades que consistem n u m a atividade humana denomi-
namos " s e r v i ç o s " . Objeto de p r o v i s ã o e c o n ô m i c a s ã o t a m b é m relações sociais aprecia-
das c o m o fontes de possível poder de disposição, presente ou futuro, sobre determi-
nadas utilidades. Às oportunidades estabelecidas a f a v o r de determinada economia,
pelo costume, pela situação ou pela o r d e m (convencional o u j u r i d i c a m e n t e ) garantida,
denominamos "oportunidades e c o n ô m i c a s " .

Compare VON BÔHM-BAWERK, Rechte und Verhältnisse vom Standpunkt der volkswirtschaf-
tlichen Güterlehre (Innsbruck, 1881)
1. Bens e serviços não esgotam o âmbito das condições do mundo circundante que, para
um agente econômico, podem ser importantes e objetos de provisão. A relação de "fidelidade
do freguês" ou a tolerância de determinadas medidas econômicas por parte daqueles que as
ECONOMIA E SOCIEDADE 41

poderiam impedir e muitas outras formas de comportamento podem ter igual importância para
a gestão econômica e também ser objetos da provisão econômica ou, por exemplo, de contratos.
Mas obteríamos conceitos imprecisos subordinando-as a uma destas duas categorias. Essa concei-
tuação é determinada unicamente por razões de conveniência, portanto.
2. Igualmente imprecisos se tornariam os conceitos (conforme corretamente observou
v. Böhm-Ba werk) se chamássemos indistintamente "bens" a todas as entidades da experiência
e da linguagem corrente, e então equiparássemos o conceito de bens aos objetos úteis. Empre-
gando-se num sentido rigoroso o conceito de "utilidade", não se pode dizer que um "cavalo"
ou uma "barra de ferro" sejam "bens". Um " b e m " , neste sentido, é a aplicabilidade peculiar
desses objetos — por exemplo, como força de tração ou de sustentação etc. —, que se considera
desejável e na qual se acredita. Muito menos podem considerar-se "bens", segundo essa termino-
logia, as possibilidades que têm a função de objetos de circulação econômica (na compra, na
venda e t c ) , tais como a "clientela", a "hipoteca" ou a "propriedade". Àquilo que oferecem
a uma economia essas oportunidades, estabelecidas ou garantidas pela ordem vigente (tradicional
ou estatuída), de obter poderes de disposição sobre utilidades objetivas e pessoais denominamos,
para simplificar, "oportunidades econômicas" (ou simplesmente "oportunidades", quando não
há perigo de equívocos)
3. A circunstância de só chamarmos "serviços" a formas ativas de comportamento (e não
a atos de "tolerância", "permissão" ou "omissão") deve-se a razões de conveniência. Segue-se
daí, entretanto, que as categorias de "bens" e "serviços" não constituem uma classificação abran-
gente de todas as utilidades economicamente estimadas.
Sobre o conceito de "trabalho", veja § 15

§ 3. A o r i e n t a ç ã o e c o n ô m i c a pode realizar-se de f o r m a tradicional o u de f o r m a


racional referente a fins. Mesmo c o m c o n s i d e r á v e l r a c i o n a l i z a ç ã o da a ç ã o a influência
exercida pela o r i e n t a ç ã o tradicional p e r m a n e c e relativamente importante. A o r i e n t a ç ã o
racional d e t e r m i n a , e m r e g r a , p r i m a r i a m e n t e a a ç ã o de direção (veia § 15) qualquer
que seja a natureza desta. O desenvolvimento da g e s t ã o e c o n ô m i c a racional a partir
da busca puramente instintiva e reativa de alimento o u a partir da utilização de u m a
técnica tradicional e de relações sociais habituais está condicionada também, e m conside-
rável g r a u , p o r ações e acontecimentos n ã o - e c o n ô m i c o s e não-cotidianos e, a l é m disso,
pela pressão da necessidade p o r restrição absoluta o u ( r e g u l a r m e n t e ) relativa do e s p a ç o
de subsistência.

1. Naturalmente, não existe para a ciência, emprincípio, uma "situação econômica primor-
dial". Poder-se-ia, por convenção, chegar ao acordo de considerar e analisar como tal a situação
da economia em determinado nível técnico-, o do equipamento mínimo constatável. Mas não
nos cabe, de modo algum, deduzir dos atuais rudimentos encontráveis entre povos primitivos
pobres em equipamento (por exemplo, os vedas ou certas tribos no interior do Brasil), que
a gestão econômica de todos os povos do passado situados no mesmo nível de desenvolvimento
técnico teve a mesma forma. Pois, do ponto de vista puramente econômico, existia nesse nível
de desenvolvimento a possibilidade tanto de uma intensa acumulação de trabalho em grandes
grupos (veja § 16) quanto, ao contrário, de um extremo isolamento em grupos pequenos. Para
a decisão entre ambas as possibilidades, além de circunstâncias econômicas naturalmente condi-
cionadas, puderam oferecer também estímulos muito diversos determinadas circunstâncias extra-
econômicas (por exemplo, militares)
2. Guerra e migração não são, em si mesmas, processos econômicos (ainda que nelas
predominasse, especialmente nas épocas primitivas, a orientação econômica) mas freqüente-
mente tiveram por conseqüência, em todos os tempos até a época mais recente, mudanças radicais
na economia. Na situação de uma crescente contração absoluta do espaço da subsistência (condi-
cionada por fatores climáticos, desflorestamento ou assoreamento) grupos de homens reagiram
de forma muito diversa, conforme a estrutura da situação de interesses e o tipo de interferência
de interesses não-econômicos. Mas a reação típica foi a restrição na satisfação das necessidades
42 MAX WEBER

e a diminuição absoluta de seu número. Na situação de uma contração relativa do espaço de


subsistência (condicionada por um nível dado na satisfação das necessidades e na distribuição
das possibilidades de ganho — veja § 11), reagiram também de maneira muito diversa, porém
com maior freqüência do que no primeiro caso, na forma de uma racionalização crescente da
economia. Nem para esse ponto, contudo, é possível estabelecer tendências gerais. O enorme
crescimento da população na China (desde que possamos confiar na "estatística" deste país)
a partir do início do século XVIII produziu efeitos contrários aos do mesmo fenômeno paralela-
mente observado na Europa (por razões sobre as quais poderíamos dizer, pelo menos, alguma
coisa), a estreiteza crônica do espaço de subsistência no deserto árabe apenas em fases isoladas
suscitou a modificação da estrutura econômica e política, e, nestes casos, o estímulo mais fone
foi o desenvolvimento extra-econômico (religioso)
3. O tradicionalismo forte e duradouro na condução da vida, por exemplo, da classe
trabalhadora no início dos tempos modernos não impediu o intenso incremento da racionalização
nas economias de lucro sob direção capitalista, mas isso tampouco aconteceu no caso da raciona-
lização fiscal-socialista das finanças públicas no Egito. (Contudo, foi a superação pelo menos
parcial dessa atitude tradicionalista que, no Ocidente, possibilitou o desenvolvimento em direção
a uma economia especificamente moderna, racional e capitalista.)

§ 4. As medidas típicas da g e s t ã o e c o n ô m i c a racional s ã o as seguintes:


1) distribuição planejada, entre o presente e o f u t u r o ( p o u p a n ç a ) , das utilidades
c o m cuja disponibilidade c r ê e m poder contar os agentes e c o n ô m i c o s , por razões quais-
quer;
2 ) distribuição planejada das utilidades disponíveis entre várias possibilidades de
aplicação, estabelecendo-se u m a o r d e m segundo a importância estimada delas: segundo
a utilidade m a r g i n a l .
O b s e r v a m - s e esses casos ( e m sua f o r m a mais rigorosa: " e s t á t i c a " ) c o m f r e q ü ê n c i a
significativa nas é p o c a s de paz; sua f o r m a atualmente mais f r e q ü e n t e é a da g e s t ã o
e c o n ô m i c a baseada na r e n d a e m dinheiro;
3 ) abastecimento planejado — p r o d u ç ã o e o b t e n ç ã o — c o m aquelas utilidades
das quais todos os meios para produzi-las o u obtê-las se e n c o n t r a m dentro do â m b i t o
dos poderes de disposição dos agentes e c o n ô m i c o s . No caso de u m procedimento racio-
n a l , realiza-se u m a a ç ã o desta e s p é c i e q u a n d o se considera a urgência estimada do
desejo s u p e r i o r ao p r e s u m í v e l e s f o r ç o exigido p a r a obter o resultado esperado, isto
é: 1 ) ao d i s p ê n d i o dos serviços p r o v a v e l m e n t e necessários, e 2 ) à s p u t r a s possibilidades
de aplicar os bens necessários neste caso e, portanto, ao produto final que se poderia
obter aplicando-os de outra m a n e i r a ( p r o d u ç ã o e m sentido a m p l o que inclui t a m b é m
os serviços de transporte},
4 ) a q u i s i ç ã o planejada de u m poder garantido de disposição — o u da participação
nesse p o d e r — sobre aquelas utilidades
a . que elas mesmas o u
/3. das quais os meios p a r a produzi-las o u obtê-las se e n c o n t r a m e m poder de
disposição alheio o u
y. as quais estão expostas à c o n c o r r ê n c i a de terceiros, n o que se r e f e r e a sua
p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o , a m e a ç a n d o o abastecimento p r ó p r i o , mediante o estabeleci-
m e n t o de u m a r e l a ç ã o associativa c o m os atuais detentores do poder de disposição
o u c o m os concorrentes n o processo de p r o d u ç ã o , o u o b t e n ç ã o dessas utilidades.
A r e l a ç ã o associativa c o m os atuais detentores alheios do poder de disposição
pode realizar-se:
a. mediante a c r i a ç ã o de u m a associação p o r cuja o r d e m d e v e orientar-se o abaste-
cimento c o m utilidades o u sua a p l i c a ç ã o ;
b. mediante a troca.
ECONOMIA E SOCIEDADE 43

C o m respeito a a}, o sentido da o r d e m da associação pode ser:


a . racionamento do abastecimento, o u do aproveitamento, o u do c o n s u m o , a
f i m de limitar a c o n c o r r ê n c i a na p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o (associação reguladora),
/3. c r i a ç ã o de u m p o d e r de disposição unitário p a r a administrar de f o r m a planejada
as utilidades que até e n t ã o se e n c o n t r a v a m e m â m b i t o s separados de d i s p o s i ç ã o (asso-
ciação administrativa).
C o m respeito a b) a troca é u m c o m p r o m i s s o de interesses entre os participantes
pelo qual se entregam bens o u possibilidades c o m o retribuição recíproca. A troca pode
ser ambicionada e realizada:
1) de f o r m a tradicional o u c o n v e n c i o n a l e, portanto, i r r a c i o n a l , do ponto de vista
e c o n ô m i c o (especialmente n o segundo caso), o u
2 ) de f o r m a r a c i o n a l , economicamente orientada. T o d a troca racionalmente o r i e n -
tada é a c o n c l u s ã o mediante u m c o m p r o m i s s o de u m a prévia luta de interesses aberta
o u latente. A luta entre os interessados n u m a troca cuja c o n c l u s ã o s u p õ e u m c o m p r o -
misso dirige-se s e m p r e , n o caso de u m a luta pelo p r e ç o , contra os que estão interessados
na troca na qualidade de participantes ( m e i o típico: o regateio) o u , n o caso de u m a
luta de c o n c o r r ê n c i a , contra te rc e i ro s , reais o u possíveis (atuais o u f u t u r o s ) interessados
na troca e concorrentes n o tocante à p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o ( m e i o típico: oferecimento
de p r e ç o s mais baixos o u m a i s altos).

1. Utilidades (bens, trabalho ou outros portadores das mesmas) encontram-se no âmbito


de disposição de um agente econômico quando este de fato pode contar com a possibilidade
de empregá-las (relativamente) a vontade, sem interferência de terceiros, qualquer que seja
o fundamento dessa possibilidade: a ordem jurídica, a convenção > o costume ou a situação de
interesses. De modo algum a garantia jurídica do poder de disposição é conceitualmente (nem
efetivamente) condição exclusiva da gestão econômica, ainda que hoje seja condição empirica-
mente indispensável com respeito aos meios materiais de produção ou obtenção.
2. A falta de madureza para o consumo pode também consistir na distância entre os bens
maduros e o local de consumo. Por isso, consideramos aqui o transporte de bens (que se deve
distinguir, naturalmente, do comércio de bens, que implica transferência do poder de disposição)
como parte da "produção".
3. No caso de falta do poder de disposição próprio é indiferente, em princípio, a circuns-
tância de quais sejam as causas — a ordem jurídica, a convenção, a situação de interesses,
o costume ou idéias éticas conscientemente cultivadas — que impedem ações violentas contra
o poder de disposição alheio por parte do agente econômico.
4. Concorrência na produção ou obtenção pode existir nas condições mais diversas. Espe-
cialmente, por exemplo, no caso de um abastecimento baseado num ato de ocupação: caçar,
pescar, lenhar, pastar, desmoitar. Pode existir também e particularmente dentro de uma associa-
ção fechada para fora. A ordem que se dirige contra essa situação consiste sempre no raciona-
mento da obtenção, o qual, em regra, se combina com a apropriação das possibilidades de
obtenção, dessa maneira garantidas por um número rigorosamente limitado de indivíduos ou
(na maioria dos casos) de comunidades domésticas. Todas as comunidades de camponeses e
pescadores, e a regulação dos direitos de desmoitar, pastar e lenhar em terras comuns, a repar-
tição dos pastos alpestres etc. têm esse caráter. Todas as formas de "propriedade" hereditária
de terras aproveitáveis se propagaram mediante esse procedimento.
5. A troca pode estender-se a tudo que, de alguma forma, seja "transferível" ao âmbito
de disposição de outra pessoa e pelo qual esta esteja disposta a dar alguma retribuição. Portanto,
não apenas a "bens" e "serviços", mas também a oportunidades econômicas de toda espécie,
por exemplo, uma "clientela" disponível simplesmente em virtude do costume ou da situação
de interesses, mas sem qualquer garantia. Naturalmente, isso se aplica muito mais a todas as
oportunidades de alguma forma garantidas por uma ordem. Objetos de troca não são, portanto,
apenas utilidades atuais. Para nossos fins, é troca, no sentido mais amplo da palavra, roda oferta,
44 MAX WEBER

baseada num acordo formalmente voluntário, de utilidades atuais, contínuas, presentes ou futu-
ras, qualquer que seja sua natureza, contra determinadas contraprestações de qualquer espécie.
Assim é, por exemplo, a entrega ou disposição da utilidade de bens ou dinheiro para retribuição
futura em bens da mesma espécie, ou a obtenção de alguma licença ou autorização de "desfrute"
de certo objeto contra pagamento de "aluguel" ou "arrendamento", ou a prestação de serviços
de qualquer espécie contra um salário. O fato de hoje, sociologicamente considerado, este último
processo significar, para os "trabalhadores" no sentido dado no § 15, o ingresso numa associação
de dominação, não entra por ora em nossa cogitação, assim como as diferenças entre "emprés-
timo" e "compra" etc.
6. A troca pode estar determinada pela tradição e, apoiada nesta, ter caráter convencional,
ou estar determinada por motivos racionais. Atos de troca convencionais eram as trocas de presen-
tes entre amigos, heróis, caciques, príncipes (veja-se a troca de armas entre Diomedes e Glauco),
ainda que muitas vezes com forte orientação e controle racionais (vejam-se as cartas de Tell-el-A-
marna). A troca racional só é possível quando ambas as partes esperam beneficiar-se dela ou
quando uma delas se encontra numa situação forçada, condicionada por algum poder econômico
ou por simples necessidades. Pode servir (veja § 11) para fins de abastecimento com produtos
de necessidade cotidiana ou para fins de iucro, isto é, estar orientada pelo abastecimento de
um ou vários participantes com determinado bem, ou por oportunidade de lucro no mercado
(veja § 11). No primeiro caso, as condições da troca estão, em grande parte, individualmente
determinadas e, neste sentido, ela tem caráter irracional: os excedentes de uma gestão doméstica,
por exemplo, são avaliados, em sua importância, segundo a utilidade marginal individual dessa
economia particular e, eventualmente, trocados abaixo de seu valor; em determinadas circuns-
tâncias, desejos ocasionais fixam em nível muito alto a utilidade marginal dos bens pretendidos
na troca. Oscilam, portanto, em alto grau os limites de troca determinados pela utilidade marginal.
Uma relação de troca de caráter racional só se desenvolve no caso de bens trocados com facilidade
no mercado (sobre o conceito, veja § 8) e, em grau mais elevado, quando se trata de bens
trocados ou utilizados em gestão econômica aquisitiva (conceito: § 11).
7. As intervenções de uma associação reguladora mencionadas no item a não são as únicas
possíveis, mas sim as que aqui interessam por serem aquelas resultantes de maneira mais imediata
de uma situação em que a satisfação das necessidades como tal se vê ameaçada. Sobre a regulação
da venda, veja mais adiante.

§ 5. U m a associação economicamente orientada pode ser, segundo sua r e l a ç ã o


c o m a economia:
a ) associação c o m g e s t ã o e c o n ô m i c a , q u a n d o a a ç ã o da associação, orientada
por sua o r d e m vigente e p r i m a r i a m e n t e e x t r a - e c o n ô m i c a , inclui t a m b é m alguma gestão
econômica;
b ) associação e c o n ô m i c a , q u a n d o a a ç ã o da associação, regulada pela o r d e m vigen-
te, é p r i m a r i a m e n t e g e s t ã o e c o n ô m i c a autocéfala de determinada e s p é c i e ;
c ) associação reguladora da e c o n o m i a , quando e na medida e m que a gestão
e c o n ô m i c a autocéfala dos m e m b r o s se o r i e n t a , de m o d o material e h e t e r ô n o m o , pelas
ordens da associação;
d) associação o r d e n a d o r a , q u a n d o suas ordens r e g u l a m a g e s t ã o e c o n ô m i c a auto-
céfala e a u t ô n o m a dos m e m b r o s apenas de m o d o formal, estabelecendo determinadas
regras e garantindo as oportunidades assim adquiridas.
As regulações e c o n ô m i c a s de caráter m a t e r i a l e n c o n t r a m seus limites de fato onde
a c o n t i n u a ç ã o de determinado comportamento e c o n ô m i c o ainda é c o m p a t í v e l c o m os
interesses vitais de abastecimento das economias reguladas.

1. Associações com gestão econômica são o "Estado" (não o socialista ou comunista) e


todas as demais associações (igrejas, uniões etc.) com finanças próprias, mas também, por exem-
plo, as comunidades educativas, as cooperativas não primariamente econômicas etc.
ECONOMIA E SOCIEDADE 45

2. Associações econômicas, no sentido desta terminologia, são naturalmente não apenas


as que habitualmente assim se chamam, como, por exemplo, sociedades aquisitivas (por ações),
uniões de consumidores, artels, cooperativas e cartéis, como, em geral, todas as "empresas"
econômicas que supõem atividades de várias pessoas, desde a utilização de uma oficina comum
por dois artesãos até uma plausível associação comunista mundial.
3. Associações reguladoras da economia são, por exemplo, as antigas comunidades aldeãs
de camponeses, as corporações e os grêmios de artesãos, os sindicatos, as associações patronais,
os cartéis e todas as associações cuja direção regula, de modo material, o conteúdo e as tendências
da gestão econômica, exercndo "política econômica", isto é: tanto as aldeias e cidades da Idade
Média quanto todo Estado atual que pratica semelhante política.
4. Uma associação ordenadora pura é, por exemplo, o puro Estado de direito, que confere
autonomia integral, em seu aspecto material, à gestão econômica das unidades domésticas e
empreendimentos individuais, limitando-se a regular formalmente, no sentido de uma "arbitra-
gem", o cumprimento das obrigações que provêm dos atos de troca livremente pactuados.
5. A existência de associações reguladoras e ordenadoras da economia pressupõe, em
princípio, a autonomia (maior ou menor) dos indivíduos economicamente ocupados. Isto é,
pressupõe nestes fundamentalmente a liberdade de disposição, embora limitada em graus diver-
sos (pelas ordens que orientam as ações), e, portanto, a apropriação (pelo menos relativa) por
eles de oportunidades econômicas das quais dispõem de modo autônomo. O tipo mais puro
de associação ordenadora existe, portanto, quando todas as ações humanas procedem, em seu
conteúdo, autonomamente, orientando-se somente pelas normas formais estabelecidas pela res-
pectiva ordem, enquanto que todos os portadores objetivos de utilidades estão plenamente apro-
priados, de modo que se pode dispor deles à vontade, especialmente mediante troca — correspon-
dendo à ordem de propriedade tipicamente moderna. Qualquer outra forma de limitação da
apropriação e da autonomia implica uma regulação da economia porque compromete de alguma
forma a orientação da ação humana.
6. A oposição entre associações reguladoras e puramente ordenadoras é fluida. Pois, natu-
ralmente, o tipo da ordem " f o r m a l " pode (e deve) influenciar, de alguma forma, e às vezes
profundamente, o aspecto material da ação. Muitas disposições jurídicas modernas, que preten-
dem ser normas puramente "ordenadoras", tendem, em virtude de sua forma, a exercer seme-
lhante influência (voltaremos a isto na Sociologia do Direito) Além disso, uma limitação verdadei-
ramente rigorosa a disposições puramente ordenadoras só é possível na teoria. Muitas disposições
jurídicas "obrigatórias" — e delas nunca se pode escapar — contêm, em algum grau, limitações
importantes também para a forma da gestão econômica material. Precisamente as disposições
jurídicas que supõem uma "autorização" contêm, em determinadas circunstâncias (por exemplo,
no direito das sociedades por ações), limitações bem sensíveis à autonomia econômica.
7. Os efeitos da limitação imposta pelas regulações no setor material da economia podem
manifestar-se: a) na cessação de determinadas tendências da economia (no caso de taxas sobre
os preços, cultivo de terras somente para satisfazer necessidades próprias), ou b) no efetivo
descumprimento das regulações (comércio clandestino)

§ 6. D e n o m i n a m o s meio de troca u m objeto m a t e r i a l de troca, na medida e m


que sua aceitação esteja orientada, de m o d o típico, primariamente por determinada
expectativa do aceitante, que consiste na probabilidade d u r a d o u r a — isto é, conside-
rando-se o futuro — de t r o c á - l o , n u m a p r o p o r ç ã o que corresponde a seu interesse,
p o r outros bens, seja p o r bens de qualquer espécie (meio de troca g e r a l ) , seja por
bens determinados (meio de troca específico). À probabilidade de sua aceitação, n u m a
p r o p o r ç ã o calculável, e m troca de outros bens (especificamente indicáveis) d e n o m i -
namos validade m a t e r i a l d o m e i o de troca, e m r e l a ç ã o à q u e l e s outros bens; e seu e m p r e -
go e m s i , de v a l i d a d e formal.
É meio de pagamento u m objeto típico, na medida e m que a validade de sua
entrega, c o m o c u m p r i m e n t o d e determinadas o b r i g a ç õ e s , pactuadas o u impostas, é
convencional o u j u r i d i c a m e n t e garantida (validade formal do m e i o de pagamento, que
pode ao m e s m o tempo, significar validade formal c o m o m e i o de troca).
46 MAX WEBER

D e n o m i n a m o s meios de troca o u de pagamento canais aqueles artefatos q u e ,


e m v i r t u d e da forma que r e c e b e r a m , t ê m determinada v i g ê n c i a f o r m a l — c o n v e n c i o n a l ,
jurídica, pactuada o u imposta — dentro de determinado d o m í n i o pessoal o u regional,
e que p o d e m dividir-se em parcelas, q u e r dizer, r e p r e s e n t a m determinado v a l o r n o m i n a l
o u u m m ú l t i p l o o u u m a f r a ç ã o deste, de m o d o que c o m eles é possível u m cálculo
puramente m e c â n i c o .
D e n o m i n a m o s dinheiro u m m e i o de pagamento cartai que s e r v e de m e i o de troca.
Associação m o n e t á r i a o u de meios de troca o u de meios de pagamento é u m a
associação, c o m referência ao d i n h e i r o o u aos meios de troca o u de pagamento, q u a n d o
e na medida e m que a vigência convencional o u jurídica (formal) destes, no â m b i t o
de vigência das ordens da associação, se i m p õ e c o m alguma eficácia, e m v i r t u d e dessas
ordens: d i n h e i r o interno ou meios de troca o u de pagamento internos. Aos meios de
troca empregados n a troca c o m n ã o - s ó c i o s chamamos meios de troca externos.
D e n o m i n a m o s meios de troca o u de pagamento naturais aqueles que n ã o são
c a n a i s . Cabe diferenciá-los:
a) do ponto de vista técnico:
1) segundo o b e m n a t u r a l que representam (especialmente jóias, roupas, objetos
úteis e instrumentos) o u
2 ) segundo sejam o u n ã o empregados c o n f o r m e seu peso (ponderados),
b) do ponto de vista e c o n ô m i c o : segundo s e u e m p r e g o
1) primariamente para fins de troca ou para fins estamentais (prestígio de posse) ou
2 ) p r i m a r i a m e n t e c o m o meios de troca ou de pagamento, internos o u externos.
D i n h e i r o o u meios de troca ou de pagamento t ê m qualidade simbólica, na medida
e m que, a l é m de seu e m p r e g o c o m o tais, n ã o g o z a m ( e m r e g r a , n ã o gozam m a i s )
p r i m a r i a m e n t e de u m v a l o r p r ó p r i o ; têm qualidade m a t e r i a l , na medida e m que seu
v a l o r material, c o m o tal, está o u pode estar influenciado pela avaliação de sua aplicabi-
lidade c o m o bens de uso.
O dinheiro tem:
a ) f o r m a de moeda, o u
b) f o r m a de nota: título.
E m f o r m a de notas ele costuma estar adaptado à divisão e m parcelas sob a f o r m a
de m o e d a o u r e f e r i r - s e a esta historicamente no que diz respeito a seu v a l o r n o m i n a l .
E m f o r m a de moeda, o d i n h e i r o constitui:
1) "dinheiro livre" o u "dinheiro de tráfico", quando a instituição encarregada
da e m i s s ã o , p o r iniciativa de qualquer possuidor da respectiva matéria, t r a n s f o r m a
esta, e m qualquer quantidade solicitada, e m f o r m a cartai de " m o e d a s " , orientando-se,
portanto, a e m i s s ã o materialmente pelas necessidades de meios de pagamento dos inte-
ressados na troca; t
2 ) "dinheiro bloqueado" o u "dinheiro administrativo", quando a t r a n s f o r m a ç ã o
e m f o r m a cartai depende da disposição da direção administrativa de u m a associação,
sendo essa disposição f o r m a l m e n t e l i v r e , mas materialmente orientada, e m p r i m e i r o
lugar, pelas necessidades de meios de pagamento dessa d i r e ç ã o ;
3 ) "dinheiro regulado", quando, apesar de estar limitada a t r a n s f o r m a ç ã o [ e m
moedas], a f o r m a e a e x t e n s ã o d e sua e m i s s ã o regulam-se eficazmente mediante normas.
D e n o m i n a m o s meio de circulação u m título c o m a f u n ç ã o de d i n h e i r o e m f o r m a
de nota, q u a n d o sua aceitação c o m o d i n h e i r o " p r o v i s ó r i o " se orienta pela probabilidade
de que, e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s , esteja assegurada e m q u a l q u e r m o m e n t o sua c o n v e r s ã o
e m d i n h e i r o " d e f i n i t i v o " : moedas o u meios de troca metálicos ponderados. Chama-
m o - l o certificado, q u a n d o essa probabilidade se a p ó i a e m r e g u l a ç õ e s que f i x a m a a r m a -
zenagem de fundos e m moedas o u metal suficientes para sua cobertura plena.
ECONOMIA E SOCIEDADE 47

D e n o m i n a m o s escalas dos m e i o s de troca o u de pagamento as tarifações r e c í p r o -


cas, convencionais o u j u r i d i c a m e n t e impostas dentro de u m a associação, dos meios
de troca o u de pagamento naturais.
D e n o m i n a m o s dinheiro corrente as espécies de d i n h e i r o que, de acordo c o m
a o r d e m de u m a a s s o c i a ç ã o m o n e t á r i a , t ê m validade ilimitada e m espécie e quantidade
c o m o meios de pagamento; c h a m a m o s material do dinheiro a matéria c o m a qual este
se produz; e metal monetário aquela c o m que se p r o d u z d i n h e i r o de tráfico; entendemos
por tarifação do d i n h e i r o a v a l o r i z a ç ã o — fundamento da divisão e m parcelas e da
d e n o m i n a ç ã o — das diversas e s p é c i e s de d i n h e i r o administrativo de m a t e r i a l diferente,
e m f o r m a de notas o u de moedas, e p o r relação monetária o m e s m o processo, referente
às diversas espécies de d i n h e i r o de tráfico de m a t e r i a l diferente.
C h a m a m o s meio de pagamento intercambiário aquele meio de pagamento que
s e r v e p a r a a c o m p e n s a ç ã o do saldo de pagamento entre associações m o n e t á r i a s d i v e r s a s ,
e m última instância — isto é, q u a n d o n ã o se protela o pagamento mediante u m a p r o r r o -
gação.
T o d a n o v a o r d e m de u m a associação r e f e r e n t e ao setor m o n e t á r i o parte inevitavel-
mente do fato de que determinadas espécies de meios de pagamento f o r a m aplicadas
na l i q u i d a ç ã o de dívidas. E l a se contenta c o m sua l e g a l i z a ç ã o c o m o meios de pagamento
ou — q u a n d o i m p õ e novos meios de pagamento — converte e m seus cálculos as antigas
unidades naturais, cartais o u ponderadas e m unidades novas (princípio da chamada
" d e f i n i ç ã o h i s t ó r i c a " d o d i n h e i r o c o m o m e i o de pagamento; n ã o e x a m i n a m o s aqui
até que ponto esta repercute na r e l a ç ã o de troca entre o d i n h e i r o , c o m o m e i o de troca,
e os bens).

Observamos expressamente que não pretendemos apresentar aqui uma "teoria do dinhei-
ro", mas apenas fixar terminologicamente, da forma mais simples possível, algumas expressões
que empregaremos mais adiante com alguma freqüência. Além disso, o que importa aqui é
a descrição de determinadas conseqüências sociológicas elementares do uso do dinheiro. (Para
mim, a teoria material do dinheiro mais aceitável é a de MISES. A Staatliche Theorie des Geldes
de G . F . KNAPP — obra mais notável nesta especialidade — resolve de maneira excelente sua
tarefa formai. No que se refere aos problemas materiais do dinheiro, é incompleta; voltaremos
ao assunto mais adiante. Deixamos à parte, neste ponto, sua casuística louvável e terminologi-
camente valiosa.)
1. Meios de troca e meios de pagamento coincidem historicamente com freqüência. Mas
essa coincidência não ocorre especialmente nas fases primitivas. Por exemplo, os meios de paga-
mento para dotes, tributos, presentes obrigatórios, multas, impostos pessoais etc. estão muitas
vezes perfeitamente determinados do ponto de vista convencional ou jurídico, porém sem consi-
derar os meios de troca que efetivamente circulam. A afirmação de MISES em Theorie des Geldes
undder Umlaufsmittel (Munique, 1912)de que também ao Estado os meios de pagamento interes-
sam apenas na qualidade de meios de troca só é correta quando se trata da gestão orçamentária
de uma associação com economia monetária, mas não nos casos em que a posse de determinados
meios de pagamento constitua sobretudo uma característica estamental (Sobre isso, veja H. SCHURTZ,
Grundriss einer Entstehungsgeschichte des Geldes, 1898). A partir dos primeiros regulamentos
referentes ao dinheiro, estabelecidos pelo Estado, "meio de pagamento" passou a ser o conceito
jurídico e "meio de troca", o econômico.
2. Os limites entre uma "mercadoria", que só se compra porque se têm em conta futuras
probabilidades de venda, e um "meio de troca" são aparentemente fluidos. Na realidade, porém,
determinados objetos costumam monopolizar a função de meios de troca de forma tão exclusiva
— e já nas condições mais primitivas — que sua posição como tais é inequívoca. (O trigo a
ser ceifado em determinado "prazo" está destinado, segundo seu sentido subjetivo, a encontrar
um comprador definitivo, não constituindo nem "meio de pagamento" nem "meio de troca",
e menos ainda "dinheiro".)
48 MAX WEBER

3. O desenvolvimento de determinadas espécies de meios de troca, enquanto não existe


dinheiro cartai, está condicionado por costumes, situações de interesses e convenções de todos
os tipos, pelos quais se orientam os acordos entre os participantes na troca. Essas condições, não
examinadas aqui em seus detalhes, em virtude das quais os meios de troca receberam primaria-
mente a qualidade como tais, eram bem diversas, conforme o tipo de troca de que se tratava.
Nem todo meio de troca era universalmente utilizável (nem mesmo dentro do círculo de pessoas
que deste modo o empregava)em trocas de todos os tipos (por exemplo, o "dinheiro" de conchas
não era meio de troca específico para mulheres e gado).
4. Também os'' meios de pagamento'' que não eram os'' meios de troca'' habituais desempe-
nharam papel importante no desenvolvimento do dinheiro até sua posição particular. O "fato"
de existirem obrigações (G.F. K n a p p ) — tributárias, de dote e de preço da noiva, convencionais
de presentes aos reis ou dos reis entre si, de imposto pessoal etc. — e de estas muitas vezes (mas
nem sempre) terem de ser cumpridas em determinadas espécies típicas de bens (em virtude de
convenção ou coação jurídica)criou para estas espécies de bens (freqüentemente artefatos especifi-
cados por sua forma) uma posição particular.
5. "Dinheiro" (no sentido desta terminologia) poderia ser também as moedas com o valor
de "um quinto de um shekel", com o cunho da casa (comercial), que se encontram mencionadas
nos documentos babilónicos. Supondo-se, naturalmente, que servissem de meios de troca. Ao con-
trário, as barras empregadas somente como unidades de determinado peso e não divididas em
parcelas não são, para nós, "dinheiro", mas apenas meios de troca ou de pagamento que podem
ser pesados, por mais importante que seja este fato da por.derabilidade para o desenvolvimento
do "cálculo monetário". As situações de transição (aceitação de moedas unicamente segundo seu
peso etc.) são, naturalmente, numerosas.
6. "Cartai" é um termo introduzido pela obra Staatliche Theorie des Geldes de Knapp. Se-
gundo ele, incluem-se nesta categoria todas as espécies de dinheiro, divididas em parcelas e cunha-
das ou carimbadas, metálicas e não-metálicas, que foram providas de validade pela ordem jurídica
ou por um acordo. Não há motivo de restringir a definição do conceito à proclamação pelo Estado,
excluindo-se a convenção ou a coação pactuada. Tampouco poderia ser decisiva, naturalmente,
a fabricação sob direção própria ou sob o controle do poder político — o qual, na China, repetidas
vezes faltou por inteiro, e na Idade Média existiu somente em termos relativos —, desde que haja
algumas normas referentes à forma definitiva (o que KNAPP também afirma). A validade como meio
de pagamento e a utilização formal como meio de troca no comércio, dentro do âmbito de domi-
nação da associação política, podem ser impostas coativamente pela ordem jurídica. Veja adiante.
7. Os meios de troca e de pagamento naturais têm em parte sobretudo a primeira função,
em parte a segunda, em parte se destinam mais ao tráfico interno e em parte mais ao externo.
A casuística não será considerada aqui; tampouco — ainda não — a questão da validade material
do dinheiro.
8. Tampouco cabe neste ponto o estabelecimento de uma teoria material do dinheiro com
referência aos preços (caso isso sequer seja tarefa da Sociologia econômica). Ser-nos-á aqui sufi-
ciente constatar o fato do emprego de dinheiro (em suas formas mais importantes), uma vez que
nos interessam as conseqüências sociológicas mais gerais deste fato que, do ponto de vista econô-
mico, tem caráter puramente formal. Antes de mais nada cabe observar que o "dinheiro", em
sua qualidade como tal, nunca será nem pode ser um simples "vale" ou uma "unidade de cálculo"
puramente nominal. A estimação de seu valor será sempre (e de forma muito complexa) também
uma estimação de raridade (ou, no caso de "inflação", de abundância), conforme observamos
precisamente em nossa época, e também nos tempos passados.
No socialismo, um "vaie" emitido, por exemplo, na base de determinada quantidade de
"trabalho" feito (e reconhecido como "útil") e referente a determinados bens poderia tornar-se
um objeto de entesouramento ou de troca, obedecendo, sem dúvida, às regras da troca de bens
naturais (eventualmente, de forma indireta).
9- As relações entre a utilização monetária e a não-monetária de um material tecnicamente
apropriado para fabricar dinheiro podem ser observadas com perfeita precisão na história mone-
tária da China e no alcance de suas conseqüências para a economia, uma vez que, ali, utilizando-se
moedas de cobre, com alto custo de produção e grande flutuação no aproveitamento do material
monetário, as condições se revelam com clareza singular.
ECONOMIA E SOCIEDADE 49

§ 7. As c o n s e q ü ê n c i a s primárias do uso típico do d i n h e i r o são:


1. A chamada " t r o c a i n d i r e t a " c o m o m e i o de satisfazer as necessidades dos consu-
midores. Isto significa a possibilidade de u m a separação-, a ) local, b) t e m p o r a l , c ) pessoal
(e t a m b é m muito essencial), d) quantitativa entre os bens oferecidos e os desejados
na troca. D a í resulta a extraordinária a m p l i a ç ã o das possibilidades de troca n u m mo-
mento dado e, ao m e s m o tempo,
2. o c á l c u l o e m d i n h e i r o d o v a l o r das prestações prorrogadas, especialmente
das contraprestações na troca ( d í v i d a s )
3. a c h a m a d a ' ' r e s e r v a de v a l o r ' ' , isto é o entesouramento de d i n h e i r o e m espécie
ou e m f o r m a de créditos realizáveis e m qualquer m o m e n t o , c o m o m e i o de assegurar
o futuro poder de disposição sobre probabilidades de troca;
4. a t r a n s f o r m a ç ã o progressiva de oportunidades e c o n ô m i c a s e m oportunidades
de dispor de quantidade de d i n h e i r o ;
5. a individualização qualitativa e, c o m isso, indiretamente, a a m p l i a ç ã o da satisfa-
ç ã o de necessidades p o r parte das pessoas que t ê m d i n h e i r o o u créditos e m d i n h e i r o
o u oportunidades de g a n h á - l o e, portanto, p o d e m o f e r e c ê - l o por qualquer tipo de
bens o u serviços;
6. a o r i e n t a ç ã o , hoje típica, da o b t e n ç ã o de utilidades pela utilidade m a r g i n a l
daquelas quantidades de dinheiro das quais o dirigente de u m a e c o n o m i a acredita poder
dispor, provavelment e, e m u m f u t u r o previsível. E , c o m isso:
7. a o r i e n t a ç ã o das atividades lucrativas c o n f o r m e todas as oportunidades ofere-
cidas por aquela possibilidade de troca multiplicada por seus aspectos temporais, locais,
pessoais e materiais (tópico 1), tudo isso e m v i r t u d e do fator mais importante de todos,
q u e r dizer
8. a possibilidade de estimar e m d i n h e i r o todos os bens e serviços suscetíveis
de troca: cálculo monetário.
Materialmente, o c á l c u l o e m d i n h e i r o significa, antes de mais nada, que n ã o
se estimam os bens exclusivamente segundo sua utilidade atual, e m determinado lugar
e para determinadas pessoas, m a s que, considerando-se a f o r m a de seu e m p r e g o (seja
c o m o meios de consumo, seja c o m o meios de p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o ) , têm-se e m conta
t a m b é m todas as futuras probabilidades de utilização e estimação — e m certas circuns-
tâncias, por u m n ú m e r o indeterminado de terceiros, p a r a seus fins — , na medida e m
que estas se e x p r i m e m na f o r m a de u m a probabilidade de troca por d i n h e i r o à qual
tenha acesso o atual detentor do poder de disposição. A f o r m a c o m o isso o c o r r e , no
caso do cálculo típico e m d i n h e i r o , denominamos situação de mercado (de determinado
objeto).

O que discorremos até agora refere-se apenas aos elementos mais rudimentares e já conhe-
cidos de toda consideração do assunto "dinheiro" e dispensa, portanto, qualquer comentário
especial. Não examinamos, aqui, a Sociologia do "mercado" (sobre os conceitos formais, veja
§§ 8, 10).

C h a m a m o s "crédito", n o sentido mais g e r a l , toda troca de poderes de disposição


sobre bens materiais atualmente possuídos pela promessa de uma transferência futura
do poder de disposição sobre outros bens materiais, de qualquer espécie. A c o n c e s s ã o
de crédito significa, antes de mais nada, a o r i e n t a ç ã o pela possibilidade de efetivamente
realizar-se essa transferência. C r é d i t o , neste sentido, significa p r i m a r i a m e n t e a troca
do poder de disposição de u m a e c o n o m i a sobre bens materiais o u d i n h e i r o — poder
do qual esta carece no m o m e n t o atual, m a s que espera obter e m excesso n o futuro
— pelo poder de disposição de outra e c o n o m i a , existente atualmente, mas n ã o utilizado
50 MAX WEBER

para fins p r ó p r i o s . No caso de racionalidade, ambas as economias e s p e r a m dessa troca


oportunidades mais f a v o r á v e i s (qualquer que seja sua n a t u r e z a ) do que as que a distri-
b u i ç ã o atual ofereceria s e m a troca.

1. As oportunidades tomadas em consideração não necessitam ser de natureza econômica.


O crédito pode ser dado e aceito para uma variedade de fins imagináveis (caritativos, bélicos)
2. O crédito pode ser dado e aceito em espécie ou em dinheiro, e em ambos os casos
contra a promessa de prestações em espécie ou em dinheiro. A forma em dinheiro implica,
entretanto, a concessão e aceitação do crédito mediante o cálculo em dinheiro, com todas suas
conseqüências (das quais trataremos logo em seguida).
3. De resto, esta definição corresponde às concepções habituais. É evidente por si mesmo
que o crédito é possível também entre associações de toda espécie, especialmente socialistas
ou comunistas (e que é inevitável na coexistência de várias associações deste tipo economicamente
não-autárquicas). No entanto, constitui um problema, no caso de ausência completa do uso de
dinheiro, a base racional do cálculo. Pois o simples (e indiscutível) fato da possibilidade de
um "tráfico de compensação" nada indicaria aos participantes sobre a racionalidade das condições
oferecidas, sobretudo no caso do crédito a longo prazo. Estariam talvez na mesma situação
das economias domésticas (pikos) do passado, que trocavam seus excedentes por artigos úteis
Com a diferença, no entanto, de que na época moderna se encontrariam em jogo enormes
interesses de massas e especialmente interesses a longo prazo, ao passo que, para as massas
fracamente abastecidas, precisamente a utilidade marginal da satisfação atual é muito elevada.
Daí resulta a probabilidade de atos de troca desfavoráveis para obter os bens necessitados com
maior urgência.
4. O crédito pode ser pedido para satisfazer necessidades atuais de abastecimento iasufi-
cientemente cobertas (crédito de consumo). No caso de racionalidade econômica, mesmo nestas
condições só é concedido contra a concessão de vantagens. Mas isto não constitui a atitude origi-
nária (no caso do crédito de consumo historicamente primitivo, especialmente numa situação
de penúria), mas o apelo aos deveres de fraternidade (sobre isto, veja as considerações sobre
a associação de vizinhos, capítulo V).
5. O fundamento mais geral do crédito náo-gratuito, em espécie ou em dinheiro, é natural-
mente a circunstância de que, na maioria dos casos, a utilidade marginal da expectativa futura
está mais elevada para o credorúo que para o devedor, em virtude do melhor abastecimento
do primeiro (o que, note-se bem, é um conceito relativo).

§ 8. D e n o m i n a m o s situação de mercado de u m objeto de troca a totalidade das


possibilidades de troca do m e s m o por d i n h e i r o , que podem ser reconhecidas pelos
interessados na troca, n o momento de sua o r i e n t a ç ã o na luta de p r e ç o s e de concor-
rência;
mercabilidade, o g r a u de regularidade c o m que u m objeto costuma tornar-se
objeto de troca n o mercado;
liberdade de mercado, o g r a u de autonomia de cada interessado na troca, dentro
da luta de p r e ç o s e de c o n c o r r ê n c i a ;
regulação do mercado, ao c o n t r á r i o , a situação e m que estão materialmente limita-
das, p o r determinadas ordens, a mercabilidade de possíveis objetos de troca e a liber-
dade de m e r c a d o para possíveis interessados na troca. A r e g u l a ç ã o do m e r c a d o pode
estar condicionada:
1. de m o d o somente tradicional, pela assimilação de limitações o u c o n d i ç õ e s
tradicionais da troca;
2. de m o d o c o n v e n c i o n a l , pela d e s a p r o v a ç ã o social da mercabilidade de determi-
nadas utilidades o u da l i v r e luta de p r e ç o s e de c o n c o r r ê n c i a p a r a determinados objetos
de troca o u p a r a determinados círculos de pessoas;
3 d e m o d o j u r í d i c o , pela efetiva limitação jurídica da troca ou da liberdade na
luta de p r e ç o s e de c o n c o r r ê n c i a , de f o r m a g e r a l o u p a r a determinados círculos de
ECONOMIA E SOCIEDADE 51

pessoas o u objetos de troca, no sentido de u m a influência da situação de m e r c a d o


dos objetos de troca (regulações de p r e ç o s ) o u de u m a limitação da posse, aquisição
ou a l i e n a ç ã o do poder de disposição sobre bens, p a r a determinados círculos de pessoas
( m o n o p ó l i o s j u r i d i c a m e n t e garantidos o u limitações jurídicas da liberdade da g e s t ã o
econômica)
4. de m o d o v o l u n t á r i o : pela situação de interesses: r e g u l a ç ã o m a t e r i a l e, ao mes-
m o tempo, liberdade f o r m a l do mercado. Essa situação tende a s u r g i r q u a n d o determi-
nados interessados na troca, e m v i r t u d e de sua possibilidade efetiva, total o u a p r o x i m a -
damente e x c l u s i v a , de possuir o u a d q u i r i r o poder de disposição sobre determinadas
utilidades (situação de m o n o p ó l i o ) estão e m c o n d i ç õ e s de influir sobre a situação de
mercado, e l i m i n a n d o de fato a liberdade de m e r c a d o de outros interessados. Para este
f i m , podem criar especialmente acordos reguladores do mercado ( m o n o p ó l i o s v o l u n -
tários e cartéis de p r e ç o s ) entre si ou (e eventualmente: ao m e s m o t e m p o ) c o m parceiros
típicos na troca.

1. É conveniente (mas não necessário) falar de situação de mercado apenas no caso da


troca em dinheiro, porque só neste caso é possível uma homogêna expressão numérica. Para
as "oportunidades de troca" em espécie é melhor empregar este próprio termo. No caso da
existência de troca típica em dinheiro, as diversas espécies de objetos de troca tinham e têm
mercabilidade — o que não cabe expor aqui em seus detalhes — em grau altamente diverso
e variável. E m grau máximo, objetos de produção e de consumo em massa que podem ser
classificados, em geral, segundo espécies; em grau mínimo, objetos singulares de procura ocasio-
nal; meios de abastecimento com períodos de uso e de consumo repetidos e a longo prazo,
e meios de produção ou obtenção com períodos a longo prazo de emprego e de rendimento
— sobretudo terras usadas para agricultura ou silvicultura — em grau muito menor do que
bens de consumo cotidianos prontos para o uso ou meios de produção ou obtenção que servem
ao consumo imediato ou são suscetíveis de uso uma única vez ou dão rendimento imediato.
2. O sentido racional econômico das regulações do mercado cresceu historicamente com
a ampliação da liberdade formal de mercado e da universalização da mercabilidade. As regulações
primárias estavam condicionadas em parte por idéias tradicionais ou mágicas, em parte por
interesses do clã, do estamento, militares ou político-sociais, em parte, por fim, pelas necessidades
daqueles que dominaram a respectiva associação, mas em todo caso determinadas por interesses
que não estavam orientados pela tendência para alcançar o máximo de oportunidades de lucro
ou de abastecimento de bens, puramente racionais e de acordo com o mercado, para os interes-
sados neste último, e muitas vezes em colisão com este máximo. Ou 1 ) excluíam permanentemente
da mercabilidade determinados objetos, como as limitações por motivos mágicos, de clã ou
estamentais (por exemplo, na esfera mágica, o tabu, na do clã, os bens hereditários, na do
estamento, o feudo) ou o faziam temporariamente, como as regulações políticas em situações
de carestia (por exemplo, para cereais). Ou ligavam a venda a determinadas preferências (de
parentes, membros do mesmo estamento ou da mesma corporação, concidadãos) ou a preços
máximos (por exemplo, regulações de preços em tempos de guerra) ou, ao contrário, a preços
mínimos (por exemplo, honorários estamentalmente regulados de magos, advogados, médicos).
Ou 2) excluíam determinadas categorias de pessoas (nobres, camponeses ou, em certas circuns-
tâncias, artesãos) da participação nas atividades de mercado, em geral ou para determinados
objetos. Ou 3) limitavam por regulações de consumo (ordens estamentais de consumo, raciona-
mentos por motivos de economia de guerra ou de política de preços) a liberdade de mercado
dos consumidores. Ou 4 ) restringiam a liberdade de mercado dos concorrentes, por motivos
estamentais (por exemplo, nas profissões liberais) ou de política de consumo, de lucro ou social
("política alimentícia das corporações") Ou 5) reservavam para o poder político (monopólios
dos príncipes) ou para seus concessionários (típico entre os monopolistas nos primórdios do
capitalismo) o aproveitamento de determinadas oportunidades econômicas. Destas categorias
de regulação do mercado, a quinta era a mais racional, do ponto de vista do mercado, sendo
a primeira a menos racional. Ou seja, a última era a que mais fomentava a orientação da gestão
econômica das diversas camadas interessadas na compra e venda de bens no mercado conforme
52 MAX WEBER

a situação deste, enquanto que as outras, em escala crescente até a primeira, a impediam. E m
face destas regulações, estavam interessados na liberdade de mercado todos aqueles participantes
na troca que se beneficiariam com a maior ampliação possível da mercabilidade dos bens, seja
na qualidade de interessados no consumo, seja na de interessados na venda. Regulações do
mercado voluntárias apareceram primeiro e ocorreram em seguida com maior freqüência por
parte dos interessados no lucro. Ao serviço de interesses monopólicos, podiam tanto 1) limitar-se
a regular as possibilidades de venda e compra (de modo típico, os monopólios mercantis, univer-
salmente existentes) quanto estender-se 2) às oportunidades de lucro pelo transporte (monopólios
de navegação e ferroviários), 3) à produção de bens (monopólios de produção) ou 4) à concessão
de créditos e financiamentos (monopólios de caráter bancário) Os dois últimos significam em
maior grau uma ampliação da regulação da economia por parte de associações, mas uma regulação
que — em contraposição às regulações primárias, irracionais do mercado — orienta-se, de forma
planejada, pelas situações de mercado. As regulações do mercado voluntárias, conforme sua
própria natureza, provieram regularmente daqueles interessados cujo considerável poder de
disposição efetivo sobre meios de produção ou obtenção permitia-lhes a exploração monopólica
da liberdade formal de mercado. Ao contrário, as associações voluntárias dos interessados no
consumo (uniões de consumidores, cooperativas de compra) em regra tinham origem em interes-
sados economicamente fracos e, por isso, apesar de contribuir para a diminuição dos gastos
dos participantes, só conseguiram uma regulação efetiva do mercado cm casos isolados e local-
mente limitados.

§ 9. C h a m a m o s racionalidade formal de u m a g e s t ã o e c o n ô m i c a o g r a u de cálculo


tecnicamente possível e que ela realmente aplica. A o contrário, chamamos racionalidade
material o g r a u e m que o abastecimento de bens de determinados grupos de pessoas
(como quer que se d e f i n a m ) , mediante u m a a ç ã o social economicamente orientada,
o c o r r a c o n f o r m e determinados postulados valorativos (qualquer que seja sua natureza)
que constituem o ponto de referência pelo qual este abastecimento é, foi o u poderia
ser julgado. Esses postulados t ê m significados extremamente variados.

1. A terminologia proposta (a qual, aliás, nada mais é do que uma forma mais precisa
de expressar aquilo que repetidamente aparece como problema nas considerações sobre a "socia-
lização" e o cálculo "em dinheiro" e "em espécie") pretende apenas servjr ao propósito de
um emprego mais inequívoco, na linguagem corrente, da palavra "racional", no que se refere
a este círculo de problemas.
2. Uma gestão econômica é formalmente "racional" na medida em que a "previdência",
essencial em toda economia racional, pode exprimir-se e de fato se exprime em considerações
de caráter numérico e calculável (sendo por enquanto sem importância a forma técnica destes
cálculos, isto é, se se trata de estimações em dinheiro ou em espécie) Este conceito é, portanto,
inequívoco (ainda que, como logo veremos, apenas em termos relativos), pelo menos no sentido
de que a forma em dinheiro representa o máximo dessa calculabilidade formal (claro que também
aqui: ceterísparibus\).
3. O conceito de racionalidade material, ao contrário, é inteiramente vago Seus diversos
significados só têm uma coisa em comum: que a consideração não se satisfaz com o fato puramente
formal e (relativamente) inequívoco de que se calcula de maneira racional, com vista a um
fim, e com os meios tecnicamente mais adequados possíveis, senão que estabelece exigências
éticas, políticas, militaristas, hedonistas, estamentais, igualitárias ou outras quaisquer, e as toma
como padrão dos resultados da gestão econômica — por mais racional, isto é, de caráter calculá-
vel, que esta seja do ponto de vista formal —, procedendo assim de modo racional, referente
a valores com racionalidade material referente a fins. Destes possíveis padrões valorativos racio-
nais neste sentido, há em princípio um número ilimitado. Entre eles, os socialistas e comunistas,
por sua vez, heterogêneos entre si, e sempre em algum grau éticos e igualitários, formam eviden-
temente apenas um entre os muitos grupos possíveis (graduação estamental, empenho para fins
de poder político, especialmente de guerra, e quaisquer outros aspectos imagináveis são, neste
sentido, igualmente "materiais". Por outro lado, e independentemente desta crítica material
ECONOMIA E SOCIEDADE 53

do resultado da gestão econômica, é também possível uma crítica ética, ascética e estética tanto
da atitude econômica quanto dos meios econômicos, o que também devemos ter em conta.
A todas elas a função "meramente formal" do cálculo em dinheiro pode parecer uma coisa
subalterna ou até adversa a seus postulados (abstraindo-se ainda por completo das conseqüências
do modo de cálculo especificamente moderno). Não é possível aqui uma decisão, mas apenas
a averiguação e delimitação do que se deve chamar "formal". Por isso, o próprio conceito
de "material" tem aqui caráter "formal", isto é, caráter abstrato de conceito genérico.

§ 10. D o ponto de vista puramente técnico o dinheiro é o m e i o de c á l c u l o e c o n ô -


mico " m a i s p e r f e i t o " , isto é, o m e i o f o r m a l m e n t e mais r a c i o n a l de o r i e n t a ç ã o da a ç ã o
econômica.
O cálculo e m d i n h e i r o — n ã o o uso efetivo do m e s m o — é, portanto, o m e i o
específico da economia de p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o r a c i o n a l c o m vista a fins. O c á l c u l o
e m d i n h e i r o , no caso de m a i o r racionalidade, significa em primeiro lugar.
1. a estimação segundo a situação de mercado (atual o u esperada) de todas as
utilidades o u meios de p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o , do m e s m o m o d o que de todas as oportu-
nidades e c o n ô m i c a s de alguma f o r m a relevantes, consideradas necessárias para determi-
nado f i m de p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o atual o u f u t u r a , que efetiva o u p r o v a v e l m e n t e
estejam disponíveis o u , q u a n d o se encontram e m poder de disposição alheio, p o d e m
ser obtidos o u estão perdidos o u de alguma f o r m a a m e a ç a d o s ;
2. a a v e r i g u a ç ã o n u m é r i c a a ) d a s possibilidades e toda a ç ã o e c o n ô m i c a intencional
e b) do resultado de toda a ç ã o e c o n ô m i c a realizada na f o r m a de u m c á l c u l o e m d i n h e i r o
de " c u s t o " e de " r e n d i m e n t o " , que c o m p a r a entre si as diversas possibilidades, e de
u m e x a m e , que c o m p a r a entre s i os " r e n d i m e n t o s l í q u i d o s " estimados das diversas
f o r m a s de comportamento possíveis, sobre a base desses cálculos;
3. a c o m p a r a ç ã o periódica do conjunto de bens e possibilidades disponíveis a
u m a economia e m r e l a ç ã o aos de que esta dispôs no c o m e ç o do p e r í o d o , e m ambos
os casos e m d i n h e i r o ;
4. a estimação prévia e a v e r i g u a ç ã o posterior daquelas entradas e saídas consis-
tentes o u calculáveis e m d i n h e i r o das quais u m a economia — conservando-se o v a l o r
estimado e m d i n h e i r o do conjunto de seus meios disponíveis (tópico 3 ) — t e m a possibi-
lidade de dispor durante determinado p e r í o d o ;
5. a o r i e n t a ç ã o por esses dados (tópicos 1 a 4) da satisfação de suas necessidades,
empregando-se o d i n h e i r o disponível e m determinado p e r í o d o de c á l c u l o ( c o n f o r m e
tópico 4) p a r a as utilidades desejadas, segundo o princípio da utilidade marginal.
O e m p r e g o e a o b t e n ç ã o (seja p o r p r o d u ç ã o , seja p o r t r o c a ) contínuos de bens
c o m o f i m 1) d e abastecimento p r ó p r i o o u 2) de conseguir outros bens para utilização
própria denominam-se gestão patrimonial. Seu fundamento, p a r a u m i n d i v í d u o ou para
u m g r u p o cuja g e s t ã o e c o n ô m i c a apresenta este caráter, constitui, no caso de procedi-
mento r a c i o n a l , o plano de o r ç a m e n t o , no qual se expressa de que f o r m a d e v e m ser
satisfeitas, mediante a renda esperada, as necessidades previstas de u m p e r í o d o orça-
m e n t á r i o (utilidades o u meios de o b t e n ç ã o para utilização própria).
D e n o m i n a m o s renda de u m a g e s t ã o p a t r i m o n i a l o montante de bens, estimado
e m d i n h e i r o , do q u a l esta dispôs n u m p e r í o d o passado, calculando-se de m a n e i r a racio-
nal segundo o p r i n c í p i o exposto no t ó p i c o 4, o u do qual tem a possibilidade de dispor,
calculando-se de f o r m a r a c i o n a l , para u m p e r í o d o corrente o u futuro.
A estimada soma global de bens que se encontram no poder de disposição de
uma g e s t ã o p a t r i m o n i a l e que — e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s — s e e m p r e g a m constantemente
ou para o uso imediato o u para conseguir alguma r e n d a — avaliando-se estes bens
segundo as oportunidades no m e r c a d o (tópico 3) — denomina-se seu patrimônio.
54 MAX WEBER

O pressuposto do c á l c u l o puramente m o n e t á r i o de u m a gestão patrimonial é que


a r e n d a e o p a t r i m ô n i o consistam o u e m d i n h e i r o o u e m bens transformáveis ( e m
p r i n c í p i o ) e m d i n h e i r o em todo momento mediante a troca, isto é, que apresentem
o m á x i m o absoluto de mercabilidade.
G e s t ã o patrimonial e (desde que se proceda de m a n e i r a r a c i o n a l ) plano de orça-
mento o c o r r e m t a m b é m n o caso de cálculo em espécie, assunto a que logo voltaremos.
Mas este tipo de c á l c u l o desconhece u m " p a t r i m ô n i o " h o m o g ê n e o no sentido de u m a
estimação e m d i n h e i r o , b e m c o m o u m a " r e n d a " h o m o g ê n e a (isto é, estimada e m dinhei-
r o ) É feito c o m base na "posse" de bens e m e s p é c i e e (desde que se limite a f o r m a s
pacíficas de aquisição) de " r e n d i m e n t o s " concretos resultantes do emprego, e m sua
f o r m a natural, de bens e força de trabalho disponíveis, os quais administra, estimando
o m á x i m o da satisfação possível de necessidades, c o m o meios p a r a esta. Q u a n d o se
trata de necessidades dadas e fixas, a f o r m a deste e m p r e g o constitui u m p r o b l e m a
puramente técnico e relativamente fácil de resolver enquanto a situação de abasteci-
mento não e x i j a u m a a v e r i g u a ç ã o exatamente calculada do m á x i m o de utilidade no
e m p r e g o dos meios p a r a c o b r i r as necessidades, e m c o m p a r a ç ã o c o m outros modos
possíveis de e m p r e g o muito h e t e r o g ê n e o s . No caso c o n t r á r i o , m e s m o a gestão patrimo-
nial individual mais simples, sem troca, confronta-se c o m problemas cuja s o l u ç ã o (for-
malmente e x a t a ) mediante cálculos se v ê extremamente limitada e cuja s o l u ç ã o efetiva
costuma apoiar-se e m parte na tradição, e m parte e m estimativas muito aproximadas,
inteiramente suficientes, no entanto, q u a n d o as necessidades e c o n d i ç õ e s de o b t e n ç ã o
s ã o relativamente típicas e facilmente c o m p r e e n s í v e i s . Se a propriedade se c o m p õ e
de bens h e t e r o g ê n e o s (o que necessariamente o c o r r e n o caso da gestão e c o n ô m i c a
sem troca), u m a c o m p a r a ç ã o calculada, f o r m a l m e n t e exata, entre os bens possuídos
n o inicio e no f i m de u m p e r í o d o o r ç a m e n t á r i o , b e m c o m o entre as respectivas probabi-
lidades de rendimentos, somente é possível dentro de classes de bens qualitativamente
iguais. Neste caso, é típico alistá-los c o m o conjunto de bens possuídos e m espécie e
f i x a r determinados contingentes e m espécie, destinados ao consumo, dos quais se s u p õ e
que estejam permanentemente disponíveis s e m d i m i n u i ç ã o daquele conjunto de bens
possuídos. T o d a v a r i a ç ã o na situação de abastecimento (por e x e m p l o , p o r m á s colheitas)
ou nas necessidades exige, p o r é m , novas disposições, u m a v e z que desloca a utilidade
marginal. E m c o n d i ç õ e s simples e facilmente c o m p r e e n s í v e i s , o ajustamento ocorre
s e m dificuldade. E m todos os outros casos é tecnicamente mais difícil do que no do
cálculo puramente e m d i n h e i r o , n o qual todo deslocamento nas probabilidades de deter-
minados p r e ç o s ( e m p r i n c í p i o ) influi apenas sobre aquelas necessidades marginais na
escala de u r g ê n c i a que t ê m de ser satisfeitas c o m as últimas unidades dos rendimentos
e m dinheiro.

A l é m disso, no caso do c á l c u l o e m espécie inteiramente racional (isto é, n ã o v i n c u -


lado à tradição), o c á l c u l o da utilidade m a r g i n a l , que, quando se dispõe de u m patri-
m ô n i o ou de uma renda e m d i n h e i r o se realiza com relativa facilidade, sobre a base
da escala de urgência das necessidades, tropeça c o m u m a grande c o m p l i c a ç ã o . E n q u a n t o
que ali o p r o b l e m a da " m a r g e m " apresenta-se apenas na f o r m a de trabalho adicional
o u de satisfação de u m a necessidade c o m p a r a d a c o m seu sacrifício e m b e n e f í c i o de
outra ( o u o u t r a s ) (pois nisso expressam-se, e m última instância, os " c u s t o s " n u m a gestão
patrimonial monetária), o c á l c u l o e m e s p é c i e encontra-se obrigado a considerar, a l é m
da escala de u r g ê n c i a das necessidades: 1 ) a múltipla aplicabilidade dos meios de obten-
ç ã o , incluindo a quantidade existente até e n t ã o de trabalho total, isto é, uma relação
entre a satisfação das necessidades e o dispêndio (de meios de o b t e n ç ã o e trabalho),
diferente (e v a r i á v e l ) segundo a aplicabilidade e, portanto, 2 ) a quantidade e a natureza
do novo trabalho ao qual o gestor patrimonial se v e r i a obrigado a f i m de conseguir
ECONOMIA E SOCIEDADE 55

novos rendimentos, e 3 ) a q u e s t ã o de c o m o despender e aplicar bens materiais q u a n d o


existem várias possibilidades de o b t e n ç ã o deles. Analisar a possível forma r a c i o n a l destas
considerações é u m a das tarefas mais importantes da teoria e c o n ô m i c a , assim c o m o
o é p a r a a história e c o n ô m i c a perseguir através das é p o c a s históricas o m o d o c o m o
p r o c e d e r a m de fato as gestões patrimoniais calculadoras e m espécie. E m substância,
pode-se dizer: 1 ) que o g r a u de racionalidade f o r m a l na realidade ( e m g e r a l ) n ã o alcan-
ç o u o nível de fato possível a ele ( e , muito menos ainda, o teoricamente postulável),
mas que os cálculos e m e s p é c i e dessas economias, e m sua grande m a i o r i a , s e m p r e
f i c a r a m , e m muitos aspectos, necessariamente vinculados à tradição, e 2 ) q u e , portanto,
as gestões patrimoniais e m grande escala, justamente por n ã o se ter realizado nelas
a e x p a n s ã o e o refinamento das necessidades cotidianas, t e n d e r a m s e m p r e à utilização
extracotidiana (sobretudo artística) de seus excedentes (fundamento da cultura artística,
vinculada a determinado estilo, das é p o c a s da economia de troca e m espécie).

1. É claro que o "patrimônio" não se compõe apenas de bens materiais, mas também
de todas as possibilidades sobre as quais existe um poder de disposição garantido, com alguma
segurança, pelo costume, pela situação de interesses, pela convenção, pelo direito ou de outra
forma qualquer (também a "clientela" de um empreendimento aquisitivo — seja o dono um
médico, um advogado ou um comerciante varejista — pertence ao "patrimônio" deste quando,
por quaisquer motivos, é estável: sabemos que, no caso de apropriação jurídica, a clientela
pode ser "propriedade", conforme a definição do capítulo I , § 10).
2. O cálculo em dinheiro sem uso efetivo do mesmo ou, pelo menos, com uso limitado
a excedentes das quantidades de bens trocados que não puderam ser compensadas em espécie,
é um fenômeno típico nos documentos egípcios e babilónicos; encontramos o cálculo em dinheiro
como medida de uma prestação em espécie, por exemplo, tanto no código de Hamurábi quanto
no direito romano vulgar e no dos inícios da Idade Média, na autorização típica ao devedor
de pagar a respectiva importância em dinheiro: in quopotuerit. (A conversão só podia efetuar-se,
nestes casos, sobre a base de preços internos tradicionais ou forçadamente impostos.)
3. De resto, esta exposição só contém coisas já conhecidas, no interesse de uma fixação
inequívoca do conceito de "gestão patrimonial" racional em oposição ao conceito oposto de
economia racional aquisitiva, do qual logo trataremos. Queremos observar expressamente que
ambas são possíveis em forma racional, que a "satisfação das necessidades", desde que proceda
de maneira racional, não constitui algo "mais primitivo" do que a "aquisição", nem o "patrimô-
nio" é uma categoria necessariamente "mais primitiva" do que o "capital", nem o é a "renda"
mais do que o "lucro". Do ponto de vista histórico, entretanto, e com referência à forma predomi-
nante de considerar assuntos econômicos no passado, é evidente que primeiro vem a "gestão
patrimonial".
4. Não importa quem seja o portador da "gestão patrimonial". O "plano orçamentário"
de um Estado e o "orçamento" de um trabalhador pertencem ambos à mesma categoria.
5. A gestão patrimonial e a gestão aquisitiva não são alternativas exclusivas. Uma "coope-
rativa de consumo", por exemplo, está (normalmente)ao serviço da primeira, mas não constitui
um empreendimento com caráter de gestão patrimonial mas, pela forma de suas atividades,
um empreendimento aquisitivo sem finalidade material aquisitiva. Na ação do indivíduo, a gestão
patrimonial e a aquisitiva podem interpenetrar-se (e este é o caso típico nas épocas passadas)
de tal forma que apenas o ato final (venda ou troca aqui, consumo ali) decide sobre o sentido
da ação (caso especialmente típico entre os pequenos camponeses) A troca característica da
gestão patrimonial (aquisição de bens para o consumo, venda de excedentes) constitui um ele-
mento integrante dessa gestão. Uma gestão patrimonial (de um príncipe ou latifundiário) pode
incluir empresas aquisitivas, no sentido do parágrafo seguinte, o que tipicamente ocorreu no
passado: verdadeiras indústrias se desenvolveram a partir daquelas "empresas acessórias", hete-
rocéfalas e heterônomas, que utilizaram os produtos próprios das florestas e dos campos de
latifundiários, mosteiros ou príncipes. "Empresas" de todas as espécies fazem hoje em dia parte
de gestões patrimoniais, especialmente municipais, mas também estaduais. À "renda" pertence,
naturalmente, calculando-se de maneira racional, apenas o "produto líquido" dessas empresas
56 MAX WEBER

do qual a gestão patrimonial pode dispor. Ao contrário, as empresas aquisitivas podem estabe-
lecer, como instituição acessória, unidades de gestão patrimonial fragmentárias de caráter heterô-
nomo, por exemplo, para a alimentação de seus escravos ou trabalhadores assalariados ("insti-
tuições beneficentes", moradias, cozinhas) O "produto líquido" (tópico 2) são os excedentes
em dinheiro, descontados todos os custos em dinheiro.
6. À significação do cálculo em espécie para o desenvolvimento geral da cultura só podemos
referir-nos aqui com algumas primeiras indicações.

§ 1 1 . C h a m a m o s gestão aquisitiva u m comportamento orientado pelas oportu-


nidades de ganhar ( u m a só v e z o u repetidamente, c o m certa regularidade, isto é, conti-
n u a m e n t e ) novos poderes de disposição sobre bens; atividade aquisitiva, a atividade
que também, entre outros fatores, se orienta pelas oportunidades de aquisição; gestão
aquisitiva econômica, aquela que se orienta por possibilidades pacíficas; gestão aquisi-
tiva segundo o mercado, aquela que se orienta pela situação de mercado; meios de
aquisição, aqueles bens e possibilidades que estão ao serviço da g e s t ã o aquisitiva e c o n ô -
m i c a ; troca aquisitiva, a troca, orientada pela situação de m e r c a d o , para fins de aquisi-
ç ã o , e m o p o s i ç ã o à troca p a r a fins de satisfação de necessidades (troca típica da gestão
patrimonial}, crédito de aquisição, o crédito que se dá o u se aceita a f i m de se obterem
poderes de disposição sobre meios de aquisição.
Própria da g e s t ã o aquisitiva e c o n ô m i c a de caráter racional é u m a f o r m a peculiar
de c á l c u l o e m d i n h e i r o : o cálculo de capital. "Cálculo de capital" significa avaliação
e controle de oportunidades e resultados da g e s t ã o aquisitiva, comparando-se, p o r u m
lado, a importância estimada e m d i n h e i r o de todos os bens de a q u i s i ç ã o (existam estes
e m e s p é c i e o u e m d i n h e i r o ) c o m o p r i n c í p i o de u m a atividade aquisitiva, e, p o r outro
lado, c o m a de todos os bens de aquisição (ainda existentes o u recentemente obtidos)
ao f i m da respectiva atividade, o u n o caso de u m e m p r e e n d i m e n t o aquisitivo c o n t í n u o ,
c o m referência a u m p e r í o d o de c á l c u l o , mediante o balanço inicial e final. Denomina-se
capital a importância estimada e m d i n h e i r o , v e r i f i c a d a a f i m de elaborar n o c á l c u l o
de capital u m b a l a n ç o dos meios de a q u i s i ç ã o disponíveis p a r a os fins de empreen-
dimento. Lucro e p e r d a s ã o , respectivamente, o aumento e a d i m i n u i ç ã o da importância
estimada, verificados n o b a l a n ç o f i n a l , e m r e l a ç ã o à importância do b a l a n ç o inicial.
A probabilidade estimada de o c o r r e r u m a p e r d a n o b a l a n ç o constitui o chamado risco
de capital. Empreendimento e c o n ô m i c o é u m a a ç ã o q u e , de f o r m a a u t ô n o m a , pode
ser orientada pelo c á l c u l o de capital. Essa o r i e n t a ç ã o o c o r r e mediante o cálculo-, o
c á l c u l o p r é v i o d o risco e d o l u c r o a s e r e m esperados, tomando-se determinadas medidas,
e o c á l c u l o posterior, a f i m de controlar os resultados, lucros o u perdas, efetivamente
ocorridos. Rentabilidade significa ( e m caso de procedimento r a c i o n a l ) o l u c r o de u m
p e r í o d o que 1 ) se considera possível na base do c á l c u l o p r é v i o e que o e m p r e s á r i o
pretende realizar mediante determinadas medidas, e que 2 ) c o n f o r m e o c á l c u l o poste-
r i o r , efetivamente se realiza e d o qual a gestão patrimonial do e m p r e s á r i o (ou dos
e m p r e s á r i o s ) pode dispor s e m p r e j u d i c a r possibilidades futuras de rentabilidade e que
geralmente se expressa pelo quociente entre ele e o capital inicial do b a l a n ç o ( o u ,
hoje e m d i a , pela percentagem c o r r e s p o n d e n t e )
E m p r e e n d i m e n t o s baseados n o c á l c u l o d e capital p o d e m estar orientados pelas
oportunidades de aquisição no mercado o u p e l o aproveitamento de outras possibilidades
de aquisição — oriundas, p o r e x e m p l o , das r e l a ç õ e s de poder (arrendamento d o direito
de r e c e b e r tributos, c o m p r a de f u n ç õ e s públicas).
Todas as medidas particulares de e m p r e e n d i m e n t o s racionais orientam-se, me-
diante o c á l c u l o , pela rentabilidade prevista. E m caso de aquisição no mercado, ocálculo
de capital p r e s s u p õ e : 1 ) que p a r a os bens produzidos p e l o empreendimento aquisitivo
ECONOMIA E SOCIEDADE 57

existam possibilidades de venda suficientemente amplas e seguras, estimáveis mediante


o cálculo, portanto (em condições normais) haja mercabilidade, 2 ) que, além disso,
os meios de gestão aquisitiva — meios de obtenção materiais e serviços de trabalho
— possam ser adquiridos no mercado com suficiente segurança e com "custos" previa-
mente calculáveis, e, por fim, 3 ) que também as condições técnicas e jurídicas das
medidas a serem tomadas, desde as relativas aos meios de obtenção até as referentes
à venda dos objetos (transporte, elaboração, armazenamento etc.) tenham custos (em
dinheiro) calculáveis em princípio. A extraordinária significação da calculabilidade ótima
como fundamento do cálculo ótimo de capital aparecerá de novo e repetidamente em
nossas exposições sobre as condições sociológicas da economia. Distanciando-nos da
idéia de que nestas considerações só podem entrar aspectos econômicos, veremos que
a circunstância de o cálculo de capital, como uma das formas fundamentais do cálculo
econômico, ter se desenvolvido apenas no Ocidente deve-se a obstruções de natureza
mais diversa, tanto externas quanto internas.
O cálculo de capital e os cálculos prévios e posteriores do empresário ligado
ao mercado não conhecem, em oposição ao cálculo da gestão patrimonial, a orientação
pela "utilidade marginal", mas sim pela rentabilidade. A probabilidade de haver rentabi-
lidade está condicionada, em última instância, pelas condições de renda e, através destas,
pelas constelações de utilidade marginal dos rendimentos em dinheiro dos quais podem
dispor os últimos consumidores dos bens prontos para o consumo (ou, como se costuma
dizer, pela "capacidade aquisitiva" destes com respeito às mercadorias da respectiva
espécie) Tecnicamente, porém, o cálculo do empreendimento aquisitivo e o da gestão
patrimonial são tão fundamentalmente diferentes quanto a aquisição ou a satisfação
das necessidades a que respectivamente servem. Para a teoria econômica, o consumidor
marginal é quem determina a direção da produção. Na prática, dependendo da situação
de poder, isto só é correto, atualmente, com certas restrições, uma vez que é o "empre-
sário" quem "desperta" e "dirige", em grande parte, as necessidades do consumidor
— desde que este possa comprar.
Todo cálculo racional em dinheiro e, particularmente por isso, todo cálculo de
capital, em caso de aquisição no mercado, está orientado pelas oportunidades de preços
provindas da luta Guta de preços e de concorrência) e de compromisso entre interesses
diversos que ocorrem no mercado. Isso se reflete no cálculo de rentabilidade, de manei-
ra particularmente plástica na forma tecnicamente (até agora) mais desenvolvida da
contabilidade (a chamada contabilidade "por partidas dobradas") no fato de que, atra-
vés de determinado sistema de contas, se toma por base a ficção de processos de troca
entre as diversas seções da empresa ou entre diversas verbas do cálculo, o que tecnica-
mente permite a forma mais perfeita de controle da rentabilidade de cada uma das
medidas tomadas. O cálculo de capital, em sua feição formalmente mais racional, pressu-
põe, portanto, a luta entre os homens, uns contra os outros. E isso se deve ainda
a outra condição muito peculiar. Para nenhuma economia a "sensação de necessidade"
subjetivamente existente pode ser igual à necessidade efetiva, isto é, à necessidade
que se deve tomar por base para a satisfação através da obtenção de bens. Pois a questão
de se aquela sensação subjetiva pode ser satisfeita ou não depende, por um lado, da
escala de urgência e, por outro, dos bens (existentes ou, em regra, ainda a serem
obtidos, segundo a urgência) provavelmente disponíveis para a satisfação. Frustra-se
a satisfação quando, estando cobertas as necessidades precedentes em termos de urgên-
cia, as utilidades necessárias para esta satisfação não existem, ou não podem ser obtidas
de modo algum, ou apenas com tal sacrifício de força de trabalho ou bens materiais
que se prejudicariam necessidades futuras consideradas mais urgentes já pela estimativa
precedente. Isso ocorre em toda economia de consumo, mesmo na comunista.
58 MAX WEBER

N u m a e c o n o m i a c o m c á l c u l o de capital (portanto, c o m a p r o p r i a ç ã o dos m e i o s


de o b t e n ç ã o pelas economias particulares e, portanto, com "propriedade" — (veja
capítulo I , § 1 0 ) isso significa que a rentabilidade depende dos preços que os " c o n s u m i -
d o r e s " p o d e m e q u e r e m pagar (segundo a utilidade m a r g i n a l do d i n h e i r o e de acordo
c o m seus r e n d i m e n t o s ) s ó se pode p r o d u z i r de f o r m a rentável p a r a aqueles c o a s u m i -
dores q u e d i s p õ e m ( c o n f o r m e aquele p r i n c í p i o ) de rendimentos correspondentes. A
satisfação das necessidades d e i x a d e se r e a l i z a r n ã o apenas q u a n d o há necessidades
(próprias) mais urgentes, mas t a m b é m q u a n d o existe capacidade aquisitiva (alheia) m a i s
forte do que a p r ó p r i a , c o m respeito a necessidades d e todas as espécies. O pressuposto
da luta entre os homens n o m e r c a d o , uns contra os outros, c o m o c o n d i ç ã o da existência
do c á l c u l o r a c i o n a l e m d i n h e i r o , p r e s s u p õ e , portanto, p o r sua v e z e de f o r m a absoluta,
a influência decisiva do resultado pelas possibilidades de oferecer p r e ç o s mais elevados,
p o r parte dos consumidores que d i s p õ e m de m a i o r e s rendimentos, o u pelas possibi-
lidades d e v e n d e r p o r p r e ç o s mais b a i x o s , p o r parte d a s produtores m a i s b e m equipados
para a o b t e n ç ã o d e tens — especialmente p o r parte daqueles que possuem poderes
de disposição sobre d i n h e i r o o u outros tens importantes p a r a a o b t e n ç ã o , Especialmente
p r e s s u p õ e p r e ç o s efetivos—e n ã o apenas p r e ç o s fictícios, convencionalmente estabele-
cidos p a r a fins técnicos quaisquer — e, portanto, d i n h e i r o efetivo que c i r c u l e c o m o
m e i o d e troca d e m a n d a d o (e n ã o tenha apenas caráter s i m b ó l i c o , p a r a fins de cálculos
técnicos nas e m p r e s a s ) A o r i e n t a ç ã o pela probabilidade d e determinados p r e ç o s e m
d i n h e i r o e pela rentabilidade i m p l i c a , portanto, 1 ) que as d i f e r e n ç a s entre os diversos
interessados n a troca quanto ao abastecimento e m d i n h e i r o o u e m outros tens especifi-
camente m e r c á v e i s se t o r n a m decisivas p a r a a d i r e ç ã o que t o m a a o b t e n ç ã o o u a p r o d u -
ç ã o de tens, desde que esta tenha finalidade l u c r a t i v a , u m a v e z que s ó s ã o e p o d e m
ser satisfeitas as necessidades c o m " p o d e r a q u i s i t i v o " . I m p l i c a , portanto, 2 ) que a ques-
tão de quais s e j a m as necessidades a s e r e m cobertas mediante a o b t e n ç ã o de tens
depende inteiramente da rentabilidade o u o b t e n ç ã o dos respectivos tens. E s t a , p o r
sua v e z , constitui u m a categoria formalmente r a c i o n a l , m a s que justamente p o r isso
se comporta c o m i n d i f e r e n ç a e m face de postulados materiais, a n ã o ser que estes
sejam capazes de se ap resenta re m n o m e r c a d o na f o r m a de poder aquisitivo suficiente.

D e n o m i n a m o s bens de capital ( e m o p o s i ç ã o a objetos possuídos o u parcelas de


u m p a t r i m ô n i o ) todos aqueles bens dos quais se d i s p õ e sob o r i e n t a ç ã o p o r u m c á l c u l o
de capital. C h a m a m o s juros de capital — e m o p o s i ç ã o aos j u r o s de e m p r é s t i m o das
diversas espécies possíveis: 1 ) a possibilidade m í n i m a de rentabilidade, considerada
n o r m a l , n a base d o c á l c u l o de rentabilidade, c o m respeito a determinados meios de
a q u i s i ç ã o materiais; 2 ) os j u r o s pelos quais os empreendimentos aquisitivos obtêm d i -
n h e i r o o u tens de capital.

A exposição contém apenas fatos já conhecidos numa forma um tanto mais especificada.
Quanto ao caráter técnico do cálculo de capital, cabe recorrer às exposições correntes, em parte
excelentes, da teoria do cálculo (Leitner, Schãr e t c . )
1) O conceito de capital tem aqui um rigoroso sentido "contábil" e de economia privada,
como impõem as razões de conveniência. Esta terminologia colide menos com o uso corrente
da linguagem do que com a terminologia de que infelizmente se costumava servir a linguagem
científica, de maneira pouco homogênea de resto. Para comprovar em sua aplicabilidade a termi-
nologia rigorosamente referida à economia privada, recentemente cada vez mais utilizada pela
linguagem cientifica, basta fazer as seguintes perguntas, bem simples: O que significa quando
l ) u m a sociedade por ações possui um "capital nominal" de um milhão, quando 2)este se "reduz"
e quando 3 ) as leis contêm regulamentos referentes ao capital nominal determinando, por exem-
plo, o que deve ser investido a favor desse capital e como isso deve ser feito. Significa que
(com respeito ao item 1 ) na distribuição do lucro, se procede de tal modo que só se pode
ECONOMIA E SOCIEDADE 59

assentar como "lucro" o excedente total do "ativo" sobre o "passivo", averiguado mediante
o inventário, estimado corretamente em dinheiro e que supera um milhão, podendo só este
importe ser distribuído entre interessados para qualquer aplicação (no caso de uma empresa
individual: que só esse excedente pode ser consumido para fins da gestão patrimonial da empresa)
Significa que (com respeito ao item 2), em caso de grandes perdas, não se deve esperar o momento
em que, talvez só muitos anos depois, mediante a acumulação de eventuais lucros, se chega
a um excedente total de mais de um milhão, mas que se pode distribuir o "lucro" na base
de um excedente total menor: justamente para isso precisa-se reduzir o "capital", e esta é a
finalidade da operação. 3 ) A finalidade dos regulamentos referentes ao modo em que o capital
nominal deve ser coberto e ao momento e ao modo em que pode ser "reduzido" ou "aumentado"
é esta: dar aos credores e acionistas a garantia de que a distribuição do lucro ocorre "correta-
mente", de acordo com as regras do cálculo racional de empresa, isto é que a) mantém-se
a rentabilidade e b) isso não acarreta a redução da garantia real dos credores. Os regulamentos
referentes aos "rendimentos" referem-se todos à inclusão de objetos na conta do "capital".
4) Que significa dizer "o capital dirige-se a outros investimentos" (por falta de rentabilidade)?
Isso pode referir-se ao "patrimônio", pois "investir" é uma categoria da administração de bens
e não da atividade aquisitiva. Pode também (raramente) significar que os bens de capital perdem
em parte essa qualidade por serem vendidos como rebotalho ou ferro-velho, em parte novamente
a adquirem. 5) O que significa quando se fala do "poder do capital"? Significa que os que
têm poderes de disposição sobre meios de aquisição e possibilidades econômicas utilizáveis num
empreendimento aquisitivo como bens de capital, ocupam, em virtude desses poderes de dispo-
sição e em virtude da orientação da gestão econômica pelos princípios do cálculo aquisitivo
capitalista, uma posição de poder específica diante de outros.
Já nos primórdios de atos aquisitivos racionais, o capital (mas não com este nome) aparece
como importe calculado em dinheiro: assim, por exemplo, na commenda Bens de diversas
espécies eram entregues a um comerciante viajante para sua venda num mercado estrangeiro
e — eventualmente — para a compra de outros bens destinados ao mercado próprio, repartin-
do-se os ganhos e as perdas, em determinada proporção, entre os participantes do empreen-
dimento: o comerciante viajante e o dono do capital. Para se poder realizar isso, os bens tinham
de ser estimados em dinheiro — fazendo-se, portanto, um balanço inicial e outro final do em-
preendimento: o "capital" da commenda (ou: sodetas maris) constituía o importe dessa estima-
ção, importe que servia exclusivamente para fins de cálculo entre os participantes e para mais
nada.
Que significa dizer "mercado de capital"? Significa que há bens — especialmente dinheiro
—, solicitados com o fim de empregá-los como bens de capital, e empreendimentos aquisitivos
(particularmente "bancos" de determinada espécie) encarregados de colocá-los à disposição
(especialmente dinheiro) para aquele fim, daí obtendo lucro. No caso do chamado "capital de
empréstimo" — entrega de dinheiro contra a devolução do mesmo importe, com ou sem "juros"
—, nós só falaremos de "capital" quando o empréstimo constitui a atividade essencial de um
empreendimento aquisitivo; em todos os demais casos, falaremos simplesmente de "empréstimo
em dinheiro". No uso corrente fala-se de "capital" sempre que se pagam "juros", uma vez
que estes costumam ser calculados como determinada quota do importe total: é só por causa
desta função de cálculo que o importe em dinheiro de um empréstimo ou depósito é chamado
"capital". No entanto, não há dúvida de que esta é a origem do termo (capitale = importe
total do empréstimo; segundo se afirma — mas não há prova —, significa a soma de "cabeças"
nos contratos sobre o empréstimo de gado) Contudo, isto não tem importância. Já nos primórdios
de nossa história encontramos a entrega de bens em espécie estimados segundo seu valor em
dinheiro, sobre a base do qual se calculavam os juros, de modo que também neste caso os
"bens de capital" e o "cálculo de capital" aparecem lado a lado numa forma que desde então
é típica. No caso de um simples empréstimo, que, como é sabido, forma parte de toda adminis-
tração de bens, não falaremos de "capital de empréstimo", com referência ao emprestador,
quando serve para fins de gestão patrimonial. Tampouco, naturalmente, do ponto de vista do
prestatário.
O conceito de'' empreendimento'' corresponde ao corrente, só que salientamos expressa-
mente a orientação pelo cálculo de capital, que na maioria das vezes é pressuposta como evidente,
60 MAX WEBER

a fim de indicar que nem toda atividade aquisitiva como tal pode ser chamada'' empreendimento'',
senào apenas aquela que é suscetível de se orientar pelo cálculo de capital (quer se trate de
capitalismo em escala gigantesca ou "minúscula") Por outro lado, é indiferente se esse cálculo
de capital se realiza de fato de maneira racional, sendo efetuado segundo princípios racionais.
Do mesmo modo, só falaremos de "lucro" e "perda" com referência a empreendimentos com
cálculo de capital. É claro que para nós as atividades aquisitivas sem interferência de capital
(do escritor, médico, advogado, funcionário público, professor, empregado, técnico, trabalha-
dor) constituem "ganho", mas não as chamamos de "lucro" (tampouco é de uso corrente essa
forma) "Rentabilidade" é um conceito aplicável a rodo ato aquisitivo suscetível de cálculo, de
forma independente, com os meios da técnica da contabilidade comercial (contratação de determi-
nado trabalhador ou instalação de determinada máquina, determinação de pausas no trabalho
etc.)
Para a definição do conceito de "juros de capital" não é conveniente partir dos juros
estipulados para um empréstimo. Quando alguém ajuda um camponês com sementes de cereais,
estipulando com ele determinado acréscimo ao devolvê-las, ou quando a mesma coisa ocorre
com dinheiro que uma gestão patrimonial necessita e outra pode dar, não é conveniente desig-
nar-se este processo como "capitalista". Estipula-se o acréscimo (os "juros") — em caso de
procedimento racional — porque o prestatário, considerando suas probabilidades de abasteci-
mento em caso de tomar o empréstimo, espera que estas superarão o acréscimo estipulado,
em oposição às previstas para o caso de renúncia ao empréstimo, enquanto que o emprestador
conhece essa situação e tira proveito dela, na medida em que a utilidade marginal de sua disposição
sobre os bens emprestados, nesse momento, está superada pela utilidade marginal do acréscimo
estipulado para o momento da devolução. Trata-se aqui ainda de categorias da gestão orçamen-
tária e da administração de bens, mas não do cálculo de capital. Do mesmo modo, quem, em
caso de necessidade, pede a um "judeu do dinheiro" um empréstimo para fins de consumo
próprio não paga "juros de capital" no sentido desta terminologia, mas trata-se de um pagamento
para remunerar o empréstimo. O emprestador profissional calcula (em caso de gestão econômica
racional) os "juros" que receberá de seu capital comercial e sofrerá "prejuízo" se esse grau
de rentabilidade não for alcançado, por não serem devolvidas certas quantias emprestadas. Estes
juros constituem, para nós, "juros de capital"; todos os demais são simplesmente "juros". "Juros
de capital", no sentido desta terminologia, são, portanto, sempre juros do capital, e não para
o capital, e estão sempre ligados a estimativas em dinheiro e, por conseguinte, ao fato sociológico
do poder de disposição "privado", isto é, apropriado, sobre meios de aquisição, sujeitos ou
não ao mercado, poder sem o qual não poderia haver um cálculo de "capital", tampouco, em
conseqüência, um cálculo de "juros". No empreendimento aquisitivo racional, os juros calcula-
dos, por exemplo, sobre uma partida que aparece como "capital" representam o mínimo de
rentabilidade, por cuja obtenção ou não se aprecia a idoneidade da respectiva forma de emprego
dos bens de capital em questão ("idoneidade", naturalmente, do ponto de vista de aquisição,
isto é, de rentabilidade) A taxa pela qual se calcula esse mínimo de rentabilidade orienta-se,
como é sabido, apenas aproximadamente pelas possibilidades atuais de juros para créditos ofere-
cidos no "mercado de capital", apesar de que, naturalmente, seja a existência desses créditos
que suscita essas medidas de cálculo, assim como a existência da troca mercantil suscita os assenta-
mentos nas contas. No entanto, a explicação daquele fenômeno fundamental da economia capita-
lista: o de que continuamente se efetuam pagamentos em remuneração por "capitais de emprés-
timos" — por empresários —, só pode ser obtida mediante a resposta a esta pergunta: por
que os empresários, em média, têm sempre boas possibilidades de alcançar certa rentabilidade
apesar de pagar essa remuneração aos emprestadores, ou seja, quais são as condições gerais
pelas quais, em média, a troca de 100 unidades presentes por 100 + x unidades futuras é racional?
A teoria econômica, nesse caso, responderá com a relação de utilidade marginal entre bens
presentes e bens futuros. Bem, para o sociólogo seria, então, interessante saber em que ação
humana essa suposta relação se manifesta de modo que as pessoas atingidas podem tomar por
base de suas operações as conseqüências dessa estimação diferencial, sob a forma de "juros".
Pois a questão de quando e onde isso ocorre não é de modo algum evidente. Isso de fato ocorre,
como é sabido, nas economias aquisitivas. Decisiva, em primeiro lugar, é a relação de poder
econômica entre os empreendimentos aquisitivos, por um lado, e as gestões patrimoniais, por
ECONOMIA E SOCIEDADE 61

outro, entre aqueles que consomem os bens oferecidos e aqueles que oferecem certos meios
de obtenção (sobretudo trabalho). Empreendimentos econômicos só são fundados e continuam
funcionando (em forma capitalista)quando se espera o mínimo dos "juros de capital". A teoria
econômica, que pode ser bem diversa, diria, então, que aquele aproveitamento da situação
de poder — conseqüência da propriedade privada dos meios de produção e dos produtos —
possibilita apenas à primeira categoria de sujeitos econômicos uma gestão econômica, por assim
dizer, "adaptada aos juros".
2. Externamente, a administração de patrimônio e o empreendimento aquisitivo podem
parecer aproximar-se até a identidade. A primeira só se distingue de fato da segunda pelo sentido
último concreto da gestão econômica: o aumento e a manutenção da rentabilidade e da posição
de poder no mercado pela empresa, por um lado, e a segurança e aumento do patrimônio
e da renda, por outro. Na prática, porém, este último sentido não tende necessariamente de
modo exclusivo a uma das alternativas, nem é possível decidir-se, em cada caso, de qual delas
se trata. Quando, por exemplo, o patrimônio do gerente de uma empresa coincide por completo
com o poder de disposição sobre os meios de gestão empresarial, sendo o lucro idêntico à
renda, ambas parecem andar de mãos dadas. Mas circunstâncias da vida pessoal, de todo tipo,
podem levar o gerente a tomar, na gerência da empresa, um caminho irracional, irracional
do ponto de vista da orientação pela racionalidade do funcionamento da empresa. Mas, sobretudo,
na maioria dos casos não coincidem patrimônio e disposição sobre a empresa. Além disso, dívidas
pessoais excessivas do proprietário, interesse pessoal em receitas atuais elevadas, partilhas de
herança etc. exercem muitas vezes uma influência altamente irracional — do ponto de vista
dos interesses da empresa — sobre a gerência desta, o que leva freqüentemente à adoção de
medidas que possam eliminar por completo esse tipo de influência (fundação de empresas familia-
res em forma de sociedades por ações, por exemplo) Essa tendência à separação entre gestão
patrimonial e empresa não é casual. Provém da circunstância de que o patrimônio e seu destino,
do ponto de vista da empresa, e os interesses dos proprietários em obter determinados rendi-
mentos, do ponto de vista da rentabilidade, são fatores irracionais. Assim como o cálculo de
rentabilidade de uma empresa nada nos diz sobre as possibilidades de provisão das pessoas
interessadas, em sua qualidade de trabalhadores ou consumidores, os interesses no patrimônio
ou nos rendimentos, por parte de um indivíduo ou de uma associação com poder de disposição
sobre a empresa, não se orientam necessariamente pelo máximo persistente de rentabilidade
da empresa ou pela situação de poder no mercado. (Isso também não ocorre, naturalmente
— e precisamente não costuma ocorrer —, quando o poder de disposição sobre a empresa
aquisitiva está nas mãos de uma "cooperativa de produção".) Os interesses objetivos de uma
gerência racional moderna de uma empresa não são, de modo algum, idênticos aos interesses
pessoais do detentor ou dos detentores do poder de disposição, e até muitas vezes se opõem:
isso significa a separação, em princípio, entre "gestão patrimonial" e "empresa", mesmo nos
casos em que os "donos" do poder de disposição e os "donos" dos objetos dos quais se dispõe
são os mesmos.
Por motivos de conveniência, a separação entre "gestão patrimonial" e "empresa aquisi-
tiva" deveria ser adotada e mantida rigorosamente também pela terminologia. Uma compra
de "valores" por um rentista, a fim de desfrutar dos rendimentos em dinheiro, não é investimento
de'' capital'', mas de patrimônio. Um empréstimo em dinheiro concedido por uma pessoa particu-
lar, a fim de adquirir o direito aos juros, não é a mesma coisa, do ponto de vista do emprestador,
que um empréstimo em dinheiro concedido por um banco ao mesmo prestatário; diferem tam-
bém, do ponto de vista do prestatário, um empréstimo em dinheiro dado a um consumidor
ou a um empresário (para fins lucrativos) no primeiro caso, trata-se de investimento de capital
por parte do banco, no segundo, de obtenção de capital por pane do empresário. Mas o investi-
mento de capital pelo emprestador, no primeiro caso, pode ter, para o prestatário, o caráter
de um simples empréstimo para fins de sua gestão patrimonial; a aceitação de capital por ele,
no segundo caso, pode ter, para o emprestador, o caráter de um simples "investimento de
patrimônio". A fixação das diferenças entre patrimônio e capital, gestão patrimonial e empresa
aquisitiva não é sem importância, uma vez que, sem fazer essa distinção, não se pode chegar,
especialmente, à compreensão do desenvolvimento na Antiguidade e dos limites do capitalismo
daquela época (para este problema, ainda são importantes os conhecidos estudos de RODBERTVS,
62 MAX WEBER

apesar de todos seus equívocos e apesar de eles serem incompletos — e, como complemento,
as exposições acertadas de K. BÜCHER).
3. Nem todos os empreendimentos aquisitivos com cálculo de capital estavam ou estão
orientados pelo mercado "em sentido duplo", isto é, tanto comprando no mercado os meios
de obtenção ou produção quanto oferecendo nele os produtos (ou resultados finais) Arrenda-
mentos de tributos e financiamentos das mais diversas espécies são efetuados com cálculo de
capital sem que ocorra o último processo. As conseqüências, muito importantes, serão expostas
mais adiante. Trata-se, nestes casos, de atividades aquisitivas com cálculo de capital, mas sem
orientação pelo mercado.
4. Diferenciamos aqui, por motivos de conveniência, atividade aquisitiva e empresa aquisi-
tiva. Realiza uma atividade aquisitiva aquele que, em determinada forma, atua, pelo menos
entre outras coisas, com o fim de adquirir bens (na forma de dinheiro ou em espécie) que
ainda não possui. Isto se aplica, portanto, tanto ao funcionário público ou ao trabalhador quanto
ao empresário. Por outro lado, só chamamos empresa aquisitiva de mercado aquele tipo de
atividade aquisitiva que se orienta continuamente pelas oportunidades no mercado mediante
o emprego de bens como meios de aquisição para obter dinheiro no momento da troca, ou
a ) mediante a produção e venda de bens procurados ou b) mediante o oferecimento de serviços
procurados — seja por troca livre ou por aproveitamento de oportunidades apropriadas como
nos casos expostos no parágrafo anterior. Não apresenta "atividade aquisitiva", no sentido desta
terminologia, o rentista, por mais racional que seja sua "gestão econômica" com respeito a
sua propriedade.
5. Ainda que teoricamente seja evidente a circunstância de que as estimativas da utilidade
marginal pelos últimos consumidores, vinculadas aos rendimentos destes, determinam a direção
na rentabilidade das empresas aquisitivas produtoras de bens, a Sociologia não deve ignorar
o fato de que a "cobertura de necessidades capitalistas" a ) "desperta" novas necessidades e
faz com que outras, anteriores, desapareçam, eb) influi, em alto grau, mediante sua propaganda
agressiva, sobre a satisfação de necessidades pelos consumidores, qualitativa e quantitativamente.
Isto constitui precisamente uma de suas características essenciais. No entanto, cabe dizer que,
na maioria destes casos, não se trata de necessidades de urgência máxima. Mas também o tipo
de alimentação ou habitação, numa economia capitalista, está determinado, em grande medida,
por aqueles que as oferecem.

, § 12. O cálculo em espécie pode apresentar-se nas c o m b i n a ç õ e s mais d i v e r s a s .


Fala-se de economia monetária no sentido de u m a economia c o m uso típico de d i n h e i r o
e, portanto, orientada pelas situações de m e r c a d o estimadas e m dinheiro; fala-se de
economia natural no sentido de u m a economia sem uso de d i n h e i r o , podendo-se, de
acordo c o m isso, d i f e r e n c i a r as economias historicamente dadas segundo o g r a u e m
que e m p r e g a m ou n ã o dinheiro.
A economia natural, p o r sua v e z , n ã o é u m a coisa exatamente definida, mas pode
apresentar estruturas b e m diversas. Pode significar
a) u m a economia absolutamente sem troca, o u
b) u m a economia com troca e m e s p é c i e , s e m e m p r e g o de dinheiro c o m o meio
de troca.
No p r i m e i r o caso (a), pode ser tanto
a ) u m a economia i n d i v i d u a l , de g e s t ã o e c o n ô m i c a 1) plenamente comunista o u
2 ) cooperativista ( c o m c á l c u l o na base de participação), e e m ambos os casos sem qual-
q u e r autonomia o u autocefalia dos participantes individuais: economia doméstica fecha-
da, quanto
) 3 ) u m a c o m b i n a ç ã o de diversas economias individuais, e m todos os demais aspec-
tos a u t ô n o m a s e autocéfalas, todas elas obrigadas a prestações e m espécie destinadas
a uma economia central (existente p a r a satisfazer às necessidades senhoriais o u da coope-
r a t i v a ) economia de prestações em espécie (oikos, associação política rigorosamente
litúrgica [baseada e m prestações ( N . T . ) ] .
ECONOMIA E SOCIEDADE 63

E m ambos os casos, dada a p u r e z a de tipo ( o u na m e d i d a e m que esta seja suficien-


te), s ó se conhece o c á l c u l o em espécie.
No segundo caso ( b ) , ela pode ser
a) e c o n o m i a n a t u r a l c o m troca p u r a m e n t e e m e s p é c i e , s e m uso de d i n h e i r o e
s e m cálculo e m d i n h e i r o (economia p u r a de troca e m e s p é c i e ) , o u
j8) economia de troca e m e s p é c i e c o m cálculo (ocasional o u típico) e m d i n h e i r o
( c o m p r o v a d a , c o m o tipo, n o antigo O r i e n t e , mas t a m b é m muito divulgada e m outros
lugares).
Para os p r o b l e m a s de cálculo e m espécie somente oferece interesse o caso a a
e m suas duas f o r m a s , o u e n t ã o u m a situação especial do caso a /3 q u a n d o as prestações
s ã o efetuadas e m unidades racionais de empresa, c o m o seria inevitável, mantida a
técnica m o d e r n a , n o caso de u m a " s o c i a l i z a ç ã o t o t a l " .
T o d o c á l c u l o e m e s p é c i e está orientado, segundo sua essência mais íntima, pelo
consumo: satisfação de necessidades. É evidente que t a m b é m na base da economia
natural pode-se r e a l i z a r u m a atividade correspondente à " a q u i s i t i v a " . Isso o c o r r e de
f o r m a que a ) e m caso de e c o n o m i a n a t u r a l sem troca, os meios disponíveis de o b t e n ç ã o
o u p r o d u ç ã o , e m e s p é c i e , e o trabalho s ã o empregados na p r o d u ç ã o e o b t e n ç ã o de
bens, segundo u m plano e sobre a base de u m c á l c u l o n o qual se c o m p a r a o estado
de satisfação de necessidades a ser a l c a n ç a d o c o m aquele que acontecefia s e m satisfação
alguma c u e m caso de e m p r e g o alternativo dos respectivos meios, considerando-se
o p r i m e i r o m a i s vantajoso do ponto de vista da g e s t ã o patrimonial. O u o c o r r e de f o r m a
que b ) , e m caso de e c o n o m i a de troca e m e s p é c i e , se p r o c u r a alcançar planejadamente,
mediante a troca efetuada exclusivamente e m espécie (eventualmente: e m atos repeti-
dos), u m abastecimento de bens que, comparado c o m o que existiu antes, na ausência
dessas medidas, é avaliado c o m o p r o m o v e n d o u m a satisfação mais abundante das neces-
sidades. Mas, só q u a n d o se trata de bens qualitativamente iguais, pode-se realizar u m a
c o m p a r a ç ã o numérica, inequívoca e s e m estimativas inteiramente subjetivas. Natural-
mente, é possível criar determinadas deputações típicas de consumo, c o m o aquelas
e m que se b a s e a v a m as ordens de salários e prebendas pagos e m e s p é c i e , particu-
larmente no O r i e n t e (e que até se t o r n a v a m objetos de circulações, à s e m e l h a n ç a de
nossos valores públicos). E m caso de bens tipicamente muito semelhantes (cereais do
vale do Nilo), o armazenamento c o m o p e r a ç õ e s de g i r o (como n o E g i t o ) e r a tecnicamente
tão viável quanto o de b a r r a s de prata c o m o cobertura p a r a bilhetes emitidos p o r u m
banco. D o m e s m o m o d o (e isto é mais i m p o r t a n t e ) pode-se a v e r i g u a r n u m e r i c a m e n t e
o resultado técnico de determinado processo de p r o d u ç ã o e c o m p a r á - l o c o m processos
técnicos de natureza diferente. No caso de produto f i n a l igual, isso t a m b é m pode dar-se
segundo a natureza e quantidade dos meios de p r o d u ç ã o exigidos. O u , ainda, n o caso
de meios de p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o iguais, segundo os produtos finais diferentes, c o m
procedimentos diversos. N e m s e m p r e , mas muitas v e z e s , é possível, nesses casos, a
c o m p a r a ç ã o n u m é r i c a e m importantes problemas parciais. Mas o simples " c á l c u l o "
c o m e ç a a tornar-se p r o b l e m á t i c o n o m o m e n t o e m que d e v e m ser considerados meios
de p r o d u ç ã o d e natureza d i v e r s a e de múltipla aplicabilidade o u produtos finais qualitati-
vamente diferentes.

Na v e r d a d e , todo empreendimento capitalista continuamente efetua e m seus cálcu-


los o p e r a ç õ e s de contas e m espécie. D a d o u m tear de determinada construção, c o m
u r d u m e e fio de determinada qualidade, averigua-se, c o m os seguintes fatores dados:
capacidade das m á q u i n a s , g r a u de umidade d o a r e c o n s u m o de c a r v ã o , lubrificante,
material de desbaste etc., o n ú m e r o de tramas p o r h o r a e trabalhador — e isto c o m
respeito a cada trabalhador individual — e, c o m base nisso, o n ú m e r o de unidades
do produto que lhe cabe p r o d u z i r e m determinado e s p a ç o de tempo. Nas indústrias
64 MAX WEBER

e m cuja p r o d u ç ã o a p a r e c e m sobras o u produtos acessórios tipicos, essa a v e r i g u a ç ã o


pode s e r feita sem qualquer c á l c u l o e m d i n h e i r o , c o m o de fato é. D o m e s m o m o d o
p o d e m ser determinados e realmente se d e t e r m i n a m , mediante o c á l c u l o e m espécie,
e m circunstâncias dadas, a necessidade n o r m a l a n u a l de matéria-prima de u m a empresa,
estimada segundo sua capacidade técnica de e l a b o r a ç ã o , o p e r í o d o de desgaste p a r a
edifícios e m á q u i n a s , e os prejuízos típicos devidos a estrago, perda o u desperdício
de m a t e r i a l . Mas a c o m p a r a ç ã o de processos de p r o d u ç ã o de natureza diversa e c o m
meios de p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o de espécie diferente e múltipla aplicabilidade é u m a
coisa que o c á l c u l o de rentabilidade das empresas m o d e r n a s realiza facilmente c o m
base nos custos e m d i n h e i r o , enquanto o c á l c u l o e m e s p é c i e tropeça aqui c o m problemas
difíceis, p a r a os quais n ã o encontra s o l u ç ã o " o b j e t i v a " . É certo que — aparentemente
sem n e c e s s i d a d e — o c á l c u l o de capital, e m suas o p e r a ç õ e s efetivas nas empresas moder-
nas, adota de fato a f o r m a de c á l c u l o e m d i n h e i r o m e s m o na ausência dessas dificul-
dades. Mas isso, pelo m e n o s e m parte, n ã o é casual. Q u a n d o m e n o s porque, p o r e x e m p l o
n o caso das " a m o r t i z a ç õ e s " , p a r a cuidar das futuras c o n d i ç õ e s de p r o d u ç ã o de u m a
e m p r e s a , esta é a f o r m a que combina a liberdade de a ç ã o dotada do m á x i m o de p r o n -
tidão adaptativa (quando e m todo caso de a r m a z e n a m e n t o de provisões o u de quaisquer
outras medidas efetuadas e m e s p é c i e sem este m e i o de controle, essa a ç ã o seria irracio-
nal e fortemente i n i b i d a ) ao m á x i m o de segurança. É difícil imaginar que f o r m a deve-
r i a m ter, n o c á l c u l o e m e s p é c i e , os " f u n d o s de r e s e r v a " n ã o especificados. A l é m disso,
dentro de u m a empresa apresenta-se o p r o b l e m a da existência o u n ã o de elementos
que, do ponto de vista t é c n i c o e concreto, trabalham de u m m o d o i r r a c i o n a l ( = n ã o
rentável), e de se estes existem, quais s ã o eles, e p o r que, isto é, quais elementos
dos gastos e m espécie (custos, d o ponto de vista do c á l c u l o de capital) d e v e r i a m ser
poupados e, sobretudo, empregados de m o d o mais racional p o r outra parte, problema
que pode ser resolvido c o m relativa facilidade e segurança mediante u m a v e r i f i c a ç ã o
das r e l a ç õ e s , e m dinheiro, entre " u t i l i d a d e " e " c u s t o s " que constam nos l i v r o s — pro-
cesso e m que entra t a m b é m , c o m o índice, o d é b i t o dos juros de capital na conta — ,
mas que apresenta e x t r e m a dificuldade mediante u m c á l c u l o e m e s p é c i e de natureza
qualquer e é resolvido apenas e m casos muito simples e de f o r m a muito sumária.
(Não se trata a q u i , p r o v a v e l m e n t e , de limites casuais que possam ser superados por
u m " a p e r f e i ç o a m e n t o " do m é t o d o de c á l c u l o , mas de limites fundamentais de toda
tentativa de calcular e m e s p é c i e de m a n e i r a realmente exata. Contudo, esta questão
ainda poderia ser discutida, e m b o r a n ã o c o m argumentos provindos do sistema de
T a y l o r e c o m a hipótese de alcançar algum " p r o g r e s s o " , mediante u m c á l c u l o qualquer
de p r ê m i o s o u pontos, sem emprego de d i n h e i r o . Pois o problema é precisamente
o de c o m o descobrir e m que ponto de u m a e m p r e s a esses meios p o d e r i a m eventual-
mente s e r aplicados, porque justamente nele existem irracionalidades a s e r e m e l i m i -
nadas — irracionalidades e m cuja exata averiguação o c á l c u l o e m espécie tropeça c o m
dificuldades inexistentes na v e r i f i c a ç ã o c o m base n o d i n h e i r o . ) O c á l c u l o e m espécie
c o m o fundamento do c á l c u l o nas empresas (as quais, neste caso, d e v e m ser consideradas
empreendimentos heterocéfalos e h e t e r ô n o m o s de u m a d i r e ç ã o planificada da p r o d u ç ã o
o u o b t e n ç ã o de b e n s ) encontra seus limites de racionalidade n o p r o b l e m a da imputação,
o q u a l , p a r a este tipo de c á l c u l o , n ã o se apresenta na simples f o r m a de u m a verificação
segundo os l i v r o s de contabilidade, mas, s i m , n a f o r m a extremamente controvertida
que possui na " t e o r i a da utilidade m a r g i n a l " . O c á l c u l o e m e s p é c i e , para fins de u m a
permanente administração racional dos meios d e p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o , teria de estabe-
lecer " Í n d i c e s de valor" p a r a cada u m dos objetos, os quais t e r i a m de assumir a f u n ç ã o
dos " p r e ç o s d e b a l a n ç o " na contabilidade m o d e r n a . E essa hipótese ainda n ã o inclui
a q u e s t ã o de c o m o esses índices poderiam ser desenvolvidos e controlados-, seja de
ECONOMIA E SOCIEDADE 65

modo i n d i v i d u a l , diferentes p a r a cada e m p r e s a (segundo a l o c a l i z a ç ã o ) seja de m o d o


geral, considerando-se a " u t i l i d a d e s o c i a l " , q u e r dizer, as necessidades de consumo
(atuais e futuras)
N ã o adianta aqui supor que a l g u m sistema d e c á l c u l o será " e n c o n t r a d o " o u i n v e n -
tado u m a v e z enfrentado de u m m o d o decidido o p r o b l e m a da e c o n o m i a s e m d i n h e i r o :
esse p r o b l e m a é u m p r o b l e m a f u n d a m e n t a l de toda " s o c i a l i z a ç ã o t o t a l " , e n ã o se pode
falar, de m o d o a l g u m , d e u m a " e c o n o m i a p l a n i f i c a d a " racional enquanto nesse ponto,
o mais decisivo de todos, n ã o seja conhecido u m m e i o p a r a a o r g a n i z a ç ã o p u r a m e n t e
racional de u m " p l a n o " .
As dificuldades do c á l c u l o e m e s p é c i e ainda a u m e n t a m q u a n d o cabe a v e r i g u a r
se determinada e m p r e s a c o m d i r e ç ã o concreta de p r o d u ç ã o tem n o lugar que ocupa
sua localização racional o u — s e m p r e considerado do ponto de vista da satisfação das
necessidades de determinado g r u p o de pessoas — a teria e m outro lugar, t a m b é m
possível, e se, p a r a u m a associação e c o n ô m i c a dada, c o m e c o n o m i a n a t u r a l , d o ponto
de vista do e m p r e g o mais r a c i o n a l possível da f o r ç a de trabalho e m a t é r i a - p r i m a de
que d i s p õ e , seria m e l h o r obter determinados produtos mediante u m a " t r o c a d e c o m p e n -
s a ç ã o " o u mediante f a b r i c a ç ã o p r ó p r i a . É certo que os fundamentos da d e t e r m i n a ç ã o
da localização s ã o puramente naturais, e t a m b é m seus princípios m a i s simples p o d e m
ser f o r m u l a d o s e m dados naturais ( v e j a ALFRED WEBER, Grundriss der Soziaiõkonomik,
s e ç ã o V I ) . Mas a a v e r i g u a ç ã o concreta de se, segundo as circunstâncias características
de determinado lugar concreto, u m e m p r e e n d i m e n t o c o m determinada d i r e ç ã o d e p r o -
d u ç ã o seria racional o u se talvez outro, c o m d i r e ç ã o de p r o d u ç ã o modificada o fosse
mais, s ó é possível n o c á l c u l o e m e s p é c i e c o m base e m estimativas muito grosseiras
— salvo n o caso de u m a localização f o r ç a d a p o r o c o r r ê n c i a m o n o p ó l i c a de matéria-
p r i m a — enquanto que, c o m base n o c á l c u l o e m d i n h e i r o , essa a v e r i g u a ç ã o , apesar
das incógnitas c o m as quais s e m p r e se t e m de contar, é s e m p r e , e m p r i n c í p i o , u m
p r o b l e m a de c á l c u l o suscetível de s o l u ç ã o . Por f i m , a c o m p a r a ç ã o , diversa da anterior,
da importância, isto é, da procura das distintas classes de b e n s especificamente d i f e r e n -
tes, cuja o b t e n ç ã o mediante p r o d u ç ã o o u troca é igualmente possível, nas circunstâncias
dadas, constitui u m p r o b l e m a que, e m última instância, entra c o m todas suas conse-
qüências n o c á l c u l o de cada e m p r e s a , d e t e r m i n a n d o , caso se calcule na base de d i n h e i r o ,
de m o d o decisivo a rentabilidade, e condicionando assim a d i r e ç ã o da p r o d u ç ã o ou
o b t e n ç ã o de bens dos empreendimentos aquisitivos. Para o c á l c u l o e m e s p é c i e este
p r o b l e m a só pode ser r e s o l v i d o , e m princípio, c o m apoio seja da tradição o u de u m
poder ditatorial que regule o c o n s u m o d e m o d o i n e q u í v o c o (tanto faz se estamen-
talmente d i f e r e n c i a d o o u igualitário) e, além disso, encontre o b e d i ê n c i a . Mas, m e s m o
neste caso, persistiria o fato d e que o c á l c u l o e m espécie não é capaz de r e s o l v e r
o p r o b l e m a da imputação d o r e n d i m e n t o total de u m a empresa aos " f a t o r e s " e medidas
particulares, tal c o m o o consegue o c á l c u l o de rentabilidade e m d i n h e i r o , e de que,
portanto, precisamente o abastecimento atual de massas p o r empresas de p r o d u ç ã o
e m massa o p õ e a resistência m a i s forte à q u e l a f o r m a de cálculo.

1. Os problemas de cálculo em espécie são tratados com singular penetração por O r o


NEURATO, em seus numerosos trabalhos suscitados pelas tendências "socializadoras" destes últimos
tempos. Para uma "socialização total", isto é, para aquela que conta com o desaparecimento
dos preços efetivos, este problema é de fato fundamental. (Cabe observar explicitamente que
a impossibilidade de sua solução racional só indicaria todos os problemas, também os puramente
econômicos, que teria de enfrentar semelhante socialização, sem poder "refutar", no entanto,
a "justificação" dessa tendência, uma vez que ela não se apóia em postulados técnicos, mas,
sim, como todo socialismo de convicção, em postulados éticos e outros, igualmente absolutos
66 MAX WEBER

— coisa que nenhuma ciência é capaz de fazer. Do ponto de vista puramente técnico cabe,
porém, levar em consideração a possibilidade de que, em regiões com densa população que
só podem ser abastecidas na base de um cálculo exato, os limites de uma socialização estariam
dados, em sua forma e extensão, pela persistência dos preços efetivos. No entanto, não cabe
tratar aqui dessa questão. Limitamo-nos a observar que a distinção conceituai entre "socialismo"
e "reforma social", se couber, tem de ser feita neste ponto.)
2. Naturalmente, é completamente certo que a existência de cálculos "puramente" em
dinheiro, seja numa empresa individual seja em muitas ou mesmo em todas, e também a estatística
mais abrangente do movimento de bens etc., em dinheiro, não nos dizem absolutamente nada
sobre a natureza do abastecimento de determinado grupo de pessoas com aquilo de que este,
em última instância, necessita: bens em espécie; e que, além disso, as estimativas muito discutidas
do "patrimônio nacional" em dinheiro só podem ser levadas a sério, na medida em que sirvam
a interesses fiscais (isto é, na medida em que fixem o patrimônio sujeito a impostos). Às estatísticas
de renda em dinheiro isso nem de longe se aplica, na mesma medida, mesmo do ponto de
vista do abastecimento em bens em espécie, quando os preços destes bens em dinheiro são
estatisticamente conhecidos. Só que, também nesse caso, falta toda possibilidade de controle
do ponto de vista da racionalidade material. Do mesmo modo está certo (o que foi excelentemente
exposto por Sismondi e W. Sombart mediante o exemplo da Campagna nos tempos romanos)
que uma rentabilidade satisfatória (como a apresentava a agricultura extremamente extensiva
cia Campagna, e isso para todos os participantes) em muitos casos, nada tem em comum, do
ponto de vista da utilização máxima de determinados meios de produção ou obtenção de bens
destinados a satisfazer às necessidades de determinado grupo de pessoas, com uma estruturação
satisfatória da economia. A forma da apropriação (especialmente da apropriação das terras —
ponto em que concordamos com F. Oppenheimer —, mas não apenas desta) cria oportunidades
de rendas e ganhos de várias espécies que podem obstruir de modo permanente o desenvol-
vimento da aplicação tecnicamente ótima dos meios de produção. (Contudo, isto está muito
longe de constituir uma peculiaridade justamente da economia capitalista: especialmente as restri-
ções muito discutidas da produção no interesse da rentabilidade dominavam totalmente as consti-
tuições econômicas da Idade Média, e a posição de poder da classe trabalhadora, em nossos
tempos, pode produzir efeito semelhante. Mas, sem dúvida, encontramos esse fenômeno também
na economia capitalista.) A existência de estatísticas de movimentos do dinheiro ou na forma
de estimativas em dinheiro não impediu, porém, o desenvolvimento de estatísticas em espécie,
como se poderia supor segundo algumas exposições, por mais que se desaprovem, do ponto
de vista de postulados ideais, o estado destas e os serviços que prestam. Nove décimos ou mais
de nossas estatísticas não são estatísticas em dinheiro, mas, sim, em espécie. Considerado em
conjunto, o trabalho de toda uma geração quase não consistiu em outra coisa senão a crítica
das conseqüências que a orientação da economia puramente pela rentabilidade traz para a provi-
são de bens em espécie (pois é isso que, em última instância e de modo consciente, todo o
trabalho dos chamados "socialistas de cátedra" tem em vista) Só que essa crítica vê a única
solução possível numa economia de massas (seja temporária, seja definitiva), não na socialização
total, mas, sim, numa reforma do caráter po//r/'co-social, — orientada, em oposição à economia
baseada no cálculo em espécie, pela conservação dos preços efetivos. Naturalmente, cada qual
tem a liberdade de considerar este ponto de vista "meio passo à frente", só que, em si mesmo,
ele não era insensato. É verdade que não se deu muita atenção aos problemas da economia
natural e especialmente à possibilidade de racionalizar o cálculo em espécie, e que, em todo
caso, essa pouca atenção foi somente histórica e não atual. A guerra — como toda outra guerra
no passado — reativou esses problemas, com vigoroso impulso, na forma dos problemas da
economia de guerra e de pós-guerra. ( E , sem dúvida, o mérito de O r o NEI.HATH, entre outras
coisas, consiste em seu tratamento, imediato e penetrante, precisamente desses problemas, ainda
que discutível tanto nos princípios quanto nos detalhes. O fato de " a ciência" quase não ter tomado
posição diante de suas exposições não surpreende, uma vez que elas até agora só existem na forma
de prognósticos muito sugestivos, mas com caráter apenas enunciativo, o que torna difícil um exame
crítico. O problema começa ali onde terminam suas exposições — até agora — publicadas.)

3. Os resultados e métodos da economia de guerra só podem ser utilizados com muito


cuidado na crítica da racionalidade material de uma constituição econômica. Toda economia
ECONOMIA E SOCIEDADE 67

de guerra orienta-se por um fim inequívoco único (em princípio) e está em condições de tirar
proveito de poderes absolutos de que dispõe a economia de paz apenas quando os "súditos"
estão na situação de "escravos do Estado". Além disso, segundo sua essência mais íntima, é
uma "economia de bancarrota": o fim que tudo domina faz com que desapareça quase toda
consideração da futura economia de paz. Calcula-se com precisão apenas do ponto de vista
técnico, enquanto que, economicamente, com respeito a todos os materiais que não estejam
ameaçados de esgotamento e, sobretudo, à força de trabalho, se calcula de um modo muito
grosseiro. Os cálculos têm, por isso, em sua grande maioria (mas não exclusivamente), caráter
técnico. Na medida em que têm caráter econômico, quer dizer, que levam em consideração
a concorrência dos fins — e não apenas os meios para alcançar determinado fim —, satisfazem-se
(do ponto de vista de todo cálculo exato em dinheiro) com considerações e cálculos bastante
primitivos, segundo o princípio da utilidade marginal. São, segundo o tipo, cálculos da gestão
"patrimonial" e de modo algum têm o sentido de garantir a racionalidade permanente da distri-
buição do trabalho e dos meios de produção selecionados. Portanto, é precário — por mais
instrutivas que sejam precisamente as economias de guerra e de pós-guerra para o conhecimento
de "possibilidades econômicas" — tirar das formas de cálculo em espécie que correspondem
à situação destas economias conclusões sobre sua adequação à economia permanente nos tempos
de paz.
> Admitimos prontamente: l ) q u e também o cálculo em dinheiro se vê obrigado a suposições
arbitrárias, no caso daqueles meios de produção que não têm preço de mercado (o que particu-
larmente ocorre na contabilidade da agricultura) 2) que algo análogo, ainda que em menor
escala, se aplica à distribuição dos "custos gerais" na contabilidade, especialmente de empresas
com múltiplas atividades; e 3) que toda cartelização, por mais racional que sej a — isto é, orientada
pelas possibilidades de mercado —, faz com que diminua imediatamente o interesse no cálculo
exato, mesmo na área do cálculo de capital, pois ele só é feito onde e na medida em que existe
a obrigação de fazê-lo. No entanto, no caso de cálculo em espécie, com referência ao item
1, aquela situação seria universal; com referência ao item 2, rodo cálculo exato dos "custos
gerais", efetuado todavia pelo cálculo de capital, ficaria impossível; e com referência ao item
3, rodo interesse no cálculo exato ficaria eliminado e teria de ser despertado de novo, artificial-
mente, por meios de efeito duvidoso (veja acima) A idéia de uma transformação de numeroso
quadro de "empregados comerciais" ocupado com a contabilidade num pessoal ocupado com
uma estatística universal, que se acredita apta a substituir a contabilidade em termos de cálculo
em espécie, desconhece não apenas os impulsos fundamentalmente diferentes como também
as funções completamente diversas da "estatística" e do "cálculo". Elas se distinguem entre
si como o burocrata e o organizador.
4. Tanto o cálculo em espécie quanto o cálculo em dinheiro são técnicas racionais. Mas,
de modo algum, estes dois abrangem a totalidade de gestão econômica existente. É que, além
deles, há também a ação economicamente orientada de fato, mas alheia ao cálculo. Pode estar
orientada pela tradição ou condicionada por fatores afetivos. Toda procura primitiva de alimentos
pelo homem é muito semelhante à busca instintiva pelos animais. Também as ações econômicas
plenamente conscientes, mas baseadas na devoção religiosa, na excitação guerreira, em senti-
mentos de piedade ou em outras emoções semelhantes, apresentam um grau mínimo de desenvol-
vimento de formas de cálculo. "Entre irmãos" (da mesma tribo, da mesma corporação ou da
mesma religião) não se "regateia"; dentro do círculo dos familiares, dos camaradas ou dos
discípulos, não se calcula, ou apenas se o faz de forma muito elástica, "racionando"-se em
caso de necessidade: um primeiro passo, muito modesto, em direção ao cálculo. Sobre a pene-
tração do cálculo no comunismo familiar primitivo, veja, mais adiante, o capítulo V. O veiculo
do cálculo era por toda parte o dinheiro, e isso explica por que, de fato, o cálculo em espécie
permaneceu tecnicamente ainda menos desenvolvido do que os limites da sua natureza imanente
lhe permitiriam (neste ponto cabe concordar com O. Neurath)
Durante a impressão desta obra aparece (em Archiv f. Sozialwis., vol. 47, p. 86 e seg.)
o trabalho de L . MISES que trata desses problemas ["Die Wirtschaftsrechnung im sozialistischen
Gemeinwesen"; compare também, do mesmo autor: Die Gemeinwirtschaft, 2*. edição, 1932,
p. 91 e seg. (2í parte, § 3 ) e o apêndice (p. 480 e seg.)].
68 MAX WEBER

§ 13- A " r a c i o n a l i d a d e " formal d o c á l c u l o e m d i n h e i r o está, portanto, v i n c u l a d a


a c o n d i ç õ e s materiais muito específicas que interessam aqui sociologicamente. Estas
s ã o sobretudo:
1. A luta n o m e r c a d o de economias a u t ô n o m a s (relativamente, pelo m e n o s ) O s
p r e ç o s e m d i n h e i r o s ã o produtos de lutas e compromissos, portanto, de constelações
de poder. O " d i n h e i r o " n ã o é u m a inofensiva " r e f e r ê n c i a a utilidades i n d e t e r m i n a d a s "
que possa ser alterada a r b i t r a r i a m e n t e s e m que isso tenha por c o n s e q ü ê n c i a a e l i m i n a ç ã o
fundamental do caráter dos p r e ç o s , m a r c a d a pela luta dos h o m e n s uns contra os outros;
é, e m p r i m e i r o lugar, m e i o de luta e p r e ç o d e luta, e m e i o de c á l c u l o apenas na f o r m a
de u m a e x p r e s s ã o quantitativa da estimativa das probabilidades n a luta de interesses.
2. O c á l c u l o e m d i n h e i r o alcança o g r a u m á x i m o de racionalidade, c o m o meio
de o r i e n t a ç ã o de caráter calculável p a r a a g e s t ã o e c o n ô m i c a , na forma do c á l c u l o de
capital e, nesse caso, c o m a c o n d i ç ã o material do m á x i m o de liberdade de m e r c a d o ,
n o sentido de ausência de m o n o p ó l i o s tanto f o r ç a d a m e n t e impostos e economicamente
irracionais quanto voluntariamente criados e economicamente racionais (isto é, o r i e n -
tados pelas oportunidades de me rc a d o ). A luta de c o n c o r r ê n c i a pela venda dos produtos,
concatenada a essa situação, gera grande quantidade de gastos, especialmente p a r a
a o r g a n i z a ç ã o da v e n d a e a propaganda ( e m sentido muito a m p l o ) , as quais n ã o e x i s t i r i a m
s e m aquela c o n c o r r ê n c i a (isto é, n u m a e c o n o m i a planificada ou e m caso de m o n o p ó l i o s
absolutos de caráter r a c i o n a l ) O c á l c u l o de capital rigoroso está, a l é m disso, vinculado
socialmente à " d i s c i p l i n a da e m p r e s a " e à a p r o p r i a ç ã o dos meios materiais de p r o d u ç ã o
o u o b t e n ç ã o , isto é, à existência de u m a r e l a ç ã o de dominação.
3. N ã o é a " d e m a n d a " e m s i , m a s s i m , a demanda com poder aquisitivo de utilida-
des que regula materialmente, p o r i n t e r m é d i o do c á l c u l o de capital, a p r o d u ç ã o de
bens pelas empresas aquisitivas. D e c i s i v a , portanto, p a r a a d i r e ç ã o da p r o d u ç ã o de
bens, é a c o n s t e l a ç ã o da utilidade m a r g i n a l n o ú l t i m o nível de renda que, segundo
a distribuição de propriedade, está tipicamente e m c o n d i ç õ e s e disposto a adquirir
determinada utilidade. E m c o n e x ã o c o m a indiferença absoluta — e m caso de liberdade
total de m e r c a d o — da racionalidade f o r m a l m e n t e mais perfeita do c á l c u l o de capital
diante de postulados materiais de natureza qualquer, essas circunstâncias, próprias do
c á l c u l o e m d i n h e i r o , constituem os limites fundamentais de sua racionalidade. É que
esta tem caráter puramente formal. A racionalidade f o r m a l e a m a t e r i a l (qualquer que
seja o v a l o r p e l o q u a l se o r i e n t a m ) d i s c r e p a m , em princípio, e m todas as circunstâncias,
p o r mais f r e q ü e n t e s que s e j a m os casos individuais e m que empiricamente coincidem
( m e s m o que isto aconteça e m todos os casos individuais, o que é uma possibilidade
teórica, construída, p o r é m , na base de c o n d i ç õ e s inteiramente irreais). Pois a raciona-
lidade f o r m a l d o c á l c u l o e m d i n h e i r o , de p e r s i , nada nos diz sobre a f o r m a da distri-
b u i ç ã o material dos bens e m espécie. Esta r e q u e r s e m p r e uma c o n s i d e r a ç ã o particular.
Mas, d o ponto de vista da p r o d u ç ã o o u o b t e n ç ã o de u m mínimo de bens materiais
para abastecer u m número m á x i m o de pessoas, considerando-se este o critério da racio-
nalidade, na v e r d a d e c o i n c i d e m , e m considerável g r a u , segundo a experiência das últi-
mas d é c a d a s , a racionalidade f o r m a l e a m a t e r i a l , o que se explica pela natureza dos
impulsos que p õ e m e m m o v i m e n t o o ú n i c o tipo de a ç ã o social economicamente o r i e n -
tada adequado ao c á l c u l o e m d i n h e i r o . Mas, e m todas as circunstâncias, v a l e o seguinte,
só e m c o n e x ã o c o m a f o r m a de distribuição da renda, a racionalidade f o r m a l nos diz
alguma coisa sobre a situação do abastecimento m a t e r i a l .
§ 14. D e n o m i n a m o s satisfação d e necessidades pela "economia de troca" toda
satisfação e c o n ô m i c a de necessidades possibilitada p o r alguma situação de interesses,
que se orienta pelas oportunidades de troca e cujas r e l a ç õ e s associativas somente se
r e f e r e m ao ato de troca. C h a m a m o s satisfação de necessidades pela "economia planifi-
ECONOMIA E SOCIEDADE 69

cada" toda aquela que, dentro de u m a associação, orienta-se sistematicamente p o r or-


dens estatuídas, de natureza m a t e r i a l , s e j a m estas pactuadas o u f o r ç a d a m e n t e impostas.
A satisfação de necessidades pela e c o n o m i a de troca p r e s s u p õ e , n o r m a l m e n t e
e e m caso de racionalidade, o c á l c u l o e m d i n h e i r o e, q u a n d o existe c á l c u l o de capital,
a separação e c o n ô m i c a entre gestão patrimonial e empreendimento econômico. A satis-
fação de necessidades pela e c o n o m i a planificada ( e m sentido e g r a u diversos, segundo
sua e x t e n s ã o ) n ã o pode p r e s c i n d i r d o c á l c u l o e m e s p é c i e , c o m o ú l t i m o fundamento
da orientação m a t e r i a l da e c o n o m i a , enquanto que, formalmente, n o que se r e f e r e
às pessoas economicamente ativas, necessita orientar-se pelas instruções de u m q u a d r o
administrativo que p a r a ela é indispensável. Na economia de troca, as ações das econo-
mias individuais autocéfalas orientam-se de m o d o a u t ô n o m o : pela utilidade m a r g i n a l
da propriedade e m d i n h e i r o e da r e n d a esperada e m d i n h e i r o , n o caso da g e s t ã o e c o n ô -
mica p a t r i m o n i a l , pelas possibilidades de m e r c a d o , n o caso de atividades aquisitivas
casuais, e pelo c á l c u l o de capital, n o caso dos empreendimentos aquisitivos. Na econo-
mia planificada — desde que seja realizada de m o d o c o n s e q ü e n t e — toda a ç ã o e c o n ô -
mica tem caráter rigoroso da g e s t ã o e c o n ô m i c a p a t r i m o n i a l e h e t e r ô n o m o , orientan-
do-se por o r d e n a ç õ e s de caráter p e r m i s s i v o o u proibitivo, p o r p r e s u m í v e i s recompensas
o u castigos. 'Quando a e c o n o m i a planificada oferece probabilidade de ganhos extras,
como meio de despertar o interesse p r ó p r i o , a natureza e a direção da a ç ã o assim
recompensada p e r m a n e c e m , n o que se r e f e r e ao aspecto m a t e r i a l , reguladas de m o d o
h e t e r ô n o m o . Na e c o n o m i a de troca pode, certamente, o c o r r e r e m c o n s i d e r á v e l g r a u
a mesma coisa, ainda que de m a n e i r a f o r m a l m e n t e voluntária. O c o r r e s e m p r e que
a d i f e r e n c i a ç ã o p a t r i m o n i a l , especialmente de bens de capital, obriga os não-possuidores
a se submeterem a determinadas ordenações p a r a receber pelo menos algum pagamento
para as utilidades que o f e r e c e m : sejam estas as o r d e n a ç õ e s do d o n o abastado de u m a
economia doméstica o u e n t ã o as o r d e n a ç õ e s , orientadas pelo c á l c u l o de capital, dos
possuidores de bens de capital ( o u das pessoas de confiança que os últimos designaram
para administrar esses bens). Na e c o n o m i a puramente capitalista, este é o destino de
toda a classe trabalhadora.

Nas c o n d i ç õ e s da e c o n o m i a de troca, o e s t í m u l o decisivo p a r a todas as a ç õ e s


e c o n ô m i c a s é, n o r m a l m e n t e : 1 ) p a r a os que n ã o t ê m propriedade: a) a p r e s s ã o que
exerce o risco de carecer de toda p r o v i s ã o , tanto p a r a si m e s m o quanto p a r a os " d e p e n -
dentes" (filhos, esposa e, eventualmente, p a i s ) pelo sustento dos quais o i n d i v í d u o
assume tipicamente a responsabilidade, e b) e m g r a u diverso, t a m b é m a disposição
íntima para aceitar c o m o f o r m a de v i d a a atividade e c o n ô m i c a aquisitiva; 2 ) p a r a os
efetivamente privilegiados, e m v i r t u d e de propriedade o u e d u c a ç ã o (condicionada, p o r
sua v e z , pela p r o p r i e d a d e ) a ) as possibilidades de obter, por m e i o de atividades aquisi-
tivas, rendas de alto nível, b) a a m b i ç ã o , c ) a estimação do trabalho socialmente p r i v i l e -
giado c o m o " p r o f i s s ã o " (profissões intelectuais, artísticas, técnicas especializadas) 3 )
para os que participam das possibilidades de empreendimentos aquisitivos: a) o risco
de capital p r ó p r i o e as oportunidades lucrativas próprias, e m c o n e x ã o c o m b) a dispo-
sição " p r o f i s s i o n a l " p a r a a atividade aquisitiva racional c o m o a ) " p r o v a " da capacidade
pessoal, e /3) c o m o f o r m a d e m a n d o a u t ô n o m o sobre as pessoas que dependem das
disposições próprias, e, a l é m disso, y) sobre possibilidades de p r e v i s ã o , de interesse
vital e cultural, p a r a n ú m e r o indeterminado de pessoas: o poder. E n t r e estes motivos,
uma economia planificada orientada pela satisfação de necessidades — e m caso de
realização radical — t e m de d i m i n u i r , pelo menos, a coerção ao trabalho que p r o v é m
do risco de ficar s e m meios de subsistência, u m a v e z que, e m caso de racionalidade
material n o setor de abastecimento, n ã o poderia d e i x a r s o f r e r e m e m e x t e n s ã o ilimitada
os dependentes de u m trabalhador eventualmente menos eficiente. A l é m disso, supon-
70 MAX WEBER

d o s e ainda a m e s m a realização r a d i c a l , ela tem de s u p r i m i r e m considerável g r a u ,


e e m última instância completamente, a autonomia da g e r ê n c i a de empreendimentos
produtivos; e, no que se r e f e r e ao risco de capital e à c o m p r o v a ç ã o da capacidade
própria pelo m a n d o f o r m a l m e n t e autônomo ou pela disposição autônoma sobre pessoas
o u possibilidades de abastecimento de importância v i t a l , ela n e m conhece essas coisas,
o u e n t ã o lhes reconhece apenas u m a autonomia rigorosamente limitada. Prescindin-
do-se das possibilidades (eventuais) de ganhos extras, de natureza puramente m a t e r i a l ,
esta e c o n o m i a d i s p õ e , portanto, essencialmente de estímulos ideais, de caráter "altruís-
t a " ( e m sentido mais a m p l o ) p a r a alcançar rendimentos semelhantes, e m d i r e ç ã o à
satisfação de necessidades, àqueles que, segundo a e x p e r i ê n c i a , conseguem realizar
a orientação pelas oportunidades de a q u i s i ç ã o , dentro da economia aquisitiva, e m dire-
ç ã o à p r o d u ç ã o d e bens procurados por pessoas c o m poder aquisitivo. A l é m disso,
e m caso de realização radical, tem de aceitar a d i m i n u i ç ã o da racionalidade f o r m a l ,
de c á l c u l o , condicionada (neste caso) pela d i m i n u i ç ã o inevitável do c á l c u l o e m d i n h e i r o
e do c á l c u l o de capital. É que a racionalidade m a t e r i a l e a f o r m a l (no sentido de cálculo
exato) d i s c r e p a m necessariamente e m considerável g r a u : essa irracionalidade funda-
mental e, e m última instância, inevitável é u m a das origens de toda problemática " s o c i a l "
e, particularmente, da problemática de todo socialismo.

Com respeito aos §§ 13 e 14:


1. Evidentemente, as exposições se referem apenas a coisas geralmente conhecidas, de
forma um pouco mais acentuada do que normalmente acontece (veja as frases finais do §14).
A economia de troca é o tipo mais importante de todas as ações sociais típicas e universais
que se orientam por "situações de interesses". A maneira como ela conduz à satisfação de necessi-
dades é objeto das considerações da teoria econômica e um assunto que, em princípio, damos
por conhecido. O emprego da expressão "economia planificada" não significa, naturalmente,
que concordamos com os conhecidos projetos do ex-ministro da economia; foi escolhida porque,
além de não apresentar contradição lingüística em sua formação, tornou-se a expressão costu-
meira desde que se fez dela esse uso oficial (em vez da expressão empregada por O. Neurath,
tampouco inadequada, de "economia administrativa").
2. O conceito de "economia planificada", neste sentido, exclui todas as economias de
associações ou reguladas por associações que se orientam por probabilidades de aquisição (na
forma de corporações, cartéis ou trustes) Abrange apenas economias de associações orientadas
pela satisfação de necessidades. Uma economia orientada pelas possibilidades de aquisição, por
mais rigorosamente que esteja regulada ou dirigida pelo quadro administrativo de uma associação,
pressupõe sempre "preços" efetivos, qualquer que seja a maneira como estes sejam criados
formalmente (no caso-limite do pan-cartelismo: mediante compromissos entre os cartéis, tarifas
de salários estabelecidas por "comissões" e t c ) , e, portanto, cálculo de capital e orientação por
este. A "socialização plena", no sentido de uma economia planificada em termos de pura gestão
patrimonial e a socialização parcial (de ramos de obtenção de bens) com conservação do cálculo
de capital, seguem, apesar da identidade do fim e de todas as formas mistas, caminhos que,
de ponto de vista técnico, são fundamentalmente diferentes.j Situação preliminar de uma economia
planificada com gestão econômica patrimonial é todo racionamento do consumo e, em geral,
toda medida que tende, em primeiro lugar, a influenciar a distribuição dos bens em espécie.
A direção segundo um plano de obtenção de bens, tanto faz se realizada pior cartéis volunta-
riamente criados ou forçadamente impostos, pu por instituições estatais, tem em vista, em primei-
ro lugar, a organização racional do emprego dos meios de obtenção e da força de trabalho,
e precisamente por isso não — ou pelo menos (segundo seu próprio sentido) ainda não —
pode prescindir do preço. Por isso, não é casual que o socialismo de "racionamento" se dê
muito bem com o socialismo do "conselho de fábrica" que (contra a vontade de seus dirigentes
racional-socialistas) está necessariamente ligado a interesses de apropriação dos trabalha-
dores.
ECONOMIA E SOCIEDADE 71

3. Não cabe examinar aqui, em seus detalhes, a formação de associações econômicas


do tipo de cartéis, corporações ou outras associações de artesãos, isto é, a regulação ou utilização
monopólica de oportunidades de aquisição, tanto faz se forçadamente imposta ou pactuada (regu-
larmente a primeira, mesmo ali onde formalmente aparece a segunda). Sobre isto (em forma
muito geral) compare o capítulo I , § 10, e, mais adiante, no exame da apropriação de oportu-
nidades econômicas (este capítulo, §§ 19 e seguintes) A oposição entre as duas formas do socia-
lismo — a evolucionista e orientada pelo problema da produção — sobretudo, a marxista —,
e a outra que, partindo do problema da distribuição, tende à economia planificada racional
e que hoje em dia se voltou a chamar de "comunista" —/oposição que existe.desde a Misère
de la philosophie de Marx, ainda não pôde ser superada. A oposição entre as tendências do
socialismo russo, com as lutas apaixonadas entre Plekhanov e Lenin, estava também condicionada,
em última instância, pela mesma coisa, e a cisão atual do socialismo, apesar de estar condicionada,
em primeiro lugar, por lutas extremamente fortes pelas posições de lideranças (e as respectivas
prebendas), deve-se também e no fundo à mesma problemática, a qual, em virtude da economia
de guerra, assumiu uma tendência específica, por um lado, em favor da idéia da economia
planificada, e, por outro, em favor do desenvolvimento dos interesses de apropriação. A questão
de se dever ou não criar uma "economia planificada" (qualquer que seja seu sentido e extensão)
não é, naturalmente, nesta forma, um problema científico. Do ponto de vista científico, só cabe
perguntar: quais as conseqüências que ela (com determinada forma) provavelmente teria, ou
seja, o que se teria de aceitar também em caso de tal tentativa. É um mandamento da sinceridade
a admissão, por todos os interessados, de que se conta cóm alguns fatores conhecidos, mas
também com o mesmo número de fatores parcialmente desconhecidos. Os detalhes deste proble-
ma, em seus aspectos materiais, não podem ser examinados de modo decisivo nesta exposição,
e nos aspectos que aqui interessam só podem ser tocados fragmentariamente e em conexão
com as formas das associações (particularmente, do Estado). Temos aqui de nos limitarmos à
exposição breve (mas inevitável) da problemática técnica mais elementar. O fenômeno da econo-
mia de troca regulada também não foi tratado aqui ainda, pelas razões expostas no começo
deste parágrafo.
4. A penetração da gestão econômica de uma sociedade pela economia de troca pressupõe,
por um lado, a apropriação dos portadores materiais das utilidades e, por outro, a liberdade
de mercado. Esta última aumenta em importância, 1) à medida que se torna mais completa
a apropriação dos portadores materiais das utilidades, particularmente dos meios de obtenção
(de produção e de transporte) pois o máximo de mercabilidade destes significa o máximo de
orientação da gestão econômica pelas situações de mercado Mas, além disso, essa importância
cresce 2) à medida que a apropriação vai se limitando aos portadores materiais de utilidades.
Toda apropriação de pessoas (escravidão, servidão) ou de possibilidades econômicas (monopólios
de clientela) significa restrição da ação humana orientada por situações de mercado. Com toda
razão designou FICHTE (em Dergeschiossene Handelsstaat) como característica da ordem moderna
de propriedade na economia de troca a limitação do conceito de "propriedade" a bens materiais
(ampliando-se, ao mesmo tempo, o grau de autonomia do poder de disposição, inerente à proprie-
dade) Essa transformação da propriedade correspondeu aos interesses de todos os interessados
no mercado, uma vez que favoreceu sua orientação irrestrita pelas oportunidades de lucro susci-
tadas pela situação de mercado. O desenvolvimento para essa forma característica da ordem
de propriedade foi, portanto, principalmente obra de sua influência.
5. A expressão muito usada de'' economia comum'' foi evitada por motivos de conveniência,
uma vez que faz supor como normal um "interesse comum" ou um "sentimento de comunidade"
que não fazem necessariamente parte do conceito: a economia de um senhor feudal ou de um
monarca absoluto (do tipo dos faraós do "Novo Império") pertence, em oposição à economia
de troca, à mesma categoria que a economia doméstica de uma família.
6. Para o conceito de "economia de troca" é indiferente se nela existem ou não, e em
que extensão, economias "capitalistas", isto é, orientadas pelo cálculo de capital. Em particular,
o tipo normal da economia de troca é a satisfação de necessidades com base na economia mone-
tária. Seria errado supor que a existência de economias capitalistas cresce proporcionalmente
ao desenvolvimento da satisfação de necessidades com base na economia monetária e, muito
mais ainda, que esta se desenvolve necessariamente na mesma direção que tomou no Ocidente.
72 MAX WEBER

O certo é precisamente o contrário. A extensão crescente da economia monetária: 1) pôde andar


de mãos dadas com a monopolização progressiva, por parte do oikos de um príncipe, das oportu-
nidades aproveitáveis com grandes lucros — assim foi no Egito, na época dos Ptolomeus, com
uma economia monetária bastante desenvolvida, como provam os livros de contabilidade ainda
conservados: preservou-se, entretanto, o cálculo em dinheiro em termos de gestão econômica
patrimonial, sem tornar-se cálculo de capital; 2) pôde acontecer, com a ampliação da economia
monetária, e "emprebendamento" das oportunidades fiscais, com o resultado de uma estabili-
zação tradicionalista da economia (assim na China, como será visto oportunamente), 3 ) a utilização
capitalista de patrimônios em dinheiro pôde investir estes em negócios promissores de lucro,
mas não orientados pelas oportunidades de troca de um livre mercado de bens nem, portanto,
pelas oportunidades de obtenção de bens (assim, quase exclusivamente, em todas as regiões
econômicas fora do Ocidente moderno, por razões a serem ainda expostas)

§ 15 T o d a f o r m a típica de a ç ã o social economicamente orientada e de relação


associativa de c o n t e ú d o e c o n ô m i c o , dentro de u m g r u p o de pessoas significa, e m alguma
extensão, u m m o d o particular de distribuir e coordenar serviços humanos para o f i m
da o b t e n ç ã o de bens. A realidade da a ç ã o e c o n ô m i c a mostra-nos a distribuição de s e r v i -
ços distintos entre pessoas diversas e a c o o r d e n a ç ã o destes e m resultados comuns, o
que, aliás, se dá e m c o m b i n a ç õ e s altamente diversas c o m os meios materiais de obten-
ção. Contudo, na multiplicidade infinita desses f e n ô m e n o s pode-se distinguir alguns
tipos.
O s serviços h u m a n o s de natureza e c o n ô m i c a dividem-se e m :
a ) serviços de g e r ê n c i a e
b) serviços orientados p o r g e r ê n c i a : trabalho (conceito que empregaremos neste
sentido no que segue).

É claro que o trabalho também é serviço de gerência até no mais alto grau concebível,
quando se o define como absorção de tempo e esforço. No entanto, o uso do termo que escolhe-
mos, em oposição ao serviço de gerência, corresponde àquele que, por motivos sociais, é comum
no uso corrente da linguagem de hoje, e é neste sentido particular que o empregaremos no
que segue. E m geral, no entanto, falaremos de "serviços".

As f o r m a s e m que serviços e trabalhos podem ser realizados e m u m grupo de


pessoas distinguem-se tipicamente do seguinte modo:
1. tecnicamente — segundo a m a n e i r a pela q u a l , p a r a o decurso técnico de pro-
cessos de o b t e n ç ã o , os serviços de vários colaboradores se distribuam entre estes e
se c o o r d e n e m entre si e c o m os meios materiais de o b t e n ç ã o ;
2. socialmente, — e neste caso:
A ) c o n f o r m e os serviços individuais s e j a m o u n ã o objetos de economias autocéfalas
e a u t ô n o m a s , e segundo o caráter e c o n ô m i c o das mesmas; e, e m c o n e x ã o direta c o m
isso:
B) segundo a f o r m a e e x t e n s ã o e m que estejam apropriados ou n ã o : a ) os serviços
individuais; b) os meios materiais de p r o d u ç ã o ou o b t e n ç ã o ; c ) as possibilidades e c o n ô -
micas de aquisição (como fontes ou meios de aquisição), e segundo a f o r m a , condicio-
nada pelos fatores anteriores: a ) da classificação (social) das profissões e )8)da f o r m a ç ã o
( e c o n ô m i c a ) do mercado; por f i m ,
3 cabe perguntar, d o ponto de vista e c o n ô m i c o , e m r e l a ç ã o a todo tipo de coorde-
n a ç ã o de serviços entre s i o u c o m meios materiais de o b t e n ç ã o , e t a m b é m e m r e l a ç ã o
ao m o d o c o m o s ã o distribuídas entre a g e s t ã o e c o n ô m i c a e a a p r o p r i a ç ã o , trata-se
de e m p r e g o e m termos de g e s t ã o patrimonial o u aquisitiva?
ECONOMIA E SOCIEDADE 73

Com respeito a este parágrafo e aos seguintes, deve-se consultar a exposição sempre exem-
plar, de K. BÜCHER, no artigo "Gewerbe", do HWB. d Staatswiss. e, do mesmo autor, DieEntste-
hungder Volkswirtschaft: trabalhos fundamentais, de cuja terminologia e esquema afastamo-nos
em alguns pontos apenas por motivos de conveniência. Outros citados aqui não seriam muito
úteis, uma vez que não apresentamos novos resultados, mas apenas um esquema que serve
para nossos fins.
1. Observamos expressamente que aqui — conforme o exige o contexto — recapitulamos
sumariamente o aspecto sociológico dos fenômenos, enquanto que o econômico só aparece
na medida em que encontra sua expressão nas categorias sociológicas formais. A exposição só
teria caráter econômico material incluindo-se as condições de mercado e preço, tocadas até
agora apenas em seu aspecto teórico. No entanto, em observações preliminares gerais de nosso
tipo, esses aspectos materiais da problemática só poderiam ser incluídos em forma de teses,
com o perigo de unilateralidades muito graves. E os métodos interpretativos puramente econô-
micos são tão sedutores quanto contestáveis. Veremos, por exemplo, as seguintes afirmações:
a época decisiva para o desenvolvimento do "trabalho livre", ainda que regulado por associações,
da Idade Média é a época "das trevas" dos séculos X a X I I , e nesta é especialmente importante
a situação do trabalho qualificado (do camponês, mineiro, artesão), situação orientada pelas
oportunidades de renda dos senhores territoriais, feudais e jurisdicionais — todos eles represen-
tando poderes particulares em concorrência por estas. A época decisiva para o desenvolvimento
do capitalismo é a da grande revolução crônica dos preços, no século XVI. Esta significa uma
alta absoluta e relativa dos preços de (quase) todos os produtos agrícolas (ocidentais) e, por
conseguinte — conforme conhecidos princípios da economia agrária —, tanto estímulo quanto
possibilidade do empreendimento comercial e, com isso, da grande empresa, em parte capitalista
(na Inglaterra), em parte de caráter feudal (nos territórios situados entre o rio Elba e a Rússia).
Por outro lado, significa, em pane (na verdade, na maioria dos casos), uma alta absoluta, porém
não relativa (em geral) de importantes produtos artesanais — ou até, ao contrário, em forma
típica, uma baixa relativa desses preços e, por isso, um estímulo para criar formas de empresas
capazes de concorrer no mercado, na medida em que existam, dentro das empresas e fora
delas, as condições prévias necessárias para isso—o que não foi o caso da Alemanha, circunstância
que marca o início de seu "declínio" econômico. Mais tarde foram criados os sucessores dessas
empresas, os empreendimentos industriais capitalistas. Condição prévia para isto é o desenvol-
vimento de mercados em massa. Sintomas desse desenvolvimento são, sobretudo, determinadas
transformações na política comercial inglesa (prescindindo-se de outros fenômenos). Estas e
outras afirmações semelhantes teriam de ser utilizadas para documentar considerações teóricas
sobre as condições econômicas materiais do desenvolvimento da estrutura econômica. Contudo,
isto não é possível aqui. Essas teses, bem como numerosas semelhantes (em sua grande maioria
contestáveis), não podem ser incluídas nesses conceitos estritamente sociológicos, mesmo que
não sejam totalmente errôneas. Com a renúncia a um ensaio nesra forma, desiste-se nas subse-
qüentes considerações deste capitulo, por agora e conscientemente, de toda "explicação", limitan-
do-se (provisoriamente) à tipificação sociológica (assim como ocorreu nas considerações anterio-
res, com a renúncia ao desenvolvimento de uma teoria do preço e do dinheiro). Sublinhamos
fortemente o "por agora". Pois unicamente os fatos reais econômicos fornecem-nos a matéria
viva para uma verdadeira explicação capaz de abranger também o decurso do desenvolvimento
sociologicamente relevante. Trata-se aqui apenas de oferecer, por agora, um quadro básico
para operar com conceitos definidos de forma razoavelmente inequívoca.

É claro que, aqui, tratando-se de uma sistemática em forma de esquema, não é possível
observar a seqüência histórico-empírica nem a genético-típica das formas particulares possíveis.
2. Foi criticado freqüentemente e com razão que, na terminologia econômica, muitas
vezes não se faz distinção entre os conceitos de "empresa" e "empreendimento". "Empresa",
no âmbito da ação economicamente orientada, significa uma categoria técnica que designa a
forma em que estão continuamente coordenados determinados serviços de trabalho entre si
e com os meios de obtenção materiais. Seu contrário é a ação a) inconstante ou b) tecnicamente
descontínua, tal como sempre ocorre em toda gestão patrimonial puramente empírica. O contrá-
rio de'' empreendimento'' — um tipo de orientação econômica (pelo l u c r o ) — é a ' 'gestão patrimo-
nial" (orientação pela satisfação de necessidades) Mas a oposição entre "empreendimento" e
74 MAX WEBER

"gestão patrimonial" não é exaustiva, pois existem ações aquisitivas que não se incluem na
categoria de "empreendimento": toda atividade aquisitiva puramente pelo trabalho — do escri-
tor, do artista, do funcionário público — não é nem uma coisa nem outra, enquanto que o
recebimento e gasto de rendas é evidentemente "gestão patrimonial".
Nos parágrafos anteriores, não obstante aquela oposição, falamos de "empresa aquisitiva"
sempre que se realiza uma ação de empresário, duradoura e coerente em sua continuidade:
tal ação não pode ser imaginada, de fato, sem a constituição de uma "empresa" (eventualmente
individual, sem quadro de ajudantes) O importante, nesses casos, para nós, foi acentuar a separa-
ção entre gestão patrimonial e empresa. No entanto, cabe admitir agora que o termo "empresa
aquisitiva", em vez de "empreendimento aquisitivo" com caráter contínuo, só é adequado (por
ser inequívoco) para o caso mais simples de coincidência da unidade técnica da "empresa" com
a unidade do "empreendimento". Sem dúvida, pode ocorrer na economia de troca que várias
"empresas", tecnicamente separadas, estejam unidas numa unidade de "empreendimento". Mas,
naturalmente, isto não se realiza simplesmente pela união pessoal na figura do empresário,
mas se constitui pela unidade da orientação por determinado plano homogeneamente formulado,
referente à exploração para fins aquisitivos (por isso, transições são possíveis) Quando só falamos
de "empresa", deve-se entender sempre que nos referimos àquela unidade técnica — consistente
em instalações, meios de trabalho, força de trabalho e direção técnica (eventualmente hetero-
céfala e heterônoma) —, unidade que também existe (segundo o uso corrente da linguagem)
na economia comunista. O termo "empresa aquisitiva" só será empregado, no que segue, quando
a unidade técnica e a econômica (de "empreendimento") são idênticas.
A relação entre "empresa" e "empreendimento" mostra-se terminologicamente com agu-
deza especial quando se trata de categorias como "fábrica" e "indústria domiciliar". A última
é evidentemente uma categoria relativa ao empreendimento. Do ponto de vista do funcionamento
técnico, uma empresa comercial e empresas como partes integrantes das unidades de gestão
patrimonial de trabalhadores (sem haver trabalho numa oficina — a não ser que se trate de.
organização com mestres intermediários), com serviços especificados prestados à empresa comer-
cial e vice-versa, coexistem lado a lado. Portanto, não há como compreender o processo exclusiva-
mente sob este aspecto; para isso, devem ser incluídas as categorias mercado, empresa, empreen-
dimento, gestão patrimonial (dos trabalhadores individuais), utilização aquisitiva dos serviços
remunerados. O conceito de "fábrica" poderia ser definido — conforme muitas vezes proposto
— de forma economicamente indiferente, uma vez que se pode deixar à parte a situação do
trabalhador (livre ou não), a forma da especialização do trabalho (especialização técnica interna
ou não) e a natureza dos meios de trabalho empregados (máquinas ou não) Portanto, simples-
mente como trabalho de oficina. Mas, em todo caso, deve-se incluir na definição, além disso,
a forma da apropriação da oficina e dos meios de trabalho (por um proprietário) se isto não
for feito, o conceito se confundirá com o do ergasterion. E , uma vez feito, parece, em princípio,
mais conveniente considerar tanto a "fábrica" quanto a "indústria domiciliar" como duas catego-
rias estritamente econômicas do empreendimento baseado no cãlculo de capital. Numa ordem
rigorosamente socialista, não existiriam então nem "fábricas" nem "indústrias caseiras", mas
apenas oficinas, instalações, máquinas, ferramentas e serviços de oficina e domiciliares de todas
as espécies.
3 Sobre o problema das "etapas do desenvolvimento" econômico, nada cabe dizer, por
enquanto, no que segue, a não ser o absolutamente imprescindível no respectivo contexto, e
isto só de passagem. Limitamo-nos aqui a antecipar o seguinte:
Com toda razão se faz recentemente a distinção entre formas da economia e formas da
política econômica. As fases definidas por SCHMOUJER, antecipadas por SCHÕNBERG e desde então
modificadas: economia doméstica, economia de aldeia — incluindo-se aqui, como outra "etapa",
a economia de gestão patrimonial fundiária senhorial e de nobreza patrimonial —, economia
urbana, economia territorial e economia nacional, estavam determinadas, em sua terminologia,
pela natureza da associação reguladora da economia. Mas nada garante que a associações de
extensão diferente correspondam formas diferentes de regulação econômica. A "política da eco-
nomia territorial", por exemplo, era em grau muito amplo apenas uma adoção das regulações
da economia urbana, e suas disposições "novas" não se distinguiam especificamente da política
"mercantilista" das associações estatais especificamente patrimoniais, porém já relativamente
ECONOMIA E SOCIEDADE 75

racionais (e neste sentido "política da economia nacional", segundo a terminologia costumeira,


porém pouco adequada) Mas muito menos ainda acontece necessariamente de a estrutura interna
da economia — a forma em que os serviços se especificam, especializam e coordenam, o modo
em que eles se distribuem entre economias independentes e a forma da apropriação da valorização
do trabalho, dos meios de obtenção e das possibilidades de aquisição — corresponder àquela
extensão da associação, portadora (presumível!)de determinada política econômica, e tampouco
de essa estrutura, quanto a seu sentido, se modificar sempre que mude aquela extensão. A
comparação entre o Ocidente e a Ásia, e entre o Ocidente moderno e o da Antiguidade mostraria
o quanto é errônea essa suposição. Mesmo assim, na consideração econômica, não se pode
deixar à parte a existência ou não de associações materialmente reguladoras da economia —
mas isto não se refere exclusiva e especialmente às associações políticas—e o sentido fundamental
de sua regulação. Pois é um fator que exerce influência muito forte sobre o modo de aquisição.
4. A intenção de nossas considerações é também aqui, sobretudo, a averiguação das condi-
ções prévias do grau máximo de racionalidade formal da economia e a relação delas com as
"exigências" materiais de natureza qualquer.

§ 16. I . Tecnicamente [§ 15 t ó p i c o 1 , p. 72] as f o r m a s de articulação de serviços


distinguem-se-,
A. segundo a divisão e c o o r d e n a ç ã o dos serviços. E isto
1. segundo a natureza dos serviços aceitos pela mesma pessoa, isto é,
a) nas m ã o s de u m a pessoa p o d e m estar:
a ) ao m e s m o tempo, serviços de d i r e ç ã o e de e x e c u ç ã o , o u
)3) somente os p r i m e i r o s o u somente os segundos.

Com respeito a a: a oposição é naturalmente relativa, uma vez que ocorre "colaboração"
ocasional, em serviços de execução, por parte de pessoas que normalmente só realizam serviços
de direção (camponeses com grande propriedade, por exemplo) De resto, todo pequeno lavra-
dor, artesão ou pequeno barqueiro constitui o tipo o.

b) A mesma pessoa pode executar


o ) s e r v i ç o s que tecnicamente s ã o heterogêneos e p r o d u z e m resultados finais d i v e r -
sos ( c o m b i n a ç ã o de serviços), e isto
a a ) por falta de espec i a li za ç ã o do serviço e m seus componentes técnicos, o u
/3/3) de m o d o sazonal, o u
yy) e m v i r t u d e da utilização de capacidades n ã o exigidas pelo s e r v i ç o p r i n c i p a l
(serviços acessórios).
O u a m e s m a pessoa executa
/3) unicamente determinados serviços específicos, e isto
a a ) e m v i r t u d e da natureza do resultado f i n a l : de m o d o que a m e s m a pessoa
executa todos os serviços exigidos p o r esse resultado, tecnicamente heterogêneos entre
si, tanto simultâneos quanto sucessivos (tratando-se, portanto, neste sentido, de combi-
nação de serviços), especificação de serviços-, o u
/3/3) e m v i r t u d e da natureza d o p r ó p r i o serviço, tecnicamente especializado, de
m o d o que e m determinados casos o produto f i n a l s ó pode ser conseguido mediante
os serviços simultâneos o u sucessivos (dependendo do c a s o ) de várias pessoas: especia-
lização de serviços.
A o p o s i ç ã o é muitas vezes relativa, p o r é m existente, e m princípio, e historicamente
importante.

Com respeito a boc o caso a a existe tipicamente em economias domésticas primitivas,


nas quais — prescindindo-se da divisão típica do trabalho entre os sexos (sobre isso, ver capítulo
V) — cada qual cuida de todos os serviços, segundo a necessidade.
76 MAX WEBER

Típica para o caso /3/8 era a alternância, devida à mudança das estações, entre o trabalho
agrícola e o industrial, no inverno.
Para o caso yy, o trabalho agrícola acessório dos trabalhadores urbanos e os numerosos
"trabalhos acessórios" que são aceitos — até hoje, nos escritórios modernos — porque as pessoas
têm tempo ocioso.
Com respeito a b/3: típica para o caso aa é a estruturação das profissões na Idade Média:
uma imensa diversidade de ofícios, cada um especificado num só produto final, mas sem tomar
em consideração que este exigia muitas vezes processos de trabalho tecnicamente heterogêneos,
ocorrendo, portanto, combinação de serviços. O caso /3/3 abrange todo o desenvolvimento mo-
derno do trabalho. No entanto, do ponto de vista rigorosamente psicofísico, quase não existem
serviços, nem mesmo os extremamente "especializados", que sejam de fato absolutamente isola-
dos-, sempre há neles um momento de especificação de serviços, ainda que tenha deixado de
estar orientada pelo produto final, como ocorreu na Idade Média.

O m o d o de d i v i d i r e coordenar os serviços (veja A a c i m a ) d i f e r e , a l é m disso,


2. segundo a f o r m a e m que se coordenam os serviços de várias pessoas para
a o b t e n ç ã o de um resultado. É possível:
a)acumulação de serviços: c o m b i n a ç ã o técnica de serviços homogêneos de várias
pessoas a f i m de chegar ao resultado:
a) mediante serviços paralelamente organizados e tecnicamente independentes
unsdos outros,
/3) mediante serviços ( h o m o g ê n e o s ) tecnicamente unidos n u m serviço global.

Como exemplos servem, para o caso a, ceifeiros ou empedradores que trabalham de


modo paralelo; para o caso fi, os serviços de transporte de colossos, ocorridos no antigo Egito
em grande escala (milhares de trabalhadores forçados), atrelando-se grande número de pessoas
para realizarem o mesmo serviço (tração por cordas)

b) Coordenação de serviços: c o m b i n a ç ã o técnica de serviços qualitativamente he-


terogêneos, isto é, especializados (A 1 b /3, 13/3) p a r a a o b t e n ç ã o de u m resultado:
a ) mediante serviços tecnicamente independentes uns dos outros;
a a ) realizados de m o d o s i m u l t â n e o , isto é, paralelo; o u
/3/3) sucessivamente, de f o r m a especializada;
/3) mediante serviços especializados, tecnicamente unidos (tecnicamente comple-
mentares), realizados e m atos simultâneos.

1. Um exemplo muito simples para o caso a, aa são os trabalhos de tecelagem em trama


e urdume, além de muitos processos de trabalho semelhantes, na verdade, todos aqueles que
se realizam de modo paralelo e tecnicamente independente, resultando num produto final co-
mum.
2. Para o caso a , /3/3, o exemplo costumeiro e mais simples, que se encontra em todas
as indústrias, é a relação entre fiar, tecer, pisoar, tingir e aprestar.
3 Típicas para o caso )3, desde o segurar de um pedaço de ferro pelo ajudante e a martelada
pelo ferreiro, são todas as formas de trabalhar "de mão em mão", nas fábricas modernas. Fora
da esfera de fábrica, o conjunto de uma orquestra ou de uma companhia de teatro constituem
um tipo máximo.

§ 17. (Ainda; I , cf. § 1 6 . )


Tecnicamente, as f o r m a s de articulação de serviços distinguem-se, a l é m disso,
B . quanto à e x t e n s ã o e ao modo e m que se c o m b i n a m c o m meios de o b t e n ç ã o
materiais complementares. E m p r i m e i r o lugar
1. segundo
a ) o f e r e ç a m serviços não-produtivos;
ECONOMIA E SOCIEDADE 77

Exemplos: lavadeiras, barbeiros, representações artísticas etc.

b ) p r o d u z a m o u t r a n s f o r m e m bens materiais, isto é, e l a b o r e m " m a t é r i a s - p r i m a s " ,


o u os transportem. Mais exatamente, segundo s e j a m
a ) serviços de a p l i c a ç ã o o u
)8) serviços de p r o d u ç ã o o u

y) serviços d e transporte, de bens. A o p o s i ç ã o é muito f l u i d a .

Exemplos de serviços de aplicação: pintores, decoradores, estucadores etc.

Distinguem-se, a l é m disso,
2. segundo o g r a u e m que d e i x e m os respectivos bens prontos p a r a o consumo;
desde o produto b r u t o da agricultura o u m i n e r a ç ã o até o produto pronto p a r a o c o n s u m o
e transportado ao lugar d e consumo.
3. p o r f i m , segundo u t i l i z e m
a ) "instalações" e, neste caso,
a a ) instalações de e n e r g i a , q u e r dizer, meios p a r a a o b t e n ç ã o de energia a p l i c á v e l ,
isto é,
1 ) energia n a t u r a l (água, vento, fogo), o u
2 ) energia mecanizada (sobretudo: de v a p o r , elétrica, m a g n é t i c a ) ,
/3/3) oficinas especiais,
b) meios de trabalho e, neste caso,
a a ) ferramentas,
/3/3) aparelhos,
yy) m á q u i n a s ,
eventualmente só u m a o u o u t r a destas categorias de meios de o b t e n ç ã o , o u n e n h u m a
delas. D e n o m i n a m o s " f e r r a m e n t a s " aqueles meios de trabalho cuja c r i a ç ã o se orienta
pelas c o n d i ç õ e s psicofísicas d o trabalho m a n u a l h u m a n o ; " a p a r e l h o s " , aqueles e m cujo
funcionamento se o r i e n t a m os serviços h u m a n o s de " m a n e j o " ; " m á q u i n a s " , os apare-
lhos mecanizados. As d i f e r e n ç a s , muito fluidas, t ê m certa importância p a r a a caracte-
rização de determinados p e r í o d o s da técnica industrial.
A utilização de instalações de energia mecanizada e m á q u i n a s , característica da
grande indústria m o d e r n a , está tecnicamente condicionada a) pela capacidade de rendi-
m e n t o e e c o n o m i a de e s f o r ç o h u m a n o específicas e b) pela u n i f o r m i d a d e e calcula-
bilidade específicas d o rendimento, qualitativa e quantitativamente. Por isso, s ó é racio-
nal q u a n d o há p r o c u r a suficientemente a m p l a dos respectivos produtos, isto é, nas
c o n d i ç õ e s da e c o n o m i a de troca, quando há capacidade de c o m p r a suficientemente
extensa p a r a estes bens, o u seja, q u a n d o existe u m a c o n f i r m a ç ã o correspondente da
renda e m dinheiro.

Naturalmente, não poderia ser estabelecida aqui uma teoria do desenvolvimento da técnica
e economia das ferramentas e máquinas, nem em seus aspectos mais rudimentares. Por "apare-
lhos" entendemos aqui instrumentos de trabalho como o tear movido a pedal e numerosos
outros, nos quais já se manifesta a autonomia da técnica mecânica em face do organismo humano
(ou animal, em outros casos) e sem a existência dos quais (neles se incluem, particularmente,
as diversas "instalações extrativas'' da mineração)não teriam surgido as máquinas em suas funções
atuais. (As "invenções" de Leonardo eram "aparelhos" )

§ 18. I I . D o ponto de vista social [ § 1 5 , t ó p i c o 2 ] , as f o r m a s da distribuição de


serviços distinguem-se:
78 MAX WEBER

A. segundo o m o d o e m que estejam distribuídos serviços qualitativamente d i v e r -


sos o u , particularmente, complementares, entre economias autocéfalas e (mais o u m e -
n o s ) a u t ô n o m a s ; e, e m seguida, d o ponto de vista e c o n ô m i c o , segundo estas s e j a m
a) gestões patrimoniais, o u b) empreendimentos aquisitivos. Pode haver:
1. E c o n o m i a unitária c o m especialização ( o u e s p e c i f i c a ç ã o ) e c o o r d e n a ç ã o de
serviços puramente interna, isto é, totalmente h e t e r o c é f a l a e h e t e r ô n o m a e de natureza
puramente técnica (distribuição d e serviços da e c o n o m i a u n i t á r i a ) D o ponto de vista
e c o n ô m i c o , a economia unitária pode ser:
a ) g e s t ã o p a t r i m o n i a l , £>) empresa aquisitiva.

Uma gestão patrimonial unitária seria, na maior escala possível, uma economia nacional
comunista e, na menor, uma economia familiar primitiva, a qual abrange todos os serviços
dirigidos à obtenção de bens, ou a grande maioria destes (economia doméstica fechada) O
tipo do empreendimento aquisitivo com especialização e coordenação internas de serviços é,
naturalmente, o empreendimento combinado gigante, na medida em que aparece em face de
terceiros, no setor comercial, exclusivamente como unidade. Estes dois extremos iniciam e con-
cluem (por enquanto) o desenvolvimento das "economias unitárias" autônomas.

2. O u existe distribuição de serviços entre economias autocéfalas. Esta pode ser:


a ) e s p e c i a l i z a ç ã o o u e s p e c i f i c a ç ã o de serviços e n t r e economias individuais heterô-
nomas, p o r é m autocéfalas, as quais se o r i e n t a m p o r determinada o r d e m pactuada o u
f o r ç a d a m e n t e imposta. Esta o r d e m , p o r sua v e z , p o d e estar materialmente orientada
1) pelas necessidades de u m a economia dominante, isto é,
a ) digestão patrimonial de u m s e n h o r (distribuição de serviços do tipo d o oikos),
ou
/3) d e u m a e c o n o m i a aquisitiva s e n h o r i a l ;
2 ) pelas necessidades dos m e m b r o s de u m a associação cooperativista (distribuição
de serviços da economia de associações) e, neste caso, d o ponto de vista e c o n ô m i c o ,
ou
a ) segundo os princípios da e c o n o m i a de g e s t ã o p a t r i m o n i a l , o u
j8) segundo os princípios da economia aquisitiva.
A associação, p o r s u a v e z , pode s e r , e m todos estes casos:
I) associação apenas reguladora da economia ( m a t e r i a l m e n t e ) o u ,
II) ao m e s m o tempo, associação e c o n ô m i c a .
A o lado de tudo isto existe
b) a especialização d e serviços da e c o n o m i a de troca, entre economias autocéfalas
e a u t ô n o m a s , as quais se o r i e n t a m materialmente s ó pela situação d e interesses e, portan-
to, f o r m a l m e n t e s ó pela o r d e m estabelecida p o r u m a associação o r d e n a d o r a (capítulo
n, § 5, d )

1. Tipo para o caso I : associação apenas reguladora da economia, com caráter de 2 (asso-
ciação cooperativista) e a (gestão patrimonial) o artesanato de aldeia, na índia (establishment},
para o caso I I : associação econômica, com caráter de 1 (gestão patrimonial senhorial) é a repar-
tição da satisfação de necessidades da gestão patrimonial de príncipes, senhores territoriais ou
feudais (também, no caso de príncipes, de necessidades políticas) entre as economias individuais
dos súditos, vassalos, servos, ou entre escravos, pequenos lavradores e artesãos de aldeia demiúr-
gicos (veja adiante) fenômeno que se encontra, em forma primitiva, no mundo inteiro. Caráter
apenas regulador da economia (I) tinham, por exemplo, freqüentemente os serviços artesanais
exigidos, no caso 1 , em virtude do direito de proscrição do senhor territorial, e, no caso 2,
em virtude do direito de proscrição das cidades (na medida em que, como freqüentemente
ocorreu, não perseguiram fins materiais, mas apenas fiscais) No caso de economia aquisitiva
(a 1 p) repartição de serviços industriais caseiros entre gestões patrimoniais individuais.
ECONOMIA E SOCIEDADE 79

O tipo para a 2 /3, no caso I I , está representado por todos os exemplos de especialização
de serviços imposta, em várias pequenas indústrias muito antigas. Na indústria metalúrgica de
Solingen existia originalmente especialização de serviços pactuada entre os participantes, a qual
só mais tarde assumiu caráter de indústria domiciliar, sob direção senhorial.
Tipos para o caso a 2 /31 (associação apenas reguladora) são todas as regulações do comércio
na aldeia e na cidade, na medida em que interferiam materialmente nas formas da obtenção
de bens.
O caso 2 b é o da moderna economia de troca.
E m pormenores, acrescentaremos o seguinte:
2. As ordens das associações do caso a 2 a I , enquanto referentes à economia de gestão
patrimonial, estão orientadas de um modo particular: pelas necessidades previstas dos partici-
pantes individuais e não pelos fins de gestão patrimonial da associação (de aldeia) As obrigações
de serviços especificadas que assim se orientam denominamos liturgias naturais demiúrgicas,
e esta forma de providência chamamos satisfação de necessidades demiúrgica. Trata-se sempre
de regulações — por uma associação — da distribuição e — eventualmente — coordenação
de trabalho.
Não empregamos, no entanto, esta designação quando (casos 2 a I I ) a associação (seja
esta senhorial ou cooperativista) tem economia própria, em interesse da qual se distribuem servi-
ços especializados. Nestes casos, os tipos estão representados pelas ordens referentes a prestações
de serviços ou em espécie, especializadas ou especificadas, vigentes em grandes propriedades
feudais, senhorios territoriais e outras gestões patrimoniais em grande escala. Mas também os
serviços repartidos por príncipes ou associações políticas, comunais ou outras, em primeiro
lugar não economicamente orientadas, em favor digestão patrimonial senhorial ou da associação.
A estas obrigações de fornecimento de bens ou serviços, qualitativamente especificados, por
parte de lavradores, artesãos ou comerciantes, denominamos liturgias naturais de oikos, quando
o recebedor é uma grande gestão patrimonial pessoal; quando o recebedor é a gestão patrimonial
de uma associação, denominamos liturgias naturais de associação-, ao princípio desta forma de
provisão da gestão patrimonial de uma associação econômica denominamos satisfação litúrgica
de necessidades. Esta forma de satisfação de necessidades desempenhou historicamente um papel
extraordinariamente importante, ao qual voltaremos em várias ocasiões. E m associações políticas,
ocupou o lugar das modernas "contribuições fiscais", em associações econômicas significou
uma "descentralização" das grandes gestões patrimoniais em virtude da repartição da satisfação
de suas necessidades entre lavradores obrigados a fornecer serviços ou bens em espécie, artesãos
em serviço da gestão doméstica e outros obrigados a prestar serviços de todas as espécies, os
quais não foram mais mantidos e empregados na gestão comum, mas tinham suas gestões pró-
prias, permanecendo, porém, dependentes da grande gestão patrimonial em virtude de suas
obrigações para com a mesma. Para a grande gestão patrimonial da Antiguidade, RODBERTUS foi
o primeiro que empregou o termo oikos, o qual — segundo ele — se caracteriza pela autarquia
— em princípio — da satisfação de necessidades por membros da gestão ou dependentes da
mesma, os quais dispõem, sem troca alguma, dos meios de obtenção materiais. De fato, as
grandes gestões patrimoniais da Antiguidade, senhoriais e, mais ainda, as principescas (sobretudo,
as do "Novo Império", no Egito) representam, ainda que em grau muito diverso (raramente
em forma p u r a ) tipos de gestões cuja satisfação das necessidades se reparte entre dependentes,
obrigados a determinadas prestações (de serviços ou em espécie) O mesmo fenômeno se encon-
tra, em determinadas épocas, na China e na índia e, em extensão menor, em nossa Idade Média,
começando com o Capitulare de villis; a troca externa não faltava, na maioria das vezes, na
grande gestão patrimonial, tendo, porém, caráter de troca para fins de provimento. Tampouco
faltavam transações efetuadas em dinheiro; mas desempenhavam um papel secundário na cober-
tura de necessidades e estavam vinculadas à tradição. Também nas economias obrigadas a presta-
ções litúrgicas não faltava a troca externa. Mas o decisivo é que, principalmente, a satisfação
de necessidades ocorria mediante os bens em espécie recebidos como remuneração pelos serviços
repartidos: isto é, mediante emolumentos em espécie e prebendas, na forma de terras. Natural-
mente, as transições são fluidas. Mas sempre se trata de uma regulação, por parte de uma
associação econômica, da orientação dos serviços em relação à distribuição e coordenação
do trabalho.
80 MAX WEBER

3. Para o caso a 2 I (associação reguladora da economia) são tipos bastante puros do


caso p (orientação pelos princípios da economia aquisitiva) aquelas regulações econômicas exis-
tentes nas comunas ocidentais da Idade Média, bem como nas corporações e castas da China
e da índia, que prescreviam o número e a natureza dos postos de mestre e a técnica do trabalho,
portanto, o modo de orientação do trabalho nas profissões artesanais. Mas isto só na medida
em que o sentido não era a satisfação de necessidades de consumo pelos serviços dos artesãos,
mas, sim — o que nem sempre, mas freqüentemente foi o caso — a garantia das possibilidades
aquisitivas dos artesãos: especialmente a "manutenção" da qualidade de serviço e a repartição
da clientela. Como toda regulação da economia, esta também significou, naturalmente, uma
limitação da liberdade de mercado e, portanto, da orientação autônoma pelos princípios da
economia aquisitiva, por parte dos artesãos: estava orientada pela garantia do "sustento" para
os empreendimentos artesanais existentes e, portanto, internamente afim, em seus aspectos mate-
riais, com a orientação pelos princípios da economia de gestão patrimonial, não obstante sua
forma de empreendimento aquisitivo.
4. Tipos para o caso a 2 I I p, além dos tipos puros da indústria caseira já mencionados,
são sobretudo as grandes quintas no leste de nosso país, com as pequenas economias de lavradores
dependentes, orientadas pelas ordens estabelecidas pela quinta, e também as do nordeste, com
sistema semelhante. Tanto a economia da grande quinta quanto a da indústria caseira são em-
preendimentos aquisitivos do senhor da quinta ou do comerciante empresário; os empreen-
dimentos econômicos dos lavradores dependentes ou dos trabalhadores a domicílio orientam-se,
no que se refere à forma de distribuição e coordenação dos serviços que lhes foi imposta, primor-
dialmente pelas obrigações de trabalho que lhes impõem os regulamentos de trabalho da quinta
ou derivadas da sua situação de dependência de trabalhadores a domicílio. E m todos os demais
aspectos são gestões patrimoniais. Sua atividade aquisitiva não é autônoma, mas heterônoma
em favor do empreendimento aquisitivo do senhor da quinta ou do comerciante empresário.
Dependendo do grau de uniformização dessa orientação, a situação pode aproximar-se da distri-
buição de serviços puramente técnica dentro da mesma empresa, como ocorre na "fábrica".

§ 19- (Ainda I I , cf. § 1 8 . ) D o ponto de vista social, as f o r m a s de distribuição


de serviços se distinguem, a l é m disso,
B. segundo o m o d o e m que estão apropriadas as oportunidades que existem na
f o r m a de r e m u n e r a ç ã o p o r determinados serviços. Objetos da a p r o p r i a ç ã o p o d e m ser:
1. oportunidades de utilização de serviços;
2. meios de o b t e n ç ã o materiais;
3- oportunidades de l u c r o e m v i r t u d e de serviços de g e r ê n c i a .

Sobre o conceito sociológico de "apropriação" veja acima, capítulo I , § 10.

C o m respeito a 1 ) a p r o p r i a ç ã o de oportunidades de utilização de trabalho, neste


caso é possível:
I . que o serviço seja prestado a u m destinatário i n d i v i d u a l ( s e n h o r ) o u a u m a
associação,
I I . que o serviço se v e n d a n o mercado.

E m ambos os casos existem possibilidades, radicalmente opostas entre s i :

P r i m e i r a possibilidade:
a ) a p r o p r i a ç ã o m o n o p ó l i c a das oportunidades de utilização pelo p r ó p r i o t r a b a -
lhador ('trabalho livre, dentro dos limites da corporação"}, esta pode ser:
a ) hereditária e a l i e n á v e l , o u
j8) pessoal e inalienável, o u
y) hereditária, mas inalienável
e e m todos estes casos pode ter este caráter o u incondicionalmente o u na base d e
determinadas c o n d i ç õ e s materiais.
ECONOMIA E SOCIEDADE 81

Exemplos de 1 a a são para o caso I : artesãos de aldeia; para o caso I I : direitos artesanais
"reais", na Idade Média; de 1 a /3, para o caso I : todos os "direitos a um cargo"; de 1 a y,
casos I e I I : certos direitos artesanais na Idade Média, mas sobretudo na índia, e "cargos" medie-
vais de todas as espécies.

Segunda possibilidade:
b) a p r o p r i a ç ã o da utilização da f o r ç a de trabalho pelo proprietário dos trabalha-
dores ('trabalho dependente"}.
a) l i v r e , isto é , hereditária e alienável (escravidão total), o u
/3) hereditária, mas n ã o alienável o u n ã o livremente alienável, p o r e x e m p l o , e m
conjunto c o m os meios de trabalho materiais — particularmente o solo (servidão, sujei-
ç ã o hereditária).

A apropriação da utilização do trabalho por um senhor pode estar materialmente limitada


(b, p. servidão). Nesse caso, o trabalhador não pode abandonar seu posto por decisão unilateral
nem ser despedido por decisão unilateral do senhor.

Essa a p r o p r i a ç ã o da utilização do trabalho pode ser aproveitada, pelo p r o p r i e t á r i o


a ) n o interesse da própria g e s t ã o p a t r i m o n i a l e, nesse caso,
a) c o m o fonte de rendas e m espécie o u e m d i n h e i r o , o u
/3) c o m o f o r ç a de trabalho nos serviços da g e s t ã o p a t r i m o n i a l (escravos da casa
ou servos),
b ) n o interesse de u m e m p r e e n d i m e n t o aquisitivo e, nesse caso,
a ) c o m o a a ) fornecedores de m e r c a d o r i a s , o u p/3) elaboradores, p a r a a v e n d a ,
de matéria-prima fornecida (indústria domiciliar dependente),
P) c o m o força de trabalho no p r ó p r i o e m p r e e n d i m e n t o ( e m p r e e n d i m e n t o c o m
trabalho de escravos o u servos).

Por "proprietário" entendemos aqui e no que segue sempre alguém que, como tal, não
participa necessariamente no processo de trabalho, seja como diretor seja como trabalhador.
Como proprietário, pode ser o "diretor", mas não necessariamente e freqüentemente não é
o caso.
A utilização de escravos e servos (dependentes de todas as espécies) "para fins de gestão
patrimonial'', não como trabalhadores num empreendimento aquisitivo mas como fonte de renda,
era típica na Antiguidade e nos inícios da Idade Média. Documentos cuneiformes revelam, por
exemplo, a existência de escravos de um príncipe persa que foram instruídos em determinados
ofícios, talvez para servirem de força de trabalho na própria gestão patrimonial, talvez para
trabalharem para uma clientela, de forma materialmente livre e na base de certas prestações
ao proprietário (em grego, airtxpopá, em russo obrok, em alemão, Halszins ou Leibzins) Esse
foi quase sempre o caso com os escravos helénicos (houve, porém, exceções), em Roma, a
economia independente com peculium ou merx peculiaris (e, naturalmente, tributos pagos ao
senhor) cristalizou-se em instituições jurídicas. Na Idade Média, a propriedade de servos (feib-
herrschaft) assumiu, em grande parte — regularmente, por exemplo, no oeste e sul da Alemanha
—, o caráter de um simples direito a certas rendas pagas por pessoas que, de resto, eram quase
independentes; na Rússia, foi muito freqüente (ainda que não constituísse a regra) a limitação
efetiva do senhor à obtenção do obrok por parte de servos que, ainda que em precária situação
jurídica, estavam livres para mudar de domicílio.
A utilização de trabalhadores dependentes para fins "aquisitivos" assumiu, especialmente
nas indústrias domiciliares dos senhores territoriais (mas também, provavelmente, em algumas
principescas, por exemplo, dos faraós) as seguintes formas:
a ) indústria dependente com base em fornecimento: entrega de bens em espécie cuja
matéria-prima (fibra de linho, por exemplo) foi produzida e elaborada pelos próprios trabalha-
dores (lavradores servos) ou
82 MAX WEBER

b) indústria dependente com base em elaboração, a elaboração de material fornecido


pelo senhor. Possivelmente, o produto, pelo menos em parte, foi convertido em dinheiro pelo
senhor. E m muitos casos (assim na Antiguidade) essa valorização no mercado se manteve nos
limites de atos ocasionais — o que não foi o caso nos inícios da Idade Moderna, particularmente
nas regiões fronteiriças eslavo-germânicas: foi sobretudo aqui (mas não exclusivamente) que
surgiram indústrias domiciliares mantidas por senhores de dependentes e servos. A gestão aquisi-
tiva do senhor pôde tornar-se empresa contínua tanto na forma de
a ) trabalho dependente com base no domicílio, quanto na de
b) trabalho dependente com base na oficina..
Ambas as formas encontram-se — a última como uma das formas diversas do ergasterion —,
na Antiguidade, nas oficinas dos faraós e dos templos, e também (segundo provam os frescos
de vários túmulos) naquelas de grandes senhores de servos, no Oriente; além disso, aparecem
na Grécia helénica (Atenas: Demóstenes), nas oficinas coordenadas às grandes quintas romanas
(cf. as exposições de GUMMERUS), em Bizâncio, no genitium (=gynaikeion carolíngio e, na Idade
Moderna, por exemplo, na fábrica russa que trabalha com servos (cf. o livro de M. v. TUGAN-BA-
RANOVSKI, sobre a fábrica russa [1900])

T e r c e i r a possibilidade:
c ) A u s ê n c i a de toda a p r o p r i a ç ã o (trabalho f o r m a l m e n t e " l i v r e " , neste sentido
da p a l a v r a ) trabalho e m v i r t u d e de u m contrato v o l u n t á r i o , p o r ambas as partes. O
contrato, no entanto, pode estar materialmente regulado de muitas m a n e i r a s p o r ordens
f o r ç a d a m e n t e impostas pela tradição o u pela l e i , referentes às c o n d i ç õ e s de trabalho.
O trabalho l i v r e na base de contratos pode s e r e é utilizado tipicamente
a ) p a r a fins de g e s t ã o patrimonial:
a ) c o m o trabalho ocasional (chamado p o r B ü o W I o h n w e r / r " [trabalho assala-
riado])
a a ) na p r ó p r i a unidade doméstica do empregador;
PP) na unidade doméstica d o trabalhador; (chamado p o r BÜCHER "Heimwerk " [tra-
balho d o m i c i l i a r ] )
p) c o m o trabalho permanente:
aa) na própria unidade doméstica d o empregador ( c r i a d o a l u g a d o )
PP) na unidade doméstica do trabalhador (típico: o c o l o n o )
b) p a r a fins aquisitivos e, neste caso,
a) c o m o trabalho ocasional, o u
P) c o m o trabalho permanente e, e m ambos os casos, t a m b é m unidade doméstica
1) na unidade doméstica do trabalhador (trabalho d o m i c i l i a r ) , o u
2 ) n o empreendimento fechado d o p r o p r i e t á r i o (trabalhadores de quinta c u ofici-
na, e particularmente de f á b r i c a )

No caso a, em virtude do contrato de trabalho, o trabalhador está a serviço de um consu-


midor que "dirige" o trabalho; no segundo caso (b), está a serviço de um empresário com
intenções aquisitivas: diferença que, apesar de observar a mesma forma jurídica, é fundamental
do ponto de vista econômico. Colonos podem ser ambas as coisas, sendo, porém, tipicamente
trabalhadores de oikos.

Q u a r t a possibilidade:
d) Por f i m , a a p r o p r i a ç ã o das oportunidades d e utilização d o trabalho pode reali-
zar-se p o r parte de u m a associação de trabalhadores, sem q u e exista a p r o p r i a ç ã o alguma
o u , p e l o menos, a p r o p r i a ç ã o l i v r e por parte dos trabalhadores individuais, e isto
a) p o r fechamento absoluto o u relativo p a r a o e x t e r i o r ;
P) p o r e l i m i n a ç ã o o u limitação da possibilidade de o d i r e t o r p r i v a r os trabalha-
dores de suas oportunidades d e aquisição pelo trabalho s e m consultá-los.
ECONOMIA E SOCIEDADE 83

Aqui cabe toda apropriação por uma casta de trabalhadores ou por uma "comunidade
mineira" constituída por trabalhadores (como ocorreu na mineração da Idade Média) ou por
uma associação de "ministeriais" sujeita ao direito da corte ou pelos "jardineiros debulhadores"
de uma associação rural. E m infinitas gradações, esta forma de apropriação atravessa a história
social de todos os países. A segunda forma, também muito divulgada, ganhou muita atualidade
em virtude dos closed shops dos sindicatos e, sobretudo, em virtude dos "conselhos de fábrica"
(fietriebsrãte).

T o d a a p r o p r i a ç ã o d e postos d e trabalho e m empreendimentos aquisitivos, p o r


parte d a s trabalhadores, b e m c o m o , ao c o n t r á r i o , a a p r o p r i a ç ã o da utilização de traba-
lhadores ( " d e p e n d e n t e s " ) p e l o p r o p r i e t á r i o , significa u m a limitação d o l i v r e recruta-
mento da f o r ç a de trabalho e, portanto, da seleção segundo o m á x i m o de rendimento
técnico dos trabalhadores e, p o r conseguinte, u m a limitação da r a c i o n a l i z a ç ã o formal
da g e s t ã o e c o n ô m i c a . Fomenta materialmente a restrição da racionalidade técnica:
I ) e m caso de a p r o p r i a ç ã o p o r u m proprietário da utilização dos produtos de
trabalho p a r a fins aquisitivos,
a ) pela tendência a estabelecer determinados contingentes de trabalho a s e r e m
realizados (orientados pela tradição o u c o n v e n ç ã o o u p e l o contrato),
b) pela d i m i n u i ç ã o o u — e m caso de l i v r e a p r o p r i a ç ã o dos trabalhadores pelo
proprietário (escravidão total) — e x t i n ç ã o do interesse p r ó p r i o dos trabalhadores n o
m á x i m o de rendimento t é c n i c o ;
I I ) e m caso de a p r o p r i a ç ã o pelos trabalhadores: p o r conflitos entre o interesse
p r ó p r i o dos trabalhadores e m c o n s e r v a r a situação de v i d a tradicional e o interesse
de q u e m os utiliza a ) e m f o r ç á - l o s ao m á x i m o d e r e n d i m e n t o técnico o u b) e m e m p r e g a r
meios técnicos e m substituição a seu trabalho. Por isso, p a r a o senhor é s e m p r e interes-
sante a t r a n s f o r m a ç ã o n u m a simples fonte de r e n d a . Q u a n d o as demais circunstâncias
s ã o propícias, u m a a p r o p r i a ç ã o da utilização dos produtos p a r a fins aquisitivos p o r
p a n e dos trabalhadores f a v o r e c e , portanto, a e x p r o p r i a ç ã o , mais o u m e n o s total, das
f u n ç õ e s d e direção do proprietário. Mas f a v o r e c e t a m b é m , e m r e g r a , o desenvolvimento
de d e p e n d ê n c i a m a t e r i a l , p o r parte dos trabalhadores, e m r e l a ç ã o aos participantes
na troca que lhes s ã o superiores (os comerciantes e m p r e s á r i a s ) na f u n ç ã o de diretores.

1. As duas direções formalmente opostas da apropriação — a dos postos de trabalho pelos


trabalhadores e a dos trabalhadores por um proprietário — têm, na prática, conseqüências muito
parecidas. Nisto não há nada estranho. E m primeiro lugar, as duas estão em regra formalmente
vinculadas entre si. Isto ocorre quando a apropriação dos trabalhadores por um senhor coincide
com a apropriação das oportunidades de aquisição dos trabalhadores por uma associação fechada
de trabalhadores, como, por exemplo, no caso da associação sujeita ao direito da corte. Como
é natural, ocorre neste caso que as possibilidades de utilizar os trabalhadores se tornam cada
vez mais estereotipadas e seu rendimento se mede por um sistema de contingentes, diminuindo
o interesse próprio deles nesse rendimento e surgindo, portanto, a resistência eficaz desses
trabalhadores contra "inovações" técnicas de todas as espécies. Mas mesmo que não seja este
o caso, a apropriação dos trabalhadores por um proprietário significa de fato, entre outras coisas,
que o último se vê obrigado a utilizar precisamente estes trabalhadores, uma vez que não os
escolhe num processo de seleção, como ocorre nas fábricas modernas, mas tem de aceitá-los
sem seleção alguma. Isto se aplica particularmente ao trabalho de escravos. Toda tentativa de
forçar os trabalhadores apropriados a prestar serviços que não sejam tradicionais tropeça numa
obstrução tradicionalista e só poderia ser realizada coativamente mediante a aplicação de meios
bastante brutais e, normalmente, prejudiciais ao interesse próprio do senhor, já que põem em
perigo os fundamentos tradicionais de sua posição de senhor. Por isso, os serviços de trabalha-
dores apropriados mostram quase por toda parte a tendência ao contingenciamento, e onde
este foi quebrantado pelo poder dos senhores (como ocorreu particularmente na Europa oriental
84 MAX WEBER

nos inícios da Idade Moderna) a ausência de seleção e de interesse e risco próprios, por parte
dos trabalhadores apropriados, obstruiu o desenvolvimento até o ótimo técnico. No caso de
apropriação dos postos de trabalho pelos trabalhadores, houve o mesmo resultado, ainda que
mais rapidamente.
2. O caso indicado na frase anterior é típico para o desenvolvimento nos inícios da Idade
Média (séculos X e XIII). Os Beunden [explorações agrárias senhoriais (N.T.)] da época carolíngia
e todas as demais tentativas de "empreendimentos agrícolas em grande escala" diminuíram e
desapareceram. A renda do proprietário do solo e do senhor feudal acabou estereotipada, e
isto em nível muito baixo; o produto em espécie passou em proporção crescente (agricultura,
mineração) para as mãos dos trabalhadores e os rendimentos em dinheiro (artesanato), quase
completamente. As "circunstâncias favorecedoras" desse desenvolvimento, que só se deu desta
forma no Ocidente, foram as seguintes: a impossibilidade de utilizar os trabalhadores de outro
modo que como fonte de renda, devida: 1) à absorção da camada de proprietários por interesses
político-militares e 2) à falta de um quadro administrativo competente, em conexão com 3) a
liberdade dos trabalhadores, existente de fato e dificilmente obstável, de mudar para concorrentes
particulares, também interessados na apropriação deles e 4 ) as numerosas oportunidades de
novos arroteamentos, exploração de novas minas ou descoberta de novos mercados locais, em
conexão com 5) a tradição técnica da Antiguidade. Quanto mais a apropriação dos trabalhadores
foi substituída pela apropriação das possibilidades de aquisição pelos trabalhadores (tipos clássi-
cos: a mineração e as corporações inglesas) mais progrediu, em conseqüência, a expropriação
dos proprietários, que primeiro se tornaram puros recebedores de rendas (culminando, como
já era freqüente naquela época, na dispensa da obrigação de renda ou no livramento dela,
por parte dos trabalhadores: (" o ar da cidade liberta''), tanto mais ganhou terreno, quase imediata-
mente, a diferenciação das oportunidades de lucro no mercado, dentro do círculo próprio dos
trabalhadores (e, a partir de fora, pelos comerciantes).

§ 20. (Ainda I I B , cf. §§ 18, 1 9 . ) C o m respeito a 2 ) apropriação dos meios de


obtenção materiais, complementares do trabalho, esta pode ser: a p r o p r i a ç ã o
a) pelos trabalhadores, individualmente o u p o r associações dos mesmos, o u
b) pelos proprietários, o u
c ) p o r associações reguladoras de terceiros.
C o m respeito a a) a p r o p r i a ç ã o pelos trabalhadores, esta pode ser
a ) pelos trabalhadores individuais que e n t ã o estão " d e p o s s e " dos meios de obten-
ç ã o materiais,
P) p o r u m a associação de trabalhadores (companheiros), total o u relativamente
fechada, de m o d o que n ã o é o trabalhador i n d i v i d u a l que está de posse dos meios
de o b t e n ç ã o materiais, mas s i m u m a associação de tais indivíduos.
A associação pode ter g e s t ã o e c o n ô m i c a
a a ) de economia unitária (comunista),
PP) c o m a p r o p r i a ç ã o de partes (cooperativista).
E m todos estes casos, a a p r o p r i a ç ã o p o d e ser aproveitada
1 ) p a r a fins de g e s t ã o p a t r i m o n i a l , o u
2 ) p a r a fins de aquisição.

O caso a pode significar absoluta liberdade de troca dos pequenos lavradores, artesãos
("Preiswerker" [trabalhadores por preço] na terminologia de Bücher), barqueiros ou carroceiros.
Ou existem entre eles associações reguladoras da economia; veja adiante. O caso p abrange
fenômenos muito heterogêneos, segundo exista gestão econômica patrimonial ou aquisitiva. A
economia doméstica — que, em princípio, não é necessariamente comunista, nem em suas "ori-
gens" nem efetivamente (veja o capítulo V ) — pode estar orientada puramente pelas necessidades
próprias. Ou ela pode — no início, ocasionalmente — desprender-se, numa troca orientada
pelas necessidades, dos excedentes que produziu monopolicamente, em virtude de sua localização
privilegiada (matérias-primas específicas) ou em sua habilidade específica adquirida. É possível
ECONOMIA E SOCIEDADE 85

que essa troca se transforme numa troca regular para fins de aquisição. Nesse caso, costumam
desenvolver-se indústrias típicas "de tribo" com especialização e troca /nrerétnicas — uma vez
que as possibilidades de vencia se baseiam em monopólios e, na maioria dos casos, em segredos
herdados —, as quais mais tarde se tornam indústrias itinerantes e de párias ou (quando os
artesãos se reúnem numa associação política)casras (sobre a base de separação ritual interétnica),
como ocorreu na índia. O caso fifiéo das "cooperativas de produção". Economias domésticas
podem aproximar-se dele quando penetra nelas o cálculo em dinheiro. Fora disso, como associa-
ção de trabalhadores, é um fenômeno ocasional. E m forma típica, apresenta-se num caso certa-
mente importante: o das minerações nos inícios da Idade Média.

C o m respeito a b}. A a p r o p r i a ç ã o p o r proprietários o u associações dos mesmos


s ó pode significar aqui — u m a v e z que já falamos sobre a a p r o p r i a ç ã o p o r u m a associa-
ção de trabalhadores — a e x p r o p r i a ç ã o dos trabalhadores dos meios de o b t e n ç ã o , n ã o
apenas dos trabalhadores individuais c o m o de todos eles e m conjunto. Neste caso,
p o d e m ser apropriados
1) pelos proprietários, todos o u alguns o u u m dos seguintes objetos:
a ) o solo (inclusive as águas),
(3) as riquezas subterrâneas,
y) as fontes de e n e r g i a ,
8 ) os locais de trabalho,
e ) os meios de trabalho (ferramentas, aparelhos, m á q u i n a s ) ,
0 as matérias-primas.
Todos eles podem estar apropriados, n o caso i n d i v i d u a l , nas m ã o s de u m a ou
de várias pessoas.
O s proprietários p o d e m utilizar os meios de o b t e n ç ã o por eles apropriados
a ) p a r a fins de g e s t ã o p a t r i m o n i a l ,
aa) c o m o meios p a r a a cobertura de necessidades próprias,
PP) c o m o fontes de r e n d a , emprestando-os, e isto
1) p a r a utilização e m outra g e s t ã o p a t r i m o n i a l ,
I I ) p a r a utilização c o m o m e i o de a q u i s i ç ã o e, nesse caso,
aaa) n u m e m p r e e n d i m e n t o aquisitivo s e m c á l c u l o de capital,
PPP) c o m o bens de capital ( n u m e m p r e e n d i m e n t o a l h e i o ) e, p o r f i m ,
/3) c o m o bens de capital p r ó p r i o s ( n o e m p r e e n d i m e n t o próprio).
É possível, a l é m disso,
2 ) a p r o p r i a ç ã o p o r u m a associação e c o n ô m i c a , p a r a cuja conduta existem as mes-
mas alternativas que no caso 1 .
C o m respeito a c ) p o r f i m , é possível
3) a p r o p r i a ç ã o por u m a associação reguladora da economia que n ã o utiliza ela
própria os meios de o b t e n ç ã o c o m o bens de capital n e m faz deles u m a fonte de renda,
mas os oferece aos participantes.

1. A apropriação do solo por economias individuais ocorre primordialmente


a ) pelo tempo entre o plantio e a colheita,
b) quando o cultivo exige medidas preparatórias, isto é,
a ) arroteamento ou
P) irrigação
pelo tempo em que haja cultivo continuo.
Só mais tarde, quando se faz sentir a escassez de terras, encontramos
c ) encerramento da admissão ao cultivo do solo e ao usufruto de pastos e florestas, além
de contingenciamento da utilização dos mesmos para os membros da comunidade colonizadora.
O sujeito da apropriação que então ocorre pode ser:
86 MAX W E B E R

1) uma associação — de tamanho diferente, dependendo da natureza da utilização (para


hortas, prados, terras de lavoura, pastos, florestas: associações com tamanho crescente, desde
a família individual até a "tribo").
Típicas são
a ) a associação de clã (ou ao lado desta)
b) a associação de vizinhos (normalmente associação de aldeia) para as terras de lavoura,
os prados e os pastos,
c ) a associação da comarca, muito mais ampla, de caráter e tamanho diversos, para as
florestas,
d) as economias familiares para a horta e a própria casa, com celeiros, estábulos etc.,
com participação nas terras de lavoura e pastos. Essa participação pode manifestar-se
a) na forma de equiparação empírica, quando se trata de cultivo de novas terras na agri-
cultura ambulante,
P) na forma de distribuição racional, sistemática, na agricultura se dentária, sendo esta,
em regra, conseqüência
ata) de exigências fiscais, com responsabilidade solidária dos membros da associação de
aldeia, ou
PP) de exigências políticas de igualdade dos mesmos.
Portadores do funcionamento são normalmente as comunidades domésticas (sobre o desen-
volvimento destas, veja o capítulo V).
O sujeito da apropriação que segue à colonização pode também ser:
2 ) um senhor fundiário, prescindindo-se da questão (da qual trataremos mais tarde) de
se essa posição senhorial se origina numa posição proeminente dentro do clã, na dignidade
de chefe de tribo com direito a prestações de serviços pessoais (capítulo V), em disposições
coativas de natureza fiscal ou militar ou no cultivo ou na irrigação sistemática de novas terras.
A propriedade senhorial pode ser utilizada:
a) com trabalho dependente (de escravos ou servos),
1) para fins de gestão patrimonial
a) por prestações em espécie,
P) por prestações de serviços,
2 ) para fins de aquisição,
como plantação,
b) com trabalho livre
I ) para fins de gestão patrimonial, como senhorio de renda,
aa) por rendas em espécie (participação dos arrendatários no cultivo ou prestações em
espécie por parte dos mesmos),
PP) por rendas em dinheiro, pagas pelos arrendatários. E m ambos os casos
aaa) com recursos próprios (arrendatários com gestão aquisitória) ou
PPP) com recursos senhoriais (colonos),
I I ) para fins aquisitivos: como grande empresa racional.
No caso a 1, o senhor fundiário costuma estar tradicionalmente vinculado — no que se
refere à forma da utilização — tanto a determinados trabalhadores (não há, portanto, seleção)
quanto aos serviços dos mesmos. O caso a 2 só se deu nas plantações cartaginesas e romanas,
na Antiguidade, e nas coloniais e norte-americanas; o caso b I I , somente no Ocidente moderno.
A forma do desenvolvimento da propriedade senhorial (e, sobretudo, a de sua decomposição)
foi decisiva para a forma das modernas relações de apropriação. Nestas, em seu tipo puro,
só existem as figuras: a)do proprietário de terras; ó ) d o arrendatário capitalista e c)do trabalhador
agrícola sem propriedade. Só que esse tipo puro constitui uma exceção (existente na Inglaterra)
2. As riquezas do solo exploradas pela mineração podem estar apropriadas
a ) pelo proprietário do solo (nos tempos passados, geralmente, o senhor fundiário),
b) por um senhor político (senhor titular de regalias),
c ) pelo "descobridor" de jazidas aproveitáveis ("liberdade de mineração"),
d) por uma associação de trabalhadores,
e ) por um empreendimento aquisitivo.
ECONOMIA E SOCIEDADE 87

Os senhores fundiários ou titulares de regalias podiam ou explorar as jazidas apropriadas


sob direção própria (o que ocorreu ocasionalmente na Idade Média) ou utilizá-las como fonte
de renda, arrendando-as
a) a uma associação de trabalhadores (comunidade mineira — Berggemeinde) — caso
d — ou
P) a um descobridor qualquer (ou pertencente a determinado círculo de pessoas) (Assim
ocorreu nas "minas livres" na Idade Média, origem da liberdade de mineração.)
As associações de trabalhadores assumiram, na Idade Média, tipicamente a forma de coope-
rativas de participação, com obrigação de extração (em relação aos senhores de minas interessados
na renda ou aos companheiros solidariamente responsáveis) e direito à participação no produto,
e, mais tarde, a de "cooperativas" puramente constituidas por proprietários, com participação
no produto e nas perdas. Os senhores das minas foram progressivamente expropriados em favor
dos trabalhadores, e estes, por sua vez, com a necessidade crescente de instalações, por sindicatos
em posse de bens de capital, de modo que, como forma final da apropriação, resultou o "sindi-
cato" capitalista (ou seja, a sociedade por ações)
3. Os meios de obtenção com caráter de "instalações" [§ 17 p. 77] (1. instalações de energia,
especialmente movidas por água, "moinhos" para fins diversos, de todas as espécies e 2. oficinas,
eventualmente com aparelhos fixamente instalados) foram apropriados, nos tempos passados,
particularmente na Idade Média, com bastante regularidade
a) por príncipes e senhores fundiários (caso 1)
b) por cidades (caso 1 ou 2),
c) por associações de trabalhadores (corporações, sindicatos, caso 2), sem constituição
de uma empresa unitária.
Ao contrário, nos casos aeb ocorre então aproveitamento como fonte de renda, permitin-
do-se a utilização por remuneração e, muitas vezes, forçando-a em virtude da situação monopó-
lica. A utilização das instalações se realizava por turno ou segundo a necessidade; em determinadas
circunstâncias, era, por sua vez, monopólio de uma associação reguladora. Fornos de pão, moi-
nhos de todas as espécies (de cereais e óleo), pisões, amoladeiras, matadouros, tinturarias, bran-
quearias (por exemplo, de mosteiros), forjas (estas, regularmente, para arrendamento a empre-
sas), além de cervejarias, destilarias e outras instalações, particularmente também estaleiros (na
Hansa, propriedade das cidades), e postos de venda de todas as espécies, foram assim explorados
pelos proprietários (indivíduos ou associações, particularmente cidades), de modo pré-capitalista,
permitindo-se aos trabalhadores sua utilização por remuneração e constituindo essas instalações,
ponanto, patrimônio dos proprietários e não bens de capital. A organização e exploração para
fins de gestão patrimonial daquelas fontes de renda, por proprietários individuais ou associações,
e também a obtenção de bens por cooperativas de produção, precedeu à transformação de
empresas particulares em "capital fixo". Os usuários das instalações, por sua vez, utilizavam-nas,
em parte, para fins de gestão patrimonial (fornos de pão, além de cervejarias e destilarias),
em parte, para fins aquisitivos.
4. Para a navegação marítima, nos tempos passados, era típica a apropriação do navio
por vários proprietários, os quais, por sua vez, se afastaram progressivamente dos trabalhadores
náuticos. A circunstância de que se desenvolveu na navegação, mais tarde, uma participação
no risco, por parte dos fretadores, e que proprietários de navios, diretores náuticos e tripulação
também participaram no fretamento, não criou relações de apropriação fundamentalmente dife-
rentes, mas apenas particularidades no cálculo e, portanto, nas oportunidades aquisitivas.
5 A apropriação de todos os meios de obtenção — instalações (de todas as espécies)
e ferramentas — por um proprietário, situação constitutiva para a fábrica de hoje, era exceção
nos tempos passados. Particularmente o ergasterion helênico-bizantino (em Roma: ergastulum)
era muito ambíguo em sua significação econômica, fato constantemente desconhecido pelos
historiadores. Era uma "oficina" que 1) podia ser parte integrante de uma gestão patrimonial
e na qual a) escravos realizaram trabalhos para a necessidade própria do senhor (por exemplo,
na economia da grande quinta) ou b) lugar de um "empreendimento acessório" com produção
para a venda, sobre a base de trabalho de escravos. Ou 2) a oficina, como fonte de renda,
podia ser parte da propriedade de uma pessoa particular ou associação (de uma cidade — assim,
os ergastérios do Pireu) arrendada por remuneração a pessoas individuais ou cooperativas de
88 MAX WEBER

trabalhadores. Quando se trata de trabalho em ergastérios (especialmente nos das cidades), cabe,
portanto, sempre perguntar: a quem pertence o próprio ergasterion? A quem pertencem os
demais meios de obtenção nele empregados, no processo de trabalho? Trabalham nele trabalha-
dores livres? Por conta própria? Ou trabalham nele escravos? Eventualmente-, a quem pertencem
os escravos que nele trabalham? Trabalham por conta própria (por apophora) ou por conta
do senhor? A combinação das respectivas respostas a estas perguntas resulta em estruturas econô-
micas com natureza cada vez mais radicalmente diversa. Na maioria dos casos, parece que o
ergasterion foi considerado uma fonte de renda — o que se mostra nas instituições bizantinas
e islâmicas —, sendo, portanto, um fenômeno fundamentalmente distinto da fábrica e mesmo
dos precedentes da mesma, comparável, talvez, no que se refere à multiplicidade de suas formas
econômicas possíveis, aos múltiplos tipos de "moinhos" na Idade Média.
6. Mas até quando oficina e meios de trabalho estão apropriados pelo mesmo proprietário
que utiliza trabalhadores alugados não se alcança ainda, do ponto de vista econômico, a situação
a qual hoje costumamos chamar "fábrica", enquanto não existem l)fontes mecânicas de energia,
2) máquinas e 3 ) especialização interna e coordenação do trabalho. A "fábrica" é hoje uma
categoria da economia capitalista. Empregamos aqui o termo no sentido de uma empresa que
pode ser objeto de um empreendimento com capital fixo, tendo, portanto, a forma de uma
oficina com divisão interna do trabalho e apropriação de todos os meios materiais de trabalho
e com trabalho mecanizado, isto é, orientado para o uso de motores e máquinas. A grande
oficina de "Jack of Newbury" (século XVI), cantada pelos poetas contemporâneos, na qual, segun-
do consta, houve centenas de teares manuais de sua propriedade, nos quais trabalhavam, lado
a lado e independentemente, como em casa, os trabalhadores que recebiam a matéria-prima
do empresário e para os quais existiam diversas "instituições beneficentes" — esta oficina carecia
de todas aquelas características. Um ergasterion egípcio, helénico, bizantino ou islâmico, proprie-
dade de um senhor de trabalhadores (dependentes) podia operar — existem tais casos, sem
dúvida — com especialização interna e coordenação do trabalho. Mas já a circunstância de que
também nesses casos o senhor se contentava ocasionalmente com apophora (de cada trabalhador
e dos capatazes com apophora elevada) — conforme demonstram claramente as fontes gregas
—, deve prevenir-nos de equipará-los economicamente a uma "fábrica" ou a uma oficina como
a de "Jack of Newbury" As manufaturas principescas, como a manufatura imperial de porcelana,
na China, e as oficinas na Europa que a imitam, para artigos de luxo destinados ao uso nas
cortes, e, sobretudo, as que produzem artigos para fins militares, estão muito mais próximas
à "fábrica" no sentido corrente da palavra. Não se pode impedir ninguém de chamá-las "fábri-
cas". Mais próximas ainda, em seus aspectos externos, à fábrica moderna estavam as oficinas
russas com trabalho de servos. À apropriação dos meios de obtenção acrescentava-se a apro-
priação dos trabalhadores. Pela razão dada, empregamos aqui o conceito de "fábrica" somente
quando se trata de oficinas 1) com apropriação total dos meios de obtenção materiais pelos
proprietários, 2) com especialização interna dos serviços, 3) com emprego de fontes de energia
e máquinas mecanizadas que exigem ser "manejadas". Todos os demais tipos de "oficinas"
serão designados com esre nome e os respectivos aditamentos.

§ 2 1 (Ainda: I I B , cf. §§ 18, 19 ) C o m respeito a 3 ) apropriação dos serviços


de coordenação, esta é típica
1. e m todos os casos de d i r e ç ã o p a t r i m o n i a l tradicional
a) e m f a v o r do p r ó p r i o dirigente (chefe da família o u do clã),
b) e m f a v o r do quadro administrativo n o m e a d o para a d i r e ç ã o de sua gestão
patrimonial (feudo de serviço dos f u n c i o n á r i o s da casa).
O c o r r e , a l é m disso,
2. nos empreendimentos aquisitivos
a) e m caso de coincidência absoluta ( o u a pro xi mad a m e n t e absoluta) de direção
e trabalho. Neste caso, é tipicamente idêntica à a p r o p r i a ç ã o dos meios de o b t e n ç ã o
materiais pelos trabalhadores ( B 2 a, § 20). Pode ser, nesse caso,
a ) a p r o p r i a ç ã o ilimitada, isto é, a p r o p r i a ç ã o pelos indivíduos, garantida c o m o
hereditária e alienável,
ECONOMIA E SOCIEDADE 89

ata) c o m o u
PP) s e m clientela garantida o u
P) a p r o p r i a ç ã o p o r u m a associação, c o m a p r o p r i a ç ã o pelos indivíduos apenas
pessoal o u materialmente regulada, o u seja, condicional o u ligada a determinados pres-
supostos, c o m as mesmas alternativas que a anterior;
b) e m caso de s e p a r a ç ã o entre d i r e ç ã o e trabalho o c o r r e c o m o a p r o p r i a ç ã o mono-
pólica das possibilidades d e e m p r e e n d i m e n t o , e m suas diferentes f o r m a s possíveis de
a ) m o n o p ó l i o s de cooperativas o u c o r p o r a ç õ e s , o u
P) concedidos pelo poder político.
3- E m caso de total ausência de a p r o p r i a ç ã o f o r m a l da d i r e ç ã o , a a p r o p r i a ç ã o
dos meios de o b t e n ç ã o — o u dos meios de crédito exigidos p a r a a o b t e n ç ã o dos meios
de capital — é praticamente idêntica, e m empreendimentos c o m c á l c u l o de capital,
à a p r o p r i a ç ã o da disposição sobre os cargos de d i r e ç ã o pelos respectivos proprietários.
Esses proprietários p o d e m e x e r c e r aquela disposição
a) dirigindo pessoalmente sua própria e m p r e s a o u
b) selecionando o gerente da empresa (eventualmente, e m caso de vários p r o p r i e -
tários, participando no ato de seleção).

Estas obviedades dispensam comentário.

T o d a a p r o p r i a ç ã o dos meios materiais de o b t e n ç ã o complementares significa n a t u -


ralmente, na prática e e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s , pelo menos u m direito de c o - g e s t ã o
decisivo na s e l e ç ã o da g e r ê n c i a e na e x p r o p r i a ç ã o (relativa, pelo m e n o s ) dos trabalha-
dores desses meios. Mas n e m toda e x p r o p r i a ç ã o dos trabalhadores individuais significa
e x p r o p r i a ç ã o dos trabalhadores em geral, s e m p r e que u m a associação destes, n ã o obs-
tante a e x p r o p r i a ç ã o f o r m a l , esteja e m c o n d i ç õ e s d e f o r ç a r materialmente a participação
na d i r e ç ã o o u na s e l e ç ã o da g e r ê n c i a .

§ 22. A e x p r o p r i a ç ã o do trabalhador individual da posse dos meios de o b t e n ç ã o


materiais está condicionada de m o d o puramente técnico.
a) nos casos e m que os meios de trabalho e x i g e m utilização simultânea e sucessiva
por grande n ú m e r o de trabalhadores,
b) n o caso de instalações de energia que s ó p o d e m ser aproveitadas de m o d o
racional quando se e m p r e g a m simultaneamente e m grande n ú m e r o de processos de
trabalho h o m o g ê n e o s , u n i f o r m e m e n t e organizados,
c ) quando a o r i e n t a ç ã o tecnicamente r a c i o n a l d o processo de trabalho s ó pode
ser realizada e m c o n e x ã o c o m processos de trabalho complementares, sob controle
comum e contínuo,
d) quando existe a necessidade de instrução específica p a r a a d i r e ç ã o de processos
de trabalho conexos que, por sua v e z , s ó s ã o racionalmente aproveitáveis quando se
realizam e m grande escala,
e ) pela possibilidade de disciplina rigorosa de trabalho e controle d o rendimento
e, e m c o n s e q ü ê n c i a , m a i o r regularidade da produção, e m caso de disposição unitária
sobre os meios de trabalho e as matérias-primas.
Mas estes fatores d e i x a r i a m aberta t a m b é m a possibilidade de a p r o p r i a ç ã o por
uma associação de trabalhadores (cooperativa de p r o d u ç ã o ) , o que significaria apenas
a s e p a r a ç ã o dos trabalhadores individuais dos meios de o b t e n ç ã o .
A e x p r o p r i a ç ã o da totalidade dos trabalhadores (incluindo-se os tecnicamente ins-
truídos e os d o setor c o m e r c i a l ) da posse dos meios de o b t e n ç ã o está economicamente
condicionada, sobretudo,
90 MAX WEBER

a ) e m g e r a l , e sendo iguais as demais circunstâncias, pela maior racionalidade


na empresa q u a n d o existe disposição l i v r e da d i r e ç ã o sobre a s e l e ç ã o e o m o d o de
e m p r e g o dos trabalhadores, e m o p o s i ç ã o a obstruções tecnicamente irracionais e i r r a -
cionalidades e c o n ô m i c a s que p r o v ê m da a p r o p r i a ç ã o dos postos de trabalho o u do
direito de c o - d i r e ç ã o , particularmente: a i n t e r v e n ç ã o de aspectos extra-empresariais,
referentes à m i c r o g e s t ã o patrimonial caseira e à a l i m e n t a ç ã o ;
b) dentro da economia de troca, pelo m a i o r acesso a créditos de u m a d i r e ç ã o
de empresa que n ã o v ê suas disposições limitadas p o r direitos p r ó p r i o s dos trabalha-
dores, mas tem pleno poder de disposição sobre as garantias materiais de seu crédito,
e que está representada p o r e m p r e s á r i o s profissionalmente formados e considerados
" s e g u r o s " e m v i r t u d e de sua g e r ê n c i a contínua da e m p r e s a ;
c ) historicamente tem suas origens n u m a e c o n o m i a que v e i o prosperando, devido
à ampliação extensiva e intensiva do mercado, desde o s é c u l o X V I , e isso e m v i r t u d e
da superioridade absoluta e indispensabilidade efetiva de u m a direção cujas disposições
se o r i e n t a m individualmente pela situação de m e r c a d o , p o r u m lado, e de puras conste-
lações de poder, p o r outro.
Prescindindo-se destas circunstâncias gerais, o e m p r e n d i m e n t o orientado pelas
possibilidades de m e r c a d o atua t a m b é m e m sentido f a v o r á v e l à q u e l a e x p r o p r i a ç ã o :
a) pela p r e f e r ê n c i a pelo cálçulo de capital — o qual s ó pode ser tecnicamente
racional e m caso de a p r o p r i a ç ã o total pelos proprietários — e m r e l a ç ã o a toda outra
g e s t ã o e c o n ô m i c a cujo c á l c u l o apresenta m e n o s racionalidade;
õ ) p e l a p r e f e r ê n c i a pelas qualidades puramente comerciais da d i r e ç ã o e m r e l a ç ã o
às técnicas, e guardando os segredos técnicos e comerciais;
c ) pelo favorecimento da g e r ê n c i a especuladora da e m p r e s a , a qual p r e s s u p õ e
aquela e x p r o p r i a ç ã o . Esta f o r m a de g e r ê n c i a é possibilitada, e m última instância, sem
que se tome e m c o n s i d e r a ç ã o o grau de sua racionalidade técnica,
d) pela superioridade que possui '
a ) n o m e r c a d o de trabalho, cada qual c o m propriedade, e m r e l a ç ã o à outra parte
na troca (os trabalhadores),
0 ) n o m e r c a d o d é bens, pela economia aquisitiva que o p e r a c o m c á l c u l o de capital,
bens de capital e crédito p a r a aquisição, e m r e l a ç ã o a todo concorrente na troca, que
calcula de f o r m a menos racional o u está menos b e m equipado e tem menos possibi-
lidades de crédito. O fato de que o m á x i m o de racionalidade formal n o c á l c u l o de
capital só é possível e m caso de s u b m i s s ã o dos trabalhadores à d o m i n a ç ã o dos e m p r e -
sários constitui outra irracionalidade material específica da o r d e m e c o n ô m i c a .
Por f i m ,
e ) por ser de g r a u ó t i m o a disciplina e m caso de trabalho l i v r e e a p r o p r i a ç ã o
total dos meios de o b t e n ç ã o .

§ 23- A e x p r o p r i a ç ã o de todos os trabalhadores dos meios de o b t e n ç ã o pode


significar praticamente:
1. d i r e ç ã o pelo q u a d r o administrativo de u m a associação: t a m b é m (e justamente)
toda economia unitária socialista racional m a n t e r i a a e x p r o p r i a ç ã o de todos os trabalha-
dores, completando-a pela e x p r o p r i a ç ã o dos proprietários privados;
2. d i r e ç ã o pelos proprietários o u seus representantes, e m v i r t u d e da a p r o p r i a ç ã o
dos meios de o b t e n ç ã o pelos p r i m e i r o s . A a p r o p r i a ç ã o , p o r interessados e m p r o p r i e -
dade, d o poder de disposição sobre a pessoa d o gerente pode significar
a ) d i r e ç ã o p o r u m ( o u vários) e m p r e s á r i o s que ao mesmo tempo s ã o os p r o p r i e -
tários: a p r o p r i a ç ã o direta da p o s i ç ã o de empresário) Mas esta n ã o e x c l u i a possibilidade
de que, de fato, a disposição sobre a f o r m a de d i r e ç ã o — e m v i r t u d e d o poder de
ECONOMIA E SOCIEDADE 91

crédito o u financiamento (veja adiante) — esteja e m e x t e n s ã o c o n s i d e r á v e l nas m ã o s


de interessados e m a q u i s i ç ã o , alheios à e m p r e s a (por e x e m p l o , bancos de crédito o u
financiadores) [p. 106];
b) s e p a r a ç ã o entre d i r e ç ã o da empresa e p r o p r i e d a d e , especialmente pela limita-
ç ã o dos interessados e m p r o p r i e d a d e à d e s i g n a ç ã o d o e m p r e s á r i o e à a p r o p r i a ç ã o l i v r e
(alienável) e p o r quotas da propriedade e m f o r m a de participação n o capital de c á l c u l o
(ações, ações de minas). Essa situação (vinculada à a p r o p r i a ç ã o p u r a m e n t e pessoal p o r
formas transitórias de todas as espécies) é formalmente r a c i o n a l n o sentido de p e r m i t i r
— e m o p o s i ç ã o à a p r o p r i a ç ã o permanente e hereditária da p r ó p r i a d i r e ç ã o e m v i r t u d e
da propriedade herdada — a seleção de u m gerente qualificado (do ponto de vista
da rentabilidade). Na prática, p o r é m , isto pode significar várias coisas:
a ) a disposição sobre o cargo de gerente está — e m v i r t u d e da a p r o p r i a ç ã o da
propriedade — nas m ã o s de interessados e m patrimônio, alheios à empresa: partici-
pantes na propriedade que sobretudo p r o c u r a m obter rendas elevadas,
0 ) a disposição sobre o cargo de gerente e s t á — e m v i r t u d e de aquisição t e m p o r á r i a
no m e r c a d o — n a s m ã o s de interessados e m especulação, alheios à empresa (possuidores
de a ç õ e s que p r o c u r a m obter l u c r o pela alienação das m e s m a s )
y) a disposição sobre o cargo de gerente está — e m virtude de poder de mercado
ou de crédito — nas m ã o s de interessados e m aquisição, alheios à empresa (bancos o u
interessados individuais — por exemplo, os "financiadores" — , os quais perseguem seus
interesses próprios de aquisição, muitas vezes incompatíveis com os da respectiva e m p r e s a )
C h a m a m o s aqui " a l h e i o s à e m p r e s a " todos os interessados que n ã o estão o r i e n -
tados p r i m o r d i a l m e n t e pela rentabilidade persistente da empresa. Isso pode o c o r r e r
c o m todos os tipos de interesses d e p a t r i m ô n i o ; c o m f r e q ü ê n c i a específica, p o r é m ,
no caso daqueles interessados que u t i l i z a m a disposição sobre instalações e bens de
capital, o u a participação nestes (ações, ações de m i n a s ) n ã o c o m o investimento p e r m a -
nente de p a t r i m ô n i o , mas, s i m , c o m o m e i o p a r a obter n u m m o m e n t o dado u m l u c r o
puramente especulativo. O s interesses mais facilmente conciliáveis (relativamente) c o m
os interesses materiais da empresa (o que significa, aqui, interesses na rentabilidade
atual e d u r a d o u r a ) s ã o os interesses puramente orientados pela renda ( a ) .
A interferência daqueles interesses " a l h e i o s à e m p r e s a " n a f o r m a de disposição
sobre os cargos de g e r ê n c i a constitui, precisamente n o caso d o m á x i m o de racionalidade
formal de sua s e l e ç ã o , outra irracionalidade material específica da o r d e m e c o n ô m i c a
m o d e r n a (pois pode acontecer que tanto interesses individuais de p a t r i m ô n i o quanto
interesses de aquisição orientados p a r a metas, s e m qualquer c o n e x ã o c o m as da e m p r e -
sa, o u ainda, interesses puramente especulativos se a p o d e r e m das a ç õ e s da empresa
e t o m e m decisões referentes à pessoa d o gerente — e sobretudo — à f o r m a de g e r ê n c i a
da e m p r e s a que f o r ç a d a m e n t e lhe i m p õ e m ) . A influência sobre oportunidades de mer-
cado e sobretudo s o b r e bens de capital e, e m c o n s e q ü ê n c i a , sobre a o r i e n t a ç ã o da
o b t e n ç ã o de bens p a r a f i n s aquisitivos, p o r parte de interesses alheios à e m p r e s a , p u r a -
mente especulativos, é uma das fontes dos f e n ô m e n o s da m o d e r n a economia de troca
conhecidos c o m o " c r i s e s " ( p r o b l e m a que n ã o cabe e x a m i n a r aqui e m seus d e t a l h e s )

§ 24. C h a m a m o s " p r o f i s s ã o " aquela especificação, especialização e c o m b i n a ç ã o


dos serviços de u m a pessoa q u e , p a r a esta, constituem o fundamento de u m a possibi-
lidade contínua de abastecimento o u aquisição. A divisão das profissões pode
1. o c o r r e r e m v i r t u d e de atribuição h e t e r ô n o m a de serviços e, ao m e s m o tempo,
de meios de subsistência dentro de uma associação reguladora da economia (divisão
dependente das p r o f i s s õ e s ) o u e m virtude de o r i e n t a ç ã o a u t ô n o m a pela situação de
m e r c a d o p a r a serviços profissionais (divisão l i v r e das p r o f i s s õ e s )
92 MAX WEBER

2. basear-se e m especificação o u especialização dos serviços;


3- significar utilização e c o n ô m i c a autocéfala o u heterocéfala dos serviços p r o f i s -
sionais p o r parte de q u e m os presta.
E n t r e as profissões típicas e as f o r m a s típicas das oportunidades de obter rendi-
mentos existem c o n e x õ e s das quais falaremos no e x a m e das situações "estamentais"
e " d e classe".

Sobre "estamentos profissionais" e classes em geral, veja o capítulo IV.


1. Divisão dependente das profissões: de forma litúrgica ou de oikos, através de recruta-
mento coativo das pessoas designadas para determinada profissão, dentro de uma associação
principesca, estatal, senhorial ou comunal. Divisão livre das profissões: em virtude de oferta
bem-sucedida de serviços profissionais ou solicitação bem-sucedida de "vagas", no mercado
de trabalho.
2. Especificação de serviços, conforme já observamos no § 16: a divisão das profissões
nos ofícios da Idade Média; especialização de serviços: a divisão das profissões nas modernas
empresas racionais. A divisão das profissões na economia de troca, considerada do ponto de
vista do método, é muitas vezes especificação de serviços tecnicamente irracional, e não especia-
lização de serviços racional, uma vez que se orienta pelas oportunidades de venda e, portanto,
pelos interesses dos compradores, ou seja, consumidores, os quais determinam o conjunto dos
serviços oferecidos pela mesma empresa de modo que se afasta da especialização dos mesmos,
obrigando-a a combinações de serviços irracionais do ponto de vista do método.
3- Especialização de profissões autocéfala: empreendimento individual (de um artesão,
médico, advogado, artista) Especialização de profissões heterocéfala: trabalhadores de fábrica,
funcionários públicos.
A estruturação profissional em grupos de pessoas dados é diferente:
a) segundo o grau de desenvolvimento de profissões típicas e estáveis, em geral. Para
este é decisivo, sobretudo,
a ) o desenvolvimento das necessidades,
P) o desenvolvimento técnico (sobretudo, da técnica industrial),
•y) o desenvolvimento ou
cta) de grandes gestões patrimoniais: para a divisão dependente de profissões, ou
PP) de oportunidades de mercado: para a divisão livre de profissões;
b) segundo o grau e a natureza da especialização profissional ou da especialização das
economias. Decisiva para isto é, sobretudo,
a ) a situação de mercado, determinada pelo poder aquisitivo, para os serviços de economias
especializadas,
P) a forma em que se distribui a disposição sobre os bens de capital;
c ) segundo o grau e a natureza da continuidade profissional ou das mudanças de profissão.
Decisivos para esta última circunstância são, sobretudo,
a) o grau de instrução que pressupõem os serviços especializados,
P) o grau de estabilidade ou mudança das possibilidades de aquisição, dependente, por
sua vez, do grau de estabilidade e da forma da distribuição de renda, por um lado, e, por
outro, da técnica.
Por fim, é importante para todas as formas que podem assumir as profissões: a estruturação
estamental, com as possibilidades e formas de educação estamentais que esta cria para determi-
nados tipos de profissões qualificadas.
Objeto de profissões independentes e estáveis só podem ser os serviços que pressupõem
pelo menos um mínimo de instrução e para os quais existem possibilidades de aquisição contínuas.
Profissões podem ser exercidas em virtude dia tradição (profissões hereditárias) ou escolhidas
na base de considerações racionais, com vista a um fim (especialmente a renda), ou aceitas
por inspiração carismática ou por motivos afetivos, especialmente em virtude de interesses esta-
mentais (de "prestígio") As profissões individuais tinham originalmente caráter inteiramente
carismático (mágico) e o resto da estruturação profissional — na medida em que esta já existia,
de forma rudimentar — estava condicionado pela tradição. As qualidades carismáticas não especi-
ECONOMIA E SOCIEDADE 93

ficamente pessoais se tornaram objeto ou da formação tradicional em associações fechadas ou


da tradição hereditária. Profissões individuais de caráter não rigorosamente carismático foram
primeiro criadas, de forma litúrgica, pelas grandes gestões patrimoniais dos príncipes e senhores
territoriais, e mais tarde, na base da economia de troca, pelas cidades. Mas, ao lado destas,
sempre continuaram existindo as formas de educação estamentais, literárias e consideradas "dis-
tintas", sucessoras da formação profissional mágica ou ritual ou clerical.

O que antes dissemos sobre a especialização profissional não i m p l i c a que esta


signifique necessariamente: serviços contínuos, o u 1 ) de f o r m a litúrgica p a r a u m a asso-
ciação (por e x e m p l o , u m a g e s t ã o p a t r i m o n i a l principesca o u u m a f á b r i c a ) o u 2 ) p a r a
u m " m e r c a d o " totalmente l i v r e . A o contrário, é possível e o c o r r e freqüentemente
1. que trabalhadores profissionalmente especializados, s e m p r o p r i e d a d e , s ã o uti-
lizados, segundo a necessidade, c o m o f o r ç a de trabalho ocasional, e isto p o r u m c í r c u l o
relativamente constante
a ) de clientes c o m g e s t ã o p a t r i m o n i a l ( c o n s u m i d o r e s ) o u
b) de clientes c o m g e s t ã o aquisitiva (economias aquisitivas).
C o m respeito a a ) e m economias c o m gestão patrimonial, neste caso se i n c l u e m
a ) e m caso de e x p r o p r i a ç ã o dos trabalhadores, pelo menos, do f o r n e c i m e n t o
da matéria-prima e, portanto, da disposição sobre o produto:
I ) o trabalho na casa do empregador
ao) c o m o o f í c i o ambulante,
00) c o m o o f í c i o sedentário, ainda que ambulante dentro de u m c í r c u l o local
de unidades de gestão patrimonial.
I I ) o trabalho p o r salário: trabalho sedentário, trabalhando-se e m oficina (ou
casa) própria p a r a outra gestão patrimonial.
E m todos os casos, a unidade de gestão patrimonial fornece a matéria-prima,
enquanto que as f e r r a m e n t a s costumam estar apropriadas pelos trabalhadores (as gada-
nhas, pelos ceifadores; o equipamento de costura, p e l o alfaiate; todos os tipos de f e r r a -
mentas, pelos artesãos).
Nos casos do t ó p i c o I , a r e l a ç ã o de trabalho significa a integração temporária
na unidade de g e s t ã o p a t r i m o n i a l de u m consumidor.

E m confronto com isso, o caso de apropriação plena de todos os meios de obtenção foi
designado por K . BÜCHER por "trabalho por preço".

C o m respeito a b) trabalho ocasional de trabalhadores profissionalmente especia-


lizados p a r a economias com gestão aquisitiva-.
e m caso de e x p r o p r i a ç ã o dos trabalhadores, pelo menos, do f o r n e ci m e n t o da
matéria-prima e, portanto, da disposição sobre o produto:
1) trabalho ambulante e m empresas de p a t r õ e s diversos,
I I ) trabalho a d o m i c í l i o , ocasional o u sazonal, p a r a u m patrão.

Exemplo de I : trabalhadores que em certas estações foram trabalhar nas indústrias da


Saxônia.
Exemplo de I I : todo trabalho a domicílio que completa ocasionalmente o trabalho em
oficina.

2. O m e s m o n o caso das economias c o m a p r o p r i a ç ã o dos meios de o b t e n ç ã o :


a ) e m caso de c á l c u l o d e capital e a p r o p r i a ç ã o parcial dos meios d e o b t e n ç ã o
— especialmente a p r o p r i a ç ã o limitada às instalações — pelos proprietários: oficinas
94 MAX WEBER

(fábricas) c o m trabalho assalariado e, sobretudo, fábricas c o m trabalho a domicílio


— as p r i m e i r a s existentes há muito tempo, as segundas f r e q ü e n t e s nos últimos tempos;
0) e m caso de a p r o p r i a ç ã o total dos meios de o b t e n ç ã o pelos trabalhadores
a ) pequenas empresas s e n r c á l c u l o de capital que trabalham
a a ) p a r a gestões patrimoniais: trabalhadores por preço, c o m clientela,
00) p a r a empresas c o m g e s t ã o aquisitiva: indústria caseira sem e x p r o p r i a ç ã o dos
meios de o b t e n ç ã o , portanto, empreendimentos aquisitivos f o r m a l m e n t e independen-
tes, mas que, de fato, v e n d e m seus produtos a u m círculo m o n o p ó l i c o de compradores,
b) grandes empresas c o m c á l c u l o de capital: p r o d u ç ã o p a r a u m círculo de c o m p r a -
dores permanentes: c o n s e q ü ê n c i a ( e m r e g r a , mas n ã o u n i c a m e n t e ) de r e g u l a ç õ e s de
v e n d a do tipo cartel.

Por f i m , cabe observar que nem


a) todo ato de aquisição é parte de u m a atividade aquisitiva profissional, nem
b) todos os atos de a q u i s i ç ã o , p o r mais f r e q ü e n t e s que s e j a m , pertencem p o r
necessidade conceituai a alguma especialização c o n t í n u a , c o m sentido homogêneo.
C o m respeito a a ) existe a q u i s i ç ã o ocasional;
01) na economia doméstica que troca p o r outras coisas os excedentes de sua p r o d u -
ç ã o caseira. D o m e s m o m o d o , realizam-se i n ú m e r o s atos ocasionais de troca c o r r e s p o n -
dentes, p a r a fins de a q u i s i ç ã o , p o r parte de grandes gestões patrimoniais, especialmente
das senhoriais. C o m e ç a n d o a l i , u m a série contínua de possíveis "atos de aquisição oca-
s i o n a i s " leva até
0) a especulação ocasional de u m rentista, a publicação de u m artigo, u m a poesia
e t c , o b r a de u m a m a d o r e semelhantes casos f r e q ü e n t e s e m nosso tempo. D a í , se
chega à " p r o f i s s ã o a c e s s ó r i a " .
C o m respeito a b) cabe l e m b r a r aqui que há t a m b é m f o r m a s absolutamente incons-
tantes de ganhar a v i d a , que v a r i a m entre atividades aquisitivas ocasionais de todas
as espécies, e eventualmente t a m b é m entre atos de a q u i s i ç ã o n o r m a i s e m e n d i c â n c i a ,
furto, r o u b o etc.
Situações especiais constituem
a ) o g a n h a - p ã o p u r a m e n t e p o r caridade,
b) a sustentação p o r instituições não-caritativas (particularmente, penitenciárias),
c ) a aquisição organizada, mediante atos de violência,
d) a aquisição n ã o organizada (criminosa), p o r m e i o de violência o u astúcia. O
papel desempenhado pelos casos b e d oferece pouco interesse, enquanto que o de
a foi e x t r a o r d i n a r i a m e n t e importante p a r a as associações hierocráticas (ordens m e n d i -
cantes), e o de c, para as associações políticas (espólio de g u e r r a ) , e e m ambos os
casos p a r a as respectivas economias. O e s p e c í f i c o nestes dois casos é seu caráter "alheio
à e c o n o m i a " . Por isso, n ã o cabe aqui classificá-los detalhadamente. As f o r m a s que
a s s u m e m d e v e m ser expostas n o u t r o lugar. Por motivos parcialmente (mas s ó parcial-
m e n t e ) semelhantes, mencionaremos (§ 3 8 ) a atividade aquisitiva dos funcionários públi-
cos ( i n c l u i n d o a dos oficiais d o exército), c o m o subclasse da aquisição p o r trabalho,
apenas para f i x a r seu " l u g a r s i s t e m á t i c o " , s e m e x a m i n a r , por enquanto, os detalhes
casuísticos. Pois tal e x a m e r e q u e r a c o n s i d e r a ç ã o da natureza das relações de d o m i n a ç ã o
e m que se e n c o n t r a m essas categorias.

§ 24 a. C o n f o r m e mostram os esquemas teóricos aqui desenvolvidos, desde o


§ 15, é extremamente v a r i a d a a casuística das relações técnicas de a p r o p r i a ç ã o e de
mercado.
D e fato, s ó algumas das numerosas possibilidades d e s e m p e n h a m u m papel domi-
nante.
ECONOMIA E SOCIEDADE 95

1. Na área das terras de cultivo,


a) agricultura transumante, isto é, que a p ó s o aproveitamento d o solo m u d a de
lugar: economia d o m é s t i c a c o m a p r o p r i a ç ã o do solo pela tribo, a p r o p r i a ç ã o d o a p r o v e i -
tamento deste — t e m p o r á r i a o u permanentemente — p o r associações de v i z i n h o s , ce-
dendo-se esse direito apenas p o r tempo limitado a g e s t õ e s patrimoniais.
Q u a n t o ao tamanho, as associações de g e s t ã o p a t r i m o n i a l s ã o , e m r e g r a ,
a ) grandes comunidades domésticas, o u
0) economias de clã organizadas, o u
•y) gestões patrimoniais f a m i l i a r e s e m grande escala, o u
8 ) gestões patrimoniais f a m i l i a r e s e m pequena escala.

E m regra, a agricultura é "transumante" somente em relação às terras cultivadas, e muito


mais raramente e em intervalos mais longos no que se refere às instalações.

b) Agricultura sedentária: r e g u l a ç ã o pela comunidade de c o m a r c a o u aldeia dos


direitos de aproveitamento das terras de l a v o u r a , prados, pastos, florestas e á g u a s ,
por ( e m r e g r a ) fazendas de famílias e m sentido estrito. A p r o p r i a ç ã o das casas e hortas,
por estas famílias; das terras de l a v o u r a e ( n a m a i o r i a dos casos) prados e pastos, pela
comunidade da aldeia; das florestas, pelas comunidades de c o m a r c a . Segundo o direito,
redistribuições do solo s ã o originalmente possíveis, mas e m grande parte obsoletas
por n ã o estarem organizadas sistematicamente. Na m a i o r i a dos casos, a e c o n o m i a está
regulada pela o r d e m da aldeia (economia de aldeia primária).
A comunidade de clã c o m o comunidade e c o n ô m i c a existe apenas excepcional-
mente (na C h i n a ) e, nesse caso, e m f o r m a de associação racionalizada (relação societária
de clã).
c) Senhorio sobre as terras e sobre as pessoas, c o m trabalho o b r i g a t ó r i o dos
camponeses dependentes na quinta do senhor e determinadas prestações e m e s p é c i e ,
provindas da fazenda própria dos mesmos. A p r o p r i a ç ã o das terras e dos trabalhadores
pelo senhor, e da utilização das terras e do direito aos postos de trabalho, pelos campo-
neses (associação senhorial simples de prestações em espécie).
d) M o n o p ó l i o do solo a ) s e n h o r i a l o u 0) fiscal c o m responsabilidade solidária
pelas cargas tributárias p o r parte das comunidades dos camponeses. Por isso, comuni-
dade agrária e redistribuição sistematizada e regular das terras: a p r o p r i a ç ã o permanente
do solo, f o r ç a d a m e n t e imposta, c o m o correlato das cargas, pela comunidade dos campo-
neses e n ã o pelas unidades de g e s t ã o p a t r i m o n i a l particulares; p o r estas apenas tempora-
riamente e c o m a r e s e r v a de h a v e r redistribuição p a r a f i n s de utilização. Regulação
da economia p o r ordens do senhor territorial o u político (comunidade agrária senhorial
o u fiscal)
e) Senhorio territorial livre, c o m utilização c o m o fonte de r e n d a , p a r a fins da
g e s t ã o patrimonial p r ó p r i a , dos rendimentos p r o v i n d o s das fazendas dos camponeses
dependentes. Portanto, a p r o p r i a ç ã o do solo pelo senhor, mas
a) colonos o u
0) camponeses p a r c e i r o s o u
y) camponeses obrigados a pagar censo e m d i n h e i r o , c o m o portadores dos em-
preendimentos e c o n ô m i c o s .
f) Economia de plantação, a p r o p r i a ç ã o l i v r e d o solo e dos trabalhadores (escravos
c o m p r a d o s ) pelo senhor, c o m o meios de aquisição n u m a empresa capitalista c o m traba-
lho dependente.
g) Economia de quinta , a p r o p r i a ç ã o d o solo
96 MAX WEBER

a) p o r beneficiários da renda do solo, c o m cultivo por grandes economias de


arrendatários o u
0) pelo p r ó p r i o cultivador, c o m o m e i o de aquisição. E m ambos os casos, c o m
trabalhadores livres que trabalham
aa) e m g e s t ã o p a t r i m o n i a l própria ou
bb) e m g e s t ã o patrimonial p r o p o r c i o n a d a pelo senhor; e m ambos os casos
a ) c o m p r o d u ç ã o agrícola o u — caso limite — 0) s e m p r o d u ç ã o própria de bens.
h) Ausência de senhorio territorial: economia de camponeses c o m a p r o p r i a ç ã o
do solo pelos cultivadores ( c a m p o n e s e s ) A a p r o p r i a ç ã o pode significar praticamente:
a ) que de fato p r e d o m i n a a propriedade do solo hereditariamente adquirida o u ,
0) ao contrário, existe redistribuição das parcelas, sendo o p r i m e i r o típico e m
caso de propriedades isoladas o u de grandes l a v r a d o r e s , o segundo, e m caso de p r o p r i e -
dades situadas e m aldeias e de pequenos lavradores.
C o n d i ç ã o n o r m a l p a r a o caso e, y, bem como o de h, 0, é a existência de oportu-
nidades suficientes de m e r c a d o local p a r a os produtos do solo.
2. Na área da indústria e do transporte (incluindo-se a m i n e r a ç ã o e o c o m é r c i o )
a) indústria caseira, e m p r i m e i r o lugar, c o m o m e i o de trocas ocasionais, e m se-
gundo, c o m o m e i o de aquisição, c o m
a ) especialização de serviços interétnica (indústria de tribo). D a í d e r i v a [even-
tualmente]
0) a indústria de casta.
E m ambos os casos o c o r r e , e m p r i m e i r o lugar, a a p r o p r i a ç ã o das fontes de maté-
r i a - p r i m a e, portanto, da p r o d u ç ã o de matéria-prima, e s ó secundariamente a c o m p r a
de matéria-prima o u a p r o d u ç ã o por salário. No p r i m e i r o caso é f r e q ü e n t e a ausência
de a p r o p r i a ç ã o formal. A o lado disso, e n o segundo caso s e m p r e , existe a p r o p r i a ç ã o
hereditária das possibilidades de aquisição vinculadas a serviços especificados, por parte
de associações domésticas o u de clã.
b) Indústria vinculada a determinada clientela: especificação de serviços c o m res-
peito a u m a associação de consumidores-.
a) s e n h o r i a l (oikos, s e n h o r i o t e r r i t o r i a l ) o u
0) cooperativista (demiúrgica).
N e n h u m a aquisição n o mercado. No caso a, c o o r d e n a ç ã o de serviços na f o r m a
de g e s t ã o p a t r i m o n i a l , às vezes trabalho de oficina n o ergasterion d o senhor. No caso
0, a p r o p r i a ç ã o hereditária (às v e z e s , a l i e n á v e l ) dos postos de trabalho, serviços p a r a
u m a clientela apropriada (de c o n s u m i d o r e s ) — escasso desenvolvimento ulterior.
1) P r i m e i r o caso especial: os sujeitos da atividade industrial, c o m serviços especifi-
cados, estão apropriados (formalmente dependentes)
a) na qualidade de fonte de r e n d a do senhor, sendo, p o r é m , n ã o obstante sua
d e p e n d ê n c i a f o r m a l , pessoas materialmente livres que p r o d u z e m (na m a i o r i a dos casos)
para u m a clientela (escravos de r e n d a )
0) na qualidade de trabalhadores n u m a indústria d o m i c i l i a r , dependentes do se-
n h o r e p r o d u z i n d o para fins aquisitivos do m e s m o ,
y) na qualidade de trabalhadores d e oficina, n o ergasterion d o senhor, p a r a fins
aquisitivos d o m e s m o (indústria d o m i c i l i a r c o m trabalhadores dependentes)
I I ) Segundo caso especial: e s p e c i f i c a ç ã o litúrgica de serviços, p a r a fins fiscais:
tipo semelhante à indústria de casta (a 0).

Analogamente e x i s t e m , na área da m i n e r a ç ã o :
empreendimentos de príncipes o u senhores territoriais que e m p r e g a m t r a b a l h a -
dores dependentes: escravos o u servos.
ECONOMIA E SOCIEDADE 97

Analogamente, t a m b é m , na área d o transporte interno, o c o r r e m :


a ) a p r o p r i a ç ã o pelo senhor t e r r i t o r i a l dos meios de transporte, c o m o fonte de
renda; repartição de serviços d e m i ú r g i c o s entre determinados pequenos lavradores
obrigados a prestá-los;
[b)\ caravanas de pequenos comerciantes reguladas de f o r m a cooperativista, c o m
a p r o p r i a ç ã o da m e r c a d o r i a .
Na área d o transporte m a r í t i m o , o c o r r e m :
a) p r o p r i e d a d e dos navios nas m ã o s de u m oikos, senhor territorial o u patrício,
c o m c o m é r c i o p r ó p r i o d o senhor;
b) c o n s t r u ç ã o e p r o p r i e d a d e dos navios nas m ã o s de u m a cooperativa; partici-
p a ç ã o n o c o m é r c i o , p o r conta p r ó p r i a , do capitão e da tripulação; ao lado deles, c o m o
fretadores, pequenos comerciantes interlocalmente viajantes; p a r t i c i p a ç ã o n o risco de
todos os interessados; c o m b o i o s de navios rigorosamente regulados. E m todos os casos,
" c o m é r c i o " significava ainda c o m é r c i o interlocal e, portanto, transporte.
c ) Indústria livre.
p r o d u ç ã o l i v r e p a r a clientes, c o m o
a) trabalho na casa do cliente o u
b) trabalho p o r salário, c o m a p r o p r i a ç ã o da matéria-prima, p e l o cliente (consu-
m i d o r ) , dos instrumentos de trabalho, p e l o trabalhador; das instalações (eventualmente
u t i l i z a d a s ) por u m senhor ( c o m o fonte de r e n d a ) o u u m a associação ( c o m utilização
por t u r n o ) ou
c ) " t r a b a l h o p o r p r e ç o " c o m a p r o p r i a ç ã o da matéria-prima e dos instrumentos
de trabalho e, c o m isso, da d i r e ç ã o , p o r parte dos trabalhadores, e das instalações
eventualmente necessitadas ( n a m a i o r i a dos c a s o s ) p o r parte de u m a associação de
trabalhadores ( c o r p o r a ç ã o )
E m todos estes casos é típica a regulação da atividade aquisitiva pela corporação.
Na m i n e r a ç ã o : a p r o p r i a ç ã o das jazidas p o r senhores políticos o u territoriais, c o m o
fonte de r e n d a ; a p r o p r i a ç ã o do direito de e x t r a ç ã o p o r u m a associação de trabalhadores;
r e g u l a ç ã o , p o r parte da c o r p o r a ç ã o , da e x t r a ç ã o , considerando-se esta u m d e v e r p a r a
c o m o senhor da m i n a , interessado n a r e n d a , e p a r a c o m a comunidade m i n e i r a , solida-
riamente responsável perante o senhor, e interessada n o rendimento.
Na área d o transporte interno: c o r p o r a ç õ e s de b a r q u e i r o s e transportadores de
cargas, c o m viagens regulares e fixas, e r e g u l a ç ã o d e suas possibilidades de aquisição.
Na área da n a v e g a ç ã o marítima: propriedade e m participação dos navios, com-
boios de navios, comerciantes viajantes p o r i n c u m b ê n c i a da commenda.
D e s e n v o l v i m e n t o e m d i r e ç ã o ao capitalismo:
a ) M o n o p o l i z a ç ã o d e fato, p o r parte dos e m p r e s á r i o s , dos recursos monetários
da e m p r e s a , c o m o m e i o d e pagamentos antecipados aos trabalhadores. E m c o n s e q ü ê n -
cia, d i r e ç ã o da o b t e n ç ã o de bens, e m v i r t u d e d o crédito de obtenção, e disposição
sobre o produto, apesar da a p r o p r i a ç ã o , f o r m a l m e n t e subsistente, dos meios de aquisi-
ç ã o p o r parte dos trabalhadores (assim n a indústria e na m i n e r a ç ã o )
0) A p r o p r i a ç ã o d o direito de v e n d a dos produtos, n a base da m o n o p o l i z a ç ã o
prévia e efetiva d o conhecimento da situação d e m e r c a d o e, e m c o n s e q ü ê n c i a , das
possibilidades de m e r c a d o e dos recursos m o n e t á r i o s das empresas, e m virtude de
ordens m o n o p ó l i c a s f o r ç a d a m e n t e impostas pelas c o r p o r a ç õ e s o u privilégios d o poder
político ( c o m o fonte de r e n d a o u m e i o p a r a obter e m p r é s t i m o )
y ) Disciplinamento interno dos trabalhadores dependentes na indústria domici-
liar: f o r neciment o da matéria-prima e dos aparelhos p e l o e m p r e s á r i o .
Caso especial: o r g a n i z a ç ã o racional •monopólica d e indústrias domiciliares, sobre
a base de privilégios, e m interesse da situação fiscal o u da p o p u l a ç ã o (proporcionar
98 MAX WEBER

possibilidades de a q u i s i ç ã o ) R e g u l a ç ã o f o r ç a d a m e n t e imposta das c o n d i ç õ e s de traba-


lho, c o m c o n c e s s ã o de atividades aquisitivas.
8 ) C r i a ç ã o d e oficinas, sem especialização r a c i o n a l do trabalho dentro da empresa
e c o m a a p r o p r i a ç ã o de todos os meios de o b t e n ç ã o materiais pelo e m p r e s á r i o . Na
m i n e r a ç ã o : a p r o p r i a ç ã o das jazidas, galerias e aparelhos p e l o proprietário da m i n a .
No transporte: companhias de n a v e g a ç ã o , nas m ã o s de grandes proprietários. Conse-
q ü ê n c i a , p o r toda parte: e x p r o p r i a ç ã o dos trabalhadores dos meios de o b t e n ç ã o .
e ) C o m o ú l t i m o passo e m d i r e ç ã o à t r a n s f o r m a ç ã o capitalista das empresas de
obtenção: mecanização da produção e do transporte. Cálculo de capital. Todos os meios
de obtenção materiais v ê m a ser capital ( " f i x o " o u de exploração) todos os trabalha-
dores, " m ã o s " . E m v i r t u d e da t r a n s f o r m a ç ã o dos empreendimentos e m sociedades
de possuidores de v a l o r e s , acaba e x p r o p r i a d o t a m b é m o diretor, que se torna f o r m a l -
mente " f u n c i o n á r i o " da e m p r e s a , enquanto que o p r o p r i e t á r i o se torna materialmente
h o m e m de c o n f i a n ç a dos credores (os bancos)
Desses diferentes tipos
1. f o i u n i v e r s a l na área da agricultura o tipo l a [p. 95], mas e m suas f o r m a s
a e 0 (grande comunidade doméstica e e c o n o m i a de c l ã ) f o i r a r o na E u r o p a e típico,
ao contrário, n o E x t r e m o O r i e n t e ( C h i n a ) o tipo b (comunidade de aldeia e de c o m a r c a )
[p. 95] f o i u s u a l na E u r o p a e na í n d i a ; o tipo c ( s e n h o r i o territorial c o m p r o m e t i d o )
f o i u n i v e r s a l e existe ainda h o j e , e m parte, n o O r i e n t e ; o tipo d, e m suas f o r m a s a
e 0 (senhorio territorial e fiscal, c o m redistribuição sistemática do solo entre os campo-
neses) existiu, p r e d o m i n a n d o a f o r m a de s e n h o r i o t e r r i t o r i a l , na Rússia e ( e m sentido
modificado, c o m redistribuição da renda do s o l o ) na índia e, p r e d o m i n a n d o a f o r m a
de s e n h o r i o fiscal, n o E x t r e m o O r i e n t e , b e m c o m o n o O r i e n t e P r ó x i m o e n o Egito;
o tipo e (senhorio territorial l i v r e , c o m pagamento de rendas p o r pequenos a r r e n d a -
tários) f o i característico na I r l a n d a , mas t a m b é m existiu n a Itália e n o s u l da França,
b e m c o m o n a C h i n a e n o O r i e n t e h e l é n i c o da Antiguidade; o tipo / (plantação c o m
trabalho dependente) encontramos na Antiguidade r o m a n a e cartaginesa, nas colônias
e nos estados sulistas da U n i ã o norte-americana; o tipo g ( e c o n o m i a de q u i n t a ) e m
sua f o r m a a (separação entre p r o p r i e d a d e do solo e e x p l o r a ç ã o ) na Inglaterra, e e m
sua f o r m a 0 ( e x p l o r a ç ã o p e l o p r o p r i e t á r i o do s o l o ) n o leste da A l e m a n h a , e m partes
da Áustria, Polônia e Rússia ocidental; o tipo h (economia de camponeses proprietários)
f o i c o m u m n a F r a n ç a , n o s u l e oeste da A l e m a n h a , e m partes da Itália, na E s c a n d i n á v i a ,
b e m c o m o ( c o m restrições) n o s u l e oeste da Rússia e particularmente na C h i n a e na
índia m o d e r n a s ( c o m m o d i f i c a ç õ e s ) .
Estas grandes diferenças na constituição agrária (definitiva) devem-se apenas e m
parte a causas e c o n ô m i c a s (contraste entre os cultivos de d e r r u b a d a e de i r r i g a ç ã o )
mas t a m b é m a circunstâncias históricas, especialmente a f o r m a dos ô n u s públicos e
da constituição militar.
2. Na área da indústria — a situação do transporte e da m i n e r a ç ã o n ã o foi ainda
suficientemente e x a m i n a d a , e m toda sua universalidade — , temos:
a ) esteve universalmente divulgado o tipo 2 a a (indústria de t r i b o )
b) o tipo a 0 (indústria de casta) a l c a n ç o u d i v u l g a ç ã o u n i v e r s a l somente na índia;
e m outros países existiu apenas c o m respeito a indústrias desclassificadas ( " i m p u r a s " )
c) o tipo b a (indústria de oikos) d o m i n o u e m todas as gestões patrimoniais p r i n c i -
pescas d o passado, principalmente n o Egito, b e m c o m o nos senhorios territoriais do
m u n d o inteiro; n a f o r m a b 0 (indústria d e m i ú r g i c a ) existiu universalmente (também
n o O c i d e n t e ) c o m o f e n ô m e n o isolado, p o r é m , c o m o tipo, apenas na índia. O caso
especial I ( s e n h o r i o sobre as pessoas c o m o fonte de r e n d a ) d o m i n o u na Antiguidade;
o caso especial I I (especificação litúrgica d e s e r v i ç o s ) n o Egito, na é p o c a h e l é n i c a ,
n o f i m da Antiguidade r o m a n a e, temporariamente, n a C h i n a e na índia.
ECONOMIA E SOCIEDADE 99

d) o tipo c (indústria l i v r e ) encontra seu lugar clássico c o m o tipo dominante na


Idade Média ocidental, e somente a l i , apesar de aparecer p o r toda p a n e , tendo especial-
mente a corporação d i f u s ã o u n i v e r s a l (particularmente na C h i n a e no O r i e n t e P r ó x i m o ) ,
enquanto que faltou completamente na economia " c l á s s i c a " da Antiguidade. Na índia
existiu, e m lugar da c o r p o r a ç ã o , a casta.
e ) as fases d o desenvolvimento capitalista, na área da indústria, somente encon-
t r a r a m difusão u n i v e r s a l , f o r a do Ocidente, até o tipo 0 . Esta divergência não pode
ser explicada exclusivamente p o r causas puramente e c o n ô m i c a s .

§ 25 I . Para se alcançar o ó t i m o de rendimento calculável no trabalho executante


( e m seu sentido mais g e r a l ) i m p o r t a m , f o r a do d o m í n i o das três associações comunistas
típicas [veja § 26] nas quais i n t e r f e r e m motivos e x t r a - e c o n ô m i c o s , estes três fatores:
1, o ó t i m o de a d a p t a ç ã o ao serviço,
2. o ó t i m o de habilidade no trabalho;
3- o ó t i m o de inclinação ao trabalho.
C o m respeito ao fator 1 , a a d a p t a ç ã o (condicionada p o r fatores hereditários, edu-
c a ç ã o o u influências do m e i o ambiente, tanto f a z ) s ó pode ser v e r i f i c a d a mediante
prova. Na economia de troca, tratando-se de empreendimentos aquisitivos, esta tem
usualmente a f o r m a de p r o v a de " a p r e n d i z a d o " . O sistema T a y l o r pretende realizá-la
de m o d o racional.
C o m respeito ao fator 2, o ó t i m o de habilidade de trabalho só pode ser a l c a n ç a d o
mediante especialização r a c i o n a l e contínua. H o j e é essencialmente especialização e m p í -
rica de serviços realizada c o m a idéia de poupar gastos (no interesse da rentabilidade
e limitada p o r esta). A especialização racional (fisiológica) está ainda nos c o m e ç o s (siste-
ma Taylor).
C o m respeito ao fator 3, a inclinação ao trabalho pode estar orientada da m e s m a
m a n e i r a que todas as demais a ç õ e s ( v e j a o capítulo I , § 2 ) . Mas a vontade de trabalhar
(no sentido e s p e c í f i c o d e execução d e disposições próprias o u d e outras pessoas dirigen-
tes) esteve sempre condicionada o u p o r u m forte interesse próprio no resultado o u
por coação direta o u indireta; isto o c o r r e e m g r a u extremamente alto n o caso do trabalho
c o m o e x e c u ç ã o das disposições de outras pessoas. A c o a ç ã o pode consistir o u
1. na a m e a ç a direta de violência física o u outros prejuízos, o u
2. na probabilidade de d e s e m p r e g o e m caso d e rendimento insuficiente.
U m a v e z que a segunda f o r m a , essencial na economia de troca, se dirige de
m a n e i r a muito mais intensa ao interesse p r ó p r i o e obriga (naturalmente, d o ponto
de vista da rentabilidade) à liberdade de s e l e ç ã o segundo o rendimento (qualitativo
e quantitativo), atua c o m m a i o r racionalidade f o r m a l ( n o sentido do ó t i m o técnico)
do que toda c o a ç ã o direta ao trabalho. C o n d i ç ã o prévia é a e x p r o p r i a ç ã o dos trabalha-
dores dos meios de o b t e n ç ã o e sua necessidade de c o n c o r r e r às oportunidades de ganho
mediante trabalho assalariado, isto é, a p r o t e ç ã o , p o r medidas coativas, da a p r o p r i a ç ã o
dos meios d e o b t e n ç ã o p o r parte dos grandes proprietários. E m o p o s i ç ã o à c o a ç ã o
direta ao trabalho, descarrega-se assim naqueles que p r o c u r a m trabalhar, a l é m da preo-
c u p a ç ã o c o m a r e p r o d u ç ã o (família), t a m b é m u m a p a n e da p r e o c u p a ç ã o c o m a seleção
(segundo a a p t i d ã o para determinado trabalho). A l é m disso, e m c o m p a r a ç ã o ao emprego
de trabalho dependente, tornam-se limitados e calculáveis a necessidade e o risco de
capital, e, p o r f i m , amplia-se o m e r c a d o para bens consumidos e m massa — e m v i r t u d e
do pagamento d e e n o r m e quantidade de salários e m dinheiro. A inclinação positiva
ao trabalho n ã o é assim obstruída, c o m o o c o r r e — permanecendo iguais as demais
circunstâncias — no caso de trabalho dependente; limita-se, p o r é m às possibilidades
puramente materiais de salário q u a n d o se trata d e especialização preponderantemente
100 MAX WEBER

técnica e m tarefas simples (taylorizadas) e m o n ó t o n a s . Estas só estimulam a m a i o r r e n d i -


mento q u a n d o o salário se orienta pelo desempenho (salário por p r o d u ç ã o ) . Na o r d e m
de aquisição capitalista, a inclinação ao trabalho está condicionada primordialmente
pelas possibilidades do salário por p r o d u ç ã o e pelo risco de demissão.
Sob a c o n d i ç ã o de trabalho l i v r e , separado dos meios de o b t e n ç ã o , v a l e , a l é m
disso, o seguinte:
1. A probabilidade de que haja inclinação ao trabalho de caráter afetivo é maior
— p e r m a n e c e n d o iguais as demais circunstâncias — n o caso de especificação dos s e r v i -
ços do que n o de especialização dos mesmos, p o r q u e o resultado individual do trabalho
aparece vis ivelment e perante os olhos d o trabalhador. T a m b é m é grande, naturalmente,
e m todos os desempenhos de qualidade.
2. A inclinação ao trabalho de caráter tradicional, típica particularmente na agri-
cultura e na indústria domi c i li a r (sob c o n d i ç õ e s de v i d a tradicionais em geral), tem
a peculiaridade de que os trabalhadores o r i e n t a m seus serviços ou por resultados de
trabalho qualitativa e quantitativamente estereotipados o u pelo salário tradicional (ou
por ambos), o que dificulta o aproveitamento racional deles e impede a e l e v a ç ã o do
rendimento p o r u m sistema de p r ê m i o s (salário p o r p r o d u ç ã o ) . A o contrário, c o n f o r m e
mostra a e x p e r i ê n c i a , pode ser mantido alto g r a u de inclinação afetiva ao trabalho
p o r relações tradicionais e patriarcais entre o senhor (proprietário) e o trabalhador.
3. A inclinação ao trabalho de caráter racional, referente a v a l o r e s , está condicio-
nada, e m f o r m a típica, o u pela religião o u pela v a l o r a ç ã o social especificamente elevada
do respectivo trabalho c o m o tal. Todos os demais motivos s ã o , c o n f o r m e ensina a
e x p e r i ê n c i a , f e n ô m e n o s transitórios.
É c l a r o que a responsabilidade " a l t r u í s t a " pela própria família c o n t é m u m compo-
nente típico de d e v e r da inclinação ao trabalho.
I I . A apropriação dos meios de o b t e n ç ã o e o controle próprio (por mais f o r m a l
que s e j a ) sobre o processo de trabalho constitui u m a das fontes mais importantes da
inclinação ilimitada ao trabalho. Esta é a causa, e m última instância, da importância
extraordinária, na agricultura, dos empreendimentos de pequenos l a v r a d o r e s , especial-
mente e m terras parceladas, tanto de pequenos proprietários quanto de pequenos a r r e n -
datários ( c o m a esperança de futura ascensão à situação de proprietário). O país clássico,
a este respeito, é a C h i n a ; a índia o é n o t e r r e n o dos ofícios qualificados c o m especifi-
cação d e serviços, seguida por todos os demais países asiáticos, mas t a m b é m o Ocidente
da Idade M é d i a , onde todas as lutas essenciais t i v e r a m o objetivo de alcançar o poder
( f o r m a l ) de disposição própria. O grande v o l u m e de trabalho adicional que o pequeno
l a v r a d o r (sempre, inclusive c o m o h o r t e l ã o , trabalhando na base de especificação dos
serviços, e n ã o de especialização) despende e m interesse de sua empresa e as restrições
e m seu m o d o de v i d a , às quais ele se submete p a r a poder manter sua autonomia formai,
junto c o m o aproveitamento p a r a fins de g e s t ã o patrimonial — possível na agricultura
— dos produtos acessórios e " d e s p o j o s " de todas as espécies, inaproveitáveis para
fins de aquisição, isto é, nas grandes empresas, estes fatores possibilitam a existência
dele precisamente porque não há c á l c u l o de capital e porque se conserva a unidade
de g e s t ã o p a t r i m o n i a l e empresa. Na agricultura, a empresa c o m c á l c u l o de capital
— e m caso de e x p l o r a ç ã o pelo proprietário — reage de m o d o muito mais sensível
às oscilações conjunturais do que a pequena e m p r e s á — c o n f o r m e p r o v a m todos os
estudos (cf. meus cálculos e m Verh. desXXIVDt. Juristentags.).
Na área da indústria, o f e n ô m e n o correspondente subsistiu até a é p o c a das empre-
sas mecanizadas e rigorosamente especializadas, c o m c o o r d e n a ç ã o de serviços. Ainda
n o s é c u l o X V I , empresas c o m o a de "Jack of N e w b u r y " p o d i a m simplesmente ser proi-
bidas ( c o m o o c o r r e u na I n g l a t e r r a ) sem que isto significasse u m a catástrofe para as
ECONOMIA E SOCIEDADE 101

possibilidades aquisitivas dos trabalhadores. Pois a instalação de muitos teares, n u m a


só oficina, pertencentes ao p r o p r i e t á r i o desta, junto c o m os respectivos trabalhadores,
sem intensificação essencial da e s pe c i a li za ç ã o e c o o r d e n a ç ã o do trabalho, n ã o signifi-
cava, nas c o n d i ç õ e s de m e r c a d o daquela é p o c a , u m aumento tão significativo das proba-
bilidades de que deste m o d o estaria garantida p a r a o e m p r e s á r i o a cobertura dos custos
da oficina e d o risco elevado que c o r r i a . E , sobretudo, acontece que, n a área da indús-
tria, u m a empresa cujo capital consiste e m grande parte e m instalações (capital " f i x o " )
n ã o é apenas sensível diante das oscilações da c o n j u n t u r a , o que o c o r r e t a m b é m na
agricultura, m a s reage t a m b é m c o m e x t r e m a sensibilidade a toda irracionalidade Qncal-
culabilidade) da administração e da justiça, a q u a l existia p o r toda parte, fora d o Ocidente
moderno. A indústria caseira descentralizada p ô d e manter sua p o s i ç ã o , nessa r e g i ã o ,
b e m c o m o na c o n c o r r ê n c i a c o m as " f á b r i c a s " russas e, e m g e r a l , p o r toda parte, até
que — ainda antes da i n t r o d u ç ã o das fontes de energia mecanizadas e da m a q u i n a r i a
— a necessidade de calcular os custos de m o d o mais exato e de p a d r o n i z a r os produtos,
a f i m de aproveitar as oportunidades ampliadas de mercado, e m c o n e x ã o c o m o e m p r e g o
de aparelhos tecnicamente racionais, l e v o u à c r i a ç ã o de empresas c o m especialização
interna (e c o m noras movidas a á g u a o u p o r cavalos), nas quais mais tarde se integraram
motores m e c â n i c o s e m á q u i n a s . T o d a s as outras grandes empresas c o m caráter de oficina
anteriores ocasionalmente criadas, n o m u n d o inteiro, p u d e r a m desaparecer s e m que
isso perturbasse de m o d o considerável as possibilidades de aquisição de todos aqueles
que nelas p a r t i c i p a r a m e s e m que fosse seriamente prejudicada a satisfação das necessi-
dades. Isto m u d o u q u a n d o s u r g i u a " f á b r i c a " . A inclinação ao trabalho dos trabalhadores
de fábrica, p o r é m , esteve nos inícios condicionada p o r u m a coação indireta muito forte,
combinada c o m a atribuição aos trabalhadores d o risco de sua subsistência (sistema
de casas de trabalho, na I n g l a t e r r a ) e p e r m a n e c e u s e m p r e orientada pela garantia
f o r ç a d a m e n t e mantida da o r d e m da p r o p r i e d a d e , c o n f o r m e mostra, e m nosso tempo,
o desmoronamento dessa inclinação e m c o n s e q ü ê n c i a da quebra do p o d e r coativo pela
revolução.

§ 26. A realização de serviços e m comunidades o u sociedades comunistas e, além


disso, alheias ao c á l c u l o n ã o se baseia na a v e r i g u a ç ã o do g r a u m á x i m o d e abastecimento,
mas no sentimento imediato d e solidariedade. Historicamente apareceu s e m p r e — até
a atualidade — sobre a base de atitudes p r i m o r d i a l m e n t e exrra-economicamente o r i e n -
tadas, isto é,
1. c o m o c o m u n i s m o d o m é s t i c o da família — c o m fundamentos tradicionais e
afetivos;
2. c o m o c o m u n i s m o d e camaradas, n o exército;
3. c o m o c o m u n i s m o de a m o r da comunidade (religiosa) e, nos dois últimos casos
(2 e 3 ) p r i m o r d i a l m e n t e c o m fundamentos especificamente emocionais (carismáticos)
Mas s e m p r e
a ) e m oposição à g e s t ã o e c o n ô m i c a do m u n d o circundante, c o m caráter tradi-
cional o u r a c i o n a l , referente a fins e, nesse caso, c o m c á l c u l o e divisão dos serviços:
o u trabalhando efetivamente o u , p e l o contrário, sustentada p o r mecenato ( o u ambas
as c o i s a s ) o u
b) c o m o associação de gestões patrimoniais de privilegiados, dominando as unida-
des de g e s t ã o p a t r i m o n i a l n ã o associadas e mantida p o r estas de m o d o m e c ê n i c o o u
litúrgico; o u
c ) c o m o g e s t ã o p a t r i m o n i a l de consumidores, separada d o empreendimento aqui-
sitivo e recebendo deste sua r e n d a , isto é, associada c o m ele.
102 MAX WEBER

O caso a é típico para as economias comunistas, em virtude de religião ou ideologia (comu-


nidades de monges que trabalham ou vivem retirados do mundo, comunidades de seitas, socia-
lismo icárico)
O caso b é típico para as comunidades militares, total ou parcialmente comunistas (casas
de varões, sissítias espartanas, comunidades de assaltantes ligúrios, organização do califa Omar,
comunismo de consumo e — em parte — de requisição dos exércitos em campanha, em todas
as épocas), e, além disso, para associaçõs religiosas autoritárias (o Estado jesuíta no Paraguai,
comunidades de monges, na índia e em outros países, vivendo de prebendas de mendicância)
O caso c é típico de todas as gestões patrimoniais familiares na economia de troca.

A disposição ao trabalho e o c o n s u m o alheio ao c á l c u l o , dentro dessas comuni-


dades são consequências da atitude extra-economicamente orientada e se f u n d a m , nos
casos 2 e 3, e m c o n s i d e r á v e l g r a u , n o sentimento do contraste e da luta contra as
ordens do " m u n d o " . T o d o s os m o d e r n o s intentos comunistas, na medida e m que preten-
d e m u m a o r g a n i z a ç ã o comunista de massas, n ã o p o d e m prescindir, perante seus partidá-
rios, de argumentos racionais referentes a valores, tampouco, e m sua propaganda,
de argumentos racionais referentes a fins, isto é, e m ambos os casos, de considerações
especificamente racionais — e m o p o s i ç ã o às relações comunitárias exrracotidianas, de
caráter religioso o u militar — , de considerações referentes à vida cotidiana. Por isso,
suas possibilidades de se i m p o r e m e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s e cotidianas d i f e r e m , p o r
sua própria natureza, substancialmente daquelas das comunidades extracotidianas o u
p r i m o r d i a l m e n t e orientadas p o r fatores e x t r a - e c o n ô m i c o s .

§ 27. Bens de capital, e m sua f o r m a p r i m i t i v a , a p a r e c e m tipicamente c o m o merca-


dorias na troca interlocal o u interétnica, pressupondo-se que o " c o m é r c i o " esteja sepa-
rado da o b t e n ç ã o de bens p a r a fins d e g e s t ã o p a t r i m o n i a l . Pois o c o m é r c i o p r ó p r i o
das economias domésticas (venda o u troca de excedentes) n ã o pode empregar u m cálculo
de capital separado. O s produtos das indústrias f a m i l i a r e s , de clã o u de tribo, que
e n t r a m na troca interétnica, s ã o mercadorias-, os meios de o b t e n ç ã o , na medida e m
que continuam sendo produtos p r ó p r i o s , s ã o instrumentos e matérias-primas, e n ã o
bens de capital. O m e s m o se aplica aos produtos destinados à v e n d a e os meios de
o b t e n ç ã o dos camponeses e dos senhores feudais, desde que sua g e s t ã o e c o n ô m i c a
n ã o apresente c á l c u l o de capital ( m e s m o e m suas f o r m a s m a i s p r i m i t i v a s , das quais
já h á e x e m p l o s na é p o c a de Catão). É evidente por si m e s m o o fato de que todos
os movimentos de bens internos, dentro do círculo do s e n h o r i o territorial e do oikos,
inclusive a troca interna ocasional b e m c o m o a típica de produtos, representam o contrá-
r i o de u m a e c o n o m i a baseada n o c á l c u l o de capital. T a m b é m o c o m é r c i o do oikos
(por e x e m p l o , do f a r a ó ) , m e s m o que não se destine exclusivamente à satisfação das
necessidades próprias — n ã o se r e f e r i n d o , portanto, apenas à troca c o m vista ao orça-
mento da g e s t ã o p a t r i m o n i a l — , mas s e r v i n d o e m parte p a r a fins de a q u i s i ç ã o , n ã o
é capitalista n o sentido dessa terminologia enquanto n ã o pode orientar-se pelo cálculo
de capital, especialmente pela estimativa prévia e m d i n h e i r o das possibilidades de lucro.
Isto s ó o c o r r e u n o caso dos comerciantes profissionais viajantes, tanto faz se v e n d e n d o
mercadorias próprias o u pertencentes à commenda o u juntadas p o r vários proprietários.
Aqui, n a f o r m a d o e m p r e e n d i m e n t o ocasional, está a o r i g e m d o c á l c u l o de capital
e da qualidade de bens de capital. Pessoas utilizadas c o m o fonte de renda pelo senhor
sobre o c o r p o o u sobre o solo (escravos, s e r v o s ) o u instalações de todas as espécies,
utilizadas p a r a o m e s m o f i m , s ã o evidentemente objetos patrimoniais suscetíveis de
p r o p o r c i o n a r rendas, e n ã o bens de capital, do mesmo m o d o que h o j e ( p a r a a pessoa
particular interessada na oportunidade de r e n d a e, excepcionalmente, n u m a especu-
l a ç ã o ocasional — e m o p o s i ç ã o ao investimento t e m p o r á r i o de capital d e e x p l o r a ç ã o )
ECONOMIA E SOCIEDADE 103

o são os valores que p r o p o r c i o n a m rendas o u dividendos. As m e r c a d o r i a s que o senhor


recebe de seus vassalos, sobre o c o r p o o u sobre o solo, e m v i r t u d e de seu p o d e r senho-
rial, como tributos o b r i g a t ó r i o s , e l e v a ao m e r c a d o , s ã o p a r a nossa terminologia m e r c a -
dorias, e n ã o bens de capital, u m a v e z que falta em princípio (e n ã o apenas de f a t o )
o cálculo racional de capital ( c u s t o s ! ) A o c o n t r á r i o , quando s ã o utilizados escravos
como meios de aquisição n u m a e m p r e s a (sobretudo, q u a n d o h á u m m e r c a d o de escravos
e o emprego de escravos comprados, c o m o f o r m a típica), estes s ã o bens de capital.
Quando se trata de empresas baseadas e m prestações devidas p o r dependentes (heredi-
tários) que não s ã o l i v r e m e n t e c o m p r á v e i s o u v e n d á v e i s , n ã o falaremos de e m p r e e n -
dimentos capitalistas, mas de empreendimentos aquisitivos c o m trabalho comprometido
(com compromisso t a m b é m d o senhor perante os trabalhadores, o que é d e c i s i v o ! )
tanto faz se se trata de empreendimentos agrícolas o u de indústria d o m i c i l i a r c o m traba-
lhadores dependentes.
Na área da indústria, o "trabalho por preço", a pequena empresa capitalista e
a indústria domiciliar s ã o empreendimentos capitalistas descentralizados, e todos os
empreendimentos v e r d a d e i r a m e n t e capitalistas c o m caráter de oficina s ã o e m p r e e n -
dimentos capitalistas centralizados. Todas as espécies de trabalho na propriedade de
quem paga, de trabalho a d o m i c í l i o e de trabalho p o r salário s ã o simplesmente f o r m a s
de trabalho, as p r i m e i r a s duas n o interesse da g e s t ã o do empregador, a última n o
interesse do e m p r e e n d i m e n t o aquisitivo d o empregador.

O decisivo não é, portanto o fato empírico, mas, sim, a possibilidade em princípio do


cálculo material de capital.

§ 28. Além de todas as espécies anteriormente tratadas de serviços especializados


ou especificados existe, e m toda e c o n o m i a de troca ( t a m b é m , n o r m a l m e n t e , na m a t e r i a l -
mente regulada), a mediação na troca de poderes de disposição, p r ó p r i o s o u alheios.
Esta pode s e r realizada
1. pelos m e m b r o s d o q u a d r o administrativo de associações e c o n ô m i c a s , por r e -
m u n e r a ç ã o f i x a o u graduada, segundo o serviço prestado, e m e s p é c i e o u e m d i n h e i r o ;
2. por u m a associação c r i a d a p r o p r i a m e n t e p a r a atender às necessidades de troca
dos m e m b r o s de u m a cooperativa ( f o r m a c o o p e r a t i v i s t a ) o u
3- c o m o atividade aquisitiva p r o f i s s i o n a l , p o r r e m u n e r a ç ã o , s e m aquisição p r ó -
pria do poder de disposição ( f o r m a de a g ê n c i a ) e m f o r m a s jurídicas b e m diversas;
4. c o m o atividade aquisitiva profissional de natureza capitalista (comércio pró-
prio}, por c o m p r a atual n a espera d e u m a v e n d a lucrativa n o f u t u r o o u v e n d a a p r a z o
futura na espera d e c o m p r a l u c r a t i v a anterior; e isto
a ) livremente no mercado, ou
6 ) materialmente regulado;
5. p o r e x p r o p r i a ç ã o indenizada e continuamente regulada de determinados bens,
e v e n d a — l i v r e o u f o r ç a d a m e n t e imposta — destes, p o r parte de u m a associação
política (comércio forçado}
6. p o r oferecimento profissional de d i n h e i r o o u o b t e n ç ã o de crédito p a r a paga-
mento de o b r i g a ç õ e s surgidas e m empreendimentos aquisitivos o u a q u i s i ç ã o d e meios
de o b t e n ç ã o , por m e i o de c o n c e s s ã o d é crédito a
a) economias aquisitivas, o u
b) associações (particularmente p o l í t i c a s ) n e g ó c i o de crédito. O sentido e c o n ô -
m i c o pode ser
a ) crédito p a r a pagamento, o u
0) crédito p a r a o b t e n ç ã o de bens de capital.
104 MAX WEBER

Aos casos 4 e 5, e somente a estes, c h a m a m o s "comércio"; ao caso 4, c o m é r c i o


" l i v r e " , e ao caso 5, " c o m é r c i o m o n o p ó l i c o f o r ç a d o " .

Caso 1: a ) em economias com gestão patrimonial—principescas, senhoriais ou monásticas:


negotiatores e actores; b) em economias aquisitivas: "comissários" (representantes)
Caso 2: cooperativas de compra e venda (inclusive as "cooperativas de consumo")
Caso 3: corretores, comissionados, expedidores, agentes de seguros e outros "agentes".
Caso 4: a ) comércio moderno;
b) fixação heteronomamente imposta ou autonomamente pactuada da compra de — ou
venda a—determinados clientes, ou da compra ou venda de mercadorias de determinada espécie,
ou regulação material das condições de troca através de ordens estabelecidas por uma associação
política ou cooperativista.
Caso 5: exemplo: monopólio estatal do comércio de cereais.

§ 29. O livre c o m é r c i o p r ó p r i o (caso 4) — e somente trataremos deste, por o r a


— é s e m p r e " e m p r e e n d i m e n t o a q u i s i t i v o " , n u n c a " g e s t ã o p a t r i m o n i a l " , e, portanto,
e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s (ainda que n ã o i n e v i t a v e l m e n t e ) u m a atividade aquisitiva, me-
diante a troca, efetuada e m dinheiro, a q u a l toma a f o r m a de contratos de c o m p r a
e de v e n d a Mas pode s e r t a m b é m
a ) " e m p r e e n d i m e n t o a c e s s ó r i o " de u m a g e s t ã o p a t r i m o n i a l ,

por exemplo, troca dos excedentes do artesanato doméstico efetuada por membros da gestão
patrimonial designados propriamente para essa tarefa e negociando por conta própria. Ao contrá-
rio, uma troca efetuada ora por estes, ora por aqueles membros da gestão patrimonial nem
chega a constituir um "empreendimento acessório". Quando os membros em questão se ocupam,
por conta própria, exclusivamente com a venda (ou compra) de produtos, temos o caso 4 (em
forma modificada) quando negociam por conta da comunidade, temos o caso 1.

b) componente inseparável de u m s e r v i ç o global, o q u a l , p o r m e i o de trabalho


p r ó p r i o , p r o d u z determinados bens prontos para o consumo ( n o local de p r o d u ç ã o ) .

Exemplo: Os vendedores ambulantes e os pequenos comerciantes que viajam junto com


as mercadorias e realizam primordialmente a deslocação dos produtos ao local de mercado
eque, por isso, foram antes mencionados na categoria de "transporte". Os comerciantes viajantes
da commenda constituem, às vezes, um caso de transição para o caso 3- A questão de quando
é "primário" o serviço de transporte e secundário, o "lucro comercial" e vice-versa é totalmente
fluida. E m todo caso, trata-se, em todas estas categorias, de "comerciantes".

O c o m é r c i o p r ó p r i o (caso 4) realiza-se sempre s o b r e a base da apropriação dos


meios d e o b t e n ç ã o , m e s m o q u e o poder de disposição seja obtido p o r m e i o de crédito.
Para o comerciante n o c o m é r c i o p r ó p r i o , o risco de capital é s e m p r e r i s c o p r ó p r i o ,
e e m v i r t u d e da a p r o p r i a ç ã o dos meios de o b t e n ç ã o , s e m p r e está a p r o p r i a d a p o r ele
a oportunidade d e l u c r o .
A e s p e c i f i c a ç ã o e es pe c i a li z a ç ã o dentro d o l i v r e c o m é r c i o p r ó p r i o (caso 4) é possí-
v e l sob aspectos muito diversos. E c o n o m i c a m e n t e interessam, p o r o r a , apenas os seguin-
tes tipos:
a) segundo a natureza das economias c o m as quais o comerciante entra e m rela-
ç õ e s de troca:
1 . c o m é r c i o entre unidades de gestão patrimonial c o m excedentes e unidades
de gestão patrimonial consumidoras.
2. c o m é r c i o entre economias aquisitivas ( " p r o d u t o r e s " o u " c o m e r c i a n t e s " ) e ges-
ECONOMIA E SOCIEDADE 105

tões patrimoniais d e " c o n s u m i d o r e s " , incluindo-se, naturalmente, todas as espécies


de associações, particularmente as políticas.
3. c o m é r c i o entre d i v e r s a s economias aquisitivas.
O s casos 1 e 2 c o r r e s p o n d e m ao conceito de " c o m é r c i o a v a r e j o " , o que significa:
venda a consumidores (sendo indiferente a p r o c e d ê n c i a das m e r c a d o r i a s ) , o caso 3
corresponde ao conceito de " c o m é r c i o p o r atacado" o u " e n t r e c o m e r c i a n t e s " .
O c o m é r c i o pode r e a l i z a r - s e
a ) e m r e l a ç ã o a u m m e r c a d o , isto é,
a) n o m e r c a d o p a r a c o n s u m i d o r e s , n o r m a l m e n t e e m p r e s e n ç a das m e r c a d o r i a s
(comércio a varejo no mercado} ou
0) n o m e r c a d o p a r a economias aquisitivas,
ata) e m presença das m e r c a d o r i a s (comércio de feira}

na maioria das vezes, mas não necessariamente sazonal.

00) e m ausência das ipercadorias (comércio de bolsa}

Na maioria das vezes, mas não necessariamente, permanente.

b) e m relação a clientes, abastecendo-se u m círculo fixo de compradores, isto é,


a) gestões patrimoniais (comércio a varejo com clientes), ou
0) economias aquisitivas e, nesse caso,
ata) produtoras (atacadistas), ou
00) varejistas ( t a m b é m atacadistas} ou
yy) outras distribuidoras, de " p r i m e i r a " m ã o , " s e g u n d a " e t c , dentro d o c o m é r -
cio por atacado (comércio entre atacadistas}
D e p e n d e n d o do local de p r o c e d ê n c i a dos bens vendidos, o c o m é r c i o pode ser:
a) c o m é r c i o interlocal, o u
b) local.
O c o m é r c i o pode i m p o r materialmente
a) sua c o m p r a às economias que costumam l h e v e n d e r seus produtos,
b) sua v e n d a às economias que costumam c o m p r a r dele.
O caso a está p r ó x i m o à f o r m a e m que o e m p r e s á r i o - c o m e r c i a n t e procede p o r
encomenda n a indústria d o m i c i l i a r , e muitas vezes idêntica a esta.
O caso b é o do c o m é r c i o materialmente "regulado" (tópico 4, b}
A venda própria de bens é naturalmente elemento de todo e m p r e e n d i m e n t o aquisi-
tivo orientado p e l o m e r c a d o , m e s m o dos p r i m o r d i a l m e n t e " p r o d u t o r e s " . Mas esta v e n -
da n ã o é " m e d i a ç ã o " n o sentido d e nossa d e f i n i ç ã o enquanto n ã o existem determinados
membros d o quadro administrativo especialmente encarregados dessa tarefa ( p o r e x e m -
plo, agentes de v e n d a ) Isto é, enquanto n ã o se realiza u m s e r v i ç o profissional próprio
com caráter " c o m e r c i a l " . T o d a s as transições s ã o totalmente fluidas.
C h a m a m o s " e s p e c u l a t i v o " o c á l c u l o d o c o m é r c i o , na m e d i d a e m que se orienta
por probabilidades cuja realização se considera " c a s u a l " e, nesse sentido, " i n c a l c u -
l á v e l " , significando, p o r isso, u m " r i s c o " que se aceita. A transição entre o c á l c u l o
racional e o especulativo (nesse sentido) é totalmente f l u i d a , u m a v e z que nenhum
cálculo referente ao f u t u r o está objetivamente assegurado contra " e v e n t u a l i d a d e s " ines-
peradas. A d i f e r e n ç a refere-se, portanto, apenas a graus diversos de racionalidade.
A especialização e e s p e c i f i c a ç ã o técnica e e c o n ô m i c a de serviços, n o c o m é r c i o ,
n ã o oferece n e n h u m f e n ô m e n o peculiar. À " f á b r i c a " corresponde — e m v i r t u d e d o
grau extremamente elevado d e e s pe c i a li z a ç ã o interna d e serviços — a " l o j a d e departa-
mentos".
106 MAX WEBER

§ 29 a. C h a m a m o s bancos aquelas classes de empreendimentos aquisitivos comer-


ciais que profissionalmente
a ) administram ou
b) p r o p o r c i o n a m dinheiro.
C o m respeito a a , administram dinheiro
a) p a r a gestões patrimoniais particulares (depósitos p a r a fins de g e s t ã o , depósitos
de p a t r i m ô n i o ) ,
0) p a r a associações políticas (tesouro p ú b l i c o de E s t a d o s )
•y) p a r a economias aquisitivas (depósitos de empresas, contas correntes das mes-
mas).
C o m respeito a b, proporcionam dinheiro
a ) p a r a necessidades de g e s t ã o p a t r i m o n i a l :
a o ) de pessoas particulares (crédito de c o n s u m o ) ,
00) de associações políticas (crédito p o l í t i c o )
0) p a r a economias aquisitivas:
a a ) p a r a fins de pagamento a terceiros:
acta) letras de câmbio e m d i n h e i r o ,
000) endosso ou transferência bancária;
00) c o m o adiantamento destinado a pagar o b r i g a ç õ e s futuras de clientes. Caso
p r i n c i p a l : o desconto de letras de c â m b i o ;
yy) p a r a fins de crédito de capitai
É f o r m a l m e n t e indiferente
1. se o d i n h e i r o que adiantam o u p õ e m à disposição de q u e m o pede ("conta
c o r r e n t e " ) p r o v é m de fundos p r ó p r i o s , se e x i g e m u m p e n h o r o u outra garantia por
parte d e q u e m precisa do d i n h e i r o , o u
2. se mediante fiança o u de outra f o r m a conseguem que terceiros concedam
o crédito.
Na realidade, a g e s t ã o aquisitiva dos bancos costuma funcionar de m o d o que
o b t ê m seu l u c r o concedendo créditos a partir de meios que eles mesmos receberam
emprestados.
O d i n h e i r o dado a crédito pode ser obtido pelo banco:
1) das instituições de e m i s s ã o de d i n h e i r o , a d q u i r i n d o o banco a crédito parte
dos estoques de metal p o n d e ra l o u de moedas, o u
2 ) mediante criação própria d e
a ) certificados ( d i n h e i r o b a n c á r i o ) o u
0) meios de circulação (bilhetes de banco). O u
3 ) dos depósitos de outros meios m o n e t á r i o s , creditados a seu f a v o r por pessoas
particulares.
E m todos os casos e m q u e
a ) aceita créditos o u
b) c r i a meios de circulação
o b a n c o está obrigado, desde que sua g e s t ã o seja r a c i o n a l , a cuidar d e sua " s o l v ê n c i a " ,
isto é, de sua capacidade de fazer frente às e x i g ê n c i a s normais de pagamento, por
m e i o d e " c o b e r t u r a " , isto é, tendo à disposição u m a quantidade suficientemente grande
de d i n h e i r o p a r a pagamentos o u adaptando às o b r i g a ç õ e s os prazos dos créditos que
ele mesmo concede.
E m g e r a l (mas n e m s e m p r e ) a observância das n o r m a s d e solvência por parte
dos bancos que emitem d i n h e i r o (bancos emissores d e b i l h e t e s ) está garantida por regu-
l a ç õ e s impostas p o r associações (grêmios de comerciantes o u associações políticas)
Essas r e g u l a ç õ e s costumam estar orientadas, igualmente, pelo f i m de proteger a ordem
ECONOMIA E SOCIEDADE 107

monetária escolhida p a r a determinado território diante de m u d a n ç a s n o v a l o r material


do dinheiro, assegurando, assim, contra " p e r t u r b a ç õ e s " p o r irracionalidades (mate-
riais), os cálculos e c o n ô m i c o s ( f o r m a l m e n t e ) racionais das gestões patrimoniais e, sobre-
tudo, da associação política, a l é m daqueles das economias aquisitivas. Particularmente
procura-se s e m p r e manter estável o p r e ç o d o d i n h e i r o p r ó p r i o e m r e l a ç ã o ao d i n h e i r o
de outros territórios m o n e t á r i o s c o m os quais existem o u são desejadas relações comer-
ciais e de crédito ("câmbio estável", "paridade monetária"). A essa política dirigida
contra as irracionalidades do sistema m o n e t á r i o d e n o m i n a m o s "política lítrica" (segun-
do G . F . K n a p p ) No " E s t a d o de d i r e i t o " puro (Estado de laissez-faire), ela constitui
a medida p o l í t i c o - e c o n ô m i c a mais importante, dentre as que este assume de m o d o
típico. E m f o r m a racional, é absolutamente peculiar do Estado moderno.

As medidas tomadas pela política chinesa referentes às moedas de cobre e às notas de


papel, bem como as da política monetária na Antiguidade romana serão mencionadas no lugar
adequado. Não constituem política lítrica em sentido moderno. Apenas a política de dinheiro
bancário dos grêmios chineses (o mesmo modelo da política hamburguesa do marco bancário)
era racional em nosso sentido.

D e n o m i n a m o s negócios financeiros todos os n e g ó c i o s — s e j a m estes realizados


por " b a n c o s " o u por outras pessoas o u instituições (como atividade aquisitiva ocasional
ou acessória, p o r pessoas particulares, o u c o m o componente da política de e s p e c u l a ç ã o
de u m " f i n a n c i a d o r " ) — que se o r i e n t a m n o sentido da o b t e n ç ã o de poderes de dispo-
sição lucrativos sobre as possibilidades aquisitivas de empreendimentos:
a ) transformando-se e m valores os direitos a possibilidades aquisitivas a p r o p r i a -
das ('comercialização") e adquirindo-se estes v a l o r e s o u diretamente o u através de
empreendimentos " f i n a n c i a d o s " n o sentido de c,
b) oferecendo-se (eventualmente, negando-se) sistematicamente crédito de aqui-
sição-,
c) f o r ç a n d o - s e ( e m caso de necessidade o u de desejo) a u n i ã o de e m p r e e n d i -
mentos até e n t ã o concorrentes:
a ) n o sentido de u m a regulação m o n o p ó l i c a de empreendimentos c o m atividades
iguais (criação de cartéis), o u
0) n o sentido de u m a u n i ã o m o n o p ó l i c a de empreendimentos até e n t ã o concor-
rentes sob uma d i r e ç ã o , a f i m de e l i m i n a r os m e n o s rentáveis (fusão), o u
y) n o sentido de u m a união ( n ã o necessariamente m o n o p ó l i c a ) de e m p r e e n d i -
mentos especializados c o m atividades complementares e m sua s u c e s s ã o , n u m a "combi-
nação", [ou]
S) no sentido de pretender d o m i n a r , a partir d e u m centro e mediante o p e r a ç õ e s
de v a l o r e s , empreendimentos c o m p r o d u ç ã o e m massa (criação de trustes), e — even-
tualmente — de c r i a r de f o r m a organizada novos trustes p a r a f i n s de l u c r o o u e x c l u s i v a -
mente de poder (financiamento e m sentido e s t r i t o )

"Negócios financeiros" são freqüentemente realizados por bancos e, em regra, muitas


vezes inevitavelmente, com a cooperação deles. Mas a direção está, na maioria das vezes, nas
mãos de operadores na Bolsa (Harriman) ou de grandes empresários industriais (Carnegie) em
caso de cartéis, também muitas vezes nas mãos de grandes empresários (Kirdorf e t c . ) em caso
de "trustes", nas de "financistas" especiais (Gould, Rockefeller, Stinnes, Rathenau) (Pormenores
mais adiante.)

§ 30. O g r a u m á x i m o de racionalidade formal d o c á l c u l o de capital nos e m p r e e n -


dimentos de obtenção p o d e s e r a l c a n ç a d o nas c o n d i ç õ e s seguintes:
108 MAX WEBER

1. a p r o p r i a ç ã o completa, pelos proprietários, de todos os meios materiais de


o b t e n ç ã o e ausência completa de a p r o p r i a ç ã o f o r m a l das possibilidades aquisitivas n o
m e r c a d o (liberdade no m e r c a d o de bens),
2. autonomia total dos proprietários na s e l e ç ã o dos diretores, isto é, ausência
completa de a p r o p r i a ç ã o f o r m a l da d i r e ç ã o (liberdade de e m p r e e n d i m e n t o )
3 ausência completa de a p r o p r i a ç ã o dos postos de trabalho e das possibilidades
aquisitivas p o r parte dos trabalhadores e, inversamente, dos trabalhadores p o r parte
dos proprietários (trabalho l i v r e , liberdade n o m e r c a d o de trabalho e na seleção dos
trabalhadores)
4. ausência completa de r e g u l a ç õ e s materiais d e consumo, o b t e n ç ã o o u p r e ç o ,
o u de outras ordens que possam limitar a e s ti pu la ç ã o l i v r e das c o n d i ç õ e s de troca
(liberdade m a t e r i a l de contratos e c o n ô m i c o s )
5. calculabilidade total das c o n d i ç õ e s técnicas de o b t e n ç ã o (técnica mecanica-
mente r a c i o n a l )
6. calculabilidade total n o funcionamento da o r d e m administrativa e jurídica,
e garantia c o n f i á v e l puramente formal de todos os acordos p o r parte do p o d e r político
(administração e direito f o r m a l m e n t e r a c i o n a i s )
7. o m á x i m o possível de s e p a r a ç ã o entre a empresa e seu destino, p o r u m lado,
e a g e s t ã o p a t r i m o n i a l e o destino do p a t r i m ô n i o , p o r outro, particularmente entre
a disponibilidade e a solidez do capital das empresas e o p a t r i m ô n i o dos proprietários
e o destino que este pode e x p e r i m e n t a r e m v i r t u d e de h e r a n ç a . Para grandes e m p r e e n d i -
mentos, este s e r i a , e m g e r a l , o caso formalmente ó t i m o : 1 ) nos empreendimentos
elaboradores de m a t é r i a - p r i m a , de transporte e de m i n e r a ç ã o , na f o r m a de sociedades
p o r a ç õ e s , sendo estas l i v r e m e n t e alienáveis, c o m garantia de capital e na ausência
da responsabilidade pessoal, e 2 ) na agricultura, na f o r m a de a r r e n d a m e n t o a (relativa-
m e n t e ) longo prazo;
8. o m á x i m o possível de o r g a n i z a ç ã o formalmente racional do sistema monetário.

Apenas alguns poucos pontos (já mencionados anteriormente) precisam aqui de comen-
tários.
1. Com respeito ao tópico 3 o trabalho dependente (especialmente a escravidão total) per-
mitia a disposição formalmente mais ilimitada sobre os trabalhadores do que seu emprego por
salário. Só que a ) a necessidade de capital a ser investido em propriedade humana, para compra
e alimentação dos escravos, era muito maior do que no caso de trabalho por salário; b) o risco
de capital, neste caso, era especificamente irracional (condicionado em grau mais elevado do
que no caso de trabalho assalariado por circunstâncias extra-econômicas de todas as espécies,
particularmente porém e em grau extremo por fatores políticos) c ) era irracional o balanço
do capital em forma de escravos, em virtude das flutuações no mercado de escravos e, conseqüen-
temente, dos preços; d) era irracional também e sobretudo, pela mesma causa, sua comple-
mentação e recrutamento (politicamente condicionado) e) pesava sobre o emprego dos escravos,
quando foi tolerada a convivência destes com suas famílias, o ônus dos custos de alojamento
e sobretudo da alimentação das mulheres e da criação dos filhos, para os quais não existia
em si uma possibilidade de utilização economicamente racional como força de trabalho; f) só
era possível o aproveitamento pleno dos serviços dos escravos em caso de ausência das famílias
e de disciplina rigorosa, o que ainda intensificava consideravelmente, em sua irracionalidade,
o alcance do fator indicado no item d), g) não era possível, de acordo com toda a experiência,
o emprego de trabalho de escravos com ferramentas e aparelhos que exigiam em alto grau
responsabilidade e interesse próprios; h) faltava, sobretudo, a possibilidade de seleção — contra-
tação após teste com máquina — e de demissão, em caso de oscilações conjunturais ou desgaste.
A empresa escravista só foi rentável em caso de: a ) possibilidade de alimentação muito
barata dos escravos; b) disponibilidade regular de escravos no mercado, c) grandes explorações
agrícolas com caráter de plantation ou manipulações industriais muito simples. Os exemplos
ECONOMIA E SOCIEDADE 109

mais importantes dessa utilização são as plantations cartaginesas, romanas, algumas coloniais
e as norte-americanas, além das "fábricas" russas. O esgotamento do mercado de escravos (em
virtude da pacificação do Império) causou a contração das plantations na Antiguidade; na América
do Norte, a mesma circunstância levou à procura contínua de novas terras mais baratas, dado
não ser possível, ao lado da dos escravos, uma renda do solo; na Rússia, as fábricas com escravos
suportavam com djficuldade a concorrência do kustar (indústria caseira) mas de modo algum
a daquelas baseadas no trabalho livre — sendo que, já antes da emancipação, continuamente
pediam permissão para libertar seus trabalhadores — e desapareceram com a introdução do
trabalho de oficina livre.
E m caso de emprego de trabalhadores assalariados: a ) são menores o risco e o dispêndio
de capital; b) fica sob a responsabilidade do trabalhador o ônus da reprodução e da criação
dos filhos, sendo este e o cônjuge, por sua vez, obrigados a "procurar" serviço; c) em razão
disso, o medo da demissão possibilita a realização do ótimo de rendimento; d ) existe seleção
segundo a capacidade e a disposição para o trabalho.
2. Com respeito ao tópico 7: a separação, na Inglaterra, entre a exploração por arrenda-
tários, com cálculo de capital, e a propriedade das terras fideicomissariamente vinculada não
é um fenômeno casual, senão expressão do desenvolvimento que ali se deu há séculos, sem
interferência alguma (falta de proteção ao camponês, em cbnseqúência da situação insular)
Toda união da propriedade do solo com seu cultivo transforma o solo num bem de capital
da economia. Aumenta, assim, a necessidade e o risco de capital, obstrui a separação entre
gestão orçamentária e empresa (as indenizações aos co-herdeiros pesam sobre a empresa como
dívidas), impede a liberdade de movimento do capital do empresário e, por fim, onera, o cálculo
de capital com fatores irracionais. Formalmente, portanto, a separação entre a propriedade do
solo e a exploração agrícola corresponde à racionalidade das empresas com cálculo de capital
(a avaliação material do fenômeno é um assunto à parte, que pode dar resultados bem diversos,
dependendo do ponto de vista que se adote)

§ 3 1 . Na o r i e n t a ç ã o " c a p i t a l i s t a " das atividades aquisitivas (isto é, que, e m caso


de procedimento r a c i o n a l , baseia-se e m cálculo de capitai), há tendências típicas distintas
entre si por sua própria natureza-.
1. O r i e n t a ç ã o : a ) pelas oportunidades de rentabilidade n a c o m p r a e v e n d a contí-
nuas n o mercado ( " c o m é r c i o " ) , e m caso de troca l i v r e (formalmente: n ã o f o r ç a d a ;
materialmente: pelo m e n o s relativamente voluntária), b) pelas oportunidades de renta-
bilidade e m empreendimentos de obtenção de bens, c o m c á l c u l o de capital.
2. O r i e n t a ç ã o pelas oportunidades d e aquisição: a ) por m e i o de c o m é r c i o e especu-
l a ç ã o c o m d i n h e i r o , realização de pagamentos de todas as espécies e o b t e n ç ã o de meios
de pagamento; 6) p o r m e i o de c o n c e s s ã o profissional de créditos: a ) p a r a fins de consu-
m o ; 0) p a r a f i n s aquisitivos.
3. O r i e n t a ç ã o pelas oportunidades de obter despojos atuais de associações ou
pessoas políticas o u politicamente orientadas: financiamento de guerras o u r e v o l u ç õ e s
o u financiamento de chefes de partidos políticos p o r m e i o de e m p r é s t i m o s o u f o r n e c i -
mento de bens materiais.
4. O r i e n t a ç ã o pelas oportunidades d e aquisição contínua e m v i r t u d e de d o m i n a ç ã o
imposta, garantida p e l o poder político: a) de tipo colonial (aquisição mediante planta-
tions c o m f o r n e c i m e n t o f o r ç a d o de produtos o u trabalho, c o m é r c i o m o n o p ó l i c o o u
f o r ç a d o ) b) de tipo fiscal (aquisição mediante a r r e n d a m e n t o de cargos públicos o u
d o direito de a r r e c a d a r impostos, seja na m e t r ó p o l e , seja nas c o l ô n i a s )
5. O r i e n t a ç ã o pelas oportunidades d e a q u i s i ç ã o mediante fornecimentos extraor-
dinários de bens a associações políticas.
6. O r i e n t a ç ã o pelas oportunidades de aquisição: a) p o r transações puramente
especulativas e m m e r c a d o r i a s tipificadas o u participação, e m f o r m a de títulos, e m e m -
preendimentos; Z>)por realização c o n t í n u a de n e g ó c i o s de pagamento p a r a associações
110 MAX WEBER

públicas; c ) p o r financiamento de fundações de empreendimentos, vendendo-se títulos


a investidores angariados; í/)por financiamento especulativo de empreendimentos capi-
talistas e da constituição de associações e c o n ô m i c a s d e todas as espécies, c o m o f i m
de regular, de f o r m a rentável, a g e s t ã o aquisitiva destas, o u de obter poder.
O s casos de n ú m e r o s 1 e 6 s ã o , e m grande parte, peculiares do Ocidente. O s
demais (2 a 5 ) encontram-se n o m u n d o inteiro há m i l h a r e s de anos, verificados s e m p r e
onde o c o r r e s s e m as possibilidades de troca ( 2 ) e e c o n o m i a m o n e t á r i a , e (nos casos
3 a 5 ) financiamento em dinheiro. C o m o meios de a q u i s i ç ã o , estes casos apenas local
e temporariamente (particularmente: e m tempos de g u e r r a ) a l c a n ç a r a m n o Ocidente
a importância preeminente que t i v e r a m na Antiguidade. Sua f r e q ü ê n c i a d i m i n u i u tam-
b é m ali onde se d e u a p a c i f i c a ç ã o de grandes territórios (impérios unitários: C h i n a
e a última fase do I m p é r i o R o m a n o ) , de m o d o que, c o m o f o r m a s de aquisição capitalista,
s o b r a r a m somente o c o m é r c i o e os n e g ó c i o s c o m d i n h e i r o (tópico 2). Pois o financia-
mento capitalista da política f o i p o r toda parte produto:
a ) da c o n c o r r ê n c i a entre os Estados pelo poder, e
b) condicionado p o r isso, da c o n c o r r ê n c i a pelo capital disponível. Esta situação
s ó t e r m i n o u c o m a f o r m a ç ã o dos i m p é r i o s unitários.

Pelo que eu me recordo, este ponto de vista foi exposto de forma mais clara, até agora,
por J. PLENGE (Von der Diskontpolitik zur Herrschaft über den Geldmarkt, Berlim, 1913) Cf.
antes somente minhas exposições, no artigo "Agrargeschichte, Altertum", em HW. d. StW., 3?
ed., vol. I [1909].

Apenas o Ocidente conhece empresas racionais capitalistas c o m capital fixo, traba-


lho l i v r e e especialização e c o o r d e n a ç ã o racionais do trabalho, bem c o m o u m a distri-
b u i ç ã o de serviços orientada puramente pelos princípios da economia de troca e reali-
zada sobre a base de economias aquisitivas capitàlistas. Isto é: a f o r m a capitalista da
organização do trabalho, f o r m a l m e n t e de caráter p u r a m e n t e voluntár io, c o m o m o d o
típico e dominante de p r o v i m e n t o das necessidades de amplas massas, c o m e x p r o p r i a ç ã o
dos trabalhadores dos meios de o b t e n ç ã o e a p r o p r i a ç ã o dos empreendimentos por
parte dos possuidores de títulos. Somente o Ocidente conhece o crédito p ú b l i c o e m
f o r m a de emissão de títulos rentáveis, a c o m e r c i a l i z a ç ã o de títulos e os n e g ó c i o s de
e m i s s ã o e financiamento c o m o objetos de empreendimentos racionais, o c o m é r c i o e m
bolsa de mercadorias e títulos, o " m e r c a d o m o n e t á r i o " e o " m e r c a d o de c a p i t a l " ,
as associações monopolistas c o m o f o r m a s de o r g a n i z a ç ã o racional c o n f o r m e os princí-
pios da economia aquisitiva, p a r a a produção e m p r e s a r i a l de bens (e n ã o apenas p a r a
a c o m e r c i a l i z a ç ã o dos mesmos).
Esta diferença r e q u e r u m a explicação, que n ã o pode apoiar-se exclusivamente
e m argumentos e c o n ô m i c o s . Concebemos aqui o conjunto dos casos 3 a 5 c o m o de
capitalismo politicamente orientado. Todas as e x p o s i ç õ e s que seguem r e f e r e m - s e , antes
de mais nada, também a esse p r o b l e m a . E m g e r a l , s ó cabe o b s e r v a r o seguinte:
1. É c l a r o , e m p r i m e i r o lugar, que os acontecimentos politicamente orientados,
que o f e r e c e m essas possibilidades de aquisição, t ê m , economicamente considerados
— d o ponto de vista da orientação pelas oportunidades d e mercado (tratando-se de
necessidades de c o n s u m o de gestões p a t r i m o n i a i s ) — caráter irracional.
2. D o m e s m o m o d o é evidente que s ã o i r r a c i o n a i s as oportunidades de aquisição
puramente especulativas (2 a e 6 a ) e o crédito e x c l u s i v a m e n t e p a r a fins de consumo
(2 b, a), n o que se r e f e r e à satisfação de necessidades e às economias produtoras de
bens, p o r estarem condicionados por constelações casuais de p r o p r i e d a d e o u de m e r c a -
do, e que t a m b é m p o d e m ser irracionais, e m certas circunstâncias, p o r é m n ã o necessa-
riamente, as probabilidades de f u n d a ç ã o o u financiamento d e e m p r e s a (6 6, c e d).
ECONOMIA E SOCIEDADE 111

Características próprias da e c o n o m i a m o d e r n a , a l é m d o e m p r e e n d i m e n t o r a c i o n a l
capitalista, s ã o : 1) o m o d o de o r g a n i z a ç ã o do sistema m o n e t á r i o , e 2 ) o m o d o de comer-
cialização da p a r t i c i p a ç ã o e m empreendimentos mediante títulos. A m b a s as coisas d e v e m
ainda ser examinadas. C o m e ç a m o s c o m o sistema m o n e t á r i o .

§ 32. 1 . O Estado m o d e r n o m a n t é m
a ) sempre o m o n o p ó l i o da organização do sistema m o n e t á r i o , p o r m e i o de esta-
tutos;
b) e m r e g r a , c o m poucas e x c e ç õ e s , o m o n o p ó l i o da c r i a ç ã o ( e m i s s ã o ) d e d i n h e i r o ,
pelo menos n o que se r e f e r e ao d i n h e i r o metálico.

[1]. Decisivos para essa monopolização foram inicialmente motivos puramente fiscais (ga-
nhos provindos da cunhagem). Por isso — o que deixamos de lado por agora —, no início,
proibição de dinheiro estrangeiro.
2. A monopolização da criação de dinheiro não foi geral, até a atualidade (em Bremen,
antes da reforma monetária, circulavam como dinheiro corrente moedas estrangeiras).

A l é m disso,
c ) ele é e m v i r t u d e da importância crescente de seus impostos e empreendimentos
econômicos próprios,
a ) o m a i o r recebedor de pagamentos e
0) o m a i o r efetuador de pagamentos, o u p o r m e i o das caixas próprias o u por
meio daquelas que o p e r a m por sua conta (chamamos ambas, e m conjunto, " c a i x a s
regimentais")
Mesmo prescindindo-se dos pontos a e b, é, portanto, segundo o ponto c, de
importância decisiva p a r a u m sistema m o n e t á r i o m o d e r n o o comportamento das caixas
estatais e m r e l a ç ã o ao d i n h e i r o ; sobretudo, p o r u m lado, a q u e s t ã o de qual é o tipo
de d i n h e i r o de que estas efetivamente (de m o d o " r e g i m e n t a l " )
1) d i s p õ e m , isto é, podem entregar, o u
2 ) impõem ao p ú b l i c o , c o m o d i n h e i r o legai,
e, por outro, a q u e s t ã o de q u a l é o tipo de d i n h e i r o que efetivamente (de modo
regimental)
1) aceitam, o u
2 ) r e p u d i a m , total o u parcialmente.

Parcialmente repudiado está, por exemplo, o papel-moeda, quando se exige o pagamento


de taxas de alfândega em ouro; totalmente repudiados foram (por fim), por exemplo, os assignats
da revolução francesa, o dinheiro dos estados secessionistas e as emissões do governo chinês
durante a rebelião de Taiping.

O d i n h e i r o s ó pode ser definido c o m o legal q u a n d o se trata de u m " m e i o de


pagamento estabelecido pela l e i " que todos — e t a m b é m e sobretudo, portanto, as
caixas estatais — estão obrigados a aceitar e d a r e m pagamento, seja até determinada
quantidade, seja ilimitadamente. C o m o regimental pode ser definido o d i n h e i r o que
as caixas do g o v e r n o aceitam e i m p õ e m ; d i n h e i r o legal o b r i g a t ó r i o é especialmente
aquele que estas caixas i m p õ e m .
A " i m p o s i ç ã o " pode ocorrer:
a) e m v i r t u d e d e a u t o r i z a ç ã o legal, existente há muito tempo, p a r a fins de política
monetária (táleres e moedas de c i n c o francos depois da suspensão da cunhagem de
prata — ainda que, c o m o é sabido, ela não tenha o c o r r i d o )
112 MAX WEBER

b) e m v i r t u d e de insolvência e m outros meios de pagamento, a qual leva à situação


de
a ) s ó agora ser preciso f a z e r uso, de m o d o regimental, daquela autorização legal,
ou
0) criar-se ad hoc u m a a u t o r i z a ç ã o f o r m a l (le g a l) p a r a a i m p o s i ç ã o de u m n o v o
m e i o d e pagamento (o que quase s e m p r e acontece q u a n d o se passa de d i n h e i r o m e t á l i c o
para p a p e l - m o e d a )
No ú l t i m o caso (b, 0), o processo é, e m r e g r a , o seguinte: u m meio de circulação
até esse momento conversível Gegalmente o u de fato), e que, se já antes podia ser
legalmente imposto, o é, agora, de fato e se torna efetivamente inconversível.
Legalmente, u m Estado pode declarar qualquer tipo de objeto c o m o " m e i o de
pagamento estabelecido pela l e i " , e qualquer objeto cartai pode ser declarado " d i n h e i -
r o " n o sentido d e " m e i o de pagamento". E estabelecer, p a r a esses objetos, tarifas
quaisquer de v a l o r — e m caso de d i n h e i r o de tráfico, relações intermonetárias — c o m o
Lhe convier.

Q u a n t o às p e r t u r b a ç õ e s formais do sistema m o n e t á r i o legal, o que o Estado dificil-


mente o u de m o d o algum pode [ s u p r i m i r ] é:
a) e m caso de d i n h e i r o administrativo: a falsificação e n t ã o quase s e m p r e muito
rentável,
b) e m caso de d i n h e i r o metálico de todas as espécies:
a) a utilização extramonetária do metal c o m o m a t é r i a - p r i m a , q u a n d o esses p r o d u -
tos t ê m p r e ç o s muito elevados; isto lhe é particularmente difícil q u a n d o a r e l a ç ã o mone-
tária é d e s f a v o r á v e l p a r a o metal e m q u e s t ã o ( v e j a y )
0) a e x p o r t a ç ã o p a r a outros territórios c o m r e l a ç ã o monetária mais favorável
(quando se trata de d i n h e i r o de tráfico),
y ) a oferta de metal-moeda legal p a r a fins de c u n h a g e m , quando, e m c o m p a r a ç ã o
ao p r e ç o de m e r c a d o , o d i n h e i r o m e t á l i c o f o i tarifado e m nível muito b a i x o e m relação
ao d i n h e i r o c o r r e n t e (metálico o u papel-moeda).
E m r e l a ç ã o ao papel-moeda, a tarifação segundo a q u a l u m a unidade n o m i n a l
metálica equivale a u m a unidade n o m i n a l de papel, c o m o m e s m o n o m e , será demasia-
damente desfavorável p a r a o d i n h e i r o m e t á l i c o s e m p r e que se suspenda a conversi-
bilidade do m e i o de circulação, pois é isso que o c o r r e e m caso de insolvência e m
d i n h e i r o metálico.
Relações monetárias entre diversas espécies de d i n h e i r o m e t á l i c o de tráfico p o d e m
ser estabelecidas:
1) por tarifação do c â m b i o e m cada caso particular (sistema paralelo l i v r e )
2 ) p o r tarifação periódica (sistema paralelo periodicamente t a r i f a d o ) e
3 ) p o r tarifação legal permanente (plurimetalismo, por e x e m p l o : b i m e t a l i s m o )

Nos casos dos tópicos 1 e 2 acima, ocorre regularmente que apenas um metal é o metal-
moeda regimental e efetivo (na Idade Média: a prata) enquanto que o outro é moeda comercial
com câmbio tarifado (Friedrichsddr, ducados) A diferenciação total na utilização específica do
dinheiro de tráfico é rara nos sistemas monetários modernos, mas foi freqüente anteriormente
(China, Idade Média)

2. D o ponto de vista s o c i o l ó g i c o , a d e f i n i ç ã o d o d i n h e i r o c o m o meio de paga-


mento legalmente estabelecido e criação da administração " l í t r i c a " (dos meios de paga-
m e n t o ) n ã o é exaustiva. Baseia-se n o " f a t o de que existem d í v i d a s " ( G . F . K n a p p ) particu-
larmente e m f o r m a de impostos devidos aos Estados e de j u r o s devidos pelos Estados.
ECONOMIA E SOCIEDADE 113

O ponto de referência d o pagamento legal dessas dívidas é a f i x a unidade nominal


de d i n h e i r o ( m e s m o que talvez tenha m u d a d o a matéria do d i n h e i r o ) o u , e m caso
de v a r i a ç ã o da unidade n o m i n a l , a " d e f i n i ç ã o histórica". A l é m disso, a pessoa particular
considera hoje a unidade n o m i n a l de d i n h e i r o c o m o alíquota de sua renda nominal
e m d i n h e i r o , e n ã o c o m o peça cartai, metálica o u de papel.
O Estado, p o r m e i o de sua legislação e de seu q u a d r o administrativo, pode, de
fato, mediante comportamento efetivo (regimental), d o m i n a r formalmente o "sistema
m o n e t á r i o " vigente n o território m o n e t á r i o que g o v e r n a .

Este é o caso quando o Estado opera com meios administrativos modernos. A China, por
exemplo, não o conseguiu. Nem nas épocas anteriores, porque os pagamentos "apocêntricos"
e "epicêntricos" efetuados ou recebidos "pelas" caixas estatais eram insignificantes em relação
ao tráfico global. Nem nos últimos tempos: parece que não conseguiu transformar a prata em
dinheiro limitado com reserva de ouro, uma vez que não tinha meios suficientes para impedir
a falsificação, que nesse caso certamente ocorreria.

No entanto, n ã o há somente dívidas (já existentes), mas t a m b é m trocas atuais


e c o n t r a ç ã o de novas dívidas, que existirão n o futuro. Esses atos orientam-se p r i m o r d i a l -
mente pela qualidade do d i n h e i r o c o m o meio de troca [capítulo I I , § 6] — o que significa:
pela possibilidade de o d i n h e i r o s e r aceito, n o futuro e e m certa relação de p r e ç o
(aproximadamente e s t i m a d a ) e m troca de bens de e s p é c i e determinada o u indeter-
m i n a d a , por parte de n ú m e r o indeterminado de terceiros.

1. Orientam-se também, em certas circunstâncias, primordialmente pela probabilidade


de poder pagar com este dinheiro dívidas prementes que existem para com o Estado ou pessoas
particulares. Mas um tal caso é, aqui, de significação secundária, uma vez que pressupõe uma
"situação de necessidade".
2. É neste ponto que começa a ser incompleta a "teoria estatal do dinheiro", de G.F.
KNAPP, teoria que em todos os demais aspectos pode ser considerada "correta" e simplesmente
brilhante, além de definitivamente fundamental.

O Estado, p o r sua parte, deseja o d i n h e i r o que adquire mediante impostos o u


outras medidas n ã o somente c o m o m e i o de troca, mas t a m b é m , e f r e q ü e n t e m e n t e
c o m muita u r g ê n c i a , p a r a pagar j u r o s de dívidas. No entanto, seus credores querem
ainda assim utilizá-lo c o m o m e i o de troca e p o r isso o desejam. E quase s e m p r e o
p r ó p r i o Estado o deseja t a m b é m , e muitas vezes exclusivamente, c o m o m e i o de troca
para c o b r i r futuramente n o m e r c a d o ( e m f o r m a de economia d e t r o c a ) necessidades
estatais de utilidades. Portanto, a qualidade de m e i o de pagamento, por mais necessário
que seja destacá-la c o m o parte d o conceito, n ã o é a que define o d i n h e i r o . À p o s s i b i l i d a d e
de troca d e determinada e s p é c i e d e d i n h e i r o , e m c o m p a r a ç ã o c o m outros bens definidos
— p o s s i b i l i d a d e que se baseia na estimativa de seu v a l o r e m r e l a ç ã o aos bens de mercado
— denominamos v a l i d e z material ( e m o p o s i ç ã o : 1 ) à validez formal, legal, c o m o meio
de pagamento, e 2 ) à o b r i g a ç ã o legal, muitas vezes existente, de utilização formal de
determinado d i n h e i r o c o m o m e i o d e t r o c a ) A estimativa " m a t e r i a l " , c o m o fato isolado
verificável, o c o r r e , e m p r i n c í p i o : 1 ) apenas e m r e l a ç ã o a determinadas classes de bens
e 2 ) p o r p a n e de cada indivíduo, c o m o estimativa baseada na utilidade m a r g i n a l do
d i n h e i r o p a r a ele (segundo sua r e n d a ) É c l a r o que essa utilidade marginal se desloca
— p a r a o i n d i v í d u o — c o m o aumento da quantidade de d i n h e i r o de que dispõe. Sendo
assim, ela d i m i n u i , e m p r i m e i r o lugar, p a r a a instituição emissora, quando esta cria
dinheiro administrativo, empregando-o de m o d o " a p o c ê n t r i c o " c o m o meio de troca
o u impondo-o c o m o m e i ó de pagamento ( n ã o apenas, mas sobretudo nessa o c a s i ã o )
114 MAX WEBER

e m segundo lugar, p a r a aqueles participantes na troca c o m o Estado e m cujas m ã o s


aumenta a quantidade de d i n h e i r o e m v i r t u d e da e l e v a ç ã o de p r e ç o s que lhes f o i conce-
dida (de acordo c o m a estimativa d i m i n u í d a da utilidade mar g i n a l , p o r parte da adminis-
tração estatal). O " p o d e r a q u i s i t i v o " aumentado, que assim a d q u i r e m — isto é, a utilida-
de m a r g i n a l do d i n h e i r o d i m i n u í d a , agora existente entre esses possuidores — , pode
levar, p o r sua v e z , à aceitação de p r e ç o s mais elevados nas compras deles e assim
p o r diante. Se, ao contrário, o Estado retirasse de c i r c u l a ç ã o parte das notas que retor-
n a m a ele, isto é, se n ã o a empregasse novamente (e a destruísse), teria de limitar
seus gastos de acordo c o m a estimativa da utilidade m a r g i n a l , que e n t ã o aumenta p a r a
ele, de suas reservas d i m i n u í d a s de d i n h e i r o , baixando/portanto, e m p r o p o r ç ã o corres-
pondente, suas ofertas de p r e ç o s . Nesse caso, a c o n s e q ü ê n c i a seria precisamente o
contrário. Na economia de troca, pode o c o r r e r , portanto, que o dinheiro administrativo
(não apenas ele, mas e m p r i m e i r o l u g a r ) seja u m fator modificador dos p r e ç o s , dentro
de u m território m o n e t á r i o isolado.

Não cabe examinar aqui quais são as classes de bens atingidas e quanto tempo leva esse
processo.

3. Universalmente considerado, õ barateamento e o aumento da o b t e n ç ã o de


metal-moeda, o u , ao contrário, seu encarecimento e r e d u ç ã o , p o d e r i a m ter conse-
qüências semelhantes p a r a todos os países que o e m p r e g a m c o m o d i n h e i r o de tráfico.
As utilizações m o n e t á r i a e extramonetária dos metais existem lado a lado. Mas s ó no
caso do cobre ( C h i n a ) a extramonetária foi p o r algum tempo decisiva p a r a a estimativa
de seu v a l o r . No caso do o u r o , a c o t a ç ã o equivalente na unidade monetária n o m i n a l
de o u r o , descontado o custo da cunhagem, já f o i considerada procedimento n o r m a l
desde o momento e m que se tornou meio de pagamento intercambiário e, ao m e s m o
tempo, d i n h e i r o de tráfico n o território m o n e t á r i o dos Estados mercantis mais impor-
tantes, c o m o o c o r r e e m nosso tempo. No caso da prata, o c o r r e u o m e s m o e, e m circuns-
tâncias iguais, o c o r r e r i a ainda hoje. U m metal que n ã o seja m e i o de pagamento intercam-
biário, mas d i n h e i r o de tráfico p a r a alguns territórios m o n e t á r i o s será cotado, natural-
mente, c o m o nominalmente igual à unidade n o m i n a l do d i n h e i r o ali existente — mas
esta, p o r sua v e z , tem u m a r e l a ç ã o intercambiária que v a r i a de acordo com os custos
e a quantidade necessária de cunhagem complementar, e o chamado " b a l a n ç o de paga-
m e n t o " ( d e m o d o " p a n t o p ó l i c o " ) . Por f i m , o v a l o r daquele metal n o b r e , que é u n i v e r s a l -
mente utilizado p a r a a cunhagem regulada ( e , portanto, l i m i t a d a ) de d i n h e i r o adminis-
trativo, s e m constituir d i n h e i r o de tráfico (mas, s i m , d i n h e i r o limitado — v e j a o pará-
grafo s e g u i n t e ) é determinado p r i m o r d i a l m e n t e c o m base e m estimativas e x t r a m o -
netárias. O p r o b l e m a é sempre: se o metal n o b r e e m questão pode ser p r o d u z i d o
de m o d o rentável e e m que quantidade. E m caso de d e s m o n e t i z a ç ã o total, a s o l u ç ã o
orienta-se unicamente pela r e l a ç ã o entre os custos e m d i n h e i r o , estimados c o m base
e m m e i o de pagamento intercambiário, e a utilidade extramonetária. E m caso de utiliza-
ç ã o c o m o d i n h e i r o d e tráfico u n i v e r s a l e m e i o de pagamento i n t e r c a m b i á r i o , e l a o r i e n -
ta-se, naturalmente, e m p r i m e i r o lugar, pela relação entre os custos e a utilidade mone-
tária. Por f i m , e m caso de utilização c o m o dinheiro de tráfico particular o u c o m o dinhei-
r o administrativo, a s o l u ç ã o orienta-se a longo prazo por aquela " d e m a n d a " expressada
n o m e i o de pagamento intercambiário, que supere e m e x t e n s ã o c o n s i d e r á v e l os custos.
Q u a n d o se trata de utilização c o m o d i n h e i r o de tráfico particular, dificilmente esta
terá, a longo prazo, caráter m o n e t á r i o , u m a v e z que a relação intercambiária do territó-
r i o e m que v a l e apenas este d i n h e i r o de tráfico particular terá ao longo do tempo,
para este, a tendência a b a i x a r , que somente e m caso de isolamento absoluto ( n a C h i n a
ECONOMIA E SOCIEDADE 115

e no J a p ã o , n o passado, e atualmente e m todos os territórios fechados uns p a r a os


outros p o r motivo de g u e r r a ) d e i x a de r e p e r c u t i r sobre os p r e ç o s dentro desse território.
T a m b é m n a utilização e x c l u s i v a c o m o d i n h e i r o administrativo regulado, essa f o r m a
de utilização monetária f i x a m e n t e delimitada somente desempenharia u m papel decisivo
e m caso de taxas de c u n h a g e m e x t r e m a m e n t e elevadas, p a r a acabar depois — pelos
mesmos motivos da c u n h a g e m particular l i v r e — de f o r m a semelhante.

O casolimite teórico da monopolização de toda a produção do metal-moeda e de sua


elaboração — monetária e não-monetária — (o que se realizou temporariamente na China) não
abre, em caso de concorrência entre vários territórios monetários e de emprego de trabalhadores
assalariados, perspectivas tão novas como talvez seja possível acreditar. Pois se, para todos os
pagamentos apocêntricos, se empregasse o dinheiro metálico em questão, toda tentativa de limitar
a cunhagem ou de valorizá-la em nível muito alto para fins fiscais (o que, sem dúvida, propor-
cionaria lucro considerável) levaria às altas taxas de cunhagem verificadas na China. O dinheiro
seria, no inicio, muito "caro" em relação ao metal, sendo por isso a produção mineira (com
trabaiho assalariado) em grande parte pouco rentável. Com a redução crescente desta, ocorreria
então, ao contrário, o efeito de uma "contra-inflação" ("contração"), processo que continuaria
(como na China, onde levou temporariamente à liberação total da cunhagem) até a passagem
para o emprego de sucedâneos de dinheiro e, por fim, para uma economia operando com bens
em espécie (conseqüência verificada no país citado) E m caso de persistência da economia de
troca, a administração lítrica dificilmente poderia proceder, a longo prazo, diversamente ao
caso de existência legal de "cunhagem livre" — só que não se trataria mais de uma atividade
de "interessados", sobre cuja significação falaremos adiante. E m caso de socialização total, ao
contrário, deixaria de existir o problema do "dinheiro" e dificilmente os metais nobres seriam
objetos de produção.

4. A p o s i ç ã o dos metais nobres c o m o metais-moeda e matéria de d i n h e i r o , desen-


v o l v i d a historicamente a p a r t i r de sua f u n ç ã o de a d o r n o e, por isso, de b e m tipicamente
utilizado c o m o presente, está condicionada, prescindindo-se da qualidade puramente
técnica destes metais, p o r sua qualidade d e bens trocados especificamente c o m base
no p e s o . A conservação dessa p o s i ç ã o n ã o é evidente p o r s i , u m a v e z que hoje, tratan-
do-se de pagamentos a c i m a de 100 m a r c o s (do v a l o r de antes da g u e r r a ) , todo m u n d o
costuma pagar e r e c e b e r e m notas (bilhetes de banco, s o b r e t u d o ) mas deve-se a motivos
de peso.
5. T a m b é m a e m i s s ã o de d i n h e i r o e m f o r m a de notas, e m todos os Estados moder-
nos, n ã o apenas legalmente ordenada c o m o t a m b é m monopolizada pelo Estado. E f e -
tua-se o u sob d i r e ç ã o p r ó p r i a deste o u p o r u m a o u várias instituições emissoras privile-
giadas e regulamentadas pelo m e s m o mediante n o r m a s impostas e medidas de controle
(bancos emissores)
6. D e n o m i n a m o s " d i n h e i r o c o r r e n t e regimentar' somente aquele que as citadas
caixas i m p õ e m de fato; outro d i n h e i r o c o r r e n t e , n ã o imposto p o r estas, mas s i m e m
v i r t u d e do direito f o r m a l n o tráfico entre pessoas particulares, é chamado, e m nossa
terminologia, d i n h e i r o corrente acessório. A q u e l e que, segundo a o r d e m legal, s ó pode
ser imposto f o r ç a d a m e n t e n o tráfico entre pessoas particulares, até determinada impor-
tância m á x i m a , d e n o m i n a m o s dinheiro divisionário.

A terminologia se apóia nos conceitos de Knapp; e isso ocorre muito mais ainda no que
segue.

D e n o m i n a m o s "definitivo" o d i n h e i r o c o r r e n t e regimental, e "provisório" todo


d i n h e i r o que e m q u a l q u e r m o m e n t o possui caráter efetivo (quaisquer que sejam as
caixas) p o r ser conversível è m " d e f i n i t i v o " mediante saque o u c â m b i o .
116 MAX WEBER

7. É c l a r o que, a longo p r a z o , o d i n h e i r o corrente regimental é necessariamente


idêntico ao efetivo, e n ã o ao " o f i c i a l " que eventualmente difira dele, tendo s ó v a l i d e z
legal. O d i n h e i r o corrente " e f e t i v o " , p o r sua v e z , é, c o n f o r m e exposto antes (capítulo
I I , § 6 ) , o u 1 ) d i n h e i r o de tráfico l i v r e , o u 2 ) d i n h e i r o n ã o regulado, o u 3 ) d i n h e i r o
administrativo regulado. As caixas estatais n ã o p a g a m p o r d e c i s ã o l i v r e , orientada apenas
p o r alguma o r d e m monetária que lhes pareça ideal, m a s comportam-se c o n f o r m e o
que lhes i m p õ e m : 1 ) os interesses financeiros p r ó p r i o s ; 2 ) os interesses de classes aquisi-
tivas poderosas.
Segundo sua f o r m a cartai, o d i n h e i r o efetivo dentro de u m sistema m o n e t á r i o
pode ser:
A. Dinheiro metálico. Somente o d i n h e i r o m e t á l i c o pode ser d i n h e i r o de tráfico
livre. Mas de m o d o algum tem necessariamente essa f u n ç ã o .
E l e é:
/. dinheiro de tráfico livre, q u a n d o a administração lítrica cunha toda quantidade
d o metal-moeda o u troca-a por peças cartais (moedas), hilodromia. D e p e n d e n d o do
tipo do metal-moeda n o b r e , existe então u m sistema de d i n h e i r o de tráfico l i v r e e
efetivo c o m p a d r ã o o u r o , prata o u cobre. A d e c i s ã o p o r parte da administração lítrica*
de p e r m i t i r o u n ã o a existência efetiva de h i l o d r o m i a n ã o é l i v r e , mas depende de
h a v e r pessoas interessadas n a cunhagem.
a ) A h i l o d r o m i a pode, portanto, existir " o f i c i a l m e n t e " s e m s e r " e f e t i v a " . Segundo
o que dissemos, n ã o é efetiva, apesar de existir oficialmente,
aa) quando, existindo h i l o d r o m i a legal tarifada p a r a vários metais (plurimeta-
l i s m o ) u m ( o u alguns) destes está (estão) tarifado(s) e m nível demasiadamente baixo
e m r e l a ç ã o ao p r e ç o atual de m e r c a d o do metal bruto. Pois, neste caso, os particulares
o f e r e c e m p a r a a cunhagem somente o metal tarifado e m nível demasiadamente elevado,
e só este será e m p r e g a d o nos pagamentos. Q u a n d o as caixas públicas se r e t i r a m desse
processo, "estanca"-se nelas o d i n h e i r o c o m tarifação muito elevada até o momento
e m que t a m b é m a elas n ã o restam outros meios de pagamento. E m caso de bloqueio
suficiente dos p r e ç o s , as moedas de metal tarifado e m nível muito b a i x o , p o d e m e n t ã o
ser fundidas, o u vendidas a peso, c o m o m e r c a d o r i a s , e m troca de moedas de metal
tarifado e m nível muito elevado;
bb) q u a n d o os pagadores — particularmente as caixas estatais — , e m situação
de necessidade (veja aa)—fazem uso c o n t í n u o e extenso de seu direito — f o r m a l m e n t e
garantido o u usurpado — de i m p o r outro meio de pagamento, m e t á l i c o o u e m f o r m a
de notas, o qual n ã o apenas tem caráter p r o v i s ó r i o c o m o t a m b é m : 1 ) é d i n h e i r o acessório
o u 2 ) e r a p r o v i s ó r i o , mas deixou d e ser conversível e m c o n s e q ü ê n c i a da insolvência
da instituição da c o n v e r s ã o .
A h i l o d r o m i a cessa s e m p r e n o caso aa e nos casos bb 1 e sobretudo 2 quando
se t e m uma forte e contínua i m p o s i ç ã o das espécies de d i n h e i r o a c e s s ó r i o que n ã o
s ã o m a i s efetivamente provisórias.
No caso aa, aparece exclusivamente u m a h i lo d ro mi a d o metal supertarifado, que
é e n t ã o o ú n i c o d i n h e i r o d e tráfico l i v r e , isto é, que representa u m n o v o sistema m e t á l i c o
(de d i n h e i r o de t r á f i c o ) nos casos bb, o d i n h e i r o m e t á l i c o ' ' acessório'' o u eventualmente
as notas que d e i x a r a m de ser provisórias d e m o d o efetivo, tornam-se o d i n h e i r o p r ó p r i o
d o sistema ( n o caso 1 , sistema d e d i n h e i r o limitado; n o caso 2, sistema de papel-moeda).
b) A h i l o d r o m i a , p o r outra parte, pode ser " e f e t i v a " sem possuir v a l i d a d e " o f i -
c i a l " , p o r disposição jurídica.

Exemplo; A concorrência entre os senhores cunhadores da Idade Média, condicionada


puramente por motivos fiscais — interesse por cunhar, se possível, exclusivamente o metal-
ECONOMIA E SOCIEDADE 117

moeda, apesar de não existir ainda hilodromia formal. Não obstante, o efeito era pelo menos
semelhante.

C o m referência ao que acabamos de dizer, d e n o m i n a m o s direito m o n e t á r i o mono-


metálico a situação e m que u m m e t a l ( o u r o , prata o u c o b r e , dependendo d o caso)
é legalmente h i l o d r ô m i c o , e direito m o n e t á r i o p l u r i m e t á l i c o (bi o u trimetálico)a situação
e m que vários metais s ã o legalmente h i l o d r ô m i c o s , existindo entre eles relação mone-
tária f i x a ; direito m o n e t á r i o p a r a l e l o é a situação e m que vários metais s ã o legalmente
h i l o d r ô m i c o s sem que exista entre eles relação m o n e t á r i a f i x a . S ó falamos de " m e t a l -
m o e d a " e de "sistema m o n e t á r i o m e t á l i c o " ( o u r o , prata, c o b r e , p a r a l e l o , dependendo
do c a s o ) c o m referência à q u e l e metal que, n o caso e m q u e s t ã o , é efetivamente hilodrô-
mico, isto é, " d i n h e i r o de t r á f i c o " efetivo (sistema m o n e t á r i o de d i n h e i r o de t r á f i c o )

"Legalmente" existiu bimetaÜsmo em todos os Estados da união monetária latina até a


suspensão da cunhagem livre da prata, após a reforma monetária alemã. E m cada caso concreto,
metal-moeda efetivo era em regra — pois a estabilização da relação tinha um efeito tão forte
que muitas vezes a mudança passava despercebida, existindo efetivamente o "bimetalismo" —,
somente o metal tarifado em nível demasiadamente elevado, segundo a situação de mercado
então existente, isto é, o único hilodrômico. O dinheiro feito de outros metais se tornava "dinheiro
acessório". (No que se refere aos fatos, concordamos inteiramente com KNAPP.) Como sistema
monetário efetivo, o "bimetaÜsmo" é, portanto — pelo menos em caso de concorrência entre
várias instituições cunhadoras autocéfaías e autônomas —, sempre uma situação apenas transitória
e, de resto, em condições normais, puramente "legal", porém não efetiva.
O fato de o metal avaliado em nível demasiadamente baixo não ser levado à instituição
cunhadora não é, naturalmente, uma situação "regimental" (causada por disposições adminis-
trativas), mas conseqüência da situação de mercado (suponhamos, alterada) e da persistência
das relações fixamente determinadas. É certo que a administração monetária poderia, com prejuí-
zo, cunhar o dinheiro como dinheiro administrativo, mas não poderia mantê-lo em circulação,
uma vez que a utilização extramonetária seria mais rentável.

§ 33- I I . D e n o m i n a m o s dinheiro limitado todo d i n h e i r o m e t á l i c o n ã o - h i l o d r ô m i c o


quando corrente.
O d i n h e i r o limitado c i r c u l a :
a ) o u c o m o d i n h e i r o " a c e s s ó r i o " , isto é , tarifado e m r e l a ç ã o a outro d i n h e i r o
corrente do m e s m o território m o n e t á r i o , seja e m r e l a ç ã o a:
ao) outro d i n h e i r o limitado, o u
00) u m papel-moeda, o u
y y ) u m d i n h e i r o de tráfico;
0) o u c o m o d i n h e i r o limitado " o r i e n t a d o de m o d o i n t e r c a m b i á r i o " . Isto o c o r r e
quando, apesar de ele c i r c u l a r c o m o d i n h e i r o corrente exclusivo, dentro de seu território
m o n e t á r i o , f o r a m tomadas medidas p a r a m a n t e r à disposição, p a r a pagamentos e m
outros territórios m o n e t á r i o s , meios d e pagamento intercambiários ( e m f o r m a de barras
o u d e moedas — fundo de reserva intercambiário) sistema monetário de dinheiro
limitado intercambiário.
a) D e n o m i n a m o s p a r t i c u l a r o d i n h e i r o limitado quando, sendo o ú n i c o corrente,
não está orientado de m o d o intercambiário.

O dinheiro limitado pode ser tarifado, em relação ao meio de pagamento intercambiário,


ou ad hoc — em cada caso particular —, na compra de meios de pagamento intercambiários
ou "divisas", ou — para os casos admissíveis — de modo geral e regimental.
(Com respeito a a e 0) dinheiro limitado tarifado de modo cambiário era o táler e é
a moeda de prata de cinco francos, ambos com caráter de dinheiro "acessório". Moedas "orien-
118 MAX WEBER

tadas de modo intercambiário" (pelo ouro) são os florins holandeses de prata (depois de serem
"particulares", por pouco tempo, após a proibição da cunhagem) também têm hoje a mesma
qualidade as rupias. Os "yuans" (dólares) chineses permaneceriam "particulares", segundo a
ordenação monetária de 24 de maio de 1910, enquanto realmente não existisse a hilodromia
que se deixou de mencionar no estatuto (uma orientação intercambiária tal como a propôs a
comissão americana, foi rejeitada) (Por algum tempo tiveram essa qualidade os florins holan-
deses; veja acima.)

D o ponto de vista da economia p r i v a d a , a h i l o d r o m i a e m caso d e d i n h e i r o limitado


seria muito rentável p a r a os possuidores de metais nobres. Apesar disso (e precisamente
por isso decretou-se a limitação p a r a evitar que, ao introduzir-se a h i l o d r o m i a d o metal
que até e n t ã o s e r v i r a de matéria p a r a o d i n h e i r o limitado, deixasse d e existir, c o m o
n ã o rentável, a h i l o d r o m i a d o outro m e t a l , tarifado agora e m nível demasiadamente
b a i x o e m r e l a ç ã o ao p r i m e i r o , empregando-se p a r a fins e x t r a m o n e t á r i o s m a i s rentáveis
o estoque m o n e t á r i o d o d i n h e i r o fabricado desse m e t a l , o q u a l passou a ser d i n h e i r o
limitado obstruído (veja a d i a n t e ) E m caso d e a d m i n i s t r a ç ã o lítrica r a c i o n a l , o motivo
de se pretender evitar isso é a circunstância de esse outro metal ser m e i o de pagamento
intercambiário.
6 ) É d i n h e i r o de tráfico o b s t r u í d o o d i n h e i r o limitado (portanto, c o r r e n t e ) quan-
do, contrariamente ao caso a , a cunhagem l i v r e existe legalmente, mas é pouco rentável
d o ponto de vista da e c o n o m i a p r i v a d a e, p o r isso, n ã o se realiza de fato. A falta
de rentabilidade deve-se, nesse caso, considerando-se o p r e ç o de m e r c a d o , a u m a rela-
ç ã o m o n e t á r i a demasiadamente d e s f a v o r á v e l , p a r a o m e t a l , entre este e
a) o d i n h e i r o de tráfico o u
0) o papel-moeda.
O d i n h e i r o e m q u e s t ã o f o i alguma v e z d i n h e i r o d e tráfico, mas determinadas
circunstâncias t o r n a r a m irrealizável p a r a a e c o n o m i a p r i v a d a a possibilidade de hilodro-
m i a efetiva. Essas circunstâncias s ã o , n o caso a, existindo p l u r i m e t a l i s m o , variações
na r e l a ç ã o d e p r e ç o s n o m e r c a d o ; n o caso 0, existindo monometalismo o u p l u r i m e -
talismo, catástrofes financeiras, que impossibilitaram às caixas estatais o pagamento
e m d i n h e i r o m e t á l i c o e as o b r i g a r a m a i m p o r d i n h e i r o e m f o r m a de notas e a suspender
a c o n v e r s ã o do m e s m o . O d i n h e i r o d e que falamos n ã o se emprega mais n o tráfico
(pelo menos e m caso de racionalidade).
c ) A l é m do d i n h e i r o limitado corrente (chamado aqui simplesmente " d i n h e i r o
l i m i t a d o " ) pode h a v e r d i n h e i r o limitado divisionário, de m e t a l , isto é, de aceitação
f o r ç a d a c o m o m e i o de pagamento e m determinada quantidade limitada. E m r e g r a ,
mas n ã o necessariamente, esse d i n h e i r o é c u n h a d o propositalmente " a b a i x o de seu
v a l o r n o m i n a l " , sendo desvalorizado e m r e l a ç ã o às moedas do sistema (para p r o t e g ê - l o
contra o perigo d e ser f u n d i d o ) e, nesse caso, na m a i o r i a das vezes ( n e m s e m p r e )
é d i n h e i r o p r o v i s ó r i o , isto é , conversível e m determinadas caixas.

O caso faz pane da experiência cotidiana e não oferece interesse especial.

T o d o d i n h e i r o divisionário e muitos tipos de d i n h e i r o limitado m e t á l i c o estão


muito p r ó x i m o s , n o que se r e f e r e a sua p o s i ç ã o dentro d o sistema m o n e t á r i o , ao d i n h e i r o
e m f o r m a de notas (hoje, p a p e l - m o e d a ) e s ó se distinguem deste pela utilização m a i s
a m p l a d e sua m a t é r i a , circunstância que t e m pelo m e n o s alguma importância. Muito
p r ó x i m o aos meios d e c i r c u l a ç ã o está o d i n h e i r o limitado m e t í l i c o , q u a n d o é " d i n h e i r o
p r o v i s ó r i o " , isto é , q u a n d o f o r a m tomadas disposições suficientes p a r a garantir sua
c o n v e r s ã o e m d i n h e i r o de tráfico.
ECONOMIA E SOCIEDADE 119

§ 34. B . Dinheiro em forma de notas é, naturalmente, sempre d i n h e i r o adminis-


trativo. Para u m a teoria s o c i o l ó g i c a , o " d i n h e i r o " é s e m p r e o título que apresenta
determinadas f o r m a s cartais (inclusive a i m p r e s s ã o , c o m determinado sentido f o r m a l ) ,
e nunca a " e x i g ê n c i a " eventual — d e m o d o a l g u m , necessária — que este representa
(e que falta p o r completo no caso d o papel-moeda p u r o , i n c o n v e r s í v e l )
D o ponto de vista j u r í d i c o f o r m a l , p o d e ser u m título de dívida ao portador:
a ) de u m a pessoa particular (de u m o u r i v e s , p o r e x e m p l o , n a Inglaterra d o s é c u l o
XVII)
b) de u m banco p r i v i l e g i a d o (bilhetes de b a n c o )
c ) de u m a associação política (bilhetes do Estado).
Q u a n d o é " e f e t i v a m e n t e " c o n v e r s í v e l , sendo, portanto, somente m e i o de c i r c u -
lação e, p o r conseguinte, " d i n h e i r o p r o v i s ó r i o " , esse d i n h e i r o p o d e estar:
1. plenamente coberto — certificado — o u
2. coberto apenas de acordo c o m as necessidades da c a i x a — m e i o d e circulação.
A cobertura pode estar regulada:
a ) por m e i o de reservas d e metal medidas p e l o peso (sistema m o n e t á r i o b a n c á r i o )
0) p o r m e i o de d i n h e i r o m e t á l i c o .
O r i g i n a r i a m e n t e , o d i n h e i r o e m f o r m a de notas f o i emitido, e m r e g r a , c o m o
d i n h e i r o provisório ( c o n v e r s í v e l ) nos tempos m o d e r n o s , tipicamente, c o m o m e i o de
circulação, e quase s e m p r e c o m o bilhete de banco, tendo, p o r isso, na m a i o r i a dos
casos, o m e s m o n o m e de u m a unidade já existente de d i n h e i r o m e t á l i c o .

1. É claro que a primeira parte desta última frase não se refere aos casos em que uma
espécie de dinheiro em forma de notas foi substituída por outra nova. Pois, nestes, não se trata
de emissão originária.
2. Com respeito à frase inicial do parágrafo B, sem dúvida pode haver meios de troca
e de pagamento que não sejam cartais; portanto, nem moedas nem títulos nem outros objetos
materiais. Mas a estes não chamamos "dinheiro", mas — dependendo do caso — "unidade
de cálculo" ou algo correspondente a sua qualidade peculiar. Pois a qualidade característica
do "dinheiro" é que este está vinculado a quantidades de artefatos cartais — qualidade que
de modo algum é "acessória" e apenas "externa".

No caso da suspensão efetiva da c o n v e r s ã o de d i n h e i r o até e n t ã o p r o v i s ó r i o ,


cabe distinguir se esta, d o ponto de vista dos interessados, t e m o v a l o r de:
a ) medida transitória o u
b ) m e d i d a definitiva, tomada a longo prazo.
No p r i m e i r o caso, costuma o c o r r e r u m " d e s á g i o " dos meios de pagamento e m
f o r m a de notas, e m r e l a ç ã o aos metálicos nominalmente iguais, u m a v e z q u e , p a r a
todos os pagamentos intercambiários, procura-se o d i n h e i r o m e t á l i c o o u as barras de
metal; m a s esta n ã o é u m a c o n s e q ü ê n c i a absolutamente necessária, e o d e s á g i o costuma
ser m o d e r a d o (mas t a m b é m n ã o necessariamente, já que aquela demanda pode ser
muito a g u d a )
No segundo caso, desenvolve-se, depois de a l g u m tempo, u m sistema de papel-
moeda definitivo ( " a u t ó g e n o " ) N ã o se pode f a l a r d e " d e s á g i o " , mas s i m (historica-
m e n t e ! ) de " d e s v a l o r i z a ç ã o " .

Pois é até possível, nesse caso, que o metal-moeda daquele antigo dinheiro de tráfico,
agora obstruído, ao qual se referiam originariamente as notas, sofra uma fone baixa de preço
no mercado — quaisquer que sejam as causas — em relação aos meios de pagamento intercam-
biários, enquanto que a baixa do papel-moeda pode ser insignificante. A conseqüência é necessa-
riamente (e de fato foi, na Áustria e na Rússia) que, afinal, a antiga unidade de peso nominal
120 MAX WEBER

(prata) seja comprada por uma quantia nominalmente "menor" das notas correspondentes, as
quais entrementes se tornaram "autógenas". Coisa perfeitamente compreensível, pois, ainda
que a fase inicial do sistema puro de papel-moeda significasse, provavelmente sem exceção,
uma valoração mais baixa da unidade nominal de papel em relação à de prata de igual nome
— já que esse sistema sempre é conseqüência de insolvência de fato —, o desenvolvimento
ulterior, por exemplo, na Áustria e na Rússia, dependia: 1) dos chamados "balanços de paga-
mento", intercambiariamente regulados e que determinam a procura, por parte do "exterior",
de meios de pagamento internos de um país; 2) da extensão das emissões de papel-moeda;
3) do sucesso da instituição emissora em conseguir meios de pagamento intercambiária (da chama-
da "política de divisas") Esses três fatores puderam e podem coordenar-se — e, no caso citado,
de fato o fizeram —, de forma que a cotação do papel-moeda em questão, no "tráfico do mercado
mundial", isto é, em sua relação ao meio de pagamento intercambiário (hoje: ouro) desenvol-
veu-se no sentido de uma estabilização crescente e de tendências temporárias à alta, enquanto
que o antigo metal-moeda, em relação ao ouro, foi cotado cada vez mais baixo, por causa:
a ) do aumento e barateamento da produção de prata; b) da desmonetização crescente da prata.
No caso de um sistema de papel-moeda autêntico ("autógeno") ninguém conta mais com a "resti-
tuição" efetiva da antiga relação de conversibilidade em metal.

§ 35. S e m d ú v i d a , a o r d e m jurídica e administração de u m Estado, dentro do


â m b i t o de seu poder, p o d e m conseguir a validade formal legal e t a m b é m a f o r m a l
regimental de determinada espécie de d i n h e i r o c o m o p a d r ã o m o n e t á r i o , desde que
o próprio Estado mantenha sua solvência nessa e s p é c i e de d i n h e i r o . Deixa de mantê-la
q u a n d o permite que se transforme e m d i n h e i r o d e tráfico l i v r e o u papel-moeda autó-
geno ( e m caso de d i n h e i r o e m f o r m a de notas) u m a e s p é c i e de d i n h e i r o até então
" a c e s s ó r i a " o u " p r o v i s ó r i a " , p o r q u e e m tal caso essas espécies de d i n h e i r o estancam-se
e m suas caixas até s e r e m as únicas de que d i s p õ e , obrigando-o a i m p ô - l a s e m seus
pagamentos.

Esse processo foi exposto por Knapp acertadamente como esquema normal de mudança
"obstrucional" do sistema monetário.

Mas c o m isso nada dizemos, naturalmente, sobre a validade material desse dinhei-
r o , isto é, sobre a relação de troca e m que ele é aceito relativamente a outros bens
em espécie, n e m tampouco sobre a q u e s t ã o de se e e m que medida a administração
monetária pode ganhar influência a esse respeito. O fato de o poder político, p o r meio
de racionamento do consumo, controle da p r o d u ç ã o e o r d e n a ç ã o de p r e ç o s m á x i m o s
(e t a m b é m , naturalmente, m í n i m o s ) , poder e x e r c e r influência considerável sobre essa
r e l a ç ã o de troca, na medida em que se trata de bens já existentes ou produzidos dentro
de seu território (e também, de serviços ali prestados), é coisa c o m p r o v a d a pela expe-
riência, do m e s m o m o d o que o fato de, m e s m o a l i , essa influência ter seus limites
altamente sensíveis (trataremos disto mais adiante). E m todo caso, é evidente que tais
medidas n ã o s ã o tomadas pela administração monetária.
E , de fato, as modernas administrações m o n e t á r i a s racionais estabelecem p a r a
si u m objetivo completamente diferente: o de e x e r c e r influência sobre a a v a l i a ç ã o mate-
r i a l da moeda n a c i o n a l e m relação à estrangeira, c o m a t e n d ê n c i a , e m r e g r a , de "estabili-
z á - l a " , isto é, de conservá-la, se possível, e m nível constante ( e m certas circunstâncias:
n o nível mais alto p o s s í v e l ) Decisivos nesse processo, a l é m d e interesses de prestígio
e de p o d e r político, s ã o os interesses financeiros ( c o m vista a futuros empréstimos
n o e x t e r i o r ) e de a q u i s i ç ã o muito poderosos, p o r e x e m p l o , da parte dos importadores
o u das indústrias nacionais que e l a b o r a m matérias-primas estrangeiras, e, p o r f i m ,
os de c o n s u m o das classes e m que há p r o c u r a de produtos estrangeiros. S e m d ú v i d a ,
ECONOMIA E SOCIEDADE 121

a "política lítrica" é, h o j e , c o n f o r m e m o s t r a m os fatos, em primeiro lugar, política


intercambiária.

Também isto e o que segue estão completamente de acordo com a "teoria estatal" de
Knapp. O livro, tanto pela forma quanto pelo conteúdo, é uma das grandes obras-primas da
literatura alemã e um modelo da agudeza do pensamento científico. O olhar dos críticos, no
entanto, fixou-se naqueles problemas (relativamente poucos, porém não sem importância) que
ele deixou de lado.

E n q u a n t o que a I n g l a t e r r a ainda aceitou p a r a s i , n o passado, o p a d r ã o - o u r o quase


contra a própria vontade, p o r q u e a prata desejada c o m o metal-moeda estava tarifada,
na r e l a ç ã o m o n e t á r i a , e m nível demasiadamente b a i x o , p a r a todos os demais Estados
organizados e regulados de m o d o m o d e r n o f o i precisamente esse o motivo d e passar
para o p a d r ã o - o u r o p u r o o u p a d r ã o - o u r o c o m d i n h e i r o de prata limitado e a c e s s ó r i o ,
o u p a r a u m sistema de d i n h e i r o de prata limitado o u sistema regulado de notas c o m
( e m ambos os casos) u m a política lítrica dirigida à o b t e n ç ã o de o u r o p a r a pagamentos
no e x t e r i o r , a f i m de c o n s e r v a r u m a r e l a ç ã o intercambiária a mais estável possível
para c o m a m o e d a - o u r o inglesa. O s casos e m que se passou p a r a u m sistema p u r o
de papel-moeda só o c o r r e r a m c o m o c o n s e q ü ê n c i a de catástrofes políticas, c o m o u m a
espécie de r e m é d i o contra a insolvência p r ó p r i a n a m o e d a até e n t ã o vigente — medida
atualmente muito f r e q ü e n t e .
Parece certo que, p a r a r e a l i z a r aquele objetivo i n t e r c a m b i á r i o ( c â m b i o estável,
atualmente, e m r e l a ç ã o ao o u r o ) a h i l o d r o m i a própria e efetiva de o u r o ( c r i s o d r o m i a )
n ã o é o ú n i c o m e i o possível. T a m b é m a paridade m o n e t á r i a de espécies de moedas
cartais crisodrômicas pode ser abalada, de fato, de m o d o muito intenso — e m b o r a
a probabilidade de conseguir meios de pagamento intercambiários p a r a o b r i g a ç õ e s
no tráfico c o m o e x t e r i o r , eventualmente p o r m e i o de envios, f u n d i ç ã o e n o v a c u n h a g e m
de d i n h e i r o , esteja bastante facilitada e s ó possa ser fortemente perturbada, por tempo
limitado, p o r obstruções naturais do tráfico o u pela p r o i b i ç ã o d e e x p o r t a r o u r o . Por
outro lado, c o n f o r m e ensina a e x p e r i ê n c i a , u m território c o m sistema-papel pode tam-
b é m , e m c o n d i ç õ e s normais de paz, alcançar u m a " c o t a ç ã o de d i v i s a s " razoavelmente
estável, desde que esteja c o m c o n d i ç õ e s f a v o r á v e i s de p r o d u ç ã o , c o m a situação jurídica
regulamentada e c o m a política lítrica d i r i g i d a , de f o r m a planejada, à o b t e n ç ã o de
o u r o p a r a pagamentos n o e x t e r i o r — a i n d a que, ceterisparibus, c o m sacrifícios sensivel-
mente superiores p o r parte das f i n a n ç a s , o u seja, daqueles que p r e c i s a m d e o u r o .
(A situação seria a mesma, naturalmente, se o meio de pagamento intercambiário fosse
a prata, existindo, portanto, " a r g i r o d r o m i a " nos principais Estados comerciais do m u n d o . )

§ 36. O s meios típicos m a i s elementares da política lítrica intercambiária (cujas


medidas particulares n ã o p o d e m ser examinadas a q u i ) são:
I . e m territórios c o m h i l o d r o m i a de o u r o :
1. cobertura dos meios de c i r c u l a ç ã o n ã o cobertos e m d i n h e i r o por m e i o , p r i n c i -
palmente, d e efeitos comerciais, isto é, d e títulos de m e r c a d o r i a s vendidas pelas quais
r e s p o n d e m pessoas " s e g u r a s " (empresários e x p e r i e n t e s ) limitando-se os n e g ó c i o s de
risco p r ó p r i o dos bancos de e m i s s ã o a essas transações, a n e g ó c i o s de penhor d e m e r c a -
dorias, ac e it ação de depósitos e, e m c o n e x ã o c o m esta, n e g ó c i o s de g i r o e, p o r f i m ,
à administração das caixas d o Estado;
2. "política de desconto" dos bancos de e m i s s ã o , isto é, desconto elevado dos
juros p a r a letras d e c â m b i o compradas q u a n d o h á a probabilidade de os pagamentos
ao exterior p r o d u z i r e m u m a d e m a n d a d e d i n h e i r o d e o u r o que possa a m e a ç a r a reserva
122 MAX WEBER

nacional de o u r o , particularmente a do b a n c o d e e m i s s ã o — p a r a estimular desse m o d o


os possuidores de d i n h e i r o n o e x t e r i o r a aproveitar essa oportunidade de j u r o s e d i f i -
cultar o aproveitamento dentro do país. ,
I I . E m territórios que possuem u m sistema d e d i n h e i r o limitado, m a s n ã o c o m
p a d r ã o - o u r o , o u u m sistema de papel-moeda:
1. política de desconto c o m o a d o t ó p i c o I , 2, a f i m de i m p e d i r u m a p r o c u r a
de crédito demasiadamente elevada; a l é m disso:
2. política de prêmio e m o u r o — m e i o f r e q ü e n t e t a m b é m e m territórios c o m
p a d r ã o - o u r o e d i n h e i r o limitado de prata c o m caráter acessório;
3. política de compra planejada de o u r o e influência planejada das c o t a ç õ e s de
divisas p o r m e i o d e c o m p r a e v e n d a de letras de c â m b i o estrangeiras.
Pode o c o r r e r que essa política orientada de início de m o d o p u r a m e n t e " l í t r i c o "
se t r a n s f o r m e n u m a regulação m a t e r i a l da economia.
E m v i r t u d e de sua p o s i ç ã o de p o d e r entre os que c o n c e d e m crédito e, e m muitos
casos, d e p e n d e m de seu c r é d i t o , os bancos de e m i s s ã o podem c o n t r i b u i r p a r a a d e c i s ã o
dos bancos de regular de m o d o h o m o g ê n e o o " m e r c a d o m o n e t á r i o " — isto é , as condi-
ç õ e s dos créditos a curto p r a z o (para pagamentos e e m p r e s a s ) — e de prosseguir c o m
u m a r e g u l a ç ã o planejada do crédito aquisitivo, i n f l u i n d o assim sobre a d i r e ç ã o tomada
pela p r o d u ç ã o de bens. E s s e caso representa o g r a u m á x i m o d e a p r o x i m a ç ã o da "econo-
m i a p l a n i f i c a d a " de parte de u m a o r d e m e c o n ô m i c a material de caráter capitalista e
f o r m a l m e n t e voluntarista vigente dentro d o território da associação política e m questão.
T a i s medidas, típicas de antes da [ P r i m e i r a ] G u e r r a [Mundial], t i n h a m todas p o r
base u m a política m o n e t á r i a que partia primordialmente da idéia d e alcançar "solidez",
isto é, estabilização da r e l a ç ã o intercambiária, o u , e m caso de v a r i a ç ã o desejada (por
países c o m sistema de d i n h e i r o limitado o u p a p e l - m o e d a ) preferencialmente de u m a
e l e v a ç ã o muito lenta dessa r e l a ç ã o , orientando-se, portanto, pelo d i n h e i r o h i l o d r ô m i c o
do m a i o r território c o m e r c i a l . No entanto, dirigiram-se t a m b é m às instituições de emis-
s ã o interessados poderosos, q u e p e r s e g u i r a m propósitos inteiramente opostos. Deseja-
v a m u m a política lítrica que:
1. baixasse a c o t a ç ã o intercambiária d o d i n h e i r o p r ó p r i o , a f i m de c r i a r oportu-
nidades de e x p o r t a ç ã o p a r a os e m p r e s á r i o s , e que
2. p o r m e i o do aumento das emissões de d i n h e i r o — portanto, a r g i r o d r o m i a
ao lado da c r i s o d r o m i a ( o que significaria, na realidade, aquela em vez desta) — e,
eventualmene, emissões planejadas de papel-moeda, baixasse a r e l a ç ã o d e troca do
d i n h e i r o e m f a v o r de produtos nacionais, o u , o q u e é o m e s m o , elevasse o preço
( n o m i n a l ) e m d i n h e i r o desses bens. O objetivo e r a a c r i a ç ã o de oportunidades de l u c r o
p a r a a p r o d u ç ã o industrial daqueles bens cuja e l e v a ç ã o dos p r e ç o s , calculada e m unida-
des monetárias nominais d o p r ó p r i o país, e r a considerada a c o n s e q ü ê n c i a p r o v a v e l -
mente m a i s imediata do aumento quantitativo d o d i n h e i r o n a c i o n a l e, p o r conseguinte,
da b a i x a d e seu p r e ç o na r e l a ç ã o intercambiária. O processo pretendido é conhecido
como "inflação".
Por u m lado,
1. ainda que n ã o seja d e todo incontestado ( n o que se r e f e r e ao a l c a n c e ) é,
p o r é m , muito p r o v á v e l que, existindo h i l o d r o m i a ( d e q u a l q u e r e s p é c i e ) e o c o r r e n d o ,
e m g r a u considerável, barateamento e e x p a n s ã o d a p r o d u ç ã o de metais nobres ( o u
adquirindo-se estes d e m o d o muito barato, c o m o e s p ó l i o ) p r o d u z i u - s e u m a tendência
perceptível à e l e v a ç ã o dos p r e ç o s d e muitos produtos — talvez, e m g r a u d i v e r s o , de
todos — nos territórios c o m sistema m o n e t á r i o d e m e t a l n o b r e . Por outro lado, é u m
fato indiscutível
2. que e m territórios c o m papel-moeda ( a u t ó g e n o ) as administrações lítricas,
ECONOMIA E SOCIEDADE 123

e m tempos de dificuldades financeiras graves (especialmente na g u e r r a ) o r i e n t a m , e m


regra, suas emissões de d i n h e i r o unicamente pelas necessidades financeiras da g u e r r a .
D o m e s m o m o d o é u m fato, no entanto, que, e m semelhantes tempos, os países - c o m
h i l o d r o m i a o u d i n h e i r o limitado m e t á l i c o n ã o apenas s u s p e n d e r a m a c o n v e r s ã o de seus
meios de c i r c u l a ç ã o e m f o r m a de notas — o que n ã o l e v o u necessariamente a u m a
alteração d u r a d o u r a do sistema m o n e t á r i o — mas, t a m b é m , mediante e m i s s õ e s de pa-
pel-moeda orientadas p u r a m e n t e p o r interesses financeiros (de g u e r r a ) , p a s s a r a m p a r a
u m sistema de papel definitivo e p u r o , podendo-se e m p r e g a r o d i n h e i r o m e t á l i c o assim
transformado e m acessório somente de m o d o e x t r a m o n e t á r i o — c o n s e q ü ê n c i a de se
ignorar seu á g i o na tarifação, e m r e l a ç ã o à unidade n o m i n a l de p a p e l — e desaparecendo
este, portanto, c o m o moeda. Por f i m , é u m fato indiscutível que, nos casos e m que
o c o r r e u essa m u d a n ç a para u m sistema m o n e t á r i o de papel puro e para a e m i s s ã o
ilimitada de papel-moeda, realmente se manifestou a situação de inflação, c o m todas
as c o n s e q ü ê n c i a s e e m p r o p o r ç ã o colossal.
A c o m p a r a ç ã o de todos esses processos ( 1 e 2 ) mostra o seguinte:
A. E n q u a n t o ainda existe d i n h e i r o m e t á l i c o de tráfico l i v r e , a possibilidade da
" i n f l a ç ã o " está bastante limitada:
1. " m e c a n i c a m e n t e " , pela circunstância de que a quantidade do metal n o b r e
e m questão d i s p o n í v e l , n u m m o m e n t o dado, p a r a fins m o n e t á r i o s , ainda que elástica,
está e m última instância f i x a m e n t e limitada;
2. economicamente ( e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s ) pela circunstância de que a f a b r i -
c a ç ã o de d i n h e i r o se deve unicamente à iniciativa de interessados privados, orientan-
do-se, portanto, a solicitação de c u n h a g e m pelas necessidades de pagamento da econo-
m i a orientada pelo mercado.
3- Nessas c o n d i ç õ e s , a inflação somente é possível pela t r a n s f o r m a ç ã o d o dinheiro
metálico limitado até e n t ã o vigente (hoje, p o r e x e m p l o , da prata nos países c o m p a d r ã o -
o u r o ) e m d i n h e i r o de tráfico l i v r e ; m a s , nesta f o r m a e c o m forte barateamento e expan-
são da p r o d u ç ã o d o metal do d i n h e i r o limitado, é muito intensa.
4. U m a inflação c o m meios de circulação somente é c o n c e b í v e l c o m o u m cresci-
mento a longo p r a z o e muito lento da c i r c u l a ç ã o , condicionado pela p r o r r o g a ç ã o de
créditos e, ainda q u e elástico, e m última instância f i x a m e n t e limitado pela c o n s i d e r a ç ã o
da solvência do b a n c o de emissão. Nessas c o n d i ç õ e s , a possibilidade de inflação aguda
só existe q u a n d o há perigo de insolvência p o r parte do banco, n o r m a l m e n t e , portanto,
e m caso de u m sistema m o n e t á r i o de papel-moeda condicionado p o r situação de guerra.

Casos especiais, como a "inflação" com ouro, na Suécia, condicionada por exportações
de guerra, sáo tão singulares que aqui podemos deixá-los de lado.

B . Nos países o n d e já existe u m sistema a u t ó g e n o de papel-moeda, n e m sempre


é notoriamente m a i o r a probabilidade da inflação — pois, e m tempos de g u e r r a , todos
os países passam logo p a r a o sistema-papel — , mas s i m , n a m a i o r i a dos casos, o
desdobramento das conseqüências da inflação. A pressão das dificuldades financeiras
e das e x i g ê n c i a s salariais aumentadas como resultado dos p r e ç o s inflacionários, a l é m
de outros custos, f a v o r e c e sensivelmente a tendência de a administração financeira
continuar a inflação, m e s m o sem o i m p é r i o absoluto da necessidade e apesar da possibi-
lidade de escapar dessa situação mediante grandes sacrifícios. A diferença — c o n f o r m e
mostra a situação [durante e a p ó s a P r i m e i r a G u e r r a Mundial], p r i m e i r a m e n t e nos países
da Entente, depois n a A l e m a n h a e depois na Áustria e na Rússia — é certamente apenas
quantitativa, mas m e s m o assim perceptível.
A política lítrica, portanto, pode ser t a m b é m inflacionista (seja plurimetalística,
124 MAX WEBER

seja " p a p e l i s t a " ) , especialmente e m caso de d i n h e i r o m é t a l i c o limitado o u de sistema


de papel-moeda. D e fato o f o i , por algum tempo, nos Estados Unidos da A m é r i c a —
país pouco interessado na r e l a ç ã o intercambiaria — e m tempos absolutamente normais
e sem qualquer m o t i v o f i n a n c e i r o . Sob a p r e s s ã o da necessidade, conservou esse caráter,
depois da g u e r r a , e m vários países obrigados a suportar a inflação dos meios de paga-
mento da g u e r r a . N ã o cabe aqui d e s e n v o l v e r a teoria da inflação. Esta significa s e m p r e ,
e m p r i m e i r o lugar, u m a f o r m a especial de c r i a ç ã o de capacidade aquisitiva entre deter-
minados interessados. Limitamo-nos a o b s e r v a r que u m a d i r e ç ã o racional e material-
mente orientada pelos princípios da e c o n o m i a planificada da política lítrica, que aparen-
temente seria muito fácil de d e s e n v o l v e r e m caso de d i n h e i r o administrativo, sobretudo
de papel-moeda, tem tendência muito forte de p ô r - s e a serviço de interesses irracionais
(do ponto de vista de u m c â m b i o estável).
Pois a racionalidade formal, orientada pelos interesses da economia de troca,
da política lítrica e, c o m isso, do sistema m o n e t á r i o , s ó poderia significar — de acordo
c o m o sentido que até agora c o n s e q ü e n t e m e n t e lhe atribuímos — a e l i m i n a ç ã o daqueles
interesses que o u 1 ) n ã o estejam orientados pelo mercado— c o m o os financeiros — ,
o u 2 ) n ã o p r e t e n d a m a c o n s e r v a ç ã o de relações intercambiárias estáveis, c o m o funda-
mento ó t i m o do cálculo r a c i o n a l , mas, ao c o n t r á r i o , estejam interessados e m criar,
sem necessidade f i n a n c e i r a , a mencionada "capacidade a q u i s i t i v a " entre determinadas
categorias de pessoas p o r m e i o da i n f l a ç ã o e da c o n s e r v a ç ã o desta. D o ponto de vista
e m p í r i c o , n ã o há resposta p a r a se este ú l t i m o p r o c e d i m e n t o é l o u v á v e l o u repreensível.
Mas sua o c o r r ê n c i a está estabelecida. E mais ainda: u m a c o n c e p ç ã o orientada por ideais
sociais materiais pode tomar c o m o ponto de partida de sua crítica precisamente o fato
de a c r i a ç ã o de meios m o n e t á r i o s e de c i r c u l a ç ã o , na economia de troca, c o n c e r n i r
apenas àqueles interessados que s ó se p r e o c u p a m c o m a " r e n t a b i l i d a d e " , mas n ã o
c o m o p r o b l e m a da quantidade " c e r t a " de d i n h e i r o n e m c o m o da e s p é c i e adequada.
Seria possível argumentar-se, c o m toda a r a z ã o , que apenas o d i n h e i r o administrativo
pode ser " d o m i n a d o " , m a s n á o o d i n h e i r o de tráfico. Portanto, é o p r i m e i r o , e sobretudo
o papel-moeda — que pode ser fabricado e m qualquer quantidade e e s p é c i e conveniente
— , o m e i o especifico e por excelência pata criar d i n h e i r o sob aspectos materialmente
racionais — quaisquer que s e j a m estes e m cada caso concreto. A a r g u m e n t a ç ã o —
cujo v a l o r encontra seus limites n o fato de que o m u n d o , tanto hoje quanto n o futuro,
será dominado pelos " i n t e r e s s e s " de indivíduos, e n ã o pelas " i d é i a s " de u m a adminis-
tração e c o n ô m i c a — é concludente do ponto de vista l ó g i c o - f o r m a l . C o m isso, aparece
t a m b é m neste ponto a controvérsia, s e m p r e possível, entre a racionalidade formal (no
sentido aqui f i x a d o ) e a material (cuja c o n s t r u ç ã o teórica é possível precisamente a
u m a administração lítrica desprendida de toda c o n s i d e r a ç ã o h i l o d r ô m i c a d o m e t a l )
e é justamente isso que nos importa demonstrar.

Evidentemente, todas essas considerações nada mais são do que uma discussão — ainda
que necessariamente delimitada e muito sumária em si, deixando de lado todos os detalhes
— com o excelente livro de G.F. KNAPP, Staatliche Theorie des Geldes, (primeira edição 1 9 0 5 ,
segunda edição 1918, [terceira edição 1 9 2 1 , quarta edição 1 9 2 3 ] ) Essa obra — embora não
fosse sua intenção, porém talvez não totalmente inculpável, foi imediatamente aproveitada como
fonte de valorações e, como é claro, acolhida com entusiasmo pela administração lítrica "pape-
lista" da Áustria. Os acontecimentos não têm desmentido em ponto algum a teoria de Knapp,
mas mostram o que, de qualquer modo, era indiscutível: que ela é incompleta quanto ao aspecto
da validade material do dinheiro. Este é o ponto que será fundamentado, de forma mais detalhada,
no que segue.
ECONOMIA E SOCIEDADE 125

Excurso sobre a teoria estatal do dinheiro

Knapp demonstra com sucesso que, nos últimos tempos, toda política "lítrica" (de meios
de pagamento) diretamente estatal, bem como a estatalmente regulada, ao tentar passar para
um padrão-ouro ou outro padrão monetário, o mais próximo possível deste, de caráter indireta-
mente crisodrômico, esteve determinada de modo "exodrômico", isto é, pela consideração da
cotação da moeda própria em relação à estrangeira, sobretudo a inglesa. No interesse de conseguir
"paridade monetária" com a Inglaterra — país com padrão-ouro, o maior território comercial
e o mediador mais universal de pagamentos no tráfico mundial —, a prata, até então tratada
como dinheiro de tráfico livre, foi inicialmente desmonetizada na Alemanha para, em seguida,
ser transformada em dinheiro limitado pela França, Suíça e pelos demais membros da "União
Monetária", bem como pela Holanda e, finalmente, pela índia, países que, logo depois, adotaram
medidas crisodrômicas indiretas para os pagamentos ao exterior; a Áustria e a Rússia fizeram
o mesmo, sendo que as administrações "lítricas" destes países tomaram também medidas criso-
drômicas indiretas, em forma de papel-moeda "autógeno" (não conversível, funcionando, por-
tanto, ele mesmo como moeda), a fim de poder efetuar em ouro, em qualquer momento, os
pagamentos ao exterior. O único aspecto que lhes importava de fato era, portanto, a solidez
(máxima possível) da relação intercambiária. Por isso, esta é, para Knapp, a única importância
do problema da matéria monetária e da hilodromia em geral. Para esse fim "exodrômico",
conclui ele, eram suficientes tanto as citadas medidas crisodrômicas indiretas (das administrações
com padrão-papel) quanto as diretamente hilodrômicas (compare a Áustria e a Rússia!) Isto
não é — ceteris paribus — em absoluto literalmente certo para as hilodromias. Pois, enquanto
entre dois territórios monetários com o mesmo tipo de hilodromia (ambos crisodrômicos ou
ambos argirodrômicos)não existem proibições recíprocas de exportação de moedas, essa situação
de hilodromia igual facilita consideravelmente, sem dúvida, a estabilização do câmbio. Mas,
mesmo que a conclusão de Knapp seja correta — e, em condições normais, em grande parte
o é de fato —, isto ainda não prova que se possa tomar em consideração somente este aspecto
quando se trata de escolher a hyle (matéria) do dinheiro — atualmente sobretudo escolha entre
dinheiro metálico (hoje de ouro ou de prata), por um lado, e dinheiro em forma de notas,
por outro (é conveniente deixar aqui de lado, por agora, as especialidades do bimetalismo e
do dinheiro limitado, anteriormente já examinadas) Pois isso significaria afirmar que, nos demais
aspectos, o papel-moeda funciona do mesmo modo que o dinheiro metálico. Já do ponto de
vista formal, a diferença é significativa: o papel-moeda sempre é o que o dinheiro metálico
apenas pode ser, mas não é necessariamente-, "dinheiro administrativo"; o papel-moeda (confor-
me seu próprio sentido) não pode ser hilodrômico. Não é nula a diferença entre os papéis'' desva-
lorizados" e a prata talvez futuramente "desvalorizada", numa situação de desmonetização uni-
versal, reduzida a ser unicamente matéria-prima industrial (o que ocasionalmente Knapp também
admite) Assim como o metal nobre, o papel não era, e especialmente hoje (1920) não é, um
bem sempre existente e disponível em qualquer quantidade desejada. Mas, a diferença entre
1) a possibilidade objetiva de obtenção e 2) os respectivos custos de obtenção em relação à
demanda é tão colossal, dependendo a produção dos metais em grau rão forte, embora relativa-
mente, das jazidas existentes, que essa situação permite afirmar que uma administração "lítrica",
em condições normais, podia (antes da guerra) emitir dinheiro administrativo de papel realmente
em qualquer momento, sempre que decidisse fazê-lo, e em quantidade (relativamente) "ilimi-
tada" (o que não era o caso com o dinheiro de cobre — na China —, menos ainda com o
de prata e, de modo algum, com o de ouro) E isso ainda com "custos" (relativamente) insignifi-
cantes e, sobretudo, com subdivisão das unidades nominais determinada de modo puramente
arbitrário, isto é, sem relação alguma entre o valor nominal das respectivas unidades e a quanti-
dade de papel. No caso do dinheiro metálico, este último procedimento limitava-se evidentemente
ao dinheiro divisionário, portanto, nem de longe ocorrendo na mesma extensão nem no mesmo
sentido. Com o dinheiro de metal-padrão, não ocorria absolutamente. Para este, a quantidade
dos metais constituía uma magnitude que, ainda que elástica, era "infinitamente" mais fixa que
a da possibilidade de fabricar papel. Uma magnitude, portanto, que criava limites. No entanto,
uma coisa é certa: quando a administração se orientava exclusivamente de modo "exodrômico",
com a finalidade de manter o câmbio o mais estável possível, então encontrava, precisamente
126 MAX WEBER

na criação de dinheiro em forma de notas, certos limites, ainda que não de natureza "técnica",
mas mesmo assim fixamente dados, de caráter normativo, isto é o que replicaria Knapp. E ,
do ponto de vista formal — mas somente dele —, teria toda a razão. E os casos de papel-moeda
"autógeno"? Também nestes casos, diria Knapp, a situação era a mesma (veja a Áustria e a
Rússia) " s ó " que faltavam os limites técnico-"mecânicos" devidos à escassez do metal. E isso
era sem importância? Knapp ignora tal problema. Diria, talvez, que "contra a morte" (de um
sistema monetário) "não há remédio". No entanto (abstraímos aqui a possibilidade de uma obstru-
ção absoluta momentânea da produção de papel) existiam e existem, sem dúvida, tanto 1) inte-
resses próprios dos dirigentes da administração política — que Knapp supõe também como execu-
tores ou mandantes da administração lítrica —, quanto 2) interesses privados que de modo algum
estão dirigidos primariamente à conservação do "câmbio estável", mas muitas vezes — pelo
menos temporariamente — pretendem precisamente o contrário. Semelhantes interesses podem
também aparecer em cena, atuando de modo eficaz — dentro da administração político-lítrica
ou mediante uma forte pressão sobre esta por determinados interessados — e provocando'' infla-
ções" — as quais, na terminologia de Knapp (que rigorosamente evita esse termo) seriam emis-
sões de notas orientadas de outra maneira, não "exodrômica" (pela relação intercambiai) sendo,
portanto, "admissíveis".
Existem, em primeiro lugar, tentações de natureza financeira: uma "desvalorização" do
marco alemão, mediante inflação, a 1/20 de seu valor anterior, em relação às partes materiais
mais importantes do patrimônio nacional, depois de estabelecida a "adaptação" dos lucros e
salários a essa situação dos preços, valorizados 20 vezes mais, portanto, todos os bens de consumo
dentro do país e todo o trabalho (como suposição'.), significaria para todos que se encontrassem
nessa feliz situação uma redução de 19/20 das dívidas da guerra. E o Estado que, em virtude
do aumento das rendas (nominais), arrecadasse impostos (nominais) correspondentemente eleva-
dos, sentiria pelo menos uma repercussão bem forte dessas circunstâncias. Não seria isto muito
sedutor? É claro que "alguém" pagaria os "custos". Mas não seria o Estado nem as outras duas
categorias citadas. E quanto mais sedutor seria ainda poder pagar ao exterior uma divida externa
antiga num meio de pagamento que se fabrica à vontade de maneira extremamente barata!
É claro que surgem dúvidas quanto a esse procedimento, porque — abstraindo possíveis interven-
ções políticas —, no caso de um puro empréstimo externo, ele põe em perigo a possibilidade
de créditos futuros —, mas, como é sabido, o Estado prefere muitas vezes resolver primeiro
os problemas mais imediatos. E haveria interessados entre os empresários, para os quais seria
muito conveniente uma elevação em vinte vezes dos preços de seus produtos, mediante inflação,
desde que os trabalhadores por impotência, por incapacidade de reconhecer a situação ou por
outra causa qualquer — o que é bem possível —, recebessem salários (nominais) aumentados
''apenas'' em cinco ou dez vezes. Tais "inflações" agudas, condicionadas por interesses puramente
financeiros, costumam ser fortemente abominadas pelos políticos da área econômica. E , de fato,
não são conciliáveis com uma política exodrômica no sentido da concepção de Knapp. Ao contrá-
rio, um aumento quantitativo lento e planejado dos meios de circulação — como o praticam,
em certas circunstâncias, os bancos de crédito mediante facilidades creditícias — é visto muitas
vezes como uma medida positiva que "anima" o espírito especulador — quer dizer, a esperança
de oportunidades de lucro —, crescendo assim o espírito empreendedor e, portanto, a produção
capitalista de bens, em virtude do estímulo oferecido ao "investimento produtor de dividendos
de capital", em vez de ao "investimento produtor de renda". Mas onde fica, nestas condições,
a orientação exodrômica? É que seu próprio efeito — aquela "animação do espírito empreen-
dedor" e as respectivas conseqüências — é capaz de influir ("pantopolicamente") sobre o cha-
mado "balanço de pagamento", no sentido de uma alta, ou pelo menos impedindo a baixa,
da cotação da moeda própria. Com que freqüência? Com que intensidade? Estas já são outras
questões. O problema de se um aumento quantitativo condicionado do dinheiro do sistema por
interesses financeiros, porém não agudo, pode produzir efeitos semelhantes, não será discu-
tido aqui. Quem paga, de maneira muito lenta, as "cargas" desse aumento — não prejudicial,
do ponto de vista exodrômico — da reserva monetária é a mesma camada de pessoas que também
é materialmente atingida pela confiscação no caso da inflação financeira aguda: todos aqueles
que continuam recebendo a mesma renda nominal ou que possuem um patrimônio constituído
por títulos "nominais" (sobretudo, os rentistas com rendi fixa-, em segundo lugar, o funcionário
ECONOMIA E SOCIEDADE 127

público com remuneração " f i x a " — isto é, só aumentada depois de longas lamentações —,
além do trabalhador com salário " f i x o " — isto é, que se consegue mudar somente através de
duras lutas) E m todo caso, não se deve interpretar Knapp no sentido de que, para a política
monetária em favor do papel-moeda, sempre só pode ser decisivo o aspecto exodrômico, isto
é, o "câmbio estável" (pois não afirma isso), nem se deve supor — como ele o faz — que
há grande probabilidade de que somente esse aspecto o seja de fato. Não se pode negar que
assim seria no caso de uma política lítrica racional do modo como ele a entende, isto é, orientada
(o que ele não declara explicitamente) no sentido da maior eliminação possível de "perturbações"
das relações de preço por processos de emissão de dinheiro. Mas, não se deve admitir de modo
algum — e Knapp também não afirma — que a importância prática das formas da política mone-
tária se limita à conservação do "câmbio estável". Falamos aqui da "inflação" como fonte de
revoluções, ou evoluções, de preço, e também mencionamos que ela pode ser condicionada
pela tentativa de iniciar tais processos. Inflações (de dinheiro em forma de notas) com efeito
revolucionário sobre os preços costumam abalar também, naturalmente, o câmbio estável (o
que não ocorre necessariamente, conforme vimos, no caso de aumentos quantitativos de dinheiro
com efeito evolutivo sobre os preços) Knapp estaria de acordo com isso. Supõe evidentemente,
e com toda a razão, que em sua teoria não há lugar para uma política de preços das mercadorias
que esteja cambialmente determinada (seja ela revolucionária, evolucionista ou conservadora).
Por quê? Provavelmente por esta razão formal: a relação de preços cambiais entre dois ou mais
países se expressa diariamente num número muito pequeno de preços de bolsa (formalmente)
inequívocos e homogêneos, os quais podem servir de base para a orientação racional da "política
lítrica". Também é possível a uma administração "lítrica", especialmente àquela que administra
meios de circulação, estimar — mas apenas estimar (sobre a base de determinados dados que
se expressam em solicitações periodicamente repetidas)— quais sejam, no futuro mais próximo,
as flutuações "necessárias'' de determinada reserva de meios de pagamento (destinada puramente
a fins de pagamento) para determinado grupo de pessoas vinculadas entre si por relações de
economia de troca, permanecendo aproximadamente iguais as demais circunstâncias. Ao contrá-
rio, não é da mesma forma calculável a medida em que uma inflação, ou (em vez disso) uma
retirada de dinheiro da circulação possa produzir, em determinado futuro, revoluções ou evolu-
ções nos preços ou então sua conservação. Para calcular esses efeitos, no caso de uma inflação
(somente esta será considerada aqui), seria preciso conhecer os seguintes fatores: 1) a situação
atual da distribuição de renda e, em conexão com esta, 2) as intenções econômicas, baseadas
nessa situação, de cada indivíduo-, e 3) os "caminhos" da inflação, isto é, o primeiro paradeiro,
bem como os posteriores, das emissões novas- Isto, por sua vez, significaria conhecer a ordem
sucessiva e a medida em que aumentam as rendas nominais em virtude da inflação. Além disso,
seria necessário levar em consideração 4 ) o tipo de utilização (consumo, investimento de patrimô-
nio, investimento de capital) da demanda de bens assim causada, segundo a quantidade e, sobre-
tudo, segundo a qualidade (bens de consumo ou meios de obtenção de todas as espécies), e,
por fim, 5) a direção em que prossegue o deslocamento dos preços e, em conseqüência, o
deslocamento das rendas — além dos inúmeros fenômenos daí resultantes de deslocamento
da "capacidade aquisitiva" e da intensidade do "estímulo" (possível) à produção aumentada
de bens naturais. Tudo isso seriam fatores determinados por completo pelas considerações econô-
micas futuras de indivíduos em face da nova situação criada, as quais, por sua vez, repercutiriam
sobre as estimativas de preços por parte de outros indivíduos: e só destas últimas resultariam,
na luta de interesses, os "preços" futuros. Evidentemente não se pode falar aqui de "cálculos"
(por exemplo, do seguinte tipo: novas emissões de um bilhão aumentarão provavelmente o
preço do ferro em x, o preço dos cereais em y etc.) E o que impede isso mais ainda é o fato
de que, apesar de serem possíveis, temporariamente, regulações eficazes dos preços de produtos
puramente internos, estas se referem aos preços máximos, não aos mínimos, e com efeito precisa-
mente limitado. Além disso, com o cálculo (empiricamente impossível) dos "preços" como tais
nada se ganharia. Pois em todo caso este se limitaria a determinar a quantidade de dinheiro
exigida como meio de pagamento. Mas além desta e em quantidade muito superior existiriam
novas necessidades de dinheiro como meio para a obtenção de bens de capital, em forma de
créditos. Tratar-se-ia, neste caso, de conseqüências possíveis da inflação propositada, as quais
escapariam em absoluto a todo "cálculo", mesmo ao aproximado. E m resumo, pode-se com-
128 MAX WEBER

preender (e só isso pretendeu ilustrar esta exposição muito rudimentar) por que Knapp deixa
fora de consideração, para as economias de troca modernas, a possibilidade de uma política
de preços por meio da inflação, de caráter racional e planejado e que repousa, no que se refere
à calculabilidade, sobre uma base parecida com a "política de divisas". No entanto, é realidade
histórica. Ocorreram repetidas vezes tentativas de inflação e contra-inflação — ainda que de
forma bastante tosca — no sistema de cobre da China, em condições essencialmente mais primi-
tivas da economia monetária, tentativas que resultaram em fracassos consideráveis. Essa politica
também foi recomendada nos Estados Unidos da América. E m seu livro, que evidentemente
só opera com hipóteses "demonstráveis" (no sentido de sua teoria), Knapp contenta-se com
o conselho, ao Estado, de ter "cuidado" na emissão de papel-moeda autógeno. E já que ele
se orienta por completo pelo "câmbio estável", tal atitude parece razoavelmente conseqüente,
pois as desvalorizações do dinheiro pela inflação e na relação intercambiária estão, na maioria
das vezes, estreitamente interligadas. Só que não são idênticas e, sobretudo, nem toda desvalo-
rização inflacionária está primordialmente condicionada pela situação intercambiária. O fato
de já ter sido reivindicada uma administração lítrica inflacionista orientada por uma política
de preços, e isso não somente pelos proprietários de minas de prata, na "campanha da prata",
mas também pelos fazendeiros, nas campanhas em favor das greenbacks, é algo que Knapp
não admite expressamente, mas também não contesta. E m todo caso — e parece que isso o
tranqüiliza —, tal política nunca teve sucesso duradouro. Mas talvez as coisas não sejam tão
fáceis assim. Planejadas ou não como medidas reguladoras dos preços, em todo caso ocorreram
de fato e freqüentemente inflações (no sentido acima exposto) e tampouco são desconhecidas,
tanto na Ásia oriental quanto na Europa, desvalorizações catastróficas de papéis. E estes fatos
devem ser examinados pela teoria material do dinheiro. Que não exista diferença alguma entre
a "desvalorização" da prata e a de papéis, é algo que precisamente Knapp não poderia afirmar.
E isto já por razões formais: o que se desvaloriza é a prata que não se encontra em forma
de moeda, a prata bruta oferecida para fins industriais, e não necessariamente a moeda cartai
(limitada) de prata (freqüentemente, muito pelo contrário!) No caso do papel, por outro lado,
o que se desvaloriza não é o "papel bruto" oferecido para fins industriais, mas precisamente
(é óbvio) o papel canal. No entanto (como com toda a razão diria Knapp) este só alcança o
valor zero ou outro que lhe atribuem colecionadores ou museus quando é repudiado pelas caixas
estatais, sendo esse momento, portanto, "estatalmente" determinado, por disposição regimental.
Isto é correto. Mas refere-se a porcentagens mínimas de seu antigo valor material (sua relação
de preço com outros bens quaisquer) enquanto que a verdadeira desvalorização, apesar de
persistir a vigência nominal "epicêntrica", já ocorreu muito antes.
Mas, abstraindo-se essas catástrofes, houve na história muitos casos de inflações e, por
outro lado, de "apertos" no sistema monetário (na China), ambos devidos à utilização extramo-
netária do metal-padrão. E , em todos esses casos, não podemos limitar-nos a tomar conhecimento
do fato de que, em certas circunstâncias (nem sempre), se tornam "acessórias" determinadas
espécies de dinheiro que antes não o eram, "estancando"-se nas caixas estatais e forçando mudan-
ças "obstrucionais" no sistema monetário. Cabe também à teoria material do dinheiro pelo menos
suscitar a pergunta de como são afetados, nesses casos, os preços e as rendas e, por conseguinte,
toda a economia, ainda que, pelas razões anteriormente expostas, seja duvidosa a extensão em
que se possa respondê-la teoricamente. Do mesmo modo, quando consideramos o caso da França,
país formalmente bimetalista, onde, em conseqüência da baixa do preço do ouro ou da prata
(expressada ora num metal ora no outro), o dinheiro efetivamente cambial é representado ora
somente pelo ouro ora somente pela prata, enquanto que o outro metal se torna "acessório",
não queremos limitar-nos a indicar que aquelas variações de preço são "pantopolicamente"
determinadas. Tampouco o faremos nos demais casos de alteração da matéria monetária. Sempre
perguntaremos também, nos casos de aumento quantitativo de um metal nobre: trata-se de espólio
(Cortez, Pizarro) ou de enriquecimento por meio do comércio (a China, nos inícios de nossa
era e a partir do século XVI) ou de aumento da produção? E , neste último caso: apenas aumentou
a produção ou também (ou somente) barateou, e por quê? Quais são as variações na utilização
extramonetária que eventualmente contribuíram para esse aumento? Houve nesse território eco-
nômico (por exemplo, o mediterrâneo da Antiguidade) uma exportação definitiva (como nos
primeiros séculos depois de Cristo) para outro, muito distante e estrangeiro (China, índia)? Ou
ECONOMIA E SOCIEDADE 129

as causas encontram-se apenas (ou também) num deslocamento "pantopolicamente" condicio-


nado da demanda monetária (na forma variada da demanda da parte do pequeno tráfico) Pelo
menos estas e outras possibilidades diversas devem ser examinadas no que se refere aos efeitos
típicos que costumam produzir.
Por fim, iremos examinar a regulação da "necessidade" de "dinheiro" na economia de
troca e o que significa nesta esse conceito. Uma coisa é evidente: é a "necessidade" atual de
meios de pagamento por parte de interessados no mercado que determina a criação de "dinheiro
de tráfico livre" ("cunhagem l i v r e " ) E o que determina a política de meios de circulação dos
bancos de emissão modernos é a necessidade atual de meios de pagamento e, sobretudo, de
crédito por parte de interessados no mercado, em conexão com a observância da solvência
própria e das normas estabelecidas para esse fim. Portanto, o que sempre predomina hoje é
a atividade regulada por interesses — o que corresponde ao tipo geral de nosso sistema econô-
mico. E só isso pode significar, dentro de nosso sistema econômico (formalmente legal) o conceito
de "necessidade de dinheiro". Diante de exigências "materiais", tal conceito — bem como o
da "demanda" (da "necessidade com poder aquisitivo") de "bens" — comporta-se, portanto,
com total indiferença. Na economia de troca, só existe um limite forçoso da criação de dinheiro
no caso do dinheiro de metal nobre. Mas é precisamente a existência desse limite que determina,
conforme o que acabamos de expor, a importância dos metais nobres para o sistema monetário.
A limitação a dinheiro "hílico", fabricado de uma matéria que (praticamente) n ã o pode ser
aumentada "à vontade", especialmente de metal nobre, e, além disso, a meios de circulação
com cobertura, estabelece limites internamente bastante fixos para toda criação de dinheiro
— ainda que não exclua totalmente a possibilidade de uma inflação bancária elástica e evolutiva.
Para a criação de dinheiro na base de uma matéria que, comparada à anterior, pode (praticamente)
ser aumentada "à vontade", como o papel, não existe tal limite mecânico. Nesse caso, o que
efetivamente determina a quantidade de dinheiro é a "decisão livre" dos dirigentes da associação
política. Isto é, o que regula essa quantidade, sem a inibição daqueles obstáculos mecânicos,
são as idéias que esses dirigentes têm sobre os interesses financeiros de quem domina a associação
e, em certas circunstâncias, até sobre os interesses puramente pessoais do quadro administrativo
(por exemplo, o uso da prensa de bilhetes pelas hordas vermelhas!) A eliminação, ou, mais
corretamente, cena inibição de semelhantes interesses — uma vez que o Estado pode ser forçado
por eles a abandonar o sistema metálico e passar para o sistema-papel — constitui, portanto,
até hoje, a importância dos sistemas metálicos, da crisodrõmia e da argirodromia, as quais —
apesar do caráter altamente mecânico de sua função — apresentam, sem dúvida, um grau mais
elevado de racionalidade formal, no sentido da economia de troca, já que essa racionalidade
orienta-se exclusivamente pelas oportunidades de troca. A política lítrica, determinada por inte-
resses financeiros de administrações monetárias com sistema puro de pape) não está necessa-
riamente orientada — conforme admitimos acima e provam os casos da Áustria e da Rússia
—puramente por interesses pessoais dos que dominam ou do quadro administrativo, nem por
interesses financeiros do momento e, portanto, pela idéia de criar, com custo mínimo, a maior
quantidade possível de meios de pagamento, sem a preocupação com o destino desse dinheiro
quando serve como meio de troca. Mas a possibilidade de que ocorra semelhante orientação
existe, sem dúvida, de forma crônica, enquanto que não existe, nesse sentido, em caso de hilodro-
mia ("dinheiro de tráfico l i v r e " ) Do ponto de vista da ordem formal da economia de troca,
essa possibilidade é o fator "irracional" (também formalmente) dos sistemas monetários não
"hilodrômicos", por mais que se deva admitir que estes últimos, em sua limitação "mecânica",
possuem racionalidade formal apenas relativa. Essa concessão poderia — e deveria — fazer
também G.F. Knapp.
Pois, no mesmo grau em que eram indizivelmente toscas as antigas "teorias quantitativas",
é certo o "perigo de desvalorização" em toda "inflação" com emissões de notas orientadas
puramente por interesses financeiros, o que ninguém, nem Knapp, vai negar. Mas seu "consolo"
perante esse fato é absolutamente rejeitável. A posição "anfitrópica" de "todos" (!)os indivíduos
— o que significa que cada um é tanto credor quanto devedor —, à qual Knapp recorre, com
plena seriedade, para provar a indiferença absoluta de toda "desvalorização", tal posição —
todos nós vivemos hoje essa experiência — é um fantasma. O que aconteceu com ela, não
apenas no caso dos rentistas, mas também no dos fixamente remunerados, cujos rendimentos
130 MAX WEBER

permanecem nominalmente constantes (ou dependendo seu aumento, ao dobro talvez, da conste-
lação financeira e do bom humor das instituições administrativas), enquanto que suas despesas
talvez se multiplicassem nominalmente por vinte (como acontece atualmente)? E no caso de
rodos os credores a longo prazo? Semelhantes mudanças radicais no valor (material) do dinheiro
significam hoje uma tendência crônica à revolução social, mesmo que muitos empresários estejam
em condições de fazer lucros intercambiários e alguns (poucos!) trabalhadores tenham poder
suficiente para conseguir para si maiores salários nominais. Tal efeito social-revolucionário e,
com ele, a enorme perturbação da economia de troca podem ser considerados — dependendo
do ponto de vista — fatos "positivos". Cientificamente, essa opinião é irrefutável. Pois é possível
que se espere (com ou sem razão) dessa situação a evolução da "economia de troca" em direção
ao socialismo. Ou que outro veja nela a prova de que somente a economia regulada, com pequenas
empresas, é materialmente racional, sem contar as "vítimas" que ficam atrás. Mas à ciência,
neutra em face dessa situação, cabe em primeiro lugar constatar aquele efeito da forma mais
objetiva possível — e é isso que fica oculto na afirmação, inteiramente falsa nessa forma geral,
da "anfitropia" de Knapp. Nos pontos que acabo de indicar — não contando com outros erros
em detalhe — parece-me residir a deficiência essencial de sua teoria, que levou muitos cientistas
a converterem-se em oponentes dela "por princípio", que de modo algum teriam de ser.

§ 37. Prescindindo-se da estrutura d o sistema m o n e t á r i o , a importância p a r a a


economia da existência de associações políticas a u t ô n o m a s reside, e m p r i m e i r o lugar:
1. n o fato de que, p a r a c o b r i r as necessidades próprias d e utilidades, elas costu-
m a m p r e f e r i r c o m o fornecedores, p e r m a n e c e n d o a p r o x i m a d a m e n t e iguais as demais
circunstâncias, seus p r ó p r i o s m e m b r o s . A importância disso é tanto m a i o r quanto mais
a economia dessas associações adota o caráter de m o n o p ó l i o o u de satisfação de necessi-
dades c o m o na g e s t ã o p a t r i m o n i a l ; v e m aumentando, portanto, de m o d o constante;
2. na possibilidade de f a v o r e c e r , inibir o u regular, de f o r m a planejada e sob
aspectos materiais, a troca através das fronteiras ("política c o m e r c i a l " ) ,
3- na possibilidade de h a v e r r e g u l a ç ã o f o r m a l e material da economia por essas
associações, e nas diferenças qualitativas e quantitativas entre as diversas f o r m a s de
regulação;
4. na r e p e r c u s s ã o , sobre a e c o n o m i a , das estruturas de d o m i n a ç ã o muito diversas
e, e m c o n e x ã o c o m estas, das estruturações administrativas e estamentais das camadas
sociais que d e t e r m i n a m o caráter da g e s t ã o e c o n ô m i c a , e das atitudes daí resultantes
c o m respeito à atividade aquisitiva;
5. n o fato de h a v e r entre os dirigentes dessas associações a concorrência pelo
poder e pelo abastecimento dos associados p o r eles dominados c o m meios de c o n s u m o
e de a q u i s i ç ã o , e pelas oportunidades aquisitivas que daí resultam;
6. na f o r m a e m que essas associações satisfazem às necessidades próprias: v e j a
o p a r á g r a f o seguinte.

§ 38. A r e l a ç ã o entre a economia e as associações de o r i e n t a ç ã o ( p r i m a r i a m e n t e )


e x í r a - e c o n ô m i c a mostra-se de f o r m a mais imediata na m a n e i r a c o m o se obtêm as utilida-
des necessárias para a ação associativa-, a a ç ã o d o q u a d r o administrativo c o m o tal e
a a ç ã o p o r ele dirigida (capítulo I , § 12) ( " f i n a n ç a s " n o sentido m a i s a m p l o da p a l a v r a
que i n c l u i , t a m b é m , a o b t e n ç ã o de bens e m espécie).
O ' ' f i n a n c i a m e n t o " (isto é , o abastecimento c o m utilidades economicamente admi-
nistradas), da a ç ã o associativa, pode ser organizado — dentro d e u m esquema dos
tipos m a i s simples:
L d e m o d o inconstante e, neste caso,
a) sobre a base de prestações puramente voluntárias e isto
a ) na f o r m a d e mecenato: p o r m e i o de dádivas e d o a ç õ e s , típicas n o caso de
fins caritativos, científicos e outros não p r i m a r i a m e n t e e c o n ô m i c o s o u políticos;
ECONOMIA E SOCIEDADE 131

0 ) por m e n d i c â n c i a , típica n o caso d e determinadas classes de comunidades ascé-


ticas.

Mas existem, também, na índia, castas mendicantes profanas e, em outros países (particu-
larmente na China), associações de mendigos.
A mendicância pode ser sistematizada em grande parte (limitada a determinada "clientela")
e assumir formas monopólicas, e, em virtude da natureza obrigatória ou meritória das doações,
passar materialmente do caráter inconstante para o de contribuições regulares.

y) por d o a ç õ e s f o r m a l m e n t e voluntárias à q u e l e s que s ã o considerados política


ou socialmente superiores: presentes a caciques, p r í n c i p e s , p a t r õ e s , senhores pessoais
e territoriais que, p o r s e r e m convencionais, p o d e m estar muito p r ó x i m o s materialmente
do caráter d e tributos, m a s q u e , e m r e g r a , n ã o estão determinados de m o d o r a c i o n a l ,
referente a fins, mas p o r certas o c a s i õ e s (determinados dias festivos, acontecimentos
familiares o u políticos).
A inconstância pode existir, a l é m disso,
b) sobre a base d e prestações extorquidas.

Tipo: a camorra no sul da Itália, a máfia na Sicília e associações semelhantes na índia;


as chamadas "castas de ladrões e bandidos", ritualmente particularizadas, na China: seitas e
associações secretas abastecidas economicamente de modo semelhante. As prestações são apenas
primariamente inconstantes, por serem formalmente "ilegais"; na prática, assumem muitas vezes
o caráter de "contribuições fixas", pelo pagamento das quais são oferecidas determinadas contra-
prestações, particularmente garantia de segurança. Palavras de um fabricante napolitano, cerca
de vinte anos atrás, quando expressei minhas dúvidas quanto à eficácia da camorra para as
empresas: "Signore, la Camorra mi prende x lire nel mese, ma garantisce la sicurezza; lo Stato
me ne prende 10 x x, e garantisce — niente." (Os clubes secretos típicos, especialmente na
África — rudimentos da antiga "casa dos homens" —, funcionam de modo semelhante, com
métodos de proscrição, e garantem assim a segurança.)
Associações políticas (como o estado ligúrio de assaltantes)poc/e/n ter por base em primeiro
lugar (nunca exclusivamente, de modo duradouro) ganhos de espólio.

O financiamento pode s e r organizado:


I I . de m o d o constante e, neste caso,
A. s e m e m p r e e n d i m e n t o e c o n ô m i c o p r ó p r i o :
a) p o r contribuições e m f o r m a de bens materiais-.
a) e m e c o n o m i a m o n e t á r i a p u r a : o b t e n ç ã o dos meios e m f o r m a de contribuições
pagas e m d i n h e i r o e abastecimento p o r c o m p r a e m d i n h e i r o das utilidades necessitadas
(economia d e associação baseada p u r a m e n t e e m c o n t r i b u i ç õ e s e m d i n h e i r o ) Todos
os salários d o q u a d r o administrativo s ã o salários e m d i n h e i r o ;
0) e m economia n ã o - m o n e t á r i a p u r a (cf. § 1 2 ) repartição (das necessidades) c o m
e s p e c i f i c a ç ã o das entregas e m e s p é c i e (economia d e associação c o m prestações p u r a -
mente e m e s p é c i e ) Possibilidades:
aa) o abastecimento d o q u a d r o administrativo o c o r r e p o r m e i o de prebendas
e m e s p é c i e , d o m e s m o m o d o que se satisfazem e m e s p é c i e às necessidades, o u
00) as c o n t r i b u i ç õ e s recolhidas e m e s p é c i e se t r a n s f o r m a m e m dinheiro por sua
v e n d a , inteira o u parcialmente, e a p r o v i s ã o das necessidades o c o r r e , por isso, p o r
e c o n o m i a monetária.
As próprias contribuições, tanto e m d i n h e i r o quanto e m espécie, p o d e m ser, e m
todos os casos, e m seus tipos e c o n ô m i c o s m a i s elementares
a ) impostos, isto é, c o n t r i b u i ç õ e s
a a ) d e qualquer tipo de p r o p r i e d a d e o u , e m caso d e economia monetária, de
patrimônio;
132 MAX WEBER

00) de qualquer tipo de rendimento o u , e m caso de economia m o n e t á r i a , de


renda;
y y ) somente da propriedade de meios de o b t e n ç ã o o u de empresas aquisitivas
de determinado tipo (os chamados "impostos sobre o p r o d u t o " ) , o u p o d e m ser;
0) taxas, isto é, prestações p o r o c a s i ã o de se utilizar o u aproveitar de instalações,
propriedade o u serviços da associação. O u
y ) impostos sobre
aa) atos de uso o u c o n s u m o de natureza especificada,
00) atos de tráfico de natureza especificada, sobretudo:
1 ) transporte de bens (taxas de a l f â n d e g a )
2 ) vencia de bens (impostos diretos e indiretos sobre a v e n d a ) .
Todas as contribuições p o d e m , a l é m disso, ser:
1) arrecadadas sob d i r e ç ã o p r ó p r i a , o u
2 ) arrendadas, o u
3 ) emprestadas o u penhoradas.
O a r r e n d a m e n t o ( p o r determinada soma global e m dinheiro)pode ter efeito fiscal-
mente r a c i o n a l p o r q u e s ó ele oferece a possibilidade de fazer u m orçamento.
O e m p r é s t i m o e a p e n h o r a estão, na m a i o r i a dos casos, irracionalmente condicio-
nados, e isto
a ) p o r situação f i n a n c e i r a difícil, o u
0) p o r u s u r p a ç ã o p o r parte d o quadro administrativo: c o n s e q ü ê n c i a de faltar
u m quadro administrativo de c o n f i a n ç a .
C h a m a m o s "emprebendação" a apropriação p e r m a n e n t e de probabilidades tribu-
tárias p o r credores do Estado, garantes privados de serviços militares o u tributários,
condottieri e soldados n ã o pagos e, " f i n a l m e n t e " , titulares de cargos. Pode assumir
as seguintes f o r m a s :
1) a p r o p r i a ç ã o individual ou
2 ) a p r o p r i a ç ã o coletiva ( c o m distribuição l i v r e dos cargos a p a r t i r d o círculo dos
apropriadores)
O financiamento sem e m p r e s a e c o n ô m i c a própria ( I I A ) pode, a l é m disso, reali-
zar-se:
b) pela i m p o s i ç ã o de prestações pessoais: serviços pessoais diretos c o m especifi-
c a ç ã o das prestações e m espécie. O financiamento constante pode realizar-se, t a m b é m ,
e m o p o s i ç ã o aos casos de I I A:
I I B . Mediante empresas e c o n ô m i c a s próprias:
a ) e m f o r m a de g e s t ã o p a t r i m o n i a l (oikos, d o m í n i o s )
0) e m f o r m a de economia aquisitiva;
aa) de m o d o l i v r e , isto é, e m c o n c o r r ê n c i a c o m outras economias aquisitivas,
ou
00) de m o d o m o n o p ó l i c o .
T a m b é m nestes casos, a utilização pode ter lugar tanto sob d i r e ç ã o p r ó p r i a q u a n t o
por a r r e n d a m e n t o , e m p r é s t i m o o u p e n h o r a ç ã o . Por f i m , o financiamento constante
pode realizar-se, diferentemente dos casos I I A e I I B :
I I C. de m o d o litúrgico, p o r carga privilegiante.
a) positivamente privilegiante: liberando-se certos grupos especificados de pes-
soas do ô n u s de determinadas prestações, o u (eventualmente i d ê n t i c o )
0) negativamente privilegiante: obrigando-se principalmente certos grupos espe-
cificados de pessoas — especialmente determinados
aa) estamentos o u
00) classes patrimoniais — a determinadas prestações;
ECONOMIA E SOCIEDADE 133

y ) correlativamente: ligando-se a certos m o n o p ó l i o s especificados a carga, p r i n c i -


palmente, de determinados serviços o u contribuições especificados. Isto pode o c o r r e r :
aa) de m o d o estamental: p o r o r g a n i z a ç ã o f o r ç a d a dos m e m b r o s e m associações
profissionais o u de p r o p r i e d a d e , litúrgicas e ( f r e q ü e n t e m e n t e ) fechadas a novos m e m -
bros n ã o hereditários, c o m c o n c e s s ã o de certos privilégios estamentais;
0 0 ) de m o d o capitalista: p o r c r i a ç ã o de g r ê m i o s o u cartéis fechados c o m direitos
m o n o p ó l i c o s e ô n u s de c o n t r i b u i ç õ e s e m d i n h e i r o .

Com respeito a I I :
A casuística (muito rudimentar) vale para associações de todas as espécies. Nossos exemplos
referem-se apenas às associações politicas.
Com respeito a A, a, a : Uma análise do moderno sistema estatal de impostos, mesmo
de forma esboçada, está naturalmente, aqui, longe de nossas intenções. Cabe prosseguir, em
primeiro lugar, com a consideração do "lugar sociológico", isto é, daquele tipo de relação de
dominação que favorece o nascimento de determinadas formas de contribuições (por exemplo,
taxas, sisas, impostos).
A contribuição em espécie, mesmo no caso de taxas, aduanas, sisas e impostos sobre
a venda foi muito freqüente ainda durante toda a Idade Média; sua substituição monetária é
relativamente moderna.
Com respeito a a, 0: entregas em espécie: típicas na forma de tributos e repartições de
produtos impostos a economias dependentes. O envio das prestações em espécie só é possível
em caso de associações pequenas ou de condições de transporte muito favoráveis (Nilo, Canal
Imperial). E m todos os demais casos, as prestações têm de ser transformadas em dinheiro, para
chegar ao último destinatário (como, freqüentemente, na Antiguidade), ou convertidas, depen-
dendo da distância, em objetos com preços diversos especificados (como, segundo se diz, na
China antiga).
Com respeito a A, b: exemplos: obrigação ao serviço militar, deveres judiciais e de jurado,
prestações de trabalho na construção de estradas, pontes e diques, e na mineração, e todos
os tipos de serviços para cumprir os devéres para com a associação, em associações de todas
as espécies. Tipos de Estados com serviços pessoais obrigatórios: o antigo Egito (Novo Império);
a China, em algumas épocas; a índia, em grau menor; o Império Romano, menos ainda, em
sua última fase, e numerosas associações nos inícios da Idade Média.
Tipos de emprebendação. 1) pelos titulares de cargos, de modo coletivo: na China; 2)
por garantes privados de serviços militares ou tributários: na índia; 3) por condottieri e soldados
não pagos: na última fase do califado e sob o domínio dos mamelucos; 4) por credores do
Estado: a compra de cargos, universalmente divulgada.
Com respeito a B, a. exemplos: exploração de domínios, sob direção própria, para fins
de gestão patrimonial, utilização do trabalho obrigatório dos súditos para a criação de empresas
para prover as necessidades da corte ou para fins políticos; em forma moderna, por exemplo,
oficinas de confecção de uniformes ou fábricas estatais de munições.
Com respeito a B, 0. Para o caso a a , só existem exemplos isolados (comércio marítimo
etc.). Para o caso 0 0 , há numerosos exemplos em todas as épocas da história; momento culmi-
nante, no Ocidente: dos séculos XVI até o XVIII.
Com respeito a C: exemplos de a. suspensão dos serviços obrigatórios para os literatos,
na China; liberação dos sórdida munera, para os estamentos privilegiados, no mundo inteiro,
bem como do serviço militar, para os intelectualmente qualificados, em numerosas países.
Exemplos de 0: tributação pesada, por um lado, principalmente dos patrimônios com
liturgias na democracia da Antiguidade; por outro, dos grupos não mencionados nos exemplos
de a como liberados de obrigações.
Exemplos de y. O caso a a é a forma mais importante do provimento sistemático das
necessidades públicas sobre uma base distinta da do "Estado tributário". Tanto a China quanto
a índia e o Egito, portanto, os países com a burocracia mais antiga (referente à irrigação), conhe-
ceram a organização litúrgica com liturgia de cargas em espécie, e daí em diante esta foi utilizada
(em parte) no helenismo e na última fase do Império Romano, ainda que substancialmente em
134 MAX WEBER

forma de tributos em dinheiro e não de liturgias em espécie. E m todos os casos, implica classifi-
cação estamental das profissões. Nesta forma, pode voltar a existir também hoje, sempre que
haja falha no provimento das necessidades públicas pelos impostos pagos ao Estado e se regule
por medidas estatais o provimento privado capitalista. Até agora, em caso de apertos financeiros
na forma moderna do provimento das necessidades públicas, foi adequado o caso 0 0 : monopólios
aquisitivos em troca de licenças e contribuições (exemplo mais simples: o controle estatal imposto
das fábricas de pólvora, na Espanha, com proteção de seu monopólio em relação à fundação
de novas fábricas, e mediante contribuições elevadas e contínuas ao tesouro do Estado) Partindo
disso, parece plausível a idéia de servir-se fiscalmente da "socialização" de certos ramos da
indústria, começando pela extração de carvão, mediante a imposição de cartéis ou trustes como
sujeitos fiscais, uma vez que desta forma continua existindo a obtenção de bens (formalmente)
racional, orientada pelo preço.

§ 39. O m o d o c o m o as associações políticas (e hierocráticas) p r o v ê e m suas necessi-


dades repercute fortemente sobre a f o r m a que assumem as economias privadas. O
Estado que recebe contribuições p u r a m e n t e e m dinheiro, c o m d i r e ç ã o própria da arreca-
d a ç ã o (e limitada a este) e e m p r e g o de serviços pessoais apenas para fins políticos
e judiciais, oferece ótimas oportunidades ao capitalismo r a c i o n a l , orientado pelo m e r c a -
do. O Estado c o m sistema de contribuições e m d i n h e i r o c o m arrendamento favorece
o capitalismo politicamente orientado, p o r é m n ã o a economia aquisitiva, orientada pelo
mercado. O e m p r é s t i m o e a emprebendação da tributação impede, e m r e g r a , o desen-
v o l v i m e n t o d o capitalismo pela c r i a ç ã o de interesses que pretendem c o n s e r v a r as fontes
existentes de emolumentos e tributos e, portanto, pela estereotipagem e tradiciona-
lização da economia.
A associação c o m sistema p u r o de fornecimento de bens e m espécie n ã o fomenta
o capitalismo e o obstrui, na medida e m que desse sistema resultam vinculações efetivas
— irracionais do ponto de vista da economia aquisitiva — do rumo que toma a p r o d u ç ã o
das economias.
A associação c o m sistema p u r o de serviços pessoais obstrui o capitalismo orientado
pelo mercado, ao apoderar-se da f o r ç a de trabalho e ao impedir, assim, o desenvol-
v i m e n t o de u m mercado l i v r e de trabalho; obstrui o capitalismo politicamente orientado
ao cortar as possibilidades típicas de s e u desenvolvimento.
O financiamento m o n o p ó l i c o segundo os princípios da economia aquisitiva, o
pagamento de tributos e m espécie, c o m t r a n s f o r m a ç ã o dos bens entregues e m d i n h e i r o ,
e a satisfação de necessidades litúrgicas c o m tributação da propriedade t ê m e m c o m u m
o fato de n ã o f o m e n t a r e m o capitalismo autonomamente orientado pelo m e r c a d o , mas,
s i m , de r e p r i m i r e m as oportunidades de aquisição no m e r c a d o p o r m e i o de medidas
fiscais, portanto irracionais d o ponto de vista d o mercado: c r i a ç ã o de privilégios e
de oportunidades de aquisição de d i n h e i r o que, considerados do ponto de vista do
m e r c a d o , s ã o irracionais. F a v o r e c e m , p o r é m , e m determinadas circunstâncias, o capita-
lismo politicamente orientado.
O empreendimento aquisitivo c o m capital f i x o e c á l c u l o de capital exato pressu-
p õ e , f o r m a l m e n t e , sobretudo a calculabilidade das contribuições e, materialmente, uma
f o r m a destas que n ã o leve a p r i v i l e g i a r de m o d o fortemente negativo a valorização
do capital, o u seja, sobretudo, das vendas no mercado. O capitalismo c o m e r c i a l especu-
lativo, ao contrário, é c o m p a t í v e l c o m toda f o r m a de p r o v i m e n t o das necessidades
públicas que n ã o i m p e ç a diretamente, p o r v i n c u l a ç ã o litúrgica, o e m p r e g o c o m e r c i a l
dos bens c o m o mercadorias.
No entanto, a natureza da constituição da tributação pública, p o r mais importante
que seja, não determina u m a d i r e ç ã o d e desenvolvimento unívoca n o que se r e f e r e
à o r i e n t a ç ã o da g e s t ã o e c o n ô m i c a . Apesar da ausência (aparente) d e todas as obstruções
ECONOMIA E SOCIEDADE 135

típicas p o r este lado, não se d e s e n v o l v e u , e m grandes territórios e longas é p o c a s , o


capitalismo racional (orientado pelo m e r c a d o ) , apesar da existência (aparente) de f o n e s
obstruções a partir da constituição de ô n u s p ú b l i c o s , ele se i m p ô s e m outras r e g i õ e s .
A l é m do c o n t e ú d o m a t e r i a l da política e c o n ô m i c a , que pode orientar-se t a m b é m , e m
considerável g r a u , p o r fins e x t r a - e c o n ô m i c o s , e de tendências de natureza intelectual
(científica e tecnológica), obstruções de natureza i d e o l ó g i c a (ética, religiosa) desempe-
n h a r a m u m papel muito importante n a limitação local do desenvolvimento capitalista
autóctone, no sentido m o d e r n o . N ã o se deve esquecer t a m b é m o fato de que as f o r m a s
de empresas e empreendimentos, assim c o m o todos os produtos técnicos, t ê m de ser
" i n v e n t a d a s " e que, para isso, s ó p o d e m ser mostradas, historicamente, circunstâncias
" n e g a t i v a s " , isto é, que dificultam o u até obstruem o nascimento das idéias e m q u e s t ã o ,
o u então, " p o s i t i v a s " , que o favorecem, mas n ã o fica indicada u m a r e l a ç ã o causal
claramente concludente, assim c o m o p a r a todos os acontecimentos estritamente indivi-
duais de qualquer natureza.

1. Com respeito à última frase: também acontecimentos individuais puramente naturais


só podem ser reduzidos a componentes causais individuais com exatidão em circunstâncias muito
particulares: nisto não reside, em princípio, diferença alguma em relação à ação humana [cf.
meu artigo sobre "Roscher u. Knies", I I , Ges. Aufs. z. Wissenschaftslehre, p. 56, 64 e seg.].
2. Com respeito ao parágrafo inteiro: as conexões fundamentalmente importantes entre
a natureza da ordem e da administração das associações políticas e a economia podem ser aqui
apenas esboçadas de forma provisória.
1. O caso historicamente mais importante de obstrução do desenvolvimento capitalista
orientado pelo mercado, por emprebendação da tributação, é constituído pela China, e o de
obstrução por empréstimo da tributação (muitas vezes idêntico ao primeiro caso), pela Ásia
Menor, desde o califado (sobre isto, ver mais adiante). O arrendamento da tributação é encontrado
na índia, na Ásia Menor, na Antiguidade e na Idade Média ocidentais; mas, se na Antiguidade
ocidental ele foi particularmente decisivo para a forma de orientação da atividade aquisitiva
capitalista (estamento dos cavaleiros romanos), na índia e na Ásia Menor levou principalmente
à formação de patrimônios (senhorios territoriais).
2) O caSo historicamente mais importante de obstrução do desenvolvimento capitalista
por um sistema litúrgico de provimento de necessidades, em sentido geral, é a última fase da
Antiguidade, talvez também a índia, no período pós-budista e, em certas épocas, a China. Voltare-
mos também a isto no lugar adequado.
3) O caso historicamente mais importante de desvio monopolista do capitalismo, depois
de precedentes helénicos (ptolomaicos), é a época das atividades aquisitivas monopólicas e das
concessões monopólicas dos príncipes, nos inícios dos tempos modernos (prelúdio: certas medi-
das de Frederico I I , na Sicília, orientadas talvez pelo modelo bizantino; a luta final deu-se, princi-
palmente, sob os Stuarts). Trataremos deste assunto em lugar adequado.
Todas estas considerações, em sua forma abstrata, servem apenas para uma formulação
passavelmente correta do problema. Antek de voltarmos às fases e condições de desenvolvimento
da economia, devemos ocupar-nos com a consideração puramente sociológica dos componentes
exrra-econômicos.

§ 40. A economia t e m , a l é m disso, para toda formação de associações, u m a conse-


qüência sociológica de caráter muito g e r a l quando, c o m o acontece e m r e g r a , a direção
e o q u a d r o administrativo s ã o remunerados. Nesse caso, existe u m interesse econômico
extremamente forte na persistência da associação, m e s m o que tenham perdido toda
importância, no d e c o r r e r d o tempo, seus fundamentos talvez primariamente ideoló-
gicos.

É um fenômeno cotidiano que associações de todas as espécies, que, na opinião dos mem-
bros, deixaram de ter "sentido", continuem existindo somente porque um "secretário" ou outro
136 MAX WEBER

funcionário da associação recebe dela "seus meios (materiais) de subsistência", os quais,,de


outro modo, perderia.

Toda oportunidade apropriada — e m certas circunstâncias t a m b é m a f o r m a l m e n t e


n ã o - a p r o p r i a d a — p o d e ter o efeito de " e s t e r e o t i p a r " f o r m a s existentes de a ç õ e s sociais.
D e n t r o do círculo das oportunidades de a q u i s i ç ã o e c o n ô m i c a s (pacíficas e vinculadas
ao abastecimento de bens c o t i d i a n o s ) somente as oportunidades lucrativas dos empre-
sários s ã o f o r ç a s autóctones, racionalmente revolucionárias. Mas m e s m o estas, n e m
sempre.

Por exemplo, os interesses de corretagem dos banqueiros obstruíram por muito tempo
a admissão do endosso, e encontraremos com freqüência semelhantes obstruções de instituições
formalmente racionais, também por parte de interesses capitalistas de lucro ainda que essencial-
mente mais raras que as prebendárias, estamentais e economicamente irracionais.

§ 4 1 . T o d a g e s t ã o e c o n ô m i c a , dentro da economia de troca, é empreendida e


levada a cabo pelos indivíduos economicamente ativos a f i m de satisfazer interesses
próprios, ideais o u materiais. Isso se aplica t a m b é m , naturalmente, quando ela se orienta
pelas ordens de associações e c o n ô m i c a s o u reguladoras da e c o n o m i a (capítulo I I , §
5 ) — é estranho que f r e q ü e n t e m e n t e se d e s c o n h e ç a esse fato.
N u m a e c o n o m i a organizada de f o r m a socialista, n ã o seria e m princípio diferente.
A gerência pertenceria certamente à d i r e ç ã o da associação, e os indivíduos estariam
limitados, dentro da obtenção de bens, a serviços puramente " t é c n i c o s " : " t r a b a l h o " ,
neste sentido da p a l a v r a (capítulo I I , § 15). Isso o c o r r e r i a q u a n d o e enquanto esses
indivíduos estivessem administrados de m o d o "ditatorial", isto é, autocraticamente,
sem ser consultados. T o d o direito de c o - g e s t ã o possibilitaria imediatamente e também
f o r m a l m e n t e a luta entre interesses opostos que se estenderiam à f o r m a de g e r ê n c i a
e, sobretudo, à e x t e n s ã o das " p o u p a n ç a s " (reservas). Mas isso n ã o é o decisivo. O
decisivo é que t a m b é m nesse caso o i n d i v í d u o se perguntaria, e m p r i m e i r o lugar, se
lhe parece c o r r e s p o n d e r a seus interesses os suprimentos e o trabalho que lhe são
atribuídos, e m c o m p a r a ç ã o a outros possíveis. E l e o r i e n t a r i a seu comportamento de
acordo c o m isso — e então lutas de poder violentas pela v a r i a ç ã o o u c o n s e r v a ç ã o
dos suprimentos atribuídos (por e x e m p l o , adicional p o r s e r v i ç o p e s a d o ) a p r o p r i a ç ã o
o u e x p r o p r i a ç ã o de trabalhos p r e f e r i d o s , e m v i r t u d e de boa r e m u n e r a ç ã o o u de condi-
ç õ e s agradáveis, impedimento d o trabalho (greve o u e x p u l s ã o do e m p r e g o ) limitação
da p r o d u ç ã o de bens, a f i m de f o r ç a r m u d a n ç a s nas c o n d i ç õ e de trabalho e m determi-
nados r a m o s , boicote e e x p u l s ã o violenta de diretores malvistos — n u m a p a l a v r a : p r o -
cessos de apropriação de toda espécie e lutas de interesses s e r i a m t a m b é m , nesse caso,
o n o r m a l . A circunstância de que essas lutas o c o r r e r i a m , na m a i o r i a das v e z e s , de
f o r m a coletiva e de que nelas s e r i a m favorecidos os ocupados c o m trabalhos " v i t a l m e n t e
importantes" e os fisicamente mais fortes, c o r r e s p o n d e r i a à situação existente. Mas
s e m p r e estaria p o r trás de toda a ç ã o esse interesse d o indivíduo — o u eventualmente:
os interesses h o m o g ê n e o s , p o r é m antagônicos e m r e l a ç ã o a outros, de muitos indiví-
duos. A s constelações de interesses s e r i a m diferentes, os meios de realizá-los s e r i a m
outros, mas aquela circunstância continuaria a m e s m a . A i n d a que seja certo que o c o r r a m
ações e c o n ô m i c a s orientadas por interesses alheios c o m base puramente ideológica,
n ã o é m e n o s certo que a massa dos homens n ã o age dessa m a n e i r a e, segundo ensina
toda a e x p e r i ê n c i a , n ã o pode f a z ê - l o e, portanto, n ã o o fará.
N u m a e c o n o m i a ( " p l a n i f i c a d a " ) t o t a l m e n t e socialista somente h a v e r i a lugar p a r a :
ECONOMIA E SOCIEDADE 137

a ) u m a distribuição de bens e m e s p é c i e segundo u m plano racionado de neces-


sidade;
b) u m a p r o d u ç ã o desses bens segundo u m plano de p r o d u ç ã o . A categoria de
" r e n d a " , pertencente à economia m o n e t á r i a , necessariamente n ã o existiria. S e r i a m pos-
síveis, no entanto, rendimentos racionados.
N u m a e c o n o m i a de troca, o e s f o r ç o p o r obter renda é, inevitavelmente, a f o r ç a
motriz última de toda a ç ã o e c o n ô m i c a . Pois toda g e r ê n c i a , desde que r e c o r r a a bens
ou utilidades que n ã o estejam disponíveis p a r a o sujeito e c o n ô m i c o prontos p a r a o
uso, p r e s s u p õ e atos aquisitivos gerenciais sobre r e n d a f u t u r a , e quase todo poder de
disposição existente p r e s s u p õ e r e n d a prévia. T o d o s os lucros de empresas na economia
aquisitiva transformam-se, e m alguma fase e e m alguma f o r m a , e m rendas de sujeitos
e c o n ô m i c o s . Numa e c o n o m i a regulada, a p r e o c u p a ç ã o da o r d e m reguladora é n o r m a l -
mente a f o r m a da distribuição da r e n d a . ( E m economias n ã o - m o n e t á r i a s , segundo a
terminologia estabelecida, n ã o e x i s t e m " r e n d a s " mas " r e n d i m e n t o s " , na f o r m a de bens
e m espécie o u serviços, n ã o suscetíveis de a v a l i a ç ã o n u m m e i o de troca u n i t á r i o . )
Considerados sociologicamente, rendas e rendimentos p o d e m assumir as seguin-
tes f o r m a s principais e p r o v i r das principais fontes típicas seguintes:
A. Rendas e rendimentos p o r serviços (vinculados a serviços especificados ou
especializados)
I. Salários:
1) rendas e rendimentos de salários fixos, l i v r e m e n t e negociados (calculados p o r
períodos de t r a b a l h o )
2 ) rendas e rendimentos fixos escalonados (salários, emolumentos de f u n c i o n á r i o s
públicos)
3 ) rendimentos de trabalho p o r p e ç a , negociados p o r trabalhadores assalariados;
4 ) rendimentos de trabalho totalmente livres.
I I . Lucros:
1) lucros livres d e r i v a d o s de atos de troca, pelo fornecimento, e m f o r m a de e m -
preendimento, de bens materiais o u serviços;
2 ) lucros regulados p r o v i n d o s da m e s m a fonte.
Nestes casos ( 1 e 2 ) d e d u ç ã o dos " c u s t o s " : " r e n d i m e n t o s l í q u i d o s " .
3 ) espólio;
4 ) lucros derivados de d o m i n a ç ã o , emolumentos, c o r r u p ç ã o , arrendamento d e
tributação e outros semelhantes, derivados da a p r o p r i a ç ã o de direitos de poder.
D e d u ç ã o de custos nos casos 3 e 4, q u a n d o a aquisição tem caráter de empresa
permanente; nos demais casos, n e m sempre.
B . Rendas e rendimentos d e propriedade (vinculados ao e x e r c í c i o de poder de
disposição sobre meios de o b t e n ç ã o importantes).
I . Normalmente " r e n d a s l í q u i d a s " depois da d e d u ç ã o dos custos:
1) rendas de propriedade h u m a n a (escravos, servos o u l i b e r t a d o s ) e m espécie
ou d i n h e i r o , fixas o u e m participação ( d e d u ç ã o dos custos de s u s t e n t o )
2 ) rendas senhoriais apropriadas ( d e d u ç ã o dos custos de a d m i n i s t r a ç ã o )
3 ) rendas de terras ( p a r c e r i a , arrendamento f i x o , e m e s p é c i e o u d i n h e i r o , rendas
provenientes de direitos territoriais — d e d u ç ã o dos impostos e custos de c o n s e r v a ç ã o )
4 ) rendas de casas ( d e d u ç ã o dos custos de c o n s e r v a ç ã o )
5 ) rendas de m o n o p ó l i o s apropriados (direitos de p r o s c r i ç ã o , patentes — d e d u ç ã o
das taxas).
I I . Normalmente s e m d e d u ç ã o de custos:
6 ) rendas de instalações (pela p e r m i s s ã o da utilização das mesmas (capítulo I I ,
§ 11) mediante pagamento de " j u r o s ' p o r gestões patrimoniais o u gestões e c o n ô m i c a s
aquisitivas)
138 MAX WEBER

7 ) rendas de p e c u á r i a ;
8 ) " j u r o s " de e m p r é s t i m o s e emolumentos e m e s p é c i e ;
9 ) " j u r o s " de e m p r é s t i m o s e m d i n h e i r o ;
10) rendas hipotecárias e m d i n h e i r o ;
11) rendas de títulos e v a l o r e s , e m dinheiro, que p o d e m ser:
a ) fixas ( " j u r o s " ) o u
b) variáveis, segundo a rentabilidade (tipo: os chamados dividendos),
12) outras participações e m lucros (cf. A I I , 1 )
1. participações ocasionais e participações racionais e lucros especulativos;
2. participações racionais e permanentes no l u c r o de rentabilidade de e m p r e e n -
dimentos de todas as espécies.
Os " l u c r o s " e as " r e n d a s " de títulos e valores n ã o s ã o convencionados o u então
apenas convencionados e m seus pressupostos (preços de troca, cláusulas contratuais).
Juros e salários f i x o s , arrendamentos e aluguéis s ã o rendas convencionadas; os lucros
derivados de d o m i n a ç ã o , propriedade de pessoas, p o d e r f u n d i á r i o e e s p o l i a ç ã o são
rendas ou rendimentos apropriados à força. A r e n d a de propriedade pode ser renda
sem atividade profissional quando q u e m a recebe d e i x a a outros a v a l o r i z a ç ã o da pro-
priedade. Salários, r e m u n e r a ç õ e s , ganhos provenientes de trabalho a u t ô n o m o e lucros
de e m p r e s á r i o s s ã o rendas profissionais; as demais classes de rendas e lucros p o d e m
ser profissionais o u n ã o (ainda n ã o se pretende a q u i apresentar u m a casuística)
D e caráter eminentemente dinâmico — economicamente r e v o l u c i o n á r i o — , entre,
todas estas classes de r e n d a , s ã o as que p r o v ê m de lucros de e m p r e s á r i o (A I I , 1 ) e
rendimentos de trabalho l i v r e ou convencionado (A í, i e 4 ) , e, e m segundo lugar,
os lucros livres provindos de atos de troca e, e m outra f o r m a e e m certas circunstâncias,
os lucros de e s p ó l i o (A I I , 3 )
E m i n e n t e m e n t e estáticas — economicamente conservadoras — s ã o as rendas esca-
lonadas (salários) salários por tempo, ganhos oriundos de cargos p ú b l i c o s e ( n o r m a l -
m e n t e ) todos os ganhos de rentistas.
Fonte econômica de rendas (na e c o n o m i a de t r o c a ) é, na m a i o r i a dos casos, a
constelação d ê troca no m e r c a d o de bens materiais e de trabalho, portanto, e m última
instância, as avaliações dos consumidores, e m c o m b i n a ç ã o c o m a p o s i ç ã o m o n o p ó l i c a ,
natural o u estatuída, mais ou menos forte do adquirente.
Fonte e c o n ô m i c a de rendimentos (na economia n ã o - m o n e t á r i a ) é, e m r e g r a , a
a p r o p r i a ç ã o m o n o p ó l i c a de oportunidades de v a l o r i z a ç ã o de propriedade o u serviços,
c o m recebimento de contraprestações.
Por trás de todas essas rendas está apenas a eventualidade da violência na p r o t e ç ã o
das oportunidades apropriadas (veja capítulo I I , § 1 , t ó p i c o 4 ) A e s p o l i a ç ã o e os modos
de aquisição afins s ã o produtos de violência efetiva. Este e s b o ç o muito rudimentar
e l i m i n a , por enquanto, toda casuística.

Apesar de discordar em muitos aspectos particulares, considero, nos trabalhos de R. LIEFMAIM,


as passagens sobre a "renda" entre as mais valiosas. Não pretendo aqui examinar mais de peno
o problema econômico. As conexões entre a dinâmica econômica e a ordem social serão retomadas
seguidamente mais adiante.
Capítulo III

OS TIPOS DE DOMINAÇÃO

1. A vigência da legitimidade

§ 1 . Segundo a d e f i n i ç ã o já dada (capítulo I , § 16), c h a m a m o s " d o m i n a ç ã o " a


probabilidade de encontrar o b e d i ê n c i a p a r a ordens específicas (ou todas) dentro de
determinado g r u p o de pessoas. N ã o significa, portanto, toda e s p é c i e de possibilidade
de e x e r c e r " p o d e r " o u " i n f l u ê n c i a " sobre o u t r a s pessoas. E m cada caso i n d i v i d u a l ,
a d o m i n a ç ã o ( " a u t o r i d a d e " ) assim definida pode basear-se nos mais diversos motivos
de submissão: desde o h á b i t o inconsciente até c o n s i d e r a ç õ e s puramente racionais, refe-
rentes a fins. Certo m í n i m o de vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo o u
interno>na o b e d i ê n c i a , faz parte de toda r e l a ç ã o autêntica de d o m i n a ç ã o .
N e m toda d o m i n a ç ã o se s e r v e de meios e c o n ô m i c o s . E ainda muito m e n o s t e m
fins e c o n ô m i c o s . Mas toda d o m i n a ç ã o de u m a pluralidade de pessoas r e q u e r n o r m a l -
mente (não i n v a r i a v e l m e n t e ) u m quadro de pessoas (quadro administrativo, v e j a capí-
tulo I , § 12), isto é, a probabilidade ( n o r m a l m e n t e ) c o n f i á v e l d e que haja u m a ação
dirigida especialmente à e x e c u ç ã o de disposições gerais e ordens concretas, p o r parte
de pessoas identificáveis c o m cuja o b e d i ê n c i a se pode contar. E s s e q u a d r o administrativo
pode estar v i n c u l a d o à o b e d i ê n c i a ao senhor ( o u aos s e n h o r e s ) p o r costume o u de
m o d o puramente afetivo, o u por interesses materiais o u p o r motivos ideais (racionais
referentes a valores). A natureza desses motivos d e t e r m i n a e m a m p l o g r a u o tipo de
d o m i n a ç ã o . Motivos puramente materiais e racionais referentes a fins da v i n c u l a ç ã o
entre senhor e q u a d r o administrativo significam, a q u i , b e m c o m o e m todos os demais
casos, u m a r e l a ç ã o relativamente instável. E m r e g r a , e n t r a m nessas relações t a m b é m
outros motivos — afetivos o u racionais referentes a v a l o r e s . E m casos extracotidianos,
estes p o d e m ser os únicos decisivos. No cotidiano, essas e outras relações s ã o dominadas
pelo costume e, a l é m disso, p o r interesses materiais e racionais referentes a fins. Mas
n e m o costume o u a situação de interesses, n e m os motivos p u r a m e n t e afetivos o u
racionais referentes a v a l o r e s da v i n c u l a ç ã o p o d e r i a m constituir fundamentos confiáveis
de u m a d o m i n a ç ã o . Normalmente, junta-se a esses fatores outro elemento: a crença
na legitimidade.
C o n f o r m e ensina a e x p e r i ê n c i a , n e n h u m a d o m i n a ç ã o contenta-se voluntariamente
c o m motivos p u r a m e n t e materiais o u afetivos o u racionais referentes a v a l o r e s , c o m o
possibilidades de sua persistência. Todas p r o c u r a m despertar e cultivar a crença e m
sua " l e g i t i m i d a d e " . D e p e n d e n d o d a natureza da legitimidade pretendida d i f e r e m o
tipo da o b e d i ê n c i a e d o q u a d r o administrativo destinadp a garanti-la, b e m c o m o o
caráter do e x e r c í c i o da d o m i n a ç ã o . E t a m b é m , c o m isso, seus efeitos. Por isso, é conve-
niente distinguir as classes de d o m i n a ç ã o segundo suas pretensões típicas à legitimidade.
Para esse f i m , é prático p a r t i r de c o n d i ç õ e s m o d e r n a s e, portanto, conhecidas.
140 MAX WEBER

1. A decisão de escolher para a distinção este ponto de partida e nenhum outro só pode
ser justificada pelo resultado A circunstância de que, dessa maneira, outros traços discriminativos
típicos passam, por enquanto, para o segundo plano e só mais tarde possam ser incluídos na
análise não parece um inconveniente decisivo. A "legitimidade" de uma dominação — já que
guarda relações bem definidas para com a legitimidade da "propriedade" — tem um alcance
que de modo algum é puramente "ideal".
2. Nem toda "pretensão" convencional ou juridicamente garantida pode ser chamada "rela-
ção de dominação". De outro modo, o trabalhador, na proporção de sua pretensão salarial,
seria "senhor" do empregador, já que a seu pedido pode ser-lhe posto à disposição um executor
de medidas judiciais. Na verdade, formalmente, ele é, em relação ao outro, parceiro numa
troca, com "direito" a receber determinadas prestações. No entanto, o conceito de relação de
dominação não exclui a possibilidade de esta ter surgido em virtude de um contrato formalmente
livre: assim, a dominação do patrão sobre o trabalhador, que se manifesa nos regulamentos
e instruções de trabalho, ou do senhor sobre o vassalo, que entra voluntariamente na relação
feudal. A circunstância de que a obediência em virtude de disciplina militar é formalmente "invo-
luntária", enquanto que a obediência em virtude de disciplina de oficina é formalmente "volun-
tária", nada muda no fato de que também a disciplina de oficina é submissão a uma dominação.
Também o cargo de funcionário público é assumido por contrato e é denunciável, e mesmo
a relação de "súdito" pode ser aceita e (dentro de certos limites) desfeita voluntariamente. A
involuntariedade absoluta só existe no caso do escravo. Por outro lado, não se pode chamar
"dominação" qualquer "poder" econômico condicionado por situação monopólica, isto é, neste
caso, a possibilidade de "ditar" aos parceiros as condições da troca, assim como qualquer outra
"influência" condicionada por superioridade erótica, esportiva, argumentativa etc. Quando um
grande banco é capaz de impor a outros um "cartel de condições", isto não se pode chamar
"dominação" enquanto não exista uma relação de obediência imediata, de forma que sejam
dadas e controladas em sua execução instruções por sua direção, com a pretensão e a probabi-
lidade de que sejam respeitadas pura e simplesmente como tais. Naturamente, nesse caso, como
em todos os demais, a transição é fluida: da responsabilidade por dívidas até a escravização
por dívidas existem todas as situações intermédias possíveis. E a posição de um "salão" pode
chegar aos limites de uma situação de poder autoritária, mas nem por isso ser "dominação".
Na realidade, uma diferenciação exata é muitas vezes impossível, e justamente por isso torna-se
maior a necessidade de conceitos claros.
3. A "legitimidade" de uma dominação deve naturalmente ser considerada apenas uma
probabilidade de, em grau relevante, ser reconhecida e praticamente tratada como tal. Nem
de longe ocorre que toda obediência a uma dominação esteja orientada primordialmente (ou,
pelo menos, sempre) por essa crença. A obediência de um indivíduo ou de grupos inteiros pode
ser dissimulada por uma questão de oportunidade, exercida na prática por interesse material
próprio ou aceita como inevitável por fraqueza e desamparo individuais. Mas isso não é decisivo
para identificar uma dominação. O decisivo é que a própria pretensão de legitimidade, por
sua natureza, seja "válida" em grau relevante, consolide sua existência e determine, entre outros
fatores, a natureza dos meios de dominação escolhidos. Uma dominação pode também estar
garantida de modo tão absoluto — caso freqüente na prática — por uma comunidade evidente
de interesses entre o senhor e seu quadro administrativo (guardas pessoais, pretorianos, guardas
"vermelhos" ou "brancos") perante os dominados e sua situação indefesa a ponto de ela própria
estar em condições de desdenhar toda pretensão de "legitimidade". Mas mesmo nesse caso
a natureza da relação de legitimidade entre o senhor e o quadro administrativo pode ser bem
diversa, dependendo da natureza do fundamento de autoridade que existe entre eles, sendo
esta consideravelmente decisiva para a estrutura da dominação, como se mostrará mais tarde.
4. "Obediência" significa, para nós, que a ação de quem obedece ocorre substancialmente
como se este tivesse feito do conteúdo da ordem e em nome dela a máxima de sua conduta,
e isso unicamente em virtude da relação formal de obediência, sem tomar em consideração
a opinião própria sobre o valor ou desvalor da ordem como tal.
5. Do ponto de vista puramente psicológico, a cadeia causal pode-mostrar formas diferentes;
pode ser, especialmente, "inspiração" ou. "intuição". No entanto, essa distinção não é útil para
a construção dos tipos de dominação.
ECONOMIA E SOCIEDADE 141

6. O âmbito da influência com caráter de dominação sobre as relações sociais e os fenôme-


nos culturais é muito maior do que parece à primeira vista. Por exemplo, é a dominação que
se exerce na escola que se reflete nas formas de linguagem oral e escrita consideradas ortodoxas.
Os dialetos que funcionam como linguagem oficial das associações políticas autocéfalas, portanto,
de seus regentes, vieram a ser essas formas ortodoxas de linguagem oral e escrita e levaram
às separações "nacionais" (por exemplo, entre a Alemanha e a Holanda) Mas a dominação
exercida pelos pais e pela escola estende-se para muito além da influência sobre aqueles bens
culturais (aparentemente apenas) formais até a formação do caráter dos jovens e, com isso,
dos homens.
7. A circunstância de o dirigente e o quadro administrativo de uma associação aparecerem
formalmente como "servidores" dos dominados, não constitui, naturalmente, nenhuma prova
contra o caráter de "dominação". Mais tarde voltaremos a falar particularmente dos fenômenos
materiais da chamada "democracia". E m quase todos os casos concebíveis, cabe atribuir ao
dirigente e ao quadro um mínimo de mando decisivo e, portanto, de "dominação".

§ 2. H á três tipos puros de d o m i n a ç ã o legítima. A v i g ê n c i a de sua legitimidade


pode ser, p r i m o r d i a l m e n t e :
1. de caráter racional: baseada na crença na legitimidade das ordens estatuídas
e do direito de m a n d o daqueles que, e m v i r t u d e dessas ordens, estão nomeados p a r a
e x e r c e r a d o m i n a ç ã o ( d o m i n a ç ã o legal), o u
2. de caráter tradicional: baseada na crença cotidiana na santidade das tradições
vigentes desde s e m p r e e na legitimidade daqueles que, e m v i r t u d e dessas tradições,
representam a autoridade ( d o m i n a ç ã o tradicional), o u , p o r f i m ,
3- de caráter carismático: baseada n a v e n e r a ç ã o extracotidiana da santidade, do
poder h e r ó i c o o u do caráter e x e m p l a r de u m a pessoa e das ordens p o r esta reveladas
o u criadas ( d o m i n a ç ã o carismática).
No caso da d o m i n a ç ã o baseada e m estatutos, obedece-se à ordem impessoal,
objetiva e legalmente estatuída e aos superiores p o r ela determinados, e m virtude da
legalidade f o r m a l de suas disposições e dentro d o â m b i t o de v i g ê n c i a destas. No caso
da d o m i n a ç ã o tradicional, obedece-se à pessoa do senhor nomeada pela tradição e
vinculada a esta (dentro d o â m b i t o de v i g ê n c i a dela), e m v i r t u d e de d e v o ç ã o aos hábitos
costumeiros. No caso da d o m i n a ç ã o carismática, obedece-se ao líder carismaticamente
qualificado c o m o t a l , e m v i r t u d e de c o n f i a n ç a pessoal e m r e v e l a ç ã o , h e r o í s m o o u e x e m -
plaridade dentro do â m b i t o da crença nesse seu c a r i s m a .

1. A utilidade desta classificação só pode ser comprovada pelo resultado que traz no que
se refere à sistemática. O conceito de "carisma" ("graça")foi tomado da terminologia do cristia-
nismo primitivo. Para a hierocracia cristã, quem primeiro elucidou o conceito, porém sem explicar
a terminologia, foi Rudolph SOKM em Kirchenrecht, seguido por outros (por exemplo, Karl Hon),
em Enthusiasmus und Bussgewalt [1898] que escreveram sobre cenas conseqüências importantes
dele. O conceito, portanto, não é novo.
2. O fato de que nenhum dos três tipos ideais, a serem examinados mais de perto no
que segue, costuma existir historicamente em forma realmente " p u r a " , não deve impedir em
ocasião alguma a fixação do conceito na forma mais pura possível. Mais adiante (§ 11 e seg.),
será considerada a transformação do carisma puro ao ser absorvido pelo cotidiano e ao aproxi-
mar-se assim substancialmente das formas de dominação empíricas. Mas ainda assim vale para
todo fenômeno histórico empírico de dominação que ele não costuma ser um "livro bem racioci-
nado". E a tipologia sociológica oferece ao trabalho histórico empírico somente a vantagem
— que freqüentemente não deve ser subestimada — de poder dizer, no caso particular de uma
forma de dominação, o que há nele de "carismático", de "carisma hereditário" (§§ 10, 11)
de "carisma institucional", de "patriarcal" (§ 7 ) de "burocrático" (§ 4 ) de "estamental" e t c ,
ou seja, em quê ela se aproxima de um destes tipos, além da de trabalhar com conceitos razoável-
142 MAX WEBER

mente inequívocos. Nem de longe se cogita aqui sugerir que toda a realidade histórica pode
ser "encaixada" no esquema conceituai desenvolvido no que segue.

2. A d o m i n a ç ã o l e g a l c o m q u a d r o a d m i n i s t r a t i v o b u r o c r á t i c o

Observação preliminar-. Partimos aqui deliberadamente da forma de administração especi-


ficamente moderna, para poder depois contrastar com esta as outras formas.

§ 3- A d o m i n a ç ã o legal baseia-se na v i g ê n c i a das seguintes idéias, entrelaçadas


entre s i :
1. que todo direito, mediante pacto o u i m p o s i ç ã o , pode ser estatuído de m o d o
racional — r a c i o n a l referente a fins o u racional referente a v a l o r e s ( o u ambas as coisas)
— c o m a p r e t e n s ã o de s e r respeitado pelo m e n o s pelos m e m b r o s da associação, mas
t a m b é m , e m r e g r a , p o r pessoas que, dentro do â m b i t o de poder desta ( e m caso de
associações territoriais: dentro do território), r e a l i z e m a ç õ e s sociais o u e n t r e m e m deter-
minadas relações sociais, declaradas relevantes pela o r d e m da associação;
2. que todo direito é, segundo sua essência, u m cosmos de regras abstratas, nor-
malmente estatuídas c o m determinadas intenções; que a judicatura é a a p l i c a ç ã o dessas
regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses p r e -
vistos pelas ordens da associação, dentro dos limites das n o r m a s jurídicas e segundo
princípios indicáveis de f o r m a g e r a l , os quais e n c o n t r a m a p r o v a ç ã o o u pelo m e n o s
n ã o s ã o desaprovados nas ordens da associação;
3. que, portanto, o senhor legal típico, o " s u p e r i o r " , enquanto o r d e n a e, c o m
isso, m a n d a , obedece por sua parte à o r d e m impessoal pela qual orienta suas dispo-
sições;

Isto se aplica também ao senhor legal que não é "funcionário público", por exemplo,
o presidente eleito de um Estado.

4. que — c o m o se costuma expressá-lo — q u e m obedece s ó o faz c o m o membro


da associação e s ó obedece " a o d i r e i t o " ;

Como membro de uma união, comunidade, igreja; no Estado: como cidadão.

5. que se aplica, e m c o r r e s p o n d ê n c i a c o m o t ó p i c o 3, a idéia de que os m e m b r o s


da associação, ao obedecerem ao senhor, n ã o o f a z e m à pessoa deste mas, s i m , àquelas
ordens impessoais e que, por isso, s ó estão obrigados à o b e d i ê n c i a dentro da compe-
tência objetiva, racionalmente limitada, que lhe f o i atribuída p o r essas ordens.

A s categorias fundamentais da d o m i n a ç ã o r a c i o n a l s ã o , portanto,


1. u m e x e r c í c i o c o n t í n u o , v i n c u l a d o a determinadas regras, de f u n ç õ e s oficiais,
dentro de
2. determinada competência, o que significa:
a) u m â m b i t o objetivamente limitado, e m v i r t u d e da distribuição dos serviços,
de serviços o b r i g a t ó r i o s ,
b) c o m atribuição dos poderes de m a n d o eventualmente requeridos e
c ) limitação f i x a dos meios coercivos eventualmente admissíveis e das c o n d i ç õ e s
de sua aplicação.
A u m e x e r c í c i o organizado desta f o r m a denominamos "autoridade institucional".
ECONOMIA E SOCIEDADE 143

"Autoridade institucional" existe, neste sentido, naturalmente em grandes empresas priva-


das, partidos, exércitos, do mesmo modo que no "Estado" e na "igreja". Assim, também,, no
sentido desra terminologia o presidente eleito do Estado (ou o colégio dos ministros ou dos
"representantes do povo" eleitos) é uma "autoridade institucional". Mas essas categorias não
interessam por enquanto. Nem toda autoridade institucional tem "poderes de mando" neste
mesmo sentido-, mas tampouco essa distinção interessa aqui.

A essas categorias se junta


3- o p r i n c í p i o da hierarquia oficial, isto é, de o r g a n i z a ç ã o de instâncias f i x a s
de controle e supervisão p a r a cada autoridade institucional, c o m o direito de a p e l a ç ã o
o u r e c l a m a ç ã o das subordinadas às superiores. Regula-se de f o r m a d i v e r s a a questão
de se e quando a própria instância de r e c l a m a ç ã o r e p õ e a disposição a ser alterada
por outra " c o r r e t a " o u d á as respectivas instruções à instância subordinada à q u a l se
refere a reclamação.
4. As " r e g r a s " segundo as quais se procede p o d e m ser:
a) regras técnicas;
b) n o r m a s .
Na aplicação destas, p a r a atingir racionalidade p l e n a , é necessária, e m a m b o s
os casos, u m a qualificação profissional. Normalmente, portanto, s ó estão qualificados
à participação no quadro administrativo de u m a associação os que p o d e m c o m p r o v a r
u m a especialização profissional, e s ó estes p o d e m ser aceitos c o m o funcionários. Os
" f u n c i o n á r i o s " constituem tipicamente o quadro administrativo de associações racio-
nais, s e j a m estas políticas, hierocráticas, e c o n ô m i c a s (especialmente, capitalistas) o u
outras.
5. Aplica-se ( e m caso de r a c i o n a l i d a d e ) o p r i n c í p i o da s e p a r a ç ã o absoluta entre
o quadro administrativo e os meios de administração e p r o d u ç ã o . O s f u n c i o n á r i o s ,
empregados e trabalhadores d o q u a d r o administrativo n ã o estão de posse dos meios
materiais de administração e p r o d u ç ã o , mas os r e c e b e m e m e s p é c i e ou e m d i n h e i r o
e t ê m responsabilidade contábil. Aplica-se o p r i n c í p i o da s e p a r a ç ã o absoluta entre o
p a t r i m ô n i o (ou capital) da instituição ( e m p r e s a ) e o p a t r i m ô n i o p r i v a d o (da g e s t ã o patri-
m o n i a l ) , b e m c o m o entre o local das atividades profissionais (escritório) e o d o m i c í l i o
dos f u n c i o n á r i o s .
6. E m caso de racionalidade p l e n a , n ã o há qualquer a p r o p r i a ç ã o do cargo pelo
detentor. Q u a n d o está constituído u m " d i r e i t o " ao " c a r g o " (como, p o r e x e m p l o , no
caso dos juízes e, recentemente, n o de s e ç õ e s crescentes dos f u n c i o n á r i o s públicos
e m e s m o dos trabalhadores), ele n ã o s e r v e n o r m a l m e n t e p a r a o f i m de u m a a p r o p r i a ç ã o
pelo f u n c i o n á r i o , mas s i m p a r a garantir seu trabalho de caráter puramente objetivo
( " i n d e p e n d e n t e " ) , apenas v i n c u l a d o a determinadas n o r m a s , n o respectivo cargo.
7. Aplica-se o p r i n c í p i o da documentação dos processos administrativos, m e s m o
nos casos e m que a discussão o r a l é, na prática, a regra o u até consta n o regulamento:
pelo m e n o s as c o n s i d e r a ç õ e s p r e l i m i n a r e s e requisitos, b e m c o m o a s decisões, dispo-
sições e o r d e n a ç õ e s finais, de todas as espécies, estão fixadas p o r escrito. A documen-
tação e o e x e r c í c i o c o n t í n u o d e atividades pelos funcionários constituem, e m conjunto,
o escritório, c o m o ponto essencial de toda m o d e r n a a ç ã o da associação.
8. A d o m i n a ç ã o legal pode assumir f o r m a s muito diversas, das quais f a l a r e m o s
mais tarde e m particular. Limitar-nos-emos, e m seguida, à análise típico-ideal da estru-
tura de dominação m a i s p u r a dentro d o quadro administrativo-, do " f u n c i o n a l i s m o " ,
o u seja, da " b u r o c r a c i a " .

O fato de deixarmos de lado a natureza típica do dirigente se explica por circunstâncias


que só mais adiante serão totalmente compreensíveis. Alguns tipos muito importantes de domi-
144 MAX WEBER

nação racional pertencem formalmente, por seu dirigente, a outras categorias (carismático-here-
ditários: monarquia hereditária; carismáticos: presidente plebiscitário), outros são materialmen-
te, em aspectos importantes, de caráter racional, porém construídos numa forma intermediária
entre burocracia e carismatismo (governo de gabinete), e outros, por fim, são liderados pelos
dirigentes (carismáticos ou burocráticos)de outras associações ("partidos", ministérios de parti-
do) O tipo do quadro administrativo racional legal é suscetível de aplicação universal e é o
mais importante na vida cotidiana, pois na vida cotidiana dominação é, em primeiro lugar, admi-
nistração.

§ 4. O tipo mais p u r o de d o m i n a ç ã o legal é aquele que se e x e r c e p o r m e i o de


u m quadro administrativo burocrático. Somente o dirigente da associação possui sua
posição de senhor, e m v i r t u d e o u de a p r o p r i a ç ã o o u de e l e i ç ã o o u de d e s i g n a ç ã o da
sucessão. Mas suas c o m p e t ê n c i a s senhoriais s ã o t a m b é m c o m p e t ê n c i a s legais. O con-
junto do quadro administrativo se c o m p õ e , no tipo mais p u r o , de funcionários indivi-
duais ( m o n o c r a c i a , e m o p o s i ç ã o à " c o l e g i a l i d a d e " , da q u a l f a l a r e m o s mais tarde), os
quais:
1. s ã o pessoalmente l i v r e s ; obedecem somente às o b r i g a ç õ e s objetivas de seu
cargo;
2. são nomeados (e n ã o eleitos) n u m a hierarquia rigorosa dos cargos;
3. têm competências funcionais fixas;
4. e m v i r t u d e de u m contrato, portanto, (ern p r i n c i p i o ) sobre a base de l i v r e
seleção segundo
5. a qualificação profissional — n o caso mais r a c i o n a l : q u a l i f i c a ç ã o v e r i f i c a d a
mediante p r o v a e certificada por d i p l o m a ;
6. são r e m u n e r a d o s c o m salários f i x o s e m dinheiro, na m a i o r i a dos casos c o m
direito a aposentadoria; e m certas c i r c u n c f â n c i a s (especialmente e m empresas privadas),
podem ser demitidos pelo patrão, p o r é m s e m p r e p o d e m demitir-se por sua vez; seu
salário está escalonado, e m p r i m e i r o lugar, segundo a p o s i ç ã o na h i e r a r q u i a e, a l é m
disso, segundo a responsabilidade do cargo e o p r i n c í p i o da c o r r e s p o n d ê n c i a à posição
social (capítulo I V ) ;
7. e x e r c e m seu cargo c o m o profissão única o u p r i n c i p a l ;
8. t ê m a perspectiva de uma c a r r e i r a : " p r o g r e s s ã o " p o r tempo de s e r v i ç o ou
2ficiência, o u ambas as coisas, dependendo do critério dos superiores;
9. t r a b a l h a m e m " s e p a r a ç ã o absoluta dos meios a d m i n i s t r a t i v o s " e s e m apro-
Driação do cargo;
10. estão submetidos a u m sistema rigoroso e h o m o g ê n e o de disciplina e controle
do serviço.
Esta o r d e m é aplicável igualmente, e m princípio, e historicamente c o m p r o v a d a
(em m a i o r o u m e n o r a p r o x i m a ç ã o ao tipo p u r o ) , e m empreendimentos da economia
iquisitiva, caritativos o u outros quaisquer, c o m fins privados de natureza ideal o u mate-
rial, b e m c o m o e m associações políticas o u hierocráticas.

1. Por exemplo, a burocracia das clínicas privadas é em princípio idêntica à dos hospitais
le fundações ou ordens religiosas. A chamada moderna "capelanocracia": a expropriação das
mtigas prebendas eclesiásticas, em grande parte apropriadas, mas também o episcopado universal
(como "competência" formal universal)e a infalibilidade (como "competência" material univer-
>al, válida somente ex cathedra, no cargo, portanto, com a separação típica entre atividade
'oficial" e "privada") são fenômenos tipicamente burocráticos. O mesmo se aplica às grandes
empresas capitalistas, e tanto mais quanto maiores sejam elas, e não menos ao funcionamento
los partidos (do qual falaremos ainda em particular) ou ao moderno exército burocrático, liderado
yor funcionários militares de tipo especial, chamados "oficiais".
144 MAX WEBER

nação racional pertencem formalmente, por seu dirigente, a outras categorias (carismático-here-
ditários: monarquia hereditária; carismáticos: presidente plebiscitário), outros são materialmen-
te, em aspectos importantes, de caráter racional, porém construídos numa forma intermediária
entre burocracia e carismatismo (governo de gabinete), e outros, por fim, são liderados pelos
dirigentes (carismáticos ou burocráticos)de outras associações ("partidos", ministérios de parti-
do) O tipo do quadro administrativo racional legal é suscetível de aplicação universal e é o
mais importante na vida cotidiana, pois na vida cotidiana dominação é, em primeiro lugar, admi-
nistração.

§ 4. O tipo mais p u r o de d o m i n a ç ã o legal é aquele que se e x e r c e p o r meio de


u m quadro administrativo burocrático. Somente o dirigente da associação possui sua
p o s i ç ã o de senhor, e m v i r t u d e o u de a p r o p r i a ç ã o o u de e l e i ç ã o ou de d e s i g n a ç ã o da
sucessão. Mas suas c o m p e t ê n c i a s senhoriais s ã o t a m b é m c o m p e t ê n c i a s legais. O con-
junto do quadro administrativo se c o m p õ e , n o tipo mais p u r o , de funcionários indivi-
duais ( m o n o c r a c i a , e m o p o s i ç ã o à " c o l e g i a l i d a d e " , da q u a l falaremos mais tarde), os
quais:
1. são pessoalmente livres; obedecem somente às o b r i g a ç õ e s objetivas d e seu
cargo;
2. s ã o nomeados (e n ã o eleitos) n u m a hierarquia rigorosa dos cargos;
3. t ê m competências funcionais fixas;
4. e m v i r t u d e de u m contrato, portanto, (ern p r i n c i p i o ) sobre a base de l i v r e
seleção segundo
5. a qualificação profissional — n o caso mais r a c i o n a l : qualificação v e r i f i c a d a
mediante p r o v a e certificada p o r diploma;
6. são r e m u n e r a d o s c o m salários fixos e m dinheiro, na m a i o r i a dos casos c o m
direito a aposentadoria; e m certas c i r c u n c t â n c i a s (especialmente e m empresas privadas),
p o d e m ser demitidos pelo patrão, p o r é m s e m p r e p o d e m demitir-se p o r sua vez; seu
salário está escalonado, e m p r i m e i r o lugar, segundo a p o s i ç ã o na h i e r a r q u i a e, a l é m
disso, segundo a responsabilidade do cargo e o princípio da c o r r e s p o n d ê n c i a à posição
social (capítulo I V ) ;
7. e x e r c e m seu cargo c o m o profissão única o u p r i n c i p a l ;
8. têm a perspectiva de u m a c a r r e i r a : " p r o g r e s s ã o " p o r tempo de serviço ou
eficiência, o u ambas as coisas, dependendo do critério dos superiores;
9. trabalham e m " s e p a r a ç ã o absoluta dos meios administrativos" e sem apro-
p r i a ç ã o do cargo;
10. estão submetidos a u m sistema rigoroso e h o m o g ê n e o de disciplina e controle
do serviço.
Esta o r d e m é aplicável igualmente, e m p r i n c í p i o , e historicamente c o m p r o v a d a
( e m m a i o r o u m e n o r a p r o x i m a ç ã o ao tipo p u r o ) , e m empreendimentos da economia
aquisitiva, caritativos ou outros quaisquer, c o m fins privados de natureza ideal o u mate-
r i a l , b e m c o m o e m associações políticas o u hierocráticas.

1. Por exemplo, a burocracia das clínicas privadas é em princípio idêntica à dos hospitais
de fundações ou ordens religiosas. A chamada moderna "capelanocracia": a expropriação das
antigas prebendas eclesiásticas, em grande parte apropriadas, mas também o episcopado universal
(como "competência" formal universal)e a infalibilidade (como "competência" material univer-
sal, válida somente ex cathedra, no cargo, portanto, com a separação típica entre atividade
"oficial" e "privada") são fenômenos tipicamente burocráticos. O mesmo se aplica às grandes
empresas capitalistas, e tanto mais quanto maiores sejam elas, e não menos ao funcionamento
dos partidos (do qual falaremos ainda em particular)ou ao moderno exército burocrático, liderado
por funcionários militares de tipo especial, chamados "oficiais".
ECONOMIA E SOCIEDADE 145

2. A dominação burocrática realiza-se em sua forma mais pura onde rege, de modo mais
puro, o princípio da nomeação dos funcionários. Não existe, no mesmo sentido da hierarquia
de funcionários nomeados, uma hierarquia de funcionários eleitos, já que a própria disciplina
nunca pode alcançar o mesmo grau de rigor quando o funcionário subordinado pode prevale-
cer-se de sua eleição do mesmo modo que o superior e suas possibilidades não dependem do
juízo deste último (sobre os funcionários eleitos, veja § 14)
3. A nomeação por contrato, portanto, a livre seleção, é um elemento essencial da buro-
cracia moderna. Quando trabalham funcionários não-livres (escravos, ministeriais) dentro de
estruturas hierárquicas, com competências objetivas, portanto, de modo burocrático formal,
falamos de "burocracia patrimonial".
4. O grau de qualificação profissional cresce continuamente na burocracia. Também os
funcionários dos partidos e sindicatos precisam de conhecimento específico (empiricamente ad-
quirido) A circunstância de os "ministros" e "presidentes do Estado" modernos serem os únicos
"funcionários" dos quais não se exige qualificação profissional alguma demonstra que eles são
funcionários apenas no sentido formal da palavra, tão material, do mesmo modo que o "diretor-
geral" de uma grande sociedade anônima privada. E , além disso, a posição do empresário capita-
lista está tão apropriada quanto a do "monarca". No fqpo da dominação burocrática existe,
portanto, inevitavelmente pelo menos um elemento que não tem caráter puramente burocrático.
Representa apenas uma categoria de dominação mediante um quadro administrativo especial.
5. O salário fixo é o normal. (Denominamos "prebendas" as receitas apropriadas de emo-
lumentos; sobre o conceito, veja § 8 . ) Também normal é o salário em dinheiro. Esta não é,
de modo algum, uma característica substancial do conceito; mas corresponde de forma mais
pura ao tipo. (Emolumentos em espécie têm caráter de "prebenda". A prebenda é normalmente
uma categoria da apropriação de oportunidades de aquisição e de cargos.) Mas as transições
aqui são totalmente fluidas, conforme mostram precisamente estes exemplos. As apropriações
em virtude de arrendamento, compra ou penhora de cargos não pertencem à burocracia pura,
mas, sim, a outra categoria (§ 7 a, 3, no final)
6. "Cargos" como "profissão acessória" e "cargos honoríficos" pertencem a categorias
a serem examinadas mais tarde (§ 19 e seg.) O funcionário "burocrático" típico exerce seu
cargo como profissão principal.
7. A separação dos meios administrativos é realizada exatamente no mesmo sentido nas
burocracias pública e privada (por exemplo, na grande empresa capitalista)
8. As "autoridades institucionais" de caráter colegial serão consideradas em particular
mais adiante (§ 15) Estão diminuindo rapidamente em favor da direção efetivamente e, na maioria;
dos casos, também formalmente monocrática (por exemplo, na Prússia, os "governos" colegiais1
há muito tempo deram lugar ao presidente monocrático) O decisivo para essa tendência é o
interesse numa administração rápida, inequívoca e por isso independente de compromissos e
variações de opinião da maioria.
9. E claro que os oficiais modernos constituem uma categoria de funcionários nomeados
com características estamentais particulares, das quais falaremos em outra ocasião (capítulo IV),
em contraste com a de líderes eleitos, os condottieri carismáticos (§ 10) por um lado, e, por
outro, além dos oficiais empresários capitalistas (exército de mercenários), os compradores de
cargos de oficiais (§ 7 a, no final) As transições podem ser fluidas. Os "servidores" patrimoniais,
separados dos meios administrativos, e os empresários capitalistas de exércitos foram, assim
como, freqüentemente, os empresários capitalistas privados, precursores da burocracia moderna.
Os pormenores serão dados mais adiante.

§ 5. A administração puramente burocrática, portanto, a administração burocráti-


c o - m o n o c r á t i c a mediante d o c u m e n t a ç ã o , considerada d o ponto de vista f o r m a l , é, se-
g u n d o toda a e x p e r i ê n c i a , a f o r m a mais racional de e x e r c í c i o de d o m i n a ç ã o , p o r q u e
nela se alcança tecnicamente o m á x i m o de rendimento e m v i r t u d e de p r e c i s ã o , continui-
dade, disciplina, rigor e confiabilidade — isto é , calculabilidade tanto p a r a o senhor
quanto p a r a os demais interessados — , intensidade e extensibilidade dos serviços, e
aplicabilidade formalmente u n i v e r s a l a todas as espécies de tarefas. O desenvolvimento
146 MAX WEBER

d e f o r m a s de associação " m o d e r n a s " e m todas as áreas (Estado, I g r e j a , e x é r c i t o , partido,


empresa e c o n ô m i c a , associação de interessados, u n i ã o , f u n d a ç ã o e o que mais s e j a )
é p u r a e simplesmente o m e s m o que o desenvolvimento e crescimento contínuos da
administração burocrática: o desenvolvimento desta constitui, p o r e x e m p l o , a célula
germinativa do m o d e r n o Estado ocidental. Q u e n i n g u é m se deixe enganar, n e m p o r
u m momento, p o r quaisquer instâncias aparentemente contrárias, sejam estas r e p r e s e n -
tações colegiadas de interessados o u c o m i s s õ e s parlamentares o u "ditaduras de comissá-
r i o s " o u f u n c i o n á r i o s h o n o r í f i c o s o u juízes leigos ( o u até resmungos contra " S ã o B u r o -
c r á c i o " ) , ao fato de que todo trabalho contínuo dos funcionários realiza-se e m escritó-
rios. T o d a nossa v i d a cotidiana está encaixada nesse quadro. Pois u m a v e z que a adminis-
tração burocrática é por toda parte — ceteris paribus — * mais racional d o ponto
de vista t é c n i c o - f o r m a l , ela é p u r a e simplesmente inevitável p a r a as necessidades da
administração de massas (de pessoas o u o b j e t o s ) S ó existe escolha entre " b u r o c r a -
t i z a ç ã o " e " d i l e t a n t i z a ç ã o " da administração, e o grande instrumento de superioridade
da administração burocrática é o conhecimento profissional, cuja indispensabilidade
absoluta está condicionada pela m o d e r n a técnica e e c o n o m i a da p r o d u ç ã o de bens,
esteja esta organizada de m o d o capitalista o u socialista — neste ú l t i m o caso, a p r e t e n s ã o
de atingir o mesmo rendimento técnico significaria u m aumento e n o r m e da importância
da b u r o c r a c i a especializada. D o m e s m o m o d o que os dominados s ó p o d e m defender-se
n o r m a l m e n t e contra u m a d o m i n a ç ã o burocrática existente criando u m a contra-orga-
n i z a ç ã o p r ó p r i a , t a m b é m sujeita à b u r o c r a t i z a ç ã o , o p r ó p r i o aparelho b u r o c r á t i c o é
obrigado a continuar funcionando e m v i r t u d e de interesses de natureza material o u
puramente objetiva, isto é, ideal: s e m ele, n u m a sociedade c o m separação dos funcio-
nários, empregados e trabalhadores dos meios administrativos e c o m indispensabilidade
de disciplina e qualificação, a possibilidade d e existência m o d e r n a acabaria p a r a todos,
menos para aqueles que ainda se encontrassem de posse dos meios de abastecimento
(os c a m p o n e s e s ) Para a r e v o l u ç ã o que chegou ao poder e p a r a o inimigo ocupante,
esse aparelho continua geralmente funcionando da m e s m a f o r m a que p a r a o g o v e r n o
legal até e n t ã o existente. Mas a questão é sempre: quem é que domina o aparelho
b u r o c r á t i c o existente. E essa d o m i n a ç ã o s e m p r e s ó é possivel de m o d o muito limitado
ao não profissional: na m a i o r i a das v e z e s , o conselheiro titular experiente está, ao
longo do tempo, e m c o n d i ç ã o s u p e r i o r à d o m i n i s t r o leigo, na i m p o s i ç ã o de sua vontade.
A necessidade de u m a administração c o n t í n u a , rigorosa, intensa e calculável, criada
historicamente pelo capitalismo — n ã o s ó , mas, s e m d ú v i d a , principalmente p o r ele
(este n ã o pode existir s e m a q u e l a ) — e que todo socialismo racional simplesmente
seria obrigado a adotar e até intensificar, condiciona esse destino da b u r o c r a c i a c o m o
n ú c l e o de toda administração de massas. Somente a pequena o r g a n i z a ç ã o (política,
hierocrática, e c o n ô m i c a o u de u n i ã o ) poderia e m boa medida dispensá-la. D o m e s m o
m o d o que o capitalismo, e m sua fase atual de desenvolvimento, exige a b u r o c r a c i a
— ainda que os dois tenham raízes históricas diversas — , ele constitui t a m b é m o funda-
m e n t o e c o n ô m i c o mais r a c i o n a l — p o r colocar fiscalmente à disposição dela os neces-
sários meios monetários — sobre o qual ela pode existir e m sua f o r m a m a i s racional.

A l é m de determinadas c o n d i ç õ e s fiscais, a administração burocrática p r e s s u p õ e ,


c o m o fator essencial, determinadas c o n d i ç õ e s técnicas de c o m u n i c a ç ã o e transporte.
Sua p r e c i s ã o exige a f e r r o v i a , o t e l é g r a f o , o telefone, e liga-se a estes e m extensão
crescente. Isso e m nada seria alterado p o r u m a o r d e m socialista. O p r o b l e m a é saber
(veja capítulo I I , § 12) se esta s e r i a capaz d e c r i a r c o n d i ç õ e s semelhantes às da o r d e m
capitalista p a r a u m a administração racional, o que significaria precisamente no caso
dela: u m a administração rigorosamente burocrática orientada p o r regras f o r m a i s ainda
m a i s fixas. E m caso c o n t r á r i o , t e r í a m o s de n o v o u m a daquelas grandes irracionalidades
ECONOMIA E SOCIEDADE 147

— a n t i n o m i a da racionalidade f o r m a l e r a c i o n a l — , que a Sociologia é levada a constatar


c o m tanta f r e q ü ê n c i a .
A d m i n i s t r a ç ã o burocrática significa: d o m i n a ç ã o e m v i r t u d e de conhecimento-, este
é seu caráter f u n d a m e n t a l especificamente r a c i o n a l . A l é m da p o s i ç ã o de f o r m i d á v e l
poder devida ao conhecimento profissional, a b u r o c r a c i a ( o u o senhor que dela se
s e r v e ) tem a tendência de fortalecê-la ainda mais pelo saber prático de serviço-, o conheci-
mento de fatos a d q u i r i d o n a e x e c u ç ã o das tarefas o u obtido v i a " d o c u m e n t a ç ã o " . O
conceito (não s ó , mas e s p e c i f i c a m e n t e ) b u r o c r á t i c o d o " s e g r e d o o f i c i a l " — c o m p a r á v e l ,
e m sua r e l a ç ã o ao conhecimento profissional, aos segredos das-empresas comerciais
no que concerne aos técnicos — p r o v é m dessa p r e t e n s ã o de poder.
Superior à b u r o c r a c i a , e m r e l a ç ã o ao c o n h e c i m e n t o . — conhecimento profissional
e dos fatos, dentro do â m b i t o de s e u s interesses — , é, e m r e g r a , somente o interessado
p r i v a d o c o m o r i e n t a ç ã o aquisitiva, isto é, o e m p r e s á r i o capitalista. Este constitui a única
instância r e a l m e n t e imune ( p e l o m e n o s , r e l a t i v a m e n t e ) à d o m i n a ç ã o i n e v i t á v e l p e l o
c o n h e c i m e n t o b u r o c r á t i c o r a c i o n a l . T o d o s os d e m a i s , d e n t r o d e suas a s s o c i a ç õ e s
de massas, e s t ã o i n a p e l a v e l m e n t e sujeitos ao d o m í n i o b u r o c r á t i c o , d o m e s m o m o d o
que à d o m i n a ç ã o m a t e r i a l d o e q u i p a m e n t o de p r e c i s ã o n a p r o d u ç ã o de bens e m
massa.
D o ponto de vista social, a d o m i n a ç ã o burocrática significa, e m g e r a l :
1. a tendência ao nivelamento n o interesse da possibilidade de recrutamento u n i -
versal a partir dos profissionalmente mais qualificados-,
2. a tendência à plutocratização no interesse de u m processo muito extenso de
qualificação profissional ( f r e q ü e n t e m e n t e quase até o f i m da terceira d é c a d a da v i d a ) ,
3. a d o m i n a ç ã o da impessoalidade formalista: sineira etstudio, s e m ó d i o e p a i x ã o ,
e, portanto, s e m " a m o r " e " e n t u s i a s m o " , sob a p r e s s ã o de simples conceitos de dever,
sem considerações pessoais, de m o d o f o r m a l m e n t e igual p a r a " c a d a q u a l " , isto é, cada
qual dos interessados que efetivamente se e n c o n t r a m e m situação igual — é assim
que o f u n c i o n á r i o ideal e x e r c e seu cargo.
Mas do m e s m o m o d o que a b u r o c r a t i z a ç ã o cria u m nivelamento estamental (ten-
dência n o r m a l e t a m b é m historicamente c o m p r o v á v e l c o m o tal), todo. nivelamento so-
cial, p o r sua v e z , fomenta a b u r o c r a c i a que, p o r toda parte, é a s o m b r a inescapável
da progressiva " d e m o c r a c i a de massas". E isso pela e l i m i n a ç ã o do detentor do d o m í n i o
estamental e m v i r t u d e da a p r o p r i a ç ã o dos meios e do poder administrativos e, n o inte-
resse da " i g u a l d a d e " , pelo afastamento do detentor de cargos capacitado à adminis-
tração " h o n o r á r i a " o u " a c e s s ó r i a " e m v i r t u d e de propriedade. Voltaremos a este assunto
e m outra ocasião.
O " e s p í r i t o " n o r m a l da b u r o c r a c i a r a c i o n a l é, e m termos gerais, o seguinte:
1. f o r m a l i s m o , reclamado p o r todos os interessados na p r o t e ç ã o de oportunidades
pessoais de v i d a , de qualquer e s p é c i e — p o r q u e , de outro m o d o , a c o n s e q ü ê n c i a seria
arbitrariedade e porque o f o r m a l i s m o é a tendência que exige m e n o s e s f o r ç o . E m
c o n t r a d i ç ã o aparente — e parcialmente efetiva — a esta tendência desta classe de inte-
resses está
2. a tendência dos f u n c i o n á r i o s a u m a e x e c u ç ã o materialmente Militarista de suas
tarefas administrativas, a serviço dos dominados a s e r e m satisfeitos. E s s e utilitarismo
m a t e r i a l costuma maniifestar-se na tendência a exigir os correspondentes regulamentos
— d e natureza f o r m a l , p o r sua vez, e na m a i o r i a dos casos aplicados de m o d o formalista.
(Sobre isto v e r a Sociologia do d i r e i t o . ) Essa tendência à racionalidade material encontra
apoio e m todos aqueles dominados que não pertencem à camada, mencionada no t ó p i c o
1, dos interessados e m " p r o t e ç ã o " e m r e l a ç ã o a oportunidades apropriadas. A proble-
mática daí d e r i v a d a faz p a n e da teoria da " d e m o c r a c i a " .
148 MAX W E B E R

3. A d o m i n a ç ã o t r a d i c i o n a l

§ 6. D e n o m i n a m o s u m a d o m i n a ç ã o tradicional q u a n d o sua legitimidade repousa


na crença na santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais ("existentes desde
s e m p r e " ) . Determina-se o senhor ( o u os vários s e n h o r e s ) e m v i r t u d e de regras tradicio-
nais. A ele se obedece e m v i r t u d e da dignidade pessoal que l h e atribui a tradição.
A associação dominada é, n o caso mais simples, e m p r i m e i r o lugar u m a associação
de piedade caracterizada por princípios comuns de e d u c a ç ã o . O dominador n ã o é u m
" s u p e r i o r " mas senhor pessoal; seu quadro administrativo n ã o se c o m p õ e p r i m a r i a -
mente de " f u n c i o n á r i o s " mas de "servidores" pessoais, e os dominados n ã o s ã o " m e m -
b r o s " da associação, mas 1 ) " c o m p a n h e i r o s t r a d i c i o n a i s " (§ 7 a) o u 2 ) " s ú d i t o s " . N ã o
s ã o os deveres objetivos do cargo que d e t e r m i n a m as relações entre o q u a d r o adminis-
trativo e o senhor: decisiva é a fidelidade pessoal de s e r v i d o r .
N ã o se obedece a estatutos mas à pessoa indicada pela tradição ou pelo senhor
tradicionalmente determinado. As ordens s ã o legitimadas de dois modos:
a) e m parte e m v i r t u d e da tradição que determina inequivocamente o conteúdo
das ordens, e da crença n o sentido e alcance destas, cujo abalo por transgressão dos
limites tradicionais poderia p ô r e m perigo a p o s i ç ã o tradicional do p r ó p r i o senhor;
b) e m parte e m v i r t u d e do l i v r e arbítrio do senhor, ao qual a tradição deixa
e s p a ç o correspondente.
Esse arbítrio tradicional baseia-se p r i m o r d i a l m e n t e na ausência de limitações que
por princípio caracteriza a o b e d i ê n c i a e m v i r t u d e d o d e v e r de piedade.
E x i s t e , portanto, o duplo reino:
a ) da a ç ã o d o senhor materialmente vinculada à tradição e
b) da a ç ã o do senhor materialmente independente da tradição.
D e n t r o deste ú l t i m o , o senhor pode manifestar " b e n e v o l ê n c i a " , segundo l i v r e
arbítrio sobre g r a ç a o u desgraça, segundo simpatia o u antipatia pessoal e arbitrariedade
puramente pessoal, particularmente c o m p r á v e l p o r presente* — fonte de " e m o l u m e n -
tos". Na medida e m que procede segundo determinados princípios, estes são princípios
de e q ü i d a d e o u justiça ética material o u de c o n v e n i ê n c i a utilitarista e n ã o — c o m o
n o caso da d o m i n a ç ã o legal — formais. A natureza efetiva do e x e r c í c i o de d o m i n a ç ã o
está determinada por aquilo que habitualmente o senhor (e seu quadro administrativo)
p o d e m permitir-se fazer diante da o b e d i ê n c i a tradicional dos súditos, s e m provocar
sua resistência. Essa resistência, q u a n d o surge, dirige-se contra a pessoa do senhor
(ou s e r v i d o r ) que desrespeitou os limites tradicionais do poder, e n ã o contra o sistema
c o m o tal ( " r e v o l u ç ã o tradicionalista").
É impossível, no caso do tipo p u r o de d o m i n a ç ã o tradicional, " c r i a r " delibera-
damente u m n o v o direito ou novos princípios administrativos mediante estatutos C r i a -
ç õ e s efetivamente novas só podem legitimar-se, portanto, c o m a p r e t e n s ã o de terem
sido vigentes desde s e m p r e o u reconhecidas e m v i r t u d e do d o m de " s a b e d o r i a " . C o m o
meios de o r i e n t a ç ã o para decisões jurídicas s ó entram e m questão registros da tradição:
casos e sentenças precedentes.

§ 7. O senhor d o m i n a l ) c o m quadro administrativo o u 2)sem ele. Sobre o segun-


do caso, v e r § 7 a , t ó p i c o 1 .
O quadro administrativo típico pode ser recrutado a partir de
a) pessoas tradicionalmente ligadas ao senhor, por vínculos de piedade ( " r e c r u t a -
mento p a t r i m o n i a l " )
a ) m e m b r o s do clã;
0 ) escravos;
ECONOMIA E SOCIEDADE 149

y) f u n c i o n á r i o s d o m é s t i c o s dependentes, particularmente " m i n i s t e r i a i s " ;


8 ) clientes;
e ) colonos;
0 libertados;
6 ) ("recrutamento extrapatrimonial", e m virtude de).
a ) relações pessoais de c o n f i a n ç a ( " f a v o r i t o s " independentes, de todas as e s p é -
cies) ou
0) pacto de fidelidade c o m o s e n h o r legitimado (vassalos) e, p o r f i m ,
y ) funcionários l i v r e s que e n t r a m n a r e l a ç ã o de piedade p a r a c o m o senhor.

Com respeito a a a. é um princípio de administração muito freqüente nas dominações


tradicionais colocar nas posições mais importantes membros do clã do senhor.
Com respeito a a 0: escravos e (a £) libertados encontram-se em dominações patrimoniais
freqüentemente em todas as posições até as mais altas (não foi raro o caso de ex-escravos na
posição de grão-vizir)
Com respeito a a y. os funcionários domésticos típicos — o senescal (grão-servo), o mare-
chal (cavalariço), o camareiro, o copeiro, o mordomo (chefe da criadagem e eventualmente
dos vassalos) — são encontrados por toda parte na Europa. No Oriente, têm importância especial
o grão-eunuco (guarda do harém) entre os príncipes negros freqüentemente o verdugo e, por
toda parte, o médico de câmara, o astrólogo e cargos semelhantes.
Com respeito a a 8: tanto na China quanto no Egito, a clientela do rei foi a fonte do
funcionalismo' patrimonial.
Com respeito a a e: encontramos exércitos de colonos em todo o Oriente, mas também
no domínio dà nobreza romana. (O Oriente islâmico da época moderna ainda conheceu exércitos
de escravos.)'
Com respeito a b a. o sistema de'' favoritos'' é uma característica específica de todo patrimo-
nialismo e muitas vezes motivo de "revoluções tradicionalistas" (sobre o conceito, veja no fim
do §).
Com respeito a b 0: dos vassalos cabe tratar em particular.
Com respeito a b y. a "burocracia" surgiu primeiro em Estados patrimoniais, e isso como
funcionalismo com recrutamento extrapatrimonial. Mas esses funcionários eram, conforme cabe
logo observar, no início servidores pessoais do senhor.

A o quadro administrativo da d o m i n a ç ã o tradicional, e m s e u tipo p u r o , faltam:


a) a " c o m p e t ê n c i a " f i x a segundo regras objetivas;
b) a h i e r a r q u i a r a c i o n a l f i x a ;
c ) a n o m e a ç ã o regulada p o r contrato l i v r e e o ascenso regulado;
d) a f o r m a ç ã o profissional ( c o m o n o r m a )
e ) (muitas v e z e s ) o salário f i x o e (ainda m a i s f r e q ü e n t e m e n t e ) o salário pago
e m dinheiro.
C o m respeito a a : e m lugar da c o m p e t ê n c i a objetiva f i x a existe a c o n c o r r ê n c i a
entre os respectivos encargos e responsabilidades atribuídos inicialmente pelo senhor
a seu arbítrio, mas que logo a s s u m e m caráter d u r a d o u r o e muitas vezes acabam sendo
estereotipados pela tradição. C r i a - s e essa c o n c o r r ê n c i a particularmente pela disputa
p o r oportunidades de emolumentos devidos tanto aos encarregados quanto ao p r ó p r i o
senhor q u a n d o se r e c o r r e a seus serviços. E m virtude de tais interesses constituem-se
f r e q ü e n t e m e n t e , pela p r i m e i r a v e z , as c o m p e t ê n c i a s objetivas e, c o m isso, a existência
de u m a " a u t o r i d a d e institucional".
Todos os encarregados c o m i n c u m b ê n c i a permanente s ã o , inicialmente, funcio-
nários d o m é s t i c o s d o senhor; sua i n c u m b ê n c i a não ligada à casa ( " e x t r a p a t r i m o n i a l " )
que d e r i v a d e sua f u n ç ã o doméstica e m v i r t u d e de afinidades objetivas e muitas vezes
bastante superficiais entre campos de atividade, lhe é atribuída inicialmente p e l o senhor
150 MAX WEBER

p o r p u r o arbítrio, m a i s tarde estereotipado pela tradição. A l é m dos f u n c i o n á r i o s d o m é s -


ticos, existiam, no princípio, apenas encarregados ad hoc.

A ausência da idéia de "competência" revela-se facilmente, por exemplo, pelo exame


da lista dos títulos dos funcionários do antigo Oriente. Com raras exceções, é impossível encontrar
como duradoura e fixa uma esfera de atividade objetiva, racionalmente delimitada, com caráter
de "competência" em nosso sentido.
A existência de uma delimitação de incumbências duradouras de fato através de concor-
rência e compromissos entre interesses em emolumentos observa-se particularmente na Idade
Média. Os efeitos dessa circunstância foram de grande alcance. Os interesses em emolumentos
dos poderosos tribunais reais e do também poderoso estamento dos advogados, na Inglaterra,
em pane impediram e em parte limitaram o domínio do direito romano e canónico. A delimitação
irracional de numerosas autorizações ligadas aos cargos, em todas as épocas, ficou estereotipada
em virtude de uma dada demarcação das esferas de interesses em emolumentos.

C o m respeito a 6 ) a d e t e r m i n a ç ã o de se a d e c i s ã o f i n a l de u m assunto o u de
u m a q u e i x a contra este cabe ao p r ó p r i o s e n h o r o u a quais s e j a m os respectivos encarre-
gados, o u
a ) é regulada pela tradição, às vezes considerando-se a p r o c e d ê n c i a de determi-
nadas n o r m a s jurídicas o u precedentes de o r i g e m e x t e r n a (sistema do tribunal s u p r e m o ) ,
ou
0 ) depende totalmente do arbítrio do senhor, ao qual cedem todos os encarre-
gados onde quer que pessoalmente apareça

Ao lado do sistema tradicionalista do tribunal supremo existe o princípio jurídico alemão,


proveniente da esfera do poder absoluto do senhor, de que ao senhor presente cabe toda jurisdi-
ção, do mesmo modo que o jus evocandi, derivado da mesma origem e da graça livre do senhor,
e seu desdobramento moderno: a "justiça de gabinete". O tribunal supremo era, na Idáde Média,
freqüentemente a autoridade jurisprudencial a partir da qual se importava o direito de outros
lugares.

C o m respeito a c. os f u n c i o n á r i o s d o m é s t i c o s e favoritos s ã o recrutados muitas


vezes de m o d o puramente p a t r i m o n i a l : escravos o u servos (ministeriais) do senhor.
O u , quando recrutados de m o d o e x t r a p a t r i m o n i a l , s ã o p r e b e n d á r i o s (veja mais adiante)
que este transfere segundo seu juízo f o r m a l m e n t e l i v r e . S ó a entrada de vassalos livres
e a atribuição de f u n ç õ e s e m v i r t u d e de contratos feudais modifica fundamentalmente
essa situação, s e m trazer, n o entanto, m u d a n ç a alguma nos pontos a e b — u m a vez
que n e m a natureza n e m a e x t e n s ã o dos feudos é determinada p o r critérios objetivos.
U m ascenso — exceto, e m determinadas circunstâncias, n o caso de estrutura preben-
dária d o q u a d r o administrativo (veja § 8 ) — s ó é possível por arbítrio e graça do senhor.
C o m respeito a d: e m princípio, todos os f u n c i o n á r i o s d o m é s t i c o s e favoritos
do senhor c a r e c e m de u m a f o r m a ç ã o profissional racional c o m o q u a l i f i c a ç ã o funda-
mental. O c o m e ç o da f o r m a ç ã o profissional dos f u n c i o n á r i o s (qualquer que seja a natu-
reza d e l a ) m a r c a , p o r toda parte, u m a é p o c a n o estilo da administração.

Certo grau de instrução empírica já foi necessário para algumas funções em épocas bem
antigas. No entanto, a arte de ler e escrever, originalmente uma verdadeira "arte" de alto valor
de raridade, influenciou muitas vezes — exemplo mais importante: a China — de modo decisivo
todo o desenvolvimento cultural, através da conduta de vida dos literatos, eliminando o recruta-
mento intrapatrimonial dos funcionários e limitando assim "estamentalmente" o poder do senhor
(veja § 7 a, tópico 3 )
ECONOMIA E SOCIEDADE 151

C o m respeito a e: os f u n c i o n á r i o s d o m é s t i c o s e favoritos f o r a m originalmente


alimentados na mesa do s e n h o r e equipados a partir de seu guarda-roupa. S e u afasta-
mento da mesa d o s e n h o r significa, e m r e g r a , a c r i a ç ã o d e prebendas (no p r i n c í p i o ,
receitas e m e s p é c i e ) , cuja natureza e e x t e n s ã o facilmente acabam estereotipadas. A l é m
disso, tantò os ó r g ã o s do senhor encarregados de serviços e x t r a d o m é s t i c o s quanto ele
m e s m o t ê m direito a determinadas " t a x a s " (muitas vezes combinadas, p a r a cada caso
individual, c o m os solicitantes de u m " f a v o r " , s e m h a v e r tarifação alguma).

Sobre o conceito de "prebenda", veja § 8.

§ 7 a . 1 . O s tipos p r i m á r i o s da d o m i n a ç ã o tradicional s ã o os casos e m que faltam


u m quadro administrativo pessoal d o senhor:
a) a gerontocracia e
6 ) o patriarcalismo p r i m á r i o .
Denomina-se gerontocracia a situação e m que, h a v e n d o alguma d o m i n a ç ã o dentro
da associação, esta é e x e r c i d a pelos mais velhos (originalmente, n o sentido literal da
palavra: pela i d a d e ) sendo eles os m e l h o r e s conhecedores da tradição sagrada. A g e r o n -
tocracia é encontrada f r e q ü e n t e m e n t e e m associações que não são p r i m o r d i a l m e n t e
e c o n ô m i c a s o u f a m i l i a r e s . É c h a m a d a patriarcalismo a situação e m que, dentro de u m a
associação (doméstica), muitas vezes p r i m o r d i a l m e n t e e c o n ô m i c a e f a m i l i a r , a domi-
n a ç ã o é e x e r c i d a p o r u m i n d i v í d u o determinado ( n o r m a l m e n t e ) segundo regras f i x a s
de sucessão. N ã o é r a r a a coexistência de gerontocracia e patriarcalismo. E m todo
caso, o decisivo é que o poder, tanto dos gerontocratas quanto dos patriarcas, n o tipo
p u r o , se orienta pela idéia dos dominados ( " a s s o c i a d o s " ) d e que essa d o m i n a ç ã o , apesar
de constituir u m direito pessoal e tradicional do senhor, exerce-se materialmente como
direito preeminente dos associados e, p o r isso, n o interesse destes, n ã o h a v e n d o , portan-
to, a p r o p r i a ç ã o l i v r e desse direito p o r parte do senhor. A ausência total, nestes tipos
de d o m i n a ç ã o , de u m q u a d r o administrativo pessoal ( " p a t r i m o n i a l " ) do senhor é que
determina essa situação. O senhor depende e m grande parte d a vontade de obedecer
dos associados, u m a v e z que n ã o possui " q u a d r o a d m i n i s t r a t i v o " . Os associados ainda
são, p o r t a n t o , " " c o m p a n h e i r o s " , e n ã o " s ú d i t o s " . Mas s ã o " c o m p a n h e i r o s " e m v i r t u d e
da tradição, e n ã o " m e m b r o s " e m v i r t u d e de estatutos. D e v e m o b e d i ê n c i a ao senhor,
e n ã o a regras estatuídas. _Mas ao senhor apenas a d e v e m de acordo c o m a tradição.
O senhor, p o r sua parte, está estritamente v i n c u l a d o à tradição.

Sobre as formas de gerontocracia, veja mais adiante. O patriarcalismo primário lhe é


afim na medida em que a dominação atua de modo obrigatório apenas dentro da casa. Fora
desta, porém, sua ação — como no caso dos xeques árabes — tem caráter apenas exemplar,
limitando-se portanto, como na dominação carismática, a bons exemplos ou a conselhos e outros
meios de influência.

2. A o surgir u m q u a d r o administrativo (e m i l i t a r ) p u r a m e n t e pessoal do senhor,


toda d o m i n a ç ã o tradicional tende ao patrimonialismo e, c o m g r a u e x t r e m o de poder
s e n h o r i a l , ao sultanismo-.
os " c o m p a n h e i r o s " tornam-se " s ú d i t o s " ; o direito do senhor, interpretado até
e n t ã o c o m o direito preeminente dos associados, converte-se e m s e u direito p r ó p r i o ,
apropriado p o r e l e d a m e s m a f o r m a ( e m p r i n c í p i o ) que u m objeto p o s s u í d o d e natureza
qualquer, v a l o r i z á v e l (por v e n d a , p e n h o r a o u partilha entre h e r d e i r o s ) e m p r i n c í p i o ,
c o m o outra oportunidade e c o n ô m i c a qualquer. E x t e r n a m e n t e , o p o d e r de senhor patri-
m o n i a l apóia-se e m guardas pessoais e exércitos f o r m a d o s de escravos (muitas vezes
152 MAX WEBER

marcados a f e r r o ) , colonos o u súditos f o r ç a d o s o u — p a r a tornar o mais indissolúvel


possível a u n i ã o de interesses perante os últimos — de m e r c e n á r i o s (exércitos p a t r i m o -
niais). E m v i r t u d e desse poder, o senhor a m p l i a o alcance de s e u arbítrio e de sua
g r a ç a , desligados da tradição, às custas da v i n c u l a ç ã o tradicional patriarcal e geronto-
crática. D e n o m i n a m o s patrimonial toda d o m i n a ç ã o q u e , originariamente orientada pela
tradição, se e x e r c e e m v i r t u d e de pleno direito pessoal, e súltanista toda d o m i n a ç ã o
patrimonial que, c o m suas f o r m a s de administração, se encontra, e m p r i m e i r o lugar,
na esfera d o arbítrio l i v r e , desvinculado da tradição. A d i f e r e n ç a é inteiramente fluida.
D o patriarcalismo originário se distinguem ambas as f o r m a s , t a m b é m o sultanismo,
pela existência de u m quadro administrativo pessoal.

Às vezes, a forma súltanista do patrimonialismo, em sua aparência externa — na verdade,


nunca é assim —, está totalmente desligada da tradição. No entanto, não está racionalizada
em sentido objetivo, mas desenvolveu-se nela ao extremo a esfera do arbítrio e da graça livres.
Isso a distingue de todas as formas de dominação racional.

3. D e n o m i n a m o s d o m i n a ç ã o estamental aquela f o r m a de d o m i n a ç ã o e m que de-


terminados poderes de m a n d o e as correspondentes oportunidades e c o n ô m i c a s e s t ã o
apropriados pelo quadro administrativo. A a p r o p r i a ç ã o — c o m o e m todos os casos
semelhantes (capítulo I I , § 19) — pode realizar-se:
a) p o r parte de u m a associação o u de u m a categoria de pessoas c o m determinadas
características, o u
b) por parte de u m i n d i v í d u o e, neste caso, apenas c o m caráter vitalício o u heredi-
tário o u de propriedade livre.
D o m i n a ç ã o estamental significa, portanto,
a) sempre: limitação da l i v r e s e l e ç ã o do quadro administrativo pelo senhor, e m
v i r t u d e da a p r o p r i a ç ã o dos cargos o u poderes de mando,
a ) p o r parte de u m a associação,
0) p o r parte de u m a camada social estamentalmente qualificada, o u
6 ) f r e q ü e n t e m e n t e — e isto constitui aqui u m " t i p o " : t a m b é m
a ) a p r o p r i a ç ã o dos cargos e, portanto, (eventualmente) oportunidades aquisitivas
proporcionadas pela d e t e n ç ã o destes e
0) a p r o p r i a ç ã o dos meios materiais de administração, e
y) a p r o p r i a ç ã o dos poderes de mando: p o r parte de cada m e m b r o individual
d o quadro administrativo.
Esses apropriadores p o d e m historicamente tanto 1 ) p r o v i r d o quadro adminis-
trativo anterior, c o m caráter n á o - e s t a m e n t a l , quanto 2) não ter pertencido a este antes
da a p r o p r i a ç ã o .
O detentor estamental que se a p r o p r i o u de poderes de m a n d o paga os custos
da administração a partir dos meios de administração p r ó p r i o s e p o r ele apropriados
e m f o r m a indivisa. Detentores de poderes de m a n d o militares o u m e m b r o s de u m
e x é r c i t o estamental equipam-se a si mesmos e t a m b é m , eventualmente, aos contingentes
patrimonialmente o u estamentalmente recrutados (exército estamental) que chamam
às a r m a s . O u e n t ã o o p r o v i m e n t o de meios administrativos e o recrutamento do quadro
administrativo s ã o apropriados c o m o v e r d a d e i r o s objetos d e u m a atividade aquisitiva,
e m troca de pagamento global a partir d o a r m a z é m o u da c a i x a d o senhor, c o m o ocorreu
particularmente (mas n ã o apenas) n o caso dos exércitos m e r c e n á r i o s na E u r o p a , nos
séculos X V I e X V I I (exército capitalista) Nos casos de a p r o p r i a ç ã o estamental plena,
o poder global divide-se regularmente entre o s e n h o r e os m e m b r o s apropriadores
d o q u a d r o administrativo, e m v i r t u d e do direito p r ó p r i o destes, o u e n t ã o existem pode-
ECONOMIA E SOCIEDADE 153

res p r ó p r i o s , regulados p o r o r d e n s particulares do senhor o u p o r compromissos espe-


ciais c o m as pessoas apropriadas.

Caso 1: por exemplo, cargos cortesãos de um senhor, apropriados como feudos. Caso
2: por exemplo, senhores territoriais que, em virtude de privilégios senhoriais ou por usurpação
(na maioria das vezes, os primeiros são a legalização da segunda), se apropriaram de direitos
de mando.

A a p r o p r i a ç ã o p o r parte de indivíduos pode repousar e m


1) arrendamento;
2) penhora;
3) venda;
4 ) privilégio pessoal, hereditário o u l i v r e m e n t e a p r o p r i a d o , incondicionado o u
condicionado p o r determinadas contraprestações, atribuído
a) c o m o r e m u n e r a ç ã o de serviços o u a f i m de c o m p r a r o b e d i ê n c i a , o u
b) e m v i r t u d e d o rec o n h e c i me n to da u s u r p a ç ã o efetiva de poderes de mando;
5 ) a p r o p r i a ç ã o p o r u m a associação o u u m a camada social estamentalmente quali-
ficada, o que e m regra é c o n s e q ü ê n c i a de u m c o m p r o m i s s o entre o senhor e o q u a d r o
administrativo, o u p o r u m a c a m a d a estamental u n i d a por relações associativas; isto
pode
a ) d e i x a r ao s e n h o r a liberdade de seleção absoluta o u relativa e m cada caso
individual, o u
0 ) estatuir regras f i x a s referentes à d e t e n ç ã o pessoal do respectivo cargo;
6 ) feudos, caso do qual trataremos separadamente.

1. Os meios de administração, na gerontocracia e no patriarcalismo puro — segundo


a idéia neles reinante, porém, muitas vezes pouco clara —, estão apropriados pela associação
administrada ou pelas gestões patrimoniais que participam na administração: a administração
se realiza "em favor" da associação. A apropriação pelo senhor como tal pertence ao mundo
de idéias do patrimonialismo e pode realizar-se em extensão muito diversa — até a regalia
absoluta do solo e a escravatura total dos súditos ("direito de venda".do senhor). A apropriação
estamental significa apropriação de pelo menos uma parte dos meios de administração por parte
dos membros do quadro administrativo. Assim, enquanto que, no patrimonialismo puro, há
separação total entre os administradores e os meios de administração, no patrimonialismo esta-
mental a situação é exatamente inversa: o administrador está de posse de todos os meios de
administração ou, pelo menos, de parte essencial destes. Por exemplo, o vassalo que se equipava
a si mesmo, o conde enfeudado que cobrava para si mesmo as taxas judiciais e outras, bem
como os tributos, e a partir de meios próprios (entre eles também os apropriados) custeava
suas obrigações perante o senhor feudal, e o jagirdar, na índia, que mantinha seu contingente
militar com sua prebenda tributária, todos eles estavam de piem posse dos meios de adminis-
tração, enquanto que o coronel, que recrutava um regimento mercenário por iniciativa própria,
recebendo para isso determinadas quantias da caixa do príncipe e equilibrando o déficit por
diminuição dos serviços ou pelo espólio ou requisições, estava apenas parcialmente (e de forma
regulada) de posse dos meios de administração. Por outro lado, o faraó que recrutava exércitos
de escravos ou colonos e deixava o comando com clientes reais, vestindo, alimentando e armando
os soldados a partir de seus armazéns, estava, como senhor patrimonial, de plena posse pessoal
dos meios de administração. Nesses casos, a regulação formal nem sempre é o fator decisivo:
os mamelucos eram formalmente escravos e foram recrutados por meio da "compra'' pelo senhor
— mas de fato monopolizavam os poderes de mando de modo tão completo quanto qualquer
associação de ministeriais os feudos funcionais [feudos doados a funcionários (N T )]. A apro-
priação de terras funcionais, por uma associação fechada, porém sem apropriação individual,
ocorre tanto com distribuição livre destas pelo senhor, dentro da associação (caso 5« do texto)
154 MAX WEBER

quanto com regulação da qualificação necessária para obtê-las (caso 5 0 do texto), por exemplo,
pela exigência de determinada qualificação militar ou outra (de natureza ritual) de pretendente
e, por outro lado (quando pode comprová-lo), pelo direito preferencial dos consangüíneos mais
próximos. O mesmo ocorre com cargos de artesãos ou camponeses ligados à corte ou a uma
corporação e cujos serviços se destinam a satisfazer necessidades militares ou administrativas.
2. A apropriação mediante arrendamento (especialmente de arrecadação de impostos),
penhora ou venda era conhecida tanto no Ocidente quanto no Oriente e na índia; na Antiguidade,
não foi raro o caso de leiloar cargos sacerdotais. Nos casos de arrendamento, a finalidade foi
em parte de natureza puramente político-financeira (situação de necessidade particularmente
em conseqüência de gastos de guerra), em parte de natureza técnico-financeira (garantia de
uma receita fixa em dinheiro, aplicável para fins de gestão patrimonial), nos casos de penhora
e venda, a finalidade foi geralmente a primeira; no Estado do Vaticano, também a criação de
rendas para parentes. Tiveram ainda papel importante a apropriação mediante a penhora no
século XVIII, na França, para os cargos dos juristas (parlamentos) e a apropriação mediante
venda (regulada) de cargos de oficiais, no exército inglês, até o século XIX. Na Idade Média,
o privilégio, como sanção de usurpações ou remuneração paga ou prometida por serviços políti-
cos, foi comum tanto no Ocidente quanto em outras partes.

§ 8. O s e r v i d o r p a t r i m o n i a l pode obter seu sustento:


a) p o r a l i m e n t a ç ã o na mesa do senhor;
b) por emolumentos ( n a m a i o r i a das v e z e s , e m e s p é c i e ) provenientes das r e s e r v a s
de bens e d i n h e i r o do s e n h o r )
c ) por terras funcionais;
d) por oportunidades apropriadas de rendas, taxas o u impostos, e
e ) p o r feudos.
Q u a n d o as f o r m a s de sustento de b a d s ã o conferidas s e m p r e de n o v o , c o m
a p r o p r i a ç ã o i n d i v i d u a l mas n ã o hereditária, sendo tradicionalmente determinada sua
e x t e n s ã o ( 6 e c ) o u clientela (d), trata-se de "prebendas", e q u a n d o existe u m quadro
administrativo principalmente mantido dessa f o r m a , trata-se de prebendalismo. Neste
quadro pode h a v e r u m ascenso p o r idade o u p o r determinados serviços objetivamente
m e n s u r á v e i s epode ser exigida a q u a l i f i c a ç ã o estamental e, portanto, a honra estamental
(sobre o conceito de " e s t a m e n t o " , v e j a capítulo IV).
C h a m a m o s " f e u d o s " poderes de m a n d o apropriados q u a n d o s ã o conferidos pri-
mordialmente por contrato a individualmente qualificados e os direitos e deveres recí-
procos se o r i e n t a m , em primeiro lugar, p o r conceitos de honra estamentais, o que
significa neste caso: militaristas. Na p r e s e n ç a de u m q u a d r o administrativo primordial-
mente mantido p o r m e i o de feudos temos u m f e u d a l i s m o de feudo. L

F e u d o e prebenda militar confundem-se muitas vezes até s e r e m indistinguíveis.


(Sobre isto, v e j a o e x a m e d o " e s t a m e n t o " , capítulo I V . )
Nos casos d e e, às vezes t a m b é m no c, o detentor apropriante dos poderes de
m a n d o paga os custos da administração e, eventualmente, d o equipamento militar,
na f o r m a já descrita, a partir dos meios da prebenda o u , e n t ã o , d o feudo. Sua relação
de d o m i n a ç ã o p a r a c o m os súditos pode e n t ã o assumir caráter p a t r i m o n i a l (isto é, tornar-
se hereditária, alienável o u partilhável entre h e r d e i r o s )

1. A alimentação na mesa do senhor, ou, segundo seu juízo, a partir de suas reservas,
foi a situação primária tanto dos servidores dos príncipes quanto dos funcionários domésticos,
sacerdotes e todos os tipos de servidores patrimoniais (por exemplo, os senhores territoriais)
A "casa dos homens", a forma mais antiga de organização profissional militar (da qual trataremos
mais tarde, em particular) tinha freqüentemente o caráter de um comunismo com base na gestão
patrimonial de consumo do senhor. O afastamento da mesa do senhor (ou do templo ou da
catedral) e a substituição dessa sustentação direta por emolumentos ou terras funcionais nem
sempre foram considerados desejáveis, apesar de serem a regra quando se formou a família
ECONOMIA E SOCIEDADE 155

própria. Emolumentos em espécie para os sacerdotes e funcionários afastados da mesa do senhor


ou do templo constituíram, em todo o Oriente Próximo, a forma originária de manutenção
dos funcionários, e também existiram na China, na índia e em muitos lugares do Ocidente.
Encontramos terras funcionais conferidas em troca de serviços militares em todo o Oriente desde
os começos da Antiguidade, do mesmo modo que na Idade Média, na Alemanha, como forma
de sustentação dos funcionários, domésticos ou não, ministeriais e vinculados à corte. As receitas
dos sipaios turcos, bem como dos samurais japoneses e de numerosos ministeriais e cavaleiros
semelhantes, no Oriente, são — segundo nossa terminologia — "prebendas", e não feudos,
como mais tarde explicaremos. Essas pessoas podem viver tanto da dependência de determinadas
rendas da terra quanto das receitas tributárias de certos distritos. No último caso, as prebendas
se combinam — como tendência geral, mas não necessariamente — com a apropriação de poderes
de mando nesses distritos, ou esta é conseqüência daquelas. O conceito de "feudo" só pode
ser examinado mais de perto em conexão com o de "Estado". Seu objeto pode ser tanto terras
senhoriais (portanto, uma dominação patrimonial)quanto os mais diversos tipos de oportunidades
de rendas ou taxas.
I 2. A apropriação de oportunidades de rendas, taxas ou receitas de impostos é encontrada
por toda parte na forma de prebendas e feudos de todas as espécies; especialmente na índia,
como forma independente e bastante desenvolvida: concessão de receitas em troca de recruta-
mento e manutenção de contingentes militares e pagamento de custos administrativos.

§ 9. A d o m i n a ç ã o p a t r i m o n i a l e especialmente a patrimonial-estamental t r a t a ,
no caso do tipo p u r o , igualmente todos os poderes de m a n d o e direitos s e n h o r i a i s
e c o n ô m i c o s , e as oportunidades e c o n ô m i c a s privadas apropriadas. Isso n ã o q u e r dizer
que ela n ã o os distinga qualitativamente, e m particular q u a n d o se a p r o p r i a de alguns
deles, c o m o preeminentes, de f o r m a especialmente regulada. Mais ainda q u a n d o consi-
dera a a p r o p r i a ç ã o de poderes senhoriais judiciais o u militares o fundamento j u r í d i c o
de u m a p o s i ç ã o estamentalmente privilegiada d o apropriante, e m o p o s i ç ã o à apro-
priação de oportunidades p u r a m e n t e e c o n ô m i c a s (de d o m í n i o , tributos o u e m o l u m e n -
tos), distinguindo dentro da última categoria, por sua v e z , entre os tipos de a p r o p r i a ç ã o
p r i m o r d i a l m e n t e patrimoniais e os p r i m o r d i a l m e n t e extrapatrimoniais (fiscais). Para
nossa terminologia, o decisivo é o fato de que os direitos senhoriais e as correspondentes
oportunidades, de todas as espécies, s ã o e m p r i n c í p i o tratados da mesma maneira que
as oportunidades privadas.

Com inteiro acerto B . v. BELOW (Der deucsche Staat des Mittelalters) acentua que particu-
larmente a apropriação do senhorio judicial experimentou um tratamento à parte, sendo fonte
de posições estamentais especiais, e que, em geral, não pode ser comprovado um caráter pura-
mente patrimonial ou puramente feudal da associação política na Idade Média. No entanto, na
medida em que o senhorio judicial e outros direitos de origem puramente política foram tratados
como direitos privados, parece terminologicamente correto, para nossos fins, falar de dominação
"patrimonial". O próprio conceito foi tomado (em sua formulação conseqüente), como se sabe,
da obra de HALLER, Restauration der Staatswissenschaft. Um Estado "patrimonial" puro, em sentido
absolutamente típico-ideal, nunca existiu historicamente.

4. D e n o m i n a m o s divisão estamental de poderes a situação e m que associações


de estamentalmente privilegiados, e m v i r t u d e da a p r o p r i a ç ã o d e poderes de m a n d o ,
c r i a m , e m cada caso, p o r compromisso c o m o senhor, estatutos políticos o u adminis-
trativos ( o u a m b o s ) disposições administrativas concretas o u medidas de controle da
administração. E v e n t u a l m e n t e t a m b é m os a p l i c a m pessoalmente o u mediante seus q u a -
dros administrativos, q u e , e m certas circunstâncias, possuem poderes de m a n d o p r ó -
prios.
156 MAX WEBER

1. O fato de participarem também, em certas circunstâncias, camadas não privilegiadas


estamentalmente (camponeses) nada altera nosso conceito. Pois o tipicamente decisivo é o direito
próprio dos privilegiados. A ausência de todas as camadas estamentalmente privilegiadas daria
evidentemente outro tipo.
2. O tipo se desenvolveu por completo apenas no Ocidente. Os detalhes de sua peculia-
ridade e a causa de seu surgimento precisamente ali serão discutidos mais adiante, em particular.
3. A existência de um quadro administrativo estamental próprio não constituía a regra,
e só em casos muito excepcionais ele tinha poderes de mando próprios.

§ 9 a. A d o m i n a ç ã o tradicional costuma atuar sobre as f o r m a s da g e s t ã o e c o n ô -


m i c a , e m p r i m e i r o lugar e de m o d a muito g e r a l , mediante u m certo fortalecimento
das idéias tradicionais. D a m a n e i r a m a i s forte atuam, neste sentido, a d o m i n a ç ã o geron-
tocrática e a puramente patriarcal, que, p o r n ã o se a p o i a r e m e m u m q u a d r o adminis-
trativo particular do senhor, que se encontra e m o p o s i ç ã o aos demais m e m b r o s da
associação, d ep endem, p a r a manter a própria legitimidade, e m g r a u e x t r e m o , da obser-
v a ç ã o da tradição, e m todos os seus aspectos. A l é m disso:
1. A a t u a ç ã o sobre a economia depende da f o r m a típica das finanças da associação
de d o m i n a ç ã o (capítulo I I , § 38).
Neste sentido, p a t r i m o n i a l i s m o pode significar coisas muito diversas. Típicos s ã o ,
particularmente:
a ) o oikos do senhor c o m p r o v i s ã o das necessidades, total o u predominantemente,
mediante liturgias e m espécie (prestações e m e s p é c i e e serviços pessoais). Nesse caso,
as relações e c o n ô m i c a s estão rigorosamente vinculadas à tradição, o desenvolvimento
do m e r c a d o é bastante dificultado, o uso de d i n h e i r o é orientado pelo material deste
e pelo consumo, sendo impossível o nascimento do capitalismo. Muito p r ó x i m o deste
caso, quanto aos efeitos, está outro que lhe é a f i m :
b) a p r o v i s ã o das necessidades que p r i v i l e g i a determinados estamentos. T a m b é m
neste caso, o desenvolvimento do m e r c a d o está limitado, ainda que n ã o necessariamente
n o m e s m o g r a u , pela d e p r e s s ã o da "capacidade a q u i s i t i v a " e m v i r t u d e das exigências
da associação de d o m i n a ç ã o , p a r a fins p r ó p r i o s , e m r e l a ç ã o à propriedade e capacidade
das economias individuais.
O patrimonialismo t a m b é m pode ser:
c ) monopolista, c o m p r o v i s ã o das necessidades, e m parte, mediante determinadas
taxas e, e m parte, mediante impostos. Neste caso, o desenvolvimento do m e r c a d o está
i r r a c i o n a l m e n t e limitado e m m a i o r o u m e n o r g r a u , dependendo da natureza dos mono-
pólios; as m a i o r e s oportunidades aquisitivas encontram-se nas m ã o s do s e n h o r e de
seu q u a d r o administrativo, e o desenvolvimento do capitalismo está o u
a ) diretamente impedido, e m caso de d i r e ç ã o própria e completa da adminis-
tração, ou
0 ) desviado p a r a o campo do capitalismo político (capítulo I I , § 3 1 ) , e m caso
de e x i s t i r e m c o m o medidas financeiras o a r r e n d a m e n t o o u a c o m p r a de cargos e o
recrutamento capitalista de exércitos o u f u n c i o n á r i o s administrativos.
A economia fiscal d o patrimonialismo, e muito m a i s ainda d o sultanismo, atua
de m o d o i r r a c i o n a l , m e s m o na presença de economia m o n e t á r i a , e isso:
1 ) e m v i r t u d e da coexistência de
a ) v i n c u l a ç ã o tradicional quanto a e x t e n s ã o e natureza das e x i g ê n c i a s e m r e l a ç ã o
a fontes tributárias diretas, e
0 ) liberdade completa e, portanto, arbitrariedade, quanto a e x t e n s ã o e natureza,
na f i x a ç ã o : 1 ) das taxas; 2 ) dos impostos e 3 ) n a c r i a ç ã o de m o n o p ó l i o s . T u d o isso
existe pelo m e n o s c o m o pretensão-, na realidade, o c o r r e u historicamente e m m a i o r
X

ECONOMIA E SOCIEDADE 157

g r a u n o caso 1 (de a c o r d o c o m o p r i n c í p i o da " f a c u l d a d e de r e q u e r i m e n t o " do s e n h o r


e d o quadro administrati vo ), muito m e n o s n o caso 2 e e m g r a u d i v e r s o n o caso 3;
2 ) p o r q u e falta geralmente, p a r a a r a c i o n a l i z a ç ã o da e c o n o m i a , a possibilidade
de calcular exatamente n ã o apenas as cargas tributárias, m a s t a m b é m o g r a u de liberdade
das atividades aquisitivas p r i v a d a s .
d) e m casos individuais, n o entanto, a e c o n o m i a fiscal p a t r i m o n i a l pode atuar
de m o d o racionalizador p o r m e i o d e cuidados planejados dirigidos à capacidade t r i b u -
tária e à c r i a ç ã o r a c i o n a l de m o n o p ó l i o s . Mas isto é u m " a c a s o " , condicionado p o r
circunstâncias históricas especiais existentes, e m parte, n o Ocidente.
A política f i n a n c e i r a , e m caso de divisão estamental dos poderes, tem a peculia-
ridade típica de i m p o r cargas tributárias fixadas p o r compromisso e, portanto, calculá-
veis, a l é m d e e l i m i n a r o u , p e l o m e n o s , l i m i t a r consideravelmente a arbitrariedade d o
senhor na c r i a ç ã o de impostos e, sobretudo, de m o n o p ó l i o s . Nesses casos, o g r a u e m
que a política f i n a n c e i r a m a t e r i a l estimula o u impede u m a e c o n o m i a r a c i o n a l depende
da natureza da camada social que p r e d o m i n a nas p o s i ç õ e s de poder, sobretudo se
ela é
a) f e u d a l o u
b) patrícia.
E m v i r t u d e da estrutura n o r m a l m e n t e c o m p r e d o m í n i o p a t r i m o n i a l dos direitos
d e d o m i n a ç ã o enfeudados, a p r e p o n d e r â n c i a da p r i m e i r a costuma cercear rigidamente
a liberdade das atividades aquisitivas e o desenvolvimento d o m e r c a d o , o u até proposita-
damente impedi-los, p o r medidas políticas autoritárias; a p r e p o n d e r â n c i a da segunda
pode atuar n o sentido oposto.

1. Temos de limitar-nos aqui ao que já dissemos, pois voltaremos a examinar o assunto


mais de peno em outros contextos.
2. Exemplos:
de l a ) (pikos}. o antigo Egito e a índia;
de b}. grandes territórios na época do helenismo, o Império Romano tardio, a China,
a índia, a Rússia, em parte, e os estados islâmicos;
de c ) o Império Ptolomaico, Bizâncio (em parte) e, de forma modificada, o reinado dos
Stuarts;
de dy. os Estados patrimoniais ocidentais na época do "despotismo esclarecido" (especial-
mente do colbertismo)

2. O p a t r i m o n i a l i s m o n o r m a l inibe a economia racional n ã o apenas p o r sua polí-


tica f i n a n c e i r a mas t a m b é m pela peculiaridade g e r a l de sua administração, isto é:
a) pelas dificuldades que o tradicionalismo o p õ e à existência d e estatutos formal-
mente racionais e c o m d u r a ç ã o c o n f i á v e l r c a l c u l á v e i s , portanto, e m seu alcance e apro-
veitamento e c o n ô m i c o s ;
b) pela ausência típica d e u m q u a d r o d e f u n c i o n á r i o s c o m q u a l i f i c a ç ã o profis-
sional formal;

O fato de este quadro ter surgido dentro do patrimonialismo ocidental deve-se, como
logo veremos, a condições peculiares somente nele existentes, e deriva primordialmente de
fontes inteiramente distintas.

c) p e l o a m p l o e s p a ç o deixado à arbitrariedade m a t e r i a l e vontade p u r a m e n t e


pessoal d o s e n h o r e d o q u a d r o administrativo — e s f e r a e m que a eventual c o r r u p ç ã o ,
que n a d a m a i s é d o que a d e g e n e r a ç ã o do direito a taxas n ã o regulamentado, t e r i a
importância relativamente m í n i m a , p o r ser praticamente c a l c u l á v e l , se apresentasse
158 MAX WEBER

u m a magnitude constante e n ã o u m fator v a r i á v e l p a r a cada f u n c i o n á r i o . E m caso d e


a r r e n d a m e n t o de cargos, o f u n c i o n á r i o , p a r a obter l u c r o de seu capital investido, v ê - s e
imediatamente o b r i g a d o a aplicar m e i o s de e x t o r s ã o , p o r m a i s i r r a c i o n a i s que s e j a m
seus efeitos;
d) pela t e n d ê n c i a , inerente a todo p a t r i a r c a l i s m o e p a t r i m o n i a l i s m o e c o n s e q ü ê n -
cia da natureza da v i g ê n c i a da legitimidade e d o interesse de v e r satisfeitos os dominados,
à r e g u l a ç ã o materialmente orientada da e c o n o m i a — p o r ideais " c u l t u r a i s " utilitários
o u ético-sociais o u m a t e r i a i s — e , portanto, ao r o m p i m e n t o de sua racionalidade formal,
orientada pelo direito dos juristas. E s s e efeito é decisivo, e m g r a u e x t r e m o , n o patrimo-
nialismo hierocraticamente orientado, enquanto que os efeitos d o sultanismo p u r o de-
v e m - s e mais a sua arbitrariedade fiscal.
Por todas estas r a z õ e s , ainda que sob a d o m i n a ç ã o de poderes patrimoniais nor-
m a i s estejam arraigados e muitas vezes florescendo exuberantemente:
a ) o capitalismo c o m e r c i a l ;
b) o capitalismo de a r r e n d a m e n t o d e impostos e de a r r e n d a m e n t o e c o m p r a de
cargos;
c ) o capitalismo baseado e m f o r n e c i m e n t o de bens ao Estado o u financiamento
de g u e r r a s e, e m determinadas circunstâncias,
d) o capitalismo de plantations e o colonial,
isto não o c o r r e c o m o e m p r e e n d i m e n t o aquisitivo orientado pela situação n o m e r c a d o
dos consumidores p r i v a d o s e que se caracteriza p o r capital fixo e organização racional
de trabalho livre, e x t r e m a m e n t e sensível às irracionalidades da justiça, administração
e tributação, que p e r t u r b a m a possibilidade de cálculo.
A situação é fundamentalmente diversa somente q u a n d o o senhor p a t r i m o n i a l , "
p o r interesses de p o d e r e financeiros p r ó p r i o s , r e c o r r e à a d m i n i s t r a ç ã o racional c o m
f u n c i o n á r i o s profissionalmente qualificados. Para isso s ã o necessários: 1 ) a existência
de u m a formação profissional; 2 ) u m motivo suficientemente forte, e m r e g r a : a concor-
rência aguda entre vários poderes patrimoniais parciais dentro do m e s m o â m b i t o cultu-
ral-, 3 ) u m elemento muito peculiar: a i n c o r p o r a ç ã o de associações comunais urbanas
aos poderes patrimoniais concorrentes, c o m o apoio de sua potência financeira.

1. O capitalismo moderno, especificamente ocidental, foi preparado nas associações urba-


nas, especificamente ocidentais, também, e administradas de modo (relativamente) racional (cuja
peculiaridade examinaremos mais adiante, em particular) Desenvolveu-se nos séculos X V I a
XVIII primariamente dentro das associações políticas estamentais holandesas e inglesas, caracte-
rizadas pelo predomínio do poder e dos interesses aquisitivos burgueses, enquanto que as imita-
ções secundárias, fiscal ou utilitariamente condicionadas, nos Estados puramente patrimoniais
ou influenciados por tendências feudal-estamentais do continente, bem como as indústrias mono-
pólicas dos Stuarts, não se encontraram em continviidade real com o desenvolvimento capitalista
autônomo que mais tarde se iniciou. Isso apesar de algumas medidas isolada^ (referentes à política
agrária e industrial) em virtude de sua orientação por modelos ingleses, holandeses ou, mais
tarde, franceses, terem criado condições preparativas muito importantes para o nascimento desse
capitalismo (isto também será examinado em particular)
2. Os Estados patrimoniais da Idade Média distinguem-se fundamentalmente de todos os
outros quadros administrativos, em todas as demais associações políticas do mundo, em virtude
da natureza formalmente racional de uma parte de seu quadro administrativo (sobretudo juristas,
profanos e canónicos) Sobre a fonte desse desenvolvimento e sua significação falaremos ainda
em particular. Devem bastar, por enquanto, as observações gerais feitas no fim do texto.

4. D o m i n a ç ã o c a r i s m á t i c a

§ 10. D e n o m i n a m o s "carisma" u m a qualidade pessoal considerada extracotidiana


(na o r i g e m , magicamente condicionada, n o caso tanto dos profetas q u a n t o dos sábios
ECONOMIA E SOCIEDADE 159

curandeiros o u j u r í d i c o s , chefes de c a ç a d o r e s e h e r ó i s de g u e r r a ) e e m v i r t u d e da
q u a l se a t r i b u e m a u m a pessoa poderes o u qualidades sobrenaturais, sobre-humanos
o u , pelb m e n o s , extracotidianos específicos o u e n t ã o se a t o m a c o m o e n v i a d a p o r D e u s ,
c o m o e x e m p l a r e, portanto, c o m o "líder". O m o d o objetivamente " c o r r e t o " c o m o
essa qualidade rería de ser avaliada, a p a r t i r de algum ponto d e vista é t i c o , estético
o u o u t r o q u a l q u e r , n ã o t e m i m p o r t â n c i a alguma p a r a nosso conceito: o que i m p o r t a
é c o m o d e fato ela é avaliada pelos carismaticamente dominados — os "adeptos".

O carisma de um berserketJcujos acessas maníacos foram atribuídos, aparentemente sem


razão, ao uso de determinadas drogas: na Bizâncio da Idade Média, um certo número de indiví-
duos dotados do carisma da raiva belicosa foi mantido como uma espécie de instrumento de
guerra), de um " x a m ã " (um mago cujos êxtases, no tipo puro, teriam por condição prévia a
possibilidade de ataques de epilepsia) do fundador do mormonismo (que, talvez, porém não
com plena certeza, represente um tipo de embusteiro refinado) ou de um literato entregue aos
próprios sucessos demagógicos, como Kurt Eisner, é tratado, pela Sociologia não-valorativa,
absolutamente da mesma maneira que o carisma daqueles que, no juízo corrente, são os "maio-
res" heróis, profetas ou salvadores.

1. Sobre a v a l i d a d e d o c a r i s m a decide o l i v r e reconhecimento deste pelos d o m i n a -


dos, consolidado e m v i r t u d e de provas — originariamente, e m v i r t u d e d e milagres
— e o r i u n d o da entrega à r e v e l a ç ã o , da v e n e r a ç ã o de h e r ó i s o u da c o n f i a n ç a n o líder.
Mas esse reconhecimento ( e m caso de c a r i s m a g e n u í n o ) n ã o é a razão da legitimidade;
constitui, antes, u m d e v e r das pessoas chamadas a reconhecer essa qualidade, e m v i r t u d e
de v o c a ç ã o e p r o v a s . Psicologicamente, esse " r e c o n h e c i m e n t o " é u m a entrega crente
e inteiramente pessoal nascida do entusiasmo o u da miséria e esperança.

Nenhum profeta jamais considerou que sua qualidade dependesse da opinião da multidão
a seu respeito; nenhum rei eleito ou duque carismático jamais tratou os oponentes ou indiferentes
senão como prevaricadores: quem não participou de uma expedição militar de um líder cujos
componentes foram recrutados de maneira formalmente voluntária ficou exposto, no mundo
inteiro, ao escárnio dos outros.

2. Se p o r m u i t o t e m p o n ã o h á p r o v a s do c a r i s m a , se o agraciado c a r i s m á t i c o
parece abandonado p o r s e u deus o u sua f o r ç a m á g i c a o u h e r ó i c a , se lhe falha o sucesso
de m o d o p e r m a n e n t e e, sobretudo, se sua liderança não traz nenhum bem-estar aos
dominados, e n t ã o h á a possibilidade de desvanecer sua autoridade carismática. E s t e
é o sentido carismático g e n u í n o da d o m i n a ç ã o " p e l a g r a ç a de D e u s " .

Mesmo os antigos reis germânicos tinham às vezes de enfrentar o "desprezo" dos súditos.
Na China, a qualificação carismática (não modificada pelo carisma hereditário, veja § 11) do
monarca estava fixada de modo tão absoluto que todo infortúnio, de natureza qualquer — não
apenas derrotas de guerra, mas também secas, inundações, fenômenos astronômicos funestos
etc. — podia obrigá-lo à expiação pública e, eventualmente, à renúncia ao trono. Nesses casos,
ele não possuía o carisma da "virtude" exigida (e classicamente determinada) pelo espírito do
céu e, portanto, não era legítimo "filho do céu".

3- A a s s o c i a ç ã o d e d o m i n a ç ã o comunidade [dos adeptos (N T . )] é u m a r e l a ç ã o


c o m u n i t á r i a d e caráter e m o c i o n a l . O quadro administrativo d o s e n h o r carismático n ã o
é u m grupo de "funcionários profissionais", e muito menos ainda tem f o r m a ç ã o profis-
sional. N ã o é selecionado segundo critérios de d e p e n d ê n c i a d o m é s t i c a o u pessoal, m a s
160 MAX WEBER

segundo qualidades carismáticas: ao " p r o f e t a " c o r r e s p o d e m os " d i s c í p u l o s " ; ao " p r í n -


cipe g u e r r e i r o " , o " s é q u i t o " ; ao " l í d e r " , e m g e r a l , os " h o m e n s d e c o n f i a n ç a " . N ã o
h á " c o l o c a ç ã o " o u " d e s t i t u i ç ã o " , n e m " c a r r e i r a " o u " a s c e n s o " , m a s apenas n o m e a ç ã o
segundo a inspiração d o líder, e m v i r t u d e da q u a l i f i c a ç ã o carismática do invocado.
N ã o existe " h i e r a r q u i a " mas somente a i n t e r v e n ç ã o d o líder no caso de insuficiência
carismática d o q u a d r o administrativo p a r a determinadas tarefas, e m g e r a l o u no caso
i n d i v i d u a l , eventualmente a p e d i d o deste quadro. N ã o existe " c l i e n t e l a " n e m " c o m p e :
t ê n c i a " limitada, m a s t a m b é m n ã o há a p r o p r i a ç ã o de poderes funcionais e m v i r t u d e
de " p r i v i l é g i o s " , mas apenas (eventualmente) limitações espaciais o u objetivamente
condicionadas d o c a r i s m a e da " m i s s ã o " . N ã o existe " s a l á r i o " n e m " p r e b e n d a " , v i v e n d o
os discípulos o u sequazes ( o r i g i n a r i a m e n t e ) c o m o s e n h o r e m c o m u n i s m o d e a m o r
o u c a m a r a d a g e m , a partir dos m e i o s obtidos de fontes m e c ê n i c a s . N ã o há "autoridades
institucionais" f i x a s , mas apenas " e m i s s á r i o s " carismaticamente encarregados, dentro
dos limites da m i s s ã o s e n h o r i a l e do c a r i s m a p r ó p r i o . N ã o h á regulamento a l g u m , n e m
n o r m a s jurídicas abstratas, n e m jurisdição r a c i o n a l p o r elas orientada, n e m sabedorias
o u sentenças jurídicas orientadas p o r precedentes tradicionais, mas o f o r m a l m e n t e deci-
s i v o s ã o criações d e direito, p a r a cada caso i n d i v i d u a l , e originariamente somente juízos
de D e u s e revelações. Materialmente, p o r é m , aplica-se a toda d o m i n a ç ã o carismática
g e n u í n a a frase: " E s t á escrito — m a s e m v e r d a d e v o s d i g o " . O profeta g e n u í n o , b e m
c o m o o p r í n c i p e g u e r r e i r o g e n u í n o e todo líder g e n u í n o e m g e r a l , a n u n c i a , c r i a , exige
mandamentos novos — n o sentido o r i g i n á r i o d o c a r i s m a : . e m v i r t u d e d e r e v e l a ç ã o ,
do o r á c u l o , da inspiração, o u e n t ã o de sua vontade c r i a d o r a concreta, reconhecida,
devido a sua o r i g e m , pela c o m u n i d a d e religiosa, g u e r r e i r a , de partido o u outra qual-
quer. O reconhecimento é u m dever. Q u a n d o a d e t e r m i n a d a d i r e t i v a se o p õ e outra
concorrente, dada p o r outra pessoa c o m a p r e t e n s ã o de validade carismática, temos
u m a luta pela liderança que s ó pode ser decidida p o r meios m á g i c o s o u p e l o reconhe-
cimento (obrigatório) p o r parte da comunidade, luta e m q u e , de u m lado, somente
pode estar o direito e, do outro, somente a i n f r a ç ã o sujeita a e x p i a ç ã o .

A d o m i n a ç ã o carismática, c o m o algo exrracotidiano, o p õ e - s e estritamente tanto


à d o m i n a ç ã o r a c i o n a l , especialmente a b u r o c r á t i c a , quanto à tradicional, especialmente
a p a t r i a r c a l e p a t r i m o n i a l o u a estamental. A m b a s s ã o f o r m a s de d o m i n a ç ã o especifi-
camente cotidianas — a carismática ( g e n u í n a ) é especificamente o contrário. A domi-
n a ç ã o burocrática é especificamente r a c i o n a l n o sentido da v i n c u l a ç ã o a regras discursi-
v a m e n t e analisáveis; a carismática é especificamente i r r a c i o n a l n o sentido d e n ã o conhee
cer regras. A d o m i n a ç ã o tradicional está v i n c u l a d a aos precedentes d o passado e, nesse
sentido, é t a m b é m orientada p o r regras; a carismática d e r r u b a o passado (dentro de
s e u â m b i t o ) e, nesse sentido, é especificamente revolucionária. Esta n ã o c o n h e c e a
a p r o p r i a ç ã o d o poder s e n h o r i a l ao m o d o de u m a p r o p r i e d a d e d e bens, seja p e l o s e n h o r
seja p o r poderes estamentais. S ó é " l e g í t i m a " enquanto e n a m e d i d a e m q u e " v a l e " ,
isto é , encontra reconhecimento, o c a r i s m a pessoal, e m v i r t u d e d e p r o v a s ; e os homens
d e c o n f i a n ç a , discípulos o u sequazes s ó lhe s ã o " ú t e i s " enquanto t e m v i g ê n c i a sua
c o n f i r m a ç ã o carismática.

O que dissemos dificilmente requer explicações. Vale tanto para o dominador carismático
puramente "plebiscitário" (o "império do gênio" de Napoleão, que fez de plebeus reis e generais)
quanto para o profeta ou o herói de guerra.

4. O c a r i s m a p u r o é especificamente alheio à economia. Constitui, o n d e existe,


u m a " v o c a ç ã o " , n o sentido e n f á t i c o da p a l a v r a : c o m o " m i s s ã o " o u " t a r e f a " íntima.
D e s p r e z a e c o n d e n a , n o tipo p u r o , o aproveitamento e c o n ô m i c o dos dons a b e n ç o a d o s
ECONOMIA E SOCIEDADE 161

c o m o fonte de r e n d a — o que, no entanto, é mais u m ideal d o que u m a realidade.


N ã o é que o c a r i s m a sempre r e n u n c i e à propriedade e à aquisição desta, c o m o o f a z e m ,
e m certas circunstâncias (veja adiante), os profetas e seus discípulos. O h e r ó i de g u e r r a
e seu séquito procuram e s p ó l i o ; o d o m i n a d o r plebiscitário o u líder carismático de par-
tido busca meios materiais para assegurar seu poder; o p r i m e i r o , a l é m disso, p r o c u r a
o esplendor m a t e r i a l de sua d o m i n a ç ã o p a r a f i r m a r seu prestígio de senhor. O que
todos eles d e s d e n h a m — enquanto existe o tipo carismático g e n u í n o — é a economia
cotidiana tradicional o u r a c i o n a l , a o b t e n ç ã o de " r e c e i t a s " regulares p o r m e i o de u m a
atividade e c o n ô m i c a contínua dirigida para esse f i m . A m a n u t e n ç ã o por mecenas —
grandes mecenas ( d o a ç õ e s , c o r r u p ç ã o , gorjetas e m grande escala) — o u p o r m e n d i -
cância, de u m lado, e e s p ó l i o o u e x t o r s ã o violenta o u ( f o r m a l m e n t e ) pacífica, de o u t r o ,
sãõ^as f o r m a s típicas da p r o v i s ã o de necessidades carismáticas. D o ponto de vista da
economia racional, é u m a atitude tipicamente " a n t i e c o n ô m i c a " , pois recusa todo entre-
l a ç a m e n t o c o m o cotidiano. E m sua absoluta indiferença íntima, s ó pode " a p a n h a r " ,
por assim d i z e r , oportunidades aquisitivas ocasionais. O " v i v e r de r e n d a s " , c o m o f o r m a
de dispensa de toda a ç ã o e c o n ô m i c a , pode — para alguns tipos — ser o fundamento
e c o n ô m i c o de existências carismáticas. Mas isso n ã o costuma aplicar-se aos " r e v o l u c i o -
n á r i o s " carismáticos normais.

A renúncia a cargos eclesiásticos pelos jesuítas é uma aplicação racionalizada desse princípio
de'' discípulos''. É evidente que todos os heróis da ascese, as ordens mendicantes e os combatentes
pela fé também pertencem a essa categoria. Quase todos os profetas foram mantidos de forma
mecênica. A frase de Paulo, dirigida contra o parasitismo dos missionários — "Quem não trabalha,
não deve comer" —, não significa, naturalmente, uma afirmação da "economia", senão apenas
o dever de cuidar da própria subsistência, de algum modo e por atividade "acessória", pois
a parábola verdadeiramente carismática dos "lírios do campo" não é realizável em seu sentido
literal, mas apenas no sentido de não se preocupar com as necessidades do dia seguinte. Por
outro lado, é imaginável, no c a s a de um grupo de discípulos carismáticos de caráter primaria-
mente artístico, que se considere normal a renúncia às lutas econômicas apenas para "economi-
camente independentes" (rentistas, portanto), limitando-se a vocação verdadeira a estes (como
no círculo de Stefan George, pelo menos segundo a intenção originária)

5. O c a r i s m a é a grande f o r ç a revolucionária nas é p o c a s c o m forte v i n c u l a ç ã o


à tradição. Diferentemente da f o r ç a t a m b é m revolucionária da ratio, que o u atua de
f o r a para dentro — pela m o d i f i c a ç ã o das circunstâncias e problemas da vida e assim,
indiretamente, das respectivas atitudes — , o u e n t ã o por intelectualização, o carisma
pode ser u m a t r a n s f o r m a ç ã o c o m ponto de partida íntimo, a q u a l , nascida de miséria
o u entusiasmo, significa u m a m o d i f i c a ç ã o da d i r e ç ã o da consciência e das a ç õ e s , c o m
orientação totalmente nova de todas as atitudes diante de todas as f o r m a s de v i d a e
diante do " m u n d o " , e m g e r a l . Nas é p o c a s pré-racionalistas, a tradição e o carisma
d i v i d e m entre si a quase totalidade das d i r e ç õ e s de o r i e n t a ç ã o das ações.

5. A r o t i n i z a ç ã o d o c a r i s m a

§ 1 1 . E m sua f o r m a g e n u í n a , a d o m i n a ç ã o carismática é de caráter especificamente


extracotidiano e representa u m a r e l a ç ã o social estritamente pessoal, ligada à validade
carismática d e determinadas qualidades pessoais e à prova destas. Q u a n d o essa r e l a ç ã o
n ã o é p u r a m e n t e e f ê m e r a , mas assume o caráter de u m a r e l a ç ã o permanente — "comu-
n i d a d e " de correligionários, g u e r r e i r o s o u discípulos, o u associação d e partido, o u
associação política o u hierpcrática — a d o m i n a ç ã o carismática, que, p o r assim dizer,
somente in statu nascendi existiu e m pureza típico-ideal, tem de modificar substan-
162 MAX WEBER

cialmente seu caráter: tradicionaliza-se o u racionaliza-se (legaliza-se), o u ambas as coi-


sas, e m vários aspectos. O s motivos que i m p u l s i o n a m p a r a isso s ã o os seguintes:
a ) o interesse ideal ou m a t e r i a l dos adeptos na persistência e r e a n i m a ç ã o contínua
da comunidade;
b) o interesse ideal e o m a t e r i a l , ambos mais f o n e s , do quadro administrativo-.
dos sequazes, discípulos, homens de c o n f i a n ç a de u m partido etc., e m
1. continuar a existência cia r e l a ç ã o , e isto
2. de tal m o d o que esteja colocada, ideal e materialmente, a p o s i ç ã o própria
sobre u m fundamento cotidiano d u r a d o u r o : externamente, o estabelecimento da exis-
tência familiar o u , pelo menos, da existência saturada, e m lugar das " m i s s õ e s " estranhas
à família e à economia, e isoladas d o m u n d o .
Esses interesses tornam-se tipicamente atuais q u a n d o desaparece a pessoa porta-
d o r a do carisma e surge a questão da sucessão. O m o d o c o m o esta se resolve — desde
que se r e s o l v a , persistindo, portanto, a comunidade carismática ( o u nascendo s ó então)
— é essencialmente decisivo p a r a a natureza geral das relações sociais que e n t ã o se
desenvolvem.

Pode h a v e r os seguintes tipos de soluções:


a) Escolha n o v a , segundo determinadas características, de u m a pessoa qualificada
para a liderança p o r ser portadora d o carisma.

Tipo bastante puro: a escolha do novo Dalai-Lama (criança a ser escolhida segundo indícios
da encarnação do divino, semelhante à escolha do touro Ápis).

Neste caso, a legitimidade do n o v o portador do c a r i s m a está ligada a caracte-


rísticas, isto é, " r e g r a s " p a r a as quais existe u m a tradição (tradicionalização), retroce-
dendo, portanto, o caráter puramente pessoal. _ -

ò ) Por revelação: o r á c u l o , sorteio, juízo de Deus o u outras técnicas de s e l e ç ã o .


Neste caso, a legitimidade do n o v o portador do c a r i s m a está deduzida da legitimidade
da respectiva técnica (legalização).

Os schôphetim israelitas, segundo se diz, tinham às vezes esse caráter. Diz-se que o antigo
oráculo da guerra designou Saul.

c ) Por d e s i g n a ç ã o d o sucessor pelo portador anterior do carisma e reconheci-


mento pela comunidade.

Forma muito freqüente. A criação das magistraturas romanas (conservada com maior clare-
ia na designação dos ditadores e na instituição do interrex) tinha originariamente esse caráter.

A legitimidade torna-se e n t ã o u m a legitimidade adquirida por d e s i g n a ç ã o .

d) Por d e s i g n a ç ã o do sucessor pelo q u a d r o administrativo carismaticamente quali-


ficado, e reconhecimento pela comunidade. Mas n e m de longe se deve associar esse
processo c o m a idéia de " e l e i ç ã o " o u " d i r e i t o de p r é - e l e i ç ã o " o u " p r o p o s t a e l e i t o r a l " .
Não se trata de u m a s e l e ç ã o l i v r e , mas estritamente vinculada a determinados d e v e r e s ,
nem de votos de m a i o r i a s , mas da d e s i g n a ç ã o justa, s e l e ç ã o da pessoa certa, d o v e r d a -
deiro portador do c a r i s m a , na escolha do q u a l pode t a m b é m acertar a m i n o r i a . A unani-
midade é u m postulado, o reconhecimento de e r r o s é u m dever, a persistência nestes
ECONOMIA E SOCIEDADE 163

é u m a falta muito g r a v e , u m a escolha " f a l s a " é u m a i n f r a ç ã o (originariamente m á g i c a )


a ser expiada.
Neste caso, n o entanto, a legitimidade dá facilmente a i m p r e s s ã o de basear-se
na aquisição de u m direito, realizada c o m todas as cautelas da justeza e na m a i o r i a
das vezes ligada a determinadas formalidades (entronização etc.).

Este é o sentido originário da coroação, no Ocidente, de bispos e reis pelo clero ou por
príncipes, com consentimento da comunidade, e de muitos processos análogos no mundo inteiro.
Que nisso tenha origem a idéia da "eleição" é uma coisa que cabe examinar posteriormente.

e ) Pela idéia d e que o c a r i s m a seja u m a qualidade d ò sangue e, portanto, seja


inerente ao clã do portador, especialmente aos parentes m a i s p r ó x i m o s : carisma heredi-
tário. Neste caso, a ordem de sucessão não é necessariamente a m e s m a que p a r a os
direitos apropriados, s e n ã o muitas vezes h e t e r o g ê n e a , o u se t e m de v e r i f i c a r , p o r m e i o
dos m é t o d o s a-d, q u e m seja o h e r d e i r o " a u t ê n t i c o " dentro do clã.

Entre os negros, há o duelo entre irmãos. Uma ordem de sucessão que não perturba
a relação com os espíritos dos antepassados (a geração seguinte) é encontrada, por exemplo,
na China. O seniorato ou a designação pelo séquito foram muito freqüentes no Oriente (daí
explica-se o "dever" da exterminação de todos os demais pretendentes possíveis na dinastia
Osman).

Somente n o Ocidente m e d i e v a l e n o J a p ã o , a l é m de alguns casos isolados, penetrou


o p r i n c í p i o i n e q u í v o c o do direito de sucessão d o p r i m o g ê n i t o , f a v o r e c e n d o muito a
c o n s o l i d a ç ã o das associações políticas (evitando lutas entre vários pretendentes d o clã
c o m carisma hereditário).
A f é n ã o se r e f e r e , nestes casos, às qualidades carismáticas de u m a pessoa, mas,
s i m , à a q u i s i ç ã o legítima e m v i r t u d e da o r d e m de sucessão (tradicionalização e legaliza-
ção). O conceito de " s e n h o r pela g r a ç a de D e u s " m u d a completamente s e u sentido
e significa agora: senhor p o r direito p r ó p r i o , e não p o r u m direito que depende do
reconhecimento p o r parte dos dominados. O c a r i s m a pessoal pode faltar p o r completo.

A monarquia hereditária, as inúmeras hierocracias hereditárias na Ásia e o carisma heredi-


tário dos clãs como indício da alta posição social e da qualificação para feudos e prebendas
(veja o § seguinte) pertencem a esta categoria.

f) Pela idéia de que o c a r i s m a seja u m a qualidade (originalmente m á g i c a ) q u e ,


por meios h i e r ú r g i c o s de u m portador dele, possa ser transmitida p a r a outras pessoas
o u p r o d u z i d a nestas: o b j e t i v a ç ã o d o c a r i s m a , particularmente carisma de cargo. A crença
na legitimidade, nestes casos, n ã o se r e f e r e m a i s a u m a pessoa, mas, s i m , às qualidades
adquiridas e à eficácia dos atos h i e r ú r g i c o s .

Exemplo mais importante: o carisma sacerdotal, transmitido ou confirmado por unção,


consagração ou aposição de mão, e o carisma real, por unção e coroação. O character indelebilis
significa o desligamento das faculdades carismáticas do cargo das qualidades da pessoa do sacer-
dote. Precisamente por isso suscitou lutas incessantes, desde o donatismo e o montanismo até
a revolução puritana (batista) — (o "mercenário" dos quacres é o pregador com carisma de
cargo)

§ 12. Paralelamente à rotinização do carisma p o r m o t i v o da n o m e a ç ã o d e u m jc


sucessor manifestam-se os interesses na rotinização p o r parte d o quadro administrativo.
164 MAX WEBER

Somente in statu nascendi e enquanto o senhor carismático rege de modo genuinamente


exíracotidiano, pode o quadro administrativo viver com este senhor, reconhecido por
fé e entusiasmo, de forma mecênica ou em função de espólio ou de receitas ocasionais.
Somente a pequena camada de discípulos ou sequazes entusiasmados dispõe-se a viver
dessa maneira, coloca sua vida a serviço de sua "vocação", de modo apenas "ideal".
A grande maioria quer fazê-lo (ao longo do tempo) também de modo material, e tem
de fazê-lo, para não desaparecer.
Por isso, a rotinlzação do carisma realiza-se, também,
1. na forma de apropriação de poderes de mando e oportunidades aquisitivas
pelos sequazes ou discípulos, e com regulação de seu recrutamento.
2. Essa tradicionalização ou legalização (segundo existam ou não estatutos) pode
assumir diferentes formas típicas:
1) o modo de recrutamento genuíno é segundo o carisma pessoal. Os sequazes
ou discípulos, em caso de rotinização do carisma, podem estabelecer normas para o
recrutamento, especialmente
a) normas de educação, ou
b) normas de prova.
O carisma só pode ser "despertado" e "provado", e não "aprendido" ou "incul-
cado' '. Todas as espécies de ascese mágica (de feiticeiros ou heróis) e todos os noviciados
pertencem a esta categoria de fechamento da associação do quadro administrativo (sobre
a educação carismática, veja capítulo IV). Somente o noviço provado tem acesso aos
poderes de mando. O líder carismático genuíno pode opor-se com êxito a essas preten-
sões — mas não o sucessor, e menos ainda o eleito pelo quadro administrativo (§11
d[p. 162]).

Pertence a esse tipo toda ascese de magos e guerreiros na "casa dos homens", com consa-
gração dos educandos e classes etárias. Quem não passa na prova de guerreiro, fica "mulher",
ou seja, é excluído do séquito.

2) As normas carismáticas podem transformar-se facilmente em estamentais tradi-


cionais (carismático-hereditárias) Quando existe carisma hereditário (§11 e) do líder,
é muito provável também a vigência desse princípio para o quadro administrativo e
eventualmente até para os adeptos, como regra de seleção e emprego dessas pessoas.
Quando uma associação política está dominada rigorosa e completamente por esse prin-
cípio do carisma hereditário, realizando-se toda apropriação de poderes de mando,
feudos, prebendas e oportunidades aquisitivas, de todas as espécies, segundo esse princí-
pio, temos o tipo "estado de linhagem". Todos os poderes e oportunidades de todas
as espécies são tradicionalizados. Os chefes de clã (gerontocratas ou patriarcas tradicio-
nais, não pessoalmente legitimados por carisma) regulam a realização dos princípios,
direito que não pode ser retirado de seu clã. Não é a natureza do cargo que determina
a "posição social" do homem ou de seu clã, mas a posição de clã carismático-hereditária
é decisiva para os cargos que lhes são adequados.

Exemplos principais: o Japão, antes da burocratização; em grande parte, também a China


(as "velhas" famílias), antes da racionalização, nas diversas partes do Estado-, a índia, com as
ordens das castas; a Rússia, antes da introdução do mestnitchestvo e depois em outra forma;
igualmente, por toda parte, os "estamentos hereditários" com privilégios fixos (sobre isso, capí-
tulo IV)

3 ) O quadro administrativo pode exigir e realizar a criação e apropriação de


ECONOMIA E SOCIEDADE 165

cargos e oportunidades aquisitivas individuais p a r a seus'membros. Neste caso s u r g e m ,


segundo haja tradicionalização ou legalização:
a) prebendas ( p r e b e n d a l i z a ç ã o — v e j a a n t e s )
b) cargos (patrimonialização e b u r o c r a t i z a ç ã o — v e j a a n t e s )
c ) feudos ( f e u d a l i z a ç ã o [— v e j a adiante, § 12 6 ] ) ,
os quais são apropriados, e m lugar da m a n u t e n ç ã o originária, puramente acosmística,
a partir de meios m e c ê n i c o s o u e s p ó l i o . E m p o r m e n o r e s ,
a:
a ) prebendas de m e n d i c â n c i a ,
0 ) prebendas de rendas e m e s p é c i e ,
y) prebendas de impostos e m d i n h e i r o ,
8 ) prebendas de emolumentos,
pela r e g u l a ç ã o da m a n u t e n ç ã o , inicialmente puramente m e c ê n i c a ( a ) o u p u r a m e n t e
na base de e s p ó l i o ( 0 , y), orientada pela o r g a n i z a ç ã o f i n a n c e i r a racional.

Com respeito a
a ) budismo,
0 ) prebendas de arroz, na China e no Japão,
y) caso normal em todos os Estados conquistadores racionalizados,
8 ) inúmeros exemplos isolados, por toda parte, especialmente sacerdotes e juízes; na índia
também autoridades militares.

Corri respeito a b. a tendência ao " c a r i s m a de c a r g o " das missões carismáticas


pode ser de caráter mais p a t r i m o n i a l o u mais burocrático. O p r i m e i r o caso constitui
a r e g r a , o segundo encontramos na Antiguidade e n o Ocidente m o d e r n o , mais r a r a m e n t e
e c o m o e x c e ç ã o t a m b é m e m outras partes.

C o m respeito a c a. f e u d o de terras c o m c o n s e r v a ç ã o do caráter de m i s s ã o do


cargo c o m o tal.
C o m respeito a c 0 : a p r o p r i a ç ã o p l e n a , c o m caráter de feudo, dos poderes de
mando.

Ambos dificilmente separáveis. A orientação do cargo pelo caráter de missão dificilmente


desaparece por completo, nem na Idade Média.

§ 12 a . C o n d i ç ã o prévia da rotinização do carisma é a e l i m i n a ç ã o de sua atitude


alheia à e c o n o m i a , sua a d a p t a ç ã o a f o r m a s fiscais ( f i n a n c e i r a s ) da p r o v i s ã o das necessi-
dades e, c o m isso, a c o n d i ç õ e s e c o n ô m i c a s capazes de r e n d e r impostos e tributos.
E m r e l a ç ã o aos " l e i g o s " das m i s s õ e s e m processo de p r e b e n d a l i z a ç ã o está o " c l e r o " ,
o m e m b r o participante ( c o m " p a r t i c i p a ç ã o " , xATjpos)do q u a d r o administrativo carismá-
tico, mas agora rotinizado (sacerdotes da " i g r e j a " n a s c e n t e ) perante os " s ú d i t o s f i s c a i s " ,
estão os vassalos, p r e b e n d á r i o s e f u n c i o n á r i o s da associação política nascente — e m
caso de racionalidade, do " E s t a d o " — , o u talvez os f u n c i o n á r i o s de partido, que substi-
tuíram os " h o m e n s de c o n f i a n ç a " .

Esse processo pode ser observado tipicamente entre os budistas e nas seitas hinduistas
(veja na Sociologia da religião) Do mesmo modo, em todos os impérios racionalizados de conquis-
tadores. Além disso, em partidos e outras formações de origem carismática.

C o m a rotinização, a associação de d o m i n a ç ã o carismática desemboca, portanto,


e m grande parte, nas f o r m a s da d o m i n a ç ã o cotidiana: da p a t r i m o n i a l — especialmente,
166 MAX WEBER

estamental — o u da burocrática. O p r i m i t i v o caráter particular manifesta-se na honra


estamental carismático-hereditária o u de cargo dos apropriantes, tanto do senhor quanto
do q u a d r o administrativo, portanto, na natureza d o prestígio da liderança. U m monarca
hereditário " p e l a .graça de D e u s " n ã o é u m simples senhor p a t r i m o n i a l , patriarca o u
xeque, c o m o u m vassalo t a m b é m n ã o é u m simples ministerial o u f u n c i o n á r i o . Os
p o r m e n o r e s pertencem à teoria dos "e s ta me n to s ".
A rotinização n ã o se realiza, e m r e g r a , sem lutas. No início, s ã o inesquecíveis
as e x i g ê n c i a s pessoais e m r e l a ç ã o ao c a r i s m a d o senhor, e a luta entre o carisma de
cargo o u o hereditário e o pessoal constitui u m processo típico na história.

1. A transformação do poder expiatório (absolvição de pecados mortais) de um poder


pessoal dos próprios mártires e ascetas em um poder de cargo de bispos e sacerdotes realizou-se
muito mais lentamente no Oriente do que no Ocidente, sob a influência do conceito romano
de "cargo". Revoluções de líderes carismáticos contra poderes carismático-hereditários ou institu-
cionalizados encontram-se em associações de todas as espécies, desde o Estado até os sindicatos
(especialmente agora!). Quanto mais desenvolvidas são as dependências intereconômicas da eco-
nomia monetária tanto mais forte torna-se a pressão das necessidades cotidianas dos adeptos
e, com isso, a tendência à rotinização que atuou por toda parte e, em regra, rapidamente venceu.
O carisma é um fenômeno inicial típico de dominações religiosas (proféticas) ou políticas (de
conquista) que, no entanto, cede aos poderes do cotidiano logo que a dominação está assegurada
e, sobretudo, assim que assume caráter de massa.
2. E m todos os casos, um motivo impulsor da rotinização do carisma é, naturalmente,
o empenho por assegurar, vale dizer, por legitimar as posições sociais de mando e as oportu-
nidades econômicas para os sequazes e adeptos do senhor. Outro é a necessidade objetiva da
adaptação das ordens e do quadro administrativo às exigências e condições normais de uma
administração cotidiana. Estes constituem, particularmente, pontos de referência para uma tradi-
ção administrativa e jurisdicional necessários tanto a um quadro administrativo normal quanto
aos dominados. Além disso, é preciso haver alguma ordenação dos cargos dos membros dos
quadros administrativos. Por f im e sobretudo—assunto ao qual voltaremos mais tarde em minúcia
—, a adaptação dos quadros administrativos e de todas as disposições administrativas às condições
econômicas cotidianas — cobertura dos custos por espólio, contribuições, doações e hospitalidade
—, tal como ocorre no estádio atual do carisma guerreiro e profético, não constituem fundamentos
possíveis de uma administração cotidiana duradoura.
3 A rotinização não é ocasionada, portanto, somente pelo problema do sucessor e está
muito longe de afetar apenas este último. Ao contrário, o problema principal é a transição dos
quadros e princípios administrativos carismáticos para os cotidianos. Mas o problema do sucessor
afeta a rotinização do núcleo carismático — o próprio senhor e sua legitimidade —, mostrando,
em oposição ao problema da transição para ordens e quadros administrativos tradicionais ou
legais, concepções peculiares e características só compreensíveis do ponto de vista desse processo.
As mais importantes delas são a designação carismática do sucessor e o carisma hereditário.
4. O exemplo historicamente mais importante da designação do sucessor pefo próprio
senhor carismático é, conforme mencionado, Roma. Para orex, ela está confirmada pela tradição;
para o ditador e o co-regente e sucessor no principado, está comprovada nos tempos históricos;
a forma de nomeação de todos os funcionários com imperíum mostra claramente que também
para eles existia a designação do sucessor pelo procônsul, com reserva de seu reconhecimento
por parte da milícia. Pois a prova e, na origem, a exclusão evidentemente arbitrária do candidato
pelo magistrado em exercício mostra claramente o desenvolvimento
5 Os exemplos mais importantes da designação do sucessor pelo séquito carismático são
a nomeação dos bispos e especialmente do papa, em virtude da designação — originariamente
— pelo clero e do reconhecimento pela comunidade, e a eleição do rei alemão, que (como
parece provável segundo as exposições de U. Stutz) imita, em forma modificada, a nomeação
dos bispos: designação por determinados príncipes e reconhecimento pelo "povo" (em armas).
Formas semelhantes são muito freqüentes.
6. O país clássico do desenvolvimento do carisma hereditário foi a índia. Todas as quali-
dades profissionais e especialmente qualidades de autoridade e posições de liderança eram ali
ECONOMIA E SOCIEDADE 167

consideradas rigorosamente vinculadas ao carisma hereditário. A pretensão a feudos constituídos


por direitos de mando estava ligada à pertinência ao clã do rei; os feudos eram avaliados pelo
mais velho do clã. Todas as funções hierocráticas — inclusive a singularmente importante e
influente de guru (directeur de l'âme) — , todas as relações com clientes, que também eram
distribuídas, todas as posições estabelecidas dentro de uma aldeia (sacerdote, barbeiro, lavador,
vigia etc. ) eram consideradas vinculadas ao carisma hereditário. A fundação de uma seita signifi-
cava a fundação de uma hierarquia hereditária. (O mesmo se aplica ao taoísmo chinês. ) Também
no "Estado de linhagem" japonês (antes da introdução do Estado patrimonial-burocrático, orien-
tado pelo modelo chinês, que levou à prebendalização e feudalização), a estrutura social era
puramente carismático-hereditária (pormenores em outro contexto).
Esse direito carismático-hereditário às posições de liderança desenvolveu-se em forma
semelhante no mundo inteiro. A qualificação em virtude de capacidade pessoal foi substituída
pela qualificação em virtude de descendência. Esse fenômeno constitui por toda parte o funda-
mento sobre o qual se desenvolveram os estamentos hereditários, tanto na nobreza romana
quanto, segundo Tácito, no conceito germânico da stirps regia, nas regras dos torneios e da
capacidade de fundação da Idade Média tardia, nos modernos estudos de pedigree da nova
aristocracia americana e, em geral, em todo lugar onde se convive com a diferenciação "esta-
mental" (sobre isto, veja adiante).

Relação com a economia: a rotinização do carisma é, e m aspectos muito essenciais,


idêntica à a d a p t a ç ã o às c o n d i ç õ e s da economia c o m o f o r ç a cotidiana continuamente
atuante. Neste processo, a economia é a parte dirigente, e n ã o a dirigida. E m g r a u
e x t r e m o s e r v e aí a t r a n s f o r m a ç ã o carismático-hereditária ou carismática de cargo c o m o
meio da legitimação de poderes de disposição existentes o u adquiridos. Particularmente
a c o n s e r v a ç ã o das m o n a r q u i a s hereditárias está t a m b é m fortemente condicionada —
além das ideologias de fidelidade que certamente n ã o d e i x a m de ter importância —
pela c o n s i d e r a ç ã o de que toda propriedade herdada e legitimamente adquirida possa
ser abalada c o m a e l i m i n a ç ã o da v i n c u l a ç ã o íntima à santidade da herança do trono;
n ã o é u m acaso, portanto, que essa atitude seja mais adequada às camadas possuidoras
do que ao proletariado.
A l é m disso, n ã o parece possível dizer algo muito geral (e ao m e s m o tempo de
c o n t e ú d o objetivo e v a l i o s o ) sobre as relações c o m a economia das diversas possibi-
lidades de adaptação: este aspecto fica reservado p a r a u m e x a m e particular. A prebenda-
lização, a f e u d a l i z a ç ã o e a a p r o p r i a ç ã o carismático-hereditária de possibilidades de
todo tipo p o d e m , e m todos os casos, e x e r c e r seus efeitos estereotipantes, ao desenvol-
ver-se a partir tanto do carisma quanto de c o n d i ç õ e s iniciais de caráter patrimonial
ou b u r o c r á t i c o , e repercutir assim sobre a economia. O poder do c a r i s m a , e m g e r a l
t a m b é m fortemente r e v o l u c i o n á r i o no â m b i t o e c o n ô m i c o e f r e q ü e n t e m e n t e destrutivo
n o início, por estar (eventualmente) orientado por idéias " n o v a s " e sem " p r e s s u p o s t o "
— atua então e m sentido contrário ao inicial.

Sobre a economia de revoluções (carismáticas) convém falar separadamente Ela pode


ser muito diversa.

6. F e u d a l i s m o

§ 1 2 6 . ) C o n v é m abordar, ainda, e m particular, o caso mencionado no § 12, t ó p i c o


3 c ( f e u d o s ) , na medida e m que dele pode surgir uma estrutura de associação de d o m i -
n a ç ã o distinta tanto do patrimonialismo quanto do carismatismo g e n u í n o o u hereditário
e c o m e n o r m e s i g n i f i c a ç ã o histórica: o feudalismo. Distinguiremos, c o m o f o r m a s autên-
ticas, o f e u d a l i s m o de feudo e o de prebenda. Todas as demais f o r m a s , chamadas
168 MAX WEBER

" f e u d a i s " , de c o n c e s s ã o de terras funcionais e m troca de serviços militares s ã o , na


realidade, de caráter patrimonial ( m i n i s t e r i a l ) e n ã o s e r ã o examinadas aqui, c o m o casos
especiais. Das diversas f o r m a s de prebendas s ó falaremos mais tarde nas exposições
detalhadas. [Veja, n ã o obstante, o § 12 c. ]
AA. Feudo significa sempre:
aa) a a p r o p r i a ç ã o de poderes de m a n d o e direitos senhoriais. Podem ser apro-
priados c o m o feudos
a ) apenas poderes dentro da g e s t ã o patrimonial ou
0) direitos dentro da associação, mas apenas e c o n ô m i c o s (fiscais) ou
. y) poderes de mando dentro da associação [veja adiante: BB, ff\.
A e n f e u d a ç ã o realiza-se c o m o c o n c e s s ã o e m troca de serviços específicos, n o r m a l -
mente e e m p r i m e i r o lugar militares, mas t a m b é m administrativos. A c o n c e s s ã o efetua-se
e m formas muito específicas, a saber:
bb) originariamente, com caráter puramente pessoal, pela vida do senhor e do
vassalo. A l é m disso,
cc) e m virtude de contrato, portanto, c o m u m h o m e m l i v r e , o qual (no caso
da relação que aqui chamamos feudalismo de f e u d o )
dd) tem u m modo de v i d a especificamente estamental (de cavaleiro).
e e ) O contrato de feudo n ã o é u m " n e g ó c i o " c o m u m , mas u m a confraternização,
p o r é m c o m direitos desiguais, que tem c o m o c o n s e q ü ê n c i a s determinados deveres recí-
procos de fidelidade, os quais
a a ) se baseiam na honra estamental (de c a v a l e i r o ) e
00) estão rigorosamente delimitados.
A transição do tipo a (§ 12, t ó p i c o 3, nas explicações c o m respeito a c ) para
o tipo 0 o c o r r e quando
aaa) a a p r o p r i a ç ã o dos feudos é hereditária, c o m a única c o n d i ç ã o de aptidão
e r e n o v a ç ã o da promessa de fidelidade a todo novo senhor por todo novo detentor,
e quando
bbb) o quadro administrativo de caráter feudal i m p õ e a obrigação à concessão
porque todos os feudos são considerados u m fundo de m a n u t e n ç ã o dos pertinentes
ao estamento.

O primeiro caso surgiu relativamente cedo na Idade Média; o segundo, mais tarde, nesse
mesmo período A luta do senhor contra os vassalos pretendia sobretudo a eliminação (tácita)
desse princípio, o qual evidentemente tornou impossível a criação ou a obtenção de um "poder
doméstico" patrimonial próprio do senhor

BB A administração de caráter feudal (feudalismo de f e u d o ) significa, e m caso


de realização c o n s e q ü e n t e — ainda que e m pureza absoluta seja tão pouco observável
quanto o patrimonialismo puro — , que:
aa) todo poder de mando se reduz às possibilidades de serviços existentes e m
virtude da promessa de fidelidade dos vassalos;
bb) a associação política é completamente substituída por u m sistema de relações
de fidelidade puramente pessoais entre o senhor e seus vassalos, e entre estes e seus
subvassalos (subenfeudados), e daí por diante, até os eventuais subvassalos destes últi-
mos. O senhor tem direito à fidelidade somente de seus vassalos, estes somente à fideli-
dade dos subvassalos, e assim por diante;
cc) somente e m caso de " f e l o n i a " o senhor pode retomar o feudo de seus vassalos,
e estes de seus subvassalos, e assim por diante. Neste caso, no entanto, o senhor,
e m suas ações contra o vassalo infiel, depende do apoio dos outros vassalos ou da
ECONOMIA E SOCIEDADE 169

passividade dos subvassalos d o " t r a i d o r " . A m b a s as coisas s ó p o d e m ser esperadas


quando os p r i m e i r o s o u os segundos, p o r sua v e z , t a m b é m j u l g u e m h a v e r o c o r r i d o
felonia de seu c o m p a n h e i r o o u d o senhor imediato contra o s e n h o r superior. E , m e s m o
neste caso, n ã o p o d e s e r esperado o a p o i o dos subvassalos d o " i n f i e l " , a n ã o ser que
o senhor tenha logrado i m p o r esre caso — a luta do senhor imediato contra o s e n h o r
superior — c o m o e x c e ç ã o na s u b e n f e u d a ç ã o ( o que s e m p r e foi tentado, n e m s e m p r e
c o m êxito),
dd) existe u m a h i e r a r q u i a f e u d a l estamental ( n o Espelho da Saxônia. os " e s c u -
d o s " ) segundo a o r d e m da s u b e n f e u d a ç ã o . Mas n ã o se trata de u m a " s é r i e de instâncias"
n e m de u m a " h i e r a r q u i a " p r o p r i a m e n t e dita. Na v e r d a d e , a q u e s t ã o de u m a m e d i d a
o u sentença poder ser impugnada e c o m q u e m n ã o depende principalmente do t r i b u n a l
s u p r e m o (Oberhof), n ã o se decide segundo o sistema feudal h i e r á r q u i c o (o t r i b u n a l
s u p r e m o pode — teoricamente — estar e n f e u d a d o a u m c o m p a n h e i r o do detentor
do poder j u r i s d i c i o n a l , ainda que de fato isto n ã o costume o c o r r e r )
e e ) aqueles q u e n ã o se e n c o n t r a m na h i e r a r q u i a f e u d a l c o m o detentores de feudos
de poderes de m a n d o patrimoniais o u dentro da associação s ã o " s ú d i t o s i n f e r i o r e s "
(Hintersassen), isto é, dependentes patrimoniais. E s t ã o submetidos aos enfeudados,
na medida e m que assim o condiciona o u permite sua situação tradicional, e m especial
sua p o s i ç ã o estamental, o u consegue i m p ô - l o o poder dos detentores militares de feudos,
perante os quais os dependentes f i c a m relativamente indefesos. A frase: " N u l l e terre
sans s e i g n e u r " aplica-se tanto ao senhor (concessão d e terras o b r i g a t ó r i a ) quanto aos
n ã o - e n f e u d a d o s . O ú n i c o remanescente do antigo p o d e r de m a n d o imediato, dentro
da associação é o p r i n c í p i o , quase s e m p r e vigente, de que os poderes de m a n d o , sobre-
tudo os jurisdicionais, cabem ao senhor f e u d a l onde atualmente se encontra-,
ff) poderes p r ó p r i o s à g e s t ã o p a t r i m o n i a l (de disposição sobre d o m í n i o s , escra-
vos, s e r v o s ) direitos fiscais dentro da associação (direito a impostos e tributos) e poderes
de m a n d o dentro da associação (poder j u r i s d i c i o n a l e de l e v a militar, portanto, poderes
sobre os " l i v r e s " ) tornam-se, s e m d ú v i d a , objetos de e n f e u d a ç ã o .
Mas os poderes de mando dentro da associação estão e m r e g r a submetidos a
ordens particulares;

Na China antiga, feudos puramente de renda e feudos territoriais diferenciavam-se também


pelo nome. Isso não ocorreu na Idade Média ocidental, mas houve diferenciação na qualidade
estamental e em numerosos pontos particulares não tratados aqui.

A a p r o p r i a ç ã o plena dos poderes de mando dentro da associação s ó é imposta


— à s e m e l h a n ç a da a p r o p r i a ç ã o de direitos patrimoniais enfeudados — c o m várias
transições e atrasos, d e que f a l a r e m o s m a i s tarde. O que e m regra permanece é a
diferença estamental entre o e n f e u d a d o c o m direitos apenas relativos à g e s t ã o patrimo-
nial o u puramente fiscais e o e n f e u d a d o c o m poderes de m a n d o dentro da associação:
s e n h o r i o j u r i s d i c i o n a l (sobretudo, direito sobre a v i d a e a m o r t e ) e s e n h o r i o militar
(especialmente, f e u d o de b a n d e i r a ) este ú l t i m o constituído p o r vassalos políticos)
E v i d e n t e m e n t e , e m caso d e f e u d a l i s m o de f e u d o relativamente p u r o , o poder
s e n h o r i a l é extremamente p r e c á r i o p o r depender da vontade de obedecer e, p a r a tanto,
da fidelidade puramente pessoal d o q u a d r o administrativo de posse dos meios de admi-
nistração, apropriados c o m o feudos. Por isso, a luta latente pelo poder de m a n d o entre
o s e n h o r e os vassalos t e m caráter c r ô n i c o e em lugar nenhum u m a administração
f e u d a l r e a l m e n t e típico-ideal ( c o n f o r m e aa-ff) se i m p ô s o u constituiu u m a r e l a ç ã o d u r a -
d o u r a e efetiva. Na realidade, s e m p r e que p ô d e , o senhor:
170 MAX WEBER

gg) procurou impor, contra o princípio de fidelidade puramente pessoal (cc e dd)
aa) a limitação ou proibição da subenfeudação;

Decretada com freqüência no Ocidente, mas muitas vezes pelo próprio quadro adminis-
trativo, por seus interesses de poder (na China, observada no cartel dos príncipes de 630 a.C.)

00) a não-validade do dever de fidelidade dos subvassalos a seu senhor em caso


de confronto entre este e o senhor feudal superior; e, se possível,
y y ) o dever imediato de fidelidade também dos subvassalos ao senhor feudal
superior;
hh) procurou assegurar seu direito de controle da administração exercida pelos
poderes de mando dentro da associação, por meio de
a a ) direito de queixa dos súditos inferiores ao senhor feudal superior e de apela-
ção aos tribunais deste;
00) fiscais nas cortes dos vassalos políticos,
y y ) direito tributário próprio para com os súditos de todos os vassalos;
88) nomeação de determinados funcionários dos vassalos políticos;
ee) manutenção do princípio
aaa) de que todos os poderes senhoriais cabem a ele, o senhor feudal superior,
quando pessoalmente presente; e, além disso, o estabelecimento do princípio
bbb) de ele, como senhor feudal, poder levar a seu tribunal assuntos quaisquer,
segundo seu arbítrio.
Esse poder só pode ser obtido e mantido pelo senhor perante os vassalos (e outros
apropriantes de poderes senhoriais) quando
ü) ele cria ou restabelece ou organiza adequadamente um quadro administrativo
próprio. Este pode ser
a a ) de caráter patrimonial (ministerial),

Caso freqüente em nossa Idade Média; no Japão, houve obakufu do xógum, que controlava
sensivelmente os daimios.

00) de caráter extrapatrimonial, estamental, formado de literatos;

Clérigos (cristãos, brâmanes) e kayasth (budistas, lamaístas, islâmicos) ou humanistas (na


China: literatos confuçianos) Sobre a natureza peculiar e os poderosos efeitos culturais, veja
o capítulo IV.

y y ) um quadro administrativo profissionalmente qualificado, especialmente com


formação jurídica e militar.

Na China, proposto em vão por Wang An Shi, no século XI (mas então não mais dirigido
contra os feudais mas contra os literatos) No Ocidente foi imposta, para a administração civil,
a formação universitária tanto na igreja (pelo direito canónico) quanto no Estado (pelo direito
romano; na Inglaterra, pela common law, racionalizada com base em formas de raciocínio roma-
nas) germe do Estado ocidental moderno. Para a administração militar, no Ocidente, isso se
impôs mediante a expropriação dos empresários militares capitalistas (condottieri) — prede-
cessores dessa administração que tinham ocupado o lugar do senhor feudal — pelo poder dos
príncipes, mediante a administração fiscal racional destes, desde o século XVII (primeiro na
Inglaterra e na França)

Essa luta do senhor contra o quadro administrativo feudal — que no Ocidente


(não no Japão) coincide repetidas vezes, e é parcialmente idêntica àquela que empreende
ECONOMIA E SOCIEDADE 171

contra o poder das corporações estamentais — t e r m i n o u por toda parte, n a é p o c a


moderna, c o m a vitória d o senhor, isto é, da administração burocrática, p r i m e i r o no
Ocidente, depois n o J a p ã o ; na índia (e talvez na C h i n a ) , isso se d e u inicialmente, na
f o r m a de d o m i n a ç ã o estrangeira. Decisivas p a r a este processo, n o Ocidente —- a l é m
de constelações de p o d e r historicamente dadas — , f o r a m determinadas c o n d i ç õ e s eco-
n ô m i c a s , sobretudo o crescimento da burguesia sobre a base das cidades (somente
aí desenvolvidas, n o sentido ocidental) e a c o n c o r r ê n c i a dos diversos Estados pelo poder,
apoiada n u m a administração racional (isto é, b u r o c r á t i c a ) e na aliança fiscalmente condi-
cionada pelos interesses capitalistas — assunto ao q u a l voltaremos m a i s adiante.

§ 12 c. N e m todo " f e u d a l i s m o " é f e u d a l i s m o de feudo n o sentido ocidental. A o


lado deste existe, sobretudo,
A. o feudalismo de prebenda, fiscalmente condicionado.

Típico no Oriente Próximo islâmico e na índia sob dominação mogol. Ao contrário, o


feudalismo da Ghina antiga, antes de Shi Hoang T i , era pelo menos em parte o de feudo, ao
lado do qual, no entanto, existia o de prebenda. O feudalismo japonês dos daimios era um
tipo bastante temperado pelo controle do senhor (bakufu) mas os feudos dos samurais e buke
constituíam freqüentemente prebendas ministeriais (muitas vezes apropriadas e cadastradas se-
gundo a kokudaka — o rendimento da renda do arroz).

Falamos de feudalismo de prebenda q u a n d o


aa) se trata de a p r o p r i a ç ã o de prebendas, portanto, de rendas estimadas e conce-
didas segundo o rendimento, e, a l é m disso, [quando]
bb) a a p r o p r i a ç ã o ( e m p r i n c í p i o , ainda que n e m s e m p r e efetivamente) é p u r a -
mente pessoal, dependendo do desempenho e prometendo, portanto, eventualmente
u m ascenso.

Assim, por exemplo, as prebendas dos sipaios turcos, ao menos pela lei.

Sobretudo, p o r é m , [quando]
cc) n ã o se cria primariamente u m a r e l a ç ã o de fidelidade i n d i v i d u a l , l i v r e e pes-
soal, p o r contrato de confraternização, c o m a pessoa do senhor, cuja c o n s e q ü ê n c i a
é a c o n c e s s ã o de u m feudo i n d i v i d u a l , mas q u a n d o se trata p r i m a r i a m e n t e de fins
fiscais p o r parte da associação tributária do senhor, de resto de caráter patrimonial
(muitas vezes sultanista) O que ( n a m a i o r i a das v e z e s ) se manifesta no fato de que
são concedidas fontes de renda avaliadas e cadastradas.
O desenvolvimento p r i m á r i o do f e u d a l i s m o de feudo sucede — n ã o necessa-
riamente mas e m regra — a partir de u m a p r o v i s ã o de necessidades da associação
política (quase) exclusivamente e m e s p é c i e e, neste caso, e m serviços pessoais (serviços
militares o u obrigatórios de outra espécie). Pretende, sobretudo, e m lugar do e x é r c i t o
de leva — f o r m a d o de pessoas s e m instrução específica, oneradas de outras o b r i g a ç õ e s
economicamente indispensáveis e incapazes de equipar-se a si mesmas de m o d o adequa-
do — , ter u m exército de cavaleiros treinado, a r m a d o e unido pela h o n r a pessoal.
O desenvolvimento p r i m á r i o do feudalismo de prebenda constitui, e m r e g r a , u m a trans-
f o r m a ç ã o da g e s t ã o f i n a n c e i r a baseada e m economia monetária ('' i n v o l u ç ã o ' ' e m d i r e ç ã o
ao financiamento e m e s p é c i e ) e pode o c o r r e r
a a ) p a r a descarregar e m empresários o risco de receitas oscilantes (portanto,
u m a f o r m a modificada do arrendamento de i m p o s t o s ) e m troca de
aaa) r e c r u t a m e n t o de determinados g u e r r e i r o s (cavaleiros, eventualmente carros
de g u e r r a , h o m e n s e n c o u r a ç a d o s , intendência e às vezes t a m b é m a r t i l h a r i a ) p a r a o
exército do p r í n c i p e patrimonial.
172 MAX WEBER

Freqüentemente na China da Idade Média observavam-se determinados contingentes de


guerreiros de cada classe numa área de determinado tamanho.

A l é m disso, eventualmente, o u t a m b é m exclusivamente


bbb) pagamento dos custos da a d m i n i s t r a ç ã o c i v i l e
c c c ) entrega de u m tributo global à caixa do p r í n c i p e .

Caso freqüente na índia.

E m troca disso, concedia-se naturalmente (para o c u m p r i m e n t o dessas obriga-


ções)
ddd) a a p r o p r i a ç ã o de direitos senhoriais, e m e x t e n s ã o d i v e r s a , originariamente
d e n u n c i á v e l e readquirível, mas, de fato, p o r falta dos meios necessários, muitas vezes
definitiva.
Semelhantes a p r o p r i a d o r e s definitivos tornavam-se, e n t ã o , p e l o menos, senhores
fundiários; muitas vezes chegavam a a p r o p r i a r - s e t a m b é m d e poderes de m a n d o de
grande alcance dentro da associação.

Assim foi, sobretudo na índia, onde quase todos os senhorios territoriais dos zamindar,
jagirdar e talukdar surgiram dessa forma. Mas também em grandes partes do Oriente Próximo,
conforme mostrou C. H . BECKER (O primeiro a observar acertadamente a diferença entre este feuda-
lismo e o ocidental) Primariamente, trata-se de arrendamento de impostos; secundariamente,
chega a ser "senhorio fundiário". Também os "boiardos" romenos são descendentes da sociedade
mais mista do mundo: judeus, alemães, gregos etc., que, sendo primeiro arrendatários de impos-
tos, se apropriaram em seguida de direitos senhoriais.

0 0 ) Pode o c o r r e r que a incapacidade de pagar o soldo ao exército patrimonial


e a u s u r p a ç ã o (posteriormente legalizada) deste leve à a p r o p r i a ç ã o das fontes tributárias
— terras e súditos — pelos oficiais e pelo exército.

Assim foram os famosos grandes cãs no califado, a fonte ou o modelo de todas as apropria-
ções orientais, com exceção das do exército dos mamelucos (que, como é sabido, era formalmente
um exército de escravos)

N e m s e m p r e isso leva a u m e n f e u d a m e n t o p r e b e n d á r i o cadastrado, m a s está p r ó x i -


m o e pode l e v a r a ele.

Não cabe discutir aqui se os feudos dos sipaios turcos se aproximam mais do "feudo"
ou da "prebenda": legalmente houve neles ascensão por desempenho.

É evidente que as duas categorias estão ligadas p o r f o r m a s intermediárias imper-


ceptíveis, s e n d o r a r a m e n t e possível u m a a t r i b u i ç ã o inequívoca a u m a o u a outra. A l é m
disso, o feudalismo d e p r e b e n d a está muito p r ó x i m o da p r e b e n d a l i z a ç ã o p u r a , existindo
t a m b é m a l i transições fluidas.
Segundo u m a terminologia imprecisa, existe, a i n d a , ao l a d o d o feudalismo de
f e u d o , baseado e m u m contrato l i v r e c o m u m senhor, e ao lado d o f e u d a l i s m o de
prebenda
B. o ( c h a m a d o ) f e u d a l i s m o da polis, que se baseia n u m fictício o u r e a l sinecismo
d e senhores f u n d i á r i o s , c o m direitos iguais entre s i , c o m u m m o d o de v i d a puramente
militar e c o m e l e v a d a h o n r a estamental. E c o n o m i c a m e n t e , o kleros significa u m lote
ECONOMIA E SOCIEDADE 173

de terra pessoalmente a p r o p r i a d o e destinado a h e r d e i r o s individuais qualificados; p õ e


à disposição de todos os serviços dos escravos (que s ã o propriedade estamental, mas
distribuídos) e constitui a base do equipamento militar p r ó p r i o .

É impróprio chamar "feudalismo" esse fenômeno, somente comprovado na Grécia antiga


(plenamente desenvolvido apenas em Esparta) e derivado da "casa dos homens", em razão das
convenções de honra estamentais específicas e do modo de vida cavaleiresco desses senhores
territoriais. E m Roma, a palavra fundus(= direito de companheiros) corresponde à grega xVripos,
mas não há notícias sobre constituições da cúria (co-viria = òtvôpetov, — = casa dos homens)
que apresentassem forma semelhante.

No sentido mais amplo, costuma-se usar o t e r m o " f e u d a l " p a r a todas as camadas,


instituições e c o n v e n ç õ e s militares c o m privilégios estamentais. E v i t a r e m o s esse uso
por ser totalmente impreciso.
C. Pela r a z ã o i n v e r s a , s ã o p a r a n ó s prebendas-.
1) os feudos de serviços conferidos a g u e r r e i r o s que v i v e m c o m o cavaleiros,
mas que são dependentes — e m v i r t u d e n ã o de u m contrato l i v r e (vínculos fraternais
c o m o senhor e c o m companheiros de estamento), mas por o r d e m do p r ó p r i o senhor
(patrimonial);
2 ) os feudos de serviço atribuídos a g u e r r e i r o s l i v r e m e n t e a r r o l a d o s , mas que
n ã o v i v e m c o m o cavaleiros — concedidos li vre me n te , mas n ã o c o m base n u m modo
de vida cavaleiresco;
3 ) os feudos de serviço atribuídos a clientes, colonos, escravos utilizados c o m o
guerreiros — sem contrato l i v r e e n ã o c o m base n u m m o d o de v i d a cavaleiresco.

Exemplo de 1: os ministeriais ocidentais e orientais, os samurais no Japão.


Exemplo de 2: ocorreu no Oriente, por exemplo, originalmente entre os guerreiros ptolo-
maicos. O fato de a profissão de guerreiro ter sido também apropriada mais tarde, em conse-
qüência da apropriação hereditária das terras funcionais, constitui um produto típico do desenvol-
vimento em direção ao estado litúrgico.
Exemplo de 3: típico para a chamada "casta de guerreiros" no antigo Egito, para os mame-
lucos no Egito medieval, para os guerreiros marcados a ferro no Oriente e na China (aos quais
nem sempre, mas também não raramente foram concedidas terras) etc.

T a m b é m nestes casos é totalmente inexato falar de " f e u d a l i s m o " no sentido da


existência de estamentos puramente militares — aqui (pelo menos do ponto de vista
f o r m a l ) negativamente privilegiados.

§13. O que dissemos n ã o pode d e i x a r d ú v i d a alguma sobre o fato de que são


extremamente raras as associações de d o m i n a ç ã o pertencentes somente a u m ou a outro
dos tipos " p u r o s " até aqui considerados. Particularmente por n ã o t e r e m ainda sido
examinados, o u por t e r e m sido apenas muito vagamente mencionados, casos impor-
tantes dentro da d o m i n a ç ã o legal e da tradicional: a colegialidade e o princípio feudal.
Mas, e m g e r a l , cabe o b s e r v a r o seguinte: o fundamento de toda d o m i n a ç ã o , portanto,
de roda o b e d i ê n c i a , é u m a crença , a crença n o " p r e s t í g i o " do dominador o u dos domina-
dores. Raramente esta é absolutamente inequívoca. Na d o m i n a ç ã o " l e g a l " nunca é p u r a -
mente legal: a crença na legalidade é u m " h á b i t o " , condicionada, portanto, pela tradição
— o r o m p i m e n t o desta é capaz de aniquilá-la. E é t a m b é m carismática, no sentido
negativo de que o insucesso c o n t í n u o e n o t ó r i o é a ruína de rodo governo, ao quebrar
seu prestígio e p e r m i t i r a m a t u r a ç ã o de r e v o l u ç õ e s carismáticas. Portanto, são perigosas
174 MAX WEBER

para as " m o n a r q u i a s " as guerras perdidas, por p e r m i t i r e m que pareça " n ã o c o n f i r -


m a d o " seu c a r i s m a , e p a r a as " r e p ú b l i c a s " , as vitoriosas, por apresentarem o g e n e r a l
vitorioso c o m o pessoa carismaticamente qualificada.
Certamente h o u v e comunidades puramente tradicionais. Mas nunca absolutamen-
te duradouras e — o que se aplica t a m b é m à d o m i n a ç ã o burocrática — raramente
s e m liderança pessoalmente carismático-hereditária o u carismática de cargo (ao lado
de outra, e m certas circunstâncias, puramente tradicional). As necessidades e c o n ô m i c a s
cotidianas e r a m providas sob a d i r e ç ã o de senhores tradicionais; as extracotidianas
(caça, e s p ó l i o de g u e r r a ) sob a d i r e ç ã o de líderes carismáticos. A idéia da possibilidade
de "estatutos" (na m a i o r i a das vezes, n o entanto, legitimados por u m o r á c u l o ) é t a m b é m
bastante antiga. Mas sobretudo c o m todo recrutamento e x r r a p a t r i m o n i a l do quadro
administrativo foi criada uma categoria de f u n c i o n á r i o s que s ó pode ser distinguida
das burocracias legais pelo fundamento último de sua legitimidade, mas n ã o de m o d o
formal.
D o m i n a ç õ e s absolutamente carismáticas ( o u absolutamente carismático-heredi-
tárias e t c . ) s ã o igualmente raras. D a d o m i n a ç ã o carismática pode p r o v i r — c o m o no
caso de N a p o l e ã o — diretamente o mais estrito b u r o c r a t i s m o , o u o r g a n i z a ç õ e s preben-
darias e feudais de todo tipo. A terminologia e a casuística, portanto, n ã o pretendem
e n ã o p o d e m pretender de modo algum ser exaustivas e e n ca i x a r e m determinados
esquemas a realidade histórica. Sua utilidade está e m que, e m cada caso, é possível
dizer-se o que n u m a associação m e r e c e esta o u aquela d e s i g n a ç ã o o u dela se a p r o x i m a
— o que, pelo menos às vezes, constitui u m a vantagem considerável.
E m todas as f o r m a s de d o m i n a ç ã o é vital p a r a a m a n u t e n ç ã o da o b e d i ê n c i a o
fato da existência do q u a d r o administrativo e de sua a ç ã o dirigida continuamente à
realização e i m p o s i ç ã o das ordens. A existência dessa a ç ã o é o que se designa c o m
a p a l a v r a " o r g a n i z a ç ã o " . D e c i s i v a para ela é a solidariedade de interesses (ideal e mate-
r i a l ) entre o senhor e o quadro administrativo. Q u a n t o à r e l a ç ã o entre estes dois, v a l e
a frase: o senhor, apoiado nessa solidariedade, é mais forte perante cada m e m b r o
individual, p o r é m mais fraco perante todos. É preciso, n o entanto, u m a relação associa-
tiva planejada dentro do quadro administrativo p a r a realizar de m o d o organizado e
c o m êxito a o b s t r u ç ã o o u u m a a ç ã o consciente contra o senhor e para paralisar a direção
deste. A s s i m c o m o toda pessoa que q u e i r a r o m p e r u m a d o m i n a ç ã o deve criar u m quadro
a d m i n i s t r a t i v o p r ó p r i o p a r a possibilitar a própria d o m i n a ç ã o , a n ã o ser que possa contar
c o m a conivência e a c o o p e r a ç ã o do q u a d r o existente contra o senhor precedente.
A solidariedade de interesses c o m o s e n h o r aparece e m seu g r a u mais intenso, no
caso e m que a própria legitimidade e a garantia de sustento do q u a d r o administrativo
dependem dele. A possibilidade dos indivíduos de subtrair-se dessa solidariedade d i f e r e
muito, dependendo da estrutura. E l a é mais difícil no caso de uma separação total
dos meios de administração, portanto, nas d o m i n a ç õ e s puramente patriarcais (baseadas
somente na tradição), nas puramente patrimoniais e nas puramente burocráticas (apoia-
das somente e m regulamentos), e mais fácil, e m caso de a p r o p r i a ç ã o estamental (feudo,
prebenda).
Por f i m e sobretudo, a realidade histórica é, t a m b é m , s e m d ú v i d a , uma luta contí-
n u a , na m a i o r i a das vezes latente, entre o senhor e o q u a d r o administrativo pela apro-
p r i a ç ã o o u e x p r o p r i a ç ã o do p r i m e i r o o u do segundo. D e c i s i v o p a r a quase todo o desen-
v o l v i m e n t o cultural foi
1) o resultado dessa luta c o m o tal,
2 ) o caráter daquela camada de f u n c i o n á r i o s dependentes do senhor que lhe
ajudou a ganhar a luta contra os poderes feudais o u outros poderes apropriados: letra-
dos, rituais, c l é r i g o s , clientes puramente seculares, ministeriais, letrados c o m f o r m a ç ã o
ECONOMIA E SOCIEDADE 175

jurídica, f u n c i o n á r i o s de finanças profissionais, f u n c i o n á r i o s h o n o r á r i o s p r i v a d o s (sobre


os conceitos, v e j a adiante).
A natureza dessas lutas e e v o l u ç õ e s i n f l u i u e m boa parte da história, n ã o apenas
da administrativa mas t a m b é m c u l t u r a l e isto p o r q u e d e t e r m i n o u as tendências da educa-
ção e o m o d o d e f o r m a ç ã o dos estamentos.

1. O salário, as possibilidades de emolumentos, os próprios emolumentos e feudos vincu-


lam em grau e sentido muito diversos o quadro administrativo ao senhor (veja adiante). Mas
uma coisa têm todos em comum: que a legitimidade das respectivas receitas e do poder e da
honra sociais vinculados à pertinência ao quadro administrativo parecem ameaçadas sempre
que esteja em perigo a legitimidade do senhor. Por esta razão, a legitimidade desempenha um
papel pouco considerado e, mesmo assim, muito importante.
2. A história da ruína da dominação legítima até 1918 [na Alemanha] mostrou como o
rompimento do vínculo tradicional pela guerra, por um lado, e a perda do prestígio em virtude
da derrota, por outro, em conjunto com o hábito sistemático de um comportamento ilegal,
abalaram, em igual medida, a obediência à disciplina do exército e do trabalho, preparando,
assim, a subversão do poder. Por outro lado, a continuação do funcionamento fluente do antigo
quadro administrativo, bem como a continuação da vigência de seus regulamentos sob os novos
detentores do poder, constitui um excelente exemplo da vinculação inescapável, nas condições
da racionalização burocrática, do membro individual deste quadro à sua tarefa objetiva. A razão
disso não era, conforme mencionado, de modo algum somente de natureza econômica privada:
preocupação com o emprego, o salário e a aposentadoria (ainda que, para a grande maioria
dos funcionários, isso tenha desempenhado evidentemente um papel importante), mas também
de natureza objetiva (ideológica) nas condições de então, a paralisação da administração signifi-
caria a ruína do abastecimento da população inteira (inclusive dos próprios funcionários) com
as necessidades vitais mais elementares. Por isso, apelou-se com êxito ao "sentimento do dever"
(objetivo) dos funcionários, e mesmo os poderes até então legítimos e seus partidários reconhe-
ceram essa necessidade objetiva.
3. O processo daquela subversão criou um novo quadro administrativo nos conselhos
de trabalhadores e soldados. A técnica da formação desses novos quadros teve de ser inicialmente
"inventada" e estava vinculada às condições de guerra (posse de armas), sem as quais teria
sido impossível qualquer subversão (sobre isso e sobre as analogias históricas, veja adiante).
Somente pela sublevação de líderes carismáticos contra os superiores legais e pela formação
de séquitos carismáticos foi possível a expropriação do poder dos antigos senhores, e a conser-
vação do quadro de funcionários qualificados tornou tecnicamente exeqüível a permanência
no poder. Antes, toda revolução, particularmente em condições modernas, fracassara pela im-
prescindibilidade dos funcionários qualificados e pela falta de quadros administrativos próprios.
As condições prévias em todos os casos anteriores de revoluções foram muito diversas (veja,
sobre isto, o capítulo sobre a teoria das revoluções).
4. Subversões de dominações por iniciativa dos quadros administrativos ocorreram no
passado sob condições muito diversas (veja, sobre isso, o capítulo sobre a teoria da subversão).
O pressuposto foi sempre uma relação associativa dos membros do quadro administrativo, a
qual, dependendo do caso, pôde assumir mais o caráter de uma conspiração parcial ou de uma
confraternização ou de uma relação geral. É precisamente isto que se torna muito difícil sob
as condições de existência de funcionários modernos, ainda que não completamente impossível,
como mostra a situação russa. E m regra, porém, em sua significação, não vão além daquilo
que os trabalhadores pretendem e podem conseguir com greves (normais)
5. O caráter patrimonial do funcionalismo manifesta-se sobretudo na exigência da aceita-
ção de uma relação de submissão (de clientela) pessoal (puerregis, na época carolíngia; familiaris,
sob os angiovinos etc.) Resquícios dessa relação conservaram-se por longo tempo.

7. A r e i n t e r p r e t a ç ã o antiautoritária d o c a r i s m a

§ 14. O p r i n c í p i o carismático de legitimidade, interpretado e m s e u sentido origi-


nal c o m o autoritário, pode ser reinterpretado c o m o antiautoritário, pois a v i g ê n c i a
176 MAX WEBER

efetiva da autoridade carismática repousa, na realidade, inteiramente sobre o reconhe-


cimento dos dominados — condicionado p o r " r a t i f i c a ç ã o " — , que, n o entanto, constitui
u m dever p a r a c o m a pessoa carismaticamente qualificada e por isso legitimada. Mas,
c o m a crescente r a c i o n a l i z a ç ã o das relações dentro da associação, o c o r r e facilmente
de: esse reconhecimento ser considerado fundamento, e m v e z de c o n s e q ü ê n c i a , da
legitimidade (legitimidade democrática), a d e s i g n a ç ã o ( e v e n t u a l ) pelo q u a d r o adminis-
trativo ser considerada " e l e i ç ã o p r e l i m i n a r " e aquela feita pelo predecessor, "proposta
e l e i t o r a l " , e o reconhecimento pela própria comunidade ser visto c o m o " e l e i ç ã o " .
Nesse caso, o senhor l e g í t i m o , e m v i r t u d e d o p r ó p r i o c a r i s m a , transforma-se n u m senhor
pela g r a ç a dos dominados, é eleito e levado ao p o d e r p o r estes de m o d o ( f o r m a l m e n t e )
l i v r e , segundo seu arbítrio, e eventualmente t a m b é m destituído — do m e s m o m o d o
que, antes, a p e r d a do c a r i s m a e a falta de sua ratificação t i n h a m p o r c o n s e q ü ê n c i a
a p e r d a da legitimidade g e n u í n a . O senhor é agora u m líder livremente eleito. T a m b é m
o reconhecimento de diretrizes jurídicas carismáticas pela comunidade desenvolve-se
e m d i r e ç ã o à idéia de que a comunidade pode, segundo seu arbítrio, declarar, reconhe-
cer e revogar o direito, tanto e m g e r a l quanto no caso i n d i v i d u a l — enquanto que,
na d o m i n a ç ã o carismática g e n u í n a , os casos de disputa sobre o direito " a u t ê n t i c o "
se r e s o l v i a m , de fato, muitas vezes pela d e c i s ã o da comunidade, p o r é m s e m p r e sob
a pressão psicológica de que s ó h a v i a uma d e c i s ã o certa e c o m p a t í v e l c o m o dever.
C o m isso, o tratamento d o direito a p r o x i m a - s e da c o n c e p ç ã o legal. O tipo transitório
mais importante é a dominação plebiscitária. A m a i o r i a de seus tipos é encontrada
nas " l i d e r a n ç a s de p a r t i d o " , n o Estado m o d e r n o . Mas s e m p r e existe q u a n d o o senhor
se sente legitimado c o m o h o m e m de c o n f i a n ç a das massas e é reconhecido c o m o tal.
O m e i o adequado para isso é o plebiscito. Nos casos clássicos de N a p o l e ã o I e N a p o l e ã o
I I I , ele f o i aplicado depois da conquista violenta d o poder político; no caso do segundo,
recorreu-se a ele de n o v o a p ó s a perda de prestígio. É indiferente (a esta altura) c o m o
se estima seu v a l o r de realidade: e m todo caso, é formalmente o m e i o e s p e c í f i c o de
obter a legitimidade do poder a partir da c o n f i a n ç a ( f o r m a l e ficticiamente) l i v r e dos
dominados.
O p r i n c í p i o de " e l e i ç ã o " , uma v e z aplicado ao senhor, c o m o interpretação modifi-
cada do c a r i s m a , pode ser aplicado t a m b é m ao quadro administrativo. Funcionários
eleitos, legítimos e m v i r t u d e da c o n f i a n ç a dos dominados e, por isso, destituíveis pela
d e c l a r a ç ã o de desconfiança destes, s ã o típicos e m " d e m o c r a c i a s " de determinada natu-
reza, p o r e x e m p l o , nos Estados Unidos. Não s ã o figuras " b u r o c r á t i c a s " . E n c o n t r a m - s e
e m sua p o s i ç ã o p o r estarem legitimados independentemente, n u m a s u b o r d i n a ç ã o ape-
nas ligeiramente hierárquica e têm possibilidades de a s c e n s ã o e de e m p r e g o indepen-
dentes da influência do " s u p e r i o r " (analogias nos casos de vários carismas, qualitati-
vamente particularizados, tais c o m o existem, p o r e x e m p l o , nos casos d o D a l a i - L a m a
e do T a c h i - L a m a ) . Tecnicamente, c o m o " i n s t r u m e n t o de p r e c i s ã o " , u m a administração
por eles composta é de eficácia muito i n f e r i o r a u m a administração burocraticamente
formada por funcionários nomeados.

1. A "democracia plebiscitária" — o tipo mais importante da democracia de líderes —,


em seu sentido genuíno, é uma espécie de dominação carismática oculta sob a forma de uma
legitimidade derivada da vontade dos dominados e que só persiste em virtude desta. O líder
(demagogo) domina, na verdade, devido à lealdade e confiança de seu séquito político para
com sua pessoa como tal. Ele domina, inicialmente, os partidários que conquistou e, em seguida,
no caso de estes o levarem ao poder, toda a associação. São representativos do tipo os ditadores
das revoluções antigas e modernas, os aisimnetas, os tiranos e os demagogos helénicos; Graco
e seus sucessores, em Roma; os capitani deipopolo e os burgomestres nas cidades-estados italianas
ECONOMIA E SOCIEDADE 177

(na Alemanha foi típica a ditadura democrática de Zurique), e, nos Estados modernos, a ditadura
de Cromwell, os governos revolucionários e o imperialismo plebiscitário na França. Onde quer
que se procurasse legitimar essa forma de dominação, foi mediante o reconhecimento plebis-
citário pelo povo soberano. O quadro administrativo pessoal foi recrutado de modo carismático
entre plebeus capacitados (no caso de Cromwell, considerando-se a qualificação religiosa; no
de Robespierre, segundo a confiabilidade pessoal e também certas qualidades "éticas"; no de
Napoleão exclusivamente com base na capacidade pessoal e na utilidade para os fins da "domi-
nação do gênio" imperial). No apogeu da ditadura revolucionária, ele tem o caráter de uma
administração em virtude de mandato puramente ocasional e revogável (assim, na administração
dos comissários, nos tempos dos Comitês de Salvação Pública) Também aos ditadores comunais,
que deviam sua ascensão aos movimentos de reforma nas cidades americanas, tinha-se de conce-
der a nomeação livre, por decisão própria, de seus auxiliares. Tanto a legitimidade tradicional
quanto a formal são igualmentè ignoradas pelas ditaduras revolucionárias. A justiça e a adminis-
tração da dominação patriarcal, cujas ações orientam-se por princípios de justiça materiais, fins
militaristas e conveniência do Estado, encontram paralelo nos tribunais revolucionários e postu-
lados de justiça materiais da democracia radical da Antiguidade e do socialismo moderno (tratare-
mos disso na Sociologia do Direito) A rotinizaçáo do carisma revolucionário mostra, então,
transformações semelhantes às que o correspondente processo produz nos demais casos: assim,
o exército mercenário inglês representa o resíduo do princípio da adesão voluntária do exército
de combatentes pela fé, e o sistema francês de prefeitos é o resíduo da administração carismática
da ditadura revolucionária plebiscitária.
2. O funcionário eleito significa por toda parte a interpretação radicalmente modificada
da posição de mando do líder carismático, no sentido de "servidor" dos dominados. Dentro
de uma burocracia tecnicamente racional, não há lugar para ele. Não tendo sido nomeado por
seu "superior" e sem depender dele em suas possibilidades de progresso mas devendo sua
posição ao favor dos dominados, pouco se interessa em oferecer disciplina para obter a aprovação
dos superiores; atua, por isso, de modo "autocéfalo". Sendo assim, não se pode, em regra,
obter de um quadro de funcionários eleitos serviços de alta qualidade técnica. São ilustrativas
disso a comparação dos funcionários eleitos de cada estado americano com os funcionários no-
meados da União e a experiência com os funcionários comunais eleitos em confronto com comitês
discricionariamente nomeados pelos prefeitos reformistas plebiscitários. E m confronto com o
tipo de democracia plebiscitária com líder estão os tipos de democracia sem líder (a serem exami-
nados mais tarde) os quais se caracterizam pela tendência a minimizar a dominação de uns
sobre os outros.
Característico da democracia com líder é, em geral, o caráter emocional específico da
entrega e confiança nele, do qual costuma proceder a inclinação a seguir aquele que parece
mais extracotidiano, que mais promete e mais trabalha com meios incitativos. O traço utópico
de todas as revoluções tem aqui sua base natural. Também aqui estão os limites da racionalidade
desse tipo de administração nos tempos modernos — racionalidade que, mesmo nos Estados
Unidos, nem sempre correspondeu às esperanças.

Relação com a economia-. 1 . A r e d e f i n i ç ã o do carisma c o m o antiautoritário con-


duz, e m r e g r a , ao c a m i n h o da racionalidade. O dominador plebiscitário p r o c u r a r á geral-
m e n t e apoiar-se n u m q u a d r o de f u n c i o n á r i o s que opere c o m rapidez e s e m atritos.
Q u a n t o aos dominados, tentará vinculá-los a seu c a r i s m a , c o m o " r a t i f i c a d o " , o u por
m e i o de h o n r a e glória m i l i t a r o u p r o m o v e n d o seu bem-estar material — e m certas
circunstâncias, pela c o m b i n a ç ã o de ambas as coisas. Seu p r i m e i r o a l v o será a destruição
dos poderes e possibilidades de privilégios tradicionais feudais, patrimoniais o u autori-
tários d e o u t r o tipo. O segundo será a criação de interesses e c o n ô m i c o s que estejam
a ele vinculados p o r solidariedade de legitimidade. Servindo-se, para isso, da f o r m a l i -
z a ç ã o e l e g a l i z a ç ã o d o direito, pode fomentar e m alto g r a u a economia " f o r m a l m e n t e "
racional.
2. O s poderes plebiscitários p o d e m facilmente ter efeitos enfraquecedores p a r a
178 MAX WEBER

a racionalidade ( f o r m a l ) da e c o n o m i a , na medida e m que, por outro lado, a d e p e n d ê n c i a


de sua legitimidade c o m r e l a ç ã o à crença e entrega das massas obriga-os a m a n t e r
os postulados de justiça de natureza material t a m b é m na área e c o n ô m i c a , isto é, romper
o caráter f o r m a l da justiça e administração mediante u m a justiça (de " c á d i " ) material
(tribunais r e v o l u c i o n á r i o s , sistemas de senhas de racionamento, todas as f o r m a s de
p r o d u ç ã o e c o n s u m o racionadas e controladas). Isso significa que se trata de u m ditador
social aquele que n ã o está p r e s o a f o r m a s de socialismo modernas. N ã o cabe e x a m i n a r
aqui quando isso o c o r r e e quais s ã o as conseqüências.
3. O sistema de funcionários eleitos é u m a fonte de p e r t u r b a ç ã o p a r a u m a econo-
m i a f o r m a l m e n t e r a c i o n a l , porque estes s ã o , e m r e g r a , recrutados de partidos e n ã o
profissionais adequadamente f o r m a d o s , e a probabilidade de s e r e m colocados e m outra
f u n ç ã o o u de n ã o s e r e m reeleitos os impede de e x e r c e r u m a justiça e administração
estritamente objetiva, e de se p r e o c u p a r e m c o m as c o n s e q ü ê n c i a s . Somente não inibe
de m o d o perceptível a economia ( f o r m a l m e n t e ) racional q u a n d o as oportunidades desta,
e m v i r t u d e da possibilidade de aplicar conquistas técnicas e e c o n ô m i c a s de culturas
antigas a áreas novas, nas quais os meios de p r o d u ç ã o ainda n ã o f o r a m apropriados,
d e i x a m o c a m p o de a ç ã o suficientemente a m p l o p a r a ser possível incluir na contabi-
lidade, c o m o despesa e x t r a , a c o r r u p ç ã o dos f u n c i o n á r i o s eleitos, neste caso quase
inevitável, conseguindo-se m e s m o assim lucros consideráveis.

Para o parágrafo 1, o bonapartismo constitui o paradigma clássico. Sob Napoleão I : o


Código napoleónico, a partilha forçada da herança, a destruição de todos os poderes tradicionais
no mundo inteiro, mas, por outra parte, feudos para dignitários por mérito; na verdade, o
soldado [era] tudo, o cidadão, nada, mas, em compensação, gloire e — em geral — abastecimento
razoável para a pequena burguesia. Sob Napoleão III: continuação acentuada do moto do rei burguês
enrichissez-vous, enormes obras públicas, crédit mobilier, com as conseqüências conhecidas.
Para o parágrafo 2, um exemplo clássico é a "democracia" grega da época de Péricles
e da posterior. Os processos não eram decididos, como em Roma, pelos jurados individuais
instruídos de modo vinculante pelo pretor ou segundo o direito formal, mas pela heliaía, que
os decidia segundo a "justiça" material ou, na verdade, segundo lágrimas, adulações, invectivas
demagógicas e ditos jocosos (comparem-se os "discursos processuais" dos retóricos áticos —
em Roma só os encontramos em processos políticos; uma analogia: Cícero). A conseqüência
foi a impossibilidade do desenvolvimento de um direito formal e de uma jurisprudência formal
do tipo romano, pois a heliaía era um "tribunal do povo", do mesmo modo que os "tribunais
revolucionários" da Revolução Francesa e da alemã (de 1918 — "revolução dos conselhos"),
as quais de modo algum levaram somente processos politicamente relevantes para seus tribunais
de leigos. Ao contrário, nenhuma revolução inglesa jamais tocou na justiça, exceto em caso
de processos de extrema importância política. No entanto, a justiça dos juízes de paz era, na
maioria das vezes, justiça de cádi — mas somente na medida em que não lesava os interesses
dos possuidores, ou seja, tinha caráter policial.
Para o parágrafo 3, o paradigma é a União norte-americana. À minha pergunta: por que
se deixavam governar por representantes de partidos muitas vezes corruptos?, trabalhadores
anglo-americanos, há somente 16 anos responderam porque "our big country" oferece tantas
oportunidades que, mesmo que se roubassem, extorquissem e malversassem milhões, ainda
sobraria ganho suficiente e porque essesprofessionals sâo uma casta na qual " n ó s " (os trabalha-
dores) "cuspimos", enquanto que funcionários profissionais do tipo alemão seriam uma casta
que "cuspiria nos trabalhadores".
Todos os detalhes das conexões com a economia têm seu lugar nas exposições especiais
que seguem, e não aqui.

8. C o l e g i a l i d a d e e d i v i s ã o d e p o d e r e s

§ 15 U m a d o m i n a ç ã o pode estar limitada e restringida, tradicional o u racional-


mente, p o r meios específicos.
ECONOMIA E SOCIEDADE 179

Não falamos aqui da limitação do poder pelo vínculo com a tradição ou com determinados
estatutos, como tal. Esta já foi incluída nas considerações anteriores (§§ 3 e seguintes). Trata-se
aqui de relações sociais e associações específicas que limitam a dominação.

1. U m a d o m i n a ç ã o p a t r i m o n i a l o u f e u d a l é limitada p o r privilégios estamentais


— e m g r a u mais alto, pela divisão estamental de poderes (§ 9, 4 ) — , c o n d i ç õ e s q u e
já mencionamos.
2. U m a d o m i n a ç ã o burocrática pode ser limitada ( e , e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s , neces-
sariamente o é, precisamente e m caso de desenvolvimento p l e n o do tipo de legalidade,
para que possa ser administrada somente de acordo c o m determinadas regras) p o r
autoridades institucionais que, p o r direito próprio, existem ao lado da h i e r a r q u i a b u r o -
crática e possuem:
a) o direito de controle (eventualmente p o s t e r i o r ) da o b s e r v a ç ã o dos estatutos,
ou
b) t a m b é m o m o n o p ó l i o da c r i a ç ã o de todos os estatutos o u dos decisivos p a r a
a e x t e n s ã o da liberdade de d i s p o s i ç ã o dos f u n c i o n á r i o s , e eventualmente e, sobretudo,
c ) t a m b é m o m o n o p ó l i o da c o n c e s s ã o dos meios necessários p a r a a administração.
Destes meios f a l a r e m o s m a i s tarde e m particular (§ 16).
3. T o d o tipo de d o m i n a ç ã o pode estar despojado de seu caráter m o n o c r á t i c o ,
v i n c u l a d o a uma pessoa, pelo p r i n c í p i o de colegialidade. Este ú l t i m o , por sua v e z ,
pode ter u m sentido muito d i v e r s o , a saber:
a ) o sentido de que, ao lado dos detentores m o n o c r á t i c o s de poderes de m a n d o ,
existem outros, t a m b é m m o n o c r á t i c o s , aos quais a tradição o u os estatutos d e i x a m
eficazmente a possibilidade de atuar c o m o instâncias de adiamento ou cassação e m
relação às disposições dos p r i m e i r o s (colegialidade de c a s s a ç ã o )

Exemplos mais importantes: o tribuno (e originalmente: o éforo)da Antiguidade, o capitano


delpopolo da Idade Média, o conselho de trabalhadores e soldados, e seus homens de confiança,
no período desde 9 de novembro de 1918 até a emancipação da administração regular desta
instância controladora, autorizada a referendar as disposições.

O u pode ter:
b) o sentido, totalmente oposto, de que disposições s ã o promulgadas p o r autori-
dades institucionais de caráter n ã o - m o n o c r á t i c o , a p ó s c o n f e r ê n c i a s e votações p r é v i a s ,
isto é, de que, c o n f o r m e os estatutos, n ã o é exigida a decisão de u m i n d i v í d u o mas
a c o o p e r a ç ã o da m a i o r i a de u m g r u p o de indivíduos p a r a se chegar a u m a disposição
vinculante (colegialidade de f u n ç õ e s [como agrupamento colegial de f u n ç õ e s = colegia-
lidade técnica]). Nesse caso, pode d o m i n a r
a ) o p r i n c í p i o de u n a n i m i d a d e o u
0 ) o princípio majoritário.
c ) A o caso a (colegialidade de cassação) correponde, e m seus efeitos, a situação
e m que, p a r a e n f r a q u e c e r o poder m o n o c r á t i c o , existem vários detentores m o n o c r á t i c o s
de poderes de m a n d o , c o m direitos iguais e sem especificação de f u n ç õ e s , de m o d o
que, e m caso de c o n c o r r ê n c i a pelo despacho de determinado assunto, seja preciso
decidir p o r meios m e c â n i c o s (sorteio, turno, o r á c u l o , intervenção de instâncias controla-
doras: caso 2 a ) q u e m deve f a z ê - l o , e c o m o efeito de que cada detentor de poderes
funciona c o m o u m a instância de cassação e m r e l a ç ã o a cada u m dos outros.

Caso mais importante: a colegialidade romana da magistratura legítima (cônsul, pretor)


180 MAX WEBER

d) P r ó x i m o ao caso b (colegialidade de f u n ç õ e s ) há ainda a situação e m q u e ,


apesar de existir materialmente, n u m a autoridade institucional, u m primus inter pares
m o n o c r á t i c o , as disposições d e v e m ser promulgadas, e m g e r a l , a p ó s u m a conferência
c o m outros m e m b r o s formalmente equiparados, e a d i v e r g ê n c i a de o p i n i õ e s , e m assun-
tos importantes, t e m p o r c o n s e q ü ê n c i a a r u p t u r a do c o l é g i o pela saída de alguns, pon-
do-se assim e m perigo a p o s i ç ã o do senhor m o n o c r á t i c o (colegialidade de f u n ç õ e s c o m
dirigente p r e e m i n e n t e )

Caso mais importante: a posição do primeiro-ministro inglês no gabinete. Como é sabido,


ela tem variado bastante. Mas, em sua definição, correspondeu materialmente, na maioria dos
casos, à época do governo de gabinete.

E f e i t o s n ã o necessariamente debilitantes, mas eventualmnte temperadores sobre


a d o m i n a ç ã o , no sentido da racionalização, p o d e m p r o v i r de c o r p o r a ç õ e s colegiais
consultivas existentes ao lado de senhores m o n o c r á t i c o s . Mas estas podem ganhar, de
fato, p r e d o m i n â n c i a sobre o senhor, particulamente q u a n d o s ã o de caráter estamental.
Casos principais:
e ) p r ó x i m o ao caso d está aquele outro e m que u m a c o r p o r a ç ã o f o r m a l m e n t e
apenas consultiva está coordenada a u m senhor monocrático, totalmente independente
das decisões deste e obrigado, somente pela tradição ou pelos estatutos, a o u v i r seus
conselhos — f o r m a l m e n t e s e m compromisso — , ainda que, e m desconsiderando-os,
tornem-se responsáveis, e m caso de fracasso.

Caso mais importante: a coordenação do senado aos magistrados, como instância consul-
tiva, situação da qual se desenvolveu, de fato, a dominação do primeiro sobre os segundos
(pelo controle das finanças) Primariamente teríamos, aproximadamente, a concepção que acaba-
mos de descrever. Do controle (efetivo) das finanças, e mais ainda da identidade estamental
dos senadores e dos funcionários (formalmente) eleitos, desenvolveu-se o compromisso de fato
dos magistrados em relação a resoluções do senado: a fórmula si eis placeret, que expressava
a ausência de vínculo deste último, passou a significar a mesma coisa que a expressão "queira"
em ordens prementes.

f) U m caso l i g e i r a m e n t e d i f e r e n t e é a q u e l e n o q u a l , n u m a a u t o r i d a d e institu-
c i o n a l , existe colegialidade especificada, isto é, c o n f i a - s e a p r e p a r a ç ã o e e x p o s i ç ã o
dos d i v e r s o s assuntos de s u a c o m p e t ê n c i a a especialistas — eventualmente a vários
n o m e s m o assunto — , e n q u a n t o q u e a d e c i s ã o cabe a todos os p a r t i c i p a n t e s , p o r
m e i o de v o t a ç ã o .

Este foi o caso, em forma mais ou menos pura, na maioria dos conselhos de Estado e
instituições semelhantes do passado (assim, no conselho de Estado inglês, na época anterior
ao governo de gabinete) Nunca chegaram a expropriar os príncipes, por mais poderosos que
fossem às vezes. Ao contrário, o príncipe tentou, em certas circunstâncias, apoiar-se no conselho
de Estado para livrar-se do governo de gabinete (dos líderes de partidos) foi assim na Inglaterra,
ainda que em vão. O tipo corresponde, porém, aproximadamente, aos ministérios de assuntos
especiais do tipo carismático-hereditário e do plebiscitário com divisão de poderes (como o
americano) nomeados pelo senhor (rei, presidente) a seu arbítrio, como apoio a ele.

g) A colegialidade especificada pode ser u m a c o r p o r a ç ã o apenas consultiva, cujos


votos e contravotos s ã o apresentados ao senhor p a r a este tomar l i v r e m e n t e sua decisão
( c o m o n o item e )
ECONOMIA E SOCIEDADE 181

A única diferença é que, neste caso, a especificação de serviços é mais rigorosa. O caso
corresponde mais ou menos à prática prussiana sob Frederico Guilherme I. Esta situação sempre
favorece o poder senhorial.

h) O caso mais radicalmente oposto à colegialidade racionalmente especificada


é o da colegialidade tradicional dos " a n c i ã o s " , cuja discussão colegial é considerada
a garantia da a p u r a ç ã o do direito verdadeiramente tradicional e, eventualmente, me-
diante a cassação, s e r v e c o m o m e i o de c o n s e r v a ç ã o da tradição contra estatutos a ela
opostos.

Exemplos: grande parte das "gerusias" da Antiguidade; exemplos de cassação: o areópago,


em Atenas; os "patres" em Rema ( p e r t e r , c e n t e s . no entanto, primariamente ao tipo / — veja
adiante).

/)É possível conseguir u m enfraquecimento da d o m i n a ç ã o pela a p l i c a ç ã o do p r i n -


c í p i o de colegialidade às instâncias (material o u f o r m a l m e n t e ) supremas (decisivas; o
p r ó p r i o s e n h o r ) E m sua casuística, o caso é absolutamente a n á l o g o à q u e l e s expostos
nos itens dag. As c o m p e t ê n c i a s específicas p o d e m a) v a r i a r p o r r o d í z i o ou ò ) c o n s t i t u i r
ressorts permanentes de determinadas pessoas. A colegialidade persiste enquanto seja
necessária a c o o p e r a ç ã o ( f o r m a l ) de todos p a r a se chegar a disposições legítimas.

Exemplos mais importantes: o Conselho Federal suíço com sua distribuição de competências
não claramente definida e o princípio de turno; os colégios revolucionários dos "comissários
do povo", na Rússia, na Hungria e, temporariamente, na Alemanha; no passado: o "Conselho
dos Onze", em Veneza, os colégios dos anciãos etc.

Muitos casos de colegialidade dentro de associações d e d o m i n a ç ã o patrimoniais


ou feudais s ã o
a ) casos de divisão estamental de poderes (colegialidade d o q u a d r o administrativo
estamental o u dos estamentalmente apropriados),
0 ) o u casos de criação de representações colegiais do funcionalismo patrimonial
(conselhos de Estado, caso / ) , solidárias ao senhor contra os detentores de poder esta-
mentais associados;
y ) o u casos de criação de c o r p o r a ç õ e s consultivas e, e m certas circunstâncias,
decisórias às quais o senhor preside o u nas quais participa, o u de cujos debates e votos
ele é i n f o r m a d o , e e m v i r t u d e da c o m p o s i ç ã o das quais — e m parte
cta) p o r especialistas na matéria, e m parte
0 0 ) p o r pessoas de prestígio estamental específico — , ele pode esperar completar
suas i n f o r m a ç õ e s que — e m face das exigências crescentes de natureza técnica — chega-
r a m a ser apenas diletantes, de tal m o d o que lhe seja possível uma decisão própria
fundamentada ( c a s o g ) .
Nos casos y , o senhor dá naturalmente importância à representação de
ata) o p i n i õ e s de especialistas e
0 0 ) interesses
os m a i s h e t e r o g ê n e o s possíveis e eventualmente opostos, a f i m a e
1) estar universalmente i n f o r m a d o e
2 ) p o d e r aproveitar-se da rivalidade de o p i n i õ e s .
No caso 0 , ao contrário, o senhor f r e q ü e n t e m e n t e (mas n e m s e m p r e ) d á impor-
tância à homogeneidade das o p i n i õ e s e declarações (fonte dos ministérios e gabinetes
182 MAX WEBER

" s o l i d á r i o s " nos chamados Estados "constitucionais" o u outros c o m divisão efetiva de


poderes).
No caso a, o c o l é g i o que representa a a p r o p r i a ç ã o dá importância à unanimidade
de o p i n i õ e s e à solidariedade, p o r é m n e m s e m p r e pode alcançá-las, pois toda a p r o p r i a -
ç ã o , e m v i r t u d e de privilégios estamentais, c r i a interesses particulares incompatíveis
entre s i .

Exemplos típicos de a são as assembléias estamentais, as comissões estamentais e as assem-


bléias de vassalos que as precedem, freqüentes também fora do Ocidente (China). Exemplos
típicos de 0 são as primeiras autoridades institucionais, na maioria das vezes colegiais, da época
em que surgiram as monarquias modernas, compostas sobretudo (mas não apenas) de juristas
e peritos em finanças. Exemplos típicos de y são os conselhos de Estado de muitas monarquias
estrangeiras e das ocidentais modernas, em sua primeira fase (ainda no século XVIII aconteceu,
às vezes, de um arcebispo ter assento no gabinete inglês), com seus "conselheiros privados"
e sua mistura de funcionários honorários e profissionais.

A q u e l a circunstância da o p o s i ç ã o interna entre os interesses estamentais p o d e


criar vantagens p a r a o senhor nas situações de regateio e luta c o m os estamentos, pois
k) podem t a m b é m ser chamadas " c o l e g i a i s " — devido a sua f o r m a externa —
as associações que s e r v e m para r e u n i r , c o m o representantes, os delegados de interesses
ideais, materiais o u de poder, incompatíveis entre s i , a f i m de dirimir a o p o s i ç ã o de
interesses mediante compromisso (colegialidade de c o m p r o m i s s o , e m o p o s i ç ã o à cole-
gialidade de f u n ç ã o e à colegialidade parlamentar de votação).
O caso apresenta-se, e m f o r m a grosseira, na divisão " e s t a m e n t a l " de poderes,
a qual chegava a decisões sempre somente por compromisso entre os privilegiados
(veja adiante). E m f o r m a racionalizada, ele é possível por s e l e ç ã o dos delegados segundo
sua p o s i ç ã o permanente, estamental ou de classe (veja capítulo IV), o u segundo a oposi-
ç ã o atual de interesses. N u m a c o r p o r a ç ã o desse tipo — enquanto mantenha tal caráter
— a " v o t a ç ã o " n ã o pode desempenhar papel algum, s e n ã o apenas
a ) o compromisso pactuado entre os interessados o u
0 ) o compromisso imposto pelo senhor depois de ouvir os argumentos das diversas
partes interessadas.

Sobre a estrutura peculiar do chamado "Estado estamental", veja o detalhamento mais


adiante. Pertencem também a esse âmbito a separação das instâncias ("lordes" e "comuns"
— a Igreja tinha suas convocations particulares —, na Inglaterra; nobreza, clero e Terceiro
Estado, na França; as numerosas articulações dos estamentos alemães) e a necessidade de chegar
a decisões (muitas vezes consideradas pelo senhor como propostas não-obrigatórias) mediante
compromisso, primeiro, dentro de cada estamento e, depois, entre os diversos estamentos. Quan-
to à teoria — que voltou a ser muito moderna — da "representação profissional" (veja § 22)
cabe a crítica de que, na maioria das vezes, não reconhece o fato de o único meio adequado
neste caso serem os compromissos e não os votos da maioria. E m conselhos livres de trabalha-
dores, os assuntos seriam tratados, materialmente, como questões de poder economicamente
condicionadas, e não para serem decididas por votação.

/) Finalmente — u m caso a f i m c o m o anterior — há a colegialidade de votação,


nos casos e m que várias associações até e n t ã o autocéfalas e a u t ô n o m a s se associam
e o b t ê m c o m isso u m direito (graduado de alguma f o r m a ) de influenciar as decisões
mediante apropriação de votos p o r parte de seus dirigentes o u dos delegados destes
(colegialidade de f u s ã o )
ECONOMIA E SOCIEDADE 183

Exemplos: os representantes das filias, das fratrias e dos clãs nas autoridades consultivas
da Antiguidade; a associação de clã medieval, na época dos cônsules; a mercadanza das corpora-
ções; os delegados dos "conselhos profissionais", num conselho central de trabalhadores; o
"conselho federal" ou senado, em Estados federativos; a colegialidade (efetiva) em ministérios
de coalizão ou em colégios de governos de coalizão (caso máximo: na representação proporcional
como na Suíça).

m) A colegialidade de v o t a ç ã o de representantes parlamentares eleitos tem u m


caráter especial, e, p o r isso, e x a m i n á - l a - e m o s separadamente. Baseia-se o u
a ) na liderança de a l g u é m e, nesse caso, constitui partidarismo, o u
0 ) na d i r e ç ã o colegial dos partidos e, nesse caso, constitui " p a r l a m e n t a r i s m o s e m
líderes".
Seria necessário, entretanto, e m p r i m e i r o lugar, u m e x a m e dos p r ó p r i o s partidos
(veja § 18).
Colegialidade — c o m e x c e ç ã o do caso da colegialidade de cassação m o n o c r á t i c a
— significa quase inevitavelmente a o b s t r u ç ã o a decisões precisas e i n e q u í v o c a s e,
sobretudo, rápidas (e t a m b é m , e m suas f o r m a s irracionais, à f o r m a ç ã o profissional).
Mas esse m e s m o efeito n ã o e r a indesejável à m a i o r i a dos príncipes, na fase da i n t r o d u ç ã o
do funcionalismo profissional. Por outro lado, essa circunstância r e p r i m i u a colegia-
lidade, na m e d i d a e m que a u m e n t o u a necessidade de decisões e a ç õ e s rápidas. Nas
instâncias colegiais dirigentes, a p o s i ç ã o de poder do m e m b r o diretor transformou-se,
e m g e r a l , n u m a p o s i ç ã o f o r m a l e materialmente preeminente (bispo o u papa, na I g r e j a ;
presidente do conselho de ministros, n o gabinete). O interesse na r e a n i m a ç ã o da colegia-
lidade da direção nasce, na m a i o r i a das vezes, da necessidade de enfraquecer o domi-
nador c o m o tal. E t a m b é m da d e s c o n f i a n ç a e do ressentimento p a r a c o m a d i r e ç ã o
monocrática, n ã o tanto p o r parte dos dominados — que f r e q ü e n t e m e n t e até c l a m a m
p o r u m " l í d e r " — , mas p r i n c i p a l m e n t e p o r parte dos m e m b r o s do q u a d r o adminis-
trativo. Isso se aplica n ã o apenas, n e m preferencialmente, às camadas negativamente
privilegiadas, mas t a m b é m precisamente às positivamente privilegiadas. A colegialidade
não é, de m o d o a l g u m , algo especificamente " d e m o c r á t i c o " . S e m p r e que as camadas
privilegiadas t i n h a m de defender-se contra a a m e a ç a das negativamente privilegiadas,
p r o c u r a v a m — e e r a m obrigadas a f a z ê - l o — n ã o d e i x a r surgir u m p o d e r de m a n d o
m o n o c r á t i c o que pudesse apoiar-se nestas últimas, criando e mantendo, portanto, ao
lado da igualdade rigorosa dos privilegiados (da qual trataremos separadamente no
§ s e g u i n t e ) autoridades colegiais c o m o instituições de controle e c o m direito absoluto
de decisão.

Exemplos deste tipo: Esparta; Veneza; o senado romano antes dos Graco e de Sila; a
Inglaterra, repetidamente, no século XVIII; Berna e outros cantões suíços; as cidades de patrícios,
na Idade Média, com seus cônsules colegiais; a mercadanza, que abrangia as corporações de
comerciantes, mas não as de trabalhadores — estas últimas tornaram-se facilmente vítimas dos
nobili e signorí.

A colegialidade garante m a i o r " p r o f u n d i d a d e " nas c o n s i d e r a ç õ e s da administra-


ç ã o . Q u a n d o é este o aspecto acolhido, à custa de p r e c i s ã o e rapidez, costuma-se r e c o r r e r
a ela ainda h o j e — exceto nos casos ocorridos pelos motivos a c i m a mencionados. E m
todo caso, ela divide a responsabilidade, desaparecendo esta p o r inteiro e m c o l é g i o s
m a i o r e s , enquanto que a m o n o c r a c i a a f i x a de m o d o c l a r o e indubitável. T a r e f a s grandes
e que e x i g e m u m a s o l u ç ã o rápida e u n i f o r m e s ã o colocadas, e m g e r a l (e do ponto
de vista p u r a m e n t e técnico, c o m toda r a z ã o ) nas m ã o s de " d i t a d o r e s " m o n o c r á t i c o s ,
onerados da responsabilidade exclusiva.
184 MAX WEBER

E m Estados populosos, nem uma política externa poderosa e homogênea nem a política
interna pode efetivamente ser dirigida de forma colegiada. A "ditadura do proletariado" especial-
mente para o fim de socialização, exigia precisamente um "ditador" apoiado na confiança das
massas. Mas tal ditador não é desejado nem pode ser sustentado — não pela massa popular,
mas sim — pelo rol dos detentores de poder parlamentares, de partidos ou (o que não faz
a menor diferença)daqueles que dominam nos "conselhos". Apareceu somente na Rússia, apoia-
do pelo poder militar e mantido pelo interesse de solidariedade dos camponeses recentemente
favorecidos pelas expropriações.
E m seguida, acrescentamos algumas observações que em parte resumem, em parte comple-
tam o anteriormente exposto.
A coíegialidade teve, historicamente, sentido duplo:
a ) ocupação múltipla do mesmo cargo ou de vários cargos, lado a lado, concorrentes
diretamente entre si, dentro da mesma competência, com direito de veto recíproco. Trata-se,
neste caso, de divisão técnica de poderes para minimizar a dominação. Teve este sentido a
"coíegialidade" sobretudo na magistratura romana, onde serviu principalmente para possibilitar
a intercessão, estranha a todo ato burocrático, da par potestas, para enfraquecer, assim, a domi-
nação de cada magistrado individual. Mas cada magistrado individual permanecia, nestas ocasiões,
magistrado individual, embora multiplicado em vários exemplares.
£>) Formação colegial da vontade: constituição legítima de um mandato somente pela coope-
ração de várias pessoas, segundo o princípio de unanimidade ou segundo o princípio majoritário.
Este é o conceito de coíegialidade moderno, não desconhecido na Antiguidade, mas não carate-
rístico dela. Esta forma de coíegialidade pode ser ou 1) coíegialidade da direção suprema, ou
2) coíegialidade de autoridades executivas ou 3) coíegialidade de autoridades consultivas.
1. A coíegialidade de direção pode ter seu fundamento
a. no fato de que a associação de dominação em questão baseia-se numa relação comu-
nitária ou relação associativa entre várias associações de dominação autocéfalas, as quais exigem
todas sua participação no poder (na Antiguidade, o sinecismo com autoridades consultivas cole-
giais estuturadas segundo clãs, fratrias e tribos; na Idade Média, a associação de clãs, com o
conselho de clã correspondentemente repartido, e a associação de corporações, na mercadanza,
com o conselho de anciãos ou deputados das corporações; em Estados federais modernos, "con-
selho federal"; a coíegialidade efetiva, em ministérios ou colégios de governo supremos nomea-
dos por coalizões de partidos. (O máximo, em caso de distribuição proporcional do poder,
é verificado crescentemente na Suíça.) A coíegialidade é, aí, um exemplo especial do princípio
de representação estamental ou cantonal.) Ou
p. na ausência de um líder, conseqüência da inveja que os concorrentes têm da liderança
ou da pretensão dos dominados de minimizar o poder de um só indivíduo. Na maioria das
revoluções, havendo uma mescla de motivos citados, aparece, tanto como "conselho" dos oficiais
ou também dos soldados das tropas revoltadas quanto como "comitê de salvação pública" ou
comissão de "delegados do povo". Na administração normal de tempos de paz a averSão contra
o "homem forte" único era quase sempre o decisivo para a coíegialidade nas autoridades dirigen-
tes: assim, por exemplo, na Suíça e na Constituição de Baden (de 1919) (Nessa ocasião, quem
demonstrou essa aversão foram os socialistas que, preocupados com a possibilidade de um "mo-
narca eleito", sacrificaram a uniformidade rígida da administração, absolutamente necessária
para a socialização. O decisivo, nesse caso, foi particularmente a atitude do funcionalismo —
sindical, de partido e municipal — dentro do partido, contrária à existência de um "líder" )
Ou
y. no caráter estamental e "honorário" da camada social que decide a ocupação dos cargos
de direção e monopoliza a posse destes, portanto: como produto de uma dominação estamental-
aristocrática. Toda camada estamentalmente privilegiada teme a dominação de um líder apoiada
na devoção emocional das massas, pelo menos tanto quanto pode temer a existência de uma
democracia avessa ao líder. Pertencem ao caso a dominação senatorial e as tentativas efetivas
de governar mediante corporações consultivas fechadas, bem como a constituição veneziana
e outras semelhantes. Ou
8. na luta dos príncipes contra a expropriação crescente realizada pelo funcionalismopro/iís-
sional. A organização administrativa moderna, nos Estados ocidentais, começa, em geral, com
ECONOMIA E SOCIEDADE 185

a formação de autoridades colegiais na direção suprema (e, de forma semelhante, também no


Oriente, nos Estados patrimoniais importantes pelo desenvolvimento: a China, a Pérsia, o Califado
e o Império otomano) O príncipe não apenas teme a posição poderosa de indivíduos mas espera,
sobretudo, manter em suas mãos as decisões, servindo-se do sistema de votos e contravotos
existente em um colégio, e, tendo em vista que se torna cada vez mais um diletante, manter
também, por esse meio, a necessária visão geral sobre a administração, sem ter de abdicar
de suas prerrogativas em favor de funcionários individuais em posições de poder. (A função
das autoridades supremas foi inicialmente algo intermediário entre colégio consultivo e colégio
decisório; somente a arbitrariedade do príncipe em assuntos financeiros, com efeitos extrema-
mente irracionais — como na reforma do imperador Maximiliano — foi imediatamente rompida
pelos funcionários profissionais e, neste caso, tendo o príncipe de ceder, por motivos imperiosos.)
Ou
e. no desejo de compatibilizar, mediante um aconselhamento colegial, a orientação diversa
dos especialistas em suas respectivas áreas, bem como os interesses divergentes de natureza
material ou pessoal, isto é, no desejo de possibilitar compromissos. Assim, particularmente na
direção da administração municipal, que, por um lado, enfrenta problemas de alcance puramente
local e de natureza fortemente técnica, mas, por outro lado, costuma repousar, em considerável
grau, por sua própria natureza, em compromissos entre interesses materiais — pelo menos
enquanto as massas admitem a dominação das camadas privilegiadas por propriedade e instrução.
A colegialidade dos ministérios tem tecnicamente fundamentos semelhantes: onde ela não existe,
como, por exemplo, na Rússia e (menos marcantemente) no Império alemão do regime antigo
(até 1918), nunca se chegou a uma solidariedade efetiva dos órgãos governamentais, observan-
do-se, ao contrário, uma encarniçada luta de sátrapas entre as competências diversas.
Os fundamentos da colegialidade expostos em a , y e ô têm caráter puramente histórico.
E m associações de massa — sejam estas Estados ou grandes cidades —, o desenvolvimento
moderno da dominação burocrática levou sempre ao enfraquecimento da colegialidade na direção
efetiva. Pois a colegialidade reduz inevitavelmente: l ) a prontidão das decisões; 2) a uniformidade
da liderança; 3 ) a responsabilidade inequívoca do indivíduo; 4) a ação sem inibições em face
do exterior e a manutenção da disciplina no interior. Por isso—e também por motivos econômicos
e tecnológicos ainda a serem examinados — a colegialidade, em Estados populosos, com partici-
pação na alta política, sempre que foi conservada, ficou enfraquecida a favor de uma posição
preeminente do líder político (leader, presidente do conselho de ministros) Semelhante situação
é observada, também, em quase todas as grandes associações patrimoniais, especialmente nas
rigorosamente sultanistas, onde triunfou sempre de novo a necessidade de uma personalidade
dirigente (grão-vizir) ao lado do príncipe, desde que o "favoritismo" não gerasse uma situação
correspondente. Exigia-se uma única pessoa responsável. O príncipe, porém, não era legalmente
responsável.
2. A colegialidade das autoridades executivas pretendia apoiar a objetividade e, sobretudo,
a integridade da administração, e enfraquecer, por esse interesse, o poder dos indivíduos, pelos
mesmos motivos que, na direção, cedeu quase por toda parte à superioridade técnica da mono-
cracia (assim, nos "governos" da Prússia)
3. A colegialidade de corporações apenas consultivas existiu em todas as épocas e tudo
indica que continuará existindo para sempre. Sendo muito importante do ponto de vista da
evolução histórica (assunto ao qual voltaremos no momento adequado)—particularmente naque-
les casos em que o "aconselhamento" ao magistrado ou ao príncipe tinha função efetivamente
"decisiva", em virtude da situação de poder —, não requer um exame dentro dessa casuística.
Por colegialidade entendemos, aqui, sempre colegialidade de dominação — isto é, de
autoridades que ou administram elas mesmas ou influenciam de modo imediato a administração
(aconselhando-a) Como já foi indicado no texto, não constam ainda, desta análise, as atividades
de assembléias estamentais ou parlamentares.

Historicamente, a colegialidade l e v o u ao desenvolvimento pleno d o conceito de


"autoridade i n s t i t u c i o n a l " , p o r ter estado sempre v i n c u l a d a à separação entre " e s c r i -
t ó r i o " e " g e s t ã o d o m é s t i c a " (dos m e m b r o s ) , entre os quadros de f u n c i o n á r i o s p ú b l i c o s
186 MAX WEBER

e os privados, entre os meios administrativos e o p a t r i m ô n i o privado. Precisamente


p o r isso, n ã o é u m a casualidade a m o d e r n a história da administração do Ocidente
iniciar c o m o desenvolvimento de autoridades colegiais, constituídas por funcionários
profissionais, assim como t a m b é m o c o r r e u c o m toda ordem d u r a d o u r a de associações
políticas — patrimoniais, estamentais, feudais o u de outra f o r m a tradicionais — , ainda
que de m a n e i r a diferente. Somente as c o r p o r a ç õ e s colegiais de f u n c i o n á r i o s , eventual-
mente unidas p o r solidariedade, estavam particularmente e m c o n d i ç õ e s de, pouco a
pouco, e x p r o p r i a r politicamente os príncipes ocidentais, que se t o r n a v a m cada vez
mais "diletantes". No caso d e f u n c i o n á r i o s individuais, a o b e d i ê n c i a pessoal teria supe-
rado, ceteris paribus, muito mais facilmente a tenaz resistência a ordens irracionais
do príncipe. Depois de reconhecer c o m o inevitável a transição ao funcionalismo profis-
sional, o p r í n c i p e p r o c u r a v a , e m r e g r a , estabelecer o sistema colegial consultivo (sistema
de conselho de Estado), c o m seus votos e contravotos, a f i m de p e r m a n e c e r — ainda
que diletante — m e s m o assim como senhor. S ó a p ó s a vitória definitiva e irrevogável
do funcionalismo profissional racional s u r g i u , de m o d o triunfante — especialmente
perante os parlamentos (veja a d i a n t e ) — , a necessidade de u m a solidariedade monocrati-
camente dirigida (pelo presidente do conselho de m i n i s t r o s ) dentro dos c o l é g i o s supre-
mos, protegida pelo príncipe e protegendo-o, e, c o m isso, a tendência geral à mono-
cracia e, portanto, à burocracia na administração.

1. Pode-se compreender com maior clareza o significado da colegialidade, no surgimento


da administração moderna, tomando como exemplo a luta das autoridades financeiras, criadas
pelo Imperador Maximiliano I no momento de maior necessidade (ameaça turca), contra seu
costume de dar a terceiros, às costas dos funcionários e ad hoc, a seu arbítrio, consignações
e títulos hipotecários. Com o problema financeiro começou a expropriação do príncipe que,
pela primeira vez, nesta área tornou-se politicamente um amador (diletante). De início, nas
signorie italianas, com sua contabilidade comercialmente organizada; depois, nos Estados franco-
borgonheses; em seguida, nos Estados continentais alemães e, independentemente deles, entre
os normandos, na Sicília e na Inglaterra (exchequer). No Oriente, desempenharam papel corres-
pondente os divãs, os yamen chineses, os bakufu japoneses etc.; só que ali — por falta de
funcionários profissionais racionalmente instruídos e por depender, portanto, do conhecimento
empírico dos funcionários "antigos" — não se chegou à burocratização; foi também o caso
do senado em Roma.
2. Na separação entre gestão patrimonial privada e administração pública, a colegialidade
teve papel semelhante ao das grandes companhias mercantis voluntárias, na separação entre
gestão patrimonial e empreendimento aquisitivo, patrimônio e capital.

§ 16. O poder senhorial pode, a l é m disso, ser atenuado:


4. pela divisão especificada de poderes: atribuição de " f u n ç õ e s " específicas a
titulares diversos — e m caso de legalidade (divisão constitucional de poderes), racional-
mente determinadas c o m o poderes de m a n d o — , de m o d o que apenas mediante com-
promisso se chega a disposições legítimas e m assuntos que caem na c o m p e t ê n c i a de
várias destas pessoas.

1. E m oposição à "estamental", a divisão "especificada" de poderes significa que os pode-


res de mando estão distribuídos, segundo seu caráter objetivo, "constitucionalmente" (não neces-
sariamente no sentido da constituição estabelecida e escrita) entre vários detentores de poder
(ou de controle) E isto de modo a poderem ser criadas legitimamente disposições de natureza
diversa apenas por detentores de poder diferentes ou disposições de natureza igual somente
pela cooperação (portanto, um compromisso não formalmente atingível) de vários detentores
de poder. Mas o que se distribui, no caso, não são "competências" mas os próprios direitos
de mando.
ECONOMIA E SOCIEDADE 187

2. A divisão de poderes especificada não é nada absolutamente moderno. Ela abrange,


também, a separação entre o poder político autônomo e o poder hierocrático autônomo —
em vez de cesaropapismo ou teocracia. Do mesmo modo, pode-se conceber como uma espécie
de "divisão de poderes" as competências especificadas das magistraturas romanas, bem como
os carismas especificados do lamaismo. O mesmo é válido para a posição cada vez mais indepen-
dente da academia Hanlin (confuciana), na China, a dos "censores", em relação ao monarca,
e para a separação entre o poder judiciário e fiscal (civil) e o poder militar, nas autoridades
subordinadas, já comum em vários Estados patrimoniais, assim como durante o principado de
Roma. E, por fim, naturalmente, toda distribuição de competências em geral. Só que, neste
caso, o conceito de "divisão de poderes" perde toda precisão. Por motivos de conveniência,
é aconselhável limitá-lo à divisão do próprio poder senhorial supremo. Assim fazendo, tem-se,
a forma racional da divisão de poderes, fundada em estatutos (na constituição), ou seja, a forma
constitucional, absolutamente moderna. Todo orçamento, em um Estado não-parlamentar mas
"constitucional", só pode ser aprovado por um compromisso entre as autoridades legais (a coroa
e — uma ou várias — câmaras de representantes) Historicamente, esta situação desenvolveu-se,
na Europa, a partir da divisão de poderes estamental; teve sua elaboração teórica na Inglaterra,
desenvolvida depois por Montesquieu e por Burke. Ainda antes disso, a divisão de poderes
provinha da apropriação dos poderes de mando e dos meios de administração por privilegiados
e das necessidades financeiras crescentes, tanto regulares, social e economicamente condicio-
nadas (administrativas) quanto das irregulares (condicionadas sobretudo por guerras) necessi-
dades que o senhor não podia prover sem o consentimento dos privilegiados, embora — muitas
vezes até mesmo de acordo com parecer e proposta destes — devesse fazê-lo. Para isso era
necessário o compromisso estamental, a partir do qual desenvolveram-se historicamente os com-
promissos orçamentários e estatutários — que de modo algum pertencem, no mesmo sentido
que à constitucional, à divisão de poderes estamental.
3. A divisão de poderes constitucional é uma estrutura particularmente instável. A estrutura
de dominação efetiva determina-se pela resposta à pergunta: o que ocorreria se um compromisso
indispensável, segundo os estatutos (por exemplo, referente ao orçamento), não chegasse a reali-
zar-se? Neste caso, governando sem orçamento, um rei inglês arriscaria (hoje em dia) sua coroa,
mas não um rei prussiano; no Império alemão de antes da revolução, os poderes dinásticos
teriam sido os decisivos.

§ 17. Relações da divisão de poderes políticos com a economia. 1. A colegialidade


(racional, de função) de autoridades institucionais legais pode aumentar a objetividade
e independência de injunções pessoais das disposiçõe e, desse modo, atuar favoravel-
mente sobre as condições de existência da economia racional, mesmo nos casos em
que as pesa negativamente a inibição da precisão no funcionamento. Mas, justamente
por isso, os grandes potentados capitalistas do presente e do passado preferem, na
vida politica, na dos partidos e na de todas as associações de importância para eles,
a monocracia como a forma de justiça e administração mais "discreta" (no sentido
deles) pessoalmente mais acessível, além de mais fácil de fazer pender para os interesses
dos poderosos, e isso com toda razão, como confirmam também as experiências alemãs.
A colegialidade de cassação e as autoridades colegiais surgidas por apropriações irracio-
nais do poder de u m quadro administrativo tradicional, ao contrário, podem trazer
efeitos irracionais. A colegialidade das autoridades fiscais, que constitui o inicio do
desenvolvimento do funcionalismo profissional, favoreceu e m geral, sem dúvida, a
racionalização (formal) da economia.

Nos Estados Unidos, é o boss de partido monocrático — e não a administração oficial


de partido, muitas vezes colegial — que convém aos interessados mecenas do partido. Por isso,
ele é indispensável. Na Alemanha, pelo mesmo motivo, grande parte da chamada "indústria
pesada'' apoiou a dominação da burocracia e não o parlamentarismo (administrado na Alemanha,
até então, de modo colegial).
188 MAX WEBER

2. A divisão de poderes, uma vez que — como toda apropriação — cria compe-
tências fixas, ainda que nem sempre racionais, trazendo assim um elemento de "calcula-
bilidade" no funcionamento do aparato burocrático, costuma ser favorável à raciona-
lização (formal) da economia. Os esforços dirigidos à supressão da divisão de poderes
(a república de sovietes, os governos dos comitês populares e de salvação pública)
propõem-se, em geral, uma transformação materialmente (mais ou menos) racional
e atuam, conseqüentemente, contra a racionalidade formal.

O exame pormenorizado destina-se às exposições especiais.

9. P a r t i d o s

§ 18..Denominamos "partidos" relações associativas baseadas em recrutamento,


(formalmente) livre com o fim de proporcionar poder a seus dirigentes dentro de uma
associação e, por meio disso, aseus membros ativos, oportunidades (ideais ou materiais)
de realizaLÜns objetivos ou"c|p n o ^ r vãõtõgpng ppssnai^^Trôlünbas a§_rnic°y ^ ' ^ F F T -
constituir relações associativas efêmeras ou duradouras participar de associações de
todo tipo e surgir como associações muito distintas na forma: séquitos carismáticos,
criadagens tradicionais e partidários racionais (racionais referentes a fins ou valores,
ou de cunho'' ideológico''). Podem ser orientados principalmente por interesses pessoais
ou por fins objetivos. Na prática, podem dirigir-se, oficial ou efetivamente, excíuslVã'-
mente a obtenção do poder para o líder e à ocupação dos cargos administrativos por
seus quadros (partido de patronato). Ou podem estar orientados predominante e cons-
cientemente por interesses de estamentos ou classes (partido estamental o'- de classe)
ou por fins objetivos concretos ou por princípios abstratos (partido ideológico). Mas
a ocupação dos cargos administrativos pelos seus membros costuma ser, freqüente-
mente, um fim acessório, e os "programas" objetivos não raro apenas um meio de
recrutar novos membros.
Conceitualmente, os partidos só são possíveis dentro de uma associação cuja dire-
ção pretendem influenciar ou ocupar; são possíveis, também, e não raros, os cartéis
de partidos que se estendem a várias associações.
Todos os meios podem ser empregados pelosmrtidosparachegarem aapoder.
QuandoTHíreçao e"cfeterminada por e/eições^brmãlínente) livréTeosestatutos são
criados mediante votação, eles constituem, antes de mais nada, organizações para o
recrutamento de votos eleitorais e, no caso de as votações terem fins predeterminados,
são partidos legais. Partidos legais significam sempre, em virtude de seu fundamento
em princípio voluntário (de recrutamento livre) que as atividades da política são ativida-
des de interessados (deixamos aqui completamente de lado a idéia de interessados "eco-
nómicos": trata-se de interessados políticos, isto é, orientados pela ideologia ou pelo
poder, como tal) Isto significa que as atividades políticas estão nas mãos de
a) líderes e quadros de partido, ao lado dos quais
b) aparecem membros de partido ativos, na maioria das vezes, porém, apenas
como aclamantes e, em certas circunstâncias, como instâncias de controle, de discussão,
de contrapropostas e de resolução, enquanto que
c) as massas não ativamente associadas (de eleitores e votantes) são apenas objetos
de solicitação em tempos de eleição ou votação C 'simpatizantes" passivos) cuja opinião
só interessa como meio de orientação para o trabalho de propaganda do quadro de
partido em casos de luta efetiva pelo poder.
ECONOMIA E SOCIEDADE 189

Ocultos p e r m a n e c e m , e m r e g r a (mas n e m s e m p r e ) ,
d) os mecenas de partido.
A l é m dos partidos organizados de m o d o f o r m a l m e n t e legal, dentro de associações
f o r m a l m e n t e legais, e x i s t e m sobretudo:
a ) partidos carismáticos: dissensão sobre a qualidade carismática d o senhor, sobre
o " v e r d a d e i r o " s e n h o r carismático ( f o r m a : cisma),
b) partidos tradicionalistas: d i s s e n ç ã o sobre o m o d o de e x e r c í c i o do poder tradi-
cional na esfera d o l i v r e arbítrio e da g r a ç a d o s e n h o r ( f o r m a : o b s t r u ç ã o o u r e volta
aberta contra " i n o v a ç õ e s " )
c ) partidos doutrinais, idênticos, e m r e g r a , mas n ã o inevitavelmente, aos do caso
a-, dissensão sobre conteúdos de ideologias o u doutrinas ( f o r m a : h e r e s i a , que t a m b é m
pode aparecer e m partidos racionais — s o c i a l i s m o )
d) partidos p u r a m e n t e de a p r o p r i a ç ã o : dissensão c o m o senhor e seu quadro
administrativo sobre o m o d o d e recrutamento dos quadros administrativos, na m a i o r i a
das vezes (mas n ã o necessariamente, c o m o é ó b v i o ) idênticos aos de b.
Q u a n t o à o r g a n i z a ç ã o , os partidos p o d e m pertencer aos mesmos tipos de todas
as demais associações, isto é, ser orientados de m o d o carismático-plebiscitário (crença
n o líder) o u tradicional (apego ao prestígio social do senhor o u do v i z i n h o p r e e m i n e n t e )
o u r a c i o n a l (lealdade aos dirigentes e aos quadros administrativos nomeados por v o t a ç ã o
" s e g u n d o os e s t a t u t o s " ) e isto n o que se r e f e r e à o b e d i ê n c i a tanto dos partidários
quanto dos quadros administrativos.
Todos os detalhes ( m a t e r i a i s ) f a z e m parte da Sociologia do Estado.
Economicamente, o financiamento do partido é u m a q u e s ã o d e importância cen-
tral p a r a o m o d o c o m o se distribui sua influência e p a r a a d i r e ç ã o que suas a ç õ e s
tornam materialmente: isto é, se ele p r o v é m de grande n ú m e r o de pequenas contri-
b u i ç õ e s .das massas, o u de mecenato i d e o l ó g i c o , de c o m p r a (direta o u i n d i r e t a ) interes-
sada o u de tributação das oportunidades proporcionadas pelo partido o u dos adversários
subjugados. T a m b é m esta p r o b l e m á t i c a pertence, e m seus detalhes, à Sociologia do
Estado.

1. Partidos existem, ex definiüone, apenas dentro de associações (políticas e outras) e


na luta pela dominação destas. Dentro dos partidos, por sua vez, podem existir subpartidos
— e de fato eles existem freqüentemente (como formas de associação efêmeras, típicas dos
partidos americanos em toda campanha de designação do candidato à presidência; como formas
de associação duradouras, por exemplo, verificadas em fenômenos como os "jovens liberais",
na Alemanha) Exemplos típicos de partidos que reúnem várias associações sáo, por um lado,
os guelfos e gibelinos (de caráter estamental), na Itália do século X I I I e, por outro, os socialistas
modernos (de caráter classista)
2. A característica do recrutamento (formalmente) livre, das bases (formalmente, do ponto
de vista das regras da associação) voluntárias dos partidos é aqui considerada a essência deles
e significa, em todo caso, uma diferença sociologicamente fundamental com respeito a todas
as relações associativas prescritas e reguladas pela disciplina de uma associação. Mesmo onde
a disciplina da associação tem em conta a existência dos partidos — como, por exemplo, nos
Estados Unidos ou no sistema eleitoral proporcional alemão —, chegando até a empreender
o regulamento de sua constituição, aquele elemento voluntarista permanece intato. Quando um
partido torna-se uma relação associativa fechada, incorporada ao quadro administrativo, em
virtude da disciplina da associação — como ocorreu, afinal, por exemplo, com a "parte guelfa",
nos estatutos florentinos do século X I I I —, ele não é mais "partido" mas uma associação que
integra a associação politica.
3- Numa associação de dominação genuinamente carismática, os partidos são necessa-
riamente seitas cismáticas; sua luta é uma luta de crenças e, como tal, não pode ser resolvida
definitivamente. Situação semelhante pode existir numa associação rigorosamente patriarcal.
190 MAX WEBER

Aos partidos, em sentido moderno, a forma pura destes dois tipos de partido é, em condições
normais, estranha. Situação típica nas associações carismático-hereditárias e estamentais é o con-
fronto dos séquitos de pretendentes a feudos e cargos, reunidos em torno do pretendente ao
trono. Séquitos pessoais predominam nas associações com administração honorária (cidades-
estados aristocráticas), mas também em algumas democracias. Os partidos adotam seu tipo mo-
derno somente no Estado legal com constituição representativa. A exposição deste tipo encontra-se
mais adiante na Sociologia do Estado.
4. Exemplos clássicos de partidos puros de patronato, no Estado moderno, são os dois
grandes partidos americanos de nossa época. Exemplos de partidos com fins objetivos ou "ideoló-
gicos" foram, em seu tempo, o antigo conservadorismo, o antigo liberalismo e a antiga demo-
cracia burguesa, mais tarde, a social-democracia — todos eles com uma forte dose de interesses
de classe — e o "partido de centro"; este último, depois de realizar quase todas suas pretensões,
tornou-se em grande parte um partido puro de patronato. E m todos eles, porém, mesmo nos
mais puros, de classe, costuma ser também decisivo para a atitude dos líderes e do quadro
administrativo o interesse próprio (ideal ou material) em termos de poder, cargos e garantia
de existência, enquanto que a defesa dos interesses de seus eleitores só se realiza na medida
em que seja inevitável, para não pôr em perigo as possibilidades de reeleição. Este último fator
é uma das razões que explicam a oposição contra o partidarismo.
5. As formas de organização dos partidos serão examinadas separadamente. Uma coisa
têm todos eles em comum: a um núcleo de pessoas em cujas mãos está a direção ativa — a
formulação das palavras de ordem e a escolha dos candidatos — associam-se "partidários" com
papel muito mais passivo, enquanto que os membros da associação, em sua maioria, constituem
puros objetos, podendo escolher entre os vários candidatos e programas apresentados pelos
partidos. Essa situação é inevitável em função do caráter voluntarista dos partidos e constitui
aquilo que aqui se define por atividades de'' interessados''. (Entendemos aqui pior'' interessados'',
conforme já mencionamos, interessados "políticos", e não "materiais" )Este é o segundo ponto
principal de ataque da oposição contra o partidarismo como tal, ponto em que se baseia a afinidade
formal das atividades de partido com as atividades capitalistas igualmente baseadas no recruta-
mento formalmente livre de trabalho.
6. O mecenato como base financeira não é, de modo algum, próprio somente dos partidos
"burgueses". Paul Singer, por exemplo, era um mecenas, de grande estilo, do partido socialista
(além de mecenas humanitário e, pelo que se sabe, de intenções mais puras) Sua posição de
líder do partido baseava-se integralmente nisso. A revolução russa (de Kerenski) foi financiada
em parte (dentro dos partidos) por grandes mecenas moscovitas. Outros partidos alemães (da
"direita") foram financiados pela indústria pesada; o "centro", ocasionalmente, por multimi-
lionários católicos.
As finanças dos partidos são, para a investigação, por razões compreensíveis, o capítulo
menos transparente de sua história e, mesmo assim, um dos mais importantes. Em alguns casos,
parece bem provável que se "compra" uma "máquina" (caucus — quanto ao conceito, veja
adiante) De resto, existem estas alternativas: a maior parte do custo da eleição é arcada ou
pelos candidatos (sistema i n g l ê s ) — resultado: plutocracia dos candidatos — ou pela "máquina"
— resultado: dependência dos candidatos em relação aos funcionários do partido. De uma forma
ou de outra é assim desde que existem partidos como organizações duradouras, tanto na Itália
do século X I I quanto em nosso tempo. Essas coisas, contudo, não deveriam ser ocultas por
palavrório. Sem dúvida, o financiamento de um partido tem limites em seu poder: só pode
servir-se de meios de propaganda que têm "mercado". Mas, como ocorre na relação entre as
empresas capitalistas e o consumo, o poder da oferta cresceu imensamente em virtude da sugestão
dos meios de propaganda (particularmente dos "partidos radicais" da direita ou — tanto faz
— da esquerda)

10. A d m i n i s t r a ç ã o d e associações a l h e i a à d o m i n a ç ã o
e administração de representantes

§ 19. As associações p o d e m pretender r e d u z i r o mais possível os poderes de m a n d o


— inevitáveis, pelo menos e m uma medida m í n i m a — ligados a f u n ç õ e s executivas
ECONOMIA E SOCIEDADE 191

( m i n i m i z a ç ã o da d o m i n a ç ã o ) considerando os administradores pessoas que e x e r c e m


sua f u n ç ã o somente c o n f o r m e a vontade, " a s e r v i ç o " e e m v i r t u d e da a u t o r i z a ç ã p dos
demais m e m b r o s da associação. Isto pode ser conseguido, e m g r a u m á x i m o , e m associa-
ç õ e s pequenas, nas quais todos os m e m b r o s p o d e m r e u n i r - s e n o m e s m o lugar, conhe-
cem-se uns aos outros e consideram-se socialmente iguais, m a s t a m b é m f o i tentado
p o r associações m a i o r e s (especialmente u n i õ e s de cidades, no passado, e d e distritos
dentro de u m p a í s ) O s m e i o s técnicos geralmente empregados p a r a este f i m são:
a ) prazos curtos de e x e r c í c i o de cargos; se possível, apenas o t e m p o entre duas
assembléias dos m e m b r o s ;
b) direito de r e v o g a ç ã o a cada m o m e n t o (recalf)
c) p r i n c í p i o d e r o d í z i o o u sorteio p a r a n o m e a ç ã o , d e m o d o q u e cada u m tenha
" a sua v e z " — e desse m o d o evita-se u m a p o s i ç ã o poderosa do saber t é c n i c o e s p e c í f i c o
o u d o conhecimento dos segredos oficiais;
d) mandato rigorosamente imperativo quanto ao m o d o de e x e r c í c i o d o cargo
(competência concreta, e n ã o g e r a l ) f i x a d o pela assembléia dos m e m b r o s ;
e ) d e v e r rigoroso d e prestar contas à assembléia;
f) d e v e r de apresentar à assembléia ( o u determinada c o m i s s ã o ) toda q u e s t ã o e x -
traordinária o u i m p r e v i s t a ,
g) u m grande n ú m e r o de cargos acessórios, encarregados d e tarefas especiais,
e portanto:
h) caráter d e " p r o f i s s ã o acessória" dos cargos. *
Q u a n d o o q u a d r o administrativo é eletivo, as eleições realizam-se n u m a assem-
bléia dos m e m b r o s da associação. A administração é essencialmente o r a l ; os atos escritos
s ó o c o r r e m q u a n d o da necessidade de documentar determinados direitos. Todas as
disposições importantes s ã o apresentadas à assembléia. E m nossa terminologia, esta
f o r m a d e administração, e outras p r ó x i m a s a este tipo, chama-se "democracia imediata'',
desde que a assembléia dos m e m b r o s da associação atue de modo efetivo.

1. A township norte-americana e o pequeno cantão suíço (Glarus, Schwyz, os dois de


Appenzell e t c . ) por seu tamanho, já se encontram nos limites da possibilidade de uma adminis-
tração "imediatamente democrática" (cuja técnica não será examinada aqui) A democracia dos
cidadãos áticos estava de fato bem além desses limites, e muito mais ainda o parliamentum
das cidades italianas da alta Idade Média. Uniões, corporações e associações científicas, acadê-
micas e esportivas de todas as espécies são freqüentemente administradas dessa forma. Mas
ela também pode ser encontrada na igualdade interna de associações de "aristocratas" que não
aceitam um senhor supremo.
2. Outra condição prévia essencial, além da redução espacial ou do número de pessoas
(no melhor caso, ambas) é a ausência de tarefas qualitativas que só podem ser realizadas por
funcionários profissionais. Mesmo tentando-se manter o funcionalismo profissional em mais es-
treita dependência, este contém o germe da burocratização e, sobretudo, os funcionários não
podem ser convocados nem demitidos pelos meios genuínos da "democracia imediata".
3. A forma racional da democracia imediata, por suas idéias, aproxima-se das associações
gerontocráticas ou patriarcais primitivas, pois estas também são administradas " a serviço" dos
membros. Contudo, há nelas: a ) apropriação do poder administrativo e b) (em condições normais)
vinculação estreita à tradição. A democracia imediata é, ou pelo menos pode ser, uma associação
racional. As formas de transição serão expostas logo em seguida.

§ 20. C h a m a m o s " m e m b r o s h o n o r á r i o s " aquelas pessoas que,


1. e m v i r t u d e de sua situação e c o n ô m i c a , p o d e m p e r m a n e c e r ativas n a d i r e ç ã o
o u administração d e u m a associação, exercendo-a c o m o p r o f i s s ã o acessória c o n t í n u a
e n ã o - r e m u n e r a d a , o u c o m r e m u n e r a ç ã o apenas n o m i n a l o u h o n o r í f i c a , e q u e
192 MAX WEBER

2. g o z a m de determinado a p r e ç o social, qualquer que seja o motivo deste, d e


m o d o que t ê m a possibilidade, na d e m o c r a c i a imediata f o r m a l , de e x e c e r seus cargos
e m v i r t u d e da c o n f i a n ç a dos m e m b r o s da associação, p r i m e i r o de m o d o v o l u n t á r i o
e, finalmente, de m o d o tradicional.
Pressuposto indispensável da p o s i ç ã o de f u n c i o n á r i o h o n o r á r i o , neste sentido p r i -
m á r i o de poder v i v e r para a política s e m precisar v i v e r dela, é ele ter, e m determinado
g r a u , a possibilidade d e afastar-se dos n e g ó c i o s p r ó p r i o s privados. D e l e d i s p õ e m , ao
m á x i m o , os rentistas de todas as espécies: rentistas de terras, de escravos, d e gado,
de casas e de títulos e valores. E m segundo lugar, v ê m aqueles profissionais cujos
n e g ó c i o s lhes facilitam e m alto g r a u a e x e c u ç ã o acessória das tarefas políticas: indivíduos
responsáveis p o r empreendimentos sujeitos à m u d a n ç a das estações (portanto, agricul-
tores), advogados (por t e r e m u m " e s c r i t ó r i o " ) e alguns outros profissionais liberais;
t a m b é m , e m grande parte, comerciantes patrícios c o m n e g ó c i o s ocasionais. Por ú l t i m o
v ê m os e m p r e s á r i o s industriais e artesanais, e os trabalhadores. T o d a democracia ime-
diata tende a passar para a " a d m i n i s t r a ç ã o h o n o r á r i a " . Idealmente, p o r ser considerada
particularmente qualificada p o r e x p e r i ê n c i a e objetividade, materialmente, p o r ser m u i -
to barata o u , e m certas circunstância, até gratuita. O f u n c i o n á r i o h o n o r á r i o possui,
e m parte, os meios administrativos materiais, o u , e n t ã o , emprega o p a t r i m ô n i o p r ó p r i o
p a r a este f i m , e, e m parte, recebe-os da associação.

1. A casuística do funcionalismo honorário, como qualidade estamental, será examinada


mais tarde. A fonte primária, em todas as sociedades primitivas, é a riqueza, cuja posse constitui
freqüentemente o único fundamento da qualidade de "cacique" (condições, veja capítulo I V )
Além disso, pode aparecer, em primeiro plano, dependendo do caso, a consideração carismático-
hereditária ou a possibilidade de aiastar-se dos negócios privados.
2. E m oposição à township dos americanos que, com base no direito natural, favorece
o rodízio efetivo, freqüentemente observa-se, nas listas de funcionários dos cantões suíços com
democracia imediata, a repetição contínua dos mesmos nomes e, muito mais ainda, das mesmas
famílias. A maior possibilidade de afastar-se dos negócios próprios (para aparecer na assembléia
obrigatória) constituía também nas comunidades germânicas e nas cidades do norte da Alemanha,
parte das quais era inicialmente estritamente democrática, uma das fontes da diferenciação entre
os meliorts e o patriciado de conselheiros e demais cidadãos.
3. A administração honorária é encontrada em associações de todas as espécies, tipica-
mente também, por exemplo, nos partidos políticos não-burocratizados. Ela significa sempre:
administração extensiva e, portanto, quando necessidades econômicas e administrativas atuais
e muito urgentes requerem uma ação precisa, apesar de ser "gratuita" para a associação, pode
chegar a ser muito "onerosa" para cada membro individual.

T a n t o a democracia imediata g e n u í n a quanto a administração h o n o r á r i a f a l h a m


tecnicamente q u a n d o se trata de associações que e x c e d e m certa (elástica) quantidade
(alguns m i l h a r e s de m e m b r o s c o m direitos p l e n o s ) o u q u a n d o se trata de tarefas adminis-
trativas que, p o r u m lado, e x i g e m f o r m a ç ã o profissional e, p o r outro, continuidade
na d i r e ç ã o . Se nestas c o n d i ç õ e s se trabalha c o m f u n c i o n á r i o s profissionais permanentes
ao lado de dirigentes que s e m p r e m u d a m , o c o r r e n o r m a l m e n t e de a administração
estar de fato nas m ã o s dos p r i m e i r o s , os quais f a z e m o s e r v i ç o , enquanto que a interven-
ç ã o dos últimos conserva u m caráter substancialmente diletante.

Um exemplo típico deste caso é a situação dos reitores universitários que se revezam
e que, como cargo acessório, administram assuntos acadêmicos, em oposição à dos síndicos
e, em certas circunstâncias, também dos funcionários burocráticos. Somente um presidente uni-
versitário autônomo e eleito a longo prazo (do tipo norte-americano) — prescindindo-se de
ECONOMIA E SOCIEDADE 193

personagens extraordinárias — poderia criar uma "administração autônoma" das universidades


que não se limitasse a palavras solenes e presunção. E somente a vaidade dos colégios acadêmicos,
por um lado, e o interesse de poder da burocracia, por outro, resistem a deduzir tais conse-
qüências. O mesmo ocorre, tnutatis mutandis, por toda parte.

A l é m disso, a democracia imediata, l i v r e de d o m i n a ç ã o , e a administração hono-


rária s ó p o d e m existir e m sua f o r m a g e n u í n a enquanto n ã o a p a r e c e m partidos como
f o r m a ç õ e s duradouras, lutando entre s i pela a p r o p r i a ç ã o dos cargos. Pois assim que
isto o c o r r e , os líderes e o quadro administrativo d o partido que luta e v e n c e — p o r
quaisquer meios — constituem u m a estrutura de dominação, apesar de c o n s e r v a r todas
as f o r m a s da a d m i n i s t r a ç ã o até e n t ã o existente.

Esta é uma forma bastante freqüente de rompimento com as condições "antigas".

11. Representação

§ 2 1 . Por r e p r e s e n t a ç ã o entendemos primordialmente a situação já exposta (capí-


tulo I , § 11) na qual as a ç õ e s de determinados m e m b r o s da associação (representantes)
s ã o imputadas aos demais o u d e v e m ser consideradas p o r estes c o m o vigentes d e m o d o
" l e g í t i m o " e " v i n c u l a n t e " , c o m o de fato o c o r r e .
D e n t r o das dominações associativas, a representação assume várias f o r m a s típicas:
1. Representação apropriada. O dirigente ( o u u m m e m b r o d o q u a d r o adminis-
trativo) tem p o r a p r o p r i a ç ã o o direito de representação. Nesta f o r m a , ela é muito antiga
e encontra-se e m associações d e d o m i n a ç ã o patriarcais e carismáticas (carismático-here-
ditárias, carismáticas de c a r g o ) de caráter muito diverso. O poder representativo tem
dimensão tradicional.

A este tipo pertencem os xeques de clãs e os caciques de tribos, os schrsschths de castas,


os hierarcas hereditários de seitas, ospatels de aldeia, os chefes de regiões fronteiriças (Obermâr-
ker) os monarcas hereditários e todos os dirigentes semelhantes, patriarcais e patrimoniais,
de associações de todas as espécies. Autorizações para concluir contratos e acordos, com caráter
estatutário, com os anciãos das associações vizinhas já se encontram em situações de resto bastante
primitivas (Austrália)

Muito p r ó x i m a à r e p r e s e n t a ç ã o a p r o p r i a d a está:
2. a representação estamental ( p o r direito p r ó p r i o ) Não se trata d e " r e p r e s e n -
t a ç ã o " p r o p r i a m e n t e dita, p o r q u e , sob certo ponto de vista, se limita p r i m a r i a m e n t e
a representar e f a z e r v a l e r direitos ( a p r o p r i a d o s ) próprios (privilégios) Mas a d q u i r e
caráter de representação (e p o r isso é às v e z e s considerada c o m o t a l ) n a m e d i d a e m
que o efeito da a p r o v a ç ã o de u m acordo estamental atinge, além da pessoa do p r i v i l e -
giado, as camadas não-privilegiadas, n ã o apenas de dependentes imediatos, c o m o tam-
b é m de outras pessoas que n ã o t ê m direitos estamentais. E isto p o r q u e , e m r e g r a o
vínculo destes últimos aos c o n v ê n i o s dos privilegiados é pressuposto c o m o evidente
o u toma o caráter d e u m a p r e t e n s ã o expressa.

A este tipo pertencem todas as cortes feudais e assembléias de grupos estamentalmenta


privilegiados, mas especialmente os "estamentos" da baixa Idade Média alemã e da época moder-
na. Na Antiguidade e nos países não-europeus, essa instituição é representada somente por alguns
exemplares isolados, sem constituir uma "fase transitória" geral.
194 MAX WEBER

3. Contrastando mais acentuadamente com a instituição anterior está a represen-


tação vinculada: representantes eleitos (ou determinados por rodízio, sorteio ou outros
meios semelhantes), cujo poder representativo é limitado interna ou externamente por
mandato imperativo e direito de revocação, e vinculado ao consentimento dos represen-
tados. Esses "representantes" são, na verdade, funcionários daqueles que representam.

Desde sempre o mandato imperativo desempenhou um papel importante e em associações


de natureza bastante diversa. Os representantes eleitos das comunas francesas, por exemplo,
estavam quase sempre vinculados a seus cahiers de doléances. Em nosso tempo, esse tipo de
representação é encontrado particularmente nas repúblicas de sovietes, onde constituem um
sucedâneo da democracia imediata, impossível em associações de massas. Mandatários vinculados
eram encontrados também em associações de natureza mais diversa fora do Ocidente medieval
e moderno, mas nunca alcançaram muita importância histórica.

4. Representação livre O representante, em regra eleito (eventualmente desig-


nado, formalmente ou de fato, por rodízio), não está ligado a instrução alguma, mas
é senhor de suas ações. Seu dever consiste em seguir as convicções próprias objetivas
e não os interesses de seus delegantês.
A representação livre, neste sentido, é não raramente a conseqüência inevitável
de insuficiência ou falha das instruções. Em outros casos, porém, constitui o sentido
autêntico da eleição de um representante, o qual é então o senhor de seus eleitores,
e não o "servidor" deles. Adotaram especialmente esse caráter as modernas represen-
tações parlamentares, as quais têm em comum, nesta forma, a objetivaçãO geral —
vinculação a normas abstratas (políticas, éticas) — que é a característica do poder legal.
Essa particularidade aplica-se em grau máximo às corporações representativas
das modernas associações políticas: os parlamentos Sua função não pode ser explicada
sem a intervenção voluntarista dos partidos-, são estes últimos que apresentam os candi-
datos e programas aos cidadãos politicamente passivos e criam, por compromisso ou
votação, dentro do parlamento, as normas para a administração, controlam-na, apóiam-
na com sua confiança e a derrubam com a recusa permanente de confiança — quando
conseguem obter a maioria dos votos nas eleições.
O líder do partido e o quadro administrativo por ele designado — os ministros,
secretários e eventualmente subsecretários de Estado — são os dirigentes "políticos"
do Estado, isto é, dependem em sua posição da vitória eleitoral de seu partido e, quando
da derrota deste, são obrigados a pedir demissão Onde a dominação de partido está
plenamente desenvolvida, eles são impostos ao senhor formal, o príncipe, mediante
as eleições parlamentares; o príncipe, expropriado do poder de mando, fica reduzido
ao papel de
1) escolher, em negociações com os partidos, o dirigente e legitimá-lo formal-
mente pela nomeação, além de
2) funcionar como órgão legalizador das disposições do atual chefe de partido
no cargo de dirigente.
O "gabinete" dos ministros, isto é, o comitê do partido majoritário pode estar
materialmente organizado de modo mais monocrático ou mais colegial; este último
modo é inevitável em gabinetes de coalizão; o primeiro é a forma que funciona com
maior precisão Os meios de poder habituais — guardar como segredo o conhecimento
de serviço e mostrar solidariedade para fora — servem de proteção contra os ataques
de adversários ou de partidários em busca de cargos. Em caso de ausência de divisão
de poderes material (efetiva), esse sistema significa apropriação plena de todo o poder
pelos atuais quadros do partido: os cargos de dirigentes, e também grande parte dos
ECONOMIA E SOCIEDADE 195

cargos de funcionários, transformam-se e m prebendas dos partidários: governo parla-


mentar de gabinete.

Às exposições dos fatos, encontradas no brilhante escrito político polêmico de W . HASBACH


[Die padamentarische Kabinettsregierung (1919)] contra este sistema (chamado erroneamente
"descrição política"), voltaremos em várias ocasiões. Meu próprio escrito, Parlament undRégie
rung im neu geordneten Deutschland, [1918] acentuou expressamente seu caráter de escrito
polêmico nascido somente da situação atual

Q u a n d o a a p r o p r i a ç ã o do poder pelo g o v e r n o de partido n ã o é completa, sendo


que o príncipe ( o u u m presidente e m p o s i ç ã o correspondente, como, por e x e m p l o ,
u m presidente eleito de m o d o plebiscitário) representa u m poder p r ó p r i o , especial-
mente no patronato dos cargos (inclusive os dos oficiais do exército), trata-se então
de u m governo constitucional. Este pode existir particularmente quando há divisão
de poderes f o r m a l . U m caso especial é representado pela coexistência de u m a presi-
dência plebiscitária e u m parlamento representativo: governo representativo-plebis-
citário.
Por outro lado, a d i r e ç ã o de u m a associação governada de m o d o parlamentar
p u r o pode ser nomeada simplesmente mediante a eleição das autoridades governa-
mentais (ou do dirigente) pelo parlamento: governo representativo.
O poder de governo dos ó r g ã o s representativos pode estar limitado e legitimado,
em alto g r a u , pela admissão de u m a consulta direta dos dominados: constituição de
referendum.

1. Própria do Ocidente não é a representação por si, mas a representação livre e sua
união em corporações parlamentares; na Antiguidade e em outros lugares, só a encontramos
em forma rudimentar (assembléias de delegados em ligas de cidades, porém sempre com man-
datos vinculados).
2. O rompimento do mandato imperativo esteve condicionado, em considerável grau,
à atitude dos príncipes. Ao anunciar as eleições, os reis franceses exigiam sempre, para os delega-
dos dos états généraux, a liberdade de poder votar a favor das propostas do rei, pois de outro
modo o mandato imperativo teria obstruído tudo. No parlamento inglês, sua composição (a
ser examinada ainda) e regulamento levaram ao mesmo resultado O quanto, em conseqüência
disso, os membros do parlamento se consideravam um estamento privilegiado, até as reformas
eleitorais de 1867, em nada fica mais evidente do que na exclusão rigorosa do público (multas
bastante graves para os jornais que informavam sobre as sessões, ainda no meado do século
XVIII). A teoria de que o deputado parlamentar é "representante do povo inteiro", isto é, de
que ele não está vinculado a mandatos (não é "servidor", mas — francamente falando — senhor),
já estava desenvolvida na literatura antes de a Revolução Francesa dar-lhe a forma (palavrosa)
desde então considerada a clássica.
3 Não cabe examinar aqui como o rei inglês (e outros, segundo este exemplo) foi gradual-
mente expropriado pelo governo de gabinete não-oficial e orientado puramente por interesses
de partido, e as razões desse desenvolvimento, singular enquanto tal (e não tão "casual" como
se costuma afirmar, considerando-se a ausência de uma burocracia na Inglaterra), porém de
significação universal. Tampouco o sistema representativo-plebiscitário americano da divisão
de poderes funcional, o desenvolvimento do referendum (em sua essência, um instrumento
de desconfiança para com parlamentos corruptos) e, mesclada com este, a democracia puramente
representativa na Suíça e atualmente também em alguns estados alemães. Trata-se aqui apenas
de fixar alguns dos tipos principais.
4. A chamada monarquia "constitucional", que em suas características essenciais inclui
sobretudo a apropriação do patronato de cargos, inclusive o de ministro, e do poder de mando
militar pelo monarca, pode ser de fato muito parecida com a puramente parlamentar (inglesa),
196 MAX WEBER

assim como esta última não exclui, de modo algum, a participação efetiva na direção da política
de um monarca politicamente capaz (Eduardo VII), por considerá-lo somente um figurante. Quan-
to aos detalhes, veja adiante.
5. As corporações representativas não são necessariamente "democráticas", no sentido
de igualdade dos direitos (eleitorais) de todos. Muito ao contrário, veremos que o solo clássico
da estabilidade da dominação parlamentar costuma ser uma aristocracia ou plutocracia (como
na Inglaterra)

Relação com a economia. Esta é altamente complicada e aincla será examinada


separadamente. Antecipamos aqui somente os seguintes aspectos gerais:
1. A desagregação dos fundamentos econômicos dos antigos estamentos condi-
cionou a transição para a representação "livre", na qual aquele que possui dotes dema-
gógicos encontrou o caminho aberto, sem consideração de sua pertinência estamental.
A causa da desagregação foi o capitalismo moderno.
2. A exigência de calculabilidade e confiabilidade no funcionamento da ordem
jurídica e da administração — necessidade vital do capitalismo racional — conduziu
a burguesia ao caminho de pretender limitar o poder do príncipe patrimonial e da
nobreza feudai, mediante uma corporação na qual a burguesia tivesse participação
decisiva e controlasse a administração e as finanças, além de cooperar nas modificações
da ordem jurídica.
3 O desenvolvimento do proletariado, no momento dessa transformação, não
alcançara o ponto em que este último pudesse apresentar-se como poder político e
parecer um perigo para a burguesia. Além disso, eliminava-se, sem escrúpulos, me-
diante o direito eleitoral censitário, toda ameaça à posição de poder das camadas
proprietárias.
4. A racionalização formal da economia e do Estado, favorável ao interesse do
desenvolvimento capitalista, podia ser fortemente favorecida mediante os parlamentos.
Ganhar influência sobre os partidos parecia fácil.
5. A demagogia dos partidos então existentes seguiu o caminho da ampliação
do direito eleitoral. A necessidade de ganhar o proletariado em caso de conflitos exterio-
res e a esperança — frustrada — posta em seu caráter "conservador" em relação à
burguesia levaram por toda parte os príncipes e ministros a favorecer o direito eleitoral
(por íüri) igual.
6. Os parlamentos funcionaram normalmente enquanto estavam dentro deles —
por assim dizer — "entre iguais" as classes que possuíam "educação e propriedade"
— funcionários honorários, portanto —, com a predominância não dos partidos orien-
tados puramente pelos interesses de classe, mas das oposições estamentais, condicio-
nadas pela natureza diversa da propriedade. Com o início do poder dos partidos pura-
mente classistas, especialmente dos proletários, transformou-se e continua a se transfor-
mar a situação dos parlamentos. No mesmo grau, porém, contribui para isso a burocra-
tização dos partidos (sistema do caucus) cujo caráter é especificamente plebiscitário
e transforma o deputado de "senhor" dos eleitores em servidor dos líderes da "máqui-
na" do partido. Sobre isso, cabe falar ainda em particular.

§22. 5. Denotrúmmos representação por represenmntes de interesses aquele xipo


de corpos representativos nos quais os membros não são nomeados de modo livre
e sem consideração da pertinência profissional, estamental ou de classe, mas classifi-
cados segundo a profissão e a situação estamental ou de classe e nomeados por seus
iguais, reunindo-se — como se costuma dizer hoje em dia — numa "representação
de categorias profissionais".
ECONOMIA E SOCIEDADE 197

U m a r e p r e s e n t a ç ã o desse tipo pode ter u m significado fundamentalmente diverso


1) segundo a natureza das profissões, estamentos e classes admitidos;
2 ) se a v o t a ç ã o o u o c o m p r o m i s s o f o r e m o m e i o de r e s o l v e r conflitos; e,
3 ) n o p r i m e i r o caso, d e p e n d e n d o da participação n u m é r i c a de cada categoria.
E l a pode ter caráter tanto extremamente r e v o l u c i o n á r i o quanto e x t r e m a m e n t e
conservador. E m todo caso, é produto do nascimento de grandes partidos classistas.
E m c o n d i ç õ e s n o r m a i s , a i n t e n ç ã o de criar esse tipo de r e p r e s e n t a ç ã o está ligada
a outra, de privar determinadas camadas do direito eleitoral; e isto se r e f e r e o u ,
a) materialmente, às massas s e m p r e preponderantes por seu n ú m e r o , mediante
determinada distribuição dos mandatos às profissões o u ,
b) formalmente, às camadas predominantes p o r sua p o s i ç ã o de poder e c o n ô m i c o ,
mediante a limitação do direito eleitoral às camadas não-proprietárias (o chamado Esta-
do de conselhos).
Por este tipo de r e p r e s e n t a ç ã o debilita-se — pelo menos teoricamente — a ação
ligada exclusivamente a determinados interesses (dos partidos), na política, ainda que
esta n ã o seja e l i m i n a d a , c o n f o r m e mostra toda a experiência. T e o r i c a m e n t e , a impor-
tância dos meios financeiros p a r a a e l e i ç ã o pode ser enfraquecida, mas isso t a m b é m
de m o d o duvidoso. O caráter cias c o r p o r a ç õ e s representativas deste tipo tende à ausência
de um líder. Pois c o m o representantes profissionais de interesses s ó e n t r a m e m conside-
r a ç ã o aqueles que p o d e m colocar todo seu tempo a s e r v i ç o da representação de interes-
ses, isto é, tratando-se de camadas sem recursos, os secretários a soldo das associações
de interessados.

1. A representação que utiliza o compromisso como meio de resolver conflitos é própria


de codas as corporações "estamentais" antigas. O compromisso domina hoje nas "comunidades
de trabalho" e em todo lugar onde a ordem prescreve a itio in partes e negociações entre os
diversos grêmios que discutem e resolvem os assuntos separadamente. Como é impossível encon-
trar uma expressão numérica para a "importância" de uma profissão e como, sobretudo, os
interesses das massas de trabalhadores e dos (cada vez mais reduzidos) empresários — cujos
votos, por serem particularmente especializados, ainda que seus portadores sejam pessoalmente
interessados, devem ter um peso que prescinda de seu número — são em grande parte antagô-
nicos, uma "votação" formal, em caso de participação de elementos muito heterogêneos por
estamento ou classe, é um absurdo mecanizado: o voto, como ultima ratio, é característico de
partidos em discussão e em busca de compromissos, e não de "estamentos".
2. Tratando-se de "estamentos", o voto é adequado quando a corporação se compõe
de elementos socialmente mais ou menos homogêneos, por exemplo, somente de trabalhadores,
como nos "conselhos". O protótipo representa a mercadanza da época das lutas entre as corpora-
ções: composta de delegados de cada corporação, votando pelo sistema majoritário, mas de
fato sob a pressão do perigo de separação quando ficam em minoria as corporações mais podero-
sas. Já a admissão de "empregados" aos conselhos cria problemas: sua participação nos votos
foi, em regra, mecanicamente limitada. A situação se complica mais ainda quando se admitem
neles representantes de camponeses e artesãos. E não há como decidir por votos quando entram
as chamadas profissões "superiores" e os empresários. A composição "paritária" de uma comuni-
dade de trabalho, com sistema de votação, significa que o apoio de sindicalistas "amarelos"
leva os empresários à vitória ou o apoio de empresários aduladores ajudam os trabalhadores
a vencer: isto é, que os elementos decisivos são os que mais desprezam a dignidade de sua
classe.
Mas também entre os trabalhadores dos "conselhos" puramente proletários apareceriam,
em tempos tranqüilos, antagonismos agudos que, além de causar provavelmente a paralisação
efetiva dos conselhos, acarretariam todas as oportunidades para uma política que se aproveitaria
habilmente da rivalidade entre os interessados: esta é a razão por que a burocracia é tão favorável
à idéia dos conselhos. A mesma oportunidade existiria para os representantes de camponeses
em relação aos de operários. E m todo caso, qualquer composição n ã o estritamente revolucionária
198 MAX WEBER

dessas corporações representativas resultaria, em última instância, em nada mais do que numa
nova oportunidade para a "geometria de círculo eleitoral", ainda que em outra forma.
3. As possibilidades das representações "profissionais" não são pequenas. E m tempos
de estabilização do desenvolvimento técnico-econômico, serão extremamente grandes. Em tais
condições, porém, diminuirão em todo caso e em grande pane as atividades dos partidos. Mas
enquanto não exista esse pressuposto, não é possível pensar que as corporações representativas
profissionais possam eliminar os partidos. Ao contrário, desde os "conselhos de empresa" —
onde já podemos observar o processo — até o Conselho Econômico do Reich criam-se inúmeras
prebendas novas para membros fiéis dos partidos, as quais naturalmente são aproveitadas. Dá-se
uma politização da vida econômica e uma economização da vida política. Diante de todas essas
possibilidades, pode-se tomar posições fundamentalmente diversas, dependendo da posição valo-
rativa última que se adote. Só que os fatos são estes, e não outros.

Tanto a representação parlamentar g e n u í n a c o m atividades voluntárias de interes-


sados, na política, quanto a o r g a n i z a ç ã o plebiscitária dos partidos, desenvolvida a partir
da p r i m e i r a , c o m suas c o n s e q ü ê n c i a s , o u a idéia m o d e r n a da representação racional
por representantes de interesses s ã o próprias do Ocidente e s ó explicáveis pelo desenvol-
vimento ocidental dos estamentos e das classes, o qual, já na Idade M é d i a , c r i o u a l i ,
e somente a l i , as f o r m a s precedentes. Somente ali existiam " c i d a d e s " e "estamentos"
(rex et regnum), "burgueses" e "proletários".
Capítulo IV

ESTAMENTOS E CLASSES

1. Conceitos

§ 1. C h a m a m o s "situação de classe" a oportunidade típica de


1) abastecimento de bens,
2 ) p o s i ç ã o de v i d a e x t e r n a ,
3 ) destino pessoal,
que resulta, dentro de determinada o r d e m e c o n ô m i c a , da e x t e n s ã o e natureza do p o d e r
de disposição ( o u da falta deste) sobre bens o u q u a l i f i c a ç ã o de s e r v i ç o e da natureza
de sua aplicabilidade p a r a a o b t e n ç ã o de rendas o u outras receitas.
C h a m a m o s "classe" todo g r u p o de pessoas que se encontra e m igual situação
de classe.
a) Classe de classe proprietária é aquela e m que as diferenças de propriedade
determinam p r i m a r i a m e n t e a situação de classe.
b) classe aquisitiva é a que apresenta oportunidades de v a l o r i z a ç ã o d e bens o u
serviços que lhe d e t e r m i n a m p r i m a r i a m e n t e a situação de classe.
c ) classe social é a totalidade daquelas situações de classe entre as quais u m a
mudança
a) pessoal,
0 ) na sucessão das g e r a ç õ e s
é facilmente possível e costuma o c o r r e r tipicamente.
Sobre o fundamento de todas as três categorias de classe p o d e m surgir associações
dos interessados classistas (associações de c l a s s e ) Mas isto n ã o o c o r r e necessariamente:
situação de classe e classe nada m a i s i n d i c a m d o que a existência de situações de inte-
resses típicas iguais ( o u semelhantes) e m que u m i n d i v í d u o se encontra junto c o m muitos
outros. E m p r i n c í p i o , o poder de disposição sobre os diversos tipos de bens de consumo,
meios de p r o d u ç ã o , p a t r i m ô n i o , m e i o s de a q u i s i ç ã o e qualificação de s e r v i ç o consti-
tuem, e m cada caso, u m a situação de classe especial, e somente a falta total d e " q u a l i f i -
c a ç ã o " de pessoas sem p r o p r i e d a d e , obrigadas a ganhar a v i d a p o r s e u trabalho c o m
o c u p a ç õ e s inconstantes, representa u m a situação de classe h o m o g ê n e a . As transições
de u m a classe p a r a outra p o d e m ser o u n ã o fáceis e fluentes, e m g r a u muito diverso;
p o r isso, d i f e r e t a m b é m , n o m e s m o g r a u , a unidade das classes sociais.
a ) A i m p o r t â n c i a primária de u m a classe proprietária positivamente privilegiada
está
a ) n a m o n o p o l i z a ç ã o d o abastecimento c o m bens de c o n s u m o de p r e ç o s elevados
( o n e r o s o s ) na c o m p r a ,
200 MAX WEBER

0 ) na situação de m o n o p ó l i o e na possibilidade de u m a política monopolista plane-


jada, na v e n d a ,
y) na m o n o p o l i z a ç ã o da oportunidade de f o r m a ç ã o de p a t r i m ô n i o p o r m e i o de
excedentes n ã o - c o n s u m i d o s ,
8 ) na m o n o p o l i z a ç ã o das oportunidades de f o r m a ç ã o de capital p o r m e i o de p o u -
pança; portanto, da possibilidade de investimentos d e p a t r i m ô n i o c o m o capital de e m -
p r é s t i m o e, c o m isso, de disposição sobre as p o s i ç õ e s de dirigentes (de e m p r e s a s )
e ) nos privilégios estamentais (de e d u c a ç ã o ) desde que s e j a m onerosos.

I . Classes proprietárias positivamente privilegiadas s ã o tipicamente os rentistas.


Estes p o d e m ser:
a) rentistas de seres humanos (pr oprietários de e s c r a v o s )
b) rentistas de terras;
c ) rentistas de minas;
d) rentistas de instalações (proprietários de instalações de trabalho e a p a r e l h o s )
e ) rentistas de navios;
f) credores e, neste caso:
oi) credores de gado;
0 ) c r e d o r e s de cereais;
y) credores de d i n h e i r o ;
g) rentistas de valores.

I I . Classes proprietárias negativamente privilegiadas s ã o tipicamente.


a) objetos de propriedade (dependentes — v e j a n o p a r á g r a f o sobre o "estamen-
to")
b) desclassificados (proletarü, n o sentido da A n t i g u i d a d e )
c ) endividados;
d) " p o b r e s " .
E n t r e elas estão as "classes m é d i a s " , que abrangem as camadas, de todas as e s p é -
cies, que d i s p õ e m de propriedade o u qualidades de e d u c a ç ã o e daí o b t ê m sua r e n d a .
Algumas delas podem s e r ' 'classes aquisitivas" (empresários — e m grande parte positiva-
mente privilegiados — , proletários — negativamente p r i v i l e g i a d o s ) mas n e m todas
(camponeses, artesãos, funcionários).
A articulação das classes proprietárias puras n ã o é " d i n â m i c a " , isto é, não leva
necessariamente a lutas e r e v o l u ç õ e s de classe. A classe proprietária dos rentistas de
seres humanos, positivamente privilegiada e m alto g r a u , p o r e x e m p l o , encontra-se m u i -
tas vezes ao lado da muito m e n o s positivamente privilegiada dos camponeses, o u até
dos desclassificados, sem que haja antagonismo de classe, e às vezes existe até solidarie-
dade entre elas ( p o r e x e m p l o , e m r e l a ç ã o aos d e p e n d e n t e s ) Somente o antagonismo
de classes proprietárias entre
1) rentistas de terras e desclassificados, o u
2 ) credores e devedores (muitas vezes: patrícios urbanos e camponeses o u arte-
sãos u r b a n o s )
pode l e v a r a lutas revolucionárias, as quais, n o entanto, não necessariamente têm o
f i m de m u d a r a constituição e c o n ô m i c a , mas p r i m a r i a m e n t e apenas o de obter acesso
à propriedade o u a distribuição desta (revoluções de classes p r o p r i e t á r i a s )

Um exemplo clássico do antagonismo de classe é a situação do poor white trash (brancos


sem escravos)em relação aos proprietários de plantations, nos estados sulistas dos Estados Unidos.
O poor white trash era muito mais hostil aos negros do que os proprietários de plantations,
ECONOMIA E SOCIEDADE 201

dominados freqüentemente, em sua situação, por sentimentos patriarcais. Os exemplos principais


da luta dos desclassificados contra os proprietários estão na Antiguidade, do mesmo modo que
dos antagonismos: credor x devedor e rentista de terras x desclassificado.

§ 2. b) A importância primária de u m a classe aquisitiva positivamente p r i v i l e g i a d a


está
a ) n a m o n o p o l i z a ç ã o da d i r e ç ã o da p r o d u ç ã o de bens, n o interesse dos fins l u c r a -
tivos dos m e m b r o s d e sua classe,
0 ) n o asseguramento de suas possibilidades aquisitivas pela influência sobre a
política e c o n ô m i c a das associações políticas e d e outras.

I . Classes aquisitivas positivamente privilegiadas s ã o tipicamente empresários:


a) comerciantes;
b) a r m a d o r e s ;
c ) e m p r e s á r i o s industriais;
d) e m p r e s á r i o s agrários;
e ) banqueiros e e m p r e s á r i o s financeiros e, em certas circunstâncias:
f) "profissionais l i b e r a i s " c o m capacidade o u f o r m a ç ã o especial (advogados, m é -
dicos, artistas),
g) trabalhadores c o m qualidades m o n o p ó l i c a s (próprias o u a d q u i r i d a s )

I I . Classes aquisitivas negativamente privilegiadas s ã o tipicamente trabalhadores,


e m suas diversas categorias qualitativamente diferenciadas:
a ) qualificados;
b) treinados p a r a determinado s e r v i ç o ;
c ) não-qualificados.
E n t r e eles encontram-se t a m b é m a q u i , c o m o "classes médias", os camponeses
e artesãos a u t ô n o m o s . A l é m disso, f r e q ü e n t e m e n t e :
a ) f u n c i o n á r i o s (públicos e p r i v a d o s )
b) a categoria mencionada e m Ife os trabalhadores c o m qualidades m o n o p ó l i c a s
excepcionais (próprias o u adquiridas — Ig},
\ c ) Classes sociais s ã o
a ) os trabalhadores e m s e u conjunto, e isto tanto mais quanto mais automatizado
se torna o processo d e trabalho,
0 ) a pequena burguesia,
y) os intelectuais s e m p r o p r i e d a d e e os especialistas profissionais (técnicos, " e m -
p r e g a d o s " comerciais e outros, f u n c i o n á r i o s p ú b l i c o s , eventualmente c o m s e p a r a ç ã o
social muito rigorosa entre eles, segundo o custo da e d u c a ç ã o )
8 ) as classes dos proprietários e privilegiados p o r e d u c a ç ã o .

O final interrompido de O capital, de Karl Marx, pretendia evidentemente ocupar-se do


problema da unidade de classe do proletariado, apesar de sua diferenciação qualitativa. Para
tanto é decisiva a importância crescente do trabalho "treinado" na própria máquina, dentro
de prazos relativamente curtos, à custa do''qualificado'' e às vezes também do'' não-qualifiçado''.
Sem dúvida, capacidades treinadas são freqüentemente monopólicas (tecelões alcançam às vezes
o rendimento ótimo depois de cinco anos!) O trânsito para uma vida de pequeno-burguês "autô-
nomo" era antigamente o objetivo de todo trabalhador, mas a possibilidade da realização torna-se
cada vez menor. Na sucessão das gerações, tanto para a quanto para 0, o "ascenso" à classe
social y (técnicos, empregados comerciais) é relativamente o mais fácil. Dentro da classe 8,
o dinheiro compra progressivamente — pelo menos na sucessão das gerações — tudo. A classe
y tem [particularmente] nos bancos e nas empresas de sociedades por ações oportunidades de
ascenso a 8, assim como os funcionários públicos [quando ocupam posições superiores].
202 MAX WEBER

U m a ação de classe c o m caráter de r e l a ç ã o associativa cria-se c o m m a i o r facilidade


a) contra os portadores imediatos de interesses opostos (trabalhadores contra
e m p r e s á r i o s , e n ã o [contra] acionistas, os quais de fato o b t ê m r e n d a s e m trabalhar;
tampouco: camponeses contra proprietárias de t e r r a s )
b) somente e m situações de classe tipicamente semelhantes p a r a massas de pes-
soas;
c ) e m caso de possibilidade técnica de fácil r e u n i ã o , especialmente nas comuni-
dades d e trabalho localmente concentradas (comunidade de o f i c i n a )
d) somente e m caso de condução p a r a fins evidentes, os quais regularmente são
impostos e interpretados p o r pessoas n ã o pertencentes à classe (os intelectuais)

§ 3- D e n o m i n a m o s situação estamental u m privilegiamento típico positivo o u ne-


gativo quanto à c o n s i d e r a ç ã o social, eficazmente reivindicado. Baseia-se
a) n o m o d o de v i d a e, por isso,
b) n o m o d o f o r m a l de e d u c a ç ã o e, nesse caso,
a ) e m aprendizagem empírica ou
0 ) r a c i o n a l , e nas f o r m a s de v i d a correspondentes;
c ) n o prestígio d e r i v a d o de d e s c e n d ê n c i a o u p r o f i s s ã o .
•*Na prática, a situação estamental manifesta-se, sobretudo,
a ) no connubium,
0 ) na comensalidade e, eventualmente,
•y) c o m f r e q ü ê n c i a , na a p r o p r i a ç ã o m o n o p ó l i c a de oportunidades j e aquisição
privilegiadas o u n a estigmatização de determinados m o d o s de a q u i s i ç ã o ,
8 ) e m c o n v e n ç õ e s estamentais ( " t r a d i ç õ e s " ) de outra espécie.
A situação estamental pode basear-se n u m a situação de classe de natureza u n í v o c a
o u a m b í g u a . Mas não se determina somente p o r ela: a posse de dinheiro£_a4JOSiçào
de e m p r e s á r i o n ã o s ã o , por si, qualificações estamefltàis — ainda que possam levar
a estas; K e r n a taltã de p a t r i m ô n i o constitui, por si, u m a d e s q u a l i f i c a ç ã o estamental,
ainda que t a m b é m possa levar a esta. A situação estamental, p o r outro lado, pode
condicionar e m p a n e o u totalmente u m a situação de classe, s e m ser-lhe idêntica. A
situação de classe de u m oficial, f u n c i o n á r i o o u estudante, determinada por seu patrimô-
nio, pode s e r ' m u i t o diversa s e m que difira a situação estamental, p o r q u e o m o d o de
v i d a c r i a d o pela e d u c a ç ã o é o m e s m o , nos pontos estamentalmente decisivos.
D e n o m i n a m o s " e s t a m e n t o " u m a pluralidade d e pessoas q u e , dentro de u m a asso-
c i a ç ã o , g o z a m efetivamente
a) de u m a c o n s i d e r a ç ã o estamental especial e eventualmente, t a m b é m , portanto,
b) de m o n o p ó l i o s estamentais especiais.
O s estamentos p o d e m originar-se
a ) p r i m a r i a m e n t e , de u m m o d o de v i d a estamental p r ó p r i o e, dentro deste, parti-
cularmente, da natureza da profissão (estamentos p o r m o d o de v i d a e p o r p r o f i s s ã o )
b) secundariamente, de m o d o carismático-hereditário, c o m base e m pretensões
eficazes d e prestígio, e m v i r t u d e de descendência estamental (estamentos p o r nasci-
mento)
c ) da a p r o p r i a ç ã o estamental de poderes de m a n d o políticos o u hierocráticos,
c o m o m o n o p ó l i o s (estamentos políticos o u h i e r o c r á t i c o s )
O desenvolvimento dos estamentos p o r nascimento é, e m r e g r a , u m a f o r m a da
a p r o p r i a ç ã o (hereditária) de privilégios p o r u m a associação o u p o r indivíduos qualifi-
cados. T o d a a p r o p r i a ç ã o f i x a de determinadas possibilidades, especialmente a de m a n d o
o u a de a q u i s i ç ã o , tende a levar à f o r m a ç ã o d e estamentos. E toda f o r m a ç ã o de estamen-
ECONOMIA E SOCIEDADE 203

tos tende a levar à a p r o p r i a ç ã o m o n o p ó l i c a de poderes de m a n d o e oportunidades


aquisitivas.
E n q u a n t o que as classes aquisitivas c r e s c e m c o m base na economia orientada
pelo m e r c a d o , os estamentos nascem e existem preferencialmente c o m base na p r o v i s ã o
de necessidades de tipo m o n o p ó l i c o - l i t ú r g i c o , feudal o u estamental-patrimonial de asso-
ciações. C h a m a m o s u m a sociedade " e s t a m e n t a l " quando a estruturação social orienta-se
preferencialmente pelos estamentos, e " c l a s s i s t a " quando esta orienta-se p r e f e r e n c i a l -
mente pelas classes. E n t r e as classes, a mais p r ó x i m a ao " e s t a m e n t o " é a classe "social",
e a mais distante, a "classe a q u i s i t i v a " . C o m f r e q ü ê n c i a , estamentos s ã o constituídos
basicamente por classes proprietárias.
T o d a sociedade estamental é convencional, regulada por n o r m a s de m o d o de
v i d a , criando, p o r isso, c o n d i ç õ e s de c o n s u m o economicamente irracionais e impe-
dindo, deste m o d o , p o r a p r o p r i a ç õ e s m o n o p ó l i c a s e e l i m i n a ç ã o da disposição l i v r e
sobre a própria capacidade aquisitiva, a f o r m a ç ã o l i v r e do mercado. A i n d a trataremos
disso e m particular.
APÊNDICE

Estamentos guerreiros1

I. Carismáticos:
1. Os membros do séquito. Admitidos, em regra, mediante um pacto especial de fidelidade
com os senhores.
Assim, a trustis merovingia (os antrustiones, "qui in truste dominica est", segundo
a Lex Salica em sua redação mais antiga) mediante o juramento de fidelidade com as
armas: o séquito militar montado, de proteção (daí o nome, interpretado como adjuto-
rium) Talvez uma imitação das scholae bizantinas (veja adiante)
Privilégios: a)resgate de sangue triplo. Originalmente, estavam na trustis francos livres,
romanos e escravos; mais tarde, apenas homens livres;
b) procedimento jurídico especial (Lex Salica 106)
c ) penitência em caso de testemunho contra um companheiro;
d) sustento na mesa do senhor ou — mais tarde — em economias separadas
enfeudadas;
e ) participação no aconselhamento do senhor;
f) emprego preferencial em funções oficiais importantes e cargos domésticos.
2. A trustis desapareceu no século X I I . Os membros dos séquitos carolíngios chamavam-se
satillites, milites, viri militares e eram, em parte, vassalos livres, em parte, ministeriais.
Os consiliarii eram, em parte, funcionários da corte, em parte, funcionários honorários
externos.
A admissão à trustis baseava-se principalmente na educação estamental na corte,
para a qual as famílias abastadas enviavam cada vez mais seus filhos.
II. Tradicionais:
1. Servas do rei: pueri regis oupueri aulici (provavelmente também a Adelschalke, na Bavie-
ra), às vezes antrustiones. Não-livres, portanto: resgate de sangue duplo.
2. Não-livres in borte, colonos militarmente armados, escravos, ministeriais. E m caso de
guerreiros profissionais, estes são chamados honorati e têm direito ao porte de armas
e possibilidade de receber beneficia.
Hl. Feudais:
Vassalos livres do rei, mediante contrato livre, enfeudados vitaliciamente, inicialmente, com
armas, poderes de mando políticos, terras ou rendas, em troca de recomendação, juramento
de fidelidade e obediência garantida pela honra estamental.
Qualificação estamental: modo de vida cavaleiresco e educação cortesã e militar. Esta
condição prévia só se deu pela diferenciação entre cs milites e os ministeriais do senhor,
recrutados sobretudo de vassus (palavra celta) livres. Originalmente: estamento determinado
pela profissão e pela natureza da relação com o senhor.
Com a apropriação dos feudos, ao contrário: qualificação carismático-hereditária, em
virtude da vida cavaleiresca dos antepassados, para receber feudos.

Estamentos guerreiros

A Homens livres.
1. Companheiros guerreiros carismáticos: associações da casa das homens. Admissão após
a prova de ascese heróica e o noviciado, mediante cerimônia de iniciação.

1. O que segue constitui evidentemente um esboço — incompleto — de uma casuística da formação dos
estamentos. Os dois esboços encontrados nas obras póstumas são publicados para dar uma idéia da possível
continuação. (Nota do organizador.)
206 MAX WEBER

E m oposição a:
1) crianças;
2) anciãos;
3) mulheres, entre as quais contam todos os que não passaram pela cerimônia de iniciação.
Modo de vida: sem família, no comunismo doméstico da casa dos homens, vivendo de
espólio, caça e entrega de alimentos por parte das economias dependentes (mulheres).
Privilégios estamentais: "cavalariça", direito ao porte de armas, trabalho com determinados
instrumentos, participação em caçadas e saques, privilégios nas refeições (carne assada),
participação nas orgias guerreiras (eventualmente, canibalismo) e nos cultos guerreiros,
direito a tributos, disposição sobre terras e escravos, bem como sobre determinadas espé-
cies de gado.
Às vezes, desenvolvimento em direção a clubes secretos com o monopólio de controle
de mercadorias e segurança (como a camorra)
Após o período no "grupo dos jovens": saída da casa dos homens, entrada na família
("período de milícia")
Depois de terminar a capacidade de milícia, são enjeitados, mortos ou, ao contrário, vene-
rados como conhecedores da tradição mágica.
2. Companheiros guerreiros tradicionais apropriados.
E m oposição a estamentos guerreiros
1) negativamente privilegiados: servos (semilivres e colonos) e escravos,
2) positivamente privilegiados.
O homem livre é obrigado a portar armas e — e m oposição aos negativamente privilegiados
— é o único que tem o direito de portá-las. Proporciona suas armas a si mesmo (equipa-
mento próprio) e, para estar em condições para isso, isto é, para estar de posse de seus
meios bélicos, tem de ser primitivamente proprietário de grandes ferras.
Privilégios estamentais: liberdade de residência, isenção de impostos, direitos plenos sobre
as terras próprias, participação nas assembléias jurídicas, direito de aclamação na coroação
do príncipe.
Segunda Parte

A ECONOMIA E AS ORDENS E PODERES SOCIAIS


Capítulo I

A ECONOMIA E AS ORDENS SOCIAIS

§ 1 . O r d e m jurídica e o r d e m e c o n ô m i c a

O conceito jurídico e sociológico, e o sentido da ordem jurídica, p. 209. — Efeitos sociológicos


e econômicos da ordem jurídica para o indivíduo. Direito estatal e extra-estatal, p. 212.

Quando se fala de "direito", "ordem jurídica" e "norma jurídica", deve-se obser-


var muito rigorosamente a diferença entre os pontos de vista jurídico e sociológico.
Quanto ao primeiro, cabe perguntar o que idealmente se entende por direito. Isto
é, que significado, ou seja, que sentido normativo, deveria corresponder, de modo
logicamente correto, a um complexo verbal que se apresenta como norma jurídica.
Quanto ao último, ao contrário, cabe perguntar o que de fato ocorre, dado que existe
a probabilidade de as pessoas participantes nas ações da comunidade — especialmente
aquelas em cujas mãos está uma porção socialmente relevante de influência efetiva
sobre essas ações —, considerarem subjetivamente determinadas ordens como válidas
e assim as tratarem, orientando, portanto, por elas suas condutas. Assim também se
determina a relação de princípio entre direito e economia.
A consideração jurídica ou, mais precisamente, a dogmático-jurídica, propõe-se
a tarefa de investigar o sentido correto de normas cujo conteúdo apresenta-se como
uma ordem que pretende ser determinante para o comportamento de um círculo de
pessoas de alguma forma definido, isto é, de investigar as situações efetivas sujeitas
a essa ordem e o modo como isso ocorre. Para esse fim, assim procede: partindo da
vigência empírica indubitável daquelas normas, procura classificá-las de modo a encai-
xá-las num sistema sem contradição lógica interna. Esse sistema'é a "ordem jurídica"
no sentido jurídico da palavra. A economia social, ao contrário, examina aquelas ações
humanai efetivas—que estão condicionadas pela necessidade de orientar-se pela "situa-
ção econômica" — em suas conexões efetivas. Chamamos "ordem econômica" a distri-
buição do efetivo poder de disposição sobre bens e serviços econômicos, que resulta
consensualmente do modo de equilíbrio de interesses e da maneira como ambos, de
acordo com o sentido visado, são de fato empregados, em virtude daquele poder de
disposição efetivo baseado no consenso. É evidente que os dois modos de consideração
se propõem problemas totalmente heterogêneos, que seus "objetos" não podem entrar
imediatamente em contato, e que a "ordem jurídica" ideal da teoria do direito não
tem diretamente nada a ver com o cosmos das ações econômicas efetivas, uma vez
que ambos se encontram em planos diferentes: a primeira, no plano ideal de vigência
pretendida; o segundo, no dos acontecimentos reais. Quando, apesar disso, a ordem
210 MAX WEBER

e c o n ô m i c a e a jurídica estão n u m a r e l a ç ã o bastante íntima, é porque esta última é


entendida n ã o e m s e u sentido j u r í d i c o mas n o s o c i o l ó g i c o : c o m o vigência empírica.
O sentido da p a l a v r a " o r d e m j u r í d i c a " m u d a e n t ã o completamente. N ã o significa u m
cosmos de n o r m a s interpretáveis c o m o logicamente " c o r r e t a s " , mas u m c o m p l e x o de
motivos efetivos que d e t e r m i n a m as a ç õ e s humanas reais. C a b e interpretar isso e m
seus detalhes.
O fato de pessoas quaisquer se c o m p o r t a r e m de determinada f o r m a porque a
c o n s i d e r a m prescrita p o r n o r m a s jurídicas é, sem d ú v i d a , u m componente essencial
da g ê n e s e r e a l e m p í r i c a , e t a m b é m da p e r d u r a ç ã o , de u m a " o r d e m j u r í d i c a " . Mas
é c l a r o que — c o m o resulta d o que f o i dito anteriormente 1 sobre a importância da
" e x i s t ê n c i a " de ordens racionais — isto n ã o i m p l i c a que todos o u sequer a m a i o r i a
dos participantes naquelas a ç õ e s se c o m p o r t e m assim por esse motivo. A o contrário,
isso nunca ocorre. Amplas camadas dos participantes comportam-se de acordo c o m
a o r d e m jurídica o u p o r q u e o m u n d o circundante o a p r o v a e desaprova o oposto,
o u p o r habituarem-se inconscientemente às regularidades da v i d a que se t o r n a r a m costu-
m e , mas n ã o p o r o b e d i ê n c i a sentida c o m o d e v e r jurídico. Se esta última atitude fosse
u n i v e r s a l , e n t ã o o direito p e r d e r i a inteiramente seu caráter subjetivo de direito e s ó
seria observado, subjetivamente, c o m o m e r o costume. Mas enquanto existe a probabi-
lidade de que u m aparato coativo [(veja adiante)], n u m caso dado, force o c u m p r i m e n t o
daquelas n o r m a s , temos de considerá-las " d i r e i t o " . T a m b é m é desnecessário — de
acordo c o m o que f o i dito a n t e r i o r m e n t e 1 — que todos os que c o m p a r t i l h a m a c o n v i c ç ã o
do caráter n o r m a t i v o de determinadas condutas v i v a m s e m p r e de acordo c o m isso.
Isso t a m b é m n u n c a o c o r r e e — u m a v e z que, segundo nossa d e f i n i ç ã o g e r a l , o que
decide sobre a " v a l i d a d e " de u m a o r d e m é a " o r i e n t a ç ã o " das a ç õ e s p o r esta e n ã o
sua " o b s e r v â n c i a " — t a m b é m n ã o é necessário. O " d i r e i t o " é p a r a n ó s u m a " o r d e m "
c o m certas garantias específicas da probabilidade de sua v i g ê n c i a e m p í r i c a . E por " d i -
reito objetivo g a r a n t i d o " entendemos o caso e m que a garantia consiste na existência
de u m " a p a r a t o c o a t i v o " n o sentido anteriormenté? definido, isto é, de u m a o u várias
pessoas disponíveis particularmente p a r a i m p o r a o r d e m p o r meios coativos especial-
mente previstos p a r a esse f i m ( c o a ç ã o j u r í d i c a ) O s meios coativos p o d e m ser de natureza
psíquica o u física, atuar direta o u indiretamente, dirigir-se, dependendo d o caso, contra
os participantes de u m a comunidade consensual o u de u m a associação, g r u p o social
o u instituição, p a r a a q u a l a o r d e m tem validade ( e m p í r i c a ) o u t a m b é m para o exterior.
S ã o as " o r d e n s j u r í d i c a s " da associação e m questão. Mas n e m todas as ordens de vigência
consensual p a r a u m a r e l a ç ã o comunitária s ã o — c o m o v e r e m o s adiante — " o r d e n s
j u r í d i c a s " . T a m p o u c o limitam-se à c o a ç ã o jurídica todas as a ç õ e s " d e ó r g ã o " das pessoas
que constituem o aparato coativo de u m a r e l a ç ã o c o m u n i t á r i a , mas nesta categoria
e n t r a m apenas, p a r a n ó s , aquelas cujo sentido vigente consiste e m i m p o r a observância
de u m a o r d e m como tal, isto é, de m o d o puramente f o r m a l , porque sua vigência é
considerada c o m p r o m i s s i v a e n ã o — segundo o sentido vigente — p o r motivos de
c o n v e n i ê n c i a o u outras c o n d i ç õ e s materiais. É c l a r o que a i m p o s i ç ã o de u m a o r d e m
de fato, n o caso i n d i v i d u a l , pode estar condicionada p o r u m a v a r i e d a d e de motivos:
mas s ó a c h a m a m o s " d i r e i t o " garantido q u a n d o existe a probabilidade de, n u m caso
dado, aplicar-se a c o a ç ã o " p o r causa da o r d e m m e s m a " — " c o a ç ã o j u r í d i c a " .

N e m todo " d i r e i t o " ( o b j e t i v o ) é — c o m o v e r e m o s e m várias o c a s i õ e s — direito


" g a r a n t i d o " . T a m b é m falamos de direito — "indiretamente g a r a n t i d o " o u " n ã o garan-

1Primeira parte, capitulo 1 § 5.


2 Primeira parte, capítulo I § 6. Veja também Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, 3 ed., p. 445,
nota 1, 444 e seg.
ECONOMIA E SOCIEDADE 211

t i d o " — q u a n d o o sentido da v i g ê n c i a de u m a n o r m a consiste e m que o m o d o de


orientar p o r ela as a ç õ e s tem ao m e n o s " c o n s e q ü ê n c i a s j u r í d i c a s " quaisquer. Isto é:
quando há v i g ê n c i a de outras n o r m a s quaisquer que v i n c u l a m à " o b s e r v â n c i a " o u " i n f r a -
ç ã o " das p r i m e i r a s determinadas probabilidades de u m a a ç ã o consensual, garantidas,
p o r sua v e z , p o r c o a ç ã o jurídica. No m o m e n t o certo, teremos de ilustrar mediante
exemplos este caso que se aplica a u m a área muito a m p l a da v i d a jurídica, mas, p a r a
simplificar, q u a n d o f a l a r m o s d e ' ' direito'', pensaremos a potiori e m n o r m a s diretamente
garantidas p o r c o a ç ã o jurídica. A l é m disso, n e m todo direito ( o b j e t i v o ) garantido está
garantido p o r " f o r ç a " (perspectiva de c o a ç ã o física). N e m essa f o r m a n e m a pertencente
à técnica processual d e nosso tempo, de fazer v a l e r direitos p r i v a d o s — ' ' q u e i x a " perante
u m " t r i b u n a l " c o m a c o n s e q ü e n t e e x e c u ç ã o pelo uso da f o r ç a — constitui p a r a n ó s
a caraterística sociologicamente decisiva do direito, sequer do " d i r e i t o g a r a n t i d o " . A
área do chamado direito " p ú b l i c o " m o d e r n o , isto é, das n o r m a s p a r a as a ç õ e s de ó r g ã o s
e as a ç õ e s c o m r e f e r ê n c i a institucional dentro da instituição E s t a d o , conhece h o j e e m
dia numerosos direitos subjetivos e n o r m a s jurídicas objetivas, contra cuja i n f r a ç ã o
s ó é possível m o b i l i z a r u m aparato coativo mediante " q u e i x a s " o u protestos de círculos
de pessoas especialmente autorizadas, n ã o r a r o u m aparato inteiramente destituído
de meios de c o a ç ã o física eventual. A q u e s t ã o de existir o u n ã o nesse caso u m " d i r e i t o "
garantido é decidida, p a r a a Sociologia, levando-se e m conta se, p a r a a e x e c u ç ã o da
c o a ç ã o jurídica s e m o uso da f o r ç a , o aparato coativo se fundamenta n u m a ordem
e efetivamente possui tal peso que p e r m i t a subsistir a probabilidade, e m g r a u pratica-
mente relevante, de a n o r m a vigente ser observada e m v i r t u d e do r e c u r s o a essa f o r m a
de c o a ç ã o . H o j e e m d i a , a c o a ç ã o jurídica pelo uso da f o r ç a é m o n o p ó l i o da instituição
Estado. C o m base n e l a , todas as demais comunidades que a p r a t i c a m s ã o consideradas
h e t e r ô n o m a s e f r e q ü e n t e m e n t e t a m b é m heterocéfalas. Mas esta é u m a peculiaridade
de determinadas fases d e desenvolvimento. Falamos de direito " e s t a t a l " , isto é, de
direito garantido pelo Estado, q u a n d o e n a m e d i d a e m que a garantia deste — a c o a ç ã o
jurídica — é e x e r c i d a pelos m e i o s coativos específicos, portanto, n o caso n o r m a l , direta-
mente físicos da comunidade política. No sentido de direito " e s t a t a l " , a existência e m p í -
rica de u m a n o r m a jurídica significa, portanto, que, n o caso de determinados aconteci-
mentos, se pode contar, e m v i r t u d e de u m consenso, c o m a probabilidade de u m a
a ç ã o dos ó r g ã o s da associação política, a qual, pelo simples fato de eventualmente
poder realizar-se, é capaz de conseguir a o bs e rvâ n c i a das ordens dedutíveis daquela
n o r m a jurídica, de acordo c o m o m o d o habitual d e sua interpretação, o u — q u a n d o
isso se t o r n o u impossível — o " d e s a g r a v o " e a " i n d e n i z a ç ã o " . A q u e l e acontecimento
ao qual se enlaça essa c o n s e q ü ê n c i a — a c o a ç ã o jurídica estatal — pode consistir e m
determinado comportamento h u m a n o ( c o n c l u s ã o o u v i o l a ç ã o de u m contrato, delito).
Mas isto constitui apenas u m caso especial. Pois t a m b é m n o caso das á g u a s d e u m
r i o ultrapassarem determinado nível, h á a perspectiva, e m v i r t u d e de n o r m a s jurídicas
empiricamente vigentes, da a p l i c a ç ã o dos m e i o s coativos específicos do p o d e r político,
contra pessoas e objetos.

O conceito de v i g ê n c i a de u m a " n o r m a j u r í d i c a " tão i m p l i c a , de m o d o a l g u m ,


neste sentido n o r m a l , que aqueles que se submetem à o r d e m o f a ç a m p r i n ci p a l m e n t e ,
o u e m g e r a l , e m r a z ã o de existir u m aparato coativo ( n o sentido e x p o s t o ) N ã o se
trata disso —*como logo|será explicado. A o contrário, os motivos da s u b m i s s ã o à n o r m a
jurídica p o d e m ser de natureza mais diversa. A m a i o r i a deles tem — dependendo d o
caso — caráter m a i s utilitário o u m a i s ético o u subjetivamente convencional, pelo temor
à d e s a p r o v a ç ã o d o m u n d o circundante. A natureza predominante desses motivos, e m
cada caso, t e m m u i t a importância p a r a o m o d o e as possibilidades d e v i g ê n c i a d o p r ó p r i o
direito. Mas, p a r a s e u conceito s o c i o l ó g i c o f o r m a l , c o m o q u e r e m o s e m p r e g á - l o , esses
212 MAX W E B E R

fatos psicológicos s ã o irrelevantes; a ú n i c a coisa que i m p o r t a , ao contrário — no caso


do direito garantido — , é que existe efetivamente u m a probabilidade suficientemente
forte de i n t e r v e n ç ã o de u m c í r c u l o de pessoas especialmente p r e p a r a d o p a r a isto, m e s m o
nos casos e m que se trata somente de i n f r a ç ã o das n o r m a s c o m o tais, isto é, quando
o motivo da i n t e r v e n ç ã o é p u r a m e n t e f o r m a l .
A " v i g ê n c i a " e m p í r i c a de u m a o r d e m c o m o " n o r m a j u r í d i c a " afeta os interesses
dos indivíduos e m vários sentidos. E s p e c i a l m e n t e p o d e m resultar d e l a , p a r a esses indiví-
duos, oportunidades calculáveis de manter a sua disposição bens e c o n ô m i c o s o u de
a d q u i r i r n o futuro, sob determinadas c o n d i ç õ e s , a disposição sobre eles. D a r o r i g e m
a semelhantes oportunidades o u garanti-las é, naturalmente, e m caso d e direito estatuí-
do, a finalidade que aqueles que pactuam o u i m p õ e m u m a n o r m a jurídica v i n c u l a m
e m r e g r a a essa n o r m a . Mas o m o d o de atribuição a a l g u é m dessa possibilidade pode
ter duplo caráter. Trata-se o u de u m a simples " a ç ã o r e f l e x a " da v i g ê n c i a e m p í r i c a
da n o r m a — o sentido consensualmente vigente desta n ã o se destina a garantir ao
indivíduo as oportunidades que de fato l h e c a b e m — , o u , ao contrário, de u m direito
" s u b j e t i v o " — o sentido consensualmente vigente da n o r m a está voltado precisamente
a da r ao i n d i v í d u o semelhante garantia. O fato d e a l g u é m , e m v i r t u d e de u m a o r d e m
jurídica estatal, ter u m " d i r e i t o " ( s u b j e t i v o ) significa, portanto, n o caso n o r m a l que
tomamos aqui p o r base, p a r a a c o n s i d e r a ç ã o s o c i o l ó g i c a , que essa pessoa t e m a possibi-
lidade — efetivamente garantida pelo sentido consensualmente vigente de u m a n o r m a
jurídica — de conseguir, p a r a r e a l i z a r determinados interesses (ideais o u materiais),
a ajuda de u m " a p a r a t o c o a t i v o " apto a prestar este serviço. A ajuda consiste, pelo
menos n o caso n o r m a l , e m que determinadas pessoas estejam prontas p a r a prestá-la
quando a l g u é m a solicite, nas f o r m a s habituais, invocando u m a " n o r m a j u r í d i c a " que
lhe garante " a p ò i o " . E isso somente devido à q u e l a " v i g ê n c i a " , s e m c o n s i d e r a ç ã o de
h a v e r motivos de p u r a c o n v e n i ê n c i a a i n d i c a r e m - n o , n e m p o r g r a ç a n e m p o r arbítrio.
E x i s t e vigência jurídica q u a n d o o apoio j u r í d i c o , neste sentido da p a l a v r a , funciona
e m m e d i d a relevante, m e s m o s e m quaisquer meios coativos físicos o u , de outra f o r m a ,
drásticos. O u q u a n d o (direito n ã o - g a r a n t i d o ) a inobservância dela (por e x e m p l o , v i o l a r
os direitos e l e i t o r a i s ) e m v i r t u d e de u m a n o r m a e m p i r i c a m e n t e vigente, tem conse-
qüências jurídicas (por e x e m p l o , a n u l a ç ã o da e l e i ç ã o ) p a r a cuja e x e c u ç ã o há u m a instân-
cia correspondente c o m c o a ç ã o jurídica. Para s i m p l i f i c a r , d e i x a r e m o s por enquanto
de lado as possibilidades abertas n o caso das " a ç õ e s r e f l e x a s " . U m direito subjetivo,
n o sentido " e s t a t a l " da p a l a v r a , encontra-se sob a garantia dos meios de poder da
autoridade política. Q u a n d o h á a perspectiva de outros meios coativos, aplicados por
outra autoridade que n ã o a política — p o r e x e m p l o , os de u m a autoridade hierocrática
— constituindo estes a garantia de u m " d i r e i t o " , falamos de direito " e x t r a - e s t a t a l " ,
cujas diferentes categorias n ã o cabe e x a m i n a r aqui. S ó q u e r e m o s l e m b r a r que existem
t a m b é m meios coativos n ã o - v i o l e n t o s que p o d e m atuar c o m a m e s m a f o r ç a o u , e m
c e n a s circunstâncias, até c o m f o r ç a m a i o r que os outros. A a m e a ç a d e e x c l u s ã o de
u m a associação, de u m boicote o u de medidas semelhantes, b e m c o m o a promessa
de vantagens o u desvantagens magicamente condicionadas, neste m u n d o , o u d e r e m u -
n e r a ç õ e s o u castigos, n o a l é m , e m caso de determinado comportamento, traz f r e q ü e n -
temente — e, p a r a vastas áreas, regularmente — efeitos m u i t o mais seguros, sob deter-
minadas c o n d i ç õ e s culturais, d o que o aparato coativo p o l í t i c o , n e m s e m p r e calculável
e m suas f u n ç õ e s . C o m muita f r e q ü ê n c i a , a c o a ç ã o jurídica pelo uso da f o r ç a , mediante
os aparatos coativos da comunidade política, saiu p e r d e n d o diante dos meios coativos
de outras autoridades, p o r e x e m p l o religiosas, e e m g e r a l a q u e s t ã o de s e u alcance
efetivo s ó é decidida e m cada caso i n d i v i d u a l . Mesmo a s s i m , c o n t i n u a m existindo, e m
sua realidade s o c i o l ó g i c a , c o m o " c o a ç ã o j u r í d i c a " enquanto seus meios de poder atuam
ECONOMIA E SOCIEDADE 213

de m o d o socialmente relevante. A Sociologia ignora a o p i n i ã o de que s ó " e x i s t e " u m


" E s t a d o " o n d e e q u a n d o os m e i o s coativos da comunidade política s ã o efetivamente
os mais fortes e m c o m p a r a ç ã o c o m os de todas as demais. O " d i r e i t o c a n ó n i c o " é
" d i r e i t o " t a m b é m a l i o n d e e n t r a e m conflito c o m o direito " e s t a t a l " , o que o c o r r e u
repetidas vezes e s e m p r e o c o r r e r á de n o v o , inevitavelmente, p o r e x e m p l o , n o caso
da I g r e j a católica, m a s t a m b é m de outras, e m r e l a ç ã o ao Estado m o d e r n o . A zadruga
eslava, n a Áustria, n ã o apenas carecia da garantia jurídica estatal, mas suas ordens
estavam e m parte até e m c o n t r a d i ç ã o c o m o direito oficial. U m a v e z que a a ç ã o consen-
sual que constituía as o r d e n s possuía p a r a elas u m aparato coativo p r ó p r i o , estas r e p r e -
sentavam m e s m o assim o " d i r e i t o " , o q u a l s ó n o caso de a p e l a ç ã o ao aparato coativo
estatal n ã o f o i reconhecido p o r este m a s a f r o u x a d o . Especialmente f o r a d o c í r c u l o
jurídico e u r o p e u continental, a o c o n t r á r i o , n ã o é r a r o que o direito estatal m o d e r n o
trate expressamente c o m o " v i g e n t e s " t a m b é m as n o r m a s de outras associações e e x a -
mine decisões concretas destas. A s s i m , p o r e x e m p l o , o direito a m e r i c a n o protege, d e
diversas m a n e i r a s , o label dos sindicatos, regula as c o n d i ç õ e s sob as quais a candidatura
de u m m e m b r o de partido às e l e i ç õ e s é considerada " v á l i d a " ; a s s i m , o j u i z inglês
interfere, quando c h a m a d o , n a jurisdição dos clubes, o j u i z a l e m ã o até e x a m i n a , e m
processos p o r injúria, a c o n f o r m i d a d e c o m as c o n v e n ç õ e s de u m a recusa de d u e l o ,
apesar de este ser p r o i b i d o p o r lei etc. N ã o entramos, a q u i , na casuística da questão
de até que ponto aquelas ordens se t o r n a m , deste m o d o , " d i r e i t o estatal". Por todos
esses motivos e, a l é m disso, pela terminologia a q u i estabelecida, é c l a r o que nos recusa-
mos a falar somente de " d i r e i t o " quando, e m v i r t u d e da garantia da autoridade política,
há a perspectiva d e c o a ç ã o jurídica. N ã o temos motivos p a r a f a z ê - l o . Por nossa parte,
falaremos de " o r d e m j u r í d i c a " s e m p r e que exista a perspectiva de a p l i c a ç ã o de quais-
quer meios coativos, físicos o u psíquicos, realizada p o r u m aparato coativo, isto é,
por u m a o u várias pessoas, disponíveis p a r a este f i m , q u a n d o se apresente u m a situação
que o e x i j a , o u s e j a , s e m p r e que exista u m a f o r m a específica de associação p a r a fins
de " c o a ç ã o j u r í d i c a " . A posse de semelhante aparato p a r a e x e r c e r c o a ç ã o física n ã o
f o i desde s e m p r e m o n o p ó l i o da comunidade política. Para a c o a ç ã o física — c o m o
mostra a importância d o direito garantido somente pela I g r e j a — n e m h o j e existe
tal m o n o p ó l i o . A l é m disso, já dissemos que a garantia direta d o direito objetivo e de
direitos subjetivos mediante u m aparato coativo constitui apenas u m caso da existência
do " d i r e i t o " e de " d i r e i t o s " . E m e s m o dentro dessa área limitada, o aparato coativo
pode s e r de natureza muito diversa. No caso-limite, pode consistir n a probabilidade
consensualmente vigente de a p o i o f o r ç a d o p o r parte d e todos os participantes de u m a
r e l a ç ã o c o m u n i t á r i a , e m caso de a o r d e m vigente estar a m e a ç a d a . Mas aí, s ó é possível
falar de " a p a r a t o c o a t i v o " q u a n d o a f o r m a de obrigatoriedade dessa tutela f o r ç a d a
está fixamente regulada. O aparato coativo e a f o r m a da c o a ç ã o , e m caso de direitos
garantidos pelos ó r g ã o s da instituição política, p o d e m t a m b é m ser fortalecidos j pelos
meios coativos de determinadas associações d e interessados: u m boicote organizado
de crédito o u de l o c a ç ã o (listas n e g r a s ) contra devedores morosos t e m , muitas v e z e s ,
efeitos mais fortes d o que a probabilidade de u m a demanda judicial. E , naturalmente,
essa c o a ç ã o pode estender-se t a m b é m a pretensões n ã o garantidas p e l o Estado: m e s m o
a s s i m , estas s ã o direitos subjetivos, s ó que se baseiam e m outros poderes. N ã o r a r a -
mente, o direito da instituição Estado bloqueia o funcionamento dos meios coativos
de outras associações: assim, a libei act inglês impossibilita as listas negras pela e x c l u s ã o
da d e m o n s t r a ç ã o da verdade. Mas n e m s e m p r e c o m êxito. A s associações e g r u p o s
baseados n o ' ' c ó d i g o de h o n r a " d o duelo, c o m o m e i o d e r e s o l v e r conflitos, p o r natureza
quase s e m p r e d e caráter estamental, s ã o , e m g e r a l , c o m seus meios c o a t i v o s — s u b s t a n -
cialmente, tribunais de h o n r a e boicote — os mais fortes e f o r ç a m muitas v e z e s c o m
214 MAX WEBER

pressão específica ( c o m o " d i v i d a s de h o n r a " ) precisamente o c u m p r i m e n t o de obriga-


ções n ã o protegidas o u até estigmatizadas p e l o Estado, p o r é m indispensáveis para os
fins de sua comunidade (dívidas de jogo, o b r i g a ç ã o ao duelo). E m parte, a instituição
Estado cedeu a eles. S e m d ú v i d a , é incorreta, do ponto de vista j u r í d i c o , a exigência
de p u n i r u m delito muito e s p e c í f i c o , c o m o o duelo, simplesmente c o m o "tentativa
de h o m i c í d i o " ou " l e s ã o c o r p o r a l " , pois n ã o apresenta as características destes, mas
é u m fato que — apesar do c ó d i g o penal — , p a r a o oficial a l e m ã o ainda h o j e 1 , a
disposição p a r a o duelo é u m d e v e r jurídico de caráter estatal, porque oldescumprimento
acarreta c o n s e q ü ê n c i a s jurídicas estatais. A situação é diferente f o r a do círculo dos
oficiais. O m e i o típico de c o a ç ã o jurídica de comunidades " p r i v a d a s " contra membros
renitentes é a e x c l u s ã o da associação e de suas vantagens materiais e ideais. Nas associa-
ções profissionais de m é d i c o s e advogados, b e m c o m o e m clubes sociais e políticos,
é a ultima ratio. E m muitos casos, a associação política u s u r p o u o controle desses meios
coativos. A s s i m , p o r exemplo, foi negado aos m é d i c o s e advogados a l e m ã e s esse meio
mais e x t r e m o ; na Inglaterra, f o i atribuída aos tribunais estatais a q u e s t ã o da e x c l u s ã o
de clubes; nos Estados Unidos, até a de partidos políticos, a l é m do e x a m e da legitimidade
do uso do labei, quando solicitado. Essa luta entre os meios coativos de associações
diversas é tão antiga quanto o p r ó p r i o direito. No passado, muitas vezes n ã o terminou
c o m a vitória dos meios coativos da associação política e, ainda hoje, n e m s e m p r e
isso ocorre. A s s i m , n ã o h á , hoje e m d i a 1 , a possibilidade de impedir a c o n c o r r ê n c i a
por p r e ç o s mais baixos diante de u m infrator de cartel. D o m e s m o m o d o , s ã o atualmente
intangíveis as listas negras dos corretores de bolsa contra aqueles que r e c o r r e m aos
tribunais, enquanto que, na Idade M é d i a , as correspondentes disposições dos estatutos
dos comerciantes contra o apelo aos tribunais eclesiásticos e r a m certamente nulas do
ponto de vista do direito c a n ó n i c o , mas n e m p o r isso d e i x a r a m de existir. E o direito
estatal t a m b é m tem de tolerar hoje, e m grande parte, o poder coativo das associações
quando este se dirige n ã o apenas contra os m e m b r o s , mas t a m b é m e precisamente
contra os n ã o - m e m b r o s , tentando submetê-los a suas n o r m a s (cartéis n ã o apenas contra
os m e m b r o s , mas t a m b é m contra aqueles cujo ingresso pretendem forçar; associações
de credores contra devedores e inquilinos).
U m caso-limite do conceito s o c i o l ó g i c o de " d i r e i t o " coativamente garantido é
o que se apresenta quando seus garantes n ã o possuem — c o m o , e m r e g r a , nas c o m u n i -
dades políticas modernas (e t a m b é m nas religiosas, que aplicam seu " d i r e i t o " p r ó p r i o )
— o caráter de '''juiz" o u de outro " ó r g ã o " , isto é, de u m " t e r c e i r o " , e m princípio
não vinculado ao pretendente do direito subjetivo p o r relações " p e s s o a i s " , ou seja
" i m p a r c i a l " e pessoalmente " d e s i n t e r e s s a d o " . E , ao c o n t r á r i o , somente os companhei-
ros do pretendente, a ele ligados por determinadas relações pessoais íntimas — por
e x e m p l o , os do " c l ã " — , lhe p õ e m à disposição os meios coativos, quando, portanto
— c o m o a " g u e r r a " , no direito internacional m o d e r n o — a " v i n g a n ç a " o u a " c o n t e n d a "
do interessado e de seus c o n s a n g ü í n e o s é a f o r m a única o u n o r m a l de fazer valer
coativamente direitos subjetivos. Nesse caso, o " d i r e i t o " subjetivo do o u dos indivíduos
só existe, p a r a a c o n s i d e r a ç ã o sociológica, e m v i r t u d e da possibilidade de os compa-
nheiros de clã c u m p r i r e m seu dever de apoio na contenda o u de vendeta (garantido
originalmente, e m p r i m e i r o lugar, pelo temor da ira de autoridades sobrenaturais)
e, a l é m disso, p o s s u í r e m poder suficiente p a r a insistir n o c u m p r i m e n t o de sua pretensão,
ainda que n ã o necessariamente c o m vitória definitiva. Nessa situação e m que as " r e l a -
ç õ e s " , isto é, as ações efetivas o u potenciais de pessoas concretas ou concretamente
individualizáveis segundo determinadas características, constituem o c o n t e ú d o de direi-

1 Escrito antes da revolução de 1918. (Nota do organ.zaò


ECONOMIA E SOCIEDADE 215

tos subjetivos, consideramos existir u m a " r e l a ç ã o j u r í d i c a " entre os envolvidos. O s


direitos subjetivos que ela c o m p r e e n d e m u d a m de acordo c o m as a ç õ e s efetivas realiza-
das. Nesse sentido, u m " E s t a d o " concreto pode t a m b é m ser definido c o m o " r e l a ç ã o
j u r í d i c a " , m e s m o considerando-se ( n o caso-limite t e ó r i c o ) o senhor a única pessoa c o m
direitos subjetivos — de m a n d o — , sendo que as possibilidades de todos os demais
indivíduos e x i s t e m apenas c o m o reflexos das " r e g u l a m e n t a ç õ e s " dele.

S 2. O r d e m jurídica, convenção e costume

Importância do habitual para a constituição do direito, p. 215. — Inovação por meio de "inspira-
ção" e "intuição", p. 216. —Transições fluidas entre convenção, costume e direito, p. 219.

U m a área à qual a o r d e m jurídica está ligada p o r elos gradativos, mas ininterruptos,


é a da "convenção" e t a m b é m — o que q u e r e m o s d i f e r e n c i a r conceitualmente — a
do "costume". E n t e n d e m o s p o r " c o s t u m e " o caso de u m comportamento tipicamente
regular que é mantido dentro dos limites tradicionais unicamente p o r seu caráter de
" h a b i t u a l " e pela " i m i t a ç ã o " irrefletida — u m a " a ç ã o de m a s s a s " , portanto, cuja conti-
n u a ç ã o n i n g u é m exige do i n d i v í d u o , e m sentido algum. Por " c o n v e n ç ã o " , ao contrário,
entendemos o caso e m que há u m a influência e m d i r e ç ã o a determinado comporta-
mento, mas n ã o p o r meio de c o a ç ã o física o u psíquica alguma e, pelo menos e m condi-
ções n o r m a i s e imediatamente, p o r n e n h u m a outra r e a ç ã o s e n ã o a m e r a a p r o v a ç ã o
ou r e p r o v a ç ã o p o r u m c í r c u l o de pessoas que constitui o " a m b i e n t e " e s p e c í f i c o do
agente. C a b e fazer rigorosamente a distinção entre a " c o n v e n ç ã o " e o caso do " d i r e i t o
c o n s u e t u d i n á r i o " . N ã o queremos criticar a q u i esse conceito pouco útil. Segundo a t e r m i -
nologia u s u a l , a vigência do direito c o n s u e t u d i n á r i o significa precisamente a possibi-
lidade de u m aparato coativo intervir a f a v o r da realização de u m a n o r m a vigente
e m v i r t u d e n ã o de estatutos mas de consenso. No caso da c o n v e n ç ã o , ao contrário,
falta o "aparato c o a t i v o " : o c í r c u l o estritamente delimitado (pelo menos, relativamente)
de pessoas que está s e m p r e pronto p a r a a tarefa especial da c o a ç ã o jurídica (mesmo
que esta se sirva de meios apenas " p s í q u i c o s " ) . J á a existência do m e r o " c o s t u m e " ,
livre de c o n v e n ç õ e s , pode ter importância e c o n ô m i c a de grande alcance. Particular-
mente a situação das necessidades e c o n ô m i c a s , a base de toda " e c o n o m i a " , é determi-
nada e m sentido mais a m p l o pelo m e r o " c o s t u m e " , do qual o i n d i v í d u o , pelo menos
e m certa e x t e n s ã o , poderia l i v r a r - s e s e m encontrar d e s a p r o v a ç ã o alguma, mas dificil-
mente o faz de fato, e cuja alterações se efetuam, e m g e r a l , apenas lentamente, p o r
meio da imitação de outro " c o s t u m e " qualquer de outro círculo de pessoas. Ainda
v e r e m o s 1 que o fato de se p a r t i l h a r e m m e r o s " c o s t u m e s " pode ser importante p a r a
a constituição de comunidades sociais c o m atividades de troca e de connubium, e tam-
b é m e x e r c e certa influência, dificilmente d e t e r m i n á v e l e m seu alcance, sobre o nasci-
mento de sentimentos de comunidade " é t n i c a " , atuando assim e m d i r e ç ã o à f o r m a ç ã o
de comunidades. Mas, sobretudo, a o bs e rvâ n c i a daquilo que de fato se tornou "costu-
m e i r o " , c o m o t a l , é u m elemento tão forte de toda a ç ã o e, portanto, t a m b é m de toda
a ç ã o de comunidade que a c o a ç ã o jurídica, q u a n d o faz de u m " c o s t u m e " (por e x e m p l o ,
referindo-se ao " u s u a l " ) u m " d e v e r j u r í d i c o " , muitas vezes quase nada acrescenta a
sua eficácia e, quando contra ele se dirige, f r e q ü e n t e m e n t e fracassa na tentativa de
influenciar as ações efetivas. E a existência da c o n v e n ç ã o — u m a v e z que o i n d i v í d u o
depende, e m i n ú m e r a s situações de sua v i d a , da boa vontade espontânea do m u n d o
circundante, n ã o garantida por autoridade alguma, n e m deste n e m d o outro m u n d o

1 Ver adiante capítulo IV § 2.


216 MAX WEBER

—pode freqüentemente determinar muito mais seu comportamento do que a existência


de um aparato de coação jurídica.
É claro que a transição entre o mero "costume" e a "convenção" é totalmente
fluida. Quanto mais se recua na história, tanto mais a forma da ação de comunidade
é determinada exclusivamente pela adaptação ao "habitual", como tal, e os desvios
parecem ter efeito extremamente inquietante e muito semelhante, sobre a psique do
homem médio, ao de perturbações de funções orgânicas, constituindo isto [ao que
parece] a garantia [da conservação do habitual]. O progresso disso até o caráter "consen-
sual" da ação da comunidade, sem dúvida sentido de início apenas vaga e inconscien-
temente — isto é, até a concepção de uma "obrigatoriedade" de determinadas formas
habituais de ação —, está hoje ainda pouco definido pelos trabalhos da Etnografia,
no que se refere ao conteúdo e à extensão da área que abrange, e por isso não nos
interessa aqui. Seria uma pura questão de terminologia e conveniência determinar o
estádio desse processo em que se supõe reconhecer a concepção subjetiva de um "dever
jurídico". Objetivamente, houve desde sempre a possibilidade de ocorrer de fato uma
reação violenta contra determinadas formas de ação, tanto entre os animais quanto
entre os homens, porém sem que se possa afirmar, nem no mínimo, que nestes casos
exista algo parecido com uma "vigência consensual" ou, em geral, um "sentido subje-
tivo" claramente concebido da ação em questão. Rudimentos de uma concepção de
"dever" determinam o comportamento de alguns animais domésticos talvez em maior
medida do que o do "homem primitivo" — admitimos este conceito precário como
inequívoco neste caso especial. Mas não sabemos o que se passou na psique do "homem
primitivo", e o insistente palavrório sobre a pretensa originalidade absoluta ou até
sobre a "aprioridade" do "direito" ou da convenção não serve de nada para a Sociologia
empírica. O comportamento do "homem primitivo", particularmente perante seus
iguais, não mostra "regularidades" efetivas pelo fato de uma "regra" ou "ordem"
ser considerada "obrigatória", mas, ao contrário, às regularidades organicamente con-
dicionadas, que temos de reconhecer como realidade psicofísica, vincula-se a concepção
de "regras vinculantes". O fato de que a "adaptação" psíquica àquelas regularidades
implica "inibições" sensíveis diante de inovações — experiência que todos têm, ainda
hoje, na vida cotidiana — constitui, conforme supomos, um apoio muito forte para
a crença naquela "obrigatoriedade".
Perguntamos, então, como nascem, neste mundo da adaptação às "regularida-
des", representando estas o "vigente", as inovações? Sem dúvida, elas vêm de fora:
pela mudança nas condições externas de vida. Mas estas não dão a menor garantia
de que a resposta não seja uma decadência da vida em vez da inovação; e sobretudo
não constituem de modo algum uma condição indispensável; precisamente em muitos
casos de inovações de grande alcance não constituem nem uma condição secundária.
Segundo todas as experiências da Etnologia, a origem mais importante da inovação
parece estar na influência de indivíduos capazes de determinadas vivências "anormais"
(não raramente, embora nem sempre ou regularmente, consideradas "patológicas"
do ponto de vista da terapia atual) e, através destas, de ascendência sobre outras pessoas.
Não nos referimos aqui a como nascem as vivências que, em virtude de sua "anorma-
lidade", parecem "novas", mas a seus efeitos. Essas influências que superam a "inércia"
do habitual podem realizar-se psicologicamente por caminhos muito diversos. É um
mérito de Hellpach ter destacado, com muita clareza terminológica, a antinomia —
apesar de todas as formas intermediárias — de duas formas. A primeira é o despertar
repentino, na pessoa influenciada, da idéia de que determinada ação "deve" ser realiza-
da, e por meios drásticos: "inspiração". A outra consiste em que os influenciados convi-
vem a ação psíquica do influente: "intuição". A natureza das ações nascidas dessa in-
ECONOMIA E SOCIEDADE 217

fluência pode ser bastante d i v e r s a , e m cada caso i n d i v i d u a l . No entanto, muitas vezes


surge u m a " a ç ã o de c o m u n i d a d e " , de massas, que se r e f e r e ao influenciador e a sua
vivência, a ç ã o a p a r t i r da qual p o d e m desenvolver-se " c o n s e n s o s " de c o n t e ú d o corres-
pondente. Se " a d a p t a d o s " às c o n d i ç õ e s de v i d a externas, esses consensos p e r d u r a m .
Os efeitos da " i n t u i ç ã o " e, particularmente, da " i n s p i r a ç ã o " — na m a i o r i a das vezes
resumida sob o n o m e a m b í g u o de " s u g e s t ã o " — pertencem às fontes principais da
imposição de i n o v a ç õ e s efetivas, cuja " p r á t i c a " regular logo a p ó i a o sentimento de
" o b r i g a t o r i e d a d e " d o q u a l — eventualmente — v ê m acompanhadas. Mas o p r ó p r i o
"sentimento de obrigatoriedade" — enquanto existam pelo menos rudimentos de seme-
lhante c o n c e p ç ã o visada — pode t a m b é m aparecer, s e m d ú v i d a , c o m o fator o r i g i n á r i o
e primário das i n o v a ç õ e s , particularmente c o m o componente p s i c o l ó g i c o da " i n s p i r a -
ç ã o " . Considerar que a " i m i t a ç ã o " de u m comportamento n o v o é o processo p r i m á r i o
e fundamental e m sua p r o p a g a ç ã o leva à c o n f u s ã o . Certamente, essa imitação se reveste
de importância extraordinária, mas, e m r e g r a , é secundária e s e m p r e constitui u m
caso especial. N ã o se trata de u m a " i m i t a ç ã o " d o h o m e m quando o c ã o — s e u compa-
n h e i r o mais antigo — p o r ele se d e i x a " i n s p i r a r " e m seu comportamento. Mas é precisa-
mente esse o caráter que, e m g r a n d e n ú m e r o dos casos, assume a r e l a ç ã o entre influen-
ciador e influenciado. H á outros casos e m que parece a p r o x i m a r - s e mais do tipo da
" i n t u i ç ã o " e, e m outros a i n d a , da " i m i t a ç ã o " — r a c i o n a l referente a fins o u condicio-
nada p o r efeitos p s i c o l ó g i c o s " d e m a s s a s " . D e todo m o d o , a i n o v a ç ã o nascente traz
e m si a m a i o r probabilidade de c o n d u z i r a " c o n s e n s o " e, p o r f i m , ao " d i r e i t o " q u a n d o
sua o r i g e m está n u m a " i n s p i r a ç ã o " eficaz o u " i n t u i ç ã o " intensa. Nesse caso, c r i a " c o n -
v e n ç ã o " o u , e m certas circunstâncias, u m a a ç ã o coativa, consensual e imediata contra
os renitentes. Segundo toda a e x p e r i ê n c i a histórica, a partir da " c o n v e n ç ã o " , da apro-
v a ç ã o o u r e p r o v a ç ã o d o m u n d o circundante, desenvolvem-se s e m p r e , enquanto é forte
a crença religiosa, a esperança e a idéia de que t a m b é m os poderes sobrenaturais r e c o m -
p e n s a r ã o o u p u n i r ã o aquele comportamento a p r o v a d o o u r e p r o v a d o pelo m u n d o cir-
cundante. O u , t a m b é m , — e m casos adequados — a s u p o s i ç ã o de que n ã o apenas
o diretamente atingido mas t a m b é m o m u n d o circundante poderia ter de s o f r e r c o m
a v i n g a n ç a daqueles poderes sobrenaturais, sendo necessário, portanto, reagir — o u
cada u m individualmente o u mediante o aparato coativo da associação. O u — c o m o
c o n s e q ü ê n c i a da observância s e m p r e repetida d e determinado m o d o de agir — a idéia,
dos garantes especiais da o r d e m , de que se trata n ã o apenas de costume o u c o n v e n ç ã o ,
mas de u m d e v e r j u r í d i c o cujo c u m p r i m e n t o tem de ser f o r ç a d o : u m a n o r m a c o m
semelhante vigência prática chama-se " d i r e i t o c o n s u e t u d i n á r i o " . O u , p o r f i m , a r e i v i n -
d i c a ç ã o racionalmente ponderada, p o r parte de interessados, de que o d e v e r c o n v e n -
cional o u c o n s u e t u d i n á r i o , p a r a p r o t e g ê - l o s de p e r t u r b a ç õ e s , d e v e s e r colocado expres-
samente sob a garantia de u m aparato coativo, transformando-se, portanto, e m direito
estatuído. Acontece, sobretudo, segundo a e x p e r i ê n c i a , n o campo da divisão interna
de poderes entre os " ó r g ã o s " de u m a associação institucionalizada c o m determinado
f i m , que o c o n t e ú d o de regras de comportamento somente garantidas pela c o n v e n ç ã o
passa constantemente à esfera d o comportamento exigido e garantido pelo direito:
o desenvolvimento da " c o n s t i t u i ç ã o " inglesa é u m e x e m p l o p r i n c i p a l desse f e n ô m e n o .
Finalmente, toda rebeldia contra a c o n v e n ç ã o pode conduzir a u m a situação e m que
o m u n d o circundante, e m r e l a ç ã o ao rebelde, faz uso — importuno p a r a este — de
seus direitos subjetivos, coativamente garantidos; assim, p o r e x e m p l o , o dono da casa
faz uso de s e u direito d o m é s t i c o contra q u e m infringe as regras puramente c o n v e n -
cionais de u m a r e u n i ã o social, assim c o m o u m general utiliza o direito d e e x p u l s ã o
do s e r v i ç o contra os infratores do c ó d i g o de h o n r a . Nos casos citados, a regra c o n v e n -
cional é de fato apoiada indiretamente p o r meios coativos. A d i f e r e n ç a e m r e l a ç ã o
218 MAX WEBER

ao "direito n ã o - g a r a n t i d o " consiste e n t ã o na circunstância de que a aplicação desses


meios coativos é a eventual c o n s e q ü ê n c i a efetiva, p o r é m n ã o " c o n s e q ü ê n c i a j u r í d i c a "
da i n f r a ç ã o da c o n v e n ç ã o : e m todo caso, o dono da casa tem juridicamente a "autoridade
d o m é s t i c a " , enquanto que u m a disposição jurídica sem garantia direta adquire seu
significado c o m o tal pelo fato de que a inobservância traz c o n s e q ü ê n c i a s , de algum
modo, e m v i r t u d e de u m a " d i s p o s i ç ã o jurídica" garantida. Por outro lado, quando
u m a disposição jurídica se r e f e r e aos " b o n s costumes", isto é, a c o n v e n ç õ e s aprováveis,
a observância dos deveres convencionais transforma-se, ao m e s m o tempo, e m " d e v e r
j u r í d i c o " (direito indiretamente garantido). E x i s t e m , a l é m disso, e n ã o e m pequeno
n ú m e r o , f e n ô m e n o s intermediários como, p o r e x e m p l o , as "cortes de a m o r " dos trova-
dores na Provença, antigamente encarregadas da " j u r i s d i ç ã o " e m assuntos eróticos,
o u o " j u i z " , e m sua f u n ç ã o originária, a r b i t r a l , que assumia apenas a m e d i a ç ã o entre
a s p a r t e s e m conflito, dando eventualmente u m laudo, mas que carecia de toda autori-
dade coativa p r ó p r i a , o u , ainda, os atuais " t r i b u n a i s de a r b i t r a g e m " internacionais.
E m semelhantes casos, a a p r o v a ç ã o o u r e p r o v a ç ã o puramente a m o r f a do ambiente
tornou-se u m o r d e n a r , p r o i b i r e p e r m i t i r autoritariamente f o r m u l a d o , portanto, uma
c o a ç ã o psíquica concretamente organizada e, por isso, deve-se falar de direito pelo
menos nos casos e m que n ã o se trata — c o m o nas "cortes de a m o r " — de p u r a brinca-
deira e e m que por trás do j u í z o há algo mais do que a o p i n i ã o incompetente de quem
julga, existindo, portanto, pelo menos a perspectiva, c o m o c o n s e q ü ê n c i a n o r m a l , de
uma "defesa p r ó p r i a " e m f o r m a de boicote, apoiada de algum m o d o n u m aparato
constituído por determinadas pessoas (do clã ou do Estado ofendido), c o m o nos dois
últimos casos acima mencionados. Para o conceito de " c o n v e n ç ã o " , c o n f o r m e o defini-
mos, n ã o é suficiente a circunstância de certo tipo de a ç ã o ser " a p r o v a d a " e de o
tipo contrário ser " r e p r o v a d o " — por m a i o r que seja o n ú m e r o de pessoas a fazê-lo
— , mas é preciso que, n u m " a m b i e n t e e s p e c í f i c o " — naturalmente, n ã o se trata aqui
de u m ambiente e m sentido local — do agente exista a possibilidade de semelhante
atitude. Isto significa que deve h a v e r alguma característica específica que limite o círculo
de pessoas componentes do " a m b i e n t e " , seja este profissional, de parentesco, de vizi-
n h a n ç a , estamental, étnico, religioso, político o u de outra natureza qualquer, e mesmo
que a pertinência seja muito lábil. N ã o é pressuposto da c o n v e n ç ã o , e m nosso sentido,
que esse círculo constitua uma " a s s o c i a ç ã o " ( t a m b é m e m nosso sentido), precisamente
o oposto é muito f r e q ü e n t e . Pelo c o n t r á r i o , a vigência do " d i r e i t o " , e m nosso sentido,
u m a v e z que ela s e m p r e p r e s s u p õ e , segundo nossa d e f i n i ç ã o , u m "aparato coativo",
é s e m p r e componente de u m a " a ç ã o de a s s o c i a ç ã o " (efetiva o u potencial) — o que,
c o m o sabemos, n ã o significa que somente a " a ç ã o de a s s o c i a ç ã o " (ou mesmo somente
a " a ç ã o de c o m u n i d a d e " ) seja regulada juridicamente pela associação, tornando-se as-
sim u m a a ç ã o " r e g u l a d a pela a s s o c i a ç ã o " . Neste sentido, pode-se designar a "associa-
ç ã o " c o m o " p o r t a d o r a " do direito. Mas, por outro lado, a a ç ã o de comunidade, a
consensual o u a social, a de associação e a institucional — que, p o r sua parte, já repre-
sentam u m a s e ç ã o dos acontecimentos, das f o r m a s de comportamento e das ações socio-
logicamente relevantes — estão muito longe de orientar-se subjetivamente apenas por
" r e g r a s jurídicas", n o sentido aqui adotado, c o n f o r m e v e r e m o s e m vários exemplos.
Se se entendem por " o r d e m " de uma associação todas as regularidades efetivamente
verificáveis de comportamento que são características o u c o n d i ç õ e s essenciais d o decor-
rer efetivo da a ç ã o de comunidade que constitui a associação ou por ela está influenciada,
então essa " o r d e m " , apenas e m p a n e diminuta, é c o n s e q ü ê n c i a da orientação por
" r e g r a s j u r í d i c a s " . Essas regularidades, desde que estejam orientadas conscientemente
por " r e g r a s " — n ã o nascendo d o " h á b i t o " i n c o n s c i e n t e — , s ã o , e m p a n e , regularidades
de " c o s t u m e " e " c o n v e n ç ã o " , p o r é m , e m p a n e , e muitas vezes de m o d o predominante,
ECONOMIA E SOCIEDADE 219

m á x i m a s da a ç ã o subjetivamente racional, referente a u m fim, em interesse p r ó p r i o


de cada u m dos participantes, c o m cuja eficácia estes e outros contam e f r e q ü e n t e m e n t e
p o d e m f a z ê - l o , de m o d o objetivo, e m v i r t u d e de relações associativas ou consensos
especiais, p o r é m n ã o protegidos por c o a ç ã o jurídica. A probabilidade de c o a ç ã o jurídica,
que, c o n f o r m e mencionado, determina apenas e m pequeno g r a u o comportamento
" c o n f o r m e o d i r e i t o " do agente, encontra-se t a m b é m objetivamente, c o m o garantia
eventual, apenas atrás de u m a pequena parte do d e c o r r e r efetivo das ações consensuais.

Evidentemente, é fluida para a Sociologia a transição entre o simples "costume" e a "con-


venção" e entre esta e o "direito".
1. Mesmo fora da consideração sociológica é errôneo procurar a diferença entre "direito"
e "moral" na afirmação de que a norma jurídica regula o comportamento "exterior", e apenas
este, e de que a norma moral, ao contrário, "somente" a atitude. É verdade que o direito
nem sempre trata como relevante a natureza da atitude da qual resulta uma ação, e que existem
e sempre existiram normas jurídicas e ordens jurídicas inteiras que vinculam conseqüências jurídi-
cas, incluindo castigos, somente à conexão causal externa. Mas isto não é, de modo algum,
o normal. Conseqüências jurídicas estão vinculadas à bom ou mala fides, à "intenção" ou ao
caráter "desonroso" de um comportamento, a ser verificado na atitude moral, e a outros tantos
fatos de natureza puramente moral. E os imperativos "morais" dirigem-se precisamente à "supe-
ração" dos desejos contrários à norma — de fato também existentes como componentes da
"atitude moral" — na ação prática, portanto, em algo que, em regra, se realiza externamente.
A consideração normativa, para a distinção entre moral e direito, teria certamente de partir
não dos conceitos de "externo" e "interno" mas das diferenças de dignidade normativa entre
ambos. Para a consideração sociológica, porém, a qualidade de " m o r a l " é idêntica, em regra,
à de vigência por "motivos religiosos" ou "em virtude da convenção". Para ela, só poderia
ser uma norma "exclusivamente" ética — em oposição à anterior — a representação subjetiva
de um padrão abstrato de comportamento que se desenvolve a partir dos axiomas últimos da
referência valorativa vigente, desde que essa idéia tenha importância prática para a ação. De
fato, semelhantes idéias tiveram freqüentemente importância real de grande alcance. Mas onde
quer que fosse esse o caso, sempre constituíram um produto relativamente novo de um processo
de pensamento filosófico. Na realidade cotidiana, tanto do passado quanto do presente, os "man-
damentos morais", em oposição aos "mandamentos jurídicos", são, normalmente, do ponto
de vista sociológico, máximas de comportamento religiosa ou convencionalmente condicionadas,
sem delimitação fixa em face da esfera do direito. Não há mandamento " m o r a l " socialmente
importante que não tenha sido, em algum tempo ou lugar, um mandamento jurídico.
2. Completamente inútil é a distinção feita por Stammler entre a "convenção" e a norma
jurídica com base no critério de que o cumprimento da norma se faça por vontade livre do
indivíduo ou não. E errônea a idéia de que o cumprimento de "deveres" convencionais, por
exemplo, de uma regra de decoro social, não é "exigido" ao indivíduo e que sua inobservância
tem por conseqüência somente a segregação voluntária — ipso facto causada e livremente deci-
dida — de uma relação associativa com caráter também voluntário. Mesmo concedendo-se a
existência de normas com esse caráter — mas de modo algum apenas na esfera da "convenção",
mas também na do direito (a clausula rebus sic stantibus tem de fato freqüentemente este sentido)
—, não se encontra aí o ponto principal daquilo que a Sociologia própria de Stammler tem
de distinguir, enquanto regras de convenção, das normas jurídicas. Não apenas uma sociedade
anárquica, teoricamente construível, cuja "teoria" e "crítica" Stammler desenvolveu com ajuda
de seus conceitos escolásticos, como também numerosas relações associativas existentes no mun-
do real renunciam ao caráter jurídico de suas ordens convencionais simplesmente porque se
supõe que o mero fato da desaprovação social de sua infração, com suas conseqüências indiretas,
muitas vezes bastante reais para o infrator, seja e deva ser suficiente como sanção. A ordem
jurídica e a ordem convencional não constituem, portanto, para a Sociologia — mesmo prescin-
dindo-se dos fenômenos intermediários evidentemente sempre existentes —, antagonismos fun-
damentais, visto que também a convenção é apoiada, em parte, por coação psíquica e, em parte
— pelo menos indiretamente —, até por coação física. Distinguem-se apenas na estrutura socioló-
220 MAX WEBER

gica da coação, pela falta de pessoas especialmente aptas a aplicar a força coativa (isto é, de
um "aparato coativo": "sacerdotes", "juízes", "polícia", "militares", e t c ) .
Sobretudo, porém, na concepção de Stammler confunde-se a "vigência" ideal de uma
norma, cientificamente dedutível pelo dogmatismo jurídico ou pela ética, com a influência real
da ação empírica por representações sobre a vigência das normas; e é esta que cabe tomar
por objeto de uma consideração empírica. Confunde-se, além disso, a "regulação" normativa
de um comportamento por regras — que uma multiplicidade de pessoas trata de fato como
regras que "devem estar vigentes" — com as regularidades efetivas do comportamento humano.
E m ambos os casos, cabe fazer uma distinção conceituai rigorosa.
E m condições normais, regras convencionais constituem a maneira pela qual simples regu-
laridades efetivas nas ações, mero "costume", portanto, são convertidas em "normas" obriga-
tórias, garantidas inicialmente, na maioria das vezes, pior coação psíquica: formação de uma
tradição. Já o simples fato da repetição regular de determinados processos, tanto de fenômenos
naturais quanto de ações condicionadas organicamente, ou pior imitação irrefletida ou pior adap-
tação às circunstâncias exteriores da vida, facilmente confere a esses processos a dignidade de
algo normativamente ordenado. E isso quer se trate do curso habitual dos astros, prescrito por
poderes divinos, ou das inundações do Nilo ou da forma habitual de pagamento à força de
trabalho não-livre, que, do ponto de vista jurídico, está incondicionalmente à mercê do pxxler
senhorial. Assim que a convenção se apodera das regularidades nas ações, transformando-se,
portanto, a "ação de massas" numa "ação consensual" — pois esta é a importância do processo,
traduzida em nossa terminologia —, podemos falar de "tradição". Cabe sempre reiterar que
já o simples exercício do modo habitual de agir e a atitude tendente a conservar esse hábito,
e muito mais ainda a tradição, afinal atuam sobre a persistência também de uma ordem jurídica
estatuída e arraigada com mais força do que a reflexão sobre os meios coativos a serem esperados
e outras conseqüências, uma vez que estes nem costumam estar presentes para ao menos uma
parte das pessoas que agem de acordo com a "norma". Sempre é fluida a transição entre a
simples aceitação apática da habituação inconsciente a determinada ação e a adoção consciente
da máxima de uma ação correspondente à norma. Do mesmo modo que a simples regularidade
efetiva de uma ação engendra convicções morais e jurídicas de conteúdo correspondente, a
circunstância, por outro lado, de que meios coativos físicos e psíquicos impõem determinado
comportamento cria a habituação efetiva e, por isso, a regularidade das ações.
O direito e a convenção estão entretecidos, como causa e efeito, nas ações comuns, para-
lelas e contrárias dos homens. É gravemente errôneo colocar — como Stammler o faz — a
" f o r m a " em confronto com o "conteúdo" dessas ações (a "matéria" destas). Ao contrário, do
ponto de vista sociológico, a crença no caráter imperativo, jurídico ou convencional de determi-
nado comportamento é primariamente apenas um aditivo que aumenta o grau de probabilidade
com a qual o agente pode contar em relação a determinadas conseqüências de suas ações. Por
isso, a teoria econômica prescinde por inteiro, e com toda razão, da análise do caráter das
normas. O fato de alguém "possuir" alguma coisa somente significa, para ela, que essa pessoa
pode esperar que ninguém mais lhe negue a disposição sobre esse objeto. Primariamente não
lhe interessa a razão pela qual esse respeito mútuo do poder de disposição existe, se por conside-
ração de uma norma convencional ou jurídica ou por idéias quaisquer de vantagens próprias,
por parte de todos os participantes. A circunstância de alguém "dever" a outro um bem qualquer
significa sociologicamente: a existência da probabilidade de uma pessoa corresponder à expec-
tativa de outra de colocar, em determinado momento, à disposição efetiva desta aquele bem,
expectativa baseada, em conformidade com o decorrer habitual das coisas, em determinado
ato: promesa, dano culposo ou outro qualquer. À ciência econômica não interessam primaria-
mente os motivos psicológicos pelos quais isto acontece. O fato de "se trocarem" bens significa
que, segundo um acordo, um [bem] passa da disposição efetiva de uma pessoa à de outra,
porque, conforme o sentido dado pela primeira pessoa a esse ato, outro bem passa ou deve
passar da disposição da outra à sua. Os participantes na relação de dívida ou na troca nutrem,
cada um, a esperança de que a outra parte se comportará de maneira correspondente à intenção
própria. Nessa situação, n ã o é conceitualmente necessária a existência de uma "ordem" qyalquer,
externa a duas pessoas, que garanta, mande ou imponha tal comportamento mediante um aparato
coativo ou desaprovação social, nem é pressuposto necessário, entre os participantes, o reconhe-
ECONOMIA E SOCIEDADE 221

cimento subjetivo de qualquer norma como "obrigatória" ou a crença de que a parte contrária
o faça. Pois, por exemplo, quem troca pode confiar, ao fazê-lo, no interesse egoísta da parte
contrária — interesse que atua contra a inclinação de faltar à promessa — na continuação futura
das relações de troca (conforme acontece, com plástica nitidez, na chamada "troca muda" com
povos selvagens e também, aliás, em grande extensão, em toda transação moderna, especialmente
na bolsa) ou em outros motivos quaisquer que atuem nesse sentido. E m caso de racionalidade
pura, referente a fins, a situação é esta: cada um dos participantes espera, e normalmente pode
fazê-lo com alta probabilidade, que a parte contrária se comportará "como se" reconhecesse
como "obrigatória", para si, uma norma cujo conteúdo indica que se deve "manter" a promessa
dada. Conceitualmente, isto é suficiente. Mas, evidentemente, em certas circunstâncias, tem muita
importância prática a questão de haver ou não garantias para os participantes contarem com
tal comportamento da parte contrária: 1) porque a crença subjetiva na vigência objetiva de seme-
lhantes normas está de fato divulgada em seu ambiente (consenso) e, 2) mais ainda, porque
a consideração da aprovação ou reprovação social cria uma garantia convencional ou porque
a existência de um aparato coativo gera uma' 'garantia j urídica''. Não é simplesmente'' impossível''
imaginar transações econômicas privadas e seguras, de tipo moderno, sem garantia jurídica.
Ao contrário, na maioria das transações comerciais sequer ocorre a alguém pensar na possibi-
lidade da demanda jurídica. E as transações na bolsa, por exemplo, mesmo entre os corretores
profissionais, realizam-se em formas que, na grande maioria dos casos, quase excluem toda
"prova" de má-fé, seja oralmente seja mediante anotações no livro de notas (próprio). Não
obstante, na prática não ocorre a tentativa de contestação. Do mesmo modo, existem associações
que perseguem fins puramente econômicos e cujas ordens, mesmo assim, carecem totalmente
(ou quase) da proteção jurídica estatal. Também a este tipo pertenceram, em seu tempo, certas
categorias de "cartéis"; por outro lado, ocorreu com muita freqüência de também os acordos
baseados no direito privado, válidos de per si, terem perdido sua vigência com a dissolução
da associação, porque não houve então mais nenhum demandante formalmente legitimado. Neste
caso, portanto, a associação, com seu aparato coativo, era portadora de um "direito" que ou
carecia inteiramente de coação jurídica ou se apoiava somente nela enquanto existia. Aos contratos
dos cartéis faltava freqüentemente — por motivos a serem encontrados na atitude peculiar dos
participantes — até mesmo uma garantia convencional eficaz e, não obstante, as relações associa-
tivas em questão funcionavam eficazmente, por muito tempo, em virtude dos interesses conver-
gentes de todos os participantes. Mas, apesar de tudo isso, a garantia jurídica coativa, especial-
mente a estatal, não é sem importância para semelhantes formações. A grande maioria das transa-
ções de troca está hoje garantida por coação jurídica. Normalmente pretende-se adquirir, me-
diante o ato de troca, "direitos" subjetivos, portanto, em termos sociológicos: a possibilidade
do apoio do aparatõ coativo estatal para adquirir poderes de disposição. Os "bens econômicos"
são, hoje, em condições normais, ao mesmo tempo direitos subjetivos legitimamente adquiridos;
a "ordem econômica" constrói seu cosmos com este material. Mesmo assim, nem hoje em dia
a totalidade dos objetos de troca pertence a este tipo. Também são objetos de transações de
troca oportunidades econômicas que, sem estarem garantidas pela ordem jurídica e cuja garantia
esta até recusa por princípio, não são "ilegítimas", mas absolutamente legítimas. A este tipo
pertence, por exemplo, a cessão por dinheiro da "clientela" de um homem de negócios. A
venda de uma clientela tem hoje, em condições normais, por conseqüência jurídico-privada
somente determinados direitos do comprador para com o vendedor: que este se abstenha de
certos atos e eventualmente realize outros ("apresentação" do comprador) Não outorga, porém,
direitos para com terceiros. Mas houve e há casos em que os aparatos coativos do poder político
se mantêm à disposição para exercer coação direta a favor do proprietário e adquirente de
oportunidades de venda (por exemplo, no caso da "proscrição gremial" ou do "monopólio"
juridicamente protegido) É sabido que Fichte, em Geschlossenen Handelsstaat, encontrou a
especificidade do moderno desenvolvimento do direito precisamente no fato de que, em contra-
posição àquela situação, hoje em dia, em princípio, apenas direitos sobre bens materiais ou
serviços úteis concretos são objeto da proteção jurídica estatal: a chamada "concorrência livre"
expressa-se, do ponto de vista jurídico, justamente neste fato. Ainda que, portanto, a oportunidade
em relação a terceiros desprovida de proteção jurídica continue sendo um objeto de transações
econômicas, a recusa da garantia jurídica tem evidentemente conseqüências econômicas de gran-
222 MAX WEBER

de alcance. Mas, em princípio — e isto deve ser retido no plano do conceito —, a intervenção
dessa garantia constitui, para a consideração sociológica e econômica, apenas um aumento da
certeza no tocante à realização do evento economicamente relevante.
A regulação jurídica de uma situação — e isto significa sempre: a existência de uma instância
humana, de qualquer natureza, que, em caso de apresentar-se a situação em questão, é conside-
rada (em princípio) em condições de indicar, de acordo com alguma representação normativa,
o que deve ser feito "segundo o direito" — em lugar algum foi realizada até as últimas conse-
qüências. Não trataremos aqui da circunstância de que toda relação associativa racional e também,
portanto, toda regulação da ação social ou consensual são algo posterior em relação a essas
ações, o que já vimos anteriormente. Tampouco da circunstância de que o desenvolvimento
da ação social e da consensual faz com que se apresentem constantemente situações particulares
completamente novas que não podem ser decididas, ou apenas o são aparentemente e com
certa violência, com as normas reconhecidas como vigentes ou com os habituais meios lógicos
da jurisprudência (tese do movimento do "direito l i v r e " ) Trataremos, isto sim, do fato de que,
com freqüência, precisamente questões "fundamentais" de uma ordem jurídica, intensamente
racionalizada em todos os demais pontos costumam carecer por completo de regulação jurídica.
Para ilustrar isto, daremos dois exemplos de tipos específicos desta situação: 1) a questão de
o quê deve ser feito, "segundo o direito", no caso em que um monarca "constitucional" demita
seus ministros responsáveis e omita nomear outros em seu lugar, de modo a não haver ninguém
pãra referendar seus atos, não está regulada juridicamente em nenhuma "constituição" do mun-
do. Somente uma coisa é certa: que, neste caso, determinados atos de governo não podem
ter "validade". 2) O mesmo aplica-se — pelo menos na maioria das constituições — à questão
de o quê deve ser feito quando não se consegue aprovar um "orçamento estatal" que precisa
ser estabelecido mediante um acordo voluntário em relação aos fatores participantes. A primeira
questão é qualificada por Jellinek, com razão, de praticamente "ociosa" — mas o que precisa-
mente nos interessa aqui é: por que é "ociosa". Mas o segundo tipo de "lacuna na constituição",
como é sabido, tornou-se um problema para toda "constituição", no sentido sociológico —
isto é, para a forma efetiva de distribuição dos poderes que determina a possibilidade de influen-
ciar a ação de comunidade mediante ordenações — estabelecer o lugar e a natureza daquelas
"lacunas", referentes justamente a questões fundamentais, na "constituição", no sentido jurídico
da palavra. Ao estabelecer uma constituição de modo racional, mediante consenso ou impondo-a,
deixa-se às vezes propositalmente esta lacuna do segundo tipo. Isto porque, no caso concreto,
o (ou os) interessado(s) com participação decisiva na criação da constituição nutrem a esperança
de que, no caso dado, possuirá (ou possuirão) poder suficiente para dirigir segundo sua vontade
a ação social que, do ponto de vista jurídico, carece de uma "ordem" estatuída, porém inevitavel-
mente tem seqüência; isto é, no exemplo dado, para governar sem orçamento. Costuma-se deixar
de preencher as lacunas do primeiro tipo ilustrado acima, porque existe a convicção fundada
de que o interesse próprio da (ou das) pessoa(s) em questão — isto é, no exemplo, do monarca
— será em todo momento suficiente para determinar suas ações de tal modo que a situação
"absurda", porém juridicamente possível, da falta de ministros responsáveis nunca possa apresen-
tar-se de fato. Mas, sem dúvida, apesar daquela "lacuna", considera-se consensualmente um
"dever" do monarca a nomeação de ministros. Trata-se de um dever jurídico "indiretamente
garantido". Pois há conseqüências jurídicas: a impossibilidade de realizar, de forma "válida",
determinados atos — conseqüências, por sua vez, daquele dever —, isto é, de conseguir a possibi-
lidade da garantia do aparato coativo. Além disso, porém, não está regulado, nem jurídica nem
convencionalmente, o que deve ser feito para continuar a administração do Estado, caso o mo-
narca não se atenha a esse dever e, como esta situação nunca se apresentou, falta também um
"costume" que possa constituir fonte de uma decisão. Isto mostra, mais uma vez e com muita
clareza, que o direito, a convenção e o costume de modo algum são os únicos poderes com
os quais se conta e se pode contar como garantes de um comportamento prometido por outra
pessoa, ou, de outra forma, considerado um dever dela, mas que, junto com esses garantes,
importa sobretudo o interesse próprio da outra parte na continuação de determinada ação consen-
sual como tal. A certeza de que o monarca cumprirá aquele dever considerado vigente é certa-
mente maior, porém apenas em certo grau, do que a do participante de uma troca — como
o do exemplo anterior — numa transação que carece de toda norma ou garantia coativa, em
223

relação a um comportamento da outra parte que corresponda a suas intenções e a poder contar
com este, normalmente, em caso de transações contínuas, sem haver garantia jurídica alguma.
O importante aqui era mostrar que a ordem jurídica, bem como a convencional, de uma ação
consensual ou social atinge, em princípio e eventualmente de modo plenamente consciente,
apenas fragmentos dessa ação. A orientação da ação social por uma ordem é, sem dúvida, consti-
tutiva de toda relação associativa, mas o aparato coativo não tem esse caráter para a totalidade
das ações relativas a associações contínuas e institucionalmente reguladas. Se o caso absurdo
do exemplo 1 ocorrese, com certeza ele imediatamente suscitaria a especulação jurídica e even-
tualmente levaria a uma regulação convencional ou jurídica. Mas, entrementes, alguma ação
social, consensual ou associativa, de natureza talvez muito diversa, dependendo da situação,
já teria liquidado, na prática, o caso concreto. A regulação normativa é um componente impor-
tante, porém apenas causal, da ação consensual, e não — conforme o queria Stammler — a
"forma" universal.

§ 3. I m p o r t â n c i a e l i m i t e s d a c o a ç ã o j u r í d i c a p a r a a e c o n o m i a

As garantias jurídicas e, portanto, representações de n o r m a s sobre as quais elas


repousam, inteira o u parcialmente, e que constituem o motivo de sua c r i a ç ã o , interpre-
tação e aplicação, p o d e m ser consideradas, por u m a disciplina que investiga regulari-
dades e tipos e m p í r i c o s , c o m o a Sociologia, tanto a c o n s e q ü ê n c i a quanto, sobretudo,
a causa o u u m a das causas de regularidades na a ç ã o h u m a n a diretamente relevante
do ponto de vista s o c i o l ó g i c o , o u nos processos naturais indiretamente relevantes do
ponto de vista s o c i o l ó g i c o e provocados pela p r i m e i r a . Regularidades efetivas do com-
portamento ( " c o s t u m e " ) podem, c o n f o r m e v i m o s , tornar-se fonte de regras para o
comportamento ( " c o n v e n ç ã o " , " d i r e i t o " ) . Mas pode o c o r r e r t a m b é m o contrário. As
normas jurídicas (ou convencionais) p r o d u z e m o u contribuem p a r a p r o d u z i r n ã o apenas
aquelas regularidades que constituem diretamente o c o n t e ú d o de suas o r d e n a ç õ e s c o m o
t a m b é m outras. Por e x e m p l o , o fato de u m f u n c i o n á r i o aparecer todo dia, c o m regulari-
dade, e m seu escritório, é c o n s e q ü ê n c i a direta de u m a o r d e n a ç ã o imposta por u m a
n o r m a jurídica considerada " v i g e n t e " , na prática. A o contrário, o fato de o " v i a j a n t e "
de u m a fábrica se apresentar regularmente u m a vez p o r ano aos " v a r e j i s t a s " , para
aceitar pedidos, está co-determinado por n o r m a s jurídicas apenas de m o d o indireto,
e m v i r t u d e da a d m i s s ã o efetiva da c o n c o r r ê n c i a pela clientela e e m v i r t u d e da necessi-
dade de f a z ê - l o , condicionada — entre outras coisas — p o r essa admissão. A r e d u ç ã o
da taxa de mortalidade infantil, q u a n d o a ausência das m ã e s e m fase de aleitamento
ao trabalho é considerada u m a " n o r m a " convencional ou jurídica, é certamente conse-
qüência da vigência desta e, tratando-se d e u m a n o r m a jurídica estatuída, constitui
t a m b é m u m dos fins racionais de seus criadores. Naturalmente estes p o d e m " o r d e n a r "
somente aquela ausência, mas n ã o a d i m i n u i ç ã o da mortalidade. Igualmente e m r e l a ç ã o
à a ç ã o diretamente ordenada o u p r o i b i d a , a eficácia prática da vigência de u m a n o r m a
coativa é, naturalmente, problemática: a observância desta é apenas sua c o n s e q ü ê n c i a
" a d e q u a d a " , p o r é m n ã o sem e x c e ç ã o . Fortes interesses podem, s e m dúvida, l e v a r à
situação e m que, apesar do aparato coativo, essa n o r m a jurídica " v i g e n t e " [ e m v i r t u d e
da p r o n t i d ã o desta c o a ç ã o ] seja v i o l a d a n ã o apenas e m ocasiões isoladas c o m o na m a i o r i a
das vezes e de m o d o c o n t í n u o , sem h a v e r quaisquer sanções. Q u a n d o u m a situação
tal se t o r n o u constante, e os participantes, por conseguinte, chegaram à c o n v i c ç ã o de
que suas a ç õ e s , e n ã o as exigidas pela regra jurídica que se pretende válida, corres-
p o n d e m à n o r m a , o poder coativo garantidor costuma afinal d e i x a r de i m p o r a obser-
vância dessa r e g r a , e o d o g m á t i c o do direito fala, nesse caso, de " d e r r o g a ç ã o pelo
direito c o n s u e t u d i n á r i o " .
224 MAX WEBER

Mas é possível, t a m b é m , u m a situação de conflito c r ô n i c o entre n o r m a s jurídicas


garantidas p e l o aparato coativo do poder político e regras convencionais, " v i g e n t e s "
lado a lado — c o m o n o caso do d u ê l o , c o m o t r a n s f o r m a ç ã o convencional da vingança
p r i v a d a . Essa situação já foi e x a m i n a d a anteriormente 1 . E , apesar de n ã o s e r r a r o que
n o r m a s jurídicas s e j a m racionalmente estatuídas, p a r a m o d i f i c a r " c o s t u m e s " e c o n v e n -
ções existentes, o n o r m a l é que a o r d e m jurídica tenha " v i g ê n c i a " e m p í r i c a n ã o por
existir a garantia coativa, mas p o r ser u m " c o s t u m e " habituado e " p r a t i c a d o " e pelo
fato de, na m a i o r i a das vezes, a c o n v e n ç ã o desaprovar o desvio flagrante do compor-
tamento que lhe corresponde. Para o d o g m á t i c o do direito, a v i g ê n c i a ( i d e a l ) da n o r m a
jurídica é o prius conceituai; u m comportamento que n ã o esteja juridicamente padro-
nizado (diretamente) é, p a r a ele, juridicamente " p e r m i t i d o " e, neste sentido, atingido
(idealmente) pela o r d e m jurídica. Para o s o c i ó l o g o , ao c o n t r á r i o , a r e g u l a ç ã o jurídica
de u m comportamento, e particularmente a racionalmente estatuída, constitui, do ponto
de vista e m p í r i c o , e n o tocante à m o t i v a ç ã o da a ç ã o social, apenas u m componente
que, historicamente considerado, aparece quase s e m p r e muito tarde e tem efeitos de
intensidade muito diversa. Para o s o c i ó l o g o , os inícios s e m p r e obscuros de regularidades
efetivas e " c o s t u m e s " na a ç ã o social têm o r i g e m na prática — baseada e m impulsos
e instintos — , de u m comportamento " a d a p t a d o " às necessidades dadas da v i d a , com-
portamento que, e m todo caso, inicialmente n ã o estava condicionado n e m foi modifi-
cado p o r u m a o r d e m estatuída. A i n t e r v e n ç ã o crescente de ordens estatuídas constitui,
para nossa c o n s i d e r a ç ã o , apenas u m componente particularmente característico daquele
processo de racionalização e de f o r m a ç ã o de relações associativas, cuja e x t e n s ã o pro-
gressiva e m todas as a ç õ e s sociais teremos de e x a m i n a r , e m todas as áreas, c o m o a
f o r ç a m o t r i z mais essencial do desenvolvimento.
E m r e s u m o , cabe dizer sobre as relações mais gerais — as quais nos bastam
aqui — entre direito e economia, o seguinte:
1. O direito ( s e m p r e e m sentido s o c i o l ó g i c o ) n ã o garante, de m o d o algum, apenas
os interesses e c o n ô m i c o s mas t a m b é m os mais diversos, desde os mais elementares
— a p r o t e ç ã o da simples s e g u r a n ç a pessoal — até os bens puramente ideais, c o m o
a própria " h o n r a " e a dos poderes divinos. Garante, sobretudo, t a m b é m posições de
autoridade política, eclesiástica, f a m i l i a r e outras, e, e m g e r a l , situações sociais privile-
giadas de toda e s p é c i e , as quais — apesar de p o d e r e m estar condicionadas, o u s e r e m
relevantes, economicamente, dos m o d o s mais diversos — , n ã o s ã o , e m s i , e m nada
e c o n ô m i c a s n e m algo que se deseje p o r motivos necessária o u predominantemente
econômicos.
2. E m certas circunstâncias, u m a " o r d e m j u r í d i c a " pode continuar inalterada mes-
m o que m u d e m radicalmente as relações e c o n ô m i c a s . T e o r i c a m e n t e — e na teoria
opera-se, p o r motivos de c o n v e n i ê n c i a , c o m exemplos extremos — poderia ser introdu-
zida u m a o r d e m de p r o d u ç ã o " s o c i a l i s t a " s e m m o d i f i c a ç ã o de u m p a r á g r a f o sequer
de nossas leis, imaginando-se que o c o r r a u m a a q u i s i ç ã o sucessiva dos meios de p r o d u ç ã o
mediante contratos livres — , s e m d ú v i d a , u m a idéia altamente i m p r o v á v e l , mas (o
que teoricamente é suficiente) certamente n ã o absurda. Nestas c o n d i ç õ e s , a o r d e m
jurídica, c o m seu aparato coativo, teria de continuar pronta para o caso de a l g u é m
r e c o r r e r a seu apoio p a r a f o r ç a r o c u m p r i m e n t o das o b r i g a ç õ e s características da organi-
z a ç ã o d e p r o d u ç ã o e c o n ô m i c a p r i v a d a . S ó que este caso, de fato, nunca se apresentaria.
3- D o ponto d e vista das categorias de pensamento jurídicas, a r e g u l a ç ã o jurídica
de determinada situação pode ser fundamentalmente diversa sem que isso atinja, de
m o d o decisivo, as relações e c o n ô m i c a s , desde que, nos pontos economicamente rele-

1 Primeira parte, capítulo I § 5; segunda parte, capítulo I §1.


ECONOMIA E SOCIEDADE 225

vantes c o n f o r m e a r e g r a o efeito p r á t i c o p a r a os interessados seja o m e s m o . Isso é


possível e muitas vezes o c o r r e de fato ainda que, e m algum ponto, toda d i f e r e n ç a
na c o n s t r u ç ã o jurídica possa t r a z e r certas c o n s e q ü ê n c i a s e c o n ô m i c a s . Por e x e m p l o ,
conforme se definisse j u r i d i c a m e n t e a " c e s s ã o de u m a m i n a " c o m o " a r r e n d a m e n t o "
ou c o m o " c o m p r a " , c a b e r i a , e m R o m a , u m esquema de demanda jurídica completa-
mente diverso. Mas o efeito prático da d i f e r e n ç a sobre a o r d e m e c o n ô m i c a certamente
teria sido muito pequeno.
4. Naturalmente, a garantia jurídica está, e m sentido m a i s a m p l o , diretamente
a serviço de interesses e c o n ô m i c o s . E q u a n d o n ã o é este o caso, n e m aparentemente
n e m na realidade, os interesses e c o n ô m i c o s p e r t e n c e m aos fatores de influência m a i s
poderosos n a f o r m a ç ã o d o direito, u m a v e z que todo p o d e r garantidor d e u m a o r d e m
jurídica se a p ó i a , e m sua existência, de alguma f o r m a sobre a a ç ã o consensual dos
grupos sociais atingidos e a f o r m a ç ã o de g r u p o s sociais está t a m b é m condicionada,
e m alto g r a u , p o r constelações de interesses materiais.
5. A e x t e n s ã o dos resultados obteníveis mediante a eventualidade de c o a ç ã o que
acompanha a o r d e m jurídica, especialmente na área da a ç ã o e c o n ô m i c a , é limitada,
entre outras coisas, pela peculiaridade dessa a ç ã o . S e m d ú v i d a , é u m simples jogo
de palavras assegurar que o direito n ã o pode e x e r c e r n e n h u m a " c o a ç ã o " sobre d e t e r m i -
nada a ç ã o e c o n ô m i c a , p o r q u e p a r a todos os seus meios coativos, v a l e o princípio:
coactus tamen voluit. Pois isto aplica-se, s e m e x c e ç ã o , a toda c o a ç ã o que n ã o trata
a pessoa sobre a q u a l pretende atuar c o m o u m objeto i n a n i m a d o da natureza. Mesmo
os meios coativos e penais m a i s drásticos f a l h a m q u a n d o os atingidos simplesmente
n ã o se s u b m e t e m , o u seja, n u m â m b i t o muito a m p l o q u a n d o eles n ã o f o r a m " e d u c a d o s "
para tal submissão. C o m os tempos cada v e z mais pacíficos, a e d u c a ç ã o p a r a a s u b m i s s ã o
ao direito vigente g a n h o u , e m g e r a l , importância crescente. Por conseguinte, parece
que d e v e r i a ter aumentado t a m b é m , e m p r i n c í p i o , a coercibilidade da a ç ã o e c o n ô m i c a .
Não obstante, p o r é m , o p o d e r d o direito sobre a economia f i c o u , e m muitos aspectos,
mais f r a c o d o que e r a e m outras circunstâncias. As taxas sobre p r e ç o s , p o r e x e m p l o ,
f o r a m s e m p r e precárias e m sua eficácia, mas, nas c o n d i ç õ e s atuais, t ê m possibilidades
muito m e n o r e s de trazer resultados d o que jamais antes. O g r a u de possibilidade de
influenciar as ações e c o n ô m i c a s das pessoas n ã o é, portanto, u m a simples f u n ç ã o da
submissão g e r a l à c o a ç ã o jurídica. O s limites d o sucesso r e a l desta, na área e c o n ô m i c a ,
resultam, e m p a n e , dos limites da capacidade e c o n ô m i c a dos interessados: n ã o se limita
apenas a própria reserva de bens, mas t a m b é m os m o d o s possíveis de seu emprego,
e m v i r t u d e das f o r m a s habituais de a p l i c a ç ã o e de troca entre as economias particulares,
as quais conseguem submeter-se a ordens h e t e r ô n o m a s , quando o f a z e m , somente
a p ó s difíceis reorientações de todas as disposições e c o n ô m i c a s e na m a i o r i a das v e z e s
c o m perdas, portanto s e m p r e c o m atritos. Atritos que se t o r n a m tanto m a i s agudos
quanto mais desenvolvida e u n i v e r s a l seja u m a f o r m a específica da a ç ã o consensual:
o e n t r e l a ç a m e n t o n o m e r c a d o das economias particulares e, portanto, sua d e p e n d ê n c i a
de a ç õ e s de terceiros. Por outra parte, os limites encontram-se na área da r e l a ç ã o de
forças entre os interesses e c o n ô m i c o s p r i v a d o s e os interesses comprometidos na obser-
v ân c i a das prescrições jurídicas. A t e n d ê n c i a a desprezar oportunidades e c o n ô m i c a s
somente p a r a agir c o n f o r m e as leis é naturalmente pequena, a n ã o s e r que u m a c o n v e n -
ç ã o m u i t o v i v a desaprove fortemente a e v a s ã o d o direito f o r m a l , o que dificilmente
o c o r r e q u a n d o s ã o muito extensos os interesses prejudicados p o r u m a i n o v a ç ã o das
leis. Precisamente na área e c o n ô m i c a é f r e q ü e n t e m e n t e muito fácil dissimular seme-
lhantes e v a s õ e s . Particularmente inacessíveis à influência d o direito s ã o , segundo a
e x p e r i ê n c i a , os efeitos que p r o v ê m diretamente das fontes últimas da a ç ã o e c o n ô m i c a :
as a v a l i a ç õ e s e c o n ô m i c a s dos bens e, c o m isso, a f o r m a ç ã o de p r e ç o s . E isso especial-
226 MAX WEBER

mente q u a n d o os elementos determinantes n a p r o d u ç ã o e n o consumo n ã o se e n c o n t r a m


dentro de u m c í r c u l o totalmente o b s e r v á v e l e diretamente d o m i n á v e l de pessoas que
agem de m o d o consensual. A l é m disso, é c l a r o que, e m g e r a l , o conhecimento racional
da situação de m e r c a d o e dos interesses é muito m a i o r entre as pessoas que continua-
mente p a r t i c i p a m , c o m interesses p r ó p r i o s , nas transações do m e r c a d o do que entre
os criadores apenas idealmente interessados de prescrições jurídicas e seus ó r g ã o s exe-
cutivos. N u m a economia baseada n o e n t r e l a ç a m e n t o u n i v e r s a l do m e r c a d o , seus resul-
tados acessórios possíveis e n ã o pretendidos escapam, e m grande parte, da previsão
dos criadores de u m a p r e s c r i ç ã o jurídica, u m a v e z que estão nas m ã o s dos interessados
privados. S ã o precisamente estes que podem desfigurar o f i m pretendido da prescrição
até invertê-lo, o que o c o r r e u c o m f r e q ü ê n c i a . A t é que ponto, e m face dessas dificul-
dades, chega na realidade o poder efetivo do direito e m r e l a ç ã o à e c o n o m i a , é algo
que n ã o pode ser averiguado de m o d o g e r a l mas apenas p a r a cada caso particular,
e portanto deve ser e x a m i n a d o junto c o m os problemas da economia social. E m g e r a l ,
somente é possível dizer que, do ponto de vista puramente t e ó r i c o , a m o n o p o l i z a ç ã o
total e, portanto, o controle de u m m e r c a d o costumam facilitar tecnicamente a domi-
n a ç ã o do respectivo setor e c o n ô m i c o mediante a c o a ç ã o jurídica. Se, na prática, tal
d o m i n a ç ã o n e m s e m p r e aumenta as probabilidades da c o a ç ã o , isso d e c o r r e , e m r e g r a ,
do p a r t i c u l a r i s m o do direito d e v i d o à existência de associações políticas concorrentes
— assunto ao qual cabe voltar mais tarde — e, a l é m disso, do poder dos interesses
privados d o m i n á v e i s pelos monopolistas, interesses que se o p õ e m à a p l i c a ç ã o d o direito.
6. D o ponto de vista puramente t e ó r i c o , a garantia "estatal" dos direitos n ã o
é indispensável p a r a f e n ô m e n o e c o n ô m i c o f u n d a m e n t a l algum. A p r o t e ç ã o da proprie-
dade está t a m b é m garantida pelo apoio do clã. A garantia do pagamento de dívidas
f o i , às v e z e s , realizada pelas comunidades religiosas (mediante a a m e a ç a de e x c o m u -
n h ã o ) mais eficazmente d o que pelas políticas. E t a m b é m já existiu " d i n h e i r o " , e m
quase todas suas f o r m a s , s e m garantia estatal de sua a c e i ta ç ã o c o m o m e i o de pagamento.
Mesmo o d i n h e i r o " c a r t a i " , isto é, aquele c r i a d o n ã o e m vista de seu c o n t e ú d o material
mas mediante a d e s i g n a ç ã o de parcelas do m e i o de pagamento, pode ser concebido
sem garantia estatal. E existe t a m b é m , ocasionalmente, apesar da p r o t e ç ã o jurídica
estatal, d i n h e i r o c a n a l de o r i g e m n ã o e s t a t a l : a " m o e d a " , n o sentido de m e i o de paga-
mento de dívidas, c o m c o t a ç ã o imposta pelo Estado, n ã o existia na antiga Babilônia.
Mas p a r e c e m ter existido contratos pelos quais, p o r e x e m p l o , t i n h a m de ser empregados,
para o pagamento, peças de u m quinto de u m shekel c o m o c a r i m b o de determinada
" f i r m a " ( c o n f o r m e d i r í a m o s h o j e ) faltando, portanto, a " p r o c l a m a ç ã o " da garantia
estatal. T a m b é m a " u n i d a d e de v a l o r " escolhida n ã o é de o r i g e m estatal m a s contratual
— e, n ã o obstante, o m e i o de pagamento é de qualidade " c a r t a i " e a garantia de
c o a ç ã o estatal pelo menos respalda o acordo concreto. D o ponto de vista puramente
" c o n c e i t u a i " , portanto, o " E s t a d o " n ã o é necessário p a r a a economia. Mas, s e m d ú v i d a ,
o f u nc io n ament o de u m a o r d e m e c o n ô m i c a do tipo m o d e r n o n ã o é possível s e m uma
o r d e m jurídica de caráter muito especial, a q u a l , n a prática, s ó pode ser u m a o r d e m
" e s t a t a l " . A economia m o d e r n a baseia-se e m oportunidades adquiridas p o r contratos.
Por m a i s longe que v á o interesse p r ó p r i o n a ' ' legalidade contratual'', b e m c o m o t a m b é m
os interesses c o m u n s dos proprietários n a p r o t e ç ã o m ú t u a de sua propriedade, e por
mais que a c o n v e n ç ã o e o costume d e t e r m i n e m , a i n d a h o j e , n o m e s m o sentido, as
a ç õ e s dos indivíduos, a influência destes poderes p e r d e u muito de sua importância
e m c o n s e q ü ê n c i a do abalo da tradição — tanto das r e l a ç õ e s reguladas pela tradição
quanto da crença na santidade destas. Por o u t r o lado, os interesses das classes encon-
tram-se, m a i s do que n u n c a , separados entre s i ; a velocidade das transações modernas
exige u m direito que funcione de m a n e i r a rápida e segura — isto é, que seja garantido
ECONOMIA E SOCIEDADE 227

por u m poder coativo o mais forte possível — e, sobretudo, a e c o n o m i a m o d e r n a


destruiu, e m v i r t u d e de s e u caráter peculiar, as outras associações que e r a m portadoras
de direito e, portanto, da garantia do mesmo. Esta é a o b r a do desenvolvimento do
mercado. O d o m í n i o u n i v e r s a l da r e l a ç ã o associativa de mercado exige, p o r u m lado,
u m funcionamento do direito calculável segundo regras racionais. Por outro lado, a
e x p a n s ã o do m e r c a d o , que ainda conheceremos c o m o tendência característica dessa
relação, f a v o r e c e , e m v i r t u d e de suas c o n s e q ü ê n c i a s imanentes, a m o n o p o l i z a ç ã o e
r e g u l a m e n t a ç ã o d e todo poder coativo " l e g í t i m o " p o r uma instituição coativa u n i v e r s a l ,
mediante a destruição de todas as estruturas coativas particulares, as estamentais o u
outras, baseadas, na m a i o r i a dos casos, e m m o n o p ó l i o s e c o n ô m i c o s .
Capítulo I I

RELAÇÕES ECONÔMICAS DAS COMUNIDADES


(ECONOMIA E SOCIEDADE) EM GERAL

S 1 . Natureza da economia. Comunidade econômica, comunidade de


gestão e c o n ô m i c a e comunidade de regulação econômica

A grande maioria das relações comunitárias tem, de algum modo, relações com
a economia. Não queremos entender aqui por economia — como inconvenientemente
se faz na linguagem corrente — toda ação racionalmente planejada com vista a um
fim. Uma oração que, de acordo com os dogmas de alguma religião, tem por finalidade
obter determinado "bem" interior, não é, para nós, um ato de caráter econômico.
Tampouco o é toda ação ou atividade regida pelo princípio da parcimônia. Também
não têm nenhuma relação com a gestão econômica uma "economia do pensar", aplicada
conscientemente na elaboração de conceitos, e a realização do princípio artístico da
"economia dos meios", que, do ponto de vista da rentabilidade, freqüentemente é
um produto extremamente não-econômico de um trabalho sempre renovado de simplifi-
cação. Do mesmo modo, a observância da máxima técnica universal do optimum —
obter o resultado relativamente máximo com gasto mínimo — não é, por si, gestão
econômica, mas apenas técnica racionalmente orientada por um fim. Limitar-nos-emos
aqui a falar de economia quando temos, por um lado, uma necessidade ou um complexo
de necessidades e, por outro, uma reserva de meios e ações possíveis para satisfazê-las,
considerada escassa pelos agentes tornando-se esta situação a causa de um compor-
tamento específico que a tem em conta. Obviamente é aqui decisivo para um compor-
tamento racional referente a fins, que essa escassez é subjetivamente suposta e que
as ações são orientadas por esse pressuposto. Todos os detalhes da casuística e termino-
logia não serão considerados aqui. A gestão econômica pode realizar-se sob dois aspec-
tos. O primeiro é o da satisfação de uma dada necessidade própria, que pode referir-se
a todos os fins concebíveis, desde a comida até a edificação religiosa, desde que sejam
escassos os bens ou as possibilidades de ação exigida. Mas é convencional, falando-se
de economia, pensar-se com acento especificado na satisfação das necessidades cotidia-
nas, nas chamadas necessidades materiais. Orações e atos pios podem, de fato, também
tornar-se objetos da economia, desde que as pessoas qualificadas a realizá-los e suas
ações sejam escassas e, por isso, só possam estar disponíveis em troca de pagamento,
assim como o pão de cada dia. Os desenhos dos bosquímanos, aos quais se atribui
muitas vezes alto valor artístico, não são objetos da economia, nem sequer produtos
de trabalho, em sentido econômico. Ao contrário, outros produtos da criação artística
com valor muito menor podem tornar-se objetos de ações econômicas quando se apre-
230 MAX WEBER

senta a situação especificamente e c o n ô m i c a de escassez e m r e l a ç ã o à demanda. E m


o p o s i ç ã o à e c o n o m i a dirigida à satisfação de necessidades próprias o segundo tipo
de g e s t ã o e c o n ô m i c a está voltado à aquisição: aproveita-se da situação especificamente
e c o n ô m i c a de escassez de bens desejados a f i m de obter l u c r o pela disposição sobre
estes bens.
As relações da a ç ã o social c o m a economia p o d e m ser de natureza muito diversa.
A r e l a ç ã o social p o d e orientar-se, de acordo c o m o sentido de algum m o d o subjeti-
v a m e n t e concebido pelos participantes, p o r resultados p u r a m e n t e e c o n ô m i c o s : satisfa-
ç ã o d e necessidades o u l u c r o . Constitui, n o caso, o fundamento de u m a comunidade
e c o n ô m i c a . O u pode s e r v i r - s e da g e s t ã o e c o n ô m i c a p r ó p r i a c o m o m e i o de obter outros
resultados pelos quais se orienta: comunidades de g e s t ã o e c o n ô m i c a . O u , na orientação
de u m a a ç ã o social, combinam-se resultados e c o n ô m i c o s e e x t r a - e c o n ô m i c o s . O u , por
f i m , pode n ã o se v e r i f i c a r n e n h u m dos casos. O limite entre as duas p r i m e i r a s categorias
é fluido. E m rigor, a p r i m e i r a situação apresenta-se somente e m comunidades que
p r e t e n d e m obter l u c r o aproveitando-se da situação especificamente e c o n ô m i c a , isto
é, naquelas de e c o n o m i a aquisitiva. Pois todas as comunidades orientadas pela satisfação
de necessidades, de natureza qualquer, s e r v e m - s e da g e s t ã o e c o n ô m i c a somente na
medida e m que seja ela indispensável, e m v i r t u d e da d e s p r o p o r ç ã o entre necessidade
e bens. Neste sentido, s ã o iguais a e c o n o m i a de u m a f a m í l i a , de u m a f u n d a ç ã o benefi-
cente o u administração militar, de u m a r e l a ç ã o associativa p a r a desmatamento o u caça
comuns. Parece h a v e r , s e m d ú v i d a , u m a d i f e r e n ç a entre o fato de u m a a ç ã o social
s u r g i r substancialmente a f i m de f a z e r frente à situação especificamente e c o n ô m i c a
da satisfação das necessidades — o q u e , e m nossos e x e m p l o s , se aplica à r e l a ç ã o associa-
tiva p a r a o desmatamento e o de se p e r s e g u i r e m , p r i m a r i a m e n t e , outros fins (treina-
mento p a r a o caso de g u e r r a ) q u e , somente p o r a t i n g i r e m de fato a situação e c o n ô m i c a ,
f o r ç a m à g e s t ã o e c o n ô m i c a . Na realidade, p o r é m , trata-se de u m a distinção muito fluida
que s ó pode ser feita claramente na m e d i d a e m que a a ç ã o social mostre características
q u e , supondo-se a ausência da situação e c o n ô m i c a , isto é, u m a disposição sobre reservas
praticamente ilimitadas de b ê n s e a ç õ e s possíveis e adequadas, t e r i a m de permanecer
as mesmas.
T a m b é m u m a a ç ã o social que n ã o represente u m a comunidade e c o n ô m i c a ou
u m a de g e s t ã o e c o n ô m i c a pode ser d e t e r m i n a d a , e m s e u nascimento, d u r a ç ã o , natureza
estrutural e de c u r s o , p o r causas e c o n ô m i c a s que r e m o n t a m à situação e c o n ô m i c a ,
sendo, neste sentido, economicamente determinada. E essa a ç ã o , ao contrário, pode
constituir u m elemento causal de grande importância p a r a a natureza e o decurso de
u m a g e s t ã o e c o n ô m i c a , isto é, s e r economicamente relevante. Na m a i o r i a das vezes,
temos ambas as situações. N ã o é nada r a r a u m a a ç ã o social que n ã o representa u m a
comunidade e c o n ô m i c a n e m u m a de g e s t ã o e c o n ô m i c a . Q u a l q u e r passeio e m grupo
pode constituir semelhante a ç ã o . T a m b é m s ã o m u i t o f r e q ü e n t e s comunidades economi-
camente não-relevantes. D e n t r o do g r u p o das comunidades economicamente relevantes
constituem u m caso especial aquelas q u e , p o r s i mesmas, n ã o s ã o " c o m u n i d a d e s e c o n ô -
m i c a s " , isto é, cujos ó r g ã o s n ã o d e t e r m i n a m continuamente o processo e c o n ô m i c o
mediante c o o p e r a ç ã o própria o u o r d e n a ç õ e s , p r o i b i ç õ e s o u mandamentos concretos,
mas cujas ordens r e g u l a m o comportamento e c o n ô m i c o das participantes: s ã o as " c o m u -
nidades reguladoras da e c o n o m i a " , entre as quais estão todos os tipos de comunidades
politicas, muitas das religiosas e várias outras, inclusive as que constituem u m a relação
associativa expressamente p a r a o f i m d e r e g u l a ç ã o e c o n ô m i c a (comunidades d e pesca-
dores, d e camponeses e t c . ) Comunidades que n ã o estão, de alguma f o r m a , economi-
camente determinadas s ã o , c o m o já dissemos, extremamente r a r a s . A o c o n t r á r i o , o
g r a u e m que isto o c o r r e v a r i a bastante e, sobretudo, falta — e m c o n t r a d i ç ã o à hipótese
ECONOMIA E SOCIEDADE 231

da chamada c o n c e p ç ã o materialista da história — a univocidade da d e t e r m i n a ç ã o e c o n ô -


mica da a ç ã o comunitária p o r elementos e c o n ô m i c o s . F e n ô m e n o s que p a r a a análise
e c o n ô m i c a s ã o " i g u a i s " f r e q ü e n t e m e n t e s ã o c o m p a t í v e i s c o m u m a estrutura bastante
diversa, d o ponto de vista s o c i o l ó g i c o , das comunidades de todos os tipos — inclusive
e c o n ô m i c a s o u de g e s t ã o e c o n ô m i c a — que os c o m p r e e n d e m o u c o m eles coexistem.
A a f i r m a ç ã o de que existe u m a c o n e x ã o " f u n c i o n a l " entre a e c o n o m i a e as estruturas
sociais constitui t a m b é m u m preconceito muitas vezes carente de fundamentos histó-
ricos, se tomamos essa c o n e x ã o c o m o u m condicionamento r e c í p r o c o e u n í v o c o . Pois
as f o r m a s estruturais da a ç ã o d e comunidade, c o m o v e r e m o s repetidamente, t ê m sua
"legalidade intrínseca" e, m e s m o prescindindo-se desse fato, e m cada caso concreto
podem estar co-determinadas, e m sua f o r m a ç ã o , p o r outras causas e x t r a - e c o n ô m i c a s .
E m algum ponto, n o entanto, a situação da economia costuma ter importância causal
e f r e q ü e n t e m e n t e decisiva p a r a a estrutura de todas as comunidades, pelo menos p a r a
as das " c u l t u r a l m e n t e significativas". Por outro lado, a economia costuma t a m b é m ser
influenciada, d e a l g u m m o d o , pela estrutura, condicionada pela legalidade intrínseca,
da a ç ã o social dentro da qual se realiza. Nada de importante há p a r a se dizer, e m
geral, sobre q u a n d o e c o m o isso o c o r r e . Mas pode-se estabelecer regras gerais sobre
o g r a u de afinidade eletiva de determinadas f o r m a s estruturais concretas da a ç ã o social
c o m f o r m a s concretas da e c o n o m i a , isto é, sobre a f r e q ü ê n c i a e intensidade c o m que
estas se f a v o r e c e m reciprocamente o u , ao c o n t r á r i o , se i n i b e m o u se e x c l u e m , sendo
" a d e q u a d a s " o u " i n a d e q u a d a s " u m a e m r e l a ç ã o à outra. Semelhantes relações de ade-
q u a ç ã o serão examinadas repetidamente. E , a l é m disso, é possível estabelecer pelo
menos algumas regras gerais sobre o m o d o c o m o os interesses e c o n ô m i c o s costumam
conduzir a a ç õ e s sociais c o m determinado caráter.

§ 2. Relações e c o n ô m i c a s "abertas" e "fechadas"

U m a f o r m a muito f r e q ü e n t e de condicionamento e c o n ô m i c o , v e r i f i c a d a e m todos


os tipos de comunidade, é c r i a d a pela c o m p e t i ç ã o p o r oportunidades e c o n ô m i c a s : cargos
públicos, clientela, ensejos de ganhos mediante o c u p a ç ã o o u trabalho etc. C o m o cres-
cente n ú m e r o de concorrentes e m p r o p o r ç ã o à m a r g e m de a ç ã o aquisitiva aumenta
o interesse dos participantes na c o n c o r r ê n c i a e m limitar esse n ú m e r o d e alguma m a n e i -
r a . A f o r m a c o m o isso costuma o c o r r e r é aquela e m que se toma alguma característica
exteriormente c o m p r o v á v e l d e u m a parte dos concorrentes (efetivos o u potenciais)
— raça, idioma, religião, o r i g e m local o u social, d e s c e n d ê n c i a , d o m i c í l i o etc. — c o m o
base p a r a conseguir sua e x c l u s ã o da c o n c o r r ê n c i a . N ã o importa q u a l seja essa caracte-
rística, e m cada caso concreto: toma-se a p r i m e i r a que se apresente. A a ç ã o social
assim surgida d e u m a das partes pode p r o v o c a r u m a r e a ç ã o correspondente da o u t r a ,
contra a qual ela se dirige. O s concorrentes que a g e m e m c o m u m , apesar de a compe-
tição entre eles continuar, tornam-se, e m r e l a ç ã o ao e x t e r i o r , u m a " c o m u n i d a d e de
interessados"; cresce a t e n d ê n c i a a f a z e r surgir u m a " r e l a ç ã o associativa", d e qualquer
natureza, c o m u m a o r d e m r a c i o n a l e, persistindo o interesse monopolista, chega o
momento e m que os p r ó p r i o s concorrentes — o u alguma outra comunidade cujas a ç õ e s
os interessados p o d e m influenciar ( p o r e x e m p l o , a comunidade p o l í t i c a ) — e s t a b e l e c e m
u m a o r d e m que cria m o n o p ó l i o s p a r a limitar a c o n c o r r ê n c i a e, p a r a sua i m p o s i ç ã o
eventualmente coativa, determinadas pessoas estão aptas c o m o " ó r g ã o s " permanentes.
E m tal caso, a comunidade de interessados converte-se n u m a " c o m u n i d a d e j u r í d i c a " :
os participantes s ã o "consortes j u r í d i c o s " . E s s e processo de " f e c h a m e n t o " d e u m a co-
m u n i d a d e , c o m o o d e n o m i n a r e m o s , repete-se de m o d o típico, constituindo a o r i g e m
da " p r o p r i e d a d e " d e terras b e m c o m o a d e todos os m o n o p ó l i o s estamentais e de
232 MAX WEBER

outros grupos. Q u a n d o se trata d e u m a " o r g a n i z a ç ã o d e consortes" — e isso significa


sempre: u m a u n i ã o monopolista, fechada p a r a o e x t e r i o r , p o r e x e m p l o , d e pescadores
m o r a d o r e s d e determinado lugar e interessados e m pescar e m determinadas á g u a s ,
o u da f o r m a ç ã o d e u m a " a s s o c i a ç ã o d e engenheiros d i p l o m a d o s " que p r o c u r a i m p o r
u m m o n o p ó l i o j u r í d i c o o u efetivo sobre determinados cargos, e m c o n t r a p o s i ç ã o aos
n ã o - d i p l o m a d o s , o u do fechamento p a r a estranhos da p a r t i c i p a ç ã o n a utilização c o m u m
dos campos, pastos e outras terras de u m a aldeia, o u d e a u x i l i a r e s d e c o m é r c i o " n a c i o -
n a i s " , o u de ministeriais, cavaleiros, graduados de universidades, artesãos o u preten-
dentes à c a r r e i r a militar o u outros quaisquer que d e v e m ser naturais de determinado
país o u cidade e que d e s e n v o l v e m p r i m e i r o u m a a ç ã o de comunidade e depois, eventual-
mente, c h e g a m a constituir u m a r e l a ç ã o associativa, e m todos estes casos participa,
c o m o i m p u l s o b á s i c o , a tendência à m o n o p o l i z a ç ã o de determinadas oportunidades,
e m r e g r a de natureza e c o n ô m i c a . É u m a t e n d ê n c i a que se dirige contra outros concor-
rentes que se distinguem por alguma característica c o m u m , positiva o u negativa. E
o objetivo é s e m p r e , e m certo g r a u , o fechamento d o acesso d e estranhos a determinadas
oportunidades (sociais e e c o n ô m i c a s ) E s s e fechamento, q u a n d o conseguido, pode tra-
z e r resultados de alcance b e m d i v e r s o , particularmente n a m e d i d a e m que a atribuição
de oportunidades monopolizadas aos participantes individuais pode ser definitiva e m
graus muito distintos. T a i s oportunidades p o d e m ficar totalmente " a b e r t a s " dentro do
círculo dos privilegiados pelo m o n o p ó l i o , de m o d o que estes continuam competindo
l i v r e m e n t e entre s i . A s s i m , p o r e x e m p l o , n o caso das oportunidades de acesso limitadas
a pessoas c o m determinados diplomas (pretendentes qualificados, e m r e l a ç ã o a determi-
nados cargos, o u artesãos c o m e x a m e de m e s t r i a , e m r e l a ç ã o à c o n c o r r ê n c i a p o r clientela
o u a d m i s s ã o de a p r e n d i z e s ) As oportunidades p o d e m t a m b é m , d e alguma f o r m a , estar
fechadas para dentro. Isso o c o r r e d e diversas m a n e i r a s : através de u m " t u r n o " —
a este tipo pertence, e m sua finalidade, a n o m e a ç ã o p o r curto p r a z o de certos detentores
de prebendas ligadas a cargos p ú b l i c o s ; pela revogabilidade da atribuição de oportu
nidades a determinados indivíduos — p o r e x e m p l o , n o caso da disposição sobre os
campos, atribuída ao i n d i v í d u o na " r i g o r o s a " comunidade d e l a v o u r a d o mir russo;
pela vitaliciedade das oportunidades atribuídas — e isto, e m r e g r a , n o caso de preben-
das, cargos p ú b l i c o s , m o n o p ó l i o s d e mestres artesãos, direitos sobre pastos comunais
de aldeias e, originalmente, n o de atribuição d e parcelas de cultivo dentro da maioria
das comunidades de aldeia c o m terras c o m u n s etc; pela atribuição definitiva das oportu-
nidades aos indivíduos e seus h e r d e i r o s , ficando e x c l u í d a do p o d e r de disposição do
pretendente o u , pelo menos, limitada ao c í r c u l o dos m e m b r o s da comunidade somente
a c e s s ã o a terceiros — a este tipo pertencem o x X í j p o s , a prebenda militar da Antigui-
dade, os feudos de serviço dos ministeriais e os m o n o p ó l i o s hereditários de cargos
p ú b l i c o s o u de artesãos; p o r f i m , pelo fechamento p e r m a n e n t e somente d o n ú m e r o
das oportunidades, sendo que a a q u i s i ç ã o d e cada oportunidade i n d i v i d u a l das m ã o s
do detentor atual p o r u m terceiro qualquer é possível s e m conhecimento e a p r o v a ç ã o
dos outros m e m b r o s da comunidade, c o m o o c o r r e , n o caso d e a ç õ e s . A estes diferentes
estádios de fechamento interno m a i s o u menos definitivo da c o m u n i d a d e denominamos
estádios da apropriação das oportunidades sociais e e c o n ô m i c a s monopolizadas pela
comunidade. A l i b e r a ç ã o total das oportunidades m o n o p ó l i c a s apropriadas p a r a a troca
c o m o m u n d o e x t e r n o , isto é, sua t r a n s f o r m a ç ã o e m propriedade totalmente " l i v r e " ,
significa naturalmente o r o m p i m e n t o da antiga r e l a ç ã o associativa monopolista, e seu
caput mortuum — os poderes d e d i s p o s i ç ã o apropriados — encontra-se, agora, na
qualidade d e " d i r e i t o s a d q u i r i d o s " , nas m ã o s d e indivíduos n a e s f e r a d e troca de bens.
Pois toda " p r o p r i e d a d e " de bens naturais, s e m e x c e ç ã o , s u r g i u historicamente a partir
da a p r o p r i a ç ã o g r a d u a l d e partes pertencentes a m e m b r o s da c o m u n i d a d e monopo-
ECONOMIA E SOCIEDADE 233

lizadora, e os objetos da a p r o p r i a ç ã o e r a m , diversamente da situação atual, n ã o apenas


bens materiais concretos c o m o t a m b é m oportunidades sociais e e c o n ô m i c a s de todas
as espécies i m a g i n á v e i s . Naturalmente, o g r a u e a natureza da a p r o p r i a ç ã o , b e m c o m o
a facilidade c o m que se r e a l i z a o processo d e a p r o p r i a ç ã o dentro da comunidade, dife-
r e m muito, de a c o r d o c o m a natureza técnica dos objetos e das oportunidades de que
se trate — os quais p o d e m sugerir u m g r a u de a p r o p r i a ç ã o muito d i v e r s o . A oportu-
nidade, p o r e x e m p l o , d e obter bens de sustento o u d e a q u i s i ç ã o pelo cultivo d e d e t e r m i -
nada parcela de t e r r a está v i n c u l a d a a u m objeto m a t e r i a l manifesto e univocamente
delimitável, isto é , a p a r c e l a concreta e n ã o e x p a n s í v e l ; o que n ã o é o caso, p o r e x e m p l o ,
quando se trata de u m a " c l i e n t e l a " . O fato de o p r ó p r i o objeto r e n d e r alguma coisa
somente a p ó s medidas de m e l h o r a m e n t o , tornando-se, e m certo sentido, " p r o d u t o
de t r a b a l h o " dos usufrutuários, n ã o m o t i v a a a p r o p r i a ç ã o . Pois isto costuma o c o r r e r
e m g r a u muito m a i o r , a i n d a q u e d e m a n e i r a diferente, n o caso de u m a " c l i e n t e l a "
adquirida. Mas, do ponto de vista p u r a m e n t e t é c n i c o , o " c a d a s t r a m e n t o " — p o r assim
dizer — de u m a " c l i e n t e l a " n ã o é tão fácil quanto o d e u m p e d a ç o de t e r r a . O b v i a m e n t e
depende t a m b é m deste fator o g r a u d e a p r o p r i a ç ã o . Mas p a r a n ó s i m p o r t a constatar
que, e m p r i n c í p i o , a a p r o p r i a ç ã o é o m e s m o processo, tanto n o p r i m e i r o quanto n o
segundo caso, só que d i f e r e a facilidade d e sua realização: o " f e c h a m e n t o " t a m b é m
para dentro das oportunidades sociais o u e c o n ô m i c a s monopolizadas e m r e l a ç ã o aos
consortes. D e a c o r d o c o m isto, as comunidades estão " a b e r t a s " o u " f e c h a d a s " , e m
grau d i v e r s o , p a r a dentro e p a r a f o r a .

§ 3* F o r m a s d e c o m u n i d a d e s e i n t e r e s s e s e c o n ô m i c o s

Essa tendência monopolista assume e n t ã o f o r m a s específicas q u a n d o se trata d e


f o r m a ç õ e s comunitárias d e pessoas que, e m r e l a ç ã o a outras, se distinguem p o r u m a
qualidade c o m u m específica adquirida mediante e d u c a ç ã o , aprendizagem o u prática
— qualificações e c o n ô m i c a s d e qualquer tipo, o c u p a ç ã o de cargos p ú b l i c o s iguais o u
parecidos, o r i e n t a ç ã o da v i d a e m termos cavaleirescos o u ascéticos o u especificada
de o u t r o m o d o etc. Nestes casos, a a ç ã o social, q u a n d o dela resulta u m a r e l a ç ã o associa-
tiva, costuma dar a esta a f o r m a d e u m a "corporação". U m c í r c u l o de pessoas c o m
direitos plenos m o n o p o l i z a , c o m o " p r o f i s s ã o " , a disposição sobre os bens ideais, sociais
e e c o n ô m i c o s , os d e v e r e s e as p o s i ç õ e s sociais e m questão. E l e admite ao p l e n o e x e r c í c i o
da m e s m a p r o f i s s ã o somente aqueles que: 1 ) f i z e r a m u m noviciado p a r a p r e p a r a r - s e
segundo as n o r m a s profissionais; 2 ) c o m p r o v a r a m sua qualificação e 3 ) eventualmente
passaram p o r outros p e r í o d o s d e carência e p r e s t a r a m determinados serviços. E s s e
processo repete-se, muito tipicamente, desde as r e l a ç õ e s associativas hierárquicas das
associações estudantis até as o r d e n s cavaleirescas, p o r u m lado, e desde as c o r p o r a ç õ e s
de artesãos até as e x i g ê n c i a s d e q u a l i f i c a ç ã o dos f u n c i o n á r i o s e empregados m o d e r n o s ,
p o r outro. E m todos estes casos pode certamente entrar n o jogo t a m b é m o interesse
e m assegurar-se b o m r e n d i m e n t o , n o q u a l todos os participantes, apesar da c o n c o r r ê n c i a
eventualmente subsistente entre eles, p o d e m t a m b é m estar ideal e materialmente inte-
ressados: os artesãos locais, n o interesse da boa f a m a de seus produtos; os ministeriais
e cavaleiros de determinada o r d e m , n o interesse da boa f a m a de s u a eficiência e t a m b é m ,
diretamente, e m s e u interesse pessoal d e s e g u r a n ç a militar; as comunidades de ascetas,
n o interesse d e n ã o p r o v o c a r , p o r m a n i p u l a ç õ e s erradas, a i r a dos deuses e d e m ô n i o s
contra todos os m e m b r o s ( p o r e x e m p l o , aquele que, n a d a n ç a ritual, cantar de m o d o
falso, será logo m o r t o , c o m o castigo, e m quase todos os " p o v o s p r i m i t i v o s " ) . Mas,
e m g e r a l , destaca-se, e n t r e todos os interesses, aquele sobre a limitação da oferta de
234 MAX WEBER

pretendentes às prebendas e honras da p o s i ç ã o profissional e m questão. O s noviciados


e p e r í o d o s de c a r ê n c i a , b e m c o m o as " o b r a s - p r i m a s " o u quaisquer que s e j a m as condi-
ç õ e s (particularmente: ricos presentes aos consortes), f r e q ü e n t e m e n t e e x i g e m dos pre-
tendentes muito mais u m e m p e n h o e c o n ô m i c o d o que u m a q u a l i f i c a ç ã o propriamente
dita.
Semelhantes tendências monopolistas e c o n s i d e r a ç õ e s e c o n ô m i c a s afins muitas
vezes d e s e m p e n h a r a m historicamente u m papel importante na o b s t r u ç ã o da e x p a n s ã o
das comunidades. A política de cidadania na democracia ática, p o r e x e m p l o , que p r o c u -
r o u fechar progressivamente o círculo dos participantes e m suas vantagens, p ô s limites
à e x p a n s ã o do p o d e r político. O u t r a c o n s t e l a ç ã o de interesses e c o n ô m i c o s , p o r é m de
natureza semelhante, paralisou a propaganda dos quacres. O proselitismo do islã, origi-
nalmente e x i g ê n c i a puramente religiosa, encontrou seus limites n o interesse da camada
de g u e r r e i r o s conquistadores na p e r m a n ê n c i a de u m a p o p u l a ç ã o não-islâmica e, portan-
to, c o m menos direitos, sujeita às tarefas e tributos exigidos p a r a o sustento dos crentes
c o m plenos direitos — u m a situação que representa o tipo d e muitos f e n ô m e n o s seme-
lhantes.
T a m b é m é típico o caso e m que determinadas pessoas r e t i r a m sua existência,
ideal o u economicamente, " d a " aceitação da r e p r e s e n t a ç ã o dos interesses de u m a comu-
nidade o u sob outro aspecto, da existência da m e s m a e que, e m c o n s e q ü ê n c i a disso,
a a ç ã o social se propaga, p e r d u r a e chega a constituir u m a r e l a ç ã o associativa e m casos
nos quais isto, e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s , n ã o teria o c o r r i d o . Idealmente, tal interesse
pode ter fundamentos de natureza mais diversa: os i d e ó l o g o s do r o m a n t i s m o e seus
seguidores, p o r e x e m p l o , incitaram, n o s é c u l o X I X , muitas comunidades de povos "inte-
ressantes" c o m línguas e m d e c a d ê n c i a ao cultivo consciente de seu idioma. Professores
a l e m ã e s de escolas e faculdades a j u d a r a m a p r e s e r v a r pequenas comunidades de línguas
eslavas c o m as quais se o c u p a r a m , sentindo a necessidade ideal de escrever livros sobre
elas. T o d a v i a essa " v i d a " puramente i d e o l ó g i c a de u m a comunidade n ã o é u m a alavanca
tão forte c o m o a propiciada pelo interesse e c o n ô m i c o . Mas q u a n d o u m g r u p o de pessoas
paga a a l g u é m p a r a que este se mantenha constantemente pronto ( c o m o " p o r t a - v o z " )
a cuidar de m o d o planejado dos interesses comuns de todos, o u q u a n d o semelhante
r e p r e s e n t a ç ã o de interesses traz algum " g a n h o " direto o u indireto, cria-se assim uma
r e l a ç ã o associativa que, e m todas as circunstâncias, constitui u m a forte garantia para
a subsistência da a ç ã o social. Trata-se d e propaganda paga a f a v o r d e interesses sexuais
(ocultos o u n ã o ) o u de outros interesses " i d e a i s " o u e c o n ô m i c o s (sindicatos de empre-
gados o u de empregadores e o r g a n i z a ç õ e s s e m e l h a n t e s ) de conferencistas pagos " p o r
p e ç a " o u de " s e c r e t á r i o s " que r e c e b e m salários, o u d e outros casos parecidos — de
todo m o d o , e x i s t e m pessoas " p r o f i s s i o n a l m e n t e " interessadas e m conservar o n ú m e r o
de m e m b r o s antigos e e m ganhar novos. U m a " e m p r e s a " racional e planejada tomou
o lugar da a ç ã o ocasional, i r r a c i o n a l e intermitente, e continua funcionando, mesmo
que o entusiasmo o r i g i n a l dos p r ó p r i o s participantes p o r seus ideais já tenha cessado
há m u i t o tempo.

Interesses p r o p r i a m e n t e "capitalistas" p o d e m estar envolvidos bastante distinta-


mente n a p r o p a g a ç ã o de determinada a ç ã o social. A s s i m , p o r e x e m p l o , os proprietários
de estoques de m a t e r i a l p a r a i m p r e n s a e m tipos góticos interessam-se n a continuação
do e m p r e g o dessa f o r m a de escrita " n a c i o n a l " . O u os donos de c e r v e j a r i a s que, apesar
d o boicote militar, p õ e m seus salões à disposição p a r a r e u n i õ e s de social-democratas
e, p o r isso, t ê m interesse n o n ú m e r o de m e m b r o s d o partido. T o d o s n ó s conhecemos
i n ú m e r o s exemplos desses tipos d e a ç ã o social.
O elemento c o m u m a todos os casos de interesse e c o n ô m i c o do g ê n e r o , por
parte seja dos empregados seja dos poderes capitalistas, está e m q u e o interesse no
ECONOMIA E SOCIEDADE 235

" c o n t e ú d o " dos ideais c o m u n s dos m e m b r o s passa necessariamente ao segundo p l a n o


e m r e l a ç ã o ao interesse na subsistência o u n a p r o p a g a ç ã o da c o m u n i d a d e c o m o t a l ,
seja qual f o r o c o n t e ú d o de suas a ç õ e s . U m excelente e x e m p l o está n o esvaziamento
total d e ideais objetivos e f i r m e s dos partidos americanos. Mas o e x e m p l o m á x i m o
está naturalmente na articulação típica de interesses capitalistas c o m a e x p a n s ã o de
comunidades políticas, que desde s e m p r e existiu. Por u m lado, é m u i t o g r a n d e a possibi-
lidade de i n f l u e n c i a r a v i d a e c o n ô m i c a através dessas comunidades e, p o r o u t r o , elas
podem conseguir rendas e n o r m e s por meios coativos e dispor delas, de m o d o que,
direta o u indiretamente, os m a i o r e s ganhos s ã o obtidos p o r s e u i n t e r m é d i o : direta-
mente, por aceit ação de serviços pagos o u pela a n t e c i p a ç ã o de rendas, e indiretamente,
pela e x p l o r a ç ã o de objetos politicamente utilizados. Na Antiguidade e nos inícios da
é p o c a m o d e r n a o c a m p o de a ç ã o p r i n c i p a l da a q u i s i ç ã o capitalista encontrou-se e m
tais ganhos " i m p e r i a l i s t a s " , obtidos pelas relações c o m o p o d e r político c o m o t a l , e
hoje e m dia este c a m p o volta a deslocar-se progressivamente naquela d i r e ç ã o . T o d a
e x p a n s ã o da área de p o d e r de semelhante comunidade aumenta e n t ã o as oportunidades
de g a n h o dos interessados e m q u e s t ã o .
A esses interesses e c o n ô m i c o s , que atuam n o sentido da p r o p a g a ç ã o de u m a c o m u -
nidade, o p õ e m - s e , e m certas circunstâncias, a l é m dos interesses monopolistas já mencio-
nados, outros, alimentados precisamente pelo caráter fechado e e x c l u s i v o de u m a c o m u -
nidade. J á constatamos anteriormente, de m o d o g e r a l , que quase toda associação o r i e n -
tada p a r a u m objetivo e baseada na a d e s ã o voluntária dos m e m b r o s , costuma c r i a r ,
para a l é m do resultado imediato ao q u a l se dirige a a ç ã o socialmente orientada, relações
entre os m e m b r o s , que, e m certas circunstâncias, p o d e m constituir a base de u m a
a ç ã o social dirigida a resultados muito h e t e r o g ê n e o s : à r e l a ç ã o associativa segue-se,
e m r e g r a , u m a r e l a ç ã o comunitária mais c o m p l e x a que a abrange. É c l a r o que isto
ocorre apenas n u m a parte das r e l a ç õ e s associativas, a saber, naquelas e m que a a ç ã o
social p r e s s u p õ e algum contato " p e s s o a l " e n ã o puramente de " n e g ó c i o " . A qualidade
de " a c i o n i s t a " , p o r e x e m p l o , é a d q u i r i d a s e m c o n s i d e r a r e m qualidades pessoais e h u m a -
nas e, e m regra, s e m conhecimento e a p r o v a ç ã o dos demais acionistas, simplesmente
e m v i r t u d e de u m ato e c o n ô m i c o de troca de ações. O m e s m o v a l e p a r a quase todas
as relações associativas nas quais a a d m i s s ã o depende de u m a c o n d i ç ã o o u de u m ato
puramente f o r m a l e que r e n u n c i a m ao e x a m e pessoal d e cada i n d i v í d u o . Isto o c o r r e
c o m muita f r e q ü ê n c i a e m certos tipos de comunidades puramente e c o n ô m i c a s , b e m
c o m o e m algumas u n i õ e s c o m fins puramente políticos, e tanto mais torna-se a r e g r a
quanto mais racional e específica seja a finalidade da u n i ã o . Mesmo assim, há muitas
relações associativas nas quais, p o r u m lado, a a d m i s s ã o p r e s s u p õ e , expressa o u tacita-
mente, certas q u a l i f i c a ç õ e s específicas e, p o r outro, e m c o n e x ã o c o m aquela c o n d i ç ã o ,
realiza-se regularmente aquela r e l a ç ã o c o m u n i t á r i a mais c o m p l e x a e abrangente. E
isto particularmente q u a n d o os m e m b r o s v i n c u l a m a a d m i s s ã o de cada candidato a
u m e x a m e e ao consentimento dos outros m e m b r o s . Neste caso, os m e m b r o s costumam
e x a m i n a r n ã o apenas as f u n ç õ e s e a capacidade do candidato i n d i v i d u a l , n a q u i l o que
diz respeito às finalidades expressas da associação, mas t a m b é m seu " s e r " , o v a l o r
de sua personalidade global. N ã o é este o lugar adequado p a r a classificar as relações
associativas segundo a intensidade c o m que nelas atua esse fator de seleção. Basta
dizer que ele de fato existe nos tipos mais diversos de relações associativas. N ã o apenas
as seitas religiosas c o m o t a m b é m u n i õ e s d e caráter social, p o r e x e m p l o os círculos
de v e t e r a n o s de g u e r r a o u até clubes de boliche, n ã o a d m i t e m , e m g e r a l , a paticipação
de pessoas cuja personalidade global n ã o convenha aos demais m e m b r o s . É justamente
esse elemento q u e " l e g i t i m a " a pessoa admitida e m r e l a ç ã o ao m u n d o e x t e r n o , e m
face de t e r c e i r o s , e m muito m a i o r medida do que suas qualidades importantes p a r a
236 MAX WEBER

os fins da associação. A l é m disso, a participação n a a ç ã o social proporciona-lhe r e l a ç õ e s


( " c o n e x õ e s " ) que atuam e m s e u f a v o r muito a l é m d o c í r c u l o dos fins especiais da
associação. Por isso, é u m f e n ô m e n o cotidiano o fato d e que estas pessoas p e r t e n ç a m
a u m a associação religiosa, estudantil, política o u outra qualquer, apesar de indiferentes
aos interesses n e l a cultivados simplesmente p o r causa das " l e g i t i m a ç õ e s " e " c o n e x õ e s "
economicamente aproveitáveis que elas p r o p i c i a m . E n q u a n t o estes motivos p o r s i cons-
tituem u m forte e s t í m u l o p a r a a participação na c o m u n i d a d e e portanto p a r e c e m f o m e n -
tar sua p r o p a g a ç ã o , o interesse dos m e m b r o s e m m o n o p o l i z a r aquelas vantagens e
e m aumentar seu v a l o r útil e c o n ô m i c o pela limitação das vantagens a o m e n o r e mais
e x c l u s i v o c í r c u l o possível atua e m sentido contrário. E quanto m e n o r e m a i s exclusivo
este seja, tanto m a i s alto está, ao l a d o d o v a l o r útil direto, o prestígio social propor-
cionado pela pertinência.
Por f i m cabe tocar b r e v e m e n t e n u m a r e l a ç ã o muito f r e q ü e n t e entre a economia
e a a ç ã o social: a c o l o c a ç ã o consciente da perspectiva d e vantagens e c o n ô m i c a s concre-
tas, n o interesse da p r o p a g a ç ã o e c o n s e r v a ç ã o de u m a c o m u n i d a d e p r i m a r i a m e n t e extra-
e c o n ô m i c a . D e acordo c o m sua p r ó p r i a n a t u r e z a , isto o c o r r e particularmente quando
várias comunidades de caráter semelhante c o m p e t e m entre s i p o r m e m b r o s . A s s i m ,
p o r e x e m p l o , e m partidos políticos e comunidades religiosas. A s seitas americanas c o m -
petem p o r m e i o d e apresentações artísticas e d e outro tipo, d i v e r s õ e s d e todas as espé-
cies, incluindo atividades esportivas, e pela facilitação da a d m i s s ã o de pessoas divor-
ciadas que desejam a b ê n ç ã o d e u m n o v o casamento (a facilitação ilimitada nesta área
f o i restringida, há pouco tempo, pela f o r m a ç ã o de u m v e r d a d e i r o " c a r t e l " ) O s partidos
religiosos e políticos o r g a n i z a m , a l é m d e e x c u r s õ e s e coisas semelhantes, t a m b é m "asso-
c i a ç õ e s de j o v e n s " , " g r u p o s de m u l h e r e s " e tc . , e p o r toda parte participam zelosamente
e m assuntos p u r a m e n t e locais o u outros totalmente apolíticos que lhes d ã o a oportu-
nidade, competindo entre s i , de f a z e r f a v o r e s e c o n ô m i c o s a interessados locais privados.
A i n v a s ã o de comunidades m u n i c i p a i s o u cooperativistas o u outras p o r semelhantes
grupos políticos, religiosos o u outros está condicionada, e m alto g r a u , de m o d o direta-
mente e c o n ô m i c o , p e l o fato de oferecer a oportunidade de p r o p o r c i o n a r aos funcio-
nários da comunidade [invasora] prebendas e prestígio social, descarregando-se assim
os custos da o r g a n i z a ç ã o p r ó p r i a a outras comunidades. Instituições municipais o u coo-
perativistas o u d e associações de consumidores, b e m c o m o de caixas de previdência
o u de sindicatos, s ã o objetos apropriados p a r a isso. E , naturalmente, e m m a i o r escala,
prebendas e cargos políticos e outras p o s i ç õ e s sociais o u consideradas oportunidades
de r e n d a , a s e r e m conferidas p e l o p o d e r p o l í t i c o , entre elas as cátedras universitárias.
O sistema " p a r l a m e n t a r " oferece a comunidades de todas as espécies, desde que sejam
suficientemente fortes e m r e l a ç ã o ao n ú m e r o d e m e m b r o s , a oportunidade de arranjar
para seus líderes e m e m b r o s tais meios de sustento, c o m o f a z e m os p r ó p r i o s partidos
políticos, que n o r m a l m e n t e se c a r a c t e r i z a m precisamente p o r este procedimento. Nesse
contexto, interessa constatar somente o fato g e r a l d e que t a m b é m as comunidades extra-
e c o n ô m i c a s c r i a m diretamente o r g a n i z a ç õ e s e c o n ô m i c a s , particularmente p a r a fins de
propaganda. Parte considerável da atividade caritativa m o d e r n a das comunidades reli-
giosas s e r v e p a r a isso. Muito m a i s a i n d a a f u n d a ç ã o d e sindicatos e caixas de socorro
" c r i s t ã o s " , " l i b e r a i s " , " s o c i a l i s t a s " o u " n a c i o n a i s " e a c r i a ç ã o de oportunidades de
p o u p a n ç a e de seguros. A l é m destas, e m g r a n d e escala, e n t r a n o caso a f u n d a ç ã o de
associações de consumidores e de cooperativas — e m algumas cooperativas italianas
e r a n e c e s s á r i o apresentar u m c o m p r o v a n t e de c o n f i s s ã o p a r a conseguir trabalho. Para
os poloneses na A l e m a n h a 1 desenvolveu-se e x t r a o r d i n a r i a m e n t e a o r g a n i z a ç ã o d o crédi-

1 Antes de 1918. (Nota do organizador.)


ECONOMIA E SOCIEDADE 237

to, d o pagamento d e dívidas e da m o r a d i a , e os partidos russos d e todas as tendências


t o m a r a m , imediata e sistematicamente, caminhos semelhantes e e x t r e m a m e n t e m o d e r -
nos n a é p o c a da r e v o l u ç ã o 1 . H o u v e t a m b é m a f u n d a ç ã o de empreendimentos aquisitivos:
bancos, hotéis ( c o m o a H ô t e l l e r i e d u Peuple, socialista, e m O s t e n d e ) e, p o r f i m , d e
empreendimentos industriais produtivos ( t a m b é m n a B é l g i c a ) O s grupos que d e t ê m
o poder d e n t r o de u m a comunidade política, portanto, principalmente, os f u n c i o n á r i o s ,
costumam utilizar esses meios p a r a c o n s e r v a r sua p o s i ç ã o de poder, r e c o r r e n d o desde
a f o r m a ç ã o de u n i õ e s " p a t r i ó t i c a s " e de o r g a n i z a ç õ e s de todas as espécies, c o m conces-
s ã o d e vantagens e c o n ô m i c a s , até a c r i a ç ã o de fundos de crédito burocraticamente
controlados ( " C a i x a P r u s s i a n a " ) e coisas semelhantes. N ã o podemos e x p o r a q u i os deta-
lhes técnicos de todos estes meios de propaganda.
Cabe somente constatar, de m o d o g e r a l , c o m algumas ilustrações particularmente
típicas, as a ç õ e s convergentes e divergentes dos interesses e c o n ô m i c o s que o p e r a m ,
p o r u m lado, n o sentido da propaganda e, p o r outro, n o de m o n o p o l i z a ç ã o , n o interior
de comunidades d e todas as espécies. D e v e m o s r e n u n c i a r ao e x a m e dos p o r m e n o r e s ,
u m a v e z que isso r e q u e r e r i a u m a investigação especial de todos os tipos de relações
associativas.

§ 4. T i p o s d e o b t e n ç ã o d e s e r v i ç o s e c o n ô m i c o s
p o r c o m u n i d a d e s " d e g e s t ã o e c o n ô m i c a " e a s formas d e e c o n o m i a

T e m o s ainda de ocupar-nos b r e v e m e n t e d o tipo mais ó b v i o de articulação da


a ç ã o social c o m a " e c o n o m i a " , o u seja, da circunstância de que u m a p a n e muito g r a n d e
das comunidades é constituída d e comunidades " d e g e s t ã o e c o n ô m i c a " . Para que estas
existam é necessário h a v e r , e m c o n d i ç õ e s n o r m a i s e e m certo g r a u , u m a r e l a ç ã o associa-
tiva r a c i o n a l , que, entretanto, n ã o é indispensável, pois as estruturas nascidas da c o m u n i -
dade d o m é s t i c a , às quais v o l t a r e m o s mais tarde, c a r e c e m por inteiro dela. Contudo,
o n o r m a l é que ela exista.
N u m a a ç ã o social que se d e s e n v o l v e u até tornar-se " r e l a ç ã o associativa" r a c i o n a l
existe, quando a a ç ã o social exige bens e serviços e c o n ô m i c o s , u m a r e g r a estatuída
de acordo c o m a q u a l estes s ã o obtidos. E m p r i n c í p i o , é o que pode o c o r r e r de acordo
c o m os seguintes tipos " p u r o s " (cujos e x e m p l o s tomamos, n o possível, da v i d a da c o m u -
nidade política, p o r q u e esta possui os sistemas m a i s desenvolvidos p a r a sua o b t e n ç ã o )
1) Na f o r m a de u m oikos, isto é, u m a e c o n o m i a puramente coletiva e n ã o - m o n e t á r i a :
i m p o s i ç ã o de prestações e m e s p é c i e diretas e pessoais dos m e m b r o s , segundo regras
fixas, iguais p a r a todos o u especificadas (serviço militar " g e r a l " o b r i g a t ó r i o de todos
os h o m ens aptos o u s e r v i ç o militar especificado, c o m o " a r t e s ã o a s e r v i ç o da e c o n o m i a " )
e distribuição d o f o r n e c i m e n t o dos objetos necessitados ( p o r e x e m p l o , p a r a a mesa
do p r í n c i p e o u p a r a a a d m i n i s t r a ç ã o m i l i t a r ) e m f o r m a d e prestações fixas e obrigatórias,
e m espécie. O c o r r e n a f o r m a de u m a e c o n o m i a coletiva que n ã o trabalha p a r a o m e r c a d o
e que constitui u m a parte da a ç ã o social ( p o r e x e m p l o , u m a fazenda s e n h o r i a l o u p r i n c i -
pesca, c o m o e c o n o m i a a u t ô n o m a — o tipo p u r o d o oikos — o u , n u m caso especial,
u m a a d m i n i s t r a ç ã o militar totalmente baseada e m serviços e prestações e m e s p é c i e ,
c o m o a v e r i f i c a d a a p r o x i m a d a m e n t e n o antigo E g i t o ) 2 ) Na f o r m a d e tributos e ( e m
e c o n o m i a de m e r c a d o ) d e impostos obrigatórios, contribuições ( r e g u l a r e s ) o u prestações
ocasionais vinculadas a determinados processos, entregues pelos m e m b r o s cia c o m u n i -
dade, s e g u n d o regras estabelecidas, o f e r e c e m a possibilidade de se o b t e r e m n o m e r c a d o
os m e i o s p a r a satisfazer as necessidades, comprando-se, portanto, os meios materiais

1905-1906. (Nota do organizador.)


238 MAX WEBER

de m a n u t e n ç ã o e " a l u g a n d o - s e " trabalhadores, f u n c i o n á r i o s e m e r c e n á r i o s . O s tributos


t a m b é m p o d e m assim ter caráter de contribuições. A s s i m , p o r e x e m p l o , o encargo
de todas as pessoas, m e s m o daquelas que de resto n ã o t o m a m parte na a ç ã o social,
que a ) participam de certas vantagens e oportunidades oferecidas pela comunidade,
particularmente de serviços de u m a instituição social c r i a d a pela comunidade (por e x e m -
plo, p a r a o cadastramento de propriedades o u outra q u a l q u e r ) o u de u m b e m e c o n ô m i c o
(por e x e m p l o , u m a estrada p o r ela construída), segundo o p r i n c í p i o d e pagamento
por u m serviço especial (taxas, n o sentido técnico da p a l a v r a ) o u que b) simplesmente
e n t r a m fisicamente na esfera de poder efetiva da c o m u n i d a d e (tributos de m o r a d o r e s
o u taxas aduaneiras p a r a pessoas e bens que somente passam pelo território dominado).
3 ) Na f o r m a de u m a economia aquisitiva-, pela v e n d a n o m e r c a d o de produtos e serviços
de u m a empresa própria que constitui parte integrante da a ç ã o social e cujos lucros
s ã o empregados p a r a fins c o m u n s da associação. Pode ser u m e m p r e e n d i m e n t o " l i v r e " ,
s e m garantia f o r m a l de m o n o p ó l i o ( c o m o a Seehandlung prussiana e a G r a n d e C h a r t r e u -
s e ) o u monopolista, c o m o os que existiam e m grande n ú m e r o n o passado e ainda
hoje existem (correios). É evidente que entre estes três tipos conceitualmente mais
c o n s e q ü e n t e s s ã o possíveis as mais diversas c o m b i n a ç õ e s . Serviços pessoais p o d e m ser
"resgatados" e m d i n h e i r o , bens e m e s p é c i e p o d e m ser convertidos e m d i n h e i r o n o
m e r c a d o , os bens materiais exigidos p a r a a e m p r e s a aquisitiva p o d e m ser obtidos direta-
mente, e m f o r m a de entregas e m e s p é c i e , o u n o m e r c a d o , c o m os meios recebidos
c o m o tributos e m d i n h e i r o , e n f i m , todos os componentes destes três " t i p o s " p o d e m
ser combinados uns c o m os outros, o que de fato quase s e m p r e ocorre. 4 ) Na forma
de mecenato-, p o r contribuiçõs puramente voluntárias de pessoas economicamente'capa-
citadas e, de alguma f o r m a , interessadas m a t e r i a l o u idealmente nos fins da comunidade,
sejam estas participantes o u n ã o nas demais ações sociais ( f o r m a típica de p r o v i s ã o
de necessidades e m comunidades religiosas e de partidos: d o a ç õ e s p a r a fins religiosos,
s u b v e n ç ã o de partidos p o r grandes doadores e t a m b é m as ordens mendicantes e os
" p r e s e n t e s " voluntários aos príncipes, nos tempos primitivos). N ã o há regra f i x a , obriga-
ç ã o , b e m c o m o u m a c o n e x ã o entre a c o n t r i b u i ç ã o e a participação na a ç ã o social:
o mecenas pode estar completamente ausente do c i r c u l o dos participantes. 5 ) Mediante
encargo privilegiante — e isto e m sentido positivo o u negativo, a ) O encargo positiva-
mente privilegiante o c o r r e , n ã o exclusivamente, mas na m a i o r i a das v e z e s , e m troca
da garantia de determinado m o n o p ó l i o e c o n ô m i c o o u social e v i c e - v e r s a : determinados
estamentos privilegiados o u grupos monopolizadores estão total o u p a r c i a l m e n t e isentos
de tributos. Isto é, os tributos e serviços o b r i g a t ó r i o s n ã o se r e f e r e m , segundo regras
gerais, a determinadas categorias d e p a t r i m ô n i o o u r e n d a o u a determinadas formas
de p r o p r i e d a d e o u atividade aquisitiva, às quais cada qual t e m (pelo menos, e m princí-
p i o ) acesso l i v r e , mas à natureza das p o s i ç õ e s de poder o u dos m o n o p ó l i o s específicos
— e c o n ô m i c o s , políticos o u outros — garantidos pela comunidade a indivíduos ou
grupos (propriedade de latifúndios, privilégios tributários o u tributos especiais de deter-
minadas c o r p o r a ç õ e s o u estamentos) E isso c o m o " c o n t r a p a r t i d a " , c o m o " p a g a m e n t o "
por essa garantia o u a p r o p r i a ç ã o privilegiante. O m o d o de p r o v e r as necessidades cria
o u f i x a , portanto, u m a estuturação monopolista dos m e m b r o s da comunidade c o m
base n o " f e c h a m e n t o " das oportunidades sociais e e c o n ô m i c a s d e cada camada social.
Nessa f o r m a de p r o v i s ã o de necessidades enquadram-se, t a m b é m , conceitualmente e
c o m o caso especial importante, todas as f o r m a s , e x t r e m a m e n t e diversas entre s i , de
p r o v i s ã o " f e u d a l " o u " p a t r i m o n i a l " da necessidade de meios d e poder políticos, os
quais estão vinculados a posições d e p o d e r apropriadas e s e r v e m p a r a a realização
das a ç õ e s da r e l a ç ã o associativa ( n a comunidade estamental, c a b e ao príncipe custear,
a partir d e sua p r o p r i e d a d e p a t r i m o n i a l , o ô n u s da a ç ã o política da comunidade; os
ECONOMIA E SOCIEDADE 239

participantes feudais do poder político o u p a t r i m o n i a l e da h o n r a social — vassalos,


ministeriais etc. — c o b r e m c o m seus p r ó p r i o s meios as necessidades de g u e r r a . e de
administração). Mas t a m b é m n o capitalismo p o d e m ser encontrados processos a n á l o g o s
de p r o v i m e n t o privilegiante de necessidades: o poder político garante, p o r e x e m p l o ,
expressa o u indiretamente, a u m grupo de e m p r e s á r i o s u m m o n o p ó l i o e lhes i m p õ e ,
e m troca, c o n t r i b u i ç õ e s diretas o u e m f o r m a de tributos. E s s a f o r m a de encargo p r i v i l e -
giante, bastante divulgada na é p o c a " m e r c a n t i l i s t a " , v o l t o u a desempenhar u m p a p e l
progressivamente importante e m nosso tempo' (imposto sobre a aguardente, n a A l e m a -
nha), b) A p r o v i s ã o de necessidades negativamente privilegiante é a litúrgica-, certas
prestações economicamente onerosas, de natureza especificada, o u estão vinculadas
a determinado v a l o r do p a t r i m ô n i o c o m o tal, e n ã o monopolicamente privilegiado —
estabelecendo-se eventualmente u m t u r n o entre os qualificados (trierarcos e coregos,
e m Atenas; arrendatários f o r ç a d o s de arrecadamento de impostos, nos Estados h e l é n i -
c o s ) liturgia de classe — o u a determinadas comunidades monopolistas, de tal m o d o
que os contribuintes individuais, n o interesse d o p r o v i m e n t o das necessidades sociais,
n ã o p o d e m afastar-se dessas comunidades, existindo p a r a eles u m c o m p r o m i s s o ( r e s p o n -
sabilidade solidária). As c o r p o r a ç õ e s obrigatórias n o antigo Egito e n o f i m da Antigui-
dade, a v i n c u l a ç ã o hereditária dos camponeses russos à comunidade de aldeia, respon-
sável pelos impostas, a v i n c u l a ç ã o m a i s o u m e n o s f i r m e à gleba dos colonos e campo-
neses de todos os tempos, e sua responsabilidade c o m u n a l solidária pelos impostos
e (eventualmente) pelos recrutas, a responsabilidade solidária dos d e c u r i õ e s r o m a n o s
pelos tributos que e r a m obrigados a r e c o l h e r etc., tudo isso constitui liturgia estamental.
As últimas f o r m a s (as d o t ó p i c o 5 ) d e o b t e n ç ã o dos meios p a r a s u p r i r as necessidades
da comunidade estão n o r m a l m e n t e adstritas, p o r sua própria natureza, a comunidades
institucionais c o m participação obrigatória (sobretudo as políticas).

§ 5. E f e i t o s d o p r o v i m e n t o d a s n e c e s s i d a d e s e d a d i s t r i b u i ç ã o d o s e n c a r g o s
nas comunidades. Ordens de regulação e c o n ô m i c a

A s f o r m a s de p r o v i m e n t o das necessidades, s e m p r e resultado de lutas de interes-


ses, t ê m f r e q ü e n t e m e n t e u m a importância que v a i muito a l é m de sua finalidade direta.
Pois podem ter por c o n s e q ü ê n c i a , e m grande e x t e n s ã o , ordens " r e g u l a d o r a s da econo-
m i a " ( c o m o particularmente os últimos tipos m e n c i o n a d o s ) e, m e s m o onde isso n ã o
o c o r r e de m a n e i r a direta, i n f l u e n c i a r fortemente o desenvolvimento e a d i r e ç ã o tomada
pela g e s t ã o e c o n ô m i c a . A s s i m , p o r e x e m p l o , a [importância] da p r o v i s ã o de necessidades
litúrgico-estamental p a r a o " f e c h a m e n t o " das oportunidades sociais e e c o n ô m i c a s , e
para a f i x a ç ã o da estrutura estamental e, c o m isso, p a r a a e x c l u s ã o da f o r m a ç ã o de
u m capital aquisitivo p r i v a d o . A s s i m t a m b é m todo p r o v i m e n t o de necessidades [das
comunidades] realizada, e m grande escala, c o m base n u m a economia coletiva o u aquisi-
tiva o u c r i a d o r a de m o n o p ó l i o s . As duas p r i m e i r a s atuam s e m p r e n o sentido de e l i m i n a r
a economia aquisitiva p r i v a d a ; a última, de m a n e i r a muito d i v e r s a , dependendo das
circunstâncias, mas s e m p r e , naturalmente, n o sentido do deslocamento, às v e z e s , tam-
b é m , da estimulação e, às v e z e s , a i n d a , da o b s t r u ç ã o das oportunidades lucrativas do
capital privado. Isto depende da e x t e n s ã o , da natureza e do r u m o do m o n o p o l i s m o
estatalmente fomentado. A transição progressiva d o I m p é r i o R o m a n o p a r a a p r o v i s ã o
de necessidades litúrgico-estamental ( e , parcialmente, ao lado desta, p a r a aquela e m
f o r m a d e e c o n o m i a coletiva) a s f i x i o u o capitalismo da Antiguidade. O s e m p r e e n d i -
mentos aquisitivos municipais e estatais do presente e m parte deslocam, e m parte e l i m i -

1 Escrito antes de 1914. (Nota do organizador.)


240 MAX WEBER

n a m o capitalismo: o fato de as bolsas a l e m ã s , desde a estatização das f e r r o v i a s , t e r e m


deixado de cotar v a l o r e s ferroviários é importante n ã o apenas p a r a a p o s i ç ã o delas,
mas t a m b é m p a r a o m o d o de f o r m a ç ã o de capital. T o d o f a v o r e c i m e n t o e toda estabili-
z a ç ã o d e m o n o p ó l i o s vinculados c o m c o n t r i b u i ç õ e s ao Estado (como, p o r e x e m p l o ,
no caso d o imposto sobre a aguardente, na A l e m a n h a e t c . ) limita a e x p a n s ã o d o capita-
lismo ( u m e x e m p l o é o nascimento de destilarias p u r a m e n t e i n d u s t r i a i s ) O s m o n o p ó l i o s
mercantis e coloniais da Idade M é d i a e dos c o m e ç o s da é p o c a m o d e r n a inicialmente
e s t i m u l a r a m , ao contrário, o nascimento d o capitalismo, u m a v e z q u e , nas circunstâncias
dadas, somente pela m o n o p o l i z a ç ã o podia ser assegurada u m a m a r g e m de l u c r o sufi-
ciente p a r a os empreendimentos capitalistas. No desenvolvimento u l t e r i o r , p o r é m —
c o m o f o i na Inglaterra d o s é c u l o X V I I — , a t u a r a m contra o interesse de rentabilidade
do capital, que p r o c u r o u o ó t i m o das oportunidades de investimento, e e n f r e n t a r a m
u m a o p o s i ç ã o veemente, à q u a l s u c u m b i r a m . N ã o é u n í v o c o , portanto, o efeito n o
caso dos privilégios m o n o p ó l i c o s fiscalmente condicionados. S e m p r e f a v o r á v e l ao de-
senvolvimento capitalista é, ao contrário, a p r o v i s ã o de necessidades de caráter p u r a -
mente fiscal e de m e r c a d o , o u seja, e m sua f o r m a m a i s e x t r e m a , a p r o v i s ã o de todas
as necessidades, se possível, e t a m b é m das administrativas, realizada pela m e l h o r oferta
n o m e r c a d o l i v r e . Isso i n c l u i , t a m b é m , p o r e x e m p l o , a transferência d o recrutamento
e " t r e i n a m e n t o " militar a e m p r e s á r i o s p r i v a d o s ( c o m o os condottieri, n o início da é p o c a
m o d e r n a ) e a o b t e n ç ã o de todos os meios mediante impostos e m d i n h e i r o . É c l a r o
que esse sistema p r e s s u p õ e u m a economia m o n e t á r i a plenamente desenvolvida, a l é m
de, do ponto de vista puramente técnico-administrativo, u m m e c a n i s m o administrativo
rigorosamente r a c i o n a l e c o m funcionamento pre c i s o , isto é , de caráter " b u r o c r á t i c o " .
Isto aplica-se especialmente à tributação da " p r o p r i e d a d e " m ó v e l , a q u a l , p o r toda
parte e particularmente n a " d e m o c r a c i a " , topa c o m dificuldades peculiares. C a b e a q u i
e x p o r b r e v e m e n t e essas dificuldades, p o r q u e , nas c o n d i ç õ e s dadas da civilização ociden-
tal, c o n t r i b u í r a m e m alto g r a u p a r a o desenvolvimento d o capitalismo especificamente
moderno. T o d a f o r m a de g r a v a m e da p r o p r i e d a d e , c o m o t a l , m e s m o o n d e os p r o p r i e -
tários t ê m a influência e m suas m ã o s , está sujeita a c e n a s limitações q u a n d o é possível
aos proprietários a saída da comunidade. O g r a u dessa possibilidade depende, c o m o
é evidente, n ã o s ó d o quanto a pertinência precisamente a esta comunidade concreta
é indispensável, m a s t a m b é m d o c o m p r o m i s s o e c o n ô m i c o c o m ela, este determinado
pela natureza da propriedade. No â m b i t o das comunidades coercivas c o m caráter institu-
cional — e m p r i m e i r o lugar, portanto, das políticas — , todas as f o r m a s de e m p r e g o
l u c r a t i v o da propriedade c o m v i n c u l a ç ã o e x t r e m a m e n t e forte ao local constituem u m
caso e s p e c í f i c o , que n ã o p e r m i t e aos proprietários sair da comunidade, e m o p o s i ç ã o
aos p a t r i m ô n i o s " m ó v e i s " , isto é , aqueles que consistem e m d i n h e i r o o u e m bens especí-
ficos facilmente conversíveis e m d i n h e i r o e n ã o estão vinculados a determinado lugar.
A saída d e camadas proprietárias d e u m a c o m u n i d a d e n ã o apenas f a z crescer fortemente
o ô n u s daqueles que f i c a m , mas pode t a m b é m , n u m a comunidade baseada na troca
n o m e r c a d o , particularmente n o m e r c a d o de trabalho, p r e j u d i c a r as possibilidades ime-
diatas d e aquisição dos não-proprietários (especialmente suas oportunidades d e traba-
l h o ) e m tal g r a u que estes, devido a esse efeito imediato, r e n u n c i a m à tentativa de
f a z e r os proprietários c o n t r i b u í r e m , d e m o d o desconsiderado, p a r a as despesas da co-
m u n i d a d e , o u até conscientemente os p r i v i l e g i a m . S e isso o c o r r e o u n ã o , depende
da estrutura e c o n ô m i c a da comunidade e m questão. Para a d e m o c r a c i a ática, que v i v i a
e m g r a n d e p r o p o r ç ã o dos tributos dos súditos e o n d e d o m i n a v a u m a o r d e m e c o n ô m i c a
cujo m e r c a d o de trabalho, n o sentido m o d e r n o da p a l a v r a , n ã o determinava ainda
predominantemente a situação de classe das massas, os motivos e c o n s i d e r a ç õ e s mencio-
nados p a s s a r a m a o segundo p l a n o e m face do e s t i m u l o m a i s forte à i m p o s i ç ã o direta
ECONOMIA E SOCIEDADE 241

de c o n t r i b u i ç õ e s à propriedade. E m c o n d i ç õ e s m o d e r n a s , o c o r r e quase s e m p r e o contrá-


rio. S ã o justamente aquelas comunidades nas quais os não-proprietários e x e r c e m a
influência decisiva q u e , h o j e e m d i a , e n ã o r a r a m e n t e , tratam c o m muito cuidado a
propriedade. E s p e c i a l m e n t e as comunidades políticas que se e n c o n t r a m nas m ã o s de
partidos socialistas, c o m o a cidade de Catânia, cujas fábricas f o r a m favorecidas p o r
extensos privilégios, p o r q u e a a m p l i a ç ã o esperada das oportunidades de trabalho, isto
é, o m e l h o r a m e n t o imediato da situação de sua classe e r a mais importante p a r a os
partidários d o que a " j u s t a " distribuição da propriedade e dos tributos. Locadores de
moradias, proprietários de terrenos p a r a c o n s t r u ç ã o , varejistas e artesãos costumam
pensar, n o caso concreto, apesar de todos os antagonismos de interesses, e m p r i m e i r o
lugar n o interesse mais imediato, determinado diretamente pela situação d e classe,
e, p o r isso, todas as f o r m a s de " m e r c a n t i l i s m o " s ã o u m f e n ô m e n o difundido e m todos
os tipos de comunidade, bastante variável, n o caso concreto, e existente nas f o r m a s
mais diversas. E isso o c o r r e tanto m a i s quando t a m b é m o interesse na c o n s e r v a ç ã o
da "capacidade tributária" e n a existência de grandes p a t r i m ô n i o s capazes de garantir
créditos, dentro da própria c o m u n i d a d e , obriga os interessados na p o s i ç ã o de p o d e r
de sua comunidade c o m o t a l , e m face de outras comunidades, a tratar de m o d o seme-
lhante a propriedade " m ó v e l " . Por isso, m e s m o nas comunidades cujo poder está nas
m ã o s dos não-proprietários, a p r o p r i e d a d e " m ó v e l " t e m amplas possibilidades, quando
n ã o de ser privilegiada de m o d o diretamente " m e r c a n t i l i s t a " , pelo menos de f i c a r isenta,
e m grande parte, d e ô n u s litúrgicos o u tributários, e m todos os lugares o n d e várias
comunidades, entre as quais ela pode escolher l i v r e m e n t e u m a p a r a estabelecer-se,
c o n c o r r e m entre s i , como, p o r e x e m p l o , os diversos estados da U n i ã o a m e r i c a n a —
cuja autonomia particularista é a causa p r i n c i p a l do fracasso de toda u n i f i c a ç ã o séria
dos interesses e m capitais úteis — o u , limitada p o r é m sensivelmente, os m u n i c í p i o s
de u m pais o u , p o r f i m , as f o r m a ç õ e s políticas q u e , e m i n d e p e n d ê n c i a total, existem
u m a ao lado da outra.

A l é m disso, o que mais contribui p a r a d e t e r m i n a r o m o d o c o m o se distribuem


os ô n u s é, p o r u m lado, a situação de p o d e r dos diversos grupos dentro de u m a c o m u n i -
dade e, p o r outro, o caráter da o r d e m e c o n ô m i c a . T o d o crescimento e toda preponde-
rância da p r o v i s ã o das necessidades e m e s p é c i e l e v a m necessariamente ao sistema litúr-
gico. A s s i m , o sistema litúrgico e g í p c i o p r o v é m da é p o c a dos f a r a ó s , e o desenvolvimento
do Estado litúrgico r o m a n o , n a última fase do I m p é r i o , segundo o m o d e l o e g í p c i o ,
está condicionado pela forte t e n d ê n c i a à e c o n o m i a n ã o - m o n e t á r i a dos territórios conti-
nentais incorporados e pela importância relativamente d i m i n u í d a das camadas capita-
listas, que, p o r sua v e z , se deve à t r a n s f o r m a ç ã o da estrutura de d o m i n a ç ã o e da adminis-
tração que e l i m i n o u os arrendatários de arrecadamento de impostos e as práticas usurá-
rias p a r a c o m os súditos. A o c o n t r á r i o , a influência preponderante da p r o p r i e d a d e
" m ó v e l " l e v a , p o r toda parte, ao a b a n d o n o da p r o v i s ã o litúrgica dos ô n u s p o r p a n e
dos proprietários e a u m sistema de serviços e tributos que pesa sobre as massas. E m
lugar d o s e r v i ç o militar o b r i g a t ó r i o , modificado de acordo c o m a p r o p r i e d a d e e baseado
na posse de equipamento p r ó p r i o pelos c i d a d ã o s abastados, surgiu e m R o m a a i s e n ç ã o
efetiva do s e r v i ç o militar p a r a os inscritos n o censo de cavaleiros e o e x é r c i t o p r o l e t á r i o
equipado pelo Estado, e, e m outros lugares, o e x é r c i t o m e r c e n á r i o cujo custo e r a coberto
pela tributação das massas. Na Idade M é d i a , e m v e z da responsabilidade litúrgica dos
proprietários pelas necessidades extraordinárias da economia da comunidade, isto é ,
e m v e z d e se p r o v e r e m essas necessidades mediante impostos sobre o p a t r i m ô n i o o u
e m p r é s t i m o s f o r ç a d o s isentos de j u r o s , verificou-se, p o r toda parte, a p r o v i s ã o p o r
m e i o d e e m p r é s t i m o s a j u r o s , hipotecas de terras, taxas aduaneiras e outros tributos,
isto é, o aproveitamento da situação de necessidade da comunidade, p o r parte dos
242 MAX WEBER

proprietários, c o m o fonte de iucros e rendas, situação que, às vezes — c o m o o c o r r e u


temporariamente e m G ê n o v a — , apresenta o caráter da administração da cidade e
de sua capacidade tributária n o interesse das instituições credoras do Estado. E , por
f i m , n o início da Idade Moderna, o aumento da p r o c u r a de capital motivada pela cres-
cente necessidade de d i n h e i r o p o r e x i g ê n c i a s políticas — as diversas unidades políticas
que c o n c o r r i a m entre s i pelo poder satisfaziam suas necessidades cada v e z mais e m
f o r m a de e c o n o m i a monetária — l e v o u à q u e l a aliança m e m o r á v e l entre os poderes
constitutivos dos Estados e as f o r ç a s capitalistas cortejadas e privilegiadas. Essa aliança
constituiu u m dos fatores mais importantes d o desenvolvimento capitalista m o d e r n o
e, c o m toda justeza, fez c o m que a política do p e r í o d o tivesse o n o m e de " m e r c a n t i l i s t a " ,
ainda que, c o m o v i m o s , o " m e r c a n t i l i s m o " s e m p r e tenha existido, e exista ainda hoje,
n o sentido d e c o n s i d e r a ç ã o especial e privilégios efetivos e m r e l a ç ã o à propriedade
" m ó v e l " , e s e m p r e q u a n d o coexistam várias f o r m a ç õ e s coercivas a u t ô n o m a s que con-
c o r r e m entre s i valendo-se da intensificação da capacidade tributária e creditícia de
seus m e m b r o s , baseada na f o r ç a do capital, tanto n a Antiguidade quanto na Idade Moder-
na. O fato d e esse " m e r c a n t i l i s m o " ter assumido u m caráter e s p e c í f i c o , n o início da
Idade Moderna, e de ter tido efeitos específicos f o i c o n s e q ü ê n c i a , e m parte, da peculia-
ridade da estrutura de d o m i n a ç ã o — a ser e x a m i n a d a mais tarde — das f o r m a ç õ e s
políticas concorrentes e de sua economia p ú b l i c a , p o r é m , e m parte, e nomeadamente,
da estrutura diferenciada d o capitalismo m o d e r n o e m nascimento e m r e l a ç ã o ao da
Antiguidade, especialmente n o que se r e f e r e ao desenvolvimento d o m o d e r n o capita-
lismo industrial, desconhecido na Antiguidade, o q u a l , ao longo do tempo, se aproveitou
particularmente d o privilegiamento. E m todo caso, a luta de c o n c o r r ê n c i a entre grandes
unidades puramente políticas, de potência a pro xi ma d a me n t e igual, p e r m a n e c e u desde
e n t ã o u m a f o r ç a política e m r e l a ç ã o ao e x t e r i o r e constitui, c o m o é sabido, u m dos
mais importantes estímulos específicos daquele privilegiamento do capitalismo que nas-
ceu naquela é p o c a e continua existindo, e m outra f o r m a , até hoje. N ã o é possível com-
p r e e n d e r , e m sua g ê n e s e e decurso, n e m a política c o m e r c i a l n e m a bancária dos Estados
m o d e r n o s , portanto, as áreas da política e c o n ô m i c a m a i s intimamente concatenadas
c o m os interesses centrais da f o r m a e c o n ô m i c a atual, s e m antes ter compreendido aquela
situação política muito peculiar de c o n c o r r ê n c i a e " e q u i l í b r i o " dos Estados europeus,
nos últimos cinco séculos, que já R a n k e , e m sua p r i m e i r a o b r a , reconheceu, c o m o
específica desses Estados, n o q u a d r o cia história u n i v e r s a l .
Capítulo I I I

TIPOS DE RELAÇÃO COMUNITÁRIA E DE RELAÇÃO


ASSOCIATIVA EM SEUS ASPECTOS ECONÔMICOS

§ 1 . A comunidade doméstica

Nestas c o n s i d e r a ç õ e s gerais, e m que os detalhes somente s e r v e m de exemplos,


n ã o cabe e x a m i n a r os efeitos especiais da p r o v i s ã o de necessidades das comunidades,
muitas vezes extremamente complicados.
O que pretendemos a q u i , e m p r i m e i r o lugar, r e n u n c i a n d o a toda classificação
sistemática dos tipos de comunidade segundo a estrutura, o c o n t e ú d o e os meios da
a ç ã o comunitária — que constitui u m a das tarefas da Sociologia g e r a l 1 — , é e x p o r
brevemente a natureza dos tipos de comunidade mais importantes p a r a nossas conside-
rações. Para isso, n ã o precisamos e x a m i n a r a r e l a ç ã o da economia c o m os conteúdos
culturais específicos fliteratura, artes, ciências etc. ) m a s apenas sua r e l a ç ã o c o m a "socie-
d a d e " , o que significa, neste caso, c o m as formas estruturais gerais de comunidades
humanas. Por isso, as tendências concretas da a ç ã o comunitária somente e n t r a m e m
c o n s i d e r a ç ã o na m e d i d a e m que, de per si, p r o d u z e m f o r m a s estruturais específicas
dessa a ç ã o que s ã o , ao m e s m o tempo, economicamente relevantes. S e m d ú v i d a , os
limites assim estabelecidos são bastante fluidos, o que significa, e m todo caso, que somente
alguns tipos muito universais de comunidade podem ser tratados. Isso será feito, no que
segue, inicialmente e m f o r m a de u m a caracterização geral, enquanto que — conforme
veremos ainda — suas formas de desenvolvimento somente p o d e r ã o ser examinadas, de
modo razoavelmente preciso, e m c o n e x ã o c o m a categoria de " d o m i n a ç ã o " .
As relações que h o j e nos p a r e c e m particularmente " p r i m o r d i a i s " s ã o as que exis-
tem entre p a i , m ã e e filhos, criadas pela comunidade sexual duradoura. No entanto,
desvinculadas da comunidade e c o n ô m i c a de sustento, a " g e s t ã o p a t r i m o n i a l " c o m u m ,
que p e l o m e n o s conceitualmente deve ser tratada e m separado, as relações entre h o m e m
e m u l h e r , c o m base p u r a m e n t e s e x u a l , e as entre pai e filhos, c o m base puramente
fisiológica, s ã o totalmente lábeis e p r o b l e m á t i c a s n o que se r e f e r e à sua durabilidade;
a r e l a ç ã o paternal falta p o r inteiro q u a n d o n ã o existe u m a comunidade estável de susten-
to entre pai e m ã e , e m e s m o q u a n d o ela existe, n e m s e m p r e tem grande peso. " P r i m o r -
d i a l " , entre as relações comunitárias nascidas c o m base e m relações sexuais, apenas
aquela entre m ã e e f i l h o , e isso p o r q u e se trata de u m a comunidade de sustento, cuja
d u r a ç ã o , dada pela natureza, abrange o tempo até a própria criança ser capaz de p r o c u -

1 Evidentemente, Max Weber planejara, para a "teoria das categorias sociológicas" da primeira parte, dar
num capítulo V a descrição classificadora de tipos de relações comunitárias e relações associativas (cf. as
referências ao capítulo V, na primeira parte, p. 50, 67, 75, 84, 86)
244 MAX WEBER

r a r alimentos suficientes. E m segundo lugar, está a comunidade de c r i a ç ã o dos i r m ã o s .


" C o m p a n h e i r o s de l e i t e " (og.oyóXoutTeç)é, portanto, u m n o m e específico para os p a r e n -
tes mais p r ó x i m o s . Mas t a m b é m aqui é decisiva a comunidade e c o n ô m i c a de sustento,
e n ã o o fato natural: o seio c o m u m da m ã e . E relações de comunidade de todas as
espécies c r u z a m muito mais ainda as relações sexuais e fisiológicas quando se trata
do nascimento d a ' ' f a m í l i a " c o m o f o r m a ç ã o especificamente social. O conceito historica-
mente bastante a m b í g u o somente é útil quando se define claramente s e u sentido no
caso particular. Voltaremos mais tarde a este assunto. Mesmo sendo inevitável considerar
o " g r u p o m a t e r n o " ( m ã e e f i l h o s ) a f o r m a ç ã o " f a m i l i a r " — n o sentido atual — mais
p r i m i t i v a , isto n ã o significa, de m o d o algum — e é até diretamente inimaginável — ,
que jamais h o u v e u m a f o r m a de existência h u m a n a que tenha conhecido alguma outra
f o r m a ç ã o de comunidade que n ã o os grupos maternos, existentes u m ao lado do outro.
S e m p r e que p r e d o m i n a , c o m o " f o r m a f a m i l i a r " , o g r u p o materno, existem ao lado
dele, pelo que saibamos, as relações comunitárias dos homens entre si — e c o n ô m i c a s
e militares — e aquelas entre homens e m u l h e r e s — de natureza s e x u a l e e c o n ô m i c a .
O g r u p o materno " p u r o " , c o m o f o r m a de comunidade n o r m a l , p o r é m evidentemente
secundária, n ã o é r a r o precisamente onde a existência cotidiana dos homens está aquar-
telada n a comunidade permanente d a ' ' casa dos homens'', originalmente para fins milita-
res, mais tarde t a m b é m para outros fins, c o m o o c o r r e entre muitos povos nas regiões
mais diversas, c o m o f o r m a específica do desenvolvimento militar, portanto, c o m o f o r m a
secundariamente condicionada.
F a l a r de u m ' ' m a t r i m ô n i o ' ' no sentido de u m a m e r a c o m b i n a ç ã o entre comunidade
sexual e comunidade de c r i a ç ã o , constituída p o r p a i , m ã e e filhos, seria conceitualmente
e r r ô n e o . Pois o conceito de " m a t r i m ô n i o " somente pode ser definido quando se o
relaciona c o m outras comunidades a l é m dessas duas. O " m a t r i m ô n i o " nasce e m toda
parte c o m o instituição social somente e m v i r t u d e da c o n t r a p o s i ç ã o a outras relações
sexuais M o consideradas m a t r i m ô n i o s . Pois sua existência significa: 1 ) que n ã o é tolera-
do e, eventualmente, será vingado o surgimento de u m a r e l a ç ã o contra a vontade do
clã da m u l h e r o u do h o m e m e m cujo poder esta já se encontra, portanto, de u m a
associação — nos tempos primitivos, do clã do h o m e m o u da m u l h e r o u de ambos;
particularmente, p o r é m , 2 ) que apenas os descendentes de determinadas comunidades
sexuais permanentes s ã o tratados — dentro do c í r c u l o de u m a comunidade mais abran-
gente, e c o n ô m i c a , política, religiosa o u outra qualquer, à q u a l pertence u m dos pais
(ou a m b o s ) — , c o m o companheiros iguais (companheiros na comunidade doméstica,
de l a v o u r a , de clã, política, estamental o u de determinado culto) sendo que isto n ã o
o c o r r e c o m os descendentes de u m dos pais, procedentes de outras relações sexuais.
O u t r o sentido n ã o t e m — o que cabe ter e m conta — a distinção entre filhos " l e g i t i m o s "
e " i l e g í t i m o s " . O s pressupostos do m a t r i m ô n i o , isto é, as classes de pessoas que n ã o
p o d e m e n t r a r e m relações d u r a d o u r a s válidas naquele sentido, os m e m b r o s d o clã
o u da associação que p r e c i s a m a p r o v a r a relação p a r a esta tornar-se v á l i d a , as formas
a s e r e m c u m p r i d a s , tudo isso é regulado pelas tradições sagradas o u pelas ordens estatuí-
das daquelas outras associações mais abrangentes. O que c o n f e r e , portanto, ao matri-
m ô n i o sua qualidade específica s ã o as ordens de outras comunidades, n ã o puramente
sexuais o u de criação. N ã o pretendemos e x p o r aqui o desenvolvimento extremamente
importante, d o ponto de vista e t n o g r á f i c o , dessas o r d e n s ; isso nos interessa somente
n o que se r e f e r e a suas relações e c o n ô m i c a s mais importantes.
As relações sexuais e as estabelecidas entre os filhos, por terem e m c o m u m os pais
o u u m deles, assumem sua importância n o r m a l , para o nascimento de u m a ação comuni-
tária, somente pela circunstância de se tornarem u m dos fundamentos normais, p o r é m
n ã o o único, de u m a associação especificamente econômica: a comunidade doméstica.
ECONOMIA E SOCIEDADE 245

A comunidade doméstica n ã o é u m f e n ô m e n o absolutamente p r i m i t i v o . N ã o pres-


s u p õ e u m a " c a s a " n o sentido atual, m a s determinado g r a u de p r o d u ç ã o agrícola plane-
jada. Nas c o n d i ç õ e s da busca de alimentos, fundada p u r a m e n t e n a o c u p a ç ã o da t e r r a ,
ela parece n ã o ter existido. Mas t a m b é m q u a n d o baseada n u m a agricultura tecnicamente
b e m desenvolvida, a c o m u n i d a d e doméstica apresenta-se c o m f r e q ü ê n c i a c o m o u m a
f o r m a ç ã o secundária relativamente a alguma situação anterior que concedeu, p o r u m
lado, m a i s p o d e r às comunidades mais abrangentes de clã o u de v i z i n h a n ç a e, por
outro, mais i n d e p e n d ê n c i a ao i n d i v í d u o perante a comunidade de pais, filhos, netos
e irmãos. Isto p a r e c e indicar particularmente a s e p a r a ç ã o quase total, muito f r e q ü e n t e
justamente q u a n d o quase n ã o h á d i f e r e n c i a ç ã o social, dos bens e dos ganhos da m u l h e r
e do h o m e m , b e m c o m o o costume destes, e m alguns lugares, de s e m p r e c o m e r e m
dando-se as costas o u completamente separados, e a existência, dentro da associação
política, de o r g a n i z a ç õ e s a u t ô n o m a s d e m u l h e r e s , c o m chefes f e m i n i n o s , ao lado das
o r g a n i z a ç õ e s dos homens. No entanto, c o n v é m que se evite deduzir desses f e n ô m e n o s
as c o n d i ç õ e s de u m "estado p r i m i t i v o " individualista. Pois muitas vezes trata-se de
u m a situação s e c u n d á r i a , nascida da ausência e m casa d o h o m e m durante o " s e r v i ç o
m i l i t a r " , isto é, condicionada pela o r g a n i z a ç ã o militar, e m que a d i r e ç ã o dos assuntos
domésticos fica nas m ã o s das m u l h e r e s e m ã e s — , situação que se c o n s e r v o u , e m f o r m a
rudimentar, na estrutura f a m i l i a r espartana baseada na ausência e m casa do h o m e m
e na s e p a r a ç ã o de bens. A c o m u n i d a d e doméstica n ã o tem u n i v e r s a l m e n t e a m e s m a
extensão. Mas ela constitui a " c o m u n i d a d e e c o n ô m i c a " universalmente m a i s d i f u n d i d a
e c o m pr e ende u m a a ç ã o comunitária muito contínua e intensa. É o fundamento p r i m o r -
dial da piedade e da autoridade, fundamentos, p o r sua v e z , de muitas outras c o m u n i -
dades humanas. A " a u t o r i d a d e " 1 ) d o mais forte e 2 ) do m a i s experiente, isto é, dos
homens sobre as m u l h e r e s e as crianças, dos capazes de portar a r m a s e de trabalhar
sobre os incapazes, dos adultos sobre as crianças, dos v e l h o s sobre os jovens. A " p i e d a -
d e " tanto dos submetidos à autoridade p a r a c o m os representantes desta quanto destes
entre s i . C o m o piedade pelos antepassados, passa a f a z e r parte das relações religiosas;
c o m o piedade dos f u n c i o n á r i o s patrimoniais, dos sequazes, dos vassalos, passa a f a z e r
parte dessas relações que originalmente t ê m caráter d o m é s t i c o . C o m u n i d a d e d o m é s t i c a ,
e m sua f o r m a " p u r a " — mas n e m s e m p r e " p r i m i t i v a " , c o m o já m e n c i o n á m o s — , signi-
fica e c o n ô m i c a e pessoalmente: solidariedade p a r a f o r a e comunidade comunista na
utilização e n o c o n s u m o dos bens cotidianos ( c o m u n i s m o d o m é s t i c o ) p a r a dentro, e m
f o r m a de u m a unidade indivisa e baseada n u m a r e l a ç ã o de piedade estritamente pessoal.
O p r i n c í p i o de solidariedade p a r a f o r a , desenvolvido e m sua f o r m a p u r a , encontra-se
ainda nas comunidades domésticas das cidades medievais, e precisamente naquelas
de capitalismo m a i s a v a n ç a d o , d o norte e d o centro da Itália, c o m seus empreendimentos
capitalistas periodicamente regulados p o r contratos: a responsabilidade solidária r e a l
e pessoal ( e m certas circunstâncias, t a m b é m c r i m i n a l ) , perante os credores, abrange
todos os m e m b r o s da comunidade d o m é s t i c a , incluindo às vezes até os a u x i l i a r e s e
aprendizes admitidos p o r contrato. E s t a é a fonte histórica da responsabilidade solidária
— , importante p a r a o desenvolvimento das m o d e r n a s f o r m a s jurídicas capitalistas —
dos proprietários de u m a c o m p a n h i a m e r c a n t i l n ã o limitada pelas dívidas da empresa.
O antigo c o m u n i s m o d o m é s t i c o n ã o conheceu algo correspondente a nosso " d i r e i t o
h e r e d i t á r i o " . E m s e u lugar, existia a simples idéia da " i m o r t a l i d a d e " da c o m u n i d a d e
d o m é s t i c a . No tipo " p u r o " de tal comunidade, se u m dos m e m b r o s sai dela, e m v i r t u d e
de falecimento, e x p u l s ã o (por causa de u m sacrilégio i n e x p i á v e l ) transferência p a r a
outra c o m u n i d a d e doméstica ( a d o ç ã o ) d e m i s s ã o (emancipatio) ou por decisão volun-
tária ( o n d e é p e r m i t i d a ) n ã o se fala e m desanexar a parte " c o r r e s p o n d e n t e " . Q u e m
sai v i v o abandona sua parte e, e m caso de morte, a economia c o m u m simplesmente
246 MAX WEBER

continua funcionando. É assim que se constitui, até hoje, a Gemeinderschaft, na Suíça.


O p r i n c í p i o do c o m u n i s m o d o m é s t i c o , de acordo c o m o qual n ã o se " a j u s t a m as c o n t a s " ,
mas o i n d i v í d u o contribui segundo suas f o r ç a s e u s u f r u i segundo suas necessidades
(enquanto há reservas de bens s u f i c i e n t e s ) s o b r e v i v e ainda hoje c o m o peculiaridade
essencial da comunidade doméstica de nossa " f a m í l i a " , ainda q u e , na m a i o r i a das vezes,
c o m o r u d i m e n t o que se limita ao c o n s u m o d o m é s t i c o .
No tipo p u r o , é essencial a m o r a d i a c o m u m . O aumento d o n ú m e r o obriga, neste
caso, à divisão e à f u n d a ç ã o de novas comunidades domésticas separadas. Mas, para
manter unida a f o r ç a de trabalho e a propriedade, encontrou-se u m a s o l u ç ã o a meio
termo: a descentralização local sem divisão, c o m a c o n s e q ü ê n c i a inevitável do nasci-
mento de direitos particulares p a r a as comunidades domésticas individuais. Semelhante
desmembramento pode l e v a r à total s e p a r a ç ã o jurídica e autonomia na d i r e ç ã o das
atividades aquisitivas, conservando-se, m e s m o assim, u m a p o r ç ã o surpreendentemente
grande de c o m u n i s m o d o m é s t i c o . Na E u r o p a — especialmente nas r e g i õ e s alpinas,
p o r e x e m p l o , e m famílias de hoteleiros suíços, mas t a m b é m , por outra parte, e m grandes
empresas comerciais de porte internacional, transmitidas hereditariamente e m família
— , continua existindo, c o m o resquício da comunidade e autoridade doméstica, total-
mente desaparecida no sentido e x t e r n o da p a l a v r a , o c o m u n i s m o do risco e d o lucro:
a j u n ç ã o dos lucros e das perdas de empresas que, de resto, s ã o totalmente indepen-
dentes. C o n h e ç o empresas de r e n o m e m u n d i a l que l u c r a m m i l h õ e s , cujo capital perten-
ce, predominantemente mas n ã o completamente, a parentes e m diferentes graus e cuja
d i r e ç ã o está, ainda que n ã o exclusivamente, nas m ã o s de m e m b r o s de u m a única família.
As empresas individuais trabalham e m r a m o s distintos e alternantes, têm capitais de
tamanho bastante diverso e intensidade de trabalho e resultados b e m diferentes. Mesmo
assim, depois de descontar os juros de capital habituais, junta-se simplesmente o lucro
anual que consta nos b a l a n ç o s e este é repartido segundo critérios surpreendentemente
simples (muitas vezes, p o r cabeça). A c o n s e r v a ç ã o do c o m u n i s m o d o m é s t i c o nesse nível
o c o r r e por causa do m ú t u o apoio e c o n ô m i c o que garante o e q u i l í b r i o de necessidades
e excedentes de capital entre as diversas empresas, evitando-se assim tomar empréstimos
de terceiros. A " c o n t a b i l i d a d e " cessa, portanto, logo que se ultrapassa o traço final
do b a l a n ç o ; ela t e m d o m í n i o somente dentro da " e m p r e s a " que p r o d u z o l u c r o , mas
ali d o m i n a incondicionalmente: u m parente, p o r mais p r ó x i m o que seja, que trabalha,
s e m capital, c o m o simples e m p r e g a d o n u n c a recebe mais do que qualquer outro, pois
trata-se, n o caso, de custos calculados da empresa que n ã o podem ser modificados
e m f a v o r de u m i n d i v í d u o s e m d e i x a r os outros descontentes. A b a i x o do traço final
do b a l a n ç o , p o r é m , c o m e ç a p a r a os felizes participantes o r e i n o da " i g u a l d a d e e frater-
nidade".

S 2. Comunidade de vizinhança, comunidade econômica e c o m u n a

A associação doméstica é a comunidade que s u p r e as necessidades regulares de


bens e trabalho da v i d a cotidiana. Parte importante da necessidade extraordinária de
serviços e m ocasiões especiais e situações de e m e r g ê n c i a e perigo é s u p r i d a , nas condi-
ç õ e s da economia agrária autárquica, por u m a a ç ã o c o m u n i t á r i a que v a i a l é m da comuni-
dade doméstica i n d i v i d u a l : a ajuda da " v i z i n h a n ç a " . O conceito de " v i z i n h a n ç a " aqui
n ã o se r e f e r e apenas à f o r m a " p r i m o r d i a l " , dada pela p r o x i m i d a d e dos vizinhos em
regiões rurais, mas, de m o d o g e r a l , a toda [vizinhança dada pela] p r o x i m i d a d e espacial
[das moradias, permanentes o u temporárias] e a situação c o m u m de interesses assim condi-
cionada, crônica o u efêmera, ainda que nos refiramos, a potíori e sem referência a porme-
nores, à vizinhança de comunidades domésticas situadas próximas umas das outras.
ECONOMIA E SOCIEDADE 247

A " c o m u n i d a d e de v i z i n h o s " pode mostrar-se externamente, é c l a r o , e m f o r m a s


muito diversas, dependendo do tipo de c o l ô n i a de que se trate — quintas isoladas
ou aldeias o u ruas urbanas o u " c o r t i ç o s " — e t a m b é m as ações c o m u n i t á r i a s que estas
apresentam p o d e m ter intensidade muito diversa e, e m certas circunstâncias, especial-
mente nas c o n d i ç õ e s das cidades modernas, d i m i n u i r até quase o ponto z e r o . A i n d a
que o alto g r a u de a p o i o m ú t u o e de disposição a sacrifícios, que ainda hoje se v e r i f i c a
entre os m o r a d o r e s de cortiços, nos b a i r r o s pobres, seja surpreendente p a r a q u e m
o constata pela p r i m e i r a v e z , é c l a r o que o p r i n c í p i o n ã o apenas da comunidade e f ê m e r a
entre os usuários de bondes, trens o u hotéis, mas t a m b é m da comunidade p e r e n e dos
moradores d e cortiços se destina, e m g e r a l , mais a manter distância, apesar ( o u talvez
justamente p o r causa) da p r o x i m i d a d e física, e n ã o ao contrário, e que somente e m
casos de perigo c o m u m pode-se contar, c o m alguma probabilidade, c o m certas a ç õ e s
comunitárias. N ã o cabe e x a m i n a r a q u i p o r que esse f e n ô m e n o c h a m a tanto nossa a t e n ç ã o
justamente nas c o n d i ç õ e s de v i d a modernas, c o m o c o n s e q ü ê n c i a de u m a t e n d ê n c i a
específica do "sentimento de d i g n i d a d e " p r o v o c a d a p o r essas c o n d i ç õ e s . O que importa
é constatar, o fato de que t a m b é m as relações estáveis da vizinhança r u r a l , e isto desde
sempre, apresentam a m e s m a discordância: o c a m p o n ê s i n d i v i d u a l está longe de desejar
a interferência de terceiros e m seus assuntos, m e s m o que esta se acompanhe das m e l h o -
res intenções. A " a ç ã o c o m u n i t á r i a " n ã o constitui a r e g r a mas a e x c e ç ã o , ainda que
esta tipicamente se repita. S e m p r e é menos intensa e, nomeadamente, descontínua,
e m c o m p a r a ç ã o c o m a da comunidade d o m é s t i c a , s e m f a l a r do fato de que é muito
mais lábil no que se r e f e r e à c i r c u n s c r i ç ã o dos participantes de cada a ç ã o comunitária.
Pois a comunidade de v i z i n h a n ç a baseia-se, ainda, falando de m o d o g e r a l , n o simples
fato da p r o x i m i d a d e do d o m i c í l i o efetivo e c o n t í n u o . D e n t r o da economia agrária autár-
quica dos tempos p r i m i t i v o s , a " a l d e i a " — g r u p o de comunidades domésticas p r ó x i m a s
umas das outras — é a associação de v i z i n h o s típica. Mas a v i z i n h a n ç a pode t a m b é m
atuar a l é m dos limites, de resto rígidos, de outras f o r m a ç õ e s , p o r e x e m p l o , políticas.
E l a significa praticamente, sobretudo n o caso de u m a situação de t r á f e g o e c o m u n i c a ç ã o
pouco desenvolvida, d e p e n d ê n c i a do apoio m ú t u o e m caso de necessidade. O v i z i n h o
é o típico " p r e s t a d o r de s o c o r r o " , e a vizinhança, portanto, a portadora da " f r a t e r n i -
d a d e " , ainda que n u m a a c e p ç ã o prosaica e pouco sentimental, predominantemente
é t i c o - e c o n ô m i c a , da p a l a v r a . Na f o r m a de ajuda m ú t u a , e m casos de insuficiência de
meios da p r ó p r i a comunidade doméstica nascem e m s e u seio o s ' ' e m p r é s t i m o s de f a v o r ' ' ,
isto é, e m p r é s t i m o gratuito e sem juros de bens de uso e de consumo, e " t r a b a l h o
de f a v o r " n ã o - r e m u n e r a d o , isto é, prestação d e serviços a u x i l i a r e s e m caso de necessi-
dade urgente [ações de assistência], e m v i r t u d e do p r i n c í p i o p r i m o r d i a l da ética popular,
pouco sentimental, divulgado n o m u n d o inteiro: " C o m o t u comigo, assim e u contigo"
(o que t a m b é m insinua a d e s i g n a ç ã o r o m a n a mutuum, para o empréstimo sem juros).
Pois cada qual pode chegar a u m a situação e m que precisa da ajuda dos outros. Q u a n d o
há u m a r e m u n e r a ç ã o , esta consiste — c o m o n o caso do " t r a b a l h o de f a v o r " , r e p r e -
sentado tipicamente pela ajuda dos v i z i n h o s n a c o n s t r u ç ã o da casa e muito difundido
nas aldeias, p o r e x e m p l o , n o leste da A l e m a n h a — e m presentes aos trabalhadores
voluntários. Q u a n d o se realiza u m a troca, rege o princípio: " E n t r e i r m ã o s n ã o se rega-
t e i a " , que e x c l u i o " p r i n c í p i o de m e r c a d o " r a c i o n a l p a r a a f i x a ç ã o do p r e ç o . A " v i z i -
n h a n ç a " n ã o existe exclusivamente entre iguais. O " t r a b a l h o de f a v o r " , t ã o importante
na prática, n ã o se realiza somente p a r a os economicamente necessitados, mas t a m b é m ,
de m o d o v o l u n t á r i o , p a r a os economicamente preeminentes e poderosos, particular-
mente c o m o ajuda na colheita necessitada c o m mais u r g ê n c i a justamente pelos p r o p r i e -
tários d e grandes terras. Neste ú l t i m o caso, espera-se e m troca sobretudo a represen-
tação dos interesses comuns diante da a m e a ç a de outros poderosos, a l é m d o e m p r é s -
248 MAX WEBER

timo, gratuito o u e m troca d o " t r a b a l h o de f a v o r " habitual, de terras excedentes ( " e m -


p r é s t i m o de f a v o r " : precarium) s o c o r r o c o m as p r ó p r i a s reservas e m caso de f o m e
e outros atos caritativos que o grande proprietário, por sua parte, realiza porque ele
m e s m o s e m p r e pode chegar a situações e m que dependa da boa vontade de seus v i z i -
nhos. T o d o " t r a b a l h o de f a v o r " convencional, realizado a f a v o r de pessoas e m posições
h o n o r á r i a s , pode tornar-se, e m seu desenvolvimento u l t e r i o r , a fonte de u m a economia
s e n h o r i a l c o m serviços pessoais obrigatórios, isto é, de u m a r e l a ç ã o de d o m i n a ç ã o
p a t r i m o n i a l , quando aumenta o poder do senhor e a indispensabilidade de sua p r o t e ç ã o
contra o m u n d o e x t e r i o r e q u a n d o ele consegue t r a n s f o r m a r o " c o s t u m e " e m " d i r e i t o " .
D i z e r que a comunidade de v i z i n h o s é a sede típica da " f r a t e r n i d a d e " n ã o significa,
naturalmente, que entre v i z i n h o s costume reger u m a r e l a ç ã o " f r a t e r n a l " . A o contrário:
q u a n d o a conduta postulada pela ética p o p u l a r torna-se impossível d e v i d o a u m a inimi-
zade pessoal o u conflitos de interesses, a r i v a l i d a d e assim nascida costuma assumir
f o r m a s particularmente agudas e persistentes, justamente porque é sentida c o m o antagô-
nica às e x i g ê n c i a s da ética p o p u l a r e tenta-se justificá-la, e t a m b é m porque as relações
pessoais s ã o muito íntimas e freqüentes.
A comunidade de vizinhança pode representar u m a a ç ã o comunitária a m o r f a e
fluida n o c í r c u l o dos participantes, portanto, " a b e r t a " e intermitente. Somente procura
estabelecer limites f i x o s e m sua e x t e n s ã o q u a n d o existe u m a r e l a ç ã o associativa " f e c h a -
d a " , o que o c o r r e regularmente q u a n d o a v i z i n h a n ç a se transforma n u m a " c o m u n i d a d e
e c o n ô m i c a " o u reguladora da e c o n o m i a dos participantes. Isto é feito, na f o r m a típica
que conhecemos e m suas características gerais, p o r motivos e c o n ô m i c o s , por exemplo,
quando a e x p l o r a ç ã o de pastos e bosques, devido à escassez, é regulada de modo
" c o o p e r a t i v i s t a " , o que significa " m o n o p o l i s t a " . Mas a r e l a ç ã o associativa n ã o é necessa-
riamente comunidade e c o n ô m i c a o u comunidade reguladora da e c o n o m i a , e quando
é o caso o c o r r e e m g r a u muito diverso. A a ç ã o comunitária dos v i z i n h o s pode estabelecer
ela m e s m a u m a o r d e m p a r a regular o comportamento dos participantes, criando uma
r e l a ç ã o associativa ( c o m o . p o r e x e m p l o , n o caso da f o r m a de utilização obrigatória
de determinadas parcelas de t e r r a ) , o u recebê-la p o r i m p o s i ç ã o de terceiros, indivíduos
o u comunidades, c o m os quais a c o m u n i d a d e de vizinhança c o m o tal estabelece relações
associativas de cunho e c o n ô m i c o o u político (por e x e m p l o , regulamentos e m prédios
de apartamentos alugados, estabelecidos pelo p r o p r i e t á r i o ) Mas tudo isto n ã o faz neces-
sariamente parte da essência da a ç ã o . A comunidade de v i z i n h o s , os regulamentos para
a utilização de florestas de comunidades políticas, mas, sobretudo a aldeia, a associação
territorial e c o n ô m i c a ( p o r e x e m p l o , comunidade de l a v o u r a ) e a associação política
n ã o coincidem necessariamente sequer nas c o n d i ç õ e s da economia doméstica p u r a dos
tempos p r i m i t i v o s , podendo, p o r é m , apresentar as relações mais diversas. As associa-
ç õ e s territoriais e c o n ô m i c a s podem ter e x t e n s ã o muito distinta, dependendo dos objetos
que abrangem. Campos, pastos, bosques e distritos de caça estão f r e q ü e n t e m e n t e sujei-
tos ao poder de disposição de comunidades muito distintas que se c r u z a m umas com
as outras e c o m a associação politica. Naquelas onde se o b t é m a m a i o r parte dos alimen-
tos mediante trabalho p a c í f i c o , a portadora d o trabalho c o m u m — a comunidade domés-
tica — será t a m b é m a portadora d o p o d e r d e disposição; naquelas onde o sustento
é obtido principalmente pelas a r m a s , é a associação política que desempenha esse papel.
A s s i m , t a m b é m , naquelas onde se trata de bens utilizados de m o d o extensivo, por comu-
nidades maiores: distritos de caça e florestas, e m o p o s i ç ã o a prados e campos. De
m o d o g e r a l , contribui p a r a essa situação ainda o seguinte: as diversas categorias de
terra f i c a r a m escassas, e m relação à necessidade, e m fases muito diferentes do desenvol-
v i m e n t o e s ó e n t ã o tornaram-se objetos de u m a r e l a ç ã o associativa reguladora da utiliza-
ç ã o — a floresta pode ainda ser u m b e m " l i v r e " enquanto os prados e as terras de
ECONOMIA E SOCIEDADE 249

l a v o u r a já s ã o bens " e c o n ô m i c o s " , regulados e " a p r o p r i a d o s " n o que se r e f e r e à f o r m a


de utilização. Por isso, associações territoriais m u i t o diversas p o d e m ser as portadoras
da a p r o p r i a ç ã o de cada u m a dessas categorias d e t e r r a .
A c o m u n i d a d e de v i z i n h a n ç a é o fundamento p r i m o r d i a l da " c o m u n a " — f o r m a -
ç ã o que, c o n f o r m e será exposto m a i s tarde, somente chega a constituir-se e m seu sentido
pleno pela r e l a ç ã o c o m u m a a ç ã o comunitária política que abrange u m a p l u r a l i d a d e
de vizinhanças. Mas ela m e s m a pode, t a m b é m , q u a n d o d o m i n a u m " t e r r i t ó r i o " c o m o
a aldeia, constituir a base de u m a a ç ã o comunitária política e, e m g e r a l , c o m a e x p a n s ã o
da r e l a ç ã o associativa, i n c o r p o r a r a essa a ç ã o atividades d e todas as espécies (desde
a e d u c a ç ã o escolar e a a c e i t a ç ã o de f u n ç õ e s religiosas até a d o m i c i l i a ç ã o sistemática
dos artesãos n e c e s s á r i o s ) o u s e r obrigada, pela comunidade política, a c u m p r i r tais
deveres. Mas sua a ç ã o c o m u n i t á r i a específica, de a c o r d o c o m sua natureza g e r a l , é
apenas aquela prosaica " f r a t e r n i d a d e " e c o n ô m i c a e m casos de necessidade, c o m suas
c o n s e q ü ê n c i a s específicas.

8 3. \ 8 relações sexuais n a comunidade doméstica

Voltamos agora à c o m u n i d a d e d o m é s t i c a , representante da mais p r i m o r d i a l a ç ã o


comunitária " f e c h a d a " p a r a f o r a . O processo de desenvolvimento típico a p a r t i r d o
antigo c o m u n i s m o d o m é s t i c o p l e n o é precisamente o c o n t r á r i o daquele q u e m e n c i o -
namos n o e x e m p l o da c o n s e r v a ç ã o da comunidade p r o d u t i v a , apesar da s e p a r a ç ã o
externa das casas: a f r o u x a m e n t o interno do c o m u n i s m o , portanto, " f e c h a m e n t o " p r o -
gressivo da comunidade t a m b é m p a r a dentro, mantendo-se a unidade e x t e r n a da casa.
As m a i s antigas e profundas debilitações d o intato p o d e r d o m é s t i c o comunista
n ã o p a r t e m diretamente de motivos e c o n ô m i c o s , mas, evidentemente, do desenvol-
v i m e n t o de pretensões sexuais exclusivas dos m e m b r o s sobre as m u l h e r e s submetidas
à autoridade doméstica c o m u m , o q u e l e v o u a u m a r e g u l a ç ã o estritamente observada
e muitas vezes bastante casuística das r e l a ç õ e s sexuais justamente e m caso d e a ç õ e s
comunitárias de resto pouco racionalizadas. T a m b é m os poderes de d i s p o s i ç ã o sexuais
p o d e m ter às vezes caráter " c o m u n i s t a " ( p o l i â n d r i c o ) Mas, o n d e q u e r que se v e r i f i -
q u e m , esses direitos poliandricamente compartilhados r e p r e s e n t a m , e m todos os casos
conhecidos, apenas u m c o m u n i s m o relativo: a participação na posse, e x c l u s i v a e m r e l a -
ç ã o ao e x t e r i o r , d e d e t e r m i n a d o c í r c u l o limitado de pessoas (irmãos o u m e m b r o s da
" c a s a dos h o m e n s " ) , e m v i r t u d e da a q u i s i ç ã o c o m u m de u m a m u l h e r .
E m n e n h u m lugar, n e m onde e x i s t e m relações sexuais entre i r m ã o s c o m o institui-
ç ã o reconhecida, encontra-se u m a promiscuidade s e x u a l a m o r f a , contrária à o r d e m ,
dentro da casa. Pelo menos, n ã o c o m o n o r m a . A o contrário, é precisamente a casa
comunista — n o que se r e f e r e à p r o p r i e d a d e de bens — o lugar donde está banida
de m o d o mais completo a liberdade comunista das relações sexuais. A debilitação do
e s t í m u l o s e x u a l , e m v i r t u d e da c o a b i t a ç ã o desde a infância, c r i o u essa possibilidade
e estabeleceu o hábito. A r e a l i z a ç ã o c o m o " n o r m a " consciente o c o r r e u , e m seguida,
evidentemente n o interesse do asseguramento da solidariedade e da paz i n t e r n a da
casa, contra lutas motivadas p o r c i ú m e . Q u a n d o , e m v i r t u d e d a " e x o g a m i a de c l ã " ,
à q u a l logo voltaremos, os m e m b r o s da casa f o r a m agregados a clãs diferentes, de
m o d o q u e , de a c o r d o c o m os princípios d a exogamia d e clã, as relações s e x u a i s dentro
da casa estariam permitidas, precisamente os m e m b r o s atingidos da casa t ê m d e evitar
o contato pessoal: a e x o g a m i a d o m é s t i c a , e m r e l a ç ã o à d e clã, é a instituição m a i s
antiga e continua existindo ao lado desta. T a l v e z a prática da exogamia d o m é s t i c a ,
mediante a f o r m a ç ã o d e cartéis p a r a a troca de m u l h e r e s — pelas comunidades d o m é s -
ticas e pelas c o m u n i d a d e s d e clã surgidas c o m a divisão das p r i m e i r a s — , tenha consti-
250 MAX WEBER

t u í d o o c o m e ç o da exogamia regulada. E m todo caso, existe a d e s a p r o v a ç ã o c o n v e n -


cional das relações sexuais t a m b é m p a r a aqueles parentes p r ó x i m o s que, segundo o
c ó d i g o de laços de sangue da estrutura de clã, n ã o estariam e x c l u í d o s (por e x e m p l o ,
parentes muito p r ó x i m o s p o r parte do p a i , e m caso de exogamia de clã matrilinear
exclusiva). A o contrário, o m a t r i m ô n i o entre i r m ã o s e parentes, c o m o instituição, l i m i -
ta-se n o r m a l m e n t e a linhagens socialmente preeminentes, especialmente às casas reais.
S e r v e p a r a manter unidos os meios de p o d e r e c o n ô m i c o s da casa, a l é m de e x c l u i r
lutas políticas de pretendentes e, p o r f i m , c o n s e r v a r a p u r e z a do sangue, tendo, portanto,
caráter s e c u n d á r i o . O n o r m a l é, portanto, o seguinte: q u a n d o u m h o m e m leva u m a
m u l h e r que a d q u i r i u p a r a sua comunidade doméstica o u quando, p o r l h e faltarem
os m e i o s p a r a levá-la, entra n a comunidade doméstica da m u l h e r , ele adquire os direitos
sexuais exclusivos sobre ela. Na realidade, essa exclusividade s e x u a l é muitas vezes
precária e m r e l a ç ã o ao detentor autocrático do poder d o m é s t i c o : s ã o conhecidos, por
e x e m p l o , os direitos atribuídos ao sogro n a família " e x t e n s a " russa, ainda na é p o c a
m o d e r n a . N ã o obstante, a comunidade doméstica divide-se internamente e m comuni-
dades sexuais d u r a d o u r a s , c o m seus filhos. A comunidade de pais e filhos, c o m a criada-
g e m pessoal e, às v e z e s , c o m u m a o u o u t r a parenta s o l t e i r a , constitui o círculo da
comunidade doméstica n o r m a l entre nós. A s comunidades domésticas de é p o c a s mais
antigas n e m s e m p r e s ã o f o r m a ç õ e s muito grandes. A o c o n t r á r i o , encontramos f r e q ü e n -
temente unidades domésticas muito pequenas, sobretudo q u a n d o o m o d o de o b t e n ç ã o
de alimentos e x i g i u a dispersão. Mas, p o r outro lado, temos n o passado t a m b é m aquelas
imensas que, apesar de basear-se no n ú c l e o das relações entre pais e filhos, se estendem
muito a l é m deste, incluindo netos, i r m ã o s , p r i m o s e, às v e z e s , até pessoas não-consan-
g ü í n e a s , c o m u m a amplitude p e l o m e n o s muito r a r a h o j e entre povos civilizados ( " f a -
mília e x t e n s a " ) . Prevalece, p o r u m lado, o n d e se emprega a c u m u l a ç ã o de trabalho
— portanto, na l a v o u r a c o m trabalho intensivo — e, p o r outro, onde se q u e r manter
u n i d a a p r o p r i e d a d e , n o interesse da defesa da p o s i ç ã o de poder social e e c o n ô m i c o ,
isto é, e m camadas aristocráticas e plutocráticas.

À parte a e x c l u s ã o muito antiga das relações sexuais na comunidade doméstica,


a esfera s e x u a l , precisamente e m culturas d e resto pouco desenvolvidas, está muitas
vezes fortemente restringida p o r f o r m a ç õ e s sociais que se c r u z a m c o m o poder d o m é s -
tico, de tal m o d o que se pode a f i r m a r que a p r i m e i r a r u p t u r a decisiva de s e u caráter
ilimitado o c o r r e u precisamente nesse t e r r e n o . O conceito d e incesto, c o m a crescente
c o n s i d e r a ç ã o dos " l a ç o s de s a n g u e " , estende-se, p a r a m u i t o a l é m da casa, a círculos
de c o n s a n g ü í n e o s que n ã o p e r t e n c e m à comunidade d o m é s t i c a , e torna-se objeto de
u m a r e g u l a ç ã o casuística p o r parte d o clã.

84. O c l ã e a r e g u l a ç ã o d a s r e l a ç õ e s s e x u a i s .
C o m u n i d a d e doméstica, de clã, de vizinhança e política

O clã n ã o é u m a comunidade tão " p r i m o r d i a l " c o m o o s ã o a comunidade d o m é s -


tica e a de vizinhança. Sua a ç ã o comunitária é regularmente descontinua e n ã o c o m -
p r e e n d e relações associativas; constitui r e a l m e n t e u m e x e m p l o de que pode h a v e r uma
a ç ã o comunitária até q u a n d o os participantes n ã o se c o n h e c e m e n ã o o c o r r e nenhuma
atividade, mas apenas u m a o m i s s ã o (de relações s e x u a i s ) O " c l ã " p r e s s u p õ e a existência
de outros clãs, junto c o m ele, dentro de u m a c o m u n i d a d e m a i s abrangente. A associação
de clã é o portador p r i m o r d i a l d e toda " f i d e l i d a d e " . As r e l a ç õ e s de amizade s ã o original-
mente irmandades de sangue artificiais. E tanto o vassalo quanto o oficial m o d e r n o
n ã o s ã o apenas subordinados m a s t a m b é m i r m ã o s , " c a m a r a d a s " (originalmente " c o m -
panheiros de c a s a " ) d o senhor. Pelo c o n t e ú d o de suas a ç õ e s comunitárias, o clã é uma
ECONOMIA E SOCIEDADE 251

comunidade protetora, q u e , na área das r e l a ç õ e s sexuais e n a solidariedade e x t e r n a ,


compete c o m a d o m é s t i c a , substituindo nossa polícia d e s e g u r a n ç a pública e de costu-
mes, e, ao m e s m o tempo, regularmente, é u m a comunidade de pretendentes a d e t e r m i -
nada p r o p r i e d a d e , constituída p o r aqueles antigos m e m b r o s da comunidade doméstica
que a d e i x a r a m , e m v i r t u d e de m a t r i m ô n i o o u de divisão da comunidade, e p o r seus
descendentes. É , portanto, o lugar e m que se d e s e n v o l v e u a " h e r a n ç a " n ã o - d o m é s t i c a .
Por m e i o do d e v e r de v i n g a n ç a de sangue, c r i a u m a solidariedade pessoal de seus
m e m b r o s p a r a c o m terceiros e f u n d a , assim, e m s e u d o m í n i o , u m d e v e r de piedade
que, e m certas circunstâncias, pode ser mais forte do que a autoridade doméstica.
Cabe observar que p o r " c l ã " n ã o se d e ve entender, de m o d o g e r a l , u m a comunidade
doméstica ampliada o u descentralizada n e m u m a f o r m a ç ã o social s u p e r i o r que r e ú n e
e m si várias comunidades d o mé s ti c a s . Pode s e r assim, mas, e m r e g r a , n ã o é. Pois se,
n u m caso particular, o c í r c u l o da pertinência ao clã abrange todos os m e m b r o s da
comunidade doméstica o u está d i v i d i d o , isso depende — c o n f o r m e e x p l i c a r e m o s mais
tarde — de seu p r i n c í p i o estrutural que, e m certas circunstâncias, subordina pais e
filhos a clãs diferentes. A influência da comunidade pode limitar-se à p r o i b i ç ã o de
casamentos entre os m e m b r o s ( e x o g a m i a ) e, p a r a este f i m , p o d e m existir signos distin-
tivos comuns e a crença na d e s c e n d ê n c i a de u m objeto natural, representado p o r aquele
signo (na m a i o r i a das vezes, u m a n i m a l ) que os m e m b r o s do clã, e m r e g r a , n ã o d e v e m
comer ( t o t e m i s m o ) A l é m disso, h á a p r o i b i ç ã o de lutas entre os m e m b r o s e o d e v e r
de v i n g a n ç a de sangue (às v e z e s , limitado a determinados graus de parentesco p r ó x i m o )
e a responsabilidade p o r esta e m face dos demais m e m b r o s . D i s s o d e r i v a a d e c l a r a ç ã o
de g u e r r a coletiva e m caso de h o m i c í d i o e o direito e d e v e r dos m e m b r o s do clã,
e m caso de pagamento de r e p a r a ç õ e s , de participar destas, pagando o u recebendo.
Se, diante da v i n g a n ç a dos h o m e n s , o clã é solidariamente responsável, p o r apoiar
no processo j u r í d i c o a q u e m presta j u r a m e n t o , o m e s m o o c o r r e diante da v i n g a n ç a
dos deuses, e m caso de u m j u r a m e n t o falso. A s s i m , o clã representa a garantia da
segurança e do direito do i n d i v í d u o . T a m b é m é possível que a comunidade de v i z i n h a n -
ça, criada pela c o l o n i z a ç ã o (aldeia, comunidade de l a v o u r a ) , coincida c o m a de clã,
sendo que a doméstica aparece c o m o a unidade mais estreita dentro da mais a m p l a
do clã. Mas m e s m o s e m isto, p o d e m existir, permanentemente, direitos muitas vezes
bastante sensíveis dos m e m b r o s d o clã diante da autoridade doméstica: direito de p r o -
testo contra a a l i e n a ç ã o de p a t r i m ô n i o d o m é s t i c o , direito de participação na v e n d a
de filhas para casamento e na f i x a ç ã o d o p r e ç o da n o i v a , direitos de tutela etc.

A f o r m a p r i m o r d i a l de f a z e r v a l e r interesses prejudicados é a solidária defesa


própria do clã. E as categorias m a i s antigas de u m procedimento a f i m ao " p r o c e s s o "
j u r í d i c o s ã o a arbitragem de controvérsias, p o r u m lado, dentro das comunidades coer-
civas — dentro das domésticas, pelo detentor da autoridade d o m é s t i c a , dentro das
de clã, pelo " m a i s v e l h o " , c o m o m e l h o r conhecedor dos costumes — e, p o r outro,
entre várias casas e clãs — a sentença arbitral baseada n u m acordo. C o m o r e l a ç ã o
de d e v e r e de piedade d e r i v a d a da d e s c e n d ê n c i a c o m u m efetiva, fictícia o u artificial-
mente c r i a d a p o r irmandade de sangue, entre pessoas que, a l é m de m e m b r o s de c o m u n i -
dades domésticas diferentes, p o d e m t a m b é m ser m e m b r o s de unidades políticas distintas
o u até de comunidades lingüísticas d i v e r s a s , o clã coloca-se diante da associação política
c o m u m a autonomia que se nivela e c r u z a c o m a desta. A comunidade de clã pode
carecer d e qualquer o r g a n i z a ç ã o , sendo u m a e s p é c i e de réplica passiva da casa autorita-
r i a m e n t e d i r i g i d a . Para suas f u n ç õ e s n o r m a i s , n ã o precisa de u m dirigente permanente
c o m a l g u m direito de m a n d o e, de fato, n ã o está subordinada, e m r e g r a , a tal pessoa,
mas constitui u m c í r c u l o a m o r f o d e pessoas cuja característica c o m u m e x t e r n a consiste,
no m á x i m o , n u m a c o m u n i d a d e de culto positiva o u n o temor negativo d e p r o f a n a r
252 MAX WEBER

o u de c o m e r o objeto sagrado c o m u m ( t a b u ) f e n ô m e n o cujos fundamentos religiosos


e x a m i n a r e m o s m a i s tarde. Supor que os clãs organizados continuamente sob u m a e s p é -
cie de g o v e r n o s ã o , e m r e g r a , a f o r m a m a i s antiga, c o m o o faz p o r e x e m p l o G i e r k e ,
é pouco possível. A o contrário: cabe c o m o r e g r a que t a m b é m o clã somente apresenta
" r e l a ç õ e s associativas" q u a n d o se trata de " f e c h a r " p a r a o e x t e r i o r m o n o p ó l i o s e c o n ô -
micos o u sociais. Se existe u m chefe de clã e o p r ó p r i o clã funciona na f o r m a de u m a
associação política, isso é d e v i d o muitas vezes n ã o às c o n d i ç õ e s internas da associação
de clã, mas a sua e x p l o r a ç ã o p a r a fins originalmente estranhos — políticos, militares
o u e c o n ô m i c o s — e a sua classificação, assim condicionada, c o m o s u b d i v i s ã o d e unida-
des sociais que, na v e r d a d e , s ã o h e t e r o g ê n e a s (assim, agens, c o m o s u b d i v i s ã o da cúria -,
os clãs, c o m o s e ç õ e s d o e x é r c i t o e t c . ) É t a m b é m característico, e particularmente e m
é p o c a s c o m ações comunitárias de resto pouco desenvolvidas, que a c o m u n i d a d e d o m é s -
tica, o clã, a comunidade d e vizinhança e a c o m u n i d a d e politica se c r u z e m entre s i
de tal m o d o que os m e m b r o s da casa o u da aldeia p e r t e n ç a m a clãs distintos, e os
m e m b r o s d o clã, a comunidades políticas e até comunidades de línguas diferentes e
que a c o n t e ç a , portanto, de v i z i n h o s o u m e m b r o s da m e s m a comunidade politica o u
até doméstica se e n c o n t r a r e m e m situações que os o b r i g u e m a e x e r c e r , uns contra
os outros, a v i n g a n ç a de sangue. S ó a m o n o p o l i z a ç ã o progressiva do e m p r e g o da v i o l ê n -
cia física pela comunidade política e l i m i n o u esses drásticos "conflitos de d e v e r " . Mas,
e m c o n d i ç õ e s nas quais a a ç ã o comunitária política t e m apenas o caráter de a ç ã o casual
e intermitente, e m caso de a m e a ç a aguda o u c o m o u n i ã o de pessoas dispostas a espoliar
o u caçar, a importância d o clã e o g r a u de r a c i o n a l i z a ç ã o de sua estrutura e seus deveres
f r e q ü e n t e m e n t e estão desenvolvidos até o ponto d e u m a casuística quase escolástica,
p o r e x e m p l o , na Austrália.
O m o d o c o m o s ã o reguladas as relações de clã e, através destas, as relações
sexuais, é importante e m v i r t u d e de sua r e p e r c u s s ã o sobre o desenvolvimento da estru-
tura pessoal e e c o n ô m i c a das comunidades domésticas. A criança, segundo pertença
ao clã da m ã e ("filiação m a t r i l i n e a r " ) o u ao d o pai ("filiação p a t r i l i n e a r " ) está submetida
à autoridade de u m a casa e participa n a p r o p r i e d a d e de outra comunidade doméstica
e, particularmente nas oportunidades de a q u i s i ç ã o apropriadas p o r esta, dentro de
outras comunidades ( e c o n ô m i c a s , estamentais, p o l í t i c a s ) Por isso, essas outras comuni-
dades estão t a m b é m interessadas n o m o d o de r e g u l a ç ã o da pertinência à casa, e da
a t u a ç ã o conjunta de seus interesses, condicionados, p r i m e i r o , economicamente e, de-
pois, politicamente, d e r i v a a o r d e m válida n o caso concreto. É importante ter b e m
c l a r o , desde o princípio, que a comunidade d o m é s t i c a i n d i v i d u a l , q u a n d o a l é m dela
e x i s t e m outras associações q u e a i n c l u e m e que d i s p õ e m de oportunidades e c o n ô m i c a s
e outras, n ã o é, d e m o d o a l g u m , a u t ô n o m a n o que se r e f e r e ao m o d o de " i m p u t a ç ã o "
dos filhos e tanto menos p o d e m s ê - l o quanto m a i s essas oportunidades se t o r n e m escas-
sas. O s interesses mais diversos, impossíveis de s e r e m analisados aqui e m seus detalhes,
d e t e r m i n a m a d e c i s ã o pela f i l i a ç ã o patrilinear o u m a t r i l i n e a r , c o m suas c o n s e q ü ê n c i a s .
No caso da filiação m a t r i l i n e a r — u m a v e z q u e a d o m i n a ç ã o f o r m a l da casa pela m ã e ,
ainda que às vezes exista, constitui u m a e x c e ç ã o condicionada p o r circunstâncias espe-
ciais — s á o , depois d o p a i , os i r m ã o s da m ã e aqueles sob cuja p r o t e ç ã o e disciplina
a criança se coloca e dos quais ela recebe a h e r a n ç a ( " a v u n c u l a d o " ) No caso da filiação
patrilinear, a criança está sujeita, depois da do p a i , à autoridade dos parentes paternos
e recebe deste lado a h e r a n ç a . E n q u a n t o que, na c u l t u r a a t u a l , parentesco e sucessão
hereditária a t u a m , e m r e g r a , d e m o d o " c o g n a t o " , isto é, igualmente pelo lado paterno
e materno, e a autoridade doméstica cabe s e m p r e ao p a i o u , na falta deste, a u m
tutor convocado, n a m a i o r i a das vezes mas n ã o necessariamente, d o círculo dos cogita-
dos m a i s p r ó x i m o s e c o n f i r m a d o e controlado pelas autoridades p ú b l i c a s , encontramos
ECONOMIA E SOCIEDADE 253

f r e q ü e n t e m e n t e n o passado u m a d e c i s ã o r a d i c a l p o r u m dos dois princípios mencio-


nados. Entretanto, isso n ã o o c o r r e necessariamente n o sentido de que, dentro de u m a
comunidade, u m desses princípios tenha v i g ê n c i a e x c l u s i v a p a r a todas as comunidades
domésticas, mas t a m b é m de que, dentro de u m a m e s m a , se i m p o n h a e m parte u m ,
e m parte o outro, m a s , naturalmente, e m cada caso concreto, s e m p r e apenas u m dos
dois. O caso m a i s simples dessa c o n c o r r ê n c i a é condicionado pela d i f e r e n c i a ç ã o de
bens. As filhas, c o m o todas as crianças, s ã o consideradas propriedade útil da comunidade
doméstica e m que n a s c e r a m . Esta d i s p õ e daquelas. O chefe pode colocá-las, do m e s m o
m o d o que sua m u l h e r , à d i s p o s i ç ã o s e x u a l de seus h ó s p e d e s , p e r m i t i r que s e j a m utiliza-
das sexualmente, p o r certo t e m p o o u de m o d o permanente, e m troca de bens o u s e r v i -
ços. Essa utilização das filhas da casa, que parece u m a e s p é c i e d e prostituição, constitui
parte c o n s i d e r á v e l dos casos compreendidos sob o n o m e coletivo, p o u c o c l a r o , de
" m a t r i a r c a d o " : neste caso, h o m e m e m u l h e r p e r m a n e c e m cada u m e m sua comunidade
doméstica; os filhos na da m ã e ; o h o m e m é completamente estranho a estes e apenas
entrega, p a r a e x p r e s s á - l o na linguagem m o d e r n a , " a l i m e n t o s " ao chefe da casa. N ã o
existe, portanto, c o m u n i d a d e doméstica constituída p o r h o m e m , m u l h e r e filhos. Esta
pode nascer c o m base na filiação patrilinear o u matrilinear. O h o m e m que d i s p õ e
de meios p a r a pagar u m a m u l h e r à vista, toma-a de sua casa e de seu clã e leva-a
à casa dele. Sua comunidade d o m é s t i c a torna-se plenamente proprietária dela e, c o m
isso, t a m b é m de seus filhos. A o contrário, q u e m n ã o pode pagar, se lhe é p e r m i t i d a
pelo chefe da casa a u n i ã o d o m é s t i c a c o m a m u l h e r desejada, t e m de entrar na c o m u n i -
dade doméstica dela o u temporariamente, p a r a pagá-la c o m prestação de serviços ( " m a -
t r i m ô n i o de s e r v i ç o " ) o u de m o d o p e r m a n e n t e , ficando, neste caso, a comunidade
doméstica da m u l h e r c o m a autoridade sobre esta e os filhos. Por conseguinte, o chefe
de u m a comunidade doméstica abastada c o m p r a , p o r u m lado, p a r a s i m e s m o e p a r a
os filhos m u l h e r e s de outras, m e n o s abastadas ( m a t r i m ô n i o de " d i g a " ) e obriga, p o r
outro lado, os pretendentes s e m f o r t u n a d e suas filhas a entrar na sua ( m a t r i m ô n i o
de " b i n a " ) . C o e x i s t e m , e n t ã o , p a r a pessoas diferentes, dentro de uma mesma c o m u n i -
dade d o m é s t i c a , a filiação patrilinear — a pertinência à casa e ao clã d o pai — e a
filiação m a t r i l i n e a r — pertinência à casa e ao clã da m ã e , b e m c o m o a autoridade
doméstica p a t e r n a — a u t o r i d a d e da casa d o h o m e m — e a autoridade doméstica materna
— autoridade da comunidade doméstica da m ã e . Mas neste caso, o mais simples, a
filiação patrilinear está s e m p r e v i n c u l a d a à autoridade doméstica paterna, assim c o m o
a filiação m a t r i l i n e a r , à autoridade doméstica materna. Estas relações complicam-se
q u a n d o o h o m e m leva a m u l h e r à c o m u n i d a d e doméstica dele — surgindo, portanto,
a autoridade doméstica paterna — , mas continua existindo, apesar disso, a filiação
matrilinear, isto é, a pertinência e x c l u s i v a dos filhos ao clã da m ã e , sendo este a c o m u n i -
dade s e x u a l e x ó g a m a e de v i n g a n ç a de sangue, a l é m de s e r a única da q u a l eles r e c e b e m
herança. O t e r m o " m a t r i a r c a d o " , e m sentido técnico, d e v e r i a limitar-se a este caso.
Pelo que se saiba, a situação n u n c a se apresenta nesta f o r m a , que restringe a u m m í n i m o
a p o s i ç ã o d o pai diante dos filhos, fazendo c o m que p a i e filhos, apesar da autoridade
doméstica d o p r i m e i r o , c o n v i v a m c o m o j u r i d i c a m e n t e estranhos, mas s i m , e m várias
f o r m a s intermediárias; a casa da m ã e , ao d a r a m u l h e r à casa do h o m e m , r e t é m d e t e r m i -
nada parte de seus direitos sobre a m u l h e r e os filhos. E m v i r t u d e da tenacidade do
t e m o r supersticioso já a rra i g a d o do incesto, muitas vezes subsiste a e x o g a m i a d o clã
m a t e r n o t a m b é m e m r e l a ç ã o aos filhos, b e m c o m o c o m f r e q ü ê n c i a , a participação,
e m escala d i v e r s a , na comunidade de sucessão hereditária da casa da m ã e . Particu-
l a r m e n t e nesta á r e a , os clãs d o pai e da m ã e e n t r a m e m lutas cujos resultados muito
variados e s t ã o condicionados pelas c o n d i ç õ e s de p r o p r i e d a d e da terra e, especialmente,
pela influência da c o m u n i d a d e de vizinhança da aldeia e p o r ordens militares.
254 MAX WEBER

§ 5. R e l a ç õ e s c o m a o r g a n i z a ç ã o m i l i t a r e e c o n ô m i c a .
O "direito de b e n s n o m a t r i m ô n i o " e o direito hereditário

I n f e l i z m e n t e , as relações entre clã, aldeia, comunidade r u r a l e o r g a n i z a ç ã o política


pertencem ainda às áreas mais obscuras e menos investigadas da E t n o g r a f i a e da história
e c o n ô m i c a . A t é hoje n ã o há n e n h u m caso no qual estas relações tenham sido totalmente
esclarecidas, n o que se r e f e r e às c o n d i ç õ e s primitivas n e m dos povos civilizados n e m
dos chamados povos p r i m i t i v o s , tampouco, apesar das trabalhos de Morgan, dos índios.
A comunidade de v i z i n h a n ç a de u m a aldeia pode ter nascido, n o caso concreto, e m
v i r t u d e da divisão de u m a comunidade doméstica, n o d e c o r r e r da sucessão hereditária.
Nos tempos da transição da agricultura n ô m a d e à sedentária, a distribuição do solo
pode orientar-se pela estruturação dos clãs, já que esta costuma ser levada e m conta
na o r g a n i z a ç ã o do e x é r c i t o , de m o d o que as terras da aldeia s ã o ao m e s m o tempo
as do clã. Isto parece n ã o ter sido r a r o na antiguidade g e r m â n i c a , pois as fontes falam
degenealogiae, c o m o proprietários de grandes terras, t a m b é m e m casos e m que eviden-
temente se r e f e r e m à o c u p a ç ã o destas terras p o r u m a família n o b r e e s e u séquito.
Mas dificilmente f o i esta a regra. E n t r e as unidades militares (de m i l o u c e m h o m e n s ) ,
que passaram de quadros pessoais a unidades territoriais, e os clãs n ã o houve, pelo
que se saiba, n e n h u m a r e l a ç ã o u n í v o c a ; tampouco entre estes e as comunidades de
lavoura.
D e m o d o g e r a l , s ó é possível dizer-se o seguinte: o solo pode ser considerado:
1) antes de mais nada, u m lugar de trabalho. Neste caso, na m e d i d a e m que o cultivo
se baseia principalmente e m trabalho f e m i n i n o , todo o r e n d i m e n t o e toda a propriedade
cabem, c o m f r e q ü ê n c i a , às m u l h e r e s . O p a i , e n t ã o , n ã o tem terras p a r a d e i x a r aos
filhos; a sucessão hereditária destas realiza-se por i n t e r m é d i o da casa e d o clã da m ã e ;
do pai herdam-se apenas objetos de uso militar — a r m a s , cavalos — e instrumentos
de trabalho artesanal masculino. E m f o r m a p u r a , este caso quase nunca se v e r i f i c a .
O solo pode ser considerado, ao c o n t r á r i o , 2 ) propriedade dos homens, obtida e defen-
dida c o m a espada, na qual pessoas s e m a r m a s n ã o p o d e m participar e, portanto, m u l h e r
alguma. E n t ã o a comunidade política local d o pai pode estar interessada e m assegurar
para si os filhos dele, c o m o futuros g u e r r e i r o s , e u m a v e z que estes e n t r a m na comuni-
dade militar do p a i , h e r d a m d o lado dele as terras e do lado da m ã e apenas a propriedade
m ó v e l . A l é m disso, o c o r r e s e m p r e 3 ) que a comunidade de v i z i n h a n ç a de u m a aldeia
o u a comunidade r u r a l r e t é m p a r a si alguns direitos sobre as terras ganhas mediante
desmatamento c o m u m , isto é, p o r trabalho m a s c u l i n o , e n ã o tolera que as terras passem
p o r h e r a n ç a a filhos que n ã o pa rti c i pe m, e m todos os aspectas, nos deveres de sua
associação. A luta entre estas determinantes e outras, eventualmente ainda mais c o m p l i -
cadas, dá resultados muito diversos. Mas tampouco é possível a f i r m a r — c o m o poderia
p a r e c e r , segundo o que foi dito — 4 ) que o caráter predominantemente militar de
u m a comunidade atua de p e r si inequivocamente e m d i r e ç ã o à autoridade doméstica
paterna e à i m p u t a ç ã o de parentesco e de bens p u r a m e n t e patrilinear ( " a g n á t i c a " ) .
Isto depende totalmente da natureza da o r g a n i z a ç ã o militar. Q u a n d o esta, mediante
u n i ã o permanente e exclusiva de todos os h o me n s e m idade de portar a r m a s , levava
a u m a comunidade especial c o m caráter de quartel — tal c o m o a representada na
f o r m a mais p u r a pela típica " c a s a dos h o m e n s " , o u a n d r o c e u , descrita por Schurz,
e pelas sissítias espartanas — , podia o c o r r e r muito b e m , e n ã o r a r o o c o r r e u de fato,
que a saída d o h o m e m da comunidade f a m i l i a r , constituída e m c o n s e q ü ê n c i a disso
c o m o " g r u p o m a t e r n o " , conduzisse à i m p u t a ç ã o dos filhos e dos bens adquiridos à
casa da m ã e o u , pelo menos, a u m a p o s i ç ã o relativamente a u t ô n o m a da m ã e e dona
de casa, tal c o m o nos é e x e m p l i f i c a d o p o r Esparta. O s n u m e r o s o s meios supersticiosos,
ECONOMIA E SOCIEDADE 255

inventados p a r a intimidar e espoliar as m u l h e r e s (por e x e m p l o , o aparecimento p e r i ó -


dico e a e x p e d i ç ã o d e pilhagem dos D u k - D u k ) , r e p r e s e n t a m a r e a ç ã o dos homens separa-
dos da casa contra essa a m e a ç a a sua autoridade. A o c o n t r á r i o , q u a n d o os m e m b r o s
da casta militar estavam dispersos pelo país, c o m o senhores de terras, a tendência
à estrutura p a t r i a r c a l e agnática da casa e d o clã e r a quase s e m p r e predominante. O s
povos fundadores de grandes i m p é r i o s , n o E x t r e m o O r i e n t e e na í n d i a , b e m c o m o
na Ásia Menor, n o M e d i t e r r â n e o e n o norte e u r o p e u , d e s e n v o l v e r a m todos eles (sem
e x c l u i r os e g í p c i o s , c o m o muitas vezes se f a z ) o sistema patrilinear, que i n c l u i u t a m b é m
( c o m e x c e ç ã o dos e g í p c i o s ) a i m p u t a ç ã o de parentesco e de bens exclusivamente a g n á -
tica. Isso se deve essencialmente a que a f u n d a ç ã o de grandes unidades políticas n ã o
pode ser sustentada, de m o d o d u r a d o u r o , p o r pequenas comunidades monopolistas
de g u e r r e i r o s e e m f o r m a de quadros constituídos p o r v i z i n h o s , do tipo da " c a s a dos
h o m e n s " , mas r e q u e r — nas c o n d i ç õ e s da economia n ã o - m o n e t á r i a — , e m r e g r a , a
s u b m i s s ã o p a t r i m o n i a l e s e n h o r i a l dos territórios, m e s m o nos casos e m que o ponto
de partida é u m a c o m u n i d a d e local de g u e r r e i r o s , c o m o na Antiguidade. O desenvol-
vimento d o s e n h o r i o t e r r i t o r i a l , c o m seu aparato de f u n c i o n á r i o s , parte n o r m a l m e n t e
de u m a comunidade d o m é s t i c a que, sob a autoridade d o p a i , c o m o senhor da casa,
se organiza e m d i r e ç ã o a u m aparato de d o m i n a ç ã o , originando-se, portanto, p o r toda
parte, do poder paterno. N ã o há quaisquer provas sérias que a p o i e m a a f i r m a ç ã o de
que este estado de " p a t r i a r c a d o " predominante naqueles povos jamais tenha sido prece-
dido por outro, pelo m e n o s n ã o desde o m o m e n t o e m que entre eles as relações f a m i l i a -
res c o m e ç a r a m a ser objeto da f o r m a ç ã o de n o r m a s jurídicas. Particularmente a hipótese
da p r e d o m i n â n c i a u n i v e r s a l , nos tempos p r i m i t i v o s , do "casamento c o m m a t r i a r c a d o "
é u m a c o n s t r u ç ã o s e m v a l o r que confunde duas coisas totalmente h e t e r o g ê n e a s : a p r i m i -
tiva inexistência de qualquer r e g u l a ç ã o jurídica das relações filiais, e a r e l a ç ã o pessoal
mais íntima, que de fato existe, e m r e g r a , entre os filhos e a m ã e que os amamenta
e cria, e a situação jurídica que unicamente m e r e c e o n o m e de matriarcado. E r r ô n e a
é, t a m b é m , naturalmente, a idéia de que u m estado intermediário u n i v e r s a l , o " m a t r i -
m ô n i o p o r r a p t o " , c o n d u z i u d o " p r i m i t i v o " sistema m a t r i l i n e a r u n i v e r s a l ao sistema
do " p a t r i a r c a d o " . Legalmente, u m a m u l h e r somente pode ser adquirida de u m a casa
alheia mediante c o m p r a o u troca. O rapto de m u l h e r e s leva a lutas e r e p a r a ç õ e s . Mas
a m u l h e r raptada, c o m o t r o f é u , adorna o h e r ó i , assim c o m o o escalpo d o inimigo,
e p o r esse motivo o ritual de casamento é muitas vezes u m rapto simulado da m u l h e r ,
sem que, por isso, o rapto efetivo represente u m a " f a s e " na história do direito.

E m c o n f o r m i d a d e c o m isso, o desenvolvimento da estrutura jurídica interna das


relações de p r o p r i e d a d e da comunidade doméstica entre os povos fundadores de gran-
des i m p é r i o s significa a debilitação progressiva do poder paterno ilimitado. U m a das
c o n s e q ü ê n c i a s desse caráter ilimitado do poder paterno e r a particularmente a inexis-
tência da distinção entre filhos " l e g í t i m o s ' ' e " i l e g í t i m o s ' ' , f e n ô m e n o que ainda se encon-
tra n o direito n ó r d i c o da Idade M é d i a , c o m o remanescente do p r i m i t i v o l i v r e arbítrio
do senhor da casa na d e c i s ã o de q u e m e r a e q u e m n ã o e r a f i l h o " s e u " . S ó c o m a
intervenção das comunidades políticas e e c o n ô m i c a s , que v i n c u l a r a m a qualidade de
m e m b r o delas à d e s c e n d ê n c i a de u n i õ e s " l e g í t i m a s " , isto é, de u n i õ e s d u r a d o u r a s c o m
m u l h e r e s do p r ó p r i o c í r c u l o , a situação m u d o u definitivamente. Mas a etapa mais impor-
tante n o processo de estabelecimento desse princípio, isto é, de distinção entre filhos
" l e g í t i m a s " e " i l e g í t i m o s " , e da garantia jurídica da herança aos p r i m e i r o s é alcançada
na m a i o r i a das vezes quando, dentro das camadas proprietárias o u estamentalmente
privilegiadas, depois de desaparecer a c o n s i d e r a ç ã o da m u l h e r p u r a m e n t e c o m o f o r ç a
de trabalho, surge a tendência a assegurar por contrato a p o s i ç ã o jurídica da f i l h a
de casa, v e n d i d a e m m a t r i m ô n i o , e sobretudo a de seus filhos, contra o arbítrio original-
256 MAX WEBER

mente l i v r e d o comprador: seus bens d e v e m passar aos filhos desse m a t r i m ô n i o , e


isto de m o d o exclusivo. O impulso nesse sentido n ã o v e m , portanto, da necessidade
de " l e g i t i m i d a d e " de seus filhos p a r a o h o m e m , mas s i m p a r a a m u l h e r . C o m o aumento
das e x i g ê n c i a s referentes ao nível de v i d a e, e m c o n s e q ü ê n c i a disso, d o custo de u m a
v i d a doméstica " a d e q u a d a ao status", a casa tende progressivamente a " d o t a r " a f i l h a
v e n d i d a e m m a t r i m ô n i o , a q u a l n ã o é mais f o r ç a de trabalho, mas u m objeto de luxo.
O dote representa sua parte da propriedade da comunidade doméstica de que p r o v é m
(claramente desenvolvido, nesta f o r m a , n o direito do antigo O r i e n t e e da G r é c i a antiga)
e, ao m e s m o tempo, proporciona-lhe a "capacidade m a t e r i a l " de r o m p e r o arbítrio
ilimitado do h o m e m que a c o m p r e , u m a v e z que este terá de d e v o l v ê - l o se a repudiar.
E m g r a u muito d i v e r s o e n e m s e m p r e e m f o r m a de n o r m a s jurídicas p r o p r i a m e n t e
ditas, alcança-se, pouco a pouco, este objetivo, e muitas vezes de m o d o t ã o completo
que apenas o m a t r i m ô n i o c o m dote é considerado u m m a t r i m ô n i o perfeito (&yypa<po<5
yájjios, n o Egito). N ã o podemos deter-nos no e x a m e do desenvolvimento ulterior do
" d i r e i t o de bens n o m a t r i m ô n i o " . M u d a n ç a s decisivas o c o r r e m s e m p r e que regride
a v a l o r i z a ç ã o militar da propriedade de terras, c o m o b e m a d q u i r i d o c o m a espada
o u c o m o base de equipamento de pessoas economicamente capazes de portar armas
(capazes de equipar-se a si m e s m a s ) e a propriedade de terras passa a ser avaliada
de m o d o predominantemente e c o n ô m i c o , a d q u i r i n d o t a m b é m as filhas o direito de
h e r d a r terras. Segundo a existência da família se baseie principalmente na aquisição
c o m u m o u , ao contrário, na r e n d a da propriedade h e r d a d a , o c o m p r o m i s s o entre os
interesses atingidos do h o m e m e da m u l h e r e seu clã apresentam f o r m a s muito variadas.
No p r i m e i r o caso, h o u v e , f r e q ü e n t e m e n t e , na Idade M é d i a ocidental, u m desen-
v o l v i m e n t o n o sentido da " c o m u n i d a d e de b e n s " . No segundo, p r e f e r i u - s e a chamada
" c o m u n i d a d e de a d m i n i s t r a ç ã o " (administração e usufruto, pelo m a r i d o , dos bens da
e s p o s a ) enquanto que, nas camadas feudais, a tendência a n ã o d e i x a r que as terras
saíssem da posse da família l e v o u ao chamado " m a t r i m ô n i o de v i u v e z " (desenvolvido
tipicamente na Inglaterra e que atende o sustento da viúva mediante u m a r e n d a vinculada
à propriedade de terras). A l é m disso, i n t e r f e r e m as determinantes mais diversas. As
aristocracias r o m a n a e inglesa assemelham-se quanto à sua situação social. Mas, na
Antiguidade r o m a n a , s u r g i u a plena e m a n c i p a ç ã o e c o n ô m i c a e pessoal da esposa, e m
v i r t u d e do desenvolvimento d o " m a t r i m ô n i o l i v r e " , dissolúvel a cada momento e conse-
g u i d o e m troca d o desamparo total da viúva e da renúncia aos direitos maternos, e m
o p o s i ç ã o ao poder ilimitado do pai sobre os filhos. Na Inglaterra, a esposa foi mantida,
e c o n ô m i c a e pessoalmente, na coverture, que a n u l a v a totalmente sua personalidade
jurídica, mas c o m a impossibilidade quase absoluta — p a r a ela — de dissolver o " m a t r i -
m ô n i o de v i u v e z " feudal. O caráter u r b a n o da m a i o r parte da nobreza r o m a n a e a
influência do patriarcalismo m a t r i m o n i a l cristão, na I n g l a t e r r a , d e v e m ter condicionado
essa d i f e r e n ç a . E m contraste c o m a subsistência do direito m a t r i m o n i a l f e u d a l , na Ingla-
t e r r a , e c o m a estrutura específica d o direito m a t r i m o n i a l f r a n c ê s , inspirada e m inte-
resses militaristas e pequeno-burgueses ( n o C ó d i g o de N a p o l e ã o , mediante a influência
pessoal de s e u i n s p i r a d o r ) temos e m Estados burocráticos ( n a Áustria e, sobretudo,
na Rússia) u m direito d e bens n o m a t r i m ô n i o c o m forte nivelamento das diferenças
de s e x o , que costuma estar mais desenvolvido o n d e é mais r e p r i m i d o o m i l i t a r i s m o
nas classes dirigentes. A l é m disso, a distribuição dos bens n o m a t r i m ô n i o , e m c o n d i ç õ e s
de i n t e r c â m b i o d e bens desenvolvido, é condicionada, e m grande parte, pela necessi-
dade d e assegurar p a r a s i os credores. N ã o cabe e x p o r a q u i os resultados particulares,
muito v a r i a d o s , desses momentos de desenvolvimento.

O m a t r i m ô n i o " l e g í t i m o " , nascido dos interesses da m u l h e r , n ã o leva necessa-


riamente ao d o m í n i o e x c l u s i v o da monogamia. A m u l h e r p r i v i l e g i a d a , n o que se r e f e r e
ECONOMIA E SOCIEDADE 257

ao direito de h e r a n ç a de seus filhos, pode ser destacada do c í r c u l o das outras m u l h e r e s


c o m o " m u l h e r p r i n c i p a l " , c o n f o r m e o c o r r e u n o O r i e n t e , n o Egito e na m a i o r i a das
r e g i õ e s de c u l t u r a asiática. Naturalmente, t a m b é m esta f o r m a de poligamia (a " s e m i p o l i -
g a m i a " ) é p o r toda parte u m privilégio dos ricos. Pois a posse de várias m u l h e r e s
somente é l u c r a t i v a onde, na agricultura, p r e d o m i n a ainda o trabalho f e m i n i n o e onde
o trabalho têxtil artesanal da m u l h e r é bastante recompensador ( c o m o ainda p r e s s u p õ e
o T a l m u d e ) a grande p r o p r i e d a d e de m u l h e r e s dos chefes cafres é considerada u m
investimento útil de capital, mas p r e s s u p õ e t a m b é m , p o r parte do h o m e m , meios sufi-
cientes p a r a c o m p r á - l a s . E m c o n d i ç õ e s de importância predominante do trabalho mascu-
lino e sobretudo e m camadas sociais nas quais as m u l h e r e s somente participam n o
trabalho — considerado u m a coisa indigna de gente l i v r e — c o m o diletantes o u p a r a
demandas de l u x o , a p o l i g a m i a , pelo p r ó p r i o fato de ser muito o n e r o s a , n ã o é possível
às camadas de m é d i o s proprietários. A monogamia c o m o instituição realizou-se p r i m e i r o
entre os helenos ( p o r é m nas camadas principescas, m e s m o nos tempos dos d i á d o c o s ,
de m o d o bastante l á b i l ) e os r o m a n o s , na é p o c a de transição ao d o m í n i o de u m a burgue-
sia u r b a n a patrícia, p a r a cujas f o r m a s de v i d a doméstica ela e r a adequada. Depois,
o cristianismo a e l e v o u , p o r razões ascéticas, à n o r m a absoluta, e m o p o s i ç ã o (original-
m e n t e ) a todas as demais religiões. A poligamia manteve-se particularmente onde a
estrutura estritamente patriarcal do poder político f a v o r e c e u t a m b é m a c o n s e r v a ç ã o
da arbitrariedade do senhor da casa.
Para o desenvolvimento da comunidade doméstica c o m o tal o desenvolvimento
do m a t r i m ô n i o c o m dote é relevante sob dois aspectos: p r i m e i r o , pelo fato de que
agora os filhos " l e g í t i m o s " , c o m o pretendentes ao p a t r i m ô n i o paterno, estão d i f e r e n -
ciados dos filhos das concubinas, e m v i r t u d e de sua p o s i ç ã o jurídica especial dentro
da casa; e m segundo lugar e nomeadamente, pelo fato de que a entrega dos dotes
que d i f e r e m de acordo c o m a riqueza da família da m u l h e r , p o r parte das m o ç a s que
se casam c o m m e m b r o s da casa, tem a tendência inerente a diferenciar a situação
e c o n ô m i c a d e seus maridos. F o r m a l m e n t e , os dotes entregues costumam cair simples-
mente sob o d o m í n i o do senhor da casa (como t a m b é m no direito r o m a n o ) Mas, mate-
r i a l m e n t e , costuma-se r e g i s t r a r o dote da esposa n u m a " c o n t a e s p e c i a l " d o r e s p e c t i v o
m a r i d o . A s s i m o " c á l c u l o " c o m e ç a a p e n e t r a r nas r e l a ç õ e s dos m e m b r o s da c o m u -
nidade.
Mas esse desenvolvimento r u m o à dissolução da comunidade doméstica já f o i
posto e m m o v i m e n t o , nessa fase, e m r e g r a , por outros motivos e c o n ô m i c o s . O s e n f r a -
quecimentos economicamente condicionados d o c o m u n i s m o indiferenciado o c o r r e r a m ,
e m seus inícios, e m tempos tão remotos que talvez a f o r m a íntegra deste tenha sido,
historicamente, apenas u m caso-limite. Q u a n t o a bens de uso, c o m o artefatos, f e r r a -
mentas, a r m a s , jóias, roupas etc., rege o p r i n c í p i o de que o produtor i n d i v i d u a l está
autorizado a usá-los e x c l u s i v a o u preferencialmente, c o m o produtos de s e u trabalho
individual, e de que, a p ó s sua m o r t e , n ã o passam necessariamente às m ã o s de toda
a comunidade mas às de determinadas pessoas especificamente qualificadas p a r a usá-los
(o cavalo e a espada o u a a r m a d u r a e os utensílios d o m é s t i c o s legados, na Idade Média
e t c . ) Estas p r i m e i r a s f o r m a s de u m " d i r e i t o h e r e d i t á r i o " individual foram também
desenvolvidas muito cedo dentro do c o m u n i s m o d o m é s t i c o autoritário, procedendo
p r o v a v e l m e n t e das c o n d i ç õ e s anteriores ao desenvolvimento da própria comunidade
d o m é s t i c a , e f o r a m d i f u n d i d a s p o r toda p a r t e o n d e se desse c o m o c o n d i ç ã o p a r a
isso a p r o d u ç ã o i n d i v i d u a l d e f e r r a m e n t a s . E m a l g u n s casos — p o r e x e m p l o , n o
das a r m a s — , esse d e s e n v o l v i m e n t o p a r e c e r e p o u s a r t a m b é m n a i n t e r v e n ç ã o das
a u t o r i d a d e s m i l i t a r e s , interessadas n o e q u i p a m e n t o e c o n ô m i c o dos aptos p a r a o s e r -
viço militar.
258 MAX WEBER

§ 6. A d i s s o l u ç ã o d a c o m u n i d a d e d o m é s t i c a : m o d i f i c a ç õ e s
de s u a posição funcional e crescente "calculabilidade".
N a s c i m e n t o das m o d e r n a s s o c i e d a d e s m e r c a n t i s

O s motivos internos e externos que condicionam a d i m i n u i ç ã o da rigorosa a u t o r i -


dade doméstica intensificam-se n o curso do desenvolvimento cultural. Internamente,
atuam o desdobramento e a d i f e r e n c i a ç ã o das capacidades e necessidades, conjugados
ao aumento quantitativo dos meios e c o n ô m i c o s . Pois c o m a m u l t i p l i c a ç ã o das possibi-
lidades de v i d a o i n d i v í d u o suporta c o m crescente dificuldade a v i n c u l a ç ã o a f o r m a s
de v i d a fixas e indiferenciadas, prescritas pela comunidade, e deseja cada v e z mais
dar a sua v i d a u m a f o r m a individual e gozar do produto de suas capacidades individuais
c o m o lhe c o n v é m . E x t e r n a m e n t e , a d e c o m p o s i ç ã o é fomentada pelas intervenções de
f o r m a ç õ e s sociais concorrentes, t a m b é m , por e x e m p l o , de interesses fiscais n o a p r o v e i -
tamento mais intenso da capacidade tributária i n d i v i d u a l — intervenções que podem
atuar contra o interesse e m manter unida a p r o p r i e d a d e , e m f a v o r da capacidade de
prestação militar.
A c o n s e q ü ê n c i a n o r m a l daquelas tendências dissolventes é, e m p r i m e i r o lugar,
o aumento da divisão das comunidades domésticas e m caso de herança o u de casamento
dos filhos. O desenvolvimento histórico, a p ó s a s tempos primitivos — q u a n d o a agri-
cultura era realizada quase sem instrumentos e a a c u m u l a ç ã o de trabalho era o ú n i c o
meio de intensificar o rendimento — , e após u m p e r í o d o de aumento no tamanho
das comunidades domésticas teve c o m o c o n s e q ü ê n c i a o surgimento da aquisição indivi-
dualizada, que l e v o u à d i m i n u i ç ã o progressiva desse tamanho até a família de pais
e filhos atual, e m sua d i m e n s ã o n o r m a l . Neste sentido atuou a m o d i f i c a ç ã o fundamental
da p o s i ç ã o f u n c i o n a l da comunidade d o m é s t i c a , que está deslocada de tal m o d o que,
para o i n d i v í d u o , existem cada v e z menos motivos p a r a submeter-se a uma grande
comunidade doméstica comunista. Prescindindo-se do fato de que n ã o é mais a casa
n e m o clã que lhe garante sua s e g u r a n ç a , mas a associação institucionalizada do poder
politico a " c a s a " e a " p r o f i s s ã o " distanciaram-se t a m b é m localmente, e a comunidade
doméstica n ã o é mais o lugar da p r o d u ç ã o c o m u m mas o do consumo c o m u m . A l é m
disso, o i n d i v í d u o recebe crescentemente toda sua f o r m a ç ã o p a r a a v i d a , até m e s m o
para a v i d a puramente pessoal, f o r a da casa e por meios que n ã o lhe s ã o proporcionados
pela casa mas por " e m p r e e n d i m e n t o s " de todas as espécies: escola, l i v r a r i a , teatro,
sala de concertos, clubes, r e u n i õ e s etc. E l e n ã o pode mais reconhecer a comunidade
doméstica c o m o portadora de todos aqueles bens culturais objetivos a cujo serviço
se coloca, e o que favorece a c o n t r a ç ã o das comunidades domésticas n ã o é u m cresci-
mento do " s u b j e t i v i s m o " c o m o u m a " f a s e " psicossocial mas a situação objetiva que
condiciona esse crescimento. N ã o se deve d e i x a r de observar que t a m b é m o c o r r e m
obstruções desse desenvolvimento, e isso precisamente nos degraus " m a i s a l t o s " da
escala e c o n ô m i c a . Na área da agricultura, a possibilidade de u m a partilha l i v r e do solo
está v i n c u l a d a a c o n d i ç õ e s t é c n i c o - e c o n ô m i c a s : u m a propriedade c o m benfeitorias valio-
sas, que constitui u m a unidade, m e s m o tratando-se de u m a grande fazenda, só pode
ser d i v i d i d a c o m perdas. A divisão é tecnicamente facilitada q u a n d o o c a m p o e as casas
de aldeia estão concentrados, e dificultada q u a n d o esses elementos estão isolados. Por
isso, as propriedades isoladas e as grandes, c o m forte investimento de capital, tendem
à sucessão hereditária i n d i v i d u a l , enquanto que as pequenas, situadas e m meio a outras
e exploradas c o m trabalho intensivo, tendem à partilha progressiva, tanto mais que
as p r i m e i r a s s ã o objetos muito mais apropriados p a r a o g r a v a m e c o m direitos tributários
sobre a p r o p r i e d a d e m ó v e l , e m f o r m a de hipotecas permanentes e títulos hipotecários
— hoje e m dia t ã o favoráveis p a r a investimentos financeiros — , direitos esses que
ECONOMIA E SOCIEDADE 259

m a n t ê m a propriedade u n i d a e m f a v o r dos credores. A l é m disso, a grande p r o p r i e d a d e ,


simplesmente pelo fato de ser u m a posse e, c o m o tal portar u m a p o s i ç ã o social, sugere
p o r s i a c o n s e r v a ç ã o de sua unidade na família, e m c o n t r a p o s i ç ã o às pequenas parcelas
rurais, que s ã o apenas locais de trabalho. O nível s e n h o r i a l da c o n d u ç ã o da v i d a , que
encontra seu estilo e m c o n v e n ç õ e s sólidas, f a v o r e c e o sustento subjetivo de grandes
comunidades d o m é s t i c a s , as quais, por e x e m p l o , n o vasto e s p a ç o de u m castelo e c o m
a "distância i n t e r n a " que naturalmente aparece sobre esta base, m e s m o entre os parentes
mais p r ó x i m o s , n ã o constrangem o i n d i v í d u o , na esfera de liberdade p o r ele exigida,
tanto quanto u m a comunidade doméstica burguesa, c o m o m e s m o n ú m e r o de pessoas
p o r é m c o m menos e s p a ç o e s e m o sentido aristocrático da distância, o faz e m r e l a ç ã o
a seus m e m b r o s , às vezes muito mais diferenciados e m seus interesses vitais. F o r a
daquelas f o r m a s de v i d a senhoriais, a grande comunidade doméstica é, hoje, apenas
u m a f o r m a adequada de v i d a sobre a base de ideais comuns muito intensos, p o r e x e m -
plo, de u m a seita religiosa, ético-social o u artística — o que corresponde aos mosteiros
e comunidades semelhantes do passado.
T a m b é m ali onde a unidade da casa se m a n t é m externamente indivisa progride
de m o d o incontrolável, n o c u r s o do desenvolvimento c u l t u r a l , o processo de decom-
posição interna d o c o m u n i s m o d o m é s t i c o , e m v i r t u d e da crescente " c a l c u l a b i l i d a d e " .
E x a m i n a r e m o s agora m a i s de perto c o m o atua este fator.
Nas grandes c o m u n i d a d e s d o m é s t i c a s capitalistas das cidades m e d i e v a i s ( p o r
e x e m p l o , Florença), cada i n d i v í d u o já tem sua " c o n t a " . Para pequenas despesas pes-
soais, tem o d i n h e i r o de que pode dispor l i v r e m e n t e (danari borsinghi). Para determi-
nadas despesas (por e x e m p l o , o alojamento de h ó s p e d e s ) , tem u m m á x i m o estabelecido.
Para o resto, o i n d i v í d u o realiza o acerto de contas, c o m o o c o r r e entre os sócios de
qualquer companhia m e r c a n t i l m o d e r n a . E l e possui participações de capital " d e n t r o "
da comunidade e u m p a t r i m ô n i o (fuori dei corpo delia compagnia), que deixa nas
m ã o s da comunidade e sobre o qual esta lhe paga j u r o s , mas que n ã o conta c o m o
capital e, p o r isso, n ã o participa n o lucro. No lugar da participação " i n a t a " na a ç ã o
comunitária da casa, c o m suas vantagens e o b r i g a ç õ e s , surgiu portanto u m a r e l a ç ã o
associativa racional. S e m d ú v i d a , o i n d i v í d u o " n a s c e " dentro da comunidade, mas já
na infância é u m " c a i x e i r o " e " s ó c i o " potencial do e m p r e e n d i m e n t o aquisitivo racional-
mente organizado que está nas m ã o s da comunidade. E evidente que semelhante trata-
mento s ó é possível sobre a base de u m a economia monetária p u r a e que, portanto,
o desdobramento desta desempenha o papel p r i n c i p a l nesse processo de d e c o m p o s i ç ã o
interna. A e c o n o m i a m o n e t á r i a , por u m lado, resulta na calculabilidade objetiva do
r e n d i m e n t o da atividade aquisitiva de cada pessoa e de seu consumo e, p o r outro,
abre aos indivíduos — e m v i r t u d e do desenvolvimento da " t r o c a i n d i r e t a " , efetuada
por meio de d i n h e i r o — a possibilidade de satisfazer l i v r e m e n t e suas necessidades
pessoais.
D e m o d o a l g u m , n o entanto, é sequer a pro xi ma d a m e n t e completo o paralelismo
entre economia m o n e t á r i a e debilitação da autoridade doméstica. A autoridade e a
comunidade doméstica r e p r e s e n t a m , sobretudo, e m face das c o n d i ç õ e s e c o n ô m i c a s
dadas e apesar de sua grande i m p o r t â n c i a , u m a f o r m a ç ã o a u t ô n o m a e — do ponto
de vista da situação e c o n ô m i c a — i r r a c i o n a l , que, de sua parte, f r e q ü e n t e m e n t e , e x e r c e
forte influência sobre as r e l a ç õ e s e c o n ô m i c a s , e m v i r t u d e de sua estrutura historica-
mente dada. Por e x e m p l o , a persistência ininterrupta do pátria potestas d o chefe de
família r o m a n o , até o f i m de sua v i d a , esteve originalmente condicionada, e m parte,
e c o n ô m i c a e socialmente, e m parte, politicamente e, e m parte, religiosamente (conser-
v a ç ã o da unidade do p a t r i m ô n i o e m casas nobres; estruturação militar segundo clãs
e, p r o v a v e l m e n t e , casas; p o s i ç ã o d o pai c o m o sacerdote d o m é s t i c o ) Mas s o b r e v i v e u
260 MAX WEBER

às mais diversas fases i m a g i n á v e i s d o desenvolvimento e c o n ô m i c o antes de e x p e r i -


mentar o enfraquecimento, sob as c o n d i ç õ e s políticas da é p o c a i m p e r i a l , t a m b é m e m
r e l a ç ã o aos filhos. S i t u a ç ã o a n á l o g a na C h i n a condiciona-se pelo p r i n c í p i o de piedade,
intensificado ao e x t r e m o p e l o c ó d i g o de d e v e r e s e f o m e n t a d o pela autoridade do Estado
e pela ética estamental burocrática do confucionismo, orientada t a m b é m p a r a a domesti-
c a ç ã o política dos súditos, p r i n c í p i o cuja r e a l i z a ç ã o l e v o u , e m parte (como nas prescri-
ç õ e s de l u t o ) reiteradamente a c o n s e q ü ê n c i a s e c o n ô m i c a e t a m b é m politicamente inexe-
qúíveis e duvidosas (vacância e m massa de cargos p ú b l i c o s , p o r q u e a piedade para
c o m o defunto senhor da casa, que originalmente e r a temor da i n v e j a do m o r t o , exige
a renúncia ao cargo, assim c o m o p r o í b e a utilização dos demais bens). O m e s m o pode
ser dito e m r e l a ç ã o a se, depois da m o r t e d o senhor da casa, a n o r m a prescreve u m
h e r d e i r o u n i v e r s a l (ou u m h e r d e i r o que paga as respectivas partes aos d e m a i s ) o u a
divisão da h e r a n ç a f o i condicionada, e m suas origens, p o r fatores fortemente e c o n ô -
micos e t a m b é m pode m u d a r sob a influência destes, mas n ã o se chega à resposta
mediante c o n c l u s õ e s puramente e c o n ô m i c a s ( c o n f o r m e mostram os trabalhos modernos
de S e r i n g e o u t r o s ) e de m o d o algum pode-se deduzi-la das c o n d i ç õ e s e c o n ô m i c a s
atuais. Pois sob c o n d i ç õ e s iguais e de m o d o c o n t í g u o coexistem f r e q ü e n t e m e n t e sistemas
totalmente diversos que se o r i e n t a m especialmente pela pertinência étnica (por e x e m p l o ,
poloneses e alemães). As c o n s e q ü ê n c i a s e c o n ô m i c a s de grande alcance destas diferentes
estruturas resultam, portanto, de motivos e m grande medida irracionais economica-
mente desde o p r i n c í p i o o u e m v i r t u d e da alteração das c o n d i ç õ e s e c o n ô m i c a s .
N ã o obstante, as c o n d i ç õ e s e c o n ô m i c a s i n t e r f e r e m de m a n e i r a profunda. Particu-
larmente existem d i f e r e n ç a s características segundo se impute a a q u i s i ç ã o mais ao rendi-
mento do trabalho c o m u m o u à propriedade c o m u m . No p r i m e i r o caso, a autoridade
d o m é s t i c a , p o r m a i s autocrática que seja, é muitas vezes lábil e m sua subsistência.
A simples s e p a r a ç ã o da casa paterna p a r a fundar u m l a r p r ó p r i o é o bastante para
subtrair-se da autoridade dela. Isto o c o r r e c o m muita f r e q ü ê n c i a nas grandes comuni-
dades domésticas dos povos agricultores primitivos. A chamada emancipado legis Saxo-
nicae d o direito a l e m ã o certamente tem sua r a z ã o e c o n ô m i c a na importância predomi-
nante, na é p o c a e m que s u r g i u , do r e n d i m e n t o de trabalho pessoal. A o contrário, a
autoridade doméstica é particularmente i n q u e b r a n t á v e l o n d e a posse de gado o u , e m
g e r a l , a propriedade c o m o tal constitui o fundamento p r i n c i p a l da existência, especial-
mente a propriedade de terras, q u a n d o sua a b u n d â n c i a se converte e m escassez. Por
toda parte, a u n i ã o f i r m e da linhagem, pelas razões já várias vezes expostas, é u m
atributo e s p e c í f i c o da nobreza proprietária de terras, e o h o m e m que possui pouca
o u n e n h u m a t e r r a carece t a m b é m , p o r toda parte, de semelhante associação de linha-
g e m . A m e s m a d i f e r e n ç a pode ser encontrada, de n o v o , na fase capitalista. A o mesmo
tempo e m q u e os florentinos e outras grandes comunidades domésticas d o norte da
Itália d e f e n d e r a m o p r i n c í p i o da responsabilidade solidária e da c o e s ã o da propriedade,
nos locais mercantis do M e d i t e r r â n e o , especialmente na Sicília e n o s u l da Itália, deu-se
precisamente o contrário: todo m e m b r o adulto da casa podia pedir, a q u a l q u e r m o m e n -
to, a s e p a r a ç ã o de sua parte já e m v i d a d o testador, e tampouco existia a responsabilidade
solidária pessoal p a r a f o r a . Naqueles empreendimentos f a m i l i a r e s d o norte da Itália,
o capital h e r d a d o já representava a base da p o s i ç ã o de p o d e r e c o n ô m i c o e m grau
mais alto d o que o fazia o trabalho aquisitivo dos participantes. No s u l , a situação
e r a contrária, tratando-se a propriedade c o m u m c o m o produto do trabalho c o m u m .
C o m a crescente importância d o capital g a n h o u t e r r e n o o p r i m e i r o tratamento. A econo-
m i a capitalista, f o r m a " p o s t e r i o r " q u a n d o se constrói teoricamente u m a seqüência de
fases d e desenvolvimento, c o m e ç a n d o pela a ç ã o c o m u n i t á r i a íntegra, condiciona, neste
caso, a estrutura teoricamente " a n t e r i o r " : a v i n c u l a ç ã o mais forte dos dependentes
ECONOMIA E SOCIEDADE 261

à casa e a m a i o r integridade da autoridade doméstica. Mas u m a t r a n s f o r m a ç ã o muito


mais importante e peculiar ao Ocidente da comunidade e autoridade doméstica já se
realizara naquelas comunidades domésticas florentinas e noutras semelhantes da Idade
M é d i a , c o m a q u i s i ç ã o capitalista. As n o r m a s p a r a toda a v i d a e c o n ô m i c a da g r a n d e
comunidade doméstica s ã o periodicamente estabelecidas mediante contratos. E e m b o r a
originalmente a r e g u l a ç ã o do d i n h e i r o p a r a pequenas despesas pessoais o c o r r a junto
c o m a da o r g a n i z a ç ã o dos n e g ó c i o s , isso v a i pouco a pouco se modificando. A a q u i s i ç ã o
capitalista, agora c o n t í n u a , torna-se u m a " p r o f i s s ã o " especial, e x e r c i d a dentro de u m a
"empresa" q u e , p o r v i a de u m a r e l a ç ã o associativa particular, se separa progressi-
vamente da a ç ã o da comunidade doméstica de tal m o d o que se dissolve a antiga identi-
dade de m o r a d i a , oficina e escritório, situação n o r m a l na comunidade doméstica íntegra
e no oikos da Antiguidade, que e x a m i n a r e m o s mais tarde. O que desapareceu p r i m e i r o
foi a comunidade d o m é s t i c a r e a l c o m o base necessária da r e l a ç ã o associativa na e m p r e s a
c o m u m . O s ó c i o n ã o é mais necessariamente ( o u , pelo menos, n ã o r e g u l a r m e n t e ) m e m -
b r o da casa. C o m isso, torna-se inevitável a s e p a r a ç ã o entre o p a t r i m ô n i o do n e g ó c i o
e a p r o p r i e d a d e p r i v a d a de cada sócio. D o m e s m o m o d o , diferenciam-se o e m p r e g a d o
do n e g ó c i o e o c r i a d o pessoal da casa. Sobretudo é necessário distinguir as dívidas
da casa c o m e r c i a l , c o m o tais, das dívidas privadas da casa de cada s ó c i o , limitando-se
a responsabilidade solidária dos sócios às p r i m e i r a s , as quais p o d e m ser reconhecidas
pelo fato de s e r e m contraídas e m n o m e da " f i r m a " , isto é, sob a razão social da empresa.
T u d o isso constitui evidentemente u m exato desenvolvimento paralelo à s e p a r a ç ã o :
entre o cargo b u r o c r á t i c o , c o m o " p r o f i s s ã o " , e a v i d a p r i v a d a ; entre o " e s c r i t ó r i o "
e a m o r a d i a do f u n c i o n á r i o ; entre o p a t r i m ô n i o p ú b l i c o , ativo e passivo, e s e u p a t r i m ô n i o
privado; entre as atividades oficiais e seus assuntos privados, f e n ô m e n o de que nos
ocuparemos na análise da " d o m i n a ç ã o " . A " e m p r e s a " capitalista que nasce da c o m u n i -
dade doméstica e da qual esta se retira mostra assim, já e m g e r m e , rudimentos de
uma afinidade c o m o " e s c r i t ó r i o " , entendendo-se por este a b u r o c r a t i z a ç ã o , hoje e m
dia patente, t a m b é m da v i d a e c o n ô m i c a p r i v a d a . Mas a s e p a r a ç ã o espacial entre a m o r a -
dia e a oficina o u a loja n ã o é neste caso o elemento decisivo do desenvolvimento.
Pois ela é típica precisamente do sistema de bazar do O r i e n t e , que se baseia e m g e r a l
na s e p a r a ç ã o , característica das cidades islâmicas, entre castelo (kasbah), bazat (suk)
e moradias. Trata-se sobretudo da s e p a r a ç ã o " c o n t á b i l " e jurídica entre " c a s a " e " e m -
p r e s a " , e do desenvolvimento d e u m direito adaptado a essa separação: registros comer-
ciais; e l i m i n a ç ã o do v í n c u l o entre a família e a associação e a f i r m a ; p a t r i m ô n i o p r ó p r i o
das companhias mercantis e sociedades e m comandita não-limitadas; b e m c o m o a elabo-
ração correspondente de u m direito de falência. O fato de este desenvolvimento funda-
mentalmente importante ser p r ó p r i o do O c i d e n t e — e ter o c o r r i d o somente n o Ocidente,
já na Idade M é d i a , c o m quase todas as f o r m a s jurídicas d o direito c o m e r c i a l h o d i e r n o ,
completamente desconhecidas n o direito da Antiguidade, c o m seu capitalismo que, tem-
porariamente, foi muito mais desenvolvido — pertence á o círculo de vários outros
fatos que m a r c a m mais nitidamente a singularidade qualitativa do desenvolvimento
e m d i r e ç ã o ao capitalismo moderno. Pois tanto a c o n s e r v a ç ã o da unidade d o p a t r i m ô n i o
f a m i l i a r , c o m vistas ao apoio e c o n ô m i c o m ú t u o , quanto os inícios do desenvolvimento
de u m a " f i r m a " , a partir d o n o m e da família, encontram-se t a m b é m , p o r e x e m p l o ,
na C h i n a . T a m b é m ali existe a responsabilidade solidária da família pelas dívidas de
cada m e m b r o . D o m e s m o m o d o que a q u i , a d e n o m i n a ç ã o de u m a empresa usada nas
transações comerciais n ã o r e v e l a o proprietário v e r d a d e i r o : a " f i r m a " está v i n c u l a d a
às atividades comerciais e n ã o às domésticas. Mas parece faltar o desenvolvimento conse-
q ü e n t e de u m p a t r i m ô n i o separado e do direito de falência correspondente, segundo
o m o d e l o e u r o p e u . Particularmente, p o r é m , h o u v e duas diferenças: tanto a associação
262 MAX WEBER

quanto o crédito estavam de fato vinculados, até o presente e e m g r a u e x t r e m o , à


comunidade de clã. E t a m b é m os fins da c o n s e r v a ç ã o da unidade d o p a t r i m ô n i o , nos
clãs ricos, e da c o n c e s s ã o m ú t u a de créditos, dentro do clã, e r a m especificamente outros.
N ã o se tratava principalmente de obter l u c r o capitalista, m a s sobretudo de juntar os
meios n o sentido de p r e p a r a r m e m b r o s da família p a r a determinados exames e, depois,
para a c o m p r a de seus respectivos cargos. O cargo, u m a v e z conseguido, proporcionava
aos parentes a possibilidade de reembolso c o m a c r é s c i m o de suas despesas, a partir
dos rendimentos legais e sobretudo dos ilegais, a l é m do aproveitamento da p r o t e ç ã o
do detentor do cargo. E r a m , portanto, as oportunidades da a q u i s i ç ã o , condicionada,
politicamente e n ã o economicamente, que c o n d u z i a m nesse caso à u n i ã o "capitalista"
da família, t a m b é m e precisamente da economicamente forte. O tipo de associação
capitalista totalmente desvinculada, pelo menos f o r m a l m e n t e , de toda a base pessoal
e de clã, correspondente a nossa "sociedade p o r a ç õ e s " , encontra seus antecedentes
na Antiguidade essencialmente na área do capitalismo politicamente orientado, nas so-
ciedades arrendatárias de a r r e c a d a ç ã o de impostos; na Idade M é d i a , sobretudo, de
u m lado, e m empresas colonizadoras ( c o m o as grandes comanditas dos Maone, e m
G ê n o v a ) e, de outro, nas de crédito ao Estado ( c o m o a associação de credores, e m
G ê n o v a , que tinha de fato e m suas m ã o s a a d m i n i s t r a ç ã o das finanças da cidade). Dentro
da área da aquisição p r i v a d a , a associação p u r a m e n t e c o m e r c i a l e capitalista desenvol-
veu-se, inicialmente, apenas na f o r m a de u m a sociedade de o c a s i ã o (commenda) para
o c o m é r c i o a distância (investimento de capital pelos financiadores e m u m comerciante
viajante, p a r a determinada v i a g e m , c o m partilha de ganhos e p e r d a s ) — o que corres-
ponde plenamente a este tipo de c o m é r c i o de o c a s i ã o — , f o r m a que já se encontra
n o direito b a b i l ó n i c o e depois universalmente. Os empreendimentos privilegiados com
m o n o p ó l i o s pelo poder político, particularmente os de caráter colonizador e m f o r m a
de sociedades p o r a ç õ e s , constituíram e n t ã o a transição ao e m p r e g o dessas formas
t a m b é m nos n e g ó c i o s puramente privados.

8 7. O d e s e n v o l v i m e n t o p a r a o oikos

N ã o podemos ocupar-nos a q u i , e m especial, destas f o r m a s de empreendimentos


que, c o m o base de u m a e m p r e s a capitalista, significam seu desprendimento mais radical
de sua identidade p r i m o r d i a l c o m a comunidade doméstica. O que nos interessa agora
principalmente é u m a e v o l u ç ã o da comunidade doméstica que, nos pontos decisivos,
apresenta u m tipo justamente contrário. À d e c o m p o s i ç ã o interna da autoridade e comu-
nidade doméstica, pela " t r o c a c o m o e x t e r i o r " — e m sentido mais amplo — e às suas
c o n s e q ü ê n c i a s até o nascimento da " e m p r e s a " capitalista, o p õ e - s e outro desenvolvi-
mento de natureza precisamente contrária: a articulação interna da comunidade d o m é s -
tica, sua o r g a n i z a ç ã o e m d i r e ç ã o ao oikos, c o n f o r m e Rodbertus d e n o m i n o u o f e n ô m e n o
a ser e x a m i n a d o aqui. U m oikos, e m sentido técnico, n ã o é simplesmente toda " g r a n d e "
comunidade doméstica o u toda aquela que f a b r i c a , p o r s i m e s m a , produtos variados,
por e x e m p l o , artesanais e agrícolas, mas a economia doméstica extensa, autoritaria-
mente dirigida, de u m p r í n c i p e , senhor de terras o u patrício cujo motivo último não
é a aquisição capitalista de dinheiro, mas a provisão organizada, e m e s p é c i e , das necessi-
dades do senhor. Para este f i m , ele pode s e r v i r - s e d e todos os meios, t a m b é m da troca
c o m o e x t e r i o r , e m m a i o r escala. O decisivo é que s e u p r i n c í p i o coastituinte é o " a p r o v e i -
tamento do p a t r i m ô n i o " e n ã o a " v a l o r i z a ç ã o d o c a p i t a l " . E m sua natureza essencial,
o oikos significa: p r o v i s ã o organizada d e necessidades, ainda que lhe possam estar
agregadas empresas c o m economia aquisitiva. E n t r e os dois princípios há naturalmente
u m a escala de transições imperceptíveis e t a m b é m m u d a n ç a s graduais o u abruptas de
ECONOMIA E SOCIEDADE 263

u m p a r a outro. Na realidade e m p í r i c a , desde que esteja desenvolvida a c u l t u r a m a t e r i a l ,


é necessariamente r a r o o oikos e m sua f o r m a de e c o n o m i a coletiva realmente p u r a .
Pois somente pode existir e m f o r m a absolutamente p u r a , isto é, c o m e l i m i n a ç ã o cons-
tante do aspecto de a q u i s i ç ã o mediante troca, q u a n d o se apresenta, pelo menos quanto
às intenções, e m f o r m a de " a u t a r q u i a " e c o n ô m i c a , isto é, c o m o e c o n o m i a a u t ô n o m a
c o m o m í n i m o possível de troca. U m quadro de m ã o - d e - o b r a dependente da casa e
muitas vezes bastante especializada p r o v ê e n t ã o todas as necessidades de bens e serviços
pessoais do senhor, n ã o apenas as e c o n ô m i c a s , m a s t a m b é m as militares e religiosas;
o solo p r ó p r i o f o r n e c e as matérias-primas; oficinas próprias c o m m ã o - d e - o b r a própria
e dependente p r o d u z e m todos os demais bens materiais; criados, f u n c i o n á r i o s , sacer-
dotes e g u e r r e i r o s p r ó p r i o s e dependentes prestam os demais serviços, e a troca s e r v e ,
n o m á x i m o , p a r a desfazer-se de excedentes ocasionais o u p a r a obter coisas que a p r o d u -
ç ã o própria simplesmente n ã o pode fornecer. Esta é u m a situação da q u a l se a p r o x i m a m ,
e m alto g r a u , as economias dos reis orientais, particularmente a dos e g í p c i o s , e, e m
m e n o r escala, a dos nobres e príncipes do tipo h o m é r i c o , c o m a qual m o s t r a m grande
afinidade as cortes dos reis persas e t a m b é m dos francos. Nessa d i r e ç ã o se desenvol-
v e r a m , cada v e z mais, t a m b é m os senhorios territoriais da é p o c a i m p e r i a l r o m a n a ,
c o m o aumento de suas d i m e n s õ e s , a escassez crescente de escravos e a restrição à
aquisição capitalista pela b u r o c r a t i z a ç ã o e pelas liturgias — enquanto que, e m g e r a l ,
os senhorios territoriais da Idade M é d i a , c o m a importância ascendente da troca de
bens, das cidades e da e c o n o m i a m o n e t á r i a , m o s t r a r a m e m seu desenvolvimento precisa-
mente a tendência contrária. Mas e m n e n h u m a de todas estas f o r m a s , o oikos f o i jamais
uma economia p u r a m e n t e autárquica. O f a r a ó mantinha relações comerciais c o m o
exterior e, do m e s m o m o d o , a g r a n d e m a i o r i a dos reis e nobres p r i m i t i v o s d o Mediter-
râneo: sobre os ganhos obtidos deste c o m é r c i o descansavam substancialmente seus
tesouros. J á n o r e i n o f r a n c o , as receitas dos senhores territoriais continham, e m propor-
ç ã o considerável, d i n h e i r o o u proventos equivalentes a d i n h e i r o e rendas de todas
as espécies. As capitulares p r e s s u p õ e m , c o m o f e n ô m e n o bastante regular, a v e n d a dos
excedentes do fisco r e a l , n ã o exigidos p a r a as necessidades da corte e do e x é r c i t o .
E m todos os exemplos conhecidos, apenas u m a parte da m ã o - d e - o b r a dependente dos
grandes proprietários de terras o u de pessoas estava v i n c u l a d a p o r completo à economia
do senhor. E m sentido rigoroso, isto se aplica, p o r u m lado, aos criados pessoais e
àquela outra m ã o - d e - o b r a que está ocupada n u m a economia dirigida exclusivamente
à p r o v i s ã o e m espécie das necessidades d o senhor e é sustentada completamente p o r
este: " e m p r e g o e m e c o n o m i a a u t á r q u i c a " ; p o r outro lado, p o r é m , aplica-se precisa-
mente àqueles trabalhadores não-livres que o senhor faz trabalhar n u m a empresa p r ó -
p r i a , p a r a o m e r c a d o — c o m o f a z i a m os senhores territoriais cartagineses, sicilianos
e romanos c o m seus escravos aquartelados nas plantações, o u , por e x e m p l o , o pai
de D e m ó s t e n e s , c o m os p r ó p r i o s escravos e m seus dois ergastérios o u , nos tempos
modernos, os senhores de terras russos, c o m seus camponeses, e m suas " f á b r i c a s " :
" e m p r e g o e m e c o n o m i a a q u i s i t i v a " . Mas esses escravos das plantações e dos ergastérios
são, e m p r o p o r ç ã o c o n s i d e r á v e l , escravos comprados e, portanto, u m m e i o de p r o d u ç ã o
adquirido n o m e r c a d o e n ã o obtido da própria e m p r e s a . T r a b a l h a d o r e s não-livres " p r o -
d u z i d o s " na economia doméstica própria p r e s s u p õ e m a existência de " f a m í l i a s " não-li-
v r e s e, portanto, u m a descentralização da v i n c u l a ç ã o doméstica e, e m r e g r a , a r e n ú n c i a
p a r c i a l à e x p l o r a ç ã o total da f o r ç a de trabalho pelo senhor. Por isso, a grande m a i o r i a
de semelhantes trabalhadores hereditariamente dependentes n ã o é empregada e m e m -
preendimentos centralizados, mas deve p ô r à disposição d o senhor apenas u m a p a n e
de sua capacidade d e trabalho o u entregar-lhe tributos e m quantia mais o u m e n o s
arbitrária o u determinada pela tradição, seja e m e s p é c i e , seja e m d i n h e i r o . A circuns-
264 MAX WEBER

tância de o s e n h o r p r e f e r i r empregar os s e r v o s c o m o f o r ç a de trabalho o u c o m o f u n d o


de r e n d a depende sobretudo de c o m o pode utilizá-los de m a n e i r a mais lucrativa. E s c r a -
vos aquartelados s e m família p r e s s u p õ e m , p a r a completar a necessidade de trabalha-
dores, u m a oferta barata e contínua de m ã o - d e - o b r a gratuita. Portanto, g u e r r a s constan-
tes c o m rapto de pessoas e a l i m e n t a ç ã o barata dos escravos, c o m o permite u m c l i m a
m e r i d i o n a l . Camponeses hereditariamente dependentes somente p o d e m pagar tributos
e m d i n h e i r o quando t ê m possibilidade de l e v a r seus produtos a u m m e r c a d o acessível,
isto é, e m r e g r a , u m m e r c a d o local; portanto, quando estão desenvolvidas as cidades
da r e g i ã o . Nos lugares onde o desenvolvimento u r b a n o é escasso e a colheita s ó pode
ser plenamente v a l o r i z a d a mediante a e x p o r t a ç ã o — c o m o n o leste da A l e m a n h a e
da E u r o p a , nos inícios da é p o c a m o d e r n a , e m o p o s i ç ã o ao oeste, e nas " t e r r a s p r e t a s "
da Rússia, n o s é c u l o X D C — , o emprego dos camponeses c o m o m ã o - d e - o b r a na economia
feudal p r ó p r i a do senhor é muitas vezes o ú n i c o m o d o d e aproveitar deles para obter
receitas e m d i n h e i r o , desenvolvendo-se, portanto, dentro do oikos u m a " g r a n d e e m p r e -
s a " agrícola. A c r i a ç ã o de grandes empreendimentos industriais p r ó p r i o s , c o m m ã o - d e -
obra n ã o - l i v r e o u c o m o a u x í l i o o u e m p r e g o e x c l u s i v o de m ã o - d e - o b r a alugada, s e r v i l
o u , a i n d a , l i v r e , e m ergastérios p r ó p r i o s o u alugados, pode a p r o x i m a r muito o senhor
de u m oikos que i n c o r p o r a semelhantes empresas da c o n d i ç ã o de e m p r e s á r i o capitalista
o u até t r a n s f o r m á - l o nisso, c o m o o c o r r e u , por e x e m p l o , c o m os criadores da "indústria
de starost", na Silésia. Pois apenas o sentido ú l t i m o — o aproveitamento de u m patri-
m ô n i o existente c o m o fonte de renda — caracteriza o oikos, e este sentido pode tornar-
se, de fato, indistinguível de u m interesse p r i m á r i o de v a l o r i z a ç ã o de capital e m p r e s a r i a l
e, e m última instância, ser i d ê n t i c o a este n o q u e se r e f e r e ao c o n t e ú d o . D e n t r o de
u m a "indústria de starost", c o m o a da Silésia, a circunstância que l e m b r a sua o r i g e m
s e n h o r i a l é sobretudo o m o d o e m que se combinam empreendimentos diversos: por
e x e m p l o , gigantescas e x p l o r a ç õ e s florestais oom fábricas de tijolos, destilarias de aguar-
dente, usinas de açúcar, minas de c a r v ã o , isto é, empresas que n á o estão concatenadas
entre s i , c o m o as que se r e ú n e m n u m a e m p r e s a m o d e r n a " c o m b i n a d a " o u " m i s t a " ,
por r e p r e s e n t a r e m diversas fases da e l a b o r a ç ã o das mesmas matérias-primas (aprovei-
tamento de subprodutos o u d e s p e r d í c i o s ) o u p o r estarem vinculadas entre si de algum
m o d o pelas c o n d i ç õ e s de mercado. Somente o s e n h o r t e r r i t o r i a l q u e agrega u m a fundi-
ç ã o e, eventualmente, u m a aciaria às suas minas de c a r v ã o , o u s e r r a r i a s e fábricas
de celulose à sua e x p l o r a ç ã o florestal, p o d e chegar praticamente a o m e s m o resultado
e, nestes dois casos, somente o ponto de partida d i f e r e , n á o o resultado. Rudimentos
de c o m b i n a ç õ e s dadas pela posse de determinada m a t é r i a - p r i m a já s â o encontrados
nos ergastérios da Antiguidade. O pai de D e m ó s t e n e s , descendente de u m a família
de comerciantes da Ática, e r a importador de m a r f i m , q u e ele v e n d i a ( T $ 0ovXo(iév<(>)
para inscrustações e m punhos de facas e e m m ó v e i s . C o m e ç o u utilizando alguns escravos
instruídos n a p r o d u ç ã o de facas, n u m a oficina p r ó p r i a , e teve de a s s u m i r o ergastério
de u m m a r c e n e i r o insolvente, sobretudo os escravos que este ocupava. Combinou,
portanto, u m ergastério d e cuteleiros e u m de m a r c e n e i r o s . O desenvolvimento dos
ergastérios p r o g r e d i u e n t ã o n a é p o c a helénica, particularmente na a l e x a n d r i n a , e depois
n o m u n d o i s l â m i c o antigo. A e x p l o r a ç ã o da f o r ç a de trabalho s e r v i l e industrial como
fonte d e renda e r a muito c o m u m e m toda a Antiguidade, tanto n o O r i e n t e quanto
n o Ocidente, nos inícios da Idade M é d i a e n a Rússia até a a b o l i ç ã o da servidão. O
s e n h o r alugava seus escravos c o m o m á o - d e - o b r a : assim o fez Nícias, e m grande escala,
c o m seus escravos n ã o - q u a l i f i c a d o s , alugando-os aos proprietários de minas. Eventual-
mente, a f i m de m e l h o r aproveitamento, m a n d o u instruí-los p a r a s e r e m artesãos qualifi-
cados, f e n ô m e n o q u e encontramos e m toda a Antiguidade, c o m e ç a n d o p o r u m contrato
q u e m e n c i o n a o p r í n c i p e h e r d e i r o Cambises c o m o proprietário d o instrutor, b e m como
ECONOMIA E SOCIEDADE 265

nas pandectas e na Rússia dos séculos X V I I I e X I X . O u , depois de instruí-los, d e i x a v a


c o m eles a d e c i s ã o de utilizar sua f o r ç a de trabalho, c o m o artesãos, e m p r o v e i t o p r ó p r i o ,
tendo, e m c o m p e n s a ç ã o , de pagar-lhe u m a r e n d a ( e m grego, apophorá; e m babilónico
mandaku, e m a l e m ã o Halssteuer, e m russo obrok) O s e n h o r podia, nestes casos, tam-
b é m p ô r à sua d i s p o s i ç ã o o lugar de trabalho e e q u i p á - l o s c o m meios de trabalho
(peculium) e capital aquisitivo (merx peculiaris) D e s d e a liberdade de a ç ã o e m quase
toda a prática até o constrangimento total a u m a existência aquartelada na e m p r e s a
do senhor, todas as f o r m a s intermediárias i m a g i n á v e i s estão historicamente compro-
vadas. A peculiaridade e c o n ô m i c a das " e m p r e s a s " assim surgidas, sobre o fundamento
do oikos, seja nas m ã o s do senhor, seja nas dos dependentes, pertence e m seus detalhes
a outra esfera de problemas. O desenvolvimento d o oikos p a r a a d o m i n a ç ã o p a t r i m o n i a l ,
por sua v e z , será e x a m i n a d o e m c o n e x ã o c o m a análise das f o r m a s de d o m i n a ç ã o .
Capítulo IV

RELAÇÕES COMUNITÁRIAS ÉTNICAS

8 1 . A pertinência à "raça"

U m a fonte da a ç ã o c o m u n i t á r i a muito mais p r o b l e m á t i c a do que as circunstâncias


tratadas até agora é a posse efetivamene baseada n a d e s c e n d ê n c i a c o m u m de d i s p o s i ç õ e s
iguais, herdadas e hereditariamente transmissíveis: a " p e r t i n ê n c i a à r a ç a " . É c l a r o que
esta somente conduz a u m a " c o m u n i d a d e ' ' q u a n d o é sentida subjetivamente c o m o carac-
terística c o m u m , o que o c o r r e apenas q u a n d o a v i z i n h a n ç a l o c a l o u outros v í n c u l o s
entre pessoas de raças distintas l e v a m a u m a a ç ã o c o m u m (na m a i o r i a das v e z e s , política)
o u quando, ao c o n t r á r i o , certo destino c o m u m dos racialmente h o m o g ê n e o s se liga
a algum contraste existente c o m outros de características acentuadamente distintas. A
a ç ã o comunitária assim originada costuma manifestar-se, e m g e r a l , de m o d o p u r a m e n t e
negativo, c o m o d i f e r e n c i a ç ã o o u desprezo, o u , ao c o n t r á r i o , c o m o m e d o supersticioso
diante dos patentemente distintos. A q u e l e que se distingue p o r s e u habitus e x t e r n o
é simplesmente desprezado — " f a ç a " o u " s e j a " ele o que q u e i r a — , o u , ao c o n t r á r i o ,
é venerado de m o d o supersticioso, q u a n d o constantemente se mostra prepotente. A
repulsão é o p r i m á r i o e n o r m a l . Mas, 1 ) este tipo de " r e p u l s ã o " n ã o é p r ó p r i o , de
m o d o algum, somente dos representantes de características a n t r o p o l ó g i c a s c o m u n s r e l a -
tivamente a pessoas distintas, n e m sua intensidade é determinada p e l o g r a u de afinidade
antropológica e, 2 ) ele está t a m b é m e sobretudo v i n c u l a d o a outras diferenças patentes
do habitus e x t e r n o n ã o herdadas.
Se fosse possível d e t e r m i n a r , de m o d o p u r a m e n t e f i s i o l ó g i c o , o g r a u de d i f e r e n ç a
racial objetiva, entre outras coisas, t a m b é m pela circunstância de os bastardos se r e p r o -
d u z i r e m o u n ã o e m p r o p o r ç ã o n o r m a l , poder-se-ia e n t ã o q u e r e r m e d i r o g r a u de a t r a ç ã o
m ú t u a o u r e p u l s ã o racial subjetiva, c o m base n o fato de as relações sexuais se estabele-
c e r e m c o m f r e q ü ê n c i a o u r a r a m e n t e , p r e f e r e n c i a l m e n t e c o m o relações duradouras o u
de m o d o t e m p o r á r i o e irre g u la r. A existência o u a falta do c o n ú b i o s e r i a , assim, e m
todas as comunidades c o m u m a consciência " é t n i c a " especial desenvolvida, u m a conse-
q ü ê n c i a n o r m a l da atração o u do isolamento racial. A pesquisa da a t r a ç ã o o u r e p u l s ã o
s e x u a l entre comunidades étnicas diferentes está hoje ainda e m seus c o m e ç o s . N ã o
há a m e n o r d ú v i d a de que, p a r a a intensidade das relações sexuais e p a r a a f o r m a ç ã o
de comunidades " c o n u b i a i s " , fatores raciais, isto é, condicionados pela comunidade
étnica, t ê m alguma importância, sendo às vezes até decisivos. Mas a " p r i m o r d i a l i d a d e "
da r e p u l s ã o s e x u a l entre raças diversas, m e s m o tratando-se de raças muito distantes,
é refutada, p o r e x e m p l o , pelos m i l h õ e s de mulatos nos Estados Unidos. O r e p ú d i o
de toda r e l a ç ã o s e x u a l entre as duas raças — a l é m da p r o i b i ç ã o direta d o m a t r i m ô n i o
entre elas, nos estados sulistas — sustentado p o r ambas as partes, recentemente t a m b é m
pelos negros, é u m produto das pretensões destes, surgidas c o m a e m a n c i p a ç ã o dos
268 MAX WEBER

escravos, de s e r e m tratados c o m o cidadãos c o m direitos iguais, sendo, portanto, social-


mente condicionado pelas tendências, esquematicamente já conhecidas e vinculadas
neste caso à raça, à m o n o p o l i z a ç ã o de poder e h o n r a sociais. O p r ó p r i o " c o n ú b i o " ,
isto é, o fato de descendentes de comunidades sexuais permanentes s e r e m admitidos
pela comunidade política, estamental o u e c o n ô m i c a do pai c o m o iguais à participação
na a ç ã o comunitária e e m suas vantagens, depende de várias circunstâncias. Sob o
d o m í n i o da inabalada autoridade doméstica paterna, estava totalmente n o arbítrio do
pai conceder a alguns filhos de escravas os mesmos direitos que aos demais. C o m
a g l o r i f i c a ç ã o do rapto da m u l h e r pelo h e r ó i , a mistura d e raças na camada dominante
tornou-se praticamente a regra. Somente a t e n d ê n c i a , esquematicamente conhecida,
ao fechamento monopolista das comunidades políticas, estamentais o u outras e à mono-
p o l i z a ç ã o das probabilidades de casamento limita progressivamente esse poder do chefe
da casa e cria a restrição rigorosa do c o n ú b i o aos descendentes de comunidades sexuais
permanentes dentro da p r ó p r i a comunidade (estamental, política, e c o n ô m i c a o u de
culto) e assim, ao m e s m o tempo, u m cruzamento c o n s a n g ú í n e o muito eficaz. A " e n d o -
g a m i a " de u m a comunidade — entendendo-se p o r esta n ã o apenas o simples fato de
e x i s t i r e m relações sexuais permanentes predominantemente sobre a base da pertinência
a alguma associação, mas t a m b é m , determinado processo na a ç ã o comunitária, de modo
a somente s e r e m aceitos c o m o participantes iguais nessa a ç ã o os descendentes endoga-
micamente engendrados — parece s e r , p o r toda p a n e , u m produto s e c u n d á r i o de seme-
lhantes tendências. (Não se d e v e r i a f a l a r de u m a endogamia " d e c l ã " : esta n ã o existe
o u e n t ã o deseja-se designar c o m este n o m e somente f e n ô m e n o s c o m o o levirato ou
o direito de h e r a n ç a das filhas de o r i g e m secundária, religiosa o u p o l í t i ca . ) A criação
de tipos a n t r o p o l ó g i c o s puros é f r e q ü e n t e m e n t e a c o n s e q ü ê n c i a secundária de seme-
lhante isolamento, condicionado p o r motivos quaisquer, tanto no caso de seitas (na
í n d i a ) quanto n o de " p o v o s - p á r i a s " , isto é, comunidades que s ã o desprezadas e, n ã o
obstante, procuradas c o m o v i z i n h o s devido a determinada técnica especial e indispen-
sável que m o n o p o l i z a m .

O fato n ã o apenas de se o b s e r v a r o l a ç o r e a l de sangue c o m o tal mas t a m b é m


o g r a u e m que isso o c o r r e é co-determinado p o r outros motivos a l é m da afinidade
racial objetiva. Nos Estados Unidos, u m a m í n i m a gota de sangue negro desqualifica
u m a pessoa de m o d o absoluto, enquanto que isso n ã o o c o r r e c o m pessoas com quanti-
dade considerável de sangue índio. A l é m da aparência dos negros puros que, do ponto
de vista estético, é muito mais estranha do que a dos índios e certamente constitui
u m fator de a v e r s ã o , s e m d ú v i d a c o n t r i b u i p a r a esse f e n ô m e n o a l e m b r a n ç a de os
negros, e m o p o s i ç ã o aos índios, t e r e m sido u m p o v o de escravos, isto é, u m grupo
estamentalmente desqualificado. D i f e r e n ç a s estamentais, isto é, adquiridas na juven-
tude, e particularmente diferenças de " e d u c a ç ã o " ( n o sentido mais a m p l o da p a l a v r a )
o b s t r u e m de m o d o muito m a i s forte o c o n ú b i o c o n ven ci o n a l do que diferenças do
tipo a n t r o p o l ó g i c o . E m g e r a l , a m e r a d i f e r e n ç a a n t r o p o l ó g i c a , prescindindo-se dos casos
extremos de r e p u l s ã o estética, é pouco decisiva.

§ 2. Nascimento da idéia de coletividade étnica.


C o m u n i d a d e lingüística e de culto

Se as d i f e r e n ç a s sentidas c o m o extremamente discordantes e, portanto, segrega-


doras t ê m sua base na " d i s p o s i ç ã o " o u n a " t r a d i ç ã o " , esta é, e m g e r a l , u m a questão
s e m importância alguma n o que concerne a seu efeito sobre a atração o u repulsão
mútua. Isto o c o r r e n o desenvolvimento de comunidades conubiais e n d ó g a m a s e muito
mais ainda, naturalmente, na atração e r e p u l s ã o nas demais " r e l a ç õ e s " , isto é, depen-
ECONOMIA E SOCIEDADE 269

dendo de as r e l a ç õ e s d e a m i z a d e , sociais ou e c o n ô m i c a s e a f o r m a ç ã o de comunidades


de todo tipo, entre tais grupos, se estabelecerem c o m facilidade e baseadas na c o n f i a n ç a
m ú t u a e n o tratamento c o m o iguais o u c o m dificuldade e p r e c a u ç õ e s que e x p r e s s a m
desconfiança. A m a i o r o u m e n o r facilidade do nascimento de u m a comunidade de inter-
câmbio social (no sentido m a i s a m p l o possível da p a l a v r a ) está v i n c u l a d a a aspectos
extremamente e x t e r i o r e s das d i f e r e n ç a s n o m o d o de v i v e r habitual, ocasionadas p o r
alguma casualidade histórica, assim c o m o à h e r a n ç a racial. D e c i s i v o é, muitas v e z e s ,
a l é m do caráter insólito dos hábitos discordantes, o fato de que n ã o se co m p r e e n d e
o " c o s t u m e " diferente e m s e u " s e n t i d o " subjetivo, p o r q u e p a r a isso falta a chave.
Mas n e m toda r e p u l s ã o baseia-se na falta de u m a comunidade de " c o m p r e e n s ã o " , con-
f o r m e logo v e r e m o s . D i f e r e n ç a s n o penteado e n a b a r b a , nas roupas, na a l i m e n t a ç ã o ,
na divisão habitual do trabalho entre os sexos e, e m g e r a l , todas as diferenças que
saltam à vista — cuja " i m p o r t â n c i a " o u n ã o , p a r a a s e n s a ç ã o imediata de atração o u
repulsão, implica t ã o poucas diferenças de g r a u c o m o p a r a descrições i n g ê n u a s de
viagens, o u p a r a H e r ó d o t o , o u p a r a a antiga etnografia pré-científica — p o d e m , n o
caso concreto, ocasionar r e p u l s ã o o u desprezo da parte de pessoas de costumes distintos
e, c o m o r e v e r s o positivo, u m a consciência de comunidade entre as h o m o g ê n e a s , a
qual pode tornar-se e n t ã o portadora de u m a r e l a ç ã o comunitária c o m a m e s m a facilidade
que, por outro lado, toda e s p é c i e de comunidade, desde a doméstica e de v i z i n h o s
até a política e religiosa, é geralmente portadora de costumes comuns. Todas as dife-
renças de " c o s t u m e s " p o d e m alimentar, e m seus portadores, u m sentimento especifico
de " h o n r a " e " d i g n i d a d e " . O s motivos originais das diferenças nos hábitos de v i d a
s ã o esquecidos e os contrastes subsistem c o m o ' ' c o n v e n ç õ e s ' ' . A s s i m como, desse m o d o ,
toda comunidade pode atuar c o m o geradora de costumes, atua t a m b é m , de alguma
f o r m a , na s e l e ç ã o dos tipos a n t r o p o l ó g i c o s , concatenando a cada qualidade herdada
probabilidades diversas de v i d a , sobrevivência e r e p r o d u ç ã o , tendo, portanto, f u n ç ã o
c r i a d o r a , e isto, e m certas circunstâncias, de m o d o altamente eficaz. Na d i f e r e n c i a ç ã o
e m r e l a ç ã o ao e x t e r i o r , o c o r r e o m e s m o que na h o m o g e n e i z a ç ã o interna. A tendência
ao isolamento monopolista, já conhecida esquematicamente, pode f i x a r - s e e m elemen-
tos quaisquer, p o r mais superficiais que sejam. A f o r ç a u n i v e r s a l da " i m i t a ç ã o " atua
geralmente n o sentido de f a z e r m u d a r , pouco a pouco, de u m lugar p a r a outro, os
hábitos puramente tradicionais, da m e s m a f o r m a c o m o os tipos a n t r o p o l ó g i c o s se alte-
r a m pela mistura de raças. Fronteiras rigorosas entre r e g i õ e s d e d i v u l g a ç ã o de determi-
nados hábitos externamente perceptíveis s u r g i r a m , portanto, o u e m v i r t u d e de u m isola-
mento monopolista consciente, que se f i x o u e m pequenas d i f e r e n ç a s e e m seguida
as cultivou e aprofundou propositalmente, o u e m v i r t u d e de m i g r a ç õ e s pacíficas o u
guerreiras de comunidades que até e n t ã o h a v i a m v i v i d o e m lugares muito distantes
e t i n h a m se adaptado, e m suas tradições, a c o n d i ç õ e s de existência h e t e r o g ê n e a s . E x a t a -
mente, portanto, c o m o tipos raciais acentuadamente diferentes, devido à criação n o
isolamento, v ê m a v i v e r n u m a vizinhança rigorosamente delimitada e m v i r t u d e de fecha-
mento monopolista o u de m i g r a ç ã o . D e acordo c o m isto, a igualdade o u a d i f e r e n ç a
n o h á b i t o e nos costumes, sejam elas p a t r i m ô n i o hereditário o u tradicional, estão ambas
submetidas, de princípio, e m s e u nascimento e na alteração de seus efeitos, às mesmas
c o n d i ç õ e s da v i d a de comunidade e s ã o t a m b é m iguais e m seus efeitos comunizantes.
A d i f e r e n ç a está, p o r u m lado, na estabilidade extremamente d i v e r s a , segundo se trate
de p a t r i m ô n i o hereditário o u tradicional, e, p o r outro lado, nos limites f i x o s (ainda
que muitas vezes desconhecidos, e m seus detalhes) da c r i a ç ã o de novas qualidades
hereditárias — diante dos quais, apesar da transmissibilidade bastante diversa de tradi-
ç õ e s , existe u m a m a r g e m muito m a i o r p a r a a " h a b i t u a ç ã o " a " c o s t u m e s " .

Q u a s e toda f o r m a c o m u m o u contrária do hábito o u dos costumes pode motivar


270 MAX WEBER

a c r e n ç a subjetiva de que existe, entre os grupos que se a t r a e m o u se r e p e l e m , u m a


afinidade o u heterogeneidade de o r i g e m . S e m d ú v i d a , n e m toda c r e n ç a na afinidade
de o r i g e m baseia-se na igualdade dos costumes e d o hábito. Mas, apesar de grandes
divergências neste campo, semelhante c r e n ç a pode existir e desenvolver u m a força
c r i a d o r a de comunidade, q u a n d o apoiada na l e m b r a n ç a de u m a m i g r a ç ã o r e a l : de u m a
c o l o n i z a ç ã o o u e m i g r a ç ã o i n d i v i d u a l . D e fato, os efeitos da a d a p t a ç ã o ao habitual e
as r e c o r d a ç õ e s da juventude continuam atuando nos emigrantes, c o m o fonte d o " s e n t i -
m e n t o de apego à t e r r a n a t a l " , m e s m o quando estes se adaptaram t ã o completamente
ao n o v o ambiente que u m retorno ao país de o r i g e m lhes seria insuportável (como
o c o r r e , p o r e x e m p l o , c o m a m a i o r i a dos a l e m ã e s na A m é r i c a ) . Nas colônias, a r e l a ç ã o
interna dos colonizadores para c o m o país de o r i g e m s o b r e v i v e até a fortes misturas
c o m os habitantes locais e a consideráveis m o d i f i c a ç õ e s tanto do p a t r i m ô n i o tradicional
quanto do tipo hereditário. O decisivo, neste caso, q u a n d o se trata de c o l o n i z a ç ã o
política, é a necessidade de respaldo político; a l é m disso, e m g e r a l , p e s a m a persistência
das relações de parentesco, criadas pelo c o n ú b i o e, p o r f i m , desde que os " c o s t u m e s "
tenham p e r m a n e c i d o constantes, as relações d e m e r c a d o , as quais, enquanto d u r a a
constância d o nível de necessidades, p o d e m existir, c o m intensidade especial, entre
o país de o r i g e m e a c o l ô n i a , e isso particularmente q u a n d o se trata de colônias e m
u m ambiente quase absolutamente estranho e e m u m território político estranho. A
crença na afinidade de o r i g e m — seja esta objetivamente fundada o u n ã o — pode
ter c o n s e q ü ê n c i a s importantes particularmente para a f o r m a ç ã o de comunidades políti-
cas. C o m o n ã o se trata de clãs, chamaremos grupos " é t n i c o s " aqueles grupos humanos
que, e m v i r t u d e de s e m e l h a n ç a s no habitus e x t e r n o o u nos costumes, o u e m ambos,
o u e m v i r t u d e de l e m b r a n ç a s de c o l o n i z a ç ã o e m i g r a ç ã o , n u t r e m u m a crença subjetiva
na p r o c e d ê n c i a c o m u m , de tal m o d o que esta se torna importante p a r a a p r o p a g a ç ã o
de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou n ã o u m a comunidade de sangue
efetiva. A " c o m u n h ã o é t n i c a " distingue-se da " c o m u n i d a d e de c l ã " p e l o fato de aquela
ser apenas produto de u m "sentimento de c o m u n i d a d e " e n ã o u m a " c o m u n i d a d e "
v e r d a d e i r a , c o m o o clã, a cuja essência pertence u m a efetiva a ç ã o comunitária. A comu-
n h ã o étnica (no sentido que d a m o s ) n ã o constitui, e m s i m e s m a , u m a comunidade,
mas apenas u m elemento que facilita relações comunitárias. Fomenta relações comuni-
tárias de natureza mais d i v e r s a , mas sobretudo, c o n f o r m e ensina a experiência, as
políticas. Por outro lado, é a comunidade política que costuma despertar, e m p r i m e i r o
lugar, p o r toda parte, m e s m o q u a n d o apresenta estruturas muito artificiais, a crença
na c o m u n h ã o étnica, s o b r e v i v e n d o esta geralmente à d e c a d ê n c i a daquela, a n ã o ser
que diferenças drásticas de costumes e de h á b i t o o u , particularmente, de idioma o
impeçam.

Esta f o r m a " a r t i f i c i a l " de nascimento de u m a crença na c o m u n h ã o étnica corres-


ponde p o r inteiro ao esquema conhecido da t r a n s f o r m a ç ã o de relações associativas
racionais e m relações comunitárias pessoais. Sob as c o n d i ç õ e s de u m a a ç ã o social racio-
n a l e objetiva pouco divulgada, quase toda r e l a ç ã o associativa, m e s m o aquela que tenha
sido criada p o r motivos p u r a m e n t e racionais, atrai a consciência de u m a comunidade
abrangente que se manifesta n a f o r m a d e u m a c o n f r a t e r n i z a ç ã o pessoal, baseada na
crença na c o m u n h ã o " é t n i c a " . A i n d a entre os helenos, toda nova estruturação da pólis,
p o r mais arbitrária q u e fosse, l e v o u a u m a a s s o c i a ç ã o pessoal c o m p e l o m e n o s uma
comunidade de culto e, muitas vezes, c o m u m antepassado c o m u m artificialmente cria-
do. As doze tribos de I s r a e l e r a m subdivisões da c o m u n i d a d e política que se revezavam
a cada m ê s na e x e c u ç ã o de determinados serviços, d o m e s m o m o d o que as phylai
helénicas e suas subdivisões. Mas t a m b é m as últimas s ã o consideradas comunidades
da m e s m a o r i g e m étnica. S e m d ú v i d a , a divisão originária pode ter-se baseado em
ECONOMIA E SOCIEDADE 271

diferenças políticas ou étnicas já existentes. Mesmo onde foi construída de modo pura-
mente racional e esquemático, dilacerando-se as associações antigas e renunciando-se
à unidade local — como no caso de Clístenes —, atuou, no mesmo sentido, de modo
étnico. Isto não significa, portanto, que a polis helénica fosse realmente, ou em sua
origem, em regra, um estado de tribo ou de linhagem, mas que é um sintoma do
grau geralmente baixo de racionalização de toda a vida comunitária helénica. Ao contrá-
rio, o fato de as antigas subdivisões esquemáticas da comunidade política romana (cu-
m e ) terem assumido em grau muito baixo aquela importância religiosa que gera a
ilusão de uma origem étnica representa um sintoma de maior racionalização.
A crença na comunhão "étnica" constitui muitas vezes, mas nem sempre, o limite
da "comunidade de intercâmbio social"; mas esta, por sua vez, nem sempre é idêntica
à comunidade conubial endógama, pois os círculos que cada uma delas compreende
podem ter raios bastante diversos. Sua afinidade estreita baseia-se somente em um
fundamento comum: a crença numa "honra" específica — a "honra étnica" — dos
membros, da qual pessoas estranhas não participam e cuja afinidade com a honra "esta-
mental" examinaremos mais tarde. Contentamo-nos aqui com estas poucas observações.
Todo exame verdadeiramente sociológico teria de diferenciar os conceitos de modo
infinitamente mais nítido do que aqui fazemos para nosso fim limitado. As comunidades,
por sua vez, podem evocar sentimentos de comunhão que subsistem mesmo depois
de a comunidade ter desaparecido e são sentidas como "étnicas". Especialmente a
comunidade política pode ter semelhantes efeitos. Mas isso ocorre, de modo mais ime-
diato, naquela comunidade que é portadora de um "patrimônio cultural de massas"
específico e que condiciona ou facilita a "compreensão" mútua: a comunidade lingüís-
tica.
Sem dúvida, ali onde por algum motivo permaneceu viva, a lembrança do nasci-
mento de uma comunidade exterior, em virtude de cisão pacífica ou emigração ("colô-
nia", versacrum ou processos semelhantes) a partir de uma comunidade matriz, existe
um sentimento de comunhão "étnica" muito específico e muitas vezes bastante resis-
tente. Mas este é condicionado pela comunidade política lembrada ou, mais fortemente
ainda na época inicial, pela continuação do vínculo com as antigas comunidades cultu-
rais, bem como pelo fortalecimento contínuo das comunidades de clã e de outras rela-
ções comunitárias manifestado tanto na comunidade antiga quanto na nova e por outras
relações duradouras e constantemente perceptíveis. Onde estas faltam ou cessam, falta
também o sentimento de comunhão "étnica", por mais estreita que seja a afinidade
de sangue.
Se tentamos verificar, de modo geral, as diferenças "étnicas" que restam quando
prescindimos da comunidade lingüística, que nem sempre coincide com a consangüi-
nidade objetiva ou subjetiva, e da crença religiosa comum, também independente dessa
consangüinidade, bem como, até o momento, do efeito de destinos políticos comuns
e suas lembranças — que, pelo menos objetivamente, nada tem a ver com a consangüi-
nidade —, temos, então, de um lado, conforme já mencionamos, as diferenças estetica-
mente marcantes do habitus exteriormente manifestado e, de outro, absolutamente
equiparáveis àquelas, as diferenças evidentes nas formas de vida cotidiana. E uma vez
que as razões da separação "étnica" são sempre diferenças drásticas, exteriormente
perceptíveis, encontramos aqui coisas que em outras circunstâncias parecem ter pouca
importância nas relações sociais. É evidente que a comunidade lingüística e, em segundo
lugar, a homogeneidade da regulamentação ritual da vida, condicionada por idéias
religiosas parecidas, constituem por toda parte elementos extraordinariamente fortes
nos sentimentos de afinidade "étnica", e isto particularmente porque a "compreensi-
bilidade" do sentido das ações dos outros é o pressuposto mais elementar de uma
272 MAX WEBER

r e l a ç ã o comunitária. Mas queremos d e i x a r de lado estes dois elementos e perguntar


pelo que resta neste caso. E cabe admitir, de fato, que pelo menos fortes diferenças
de dialeto o u de religião n ã o e x c l u e m de m o d o absoluto os sentimentos de c o m u n h ã o
étnica. A l é m de diferenças realmente fortes nas f o r m a s da v i d a e c o n ô m i c a , desempe-
n h a r a m e m todos os tempos u m papel significativo, na c r e n ç a de afinidade étnica,
as diferenças exteriormente refletidas, c o m o as dos trajes típicos, da m a n e i r a usual
de m o r a r e alimentar-se, de d i v i d i r o trabalho entre os sexos o u entre l i v r e s e não-livres
— todas aquelas outras coisas, portanto, relativas à q u e s t ã o da " d e c ê n c i a ' ' e, sobretudo,
da h o n r a e dignidade sentidas pelo indivíduo. E m outra p a l a v r a s , tudo aquilo que reen-
contraremos mais tarde t a m b é m c o m o objetos de diferenças especificamente "estamen-
t a i s " . D e fato, a c o n v i c ç ã o da e x c e l ê n c i a dos p r ó p r i o s costumes e da inferioridade
dos alheios, c o m a qual se alimenta a " h o n r a é t n i c a " , é absolutamente análoga aos
conceitos de h o n r a " e s t a m e n t a i s " . A h o n r a " é t n i c a " é a h o n r a específica das massas
p o r ser acessível a todos os que pertencem à comunidade de o r i g e m subjetivamente
imaginada. O s p o o r white trash, os brancos pobres dos estados sulistas norte-americanos
que, p o r falta de oportunidades de trabalho l i v r e , l e v a v a m muitas vezes u m a existência
miserável, e r a m na é p o c a da e s c r a v i d ã o os v e r d a d e i r o s repositórios da antipatia racial,
alheia aos p r ó p r i o s plantadores, justamente p o r q u e sua " h o n r a " social dependia do
rebaixamento social dos negros. E por trás de todos os contrastes " é t n i c o s " está, de
alguma f o r m a e e m plena c o r r e s p o n d ê n c i a c o m a natureza destes, a idéia do " p o v o
e l e i t o " , que nada mais é d o que u m a c o r r e s p o n d ê n c i a n o plano horizontal das diferen-
ciações " e s t a m e n t a i s " e que d e r i v a sua popularidade precisamente do fato de que,
e m o p o s i ç ã o às últimas, baseadas s e m p r e e m s u b o r d i n a ç ã o , pode ser pretendida para
si, de m o d o subjetivo e e m g r a u igual, p o r cada m e m b r o de cada u m dos grupos
que mutuamente se desprezam. Por isso, a repulsão étnica agarra-se a todas as diferenças
imagináveis das idéias sobre a " d e c ê n c i a " e as transforma e m " c o n v e n ç õ e s é t n i c a s " .
A l é m daqueles elementos já mencionados, que ainda estão e m c o n e x ã o mais estreita
c o m a o r d e m e c o n ô m i c a , a c o n v e n c i o n a l i z a ç ã o — conceito a ser explicado alhures
— refere-se t a m b é m , por e x e m p l o , ao penteado e à barba e coisas semelhantes, sendo
que os contrastes nestes aspectos têm agora efeito " e t n i c a m e n t e " r e p u l s i v o por s e r e m
considerados s í m b o l o s de pertinência étnica. No entanto, a r e p u l s ã o n e m s e m p r e está
condicionada apenas pelo caráter " s i m b ó l i c o " das qualidades distintivas. O fato de
que as m u l h e r e s citas u n t a v a m seu cabelo c o m manteiga, que logo exalava u m cheiro
r a n ç o s o , e as helenas, distintamente, c o m ó l e o p e r f u m a d o , impossibilitava, segundo
as fontes antigas, a tentativa de a p r o x i m a ç ã o social entre elas. O c h e i r o da manteiga
e r a , s e m d ú v i d a , u m motivo de repulsa muito mais forte do que as maiores diferenças
raciais, m a i s d o que — c o m o e u m e s m o pude observar — o propalado " c h e i r o de
n e g r o " . Para a f o r m a ç ã o da c r e n ç a na c o m u n h ã o " é t n i c a " , as "qualidades raciais"
s ó e n t r a m e m c o n s i d e r a ç ã o , e m g e r a l , c o m o limites, e m caso de u m tipo demasiado
h e t e r o g ê n e o , n ã o aceito esteticamente, e n ã o c o m o fatores criadores de comunidade
positivos.
Fortes diferenças nos " c o s t u m e s " , as quais — de acordo c o m o exposto — desem-
p e n h a m u m papel equivalente ao d o h á b i t o h e r e d i t á r i o , na f o r m a ç ã o de sentimentos
de c o m u n h ã o étnica e de idéias de c o n s a n g ü i n i d a d e , t ê m sua o r i g e m , e m regra, sem
contar as d i f e r e n ç a s lingüísticas e religiosas, nas diferentes c o n d i ç õ e s de existência
e c o n ô m i c a s o u políticas às quais u m grupo h u m a n o tem de se adaptar. Se fazemos
abstração de rigorosas fronteiras lingüísticas e d e comunidades políticas ou religiosas
estritamente delimitadas, c o m o bases de " c o s t u m e s " diferentes — situação que encon-
tramos de fato e m vastas r e g i õ e s do continente a f r i c a n o e t a m b é m do sul-americano
— , há apenas transições graduais entre os " c o s t u m e s " e quaisquer " f r o n t e i r a s étnicas"
ECONOMIA E SOCIEDADE 273

fixas a l é m daquelas condicionadas p o r drásticas d i f e r e n ç a s g e o g r á f i c a s . Rigorosas deli-


mitações da área e m que r e g e m determinados costumes " e t n i c a m e n t e " relevantes e
n ã o condicionados por fatores políticos, e c o n ô m i c o s o u religiosos s u r g e m , e m r e g r a ,
e m v i r t u d e de m i g r a ç õ e s o u e x p a n s õ e s , das quais resulta a vizinhança imediata de
grupos h u m a n o s que até e n t ã o v i v e r a m , de m o d o permanente o u pelo menos tempo-
rário, e m lugares muito distantes uns dos outros e, p o r isso, se adaptaram a c o n d i ç õ e s
muito h e t e r o g ê n e a s . O c l a r o contraste nas f o r m a s de v i d a assim originado costuma
então despertar, e m ambos os lados, a idéia do " s a n g u e e s t r a n h o " dos outros, indepen-
dentemente da realidade objetiva.
A influência que os fatores " é t n i c o s " , neste sentido específico — isto é, da c r e n ç a
na c o n s a n g ü i n i d a d e o u n o c o n t r á r i o , baseada e m elementos c o m u n s o u diferentes de
u m a pessoa — , e x e r c e sobre a f o r m a ç ã o de comunidades, é naturalmente muito difícil
de determinar de m o d o g e r a l e assume u m a importância p r o b l e m á t i c a e m cada caso
concreto. O " c o s t u m e " " e t n i c a m e n t e " relevante n ã o atua, e m g e r a l , de m a n e i r a distinta
do costume c o m o tal e de cuja essência cabe falar alhures. A crença na afinidade de
o r i g e m , somada à s e m e l h a n ç a dos costumes, é apropriada p a r a f a v o r e c e r a d i v u l g a ç ã o
da a ç ã o comunitária assumida p o r u m a parte dos " e t n i c a m e n t e " unidos entre o resto
dos m e m b r o s , já que a consciência d e comunidade fomenta a " i m i t a ç ã o " . Isto aplica-se
especialmente à propaganda de comunidades religiosas. Mas n ã o chegamos a l é m de
semelhantes o b s e r v a ç õ e s imprecisas. Õ c o n t e ú d o da a ç ã o comunitária possível sobre
bases " é t n i c a s " p e r m a n e c e indeterminado. A isto corresponde a falta de univocidade
nos conceitos que p a r e c e m indicar u m a a ç ã o comunitária condicionada p u r a m e n t e por
motivos " é t n i c o s " , isto é, pela c r e n ç a n a c o n s a n g ü i n i d a d e : " p o v o a ç ã o " , " t r i b o " , " p o -
v o " — cada t e r m o empregado habitualmente n o sentido de u m a subdivisão étnica do
seguinte (mas os dois p r i m e i r o s t a m b é m de m o d o contrário). Q u a n d o se e m p r e g a m
estas e x p r e s s õ e s , pensa-se t a m b é m , e m r e g r a , o u n u m a comunidade política atual,
por mais solta que seja, o u e m r e c o r d a ç õ e s de u m a existente n o passado, c o m o as
conserva a lenda heróica c o m u m , o u e m comunidades lingüísticas o u dialetais o u , por
f i m , e m comunidades de culto. Particularmente estas últimas, qualquer que fosse sua
natureza, e r a m no passado f e n ô m e n o s concomitantes típicos de u m a consciência de
" t r i b o " o u de " p o v o " baseada n u m a c o n s a n g ü i n i d a d e imaginada. Mas q u a n d o a essa
consciência faltava por inteiro u m a comunidade política, presente o u passada, e r a bas-
tante indefinida, na m a i o r i a das v e z e s , a delimitação externa do â m b i t o da comunidade.
As comunidades de culto das tribos g e r m â n i c a s e r a m rudimentos de comunidades políti-
cas, ainda nos últimos tempos dos burgundos, e p o r isso p a r e c e m ter estado delimitadas
c o m razoável f i r m e z a . O o r á c u l o d é l f i c o , ao contrário, é certamente o indubitável sím-
bolo de culto do h e l e n i s m o , c o m o " p o v o " . Mas o deus revela-se t a m b é m aos b á r b a r o s
e aceita sua v e n e r a ç ã o , e, p o r outro lado, participa na administração de s e u culto,
e m r e l a ç ã o associativa, apenas u m a pequena parte dos helenos, ficando de f o r a precisa-
m e n t e as m a i s p o d e r o s a s d e suas c o m u n i d a d e s p o l í t i c a s . A c o m u n i d a d e de c u l t o ,
c o m o e x p o e n t e d o " s e n t i m e n t o t r i b a l " , é e m r e g r a , p o r t a n t o , o u u m resto de u m a
c o m u n i d a d e antigamente m a i s f i r m e e agora d e c o m p o s t a p o r c i s ã o o u c o l o n i z a ç ã o ,
n a m a i ó r i a das v e z e s de n a t u r e z a p o l í t i c a , o u e n t ã o , c o m o n o caso d o A p o l o d é l f i c o ,
o p r o d u t o d e u m a " c o m u n i d a d e c u l t u r a l " s u r g i d a e m v i r t u d e de o u t r a s c o n d i ç õ e s ,
n ã o puramente " é t n i c a s " , a qual, por sua vez, faz nascer a crença na comunidade
de sangue. T o d o o d e c u r s o da história m o s t r a c o m q u e f a c i l i d a d e e x t r a o r d i n á r i a
p a r t i c u l a r m e n t e a a ç ã o c o m u n i t á r i a política g e r a a idéia d e " c o m u n i d a d e de s a n g u e "
— q u a n d o n ã o se o p õ e m d i f e r e n ç a s d e m a s i a d a m e n t e drásticas nos tipos a n t r o p o -
lógicos.
274 MAX WEBER

§ 3. Relação c o m a comunidade política. " T r i b o " e "povo"

Naturalmente, a "tribo" tem delimitação exterior inequívoca quando é subdivisão


de uma comunidade política. Mas, neste caso, na maioria das vezes, a delimitação foi
artificialmente criada a partir da comunidade política. Os números redondos em que
tais tribos costumam apresentar-se indicam isso; por exemplo, a divisão já mencionada
do povo de Israel em doze tribos, bem como as três dóricas e as phylai, de distinto
número, dos demais helenos. Estas foram artificialmente subdivididas por ocasião de
uma nova fundação ou organização da comunidade política, e a' 'tribo'' constitui, portan-
to, apesar de logo atrair todo o simbolismo das comunidades de sangue e especialmente
o culto tribal, em primeira instância, um produto artificial da comunidade política.
O nascimento de um sentimento específico de comunidade, que reage como o da consan-
güinidade, não é nada raro ainda hoje em formações políticas com delimitação pura-
mente artificial. As unidades políticas mais esquemáticas, por exemplo, os "estados"
da União norte-americana, delimitados em forma de quadrados pelas latitudes, mostram
uma consciência muito desenvolvida de sua particularidade: não é raro que famílias
viajem de Nova York para Richmond para que o filho esperado nasça ali, para, portanto,
ser "virginiano". O artificial de tais delimitações não exclui certamente que, por exem-
plo, as phylai helénicas tivessem existido originalmente, em algum lugar e de alguma
forma, como grupos independentes entre si e que, depois da subdivisão da polis, em
sua primeira efetivação, tenham se vinculado esquematicamente às demais quando fo-
ram unidas numa associação politica. Mas então a população daquelas tribos existentes
antes da formação da polis (que não se chamavam phylai mas, sim, ethné) ou era
idêntica à das comunidades políticas correspondentes que depois entraram na relação
associativa da polis ou, quando não foi este o caso, vivia sem organização política
— pelo menos em casos provavelmente muito numerosos —, como "comunidade de
sangue" imaginada, da lembrança de ter sido outrora portadora de uma ação comu-
nitária política, na maioria das vezes de natureza ocasional, incluindo, porém, uma
migração conquistadora isolada ou a defesa contra semelhante situação e, neste caso,
as lembranças políticas tinham prioridade em relação à "tribo". Essa circunstância de
que a "consciência tribal", em regra, está primariamente condicionada por destinos
políticos comuns e não pela "procedência" deve ser, segundo o que já foi dito, uma
fonte muito freqüente da crença na pertinência ao mesmo grupo "étnico". Não é a
única, pois os "costumes" comuns podem ter as fontes mais diversas e originam-se
em alto grau na adaptação às condições naturais externas e na imitação dentro do círculo
da vizinhança. Na prática, por sua vez, a existência da "consciência tribal" costuma
significar algo especificamente político: diante de uma ameaça de guerra vinda do exte-
rior, ou de um estímulo suficientemente forte a atividades guerreiras próprias contra
o exterior, é particularmente fácil que surja sobre essa base uma ação comunitária
política, sendo esta, portanto, uma ação daqueles que se sentem subjetivamente "compa-
nheiros de tribo" (ou "de povo") consangüíneos. O despertar potencial da vontade
de agir politicamente, segundo isso, é uma, ainda que não a única, das realidades
escondidas, em última instância, por trás do conceito de "tribo" e de "povo", de resto
bastante ambíguo em seu conteúdo. Esta ação política ocasional pode tornar-se com
especial facilidade, apesar de faltar completamente uma relação associativa correspon-
dente, um dever de solidariedade, com caráter de norma "moral", dos membros da
tribo ou do povo, em caso de um ataque guerreiro, dever cuja violação, ainda que
não exista nenhum "órgão" comum da tribo, lança as comunidades políticas em questão
ao mesmo destino dos clãs de Segestes e Inguiomar (expulsão de seu território) Uma
vez alcançada esta fase de desenvolvimento, a tribo tornou-se de fato uma comunidade
ECONOMIA E SOCIEDADE 275

política p e r m a n e n t e , a i n d a que esta, e m tempos de paz, tenha caráter latente e, p o r


isso, pouco estável. A transição d o m e r a m e n t e " o r d i n á r i o " ao habitual e, p o r isso,
ao que se " d e v e " f a z e r é pa rti c u la rme n te nesta área quase imperceptível, m e s m o e m
c o n d i ç õ e s f a v o r á v e i s . E m r e s u m o , encontramos unidos, n a a ç ã o comunitária " e t n i c a -
m e n t e " condicionada, f e n ô m e n o s q u e u m a c o n s i d e r a ç ã o s o c i o l ó g i c a realmente exata
— que aqui n e m tentamos — teria que separar cuidadosamente: a efetiva a ç ã o subjetiva
dos " c o s t u m e s " , condicionados, p o r u m lado, pela disposição hereditária e, p o r o u t r o ,
pela tradição; o alcance de todos os diferentes c o n t e ú d o s dos " c o s t u m e s " , u m p o r
u m ; a r e p e r c u s s ã o d e u m a c o m u n i d a d e lingüística, religiosa o u política, antiga o u atual,
sobre a f o r m a ç ã o d e costumes; o g r a u e m que semelhantes componentes, cada u m
p o r s i , despertam a t r a ç ã o o u r e p u l s ã o e, especialmente, a c r e n ç a n a comunidade o u
distinção de sangue; as diferentes c o n s e q ü ê n c i a s dessa c r e n ç a p a r a que as a ç õ e s e m
geral, as distintas f o r m a s de r e l a ç õ e s sexuais, as possibilidades das diversas f o r m a s
de a ç õ e s comunitárias se d e s e n v o l v a m sobre o fundamento da comunidade d e costumes
o u da crença na c o n s a n g ü i n i d a d e — todos estes aspectos t e r i a m de ser examinados
isoladamente. Fazendo isto, arremessar-se-ia definitivamente pela b o r d a o conceito co-
letivo de " é t n i c o " . Pois é u m coletivo completamente inútil p a r a toda investigação r e a l -
mente exata. Mas n ó s n ã o nos ocupamos da Sociologia p o r e l a m e s m a e contentamo-nos,
p o r isso, c o m a b r e v e i n d i c a ç ã o dos p r o b l e m a s bastante complexos que se e s c o n d e m
atrás de u m f e n ô m e n o aparentemente h o m o g ê n e o .
O conceito d e comunidade " é t n i c a " , que logo se volatiliza n a f o r m a ç ã o de concei-
tos exatos, corresponde neste aspecto, até certo g r a u , a outro, p a r a n ó s o m a i s carregado
de sensações emotivas: o de "nação", logo que p r o c u r a m o s c o n c e b ê - l o sociologica-
mente.

§ 4. N a c i o n a l i d a d e e p r e s t í g i o c u l t u r a l

A " n a c i o n a l i d a d e " e m s e u sentido " é t n i c o " c o r r e n t e , comparte c o m o " p o v o " ,


n o r m a l m e n t e , a vaga idéia de que aquilo que se sente c o m o " c o m u m " tem sua base
n u m a comunidade de p r o c e d ê n c i a , ainda q u e , na realidade, pessoas que se c o n s i d e r a m
pertencentes à m e s m a nacionalidade, n ã o apenas ocasionalmente, m a s c o m muita f r e -
q ü ê n c i a , estejam m u i t o m a i s distantes entre s i , n o que se r e f e r e à sua p r o c e d ê n c i a ,
do que outras que se c o n s i d e r a m pertencentes a nacionalidades distintas o u hostis.
D i f e r e n ç a s d e nacionalidade, apesar de u m a afinidade de o r i g e m indubitavelmente
muito estreita, p o d e m existir, p o r e x e m p l o , somente e m v i r t u d e de confissões religiosas
distintas, c o m o entre os sérvios e os croatas. O s motivos reais da crença na existência
de u m a c o m u n h ã o " n a c i o n a l " e da a ç ã o comunitária que nesta se baseia s ã o muito
diversos. H o j e , n u m a é p o c a de luta entre as línguas, a " c o m u n i d a d e de l í n g u a " é consi-
derada sua base n o r m a l . O que e la possui e m c o n t e ú d o s , ultrapassando a m e r a " c o m u -
nidade de l í n g u a " , pode ser p r o c u r a d o n o resultado e s p e c í f i c o pretendido e m sua a ç ã o
comunitária, e este somente pode s e r a associação política particular. D e fato, o " E s t a d o
n a c i o n a l " e o " E s t a d o " tornaram-se hoje conceitualmente idênticos c o m base n a h o m o -
geneidade de l í n g u a . Na realidade, ao lado das associações políticas d e caráter m o d e r n o ,
constituídas sobre u m a base " n a c i o n a l " neste sentido lingüístico, encontra-se conside-
rável n ú m e r o de outras que a b r a n g e m várias comunidades de língua e que, e m b o r a
n e m s e m p r e , m a s n a m a i o r i a das v e z e s , p r e f e r e m determinada língua p a r a a v i d a políti-
ca. Mas, p a r a despertar o chamado "sentimento n a c i o n a l " — d e i x a m o s d e defini-lo
p o r enquanto — , n ã o basta a comunidade de l í n g u a , c o n f o r m e m o s t r a , a l é m d o j á
mencionado, o e x e m p l o dos irlandeses, suíços e alsacianos de língua a l e m ã , os quais
n ã o se sentem, p e l o m e n o s n ã o e m pleno sentido, m e m b r o s d a " n a ç ã o " designada
276 MAX WEBER

p o r s e u id ioma. Por outro lado, diferenças de língua n ã o s ã o u m o b s t á c u l o absoluto


para o sentimento de comunidade " n a c i o n a l " : os alsacianos de língua a l e m ã sentiam-se
antigamente e sentem-se, e m g r a n d e parte, ainda hoje parte da " n a ç ã o " francesa. Mas
n ã o e m pleno sentido, n ã o da m e s m a f o r m a que o f r a n c ê s de fala francesa. E x i s t e m ,
portanto, diversos " g r a u s " d e univocidade qualitativa da c r e n ç a na c o m u n h ã o " n a c i o -
n a l " . No caso dos alsacianos a l e m ã e s , a s e n s a ç ã o de comunidade c o m os franceses,
muito divulgada entre eles, a l é m de certa comunidade de " c o s t u m e s " e de certos bens
comuns da " c u l t u r a s e n s u a l " — indicados particularmente p o r Wittich — é condicionada
p o r l e m b r a n ç a s políticas, c o m o se v e r i f i c a n u m passeio pelo m u s e u de C o l m a r , r i c o
e m relíquias que, p a r a o estranho, s ã o t ã o triviais quanto despertam sentimentos intensos
nos alsacianos (a b a n d e i r a tricolor, capacetes militares e d e b o m b e i r o s , decretos de
Luís Filipe e, sobretudo, relíquias da R e v o l u ç ã o ) Destinos políticos c o m u n s e, ao m e s m o
tempo, indiretamente sociais, altamente v a l o r a d o s pelas massas c o m o s í m b o l o da des-
truição do feudalismo, c r i a r a m essa comunidade, e sua lenda ocupa o lugar das lendas
h e r ó i c a s entre os povos primitivos. A grande nation f o i a libertadora da s e r v i d ã o f e u d a l ,
considerada a portadora da " c u l t u r a " , s e u i d i o m a e r a a v e r d a d e i r a " l í n g u a da c u l t u r a "
e o a l e m ã o , u m " d i a l e t o " p a r a o uso cotidiano, e a v i n c u l a ç ã o afetiva aos que falam
essa " l í n g u a da c u l t u r a " é u m a ^ i t u d e interna específica, evidentemente a f i m ao senti-
mento de comunidade que se fundamenta na comunidade de língua, p o r é m n ã o idêntica
a ele, pois baseia-se e m u m a " c o m u n i d a d e c u l t u r a l " p a r c i a l e e m l e m b r a n ç a s políticas.
E n t r e os poloneses da Alta Silésia n ã o se difundia e m g e r a l , até há p o u c o 1 , qualquer
"sentimento n a c i o n a l " p o l o n ê s consciente — pelo menos n ã o e m g r a u relevante —
no sentido de que se sentissem e m o p o s i ç ã o à associação política prussiana, baseada
essencialmente n u m a comunidade de língua a l e m ã . E r a m " p r u s s i a n o s " leais, ainda
que passivos, p o r pouco que fossem " a l e m ã e s " de a l g u m m o d o interessados na subsis-
tência da associação política nacional d o " I m p é r i o a l e m ã o " , e n ã o sentiam, pelo menos
e m sua m a i o r i a , n e n h u m a necessidade consciente o u pelo menos forte de se isolar
de seus c o n c i d a d ã o s de língua a l e m ã . Neste caso, faltava p o r inteiro, portanto, o "senti-
mento n a c i o n a l " que se desenvolve c o m base na comunidade de língua, n e m e r a possível
pensar-se n u m a " c o m u n i d a d e de c u l t u r a " , e m vista da ausência de qualquer cultura.
E n t r e os a l e m ã e s bálticos, n ã o há a d i f u s ã o de u m "sentimento n a c i o n a l " , n o sentido
de u m a v a l o r a ç ã o positiva da comunidade de língua c o m os a l e m ã e s , c o m o t a l , n e m
o anseio p o r u m a u n i ã o política c o m o " I m p é r i o a l e m ã o " , a q u a l seria estritamente
recusada pela m a i o r i a deles 1 . Por outro lado, isolam-se abertamente d o m u n d o eslavo
circundante, inclusive e especialmente t a m b é m d o russo, d e v i d o , e m parte e e m g r a u
muito a m p l o , a d i f e r e n ç a s " e s t a m e n t a i s " , e, e m parte, aos contrastes entre os "costu-
m e s " e bens culturais, p o r ambos os lados, e e m v i r t u d e da " i n c o m p r e e n s i b i l i d a d e "
e do desprezo m ú t u o s destes. Isto o c o r r e apesar de — e e m parte até p o r — c u l t i v a r e m ,
e m sua grande m a i o r i a , u m a intensa lealdade p a r a c o m a casa reinante e se m o s t r a r e m
t ã o interessados, c o m o qualquer " r u s s o n a c i o n a l " , na p o s i ç ã o poderosa da associação
política p o r esta dirigida e p o r eles próprios abastecida c o m f u n c i o n á r i o s ( e a qual,
p o r sua v e z , abastece economicamente seus f i l h o s ) A q u i falta t a m b é m , portanto, tudo
o que se poderia c h a m a r , n o sentido m o d e r n o , lingüística o u culturalmente orientado,
"sentimento n a c i o n a l " . Verifica-se a q u i , f r e q ü e n t e m e n t e , o m e s m o que entre os polone-
ses puramente proletários: lealdade p a r a c o m a comunidade política junto c o m u m
sentimento d e comunidade limitado à comunidade de língua l o c a l existente dentro da
política, mas fortemente influenciado e modificado p o r idéias " e s t a m e n t a i s " . Tampouco
subsiste qualquer homogeneidade estamental dos respectivos g r u p o s , ainda que os con-

1 Escrito antes da Primeira Guerra Mundial. (Nota do organizador )


ECONOMIA E SOCIEDADE 277

trastes n ã o s e j a m t ã o nítidos c o m o os que e x i s t i a m dentro da p o p u l a ç ã o brancgi dos


estados sulistas norte-americanos. O s antagonismos estamentais internos e os d e classe
c e d e m , p o r é m , perante a a m e a ç a c o m u m à comunidade de língua. E , p o r f i m , há
casos e m que o n o m e d e " n a ç ã o " n ã o p a r e c e adequado, c o m o , p o r e x e m p l o , n o caso
do sentimento de comunidade dos suíços e dos belgas o u dos luxemburgueses e da
p o p u l a ç ã o de Liechtenstein. N ã o é a " p e q u e n e z " quantitativa da associação política
que nos faz hesitar e m p r e g a r o n o m e — os holandeses constituem, p a r a n ó s , u m a
" n a ç ã o " — , m a s a r e n ú n c i a consciente ao " p o d e r " praticada p o r aquelas comunidades
políticas " n e u t r a l i z a d a s " que desperta e m n ó s involuntariamente tais escrúpulos. O s
suíços n ã o constituem u m a " n a ç ã o " própria se consideramos decisiva a comunidade
de língua o u a de c u l t u r a , n o sentido de ter e m c o m u m bens literários o u artísticos.
N ã o obstante, existe entre eles, apesar de todas as tendências recentes d e d i s s o l u çã o ,
u m forte sentimento d e c o m u n i d a d e , motivado n ã o apenas pela lealdade p a r a c o m
a comunidade politica, mas t a m b é m pela particularidade dos " c o s t u m e s " que — seja
qual f o r a situação objetiva — s ã o sentidos subjetivamente c o m o c o m u n s e p a r e c e m ,
por sua v e z , estar fortemente condicionados pela d i f e r e n ç a da estrutura s o c i a l — p a r t i c u -
larmente e m r e l a ç ã o à da A l e m a n h a , mas t a m b é m e m r e l a ç ã o à de toda unidade política
" g r a n d e " e, por isso, militarista, c o m suas c o n s e q ü ê n c i a s p a r a a natureza da estrutura
de d o m i n a ç ã o interna — , e garantidos somente pela existência c o m o país específico.
A lealdade dos franceses canadenses p a r a c o m a comunidade política inglesa está h o j e
t a m b é m condicionada, sobretudo, pela p r o f u n d a antipatia que eles sentem pelas condi-
ções estruturais e c o n ô m i c a s e sociais e os costumes da U n i ã o norte-americana v i z i n h a
e diante dos quais a pertinência ao C a n a d á é considerada u m a garantia da peculiaridade
tradicional. A casuística poderia facilmente ser a m p l i a d a , o que d e v e r i a f a z e r todo e x a m e
s o c i o l ó g i c o exato. Mostra que os sentimentos de comunidade designados c o m o n o m e
coletivo de " n a c i o n a l " n ã o s ã o nada u n í v o c o s , m a s p o d e m s e r nutridos a partir de
fontes muito diversas: d i f e r e n ç a s na estruturação social e e c o n ô m i c a e na estrutura
de d o m i n a ç ã o interna, c o m sua influência sobre os " c o s t u m e s " , p o d e m ter a l g u m peso,
mas n ã o necessariamente o f a z e m — dado que dentro do I m p é r i o a l e m ã o s ã o tão
acentuadas quanto se possa imaginar; l e m b r a n ç a s políticas comuns, a c o n f i s s ã o religiosa
e, p o r f i m , a comunidade de língua p o d e m atuar c o m o fontes, b e m como, naturalmente,
ohãbitus racialmente condicionado. E s t e ú l t i m o atua f r e q ü e n t e m e n t e de m o d o peculiar.
D o ponto de vista dos b r a n c o s , nos Estados Unidos, dificilmente existe u m "sentimento
n a c i o n a l " c o m u m que os r e ú n a c o m os negros, enquanto que os negros t i n h a m e ainda
t ê m u m "sentimento n a c i o n a l " a m e r i c a n o pelo m e n o s n o sentido de pretender p a r a
si o direito de tê-lo. M e s m o a s s i m , entre os SUÍÇOS, p o r e x e m p l o , a orgulhosa consciência
de sua peculiaridade e a d i s p o s i ç ã o de d e f e n d ê - l a s e m r e s e r v a n ã o r e v e l a m n e m outra
natureza qualitativa n e m m e n o r amplitude d e d i f u s ã o d o que qualquer " g r a n d e " n a ç ã o
c o m pretensões de " p o d e r " . S e m p r e encontramos, junto c o m o conceito d e " n a ç ã o " ,
a referência à r e l a ç ã o c o m o " p o d e r " político, e evidentemente o " n a c i o n a l " é, portanto

— se f o r algo h o m o g ê n e o — , u m a e s p é c i e particular d e c o m o ç ã o que, n u m g r u p o


h u m a n o u n i d o p o r u m a comunidade de l í n g u a , de confissão, de costumes o u de destino,
se v i n c u l a à idéia da o r g a n i z a ç ã o d e u m a unidade política poderosa p r ó p r i a , já existente
o u a i n d a aspirada, e que se torna tanto m a i s especifica quanto m a i s ê n f a s e se p õ e
n o " p o d e r " . E s s e o r g u l h o c o m o v i d o do " p o d e r " político abstrato já p o s s u í d o pela
comunidade, o u sua aspiração, p o d e m estar muito mais difundidos n u m a comunidade
quantitativamente " p e q u e n a " — c o m o a de l í n g u a , dos h ú n g a r o s , tchecos o u gregos
— do que n o u t r a , qualitativamente igual, mas quantitativamente m u i t o m a i o r , c o m o ,
p o r e x e m p l o , a dos a l e m ã e s h á u m s é c u l o e m e i o , a q u a l naquela é p o c a e r a t a m b é m
essencialmente d e l í n g u a , p o r é m s e m p r e t e n s ã o alguma d e p o d e r " n a c i o n a l " .
Capítulo V

SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO
(TIPOS DE RELAÇÕES COMUNITÁRIAS RELIGIOSAS)

8 1 . O n a s c i m e n t o das religiões

Caráter intramundano original da ação comunitária religiosa ou magicamente motivada, p. 279


— A crença nos espíritos, p. 280 — Nascimento de poderes "supra-sensíveis", p. 281 — Natura-
lismo e simbolismo, p. 282 — Mundo dos deuses e deuses funcionais, p. 284 — Culto aos antepas-
sados e sacerdócio doméstico, p. 286 — Deuses de associações políticas e deuses locais, p. 287
— Monoteísmo e religiosidade cotidiana, p. 289 — Universalismo e monoteísmo, p. 290 —
Coação sobre os deuses, magia e serviço aos deuses, p. 292

U m a d e f i n i ç ã o daquilo que " é " religião é impossível no início de u m a c o n s i d e r a ç ã o


c o m o a que segue, e, q u a n d o muito, p o d e r i a ser dada n o seu f i n a l . Mas n ã o é da
" e s s ê n c i a " da religião que nos ocuparemos, e s i m das c o n d i ç õ e s e efeitos d e d e t e r m i -
nado tipo de a ç ã o comunitária cuja c o m p r e e n s ã o t a m b é m aqui s ó pode ser alcançada
a partir das vivências, representações e fins subjetivos dos indivíduos — a partir do
" s e n t i d o " — , u m a v e z que o decurso e x t e r n o é extremamente m u l t i f o r m e . A a ç ã o
religiosa o u magicamente motivada, e m sua existência p r i m o r d i a l , está orientada p a r a
este mundo. As a ç õ e s religiosa o u magicamente exigidas d e v e m ser realizadas " p a r a
que v á s m u i t o b e m e v i v a s muitos e muitos anos sobre a face da T e r r a " . M e s m o rituais
c o m o sacrifícios h u m a n o s , extraordinários sobretudo entre u m a p o p u l a ç ã o u r b a n a ,
f o r a m realizados nas cidades marítimas fenícias, s e m qualquer expectativa dirigida ao
a l é m . A a ç ã o religiosa o u magicamente motivada é, ademais, precisamente e m sua
f o r m a p r i m o r d i a l , u m a a ç ã o r a c i o n a l , pelo m e n o s relativamente: ainda que n ã o seja
necessariamente u m a a ç ã o orientada p o r meios e fins, orienta-se, pelo menos, pelas
regras da experiência. A s s i m c o m o esfregando-se u m p a u n u m a peça de m a d e i r a p r o v o -
cam-se centelhas, a m í m i c a " m á g i c a " d o conhecedor faz c a i r c h u v a d o céu. E as fagulhas
produzidas p e l o p a u esfregado na m a d e i r a s ã o , c o m o a c h u v a obtida pelas m a n i p u l a ç õ e s
do fazedor de chuvas, u m produto " m á g i c o " . A a ç ã o o u ò pensamento religioso o u
" m á g i c o " n ã o pode ser apartado, portanto, do c í r c u l o das a ç õ e s cotidianas ligadas
a u m f i m , u m a v e z que t a m b é m seus p r ó p r i o s fins s ã o , e m sua grande m a i o r i a , de
natureza e c o n ô m i c a . Somente n ó s , d o ponto de vista de nossa c o n c e p ç ã o atual da nature-
z a , p o d e r í a m o s distinguir i m p u t a ç õ e s causais objetivamente " c o r r e t a s " e " e r r a d a s " ,
e reconhecer estas últimas c o m o irracionais e a a ç ã o correspondente c o m o " m a g i a " .
A p r ó p r i a pessoa que age de m o d o m á g i c o faz suas distinções, e m p r i m e i r a instância,
somente segundo a cotidianidade m a i o r o u m e n o r dos f e n ô m e n o s . N e m toda p e d r a ,
p o r e x e m p l o , s e r v e c o m o fetiche. N e m toda pessoa tem a capacidade de ficar e m êxtase
e p r o d u z i r , p o r conseguinte, aqueles efeitos de natureza m e t e o r o l ó g i c a , terapêutica,
divinatória o u telepática que, segundo a e x p e r i ê n c i a , s ó se conseguem desse m o d o .
N ã o e x c l u s i v a m e n t e , mas sobretudo, é a essas f o r ç a s extracotidianas que se a t r i b u e m
280 MAX WEBER

tais nomes específicos — mana, orenda ou, como fazem os iranianos, maga (daí a
palavra mágico) — , para as quais empregamos aqui de uma vez por todas o nome
"carisma". O carisma pode ser — e somente neste caso merece em seu pleno sentido
esse nome — u m dom pura e simplesmente vinculado ao objeto ou à pessoa que por
natureza o possui e que por nada pode ser adquirido. O u pode e precisa ser propor-
cionado ao objeto ou à pessoa de modo artificial, por certos meios extracotidianos.
A mediação entre essas alternativas consiste na suposição de que, apesar de as capaci-
dades carismáticas não poderem desenvolver-se e m nada e e m ninguém que não as
possua em germe, tal germe permanece oculto se não é estimulado ao desenvolvimento,
se o carisma não é "despertado", por exemplo, mediante "ascese". Todas as formas
da doutrina religiosa da graça, desde a grada infusa até a rigorosa justificação pelas
obras, encontram-se, em germe, já nesse estádio. Essa idéia estritamente naturalista
(recentemente chamada pré- animista) mantém-se com tenacidade na religiosidade popu-
lar. Nenhuma resolução dos concüios, distinguindo a " a d o r a ç ã o " de Deus da "venera-
ção" das imagens dos santos como simples meios para exercícios espirituais, impediu que
os europeus do sul ainda hoje responsabilizem a própria imagem do santo e cuspam diante
dela quando, apesar das manipulações habituais, o resultado reclamado não ocorre.
D e todo modo, já se realizou assim, na maioria das vezes, uma abstração apenas
aparentemente simples: a representação de certos seres que se ocultam " p o r trás" da
atuação dos objetos naturais, artefatos, animais ou homens carismaticamente qualifi-
cados e que de alguma maneira determinam esta atuação — a crença nos espíritos.
O "espírito", originalmente, n e m é alma, nem demônio, nem sequer um deus, mas
algo indefinido: material e mesmo assim invisível, impessoal, mas com uma espécie
de vontade; é algo que confere ao ser concreto sua força de ação específica, que pode
penetrar neste e, do mesmo modo, abandoná-lo — o instrumento que se torna inútil,
o mago cujo carisma falha — , para desaparecer ou entrar noutra pessoa ou noutro
objeto. N ã o parece demonstrável que determinadas condições econômicas gerais sejam
o pressuposto do desenvolvimento da crença nos espíritos. O que mais a fomenta,
bem como toda abstração nesta área, é o fato de que os carismas " m á g i c o s " inerentes
a seres humanos limitam-se a pessoas especialmente qualificadas, constituindo assim
a base da mais antiga de todas as "profissões" — a do mago profissional. O mago
é uma pessoa carismaticamente qualificada de modo permanente, e m oposição à pessoa
comum, o "leigo", no sentido mágico do conceito. Requisitou para si particularmente
o estado que especificamente representa ou transmite o carisma, o êxtase, como objeto
de u m "empreendimento". Ao leigo, o êxtase só é acessível como fenômeno ocasional.
A forma social e m que isso ocorre, a orgia, como forma primordial da relação comu-
nitária religiosa, em oposição à magia racional, é uma prática ocasional relativa ao
"exercício" contínuo do mago, indispensável para dirigi-la. O leigo somente conhece
o êxtase como enlevo necessariamente eventual em face das exigências da vida cotidiana,
para cuja provocação se empregam todas as espécies de bebidas alcoólicas, bem como
o tabaco e narcóticos semelhantes que originalmente serviram todos para fins orgiásticos
e, sobretudo, a música. O modo como estes sáo empregados constitui, ao lado da
influência racional sobre os espíritos no interesse da economia, o segundo objeto impor-
tante — embora secundário do ponto de vista do desenvolvimento histórico — , da
arte do mago, que, por sua própria natureza, torna-se, por toda parte, u m saber secreto.
Tendo por base os estados experimentados nas orgias e, sem dúvida, também em alto
grau sob a influência da prática profissional do mago, o desenvolvimento do pensamento
atinge então a representação de uma " a l m a " como u m ser distinto do corpo, presente
nos objetos naturais do mesmo modo como existe algo no corpo humano que o abandona
durante os sonhos, o desmaio, o êxtase e na morte. As diferentes relações possíveis
ECONOMIA E SOCIEDADE 281

daqueles seres com as coisas atrás das quais se escondem ou com as quais de alguma
forma se reúnem não podem ser examinadas aqui. Eles podem "morar", de modo
mais ou menos duradouro e exclusivo, perto ou dentro de um objeto ou processo
concreto. Ou, ao contrário, podem "possuir" de alguma forma determinados processos
e coisas, ou categorias deles, e, portanto, controlar decisivamente seu comportamento
e eficácia — estas ou outras representações semelhantes são as verdadeiramente "ani-
mistas". Ou podem "encarnar-se" temporariamente em coisas, plantas, animais ou
seres humanos — outro grau de abstração gradativamente alcançado —, ou, por fim,
ser concebidos — o grau de abstração mais elevado e mais raramente alcançado —
como apenas "simbolizados" por essas coisas, sçndo eles mesmos seres que de alguma
forma vivem conforme leis próprias, mas normalmente são invisíveis. No meio disso
tudo existem naturalmente as transições e combinações mais diversas. Já nas primeiras
formas de abstração mencionadas, de natureza mais simples, estão concebidos, em
princípio, poderes "supra-sensíveis", que podem intervir nos destinos dos homens,
semelhantemente ao que estes fazem com os destinos do mundo circundante.
Mas também os "deuses" e "demônios" não são ainda algo pessoal ou duradouro,
e nem sempre algo com denominação particular. Um "deus" pode ser concebido como
um poder que decide sobre o decurso de determinado processo concreto (os "deuses
momentâneos" de Usener) no qual depois ninguém pensa mais ou interessa de novo
somente quando este se repete. Pode ser também, ao contrário, aquele poder que
um grande herói ainda irradia, de alguma forma, após a morte. Tanto a personalização
quanto a despersonalização pode ser o ato posterior, conforme o caso. Tanto existem
deuses sem nome próprio, simplesmente denominados pelo processo sobre o qual têm
poder e cujo nome assume apenas gradualmente o caráter de um nome próprio quando
não se compreende mais seu sentido, quanto, ao contrário, nomes próprios de chefes
poderosos ou profetas chegam a designar poderes divinos. Deste fenômeno o mito
deriva o direito de fazer de denominações puramente divinas nomes pessoais de heróis
divinizados. Se determinada concepção de uma "divindade" assume ou não caráter
perene e se a ela os homens sempre voltam a dirigir-se em ocasiões semelhantes com
meios mágicos e simbólicos, isso depende das circunstâncias mais diversas, mas, em
primeiro lugar, daquela de ser aceita e em que forma pela prática do mágico ou pela
adesão pessoal de um potentado mundano, em virtude de sua experiência pessoal.
Somente registramos, aqui, como resultado do processo, o nascimento, por um
lado, da "alma" e, por outro, dos "deuses" e "demônios", isto é, de poderes "sobrena-
turais". A regulação das relações entre estes e os homens constitui o domínio da ação
"religiosa ". Naquele processo, a "alma" inicialmente é um ser nem pessoal nem impes-
soal. Isto não apenas por ser freqüentemente identificada, de modo naturalista, com
aquilo que deixa de existir após a morte: com o alento ou com as batidas do coração,
sua sede, por cuja ingestão é possível apropriar-se, por exemplo, da coragem de um
inimigo, mas sobretudo por nada ter de homogêneo. A alma que abandona o homem
durante os sonhos é algo distinto daquela que, no estado de "êxtase", lhe escapa para
o alto, quando o coração lhe bate na garganta e ele fica ofegante, ou daquela que
habita sua sombra, ou daquela que, após a morte, mora no cadáver ou perto dele
enquanto ainda resta algo deste, ou daquela que continua atuando, de algum modo,
onde costumava ficar o falecido, observando com inveja e ódio como os herdeiros
gozam daquilo que outrora lhe pertenceu, ou aparece aos descendentes, em sonhos
ou em visões, ameaçando ou aconselhando, ou pode reencarnar-se em algum animal
ou noutra pessoa, sobretudo numa criança recém-nascida — tudo isso, dependendo
do caso, para a bênção ou para a maldição. A concepção da "alma" como unidade
autônoma em relação ao "corpo" é um resultado que nem todas as religiões de salvação
282 MAX WEBER

aceitam — s e m f a l a r da circunstância d e que algumas destas ( o b u d i s m o ) rejeitam p r e c i -


samente esta idéia.
O aspecto e s p e c í f i c o de todo esse desenvolvimento n ã o é, e m p r i m e i r o lugar,
a pessoalidade o u impessoalidade o u suprapessoalidade dos poderes " s u p r a - s e n s í v e i s " ,
mas o fato d e n ã o s e r e m apenas as coisas e f e n ô m e n o s que existem e acontecem que
desempenham u m papel importante n a v i d a , c o m o t a m b é m aqueles que " s i g n i f i c a m "
algo, — e precisamente p o r isso. Destarte, a magia passa da a t u a ç ã o direta de determi-
nadas f o r ç a s ao simbolismo. A o lado d o m e d o físico imediato e m presença de u m
c a d á v e r , que t a m b é m os animais sentem e q u e f o i f r e q ü e n t e m e n t e decisivo p a r a as
f o r m a s de sepultamento (posição sentada, c r e m a ç ã o ) s u r g i u logo a idéia de se ter
de t o r n a r inofensiva a a l m a d o m o r t o , desterrando-a o u enterrando-a na sepultura,
de d e v e r p r o p o r c i o n a r - l h e ali u m a existência suportável o u e l i m i n a r sua inveja dos
bens dos v i v o s o u , p o r f i m , assegurar sua boa vontade, p a r a se poder v i v e r e m paz.
E n t r e as variadas f o r m a s m á g i c a s de apascentar os mortos a c o n s e q ü ê n c i a de m a i o r
alcance e c o n ô m i c o resultou da idéia d e que a totalidade d e seus bens pessoais d e v e r i a
a c o m p a n h á - l o s ao t ú m u l o . Esta f o i se atenuando gradualmente até a exigência de, pelo
m e n o s / e v i t a r o contato c o m os bens materiais deixados pelos falecidos e, freqüente-
mente, de n ã o f r u i r , se possível, dos bens p r ó p r i o s , p a r a n ã o lhes despertar a inveja.
As prescrições chinesas referentes ao luto c o n s e r v a m de m o d o bastante completo este
sentido, c o m suas c o n s e q ü ê n c i a s igualmente i r r a c i o n a i s d o ponto de vista tanto e c o n ô -
m i c o quanto político ( u m a v e z que t a m b é m a administração de u m cargo f o i considerada
contato c o m u m b e m — prebenda — que se d e v e r i a e v i t a r durante o p e r í o d o de luto).
U m a v e z surgido u m r e i n o de a l m a s , d e m ô n i o s e deuses que l e v a m u m a existência
extraterrestre, n ã o palpável n o sentido c o r r e n t e , mas e m r e g r a apenas acessível me-
diante s í m b o l o s e significados — u m a existência que, p o r conseguinte, s e m p r e se apre-
senta c o m o de sombras e, às v e z e s , c o m o diretamente i r r e a l — , isso repercute sobre
o sentido da arte m á g i c a . Se atrás das coisas e dos processos reais existe algo diferente,
essencial, a n í m i c o , do q u a l os p r i m e i r o s s ã o apenas sintomas o u m e s m o s í m b o l o s ,
deve-se e n t ã o p r o c u r a r influir n ã o nesses sintomas o u s í m b o l o s , mas n o poder que
neles se manifesta, e isso p o r m e i o s q u e f a l e m a u m espírito o u a u m a a l m a , que,
portanto, " s i g n i f i q u e " algo: p o r outros s í m b o l o s . É e n t ã o apenas u m a questão da ênfase
que os conhecedores profissionais desse s i m b o l i s m o consigam d a r a sua f é o u à elabo-
r a ç ã o m e n t a l desta, da p o s i ç ã o d e p o d e r , portanto, que a l c a n c e m dentro da comunidade,
dependendo da importância da m a g i a , c o m o t a l , p a r a o caráter peculiar da economia
e da f o r ç a da o r g a n i z a ç ã o que s a b e m c r i a r — e u m a onda de a ç õ e s simbólicas cobre
o naturalismo p r i m o r d i a l . Isso traz e n t ã o c o n s e q ü ê n c i a s de g r a n d e alcance.

Se o m o r t o s ó é acessível p o r m e i o de a ç õ e s simbólicas e o deus manifesta-se


apenas e m s í m b o l o s , e n t ã o p o d e m estes s e r contentados c o m s í m b o l o s e m v e z de c o m
realidades. O p ã o s i m b ó l i c o , as representações das m u l h e r e s e dos criados e m f o r m a
de bonecos s u r g e m e m lugar d o sacrifício r e a l : o papel-moeda m a i s antigo s e r v i a p a r a
pagamento n ã o aos v i v o s , mas s i m aos mortos. Nas relações c o m os deuses e d e m ô n i o s ,
a situação n ã o é outra. A l é m da eficácia efetiva o u imaginada que lhes é inerente,
cada v e z m a i s coisas e processos t a m b é m a t r a e m " s i g n i f i c a d o s " , e p o r m e i o de atos
significativos procura-se obter efeitos reais. J á toda a ç ã o c o m efeito m á g i c o provado,
n o sentido naturalista, é repetida rigorosamente n a m e s m a f o r m a . Isso estende-se agora
a toda a área dos significados s i m b ó l i c o s . O m e n o r d e s v i o d o p r o v a d o pode torná-los
ineficientes. T o d o s os círculos da atividade h u m a n a s ã o atraídos p a r a o círculo m á g i c o
simbolista. P o r isso, os m a i o r e s antagonismos entre as c o n c e p ç õ e s puramente d o g m á -
ticas, m e s m o dentro das religiões racionalizadas, s ã o m a i s facilmente tolerados d o que
i n o v a ç õ e s n o simbolismo, q u e p o d e r i a m p ô r e m perigo o efeito m á g i c o das a ç õ e s ou
ECONOMIA E SOCIEDADE 283

— o q u e é u m a n o v a idéia acrescentada pelo s i m b o l i s m o — até despertar a i r a d o


deus o u da a l m a d e u m antepassado. Q u e s t õ e s c o m o a de se o sinal da c r u z se f a r i a
c o m dois o u três dedos f o r a m a causa f u n d a m e n t a l ainda d o c i s m a da igreja russa
n o s é c u l o X V I I ; a possibilidade d e ofender p r o f u n d a m e n t e duas dúzias de santos n o
d e c o r r e r d o a n o , p e l a a b o l i ç ã o d e seus dias santos, impede ainda hoje a aceitação
d o c a l e n d á r i o g r e g o r i a n o n a Rússia 1 . Cantar desafinado nas d a n ç a s rituais dos m a g o s
indianos trazia consigo a m o r t e imediata dos cantores, p a r a aplacar o m a l e f í c i o o u
a i r a d o deus. A estereotipagem religiosa dos produtos das artes plásticas, c o m o f o r m a
mais antiga da f o r m a ç ã o de u m estilo, está condicionada tanto diretamente p o r idéias
m á g i c a s quanto indiretamente pela p r o d u ç ã o profissional que surge c o m o c o n s e q ü ê n c i a
do significado m á g i c o d o produto, p r o d u ç ã o que já p o r s i substitui a c r i a ç ã o segundo
o objeto n a t u r a l p e l a c r i a ç ã o segundo u m modelo. Q u ã o alto e r a nisso o alcance do
religioso mostra-se p e l o e x e m p l o d o E g i t o , n o fato d e que a d e s v a l o r i z a ç ã o da religião
tradicional, e m v i r t u d e da i n t r o d u ç ã o do m o n o t e í s m o p o r A m e n ó f i s I V ( A k e n a t o n ) d á
imediatamente m a r g e m ao naturalismo. O e m p r e g o m á g i c o dos s í m b o l o s g r á f i c o s , o
desenvolvimento de todas as e s p é c i e s d e m í m i c a e d a n ç a c o m o s i m b o l i s m o , p o r assim
dizer, h o m e o p á t i c o , a p o t r o p é i c o , exorcista o u m á g i c o coercitivo, a estereotipação das
seqüências tonais admissíveis o u , pelo menos, a das s e q ü ê n c i a s tônicas (râga, na í n d i a ,
e m o p o s i ç ã o à c o l o r a t u r a ) a substituição dos m é t o d o s d e c u r a e m p í r i c o s , bastante desen-
v o l v i d o s (os quais, d o p o n t o de vista d o s i m b o l i s m o e da doutrina animista da possessão,
e r a m somente u m a c u r a dos sintomas) p o r u m m é t o d o — r a c i o n a l d o ponto de vista
dessa c o n c e p ç ã o — d e terapia exorcista o u h o m e o p á t i c o - s i m b o l i s t a , o q u a l g u a r d a p a r a
c o m os p r i m e i r o s a m e s m a r e l a ç ã o q u e a astrologia, originada nas mesmas raízes, p a r a
c o m o c a l e n d á r i o c o m base e m p í r i c a : tudo isso faz parte d o m e s m o m u n d o d e f e n ô m e -
nos, d e imensas c o n s e q ü ê n c i a s p a r a o desenvolvimento c u l t u r a l , m a s que n ã o podemos
e x a m i n a r aqui. A p r i m e i r a e f u n d a m e n t a l a t u a ç ã o d o c í r c u l o de idéias " r e l i g i o s a s "
sobre o m o d o de v i d a e a e c o n o m i a é , portanto, geralmente de natureza estereotipadora.
T o d a m o d i f i c a ç ã o d e u m costume q u e se realiza d e a l g u m m o d o sob o p a t r o c í n i o de
poderes supra-sensíveis p o d e afetar os interesses d e espíritos e deuses. A s s i m , a religião
multiplica inseguranças e inibições naturais e m todo agente inovador: o sagrado é o
especificamente invariável.
Nos casos concretos, as transições entre o naturalismo pré-animista e o simbolismo
s ã o totalmente fluidas. Q u a n d o se a r r a n c a d o peito d o inimigo o c o r a ç ã o o u de s e u
corpo os ó r g ã o s sexuais o u d e s e u c r â n i o o c é r e b r o , e x p õ e - s e e m casa o c r â n i o o u
se o v e n e r a c o m o precioso presente d e n o i v a d o e comem-se aquelas partes dos corpos
de ho m e n s o u a n i m a i s , particularmente daqueles velozes e fortes, acredita-se r e a l m e n t e
obter assim, d e m o d o diretamente naturalista, a p r o p r i e d a d e das f o r ç a s co r r e s p o n -
dentes. A d a n ç a g u e r r e i r a é , inicialmente, u m produto da e x c i t a ç ã o antes d o combate,
composta de fúria e m e d o , e g e r a diretamente o êxtase h e r ó i c o : neste sentido, t a m b é m
n ã o é s i m b ó l i c a . Mas, n a m e d i d a e m q u e (à m a n e i r a , p o r e x e m p l o , d e nossos efeitos
m á g i c o s " s i m p á t i c o s " ) antecipa m i m i c a m e n t e a vitória, e assim d e v e garanti-la magica-
mente, e a m a t a n ç a de a n i m a i s e h o m e n s assume a f o r m a de rituais f i x o s , e os espíritos
e deuses da p r ó p r i a tribo s ã o convidados a participar d o banquete, e, p o r f i m , todos
os que c o m e m d o m e s m o a n i m a l se c o n s i d e r a m parentes muito p r ó x i m o s — p o r q u e
a " a l m a " d o m e s m o a n i m a l transmigrou p a r a eles — , e m todos esses casos a transição
ao " s i m b o l i s m o " é iminente.
O m o d o d e pensar q u e constitui a base d o c í r c u l o de representações simbólicas
p l e n a m e n t e d e s e n v o l v i d o f o i designado c o m o "pensamento m i t o l ó g i c o " , e p r o c u r o u - s e

1 Escrito antes de 1914.


284 MAX WEBER

e n t ã o caracterizar e m seus detalhes sua natureza peculiar. N ã o podemos cuidar a q u i


desta q u e s t ã o , e somente nos interessa u m a p e c u l i a r i d a d e , de importância g e r a l , desse
m o d o d e pensar: o significado da analogia e m sua f o r m a mais eficiente — a p a r á b o l a
— , e isto p o r q u e d o m i n o u , c o m sua r e p e r c u s s ã o d u r a d o u r a , n ã o apenas as f o r m a s
de e x p r e s s ã o religiosas c o m o t a m b é m o pensamento j u r í d i c o , até m e s m o n o tratamento
dos precedentes nas doutrinas puramente e m p í r i c a s d o direito, e apenas paulatinamente
cedeu lugar à f o r m a ç ã o silogística de conceitos mediante s u b s u n ç ã o r a c i o n a l . O ambien-
te o r i g i n á r i o desse pensamento a n a l ó g i c o é a magia racionalizada simbolicamente, que
se baseia totalmente nele.
Mesmo os " d e u s e s " n ã o s ã o imaginados, desde o p r i n c í p i o , c o m o seres "antropo-
m ó r f i c o s " . A s s u m e m a f o r m a d e seres perenes a eles essencial apenas a p ó s a s u p e r a ç ã o
de c o n c e p ç õ e s p u r a m e n t e naturalistas — que a i n d a t ê m p a p e l importante nos Vedas,
c o m o , p o r e x e m p l o , a d e que o fogo concreto é o deus o u , p e l o menos, o corpo
de u m concreto deus d o fogo — , e m lugar das quais s u r g i u a idéia de que o deus
perenemente idêntico a s i m e s m o , possua os diversos fogos, os d ê e deles disponha
o u se i n c o r p o r a neles, a cada v e z , de algum m o d o . Mas essa idéia abstrata s ó adquire
consistência mediante u m a a ç ã o dedicada i n v a r i a v e l m e n t e ao m e s m o deus, o u seja,
p o r seu " c u l t o " , e p o r sua v i n c u l a ç ã o a u m a associação contínua d e pessoas, u m a comu-
nidade d u r a d o u r a , p a r a a q u a l o culto, c o m o a ç ã o p e r m a n e n t e , tem este significado.
Retomaremos b r e v e m e n t e esse f e n ô m e n o . U m a v e z assegurada a continuidade das figu-
ras dos deuses, o pensamento daqueles que profissionalmente deles se o c u p a m pode
dedicar-se ao o r d e n a m e n t o sistemático deste d o m í n i o de representação.
O s " d e u s e s " r e p r e s e n t a m , f r e q ü e n t e m e n t e , e de m o d o a l g u m apenas e m socie-
dades p o u c o diferenciadas, u m caos desordenado de criações acidentais casualmente
mantidas p e l o culto. O s p r ó p r i o s deuses v é d i c o s n ã o constituem ainda u m conjunto
d i v i n o ordenado. Mas assim que, p o r u m lado a r e f l e x ã o sistemática sobre a prática
religiosa e, p o r outro, a r a c i o n a l i z a ç ã o da v i d a e m g e r a l , c o m sua crescente especificação
dos serviços esperados dos deuses, tenham a l c a n ç a d o certo nível, muito d i v e r s o e m
cada caso concreto, a r e g r a é a " f o r m a ç ã o d o p a n t e ã o " , isto é, a especialização e
caracterização f i x a s de determinadas figuras d i v i n a s , p o r u m lado, e, p o r outro, a dota-
ç ã o delas c o m atributos f i x o s e alguma d e l i m i t a ç ã o d e suas respectivas " c o m p e t ê n c i a s " .
Nesse processo, p o r é m , a p e r s o n i f i c a ç ã o crescentemente a n t r o p o m ó r f i c a das figuras
divinas n ã o é de m o d o a l g u m idêntica n e m c o r r e paralelamente à d e l i m i t a ç ã o e f i r m e z a
crescentes d e suas c o m p e t ê n c i a s . Muitas vezes o c o r r e o contrário. As c o m p e t ê n c i a s
dos numina r o m a n o s estão delimitadas d e u m m o d o muito mais f i x o e u n í v o c o do
que as das figuras divinas gregas; p o r outro lado, a h u m a n i z a ç ã o e r e p r e s e n t a ç ã o plástica
das últimas c o m o v e r d a d e i r a s " p e r s o n a l i d a d e s " f o i muito a l é m da que o c o r r e u na reli-
g i ã o r o m a n a g e n u í n a . A r a z ã o s o c i o l ó g i c a mais essencial disso é, neste caso, que a
idéia r o m a n a g e n u í n a do supra-sensível, e m sua estrutura g e r a l , persistiu, c o m muito
m a i o r f o r ç a , c o m o a de u m a religião nacional de camponeses e senhores patrimoniais,
enquanto q u e a helénica ficou exposta ao desenvolvimento r u m o a u m a cultura de
cavaleiros ínrerlocal, c o m o a da é p o c a h o m é r i c a , c o m seus deuses h e r ó i c o s . A assimi-
l a ç ã o p a r c i a l dessas c o n c e p ç õ e s pelos r o m a n o s e sua influência indireta sobre eles nada
m u d o u na religião n a c i o n a l ; muitas delas a l c a n ç a r a m a l i apenas u m a existência estética,
enquanto que a t r a d i ç ã o r o m a n a p e r m a n e c e u intocada e m suas características funda-
mentais na prática ritual e, p o r razões q u e e x a m i n a r e m o s m a i s tarde, manteve constante
sua atitude negativa e m r e l a ç ã o à religiosidade extático-orgiástica e mística, e m oposição
ao helenismo. Por sua própria n a t u r e z a , toda d i f e r e n c i a ç ã o da eficácia m á g i c a é muito
m e n o s elástica d o que a da " c o m p e t ê n c i a " d e u m " d e u s " c o n c e b i d o c o m o pessoa.
A r e l i g i ã o r o m a n a p e r m a n e c e u religio, vale d i z e r , independentemente de derivar-se
ECONOMIA E SOCIEDADE 285

etimologicamente a p a l a v r a de religare o u de relegere-. v i n c u l a ç ã o à f ó r m u l a p r o v a d a


do culto e " c o n s i d e r a ç ã o " dos numina de todas as espécies que s e m p r e estão presentes.
A l é m da t e n d ê n c i a ao f o r m a l i s m o , que tem nisso s e u fundamento, a religiosidade r o m a -
na específica e r a sustentada ainda p o r outra peculiaridade importante, e m o p o s i ç ã o
ao helenismo: o impessoal m a n t é m u m a afinidade interna c o m o racional-objetivo.
T o d a a v i d a cotidiana dos r o m a n o s e cada u m de seus atos estavam envolvidos pela
religião, c o m u m a casuística sacro-jurídica que a b s o r v i a sua a t e n ç ã o , d o ponto de vista
puramente quantitativo, n o m e s m o g r a u que as leis rituais dos judeus e h i n d u s , e o
direito sacro taoísta dos chineses. O n ú m e r o das divindades que constam nos indigita-
menta sacerdotais é infinito n o que se r e f e r e a sua e s pe ci a l i z a çã o concreta: n ã o apenas
cada a ç ã o c o m o t a m b é m cada parte concreta dela estava sob a influência de numina
especiais e, por p r e c a u ç ã o , t i n h a m de s e r invocados e adorados, e m todos os atos
importantes, a l é m dos dii certi, c o m sua s i g n i f i c a ç ã o causal e c o m p e t ê n c i a tradicio-
nalmente fixadas, t a m b é m os deuses a m b í g u o s neste aspecto (incerti) e aqueles cujo
sexo e a t u a ç ã o , o u m e s m o existência, e r a m duvidosos; p a r a certos atos de cultivo dos
campos, h a v i a u m a dúzia s ó dos p r i m e i r o s . Se os romanos c o n s i d e r a v a m o êxtase ( e m
latim superstitió) dos helenos u m a abalienatio mentis, contrária à o r d e m , p a r a estes
aquela casuística da religião r o m a n a (e da etrusca, que neste aspecto i a ainda m a i s
longe) e r a u m a deisidemonia cativa. A p r e o c u p a ç ã o c o m a satisfação dos numina l e v o u
à tendência d e d e c o m p o r mentalmente cada a ç ã o e m suas m a n i p u l a ç õ e s parciais concei-
tualmente determináveis e d e atribuir a cada u m a destas u m numen sob c u j o p a t r o c í n i o
especial se colocasse. E n c o n t r a m - s e analogias n a índia e e m outras partes, mas e m
n e n h u m outro lugar — u m a v e z que a a t e n ç ã o da prática ritual se concentrava totalmente
nisto — o n ú m e r o dos numina obtidos pela análise puramente conceituai, isto é, p o r
abstração mental, a ser l e v a d o e m conta e r a t ã o g r a n d e c o m o entre os romanos. A
peculiaridade específica, assim condicionada, da v i d a prática r o m a n a consiste — e nisto
reside a o p o s i ç ã o , p o r e x e m p l o , à a t u a ç ã o dos rituais judaicos e asiáticos — n o cultivo
incessante de u m a casuística sacro-jurídica praticamente racionai, n u m a e s p é c i e de j u r i s -
p r u d ê n c i a cautelar sacra e n o tratamento dessas coisas, p o r assim d i z e r , à m a n e i r a
de problemas de advogados. O direito s a c r o tornou-se assim a m a t r i z d o pensamento
j u r í d i c o r a c i o n a l , e n e m m e s m o a historiografia de Lívio, p o r e x e m p l o , negava essa
característica d o r o m a n o , condicionada pela r e l i g i ã o , quando, e m o p o s i ç ã o ao pragma-
tismo da historiografia judaica, p a r a e l a a q u e s t ã o c e n t r a l e r a a p r o v a da " c o r r e ç ã o "
sacro-jurídica e estatal-jurídica d e cada i n o v a ç ã o institucional: o que lhe i m p o r t a v a
n ã o e r a m o pecado, o castigo, a penitência e a s a l v a ç ã o , mas questões de etiqueta
jurídicas.

C o m respeito às c o n c e p ç õ e s d o s ( d e u s e s > das quais trataremos a q u i e m p r i m e i r o


lugar, aqueles processos de a n t r o p o m o r f i z a ç ã o , p o r u m lado, ei de d e l i m i t a ç ã o das
c o m p e t ê n c i a s , p o r outro, que se d e s e n v o l v e m é m parte paralelamente e e m parte e m
sentido c o n t r á r i o , estão v i n c u l a d o s aos tipos de d i v i n d a d e já existentes, mas i t ê m j L
tendência inerente a u m a r a c i o n a l i z a ç ã o crescente tanto da f o r m a de a d o r a ç ã o quanto
da dos deuses.
É de p o u c o interesse p a r a nossos f i n s e x a m i n a r a q u i os diversos tipos d e deuses
e d e m ô n i o s , a i n d a que o u , antes, p o r naturalmente estarem condicionados, à seme-
lhança d o v o c a b u l á r i o d e u m a l í n g u a , de m o d o direto sobretudo pela situação e c o n ô m i c a
e pelos destinos históricos d e cada p o v o . U m a v e z q u e , p a r a n ó s , estes últimos se
p e r d e m nas trevas, muitas vezes é impossível saber p o r q u e , entre os diferentes tipos
d e d i v i n d a d e , precisamente algumas se t e n h a m mantido n a p o s i ç ã o s u p r e m a . Isso pode
depender dos objetos naturais importantes p a r a a e c o n o m i a , c o m e ç a n d o pelos astros,
o u d e f e n ô m e n o s o r g â n i c o s nossuidos. oroduzidos o u influenciados p o r deuses o u de-
286 MAX WEBER

m ô n i o s : e n f e r m i d a d e , morte, nascimento, fogo, seca, c h u v a , trovoada o u colheita.


Segundo o significado e c o n ô m i c o de determinados f e n ô m e n o s particulares, pode e n t ã o
determinado deus alcançar a s u p r e m a c i a dentro d o p a n t e ã o , como, por e x e m p l o , o
deus d o c é u , concebido, dependendo das circunstâncias, c o m o senhor da luz e do
calor o u , c o m muita f r e q ü ê n c i a entre os povos c r i a d o r e s de gado, c o m o senhor da
p r o c r i a ç ã o . É c l a r o que a a d o r a ç ã o das divindades crônicas (da M ã e T e r r a ) p r e s s u p õ e ,
e m g e r a l , certo g r a u de importância relativa da agricultura, mas esse paralelismo n e m
s e m p r e ocorre. T a m p o u c o pode-se a f i r m a r que os deuses do c é u — c o m o representantes
do a l é m , do m u n d o dos h e r ó i s , muitas vezes transferido p a r a o c é u — tenham sido,
por toda parte, os deuses nobres, e m o p o s i ç ã o aos deuses terrestres, os " c a m p o n e s e s " .
E muito menos ainda que a " M ã e T e r r a " , c o m o divindade, c a m i n h e paralelamente
à o r d e m m a t r i a r c a l do clã. Mas, s e m d ú v i d a , as divindades crônicas que d o m i n a m as
colheitas costumam ter u m caráter m a i s local e popular do que as outras. E a preponde-
rância dos deuses celestes personificados, que r e s i d e m nas n u v e n s o u nas montanhas,
e m r e l a ç ã o às divindades terrestres, está c o m muita f r e q ü ê n c i a condicionada pelo desen-
v o l v i m e n t o de u m a cultura de cavaleiros e tende a fazer ascender e residir n o c é u
t a m b é m as divindades originalmente t e r r e s t r e s . j E m contraste c o m isso, os deuses crôni-
cos, e m c o n d i ç õ e s de p r e d o m í n i o a g r í c o l a , costumam r e u n i r e m si dois significados:
d o m i n a m a sorte das colheitas, portanto d o a m a r i q u e z a , e s ã o os senhores dos mortos
sepultados sob a t e r r a j Por isso, deles dependem f r e q ü e n t e m e n t e — p o r e x e m p l o ,
nos mistérios eleusinos — [ o s dois interesses práticos m a i s importantes: a r i q u e z a e
o destino n o a l é m j _ O s deuses celestes, ao contrário, s ã o os senhores do c u r s o dos
astros. As regras f i x a s às quais estes evidentemente estão ligados f a z e m c o m que esses
deuses, c o m muita f r e q ü ê n c i a , estendam seu d o m í n i o a tudo aquilo que t e m o u d e v e r i a
ter regras f i x a s , como, sobretudo, à justiça e aos bons costumes.;

A crescente importância objetiva e r e f l e x ã o subjetiva sobre os componentes e


espécies típicos das ações l e v a r a m à e s pe c i a li za ç ã o objetiva. Isto o c o r r e u de m a n e i r a
totalmente abstrata, c o m o n o caso dos deuses da " i n c i t a ç ã o " e muitos semelhantes,
na í n d i a , o u e n t ã o na f o r m a de u m a especialização qualitativa segundo o c o n t e ú d o
das diversas a ç õ e s , c o m o r e z a r , pescar o u arar. O e x e m p l o clássico desta f o r m a já
bastante abstrata de f o r m a ç ã o dos deuses está na c o n c e p ç ã o s u p r e m a do p a n t e ã o dos
deuses da antiga índia: B r a m a , o " s e n h o r das o r a ç õ e s " . A s s i m c o m o os sacerdotes
b r â m a n e s m o n o p o l i z a r a m a faculdade da o r a ç ã o eficaz, isto é, a c o a ç ã o m á g i c a sobre
os deuses, este deus, p o r sua v e z , m o n o p o l i z a a disposição sobre essa eficácia e, c o m
isso, o controle daquilo que mais importa na a ç ã o religiosa. Desse modo, ele se torna,
finalmente, o deus s u p r e m o , ainda que n ã o o ú n i c o . D e u m a f o r m a muito menos apa-
rente, J a n o , e m R o m a , c o m o o deus d o " i n í c i o " certo, aquele que decide tudo, a d q u i r i u
u m a significação relativamente u n i v e r s a l . Mas n ã o há ação social n e m i n d i v i d u a l que
n ã o tenha s e u deus especial e precise dele q u a n d o aspira à durabilidade garantida
da r e l a ç ã o associativa. S e m p r e que u m a associação o u r e l a ç ã o associativa se manifeste
n ã o c o m p o s i ç ã o pessoal de u m detentor de poder individual mas s i m efetivamente
c o m o " a s s o c i a ç ã o " , ela necessita de u m deus particular. Isto aplica-se, e m p r i m e i r o
lugar, às associações domésticas e de clã. Nelas, o p r i m á r i o s ã o os espíritos dos antepas-
sados (reais o u f i c t í c i o s ) ao lado dos quais a p a r e c e m e n t ã o os numina e as divindades
d o l a r e d o fogo do lar. O g r a u de importância d e s e u culto, administrado pelo chefe
da família o u da gens, é historicamente muito d i v e r s o e depende da estrutura e da
importância prática da família. E m r e g r a , u m culto d o m é s t i c o aos antepassados alta-
mente desenvolvido v a i de p a r c o m u m a estrutura patriarcal da comunidade doméstica,
porque somente esta faz da casa o centro t a m b é m dos interesses masculinos. Mas as
duas coisas, c o m o demonstra o e x e m p l o de I s r a e l , n ã o estão concatenadas entre s i
ECONOMIA E SOCIEDADE 287

de m o d o absoluto, pois os deuses de outras associações, particularmente políticas o u


religiosas, apoiados n o poder de seus sacerdotes, p o d e m r e p r i m i r o u até destruir o
culto d o m é s t i c o e o s a c e r d ó c i o d o m é s t i c o d o chefe d a família. Q u a n d o , entretanto,
o poder e a importância delas subsistem, constituem naturalmente u m l a ç o estritamente
pessoal e e x t r a o r d i n a r i a m e n t e forte, que r e ú n e a família e a gens de u m m o d o f i r m e
e rigorosamente e x c l u s i v o , e m r e l a ç ã o ao e x t e r i o r , e tem influência muito p r o f u n d a
t a m b é m sobre as r e l a ç õ e s e c o n ô m i c a s internas das comunidades domésticas. T o d a s
as relações jurídicas — a legitimidade da esposa e dos h e r d e i r o s , a p o s i ç ã o dos filhos
da casa e m r e l a ç ã o ao pai e dos i r m ã o s entre s i — estão determinadas e estereotipadas,
entre outros fatores, p o r esta circunstância. A precariedade da p o s i ç ã o religiosa relativa
ao adultério, do ponto de vista da família e d o clã, está n o fato de q u e , e m v i r t u d e
dele, u m a pessoa n ã o - c o n s a n g ü í n e a habilita-se a r e a l i z a r sacrifícios e m h o n r a dos ante-
passados do clã, p r o v o c a n d o assim a cólera destes contra os c o n s a n g ü í n e o s . Pois os
deuses e numina de u m a associação estritamente pessoal d e s p r e z a m os sacrifícios ofere-
cidos p o r pessoas q u e n ã o t ê m esse direito. A estrita o bs er v â n ci a do p r i n c í p i o de a g n a ç ã o ,
onde persiste, está certamente ligada e m g r a u muito elevado a esta circunstância, assim
c o m o todas as demais q u e s t õ e s referentes à l e g i t i m a ç ã o sacerdotal d o d o n o da casa.
O direito de sucessão, especialmente o direito do f i l h o mais v e l h o de s e r h e r d e i r o
ú n i c o o u privilegiado, t e m , a l é m dos motivos militares e e c o n ô m i c o s , t a m b é m estes
de natureza sacra. Sobretudo a comunidade doméstica e o clã da Ásia oriental ( n a C h i n a
e no J a p ã o ) e, n o Ocidente, e m R o m a , d e v e m a c o n s e r v a ç ã o de sua estrutura patriarcal,
apesar de todas as m u d a n ç a s das c o n d i ç õ e s e c o n ô m i c a s , principalmente a esse funda-
mento sacro. O n d e existe essa v i n c u l a ç ã o religiosa da comunidade doméstica e da linha-
g e m , as relações associativas m a i s abrangentes, especialmente as políticas, s ó p o d e m
ter o caráter 1) d e u m a c o n f e d e r a ç ã o sagrada de clãs (reais o u fictícios) o u 2 ) d e u m
poder p a t r i m o n i a l , c o n s t r u í d o à m a n e i r a de u m poder d o m é s t i c o debilitado, e x e r c i d o
por u m a g e s t ã o p a t r i m o n i a l extensa (de u m r e i ) sobre as dos " s ú d i t o s " . A c o n s e q ü ê n c i a ,
no segundo caso, é que os antepassados, numina, genii o u deuses pessoais daquela
g e s t ã o p a t r i m o n i a l m a i s poderosa se j u n t a m aos deuses d o m é s t i c o s das g e s t õ e s dos
súditos e legitimam sacramente a p o s i ç ã o d o dominador. Isto o c o r r e na Ásia o r i e n t a l ;
na C h i n a , e m c o m b i n a ç ã o c o m a m o n o p o l i z a ç ã o pelo i m p e r a d o r , c o m o pontífice, do
culto dos espíritos s u p r e m o s da natureza. Pretensões semelhantes estavam ligadas à
f u n ç ã o sacra, de genius, do princeps r o m a n o , c o m a integração assim condicionada
da pessoa d o i m p e r a d o r ao culto dos leigos. No p r i m e i r o caso, ao contrário, surge
u m deus especial da associação política c o m o tal. U m deus deste tipo e r a J e o v á . O
fato de ele ser o deus d e u m a c o n f e d e r a ç ã o — segundo a tradição, originalmente o
deus da aliança dos judeus e midianitas — , teve a c o n s e q ü ê n c i a importantíssima de
que sua r e l a ç ã o c o m o p o v o israelita, que o aceitara, sob j u r a m e n t o , junto c o m a confe-
d e r a ç ã o política e a o r d e m sacro-jurídica das relações sociais, f o i considerada u m berith,
o u seja, u m a r e l a ç ã o contratual, imposta p o r J e o v á e aceita p o r submissão, que trazia
consigo determinados deveres rituais, sacro-jurídicos e ético-sociais p a r a os contratantes
humanos, mas t a m b é m compromissos claramente definidos d o contratante d i v i n o , cuja
inviolabilidade este se sentia n o direito d e e x i g i r nas f o r m a s indicadas, posto tratar-se
de u m deus c o m tal plenitude de poderes. O caráter e s p e c í f i c o d e compromisso da
religiosidade israelita q u e , apesar de todas as demais analogias, e m n e n h u m a outra
religião se repete c o m tanta intensidade, teve a q u i sua p r i m e i r a raiz. A o c o n t r á r i o ,
é u n i v e r s a l o f e n ô m e n o de a f o r m a ç ã o de u m a associação política estar condicionada
à s u b o r d i n a ç ã o a u m deus especial desta associação. O sinoikismós [sinecismo] mediter-
r â n e o é , a i n d a que n ã o necessariamente criação originária, p e l o m e n o s a reconstituição
de u m a c o m u n i d a d e de culto sob u m a divindade de polis. A polis, apesar d e s e r a
288 MAX WEBER

portadora clássica das manifestações mais importantes do "deus local" político, não
é a única. Ao contrário, toda associação política permanente tem, em geral, seu deus
especial que garante o êxito da ação associativa política. Esse deus, quando plenamente
desenvolvido, é de caráter absolutamente exclusivo em relação ao exterior. Somente
aceita sacrifícios e orações de membros da associação, pelo menos em princípio. Mas
como não se pode ter certeza absoluta disso, é muitas vezes estritamente proibido
revelar como é possível influenciá-lo eficazmente. O estranho, além de não ser membro
da associação política, tampouco o é da religiosa. Também o deus com nome igual
e atributos iguais da associação estranha não é idêntico ao da associação própria. A
Juno dos vejentanos não é a Juno dos romanos; tampouco para o napolitano a Madona
de uma capela é a mesma que a da outra: uma ele venera; a outra, despreza e insulta
quando ela ajuda os concorrentes. Ou então procura puxá-la para seu lado. Promete-se
aos deuses do inimigo acolhimento e veneração no país próprio se abandonarem os
inimigos (evocareDeas) como o fez, por exemplo, Camilo diante de Veji. Ou roubam-se
ou conquistam-se os deuses. Só que nem todos o permitem. A arca conquistada de
Jeová trouxe pragas aos filisteus. Em regra, a vitória própria é também a vitória do
deus próprio, mais forte, sobre o deus estranho, mais fraco. Nem todo deus de uma
associação política está vinculado, em sentido puramente local, à sede da direção da
associação. No relato da marcha do povo de Israel pelo deserto, ele anda junto com
o povo ou à frente dele, do mesmo modo que os lares da família romana mudam
de lugar junto com ela. E — em contradição àquele relato — é considerado um traço
especial de Jeová que ele seja um deus que atua "a distância", isto é, do Sinai, onde
habita como deus das tribos, e somente em caso de calamidades de guerra sofridas
por seu povo se aproxima, numa tempestade, com suas legiões (zebaoth) Supõe-se,
provavelmente com razão, que essa qualidade específica de'' atuação a distância", conse-
qüência do acolhimento de um deus estrangeiro por Israel, contribuiu para o desenvol-
vimento da concepção de Jeová como o deus único, universal e todo-poderoso. Pois,
em regra, a qualidade de um deus como "deus local" e também a "monolatria" exclusiva
que ele exige às vezes de seus adoradores não é de modo algum o caminho que conduz
ao monoteísmo, mas ao contrário, leva freqüentemente ao fortalecimento do particu-
larismo dos deuses. E o desenvolvimento dos deuses locais, por sua vez, significa um
fortalecimento extraordinário do particularismo político. Isto ocorre sobretudo sobre
o fundamento da polis. Fechada para o exterior, como uma igreja em relação às outras,
absolutamente adversa a toda formação de um sacerdócio unitário que permeie as
diferentes associações, permanece ela — dominada por esse particularismo, em oposi-
ção a nosso "Estado", concebido como "instituição" — uma associação essencialmente
pessoal de participantes do culto do deus da cidade, subdividida, por sua vez, em associa-
ções de culto de divindades domésticas, de tribo e de linhagem, que também se excluem
mutuamente no que se refere a seus cultos especiais. Estas são também fechadas, em
relação aos grupos não participantes de todas essas associações de culto especiais, do-
mésticas e de clã. O individuo que não cultua um deus doméstico (Zeus nerkaios) é,
em Atenas, inapto para cargos públicos, bem como em Roma aquele que não pertence
â associação dospatres. O funcionário plebeu especial (tribunusplebis) só está protegido
pelo juramento humano (sacro sanctus) não tem auspícios e, por isso, nenhum impe-
rium legítimo; possui no máximo uma potestas. A vinculação local da divindade da
associação atinge o mais alto grau de desenvolvimento onde o território desta, como
tal, é considerado especificamente sagrado para o deus. Foi o que ocorreu de modo
crescente com a Palestina em relação a Jeová, de tal sorte que a tradição permitia aos
habitantes em terra alheia, se desejassem participar na associação de culto de Jeová
e adorá-lo, que tivessem consigo algumas carradas de terra da Palestina.
ECONOMIA E SOCIEDADE 289

O n a s c i m e n t o de deuses locais p r o p r i a m e n t e ditos está ligado, p o r sua v e z , n ã o


apenas a u m a v i d a sedentária c o m o t a m b é m a outros pressupostos que f a z e m da associa-
ç ã o local u m a p o r t a d o r a de significados políticos. S e u desenvolvimento p l e n o [isto é,
d o tipo da associação l o c a l e d e s e u deus local] e r a a l c a n ç a d a , e m r e g r a , sobre o f u n d a -
mento da cidade, c o m o associação política especial, c o m direitos corporativos, existente
indejiendentemente da corte e da pessoa do soberano. Por isso, e l a n ã o existe n a í n d i a ,
na Asia o r i e n t a l e n o Irã, s e n d o v e r i f i c a d a , e m poucos casos, n o norte da E u r o p a ,
c o m seus deuses tribais. F o r a d o â m b i t o da o r g a n i z a ç ã o jurídica das cidades, ao contrá-
r i o , essa f o r m a de a s s o c i a ç ã o já e x i s t i a , n o Egito, na fase da religiosidade zoolátrica,
para a divisão de distritos. D a s cidades-estados, a divindade l o c a l propagou-se às confe-
d e r a ç õ e s , c o m o as dos israelitas, dos etólios, e t c , orientadas p o r esse modelo. D o
ponto de vista da história das idéias esta c o n c e p ç ã o da associação c o m o p o r t a d o r a
de u m culto l o c a l é u m e l o i n t e r m e d i á r i o entre a c o n s i d e r a ç ã o p u r a m e n t e p a t r i m o n i a l
da a ç ã o política comunitária e c o n c e p ç ã o puramente r a c i o n a l da associação c o m o insti-
tuição e portadora de determinados f i n s , representada, p o r e x e m p l o , pela idéia m o d e r n a
da " c o r p o r a ç ã o t e r r i t o r i a l " .
N ã o apenas as associações políticas c o m o t a m b é m as relações associativas profis-
sionais t ê m suas divindades o u seus santos especiais. No c é u das divindades v é d i c a s
estes ainda estão inteiramente ausentes, o que corresponde ao estado da economia.
A o c o n t r á r i o , o deus dos escribas, n o antigo Egito, é u m sinal do ascenso da b u r o c r a -
tização, assim c o m o os deuses e santos especiais, universalmente divulgados, dos c o m e r -
ciantes e de todos os tipos de o f í c i o s ã o indícios da articulação crescente das profissões.
Ainda n o s é c u l o X K , o e x é r c i t o c h i n ê s i m p ô s a c a n o n i z a ç ã o de s e u deus da g u e r r a :
u m sintoma da c o n c e p ç ã o d o m i l i t a r c o m o " p r o f i s s ã o " particular, ao l a d o das outras.
Isto e m c o n t r a p o s i ç ã o aos deuses da g u e r r a da Antiguidade m e d i t e r r â n e a e dos medos,
que s e m p r e s ã o grandes deuses nacionais.
A s s i m c o m o as próprias figuras dos deuses v a r i a m de acordo c o m as c o n d i ç õ e s
de existência naturais e sociais, t a m b é m as possibilidades de u m deus de conquistar
p a r a s i a p r i m a z i a n o p a n t e ã o o u , a f i n a l , o m o n o p ó l i o da divindade s ã o variadas. Rigoro-
samente " m o n o t e í s t a s " s ã o , n o f u n d o , apenas o j u d a í s m o e o islamismo. A c o n c e p ç ã o
d o ser o u dos seres divinos, tanto n o h i n d u í s m o c o m o n o cristianismo, representa u m
disfarce t e o l ó g i c o d o fato d e que u m interesse religioso importante e peculiar — o
da s a l v a ç ã o pela e n c a r n a ç ã o de u m d e u s — s e o pu n h a ao m o n o t e í s m o estrito. Sobretudo
e m lugar algum o c a m i n h o p a r a o m o n o t e í s m o , p e r c o r r i d o c o m c o n s e q ü ê n c i a s muito
diversas, extinguiu definitivamente a existência do m u n d o dos espíritos e d e m ô n i o s
— n e m m e s m o durante a R e f o r m a — , mas limitou-se a subordiná-los de m o d o absoluto,
pelo m e n o s teoricamente, à o n i p o t ê n c i a d o deus ú n i c o . Na prática, p o r é m , o que s e m p r e
i m p o r t o u e ainda importa é q u e m m a i s interfere nos interesses do i n d i v í d u o na v i d a
cotidiana, se o deus teoricamente " s u p r e m o " o u os espíritos e d e m ô n i o s " i n f e r i o r e s " .
Se s ã o os últimos, e n t ã o a religiosidade cotidiana está determinada sobretudo pela r e l a -
ç ã o c o m estes, independentemente de c o m o se apresente o conceito o f i c i a l d o deus
da religião racionalizada. Q u a n d o o n d e existe u m deus local político, a p r i m a z i a , natural-
mente, passa muitas vezes p a r a as m ã o s dele. Q u a n d o , e n t ã o , dentro de u m a p l u r a l i d a d e
d e comunidades sedentárias que a l c a n ç a r a m o estádio da c r i a ç ã o d e deuses locais, o
â m b i t o da associação política se expande e m v i r t u d e de conquistas, a c o n s e q ü ê n c i a
n o r m a l é a u n i ã o n u m a totalidade, p o r v i a da n o v a r e l a ç ã o associativa, dos diferentes
deuses locais das comunidades ligadas. D e n t r o desta destaca-se, e n t ã o , c o m ênfase
muito d i v e r s a e c o m base na divisão d o trabalho, sua especialização prática o u funcional
— a p r i m i t i v a o u outra condicionada p o r novas e xpe ri ê n ci a s s o b r e sua esfera especial
de influência. O deus local da sede do soberano o u dos sacerdotes m a i s poderosos
290 MAX WEBER

— o M a r d u k , de B a b e l ; o A m o n de Tebas — , ascende e n t ã o à p o s i ç ã o d o deus s u p r e m o ,


para desaparecer c o m f r e q ü ê n c i a c o m a queda eventual o u a m u d a n ç a da residência,
tal c o m o A s s u r c o m o d e c l í n i o d o I m p é r i o assírio. Isso p o r q u e , desde que u m a comuni-
dade política, c o m o tal, é considerada u m a associação protegida pela divindade, a unida-
de política n ã o parece suficientemente assegurada enquanto os deuses dos grupos com-
ponentes n ã o se t e n h a m r e u n i d o e associado e, t a m b é m , muitas vezes, enquanto n ã o
se tenha f o r m a d o u m sinecismo local: o que, neste aspecto, e r a u m f e n ô m e n o corrente
na Antiguidade, repetiu-se ainda n o traslado das grandes relíquias de santos das catedrais
provinciais à capital do I m p é r i o russo unificado.
As demais c o m b i n a ç õ e s possíveis dos diferentes princípios da f o r m a ç ã o d o p a n t e ã o
e da p r i m a z i a s ã o infinitas, e as figuras dos deuses, n a m a i o r i a das v e z e s , t ã o lábeis
e m suas c o m p e t ê n c i a s c o m o os f u n c i o n á r i o s de f o r m a ç õ e s patrimoniais. A delimitação
das c o m p e t ê n c i a s c r u z a c o m o h á b i t o da a d e s ã o religiosa a u m deus especial, particu-
larmente p r o v a d o e m determinada situação, o u da d e f e r ê n c i a p a r a c o m o deus ao
qual se r e c o r r e atualmente, tratando-o c o m o funcionalmente u n i v e r s a l e atribuindo-lhe
todas as espécies d e f u n ç õ e s geralmente exercidas p o r outros deuses: o c h a m a d o " h e n o -
t e í s m o " , considerado por Max Müller, s e m r a z ã o , u m a fase de desenvolvimento especial.
Na f o r m a ç ã o da p r i m a z i a , d e s e m p e n h a m u m papel importante fatores p u r a m e n t e racio-
nais. O n d e q u e r que se destaque u m a rigidez muito grande e m certas prescrições,
de qualquer natureza — tratando-se muitas vezes de rituais religiosos estereotipados,
repetidos c o m regularidade — e o pensamento religioso tome consciência dela, costu-
m a m ter a oportunidade da p r i m a z i a aquelas divindades que m o s t r a m e m s e u compor-
tamento o m a i o r n ú m e r o de regularidades f i x a s , portanto, os deuses do céu e dos
astros. Na religiosidade cotidiana, essas divindades que i n f l u e n c i a m f e n ô m e n o s naturais
muito universais e, p o r isso, s ã o consideradas supremas, pela e s p e c u l a ç ã o metafísica,
e às vezes até as criadoras do m u n d o n ã o d e s e m p e n h a m , n a m a i o r i a das vezes, u m
papel importante, u m a v e z que esses f e n ô m e n o s n ã o oscilam muito e m suas manifes-
tações e, portanto, n ã o despertam na prática da v i d a cotidiana a necessidade de influen-
ciá-los pela i n t e r v e n ç ã o dos magos e dos sacerdotes. Pode o c o r r e r que u m deus deter-
m i n e o caráter de toda a religiosidade de u m p o v o ( c o m o O s í r i s , n o Egito), quando
corresponda a u m interesse religioso particularmente intenso — neste caso, o soterio-
l ó g i c o [relativo à salvação ( N . T . ) ] — , s e m contudo alcançar a p r i m a z i a n o panteão.
A ratio exige a p r i m a z i a dos deuses u n i v e r s a i s , e toda f o r m a ç ã o c o n s e q ü e n t e do p a n t e ã o
orienta-se, de alguma m a n e i r a , t a m b é m p o r princípios sistemático-racionais porque
s e m p r e está exposta à influência seja de u m racionalismo sacerdotal profissional, seja
do e s f o r ç o dos leigos p a r a estabelecer u m a o r d e m r a c i o n a l . E sobretudo a afinidade
já mencionada entre a regularidade r a c i o n a l d o c u r s o dos astros, garantido pela o r d e m
d i v i n a , e a inviolabilidade da o r d e m sagrada sobre a terra faz deles g u a r d i ã e s compe-
tentes dessas duas coisas das quais d e p e n d e m p o r u m lado a economia racional e,
p o r outro, o d o m í n i o assegurado e ordenado das n o r m a s sagradas na comunidade
social. O s representantes dessas n o r m a s sagradas e os interessados nelas s ã o , e m p r i m e i -
r o lugar, os sacerdotes e, por isso, a c o n c o r r ê n c i a entre os deuses dos astros Varuna
e Mitra, que protegem a o r d e m sagrada, e o deus da tempestade, I n d r a , dono das
a r m a s e matador do d r a g ã o , é u m sintoma da c o n c o r r ê n c i a entre u m s a c e r d ó c i o , que
p r o c u r a estabelecer u m a o r d e m f i x a e o d o m í n i o da v i d a por essa o r d e m , e o poder
da n o b r e z a g u e r r e i r a , p a r a a qual o deus dos h e r ó i s , sequioso de a ç ã o , e a irracionalidade
estranha a toda o r d e m da aventura e da fatalidade representam relações adequadas
a poderes sobrenaturais. O b s e r v a r e m o s , a i n d a , e m várias ocasiões a a t u a ç ã o deste im-
portante antagonismo. O r d e n s sagradas sistematizadas, tais c o m o as propagadas pelos
sacerdotes ( n a í n d i a , n o Irã e na B a b i l ô n i a ) , e r e l a ç õ e s d e súditos, racionalmente ordena-
ECONOMIA E SOCIEDADE 291

das, tais c o m o as criadas p e l o Estado b u r o c r á t i c o ( n a C h i n a , n a B a b i l ô n i a ) a p ó i a m ,


n a m a i o r i a das v e z e s , a a s c e n s ã o das divindades celestes o u astrais dentro d o p a n t e ã o .
Se n a B a b i l ô n i a a religiosidade desemboca, c o m univocidade crescente, na c r e n ç a n o
d o m í n i o dos astros, especialmente dos planetas, sobre todas as coisas, desde os dias
da semana até o destino n o a l é m , transformando-se assim n u m fatalismo a s t r o l ó g i c o ,
isto é certamente u m p r o d u t o da ciência sacerdotal dos tempos posteriores e ainda
estranho à r e l i g i ã o n a c i o n a l d o Estado politicamente l i v r e . O d o m i n a d o r d o p a n t e ã o
o u u m deus d o p a n t e ã o n ã o é, d e p e r s i , u m deus " u n i v e r s a l " , internacional que d o m i n a
o m u n d o . Mas, naturalmente, está s e m p r e n o c a m i n h o de v i r a s ê - l o . T o d o pensamento
desenvolvido s o b r e os deuses exige, e m g r a u crescente, q u e conste de m o d o u n í v o c o
a existência de u m s e r c o m a qualidade de deus, s e n d o o deus, portanto, " u n i v e r s a l "
neste sentido. T a m b é m os f i l ó s o f o s dos helenos r e e n c o n t r a v a m , p e l a sua interpretação,
as divindades de s e u passavelmente ordenado p a n t e ã o e m todas as divindades existentes
e m outras partes. A tendência à q u e l a universalização aumenta c o m a p r e p o n d e r â n c i a
crescente d o d o m i n a d o r do p a n t e ã o , isto é, à medida que este assume traços " m o n o -
teístas". A f o r m a ç ã o d o i m p é r i o c h i n ê s , a e x p a n s ã o da casta sacerdotal dos b r â m a n e s
a todas as f o r m a ç õ e s políticas particulares e m toda a í n d i a , o surgimento dos i m p é r i o s
persa e r o m a n o , todos estes processos f a v o r e c e r a m o nascimento do u n i v e r s a l i s m o
e do m o n o t e í s m o — d e alguma f o r m a , a ambos, mas n e m s e m p r e e m g r a u igual — ,
ainda que c o m resultados muito diversos.
A f o r m a ç ã o dos i m p é r i o s m u n d i a i s ( o u a assimilação social, na e s f e r a p r o f a n a ,
c o m efeitos a n á l o g o s ) n ã o e r a , de m o d o a l g u m , a alavanca única e indispensável desse
desenvolvimento. Pelo m e n o s o p r i m e i r o a v a n ç o do m o n o t e í s m o universalista, a mono-
latria, se dá — precisamente n o caso mais importante, d o ponto de vista da história
da religião, o u seja, o culto a J e o v á — c o m o c o n s e q ü ê n c i a de u m acontecimento histórico
muito preciso: a f o r m a ç ã o de u m a c o n f e d e r a ç ã o . O u n i v e r s a l i s m o é, neste caso, o
produto da política internacional cujos intérpretes p r a g m á t i c o s e r a m os profetas interes-
sados n o culto e na m o r a l de J e o v á , c o m a c o n s e q ü ê n c i a de que t a m b é m os feitos
dos povos estrangeiros, que a f e t a v a m fortemente os interesses vitais de I s r a e l , come-
ç a r a m a ser considerados feitos desse deus. T o r n a - s e aqui muito p a l p á v e l o caráter
específica e eminentemente histórico inerente à e s p e c u l a ç ã o dos profetas judaicos, e m
forte contraste c o m a e s p e c u l a ç ã o naturalista da classe sacerdotal na índia e na B a b i l ô n i a ,
[e] a tarefa inevitavelmente d e r i v a d a dos compromissos de J e o v á : de c o m p r e e n d e r a
totalidade d o desenvolvimento — c o m seu curso t ã o a m e a ç a d o r e t ã o estranho, e m
vista daqueles compromissos do destino do p o v o , e n t r e l a ç a d o c o m os destinos dos
outros povos — c o m o "feitos de J e o v á " , isto é, c o m o fatos de u m a "história u n i v e r s a l " ,
o que c o n f e r i u ao antigo deus g u e r r e i r o da c o n f e d e r a ç ã o , t r a n s f o r m a d o n o deus local
da po7/s de J e r u s a l é m , os traços proféticos universalistas de o n i p o t ê n c i a e inescruta-
bilidade sobrenaturais sagradas. O a v a n ç o monoteísta e, p o r isso, universalista e m seu
caráter, d o f a r a ó A m e n ó f i s I V ( A k e n a t o n ) e m d i r e ç ã o ao culto d o Sol tem sua o r i g e m
n u m a situação totalmente diferente: p o r u m lado, t a m b é m a q u i , n u m a m p l o raciona-
lismo dos sacerdotes e p r o v a v e l m e n t e dos leigos, q u e , e m o p o s i ç ã o absoluta ao profe-
tismo israelita, apresenta u m caráter puramente naturalista e, p o r outro, na necessidade
prática do m o n a r c a colocado à c a b e ç a de u m Estado b u r o c r á t i c o unitário de quebrantar,
c o m a e l i m i n a ç ã o da pluralidade dos deuses dos sacerdotes, t a m b é m a p r e p o t ê n c i a
dos p r ó p r i o s sacerdotes e de restabelecer a p o s i ç ã o de p o d e r antiga dos f a r a ó s d i v i n i -
zados p e l a e l e v a ç ã o d o r e i a s u m o sacerdote d o Sol. O m o n o t e í s m o universalista das
profecias cristã e islâmica, e o m o n o t e í s m o relativo da p r o f e c i a de Zarátustra s u r g e m
historicamente de u m m e s m o processo: as duas p r i m e i r a s e m d e c o r r ê n c i a d o desenvol-
v i m e n t o d o j u d a í s m o , e o ú l t i m o é determinado, c o m muita probabilidade, p o r influên-
292 MAX WEBER

cias extra-iranianas (do Oriente Próximo) Todas as três são condicionadas pela peculia-
ridade da profecia "ética", em oposição à "exemplar", diferença a ser examinada mais
tarde. Todos os demais desenvolvimentos relativamente monoteístas e universalistas
são, portanto, produtos da especulação filosófica de sacerdotes e leigos que somente
alcançaram importância prática e religiosa onde se enlaçaram com interesses soterio-
lógicos (de salvação) (Voltaremos mais tarde a este assunto.)
Os obstáculos práticos ao desenvolvimento em direção a um monoteísmo rigoroso,
iniciado quase universalmente em diversas formas — os quais tornaram relativa a impo-
sição deste na religião cotidiana por toda parte, com exceção do judaísmo, do islamismo
e do protestantismo —, estavam, em regra, nos poderosos interesses ideais e materiais
dos sacerdotes interessados nos cultos e nos lugares de culto dos deuses particulares,
por um lado, e, por outro, nos interesses religiosos dos leigos em um objeto religioso
palpável, próximo, que se podia relacionar com a situação de vida concreta ou com
determinado círculo de pessoas, excluindo-se as outras, e, sobretudo, aberto à influência
mágica. De fato, a segurança da magia, uma vez comprovada, é muito maior do que
o efeito da veneração de um deus não mais influenciável por meios mágicos por ser
demasiadamente poderoso. A concepção dos poderes "supra-sensíveis" divinos, mesmo
como um deus universal, não elimina, assim, por si, as antigas idéias mágicas (nem
no cristianismo) porém faz com que surja uma possibilidade dupla—que cabe examinar
agora — de relação com eles.
Um poder concebido, de algum modo, por analogia com o homem dotado de
alma, pode ser forçado, assim como o "poder" naturalista de um espírito, a estar a
serviço dos homens: quem possui o carisma de empregar os meios adequados para
isto é mais forte do que até mesmo um deus e pode impor a este sua vontade. Neste
caso, a ação religiosa não é "serviço ao deus", mas sim "coação sobre o deus"; a
invocação não é uma oração mas uma fórmula mágica: um fundamento inexterminável
da religiosidade popular, sobretudo na índia, porém divulgado universalmente, como
mostra o exemplo do sacerdote católico que ainda conserva algo desse poder mágico
na transubstanciação da missa e na custódia das chaves. Os componentes orgiásticos
e mímicos do culto religioso, sobretudo o canto, a dança, o drama, além das típicas
fórmulas fixas das orações, têm aqui sua origem não exclusiva mas fundamental. Ou
a antropomorfização tende então a trasladar ao comportamento dos deuses a graça
livre de um poderoso senhor mundano, a ser obtida mediante súplicas, presentes, servi-
ços, tributos, adulações, subornos e, por fim e nomeadamente, mediante um compor-
tamento agradável que corresponde à vontade do senhor, concebendo os deuses, em
analogia com este, como seres poderosos e inicialmente mais fortes apenas em termos
quantitativos. Neste caso, surge a necessidade de um "serviço divino'.
Naturalmente, também os elementos específicos do "serviço divino", a oração
e o sacrifício, são inicialmente de origem mágica. No caso da oração, os limites entre
a fórmula mágica e a súplica são fluidos, e precisamente a prática tecnicamente raciona-
lizada da reza, com moinhos de orações e semelhantes aparelhos técnicos, com fitas
de orações penduradas ao vento ou pregadas nas imagens dos deuses ou dos santos
ou com a realização de determinado número de voltas no rosário, contando-se somente
a quantidade (quase todos eles produtos da racionalização hindu da coação sobre os
deuses) é por toda parte mais próxima da primeira do que da última. Não obstante,
também as religiões indiferenciadas nos demais aspectos praticam a oração autêntica
individual, como súplica, na maioria das vezes numa forma racional, puramente comer-
cial: o rezador apresenta ao deus os serviços prestados, esperando contraprestações
correspondentes. Também o sacrifício aparece no princípio como meio mágico. Em
parte diretamente a serviço da coação sobre o deus: também os deuses precisam do
ECONOMIA E SOCIEDADE 293

filtro de soma dos sacerdotes m á g i c o s [védicos ( N . T . ) ] que suscita o êxtase, p a r a r e a l i z a r


suas façanhas; p o r isso, c o n f o r m e i m a g i n a r a m os antigos arianos, pode-se f o r ç á - l o s
mediante o sacrifício. O u e n t ã o pode-se até c o n c l u i r c o m eles u m pacto que i m p õ e
o b r i g a ç õ e s a ambas as partes — c o n c e p ç ã o dos israelitas, de graves c o n s e q ü ê n c i a s .
O u o sacrifício é u m m e i o de desviar magicamente p a r a outro objeto a i r a do deus
uma v e z desatada, seja este objeto u m bode e x p i a t ó r i o o u (e n o m e a d a m e n t e ) u m a
vítima h u m a n a . A i n d a mais importante e p r o v a v e l m e n t e t a m b é m mais antigo é outro
motivo: espera-se q u e o sacrifício, especialmente o de u m a n i m a l , estabeleça u m a com-
munio, u m a comensalidade c o m efeito de c o n f r a t e r n i z a ç ã o , entre o sacrificador e o
deus; isto representa u m a m o d i f i c a ç ã o do sentido da idéia ainda mais antiga de que
o ato de d e s p e d a ç a r e c o m e r de u m a n i m a l forte e, mais tarde, de u m a n i m a l sagrado,
p ro p or c io n e a f o r ç a deste à q u e l e que o ingere. U m sentido m á g i c o deste tipo o u de
outro — pois há muitas possibilidades — pode, m e s m o que idéias " c u l t u a i s " p r o p r i a -
mente ditas atuem fortemente sobre a d e t e r m i n a ç ã o d o sentido, d a r determinado caráter
à a ç ã o sacrificatória. Pode t a m o é m v o l t a r a d o m i n a r e m lugar do sentido v e r d a d e i -
ramente " c u l t u a l " : já os rituais sacrificatórios do A t h a r v a v e d a , e muito mais ainda os
dos b r â m a n e s s ã o , e m o p o s i ç ã o aos antigos sacrifícios n ó r d i c o s , quase p u r a magia.
A c o n c e p ç ã o do sacrifício c o m o tributo, p o r e x e m p l o , e m f o r m a dos p r i m e i r o s frutos
da colheita, p a r a que a divindade n ã o i n v e j e os remanescentes concedidos aos h o m e n s ,
o u , m a i s ainda, a c o n c e p ç ã o do sacrifício c o m o " s a c r i f í c i o e x p i a t ó r i o " , e m f o r m a de
u m " c a s t i g o " imposto a s i p r ó p r i o , p a r a apartar a t e m p o ã v i n g a n ç a do deus, significa,
ao contrário, u m abandono das idéias m á g i c a s . Mas certamente t a m b é m isto n ã o e n v o l v e
ainda u m a " c o n s c i ê n c i a de p e c a d o " ; realiza-se, a p r i n c í p i o ( c o m o na índia), c o m a
frieza d e u m a r e l a ç ã o c o m e r c i a l . O progresso das c o n c e p ç õ e s de u m deus poderoso
e de s e u caráter c o m o senhor pessoal condiciona e n t ã o o p r e d o m í n i o crescente dos
motivos n ã o - m á g i c o s . O deus transforma-se n u m grande senhor que, quando lhe con-
v é m , t a m b é m pode falhar e d o q u a l n ã o se pode portanto a p r o x i m a r - s e c o m medidas
de c o a ç ã o m á g i c a s mas apenas c o m súplicas e presentes. Mas tudo o que estes motivos
t r a z e m de n o v o , e m c o m p a r a ç ã o c o m a simples " m a g i a " , s ã o a p r i n c í p i o elementos
tão prosaicos e racionais c o m o os motivos da p r ó p r i a magia. Do ut des é o dogma
fundamental, por toda parte. E s s e caráter i n e r e à religiosidade cotidiana e das massas
de todos os tempos e povos e t a m b é m d e todas as religiões. O afastamento do m a l
externo e a o b t e n ç ã o de vantagens externas, "neste m u n d o " , constituem o c o n t e ú d o
de todas as " o r a ç õ e s " n o r m a i s , m e s m o nas religiões extremamente dirigidas ao a l é m .
Q u a l q u e r outro t r a ç o é o b r a de u m processo e s p e c í f i c o de desenvolvimento c o m caráter
peculiarmente a m b í g u o . Por u m lado, h á u m a sistematização racional cada v e z mais
extensa dos conceitos dos deuses e, d o m e s m o m o d o , d o pensamento sobre as possíveis
relações dos homens c o m o d i v i n o . Por outro lado, p o r é m , n o resultado, há u m retro-
cesso característico daquele r a c i o n a l i s m o prático o r i g i n á r i o , c o m s e u caráter calculador.
Pois o " s e n t i d o " do comportamento especificamente religioso, paralelamente à q u e l a
racionalização do pensamento, é p r o c u r a d o cada v e z menos nas vantagens p u r a m e n t e
externas da v i d a e c o n ô m i c a cotidiana, tornando-se, portanto, cada v e z m a i s " i r r a c i o n a l "
o f i m d o comportamento religioso, até q u e , finalmente, esses f i n s " e x t r a m u n d a n o s " ,
v a l e dizer, e x t r a - e c o n ô m i c o s , s ã o considerados o e s p e c í f i c o d o comportamento religio-
so. Mas, precisamente p o r isso, a existência de portadores pessoais específicos desse
desenvolvimento " e x t r a - e c o n ô m i c o " , no sentido aqui exposto, é u m dos pressupostos
do mesmo.

É possível distinguir a " m a g i a " , c o m o c o a ç ã o m á g i c a , daquelas f o r m a s d e relações


c o m os poderes supra-sensíveis que se manifestam c o m o " r e l i g i ã o " e " c u l t o " e m súpli-
cas, sacrifícios e v e n e r a ç ã o e, e m conformidade c o m isso, designar c o m o " d e u s e s "
294 MAX WEBER

aqueles seres religiosamente v e n e r a d o s e invocados, e c o m o " d e m ô n i o s " aqueles f o r ç a -


dos e conjurados p o r magia. A distinção quase nunca pode ser feita e m profundidade,
pois m e s m o o ritual do culto " r e l i g i o s o " , neste sentido, c o n t é m quase por toda parte
grande n ú m e r o de componentes m á g i c o s . E o desenvolvimento histórico dessa distinção
deve-se c o m f r e q ü ê n c i a simplesmente ao fato de q u e , n o caso de repressão de u m
culto p o r u m poder secular o u sacerdotal a f a v o r de u m a religião n o v a , os antigos
deuses c o n t i n u a r a m existindo c o m o " d e m ô n i o s " .

§ 2. O m a g o e o sacerdote

O aspecto s o c i o l ó g i c o da mencionada distinção está n o nascimento de u m "sacer-


d ó c i o " c o m o algo que cabe d i f e r e n c i a r dos " m a g o s " . Na realidade, a o p o s i ç ã o é inteira-
mente f l u i d a , c o m o o c o r r e e m quase todos os f e n ô m e n o s s o c i o l ó g i c o s . T a m b é m os
critérios da delimitação conceituai n ã o p o d e m ser determinados de m o d o u n í v o c o .
E m c o r r e s p o n d ê n c i a à distinção entre " c u l t o " e " m a g i a " , é possível designar c o m o
" s a c e r d o t e s " aqueles f u n c i o n á r i o s profissionais que, p o r meios de v e n e r a ç ã o , influen-
c i a m os deuses, e m o p o s i ç ã o aos magos, que f o r ç a m os " d e m ô n i o s " por meios m á g i c o s .
Mas o conceito de " s a c e r d o t e " de muitas grandes religiões, t a m b é m o da cristã, inclui
precisamente a q u a l i f i c a ç ã o m á g i c a . O u e n t ã o denominam-se " s a c e r d o t e s " os funcio-
nários de u m a empresa permanente, regular e organizada, visando à influência sobre
os deuses, e m o p o s i ç ã o à utilização i n d i v i d u a l e ocasional dos serviços dos magos.
E n t r e estas situações contrárias existe u m a escala graduada de casos intermédios, mas
os tipos " p u r o s " s ã o u n í v o c o s , e a existência de lugares de culto, e m c o m b i n a ç ã o c o m
algum aparato material de culto, pode s e r considerada a característica do sacerdócio.
O u então considera-se decisivo p a r a o conceito de sacerdote a circunstância de que
os f u n c i o n á r i o s e x e r c e m sua f u n ç ã o , seja esta hereditária o u baseada e m contrato indivi-
d u a l , a s e r v i ç o de u m a associação c o m base e m relações associativas de natureza qual-
quer, isto é, c o m o empregados o u ó r g ã o s desta e n o interesse de seus m e m b r o s , em
o p o s i ç ã o aos magos, que e x e r c e m u m a p r o f i s s ã o l i b e r a l . Naturalmente t a m b é m esta
o p o s i ç ã o conceitualmente c l a r a é fluida n a realidade. N ã o r a r o os magos estão unidos
n u m a c o r p o r a ç ã o fechada, e m certas circunstâncias, n u m a casta hereditária, e esta pode
ter, e m determinadas comunidades, o m o n o p ó l i o da magia. T a m b é m o sacerdote cató-
lico n e m s e m p r e é " e m p r e g a d o " , m a s , p o r e x e m p l o e m R o m a , n ã o r a r o é u m pobre
vagante que v i v e das missas que celebra a q u i e ali. O u e n t ã o distinguem-se os sacerdotes,
c o m o capacitados p o r s e u saber e s p e c í f i c o , sua doutrina fixamente regulada e sua quali-
f i c a ç ã o profissional, daqueles que atuam e m v i r t u d e de dons pessoais ( c a r i s m a ) e da
p r o v a destes por milagres e r e v e l a ç ã o pessoal, isto é, de u m lado, os magos e, de
outro, os " p r o f e t a s " . Mas t a m b é m r.ão é fácil a distinção entre os magos, que t a m b é m
possuem, n a m a i o r i a das vezes, u m saber e s p e c í f i c o , p o r vezes muito extenso e m sua
área, e os sacerdotes, que de m o d o a l g u m d ã o s e m p r e a i m p r e s s ã o de possuir semelhante
saber. A d i f e r e n ç a teria d e ser p r o c u r a d a , qualitativamente, na diversidade do caráter
g e r a l d o respectivo saber. E d e fato teremos de distinguir mais tarde ( n o e x a m e das
f o r m a s de d o m i n a ç ã o ) entre o adestramento dos magos carismáticos — que, e m parte,
é u m a " e d u c a ç ã o p a r a o d e s p e r t a r " , aspirando-se à r e e n c a r n a ç ã o por meios irracionais,
e, e m parte, constitui u m ensino p u r a m e n t e e m p í r i c o da arte m á g i c a — e a f o r m a ç ã o
e disciplina racionais dos sacerdotes, ainda q u e , n a realidade, t a m b é m nesta área haja,
entre ambas, transições impercetíveis. Mas se, neste caso, c o n s i d e r á s s e m o s característico
da " d o u t r i n a " — tomada esta c o m o u m fator distintivo d o s a c e r d ó c i o — o desenvol-
v i m e n t o de u m sistema r a c i o n a l de pensamento religioso e, o que é particularmen-
te importante p a r a n ó s , o d e s e n v o l v i m e n t o d e u m a " é t i c a " sistematizada
ECONOMIA E SOCIEDADE 295

e especificamente religiosa — c o m base n u m a doutrina coerente, estabelecida de algum


m o d o e apresentada c o m o " r e v e l a ç ã o " , c o m o , p o r e x e m p l o , o islã se distingue das
religiões fixadas e m l i v r o s e do simples paganismo — estariam e n t ã o e x c l u í d o s do
conceito de s a c e r d ó c i o n ã o apenas os sacerdotes xintoístas do J a p ã o c o m o t a m b é m ,
entre outras, as poderosas hierocracias dos f e n í c i o s , e teríamos feito u m a caracterização
conceituai c o m base n u m a f u n ç ã o do s a c e r d ó c i o que, apesar de fundamentalmente
importante, n ã o é u n i v e r s a l .
Para nossos fins, fazemos mais justiça às diversas e imperfeitas possibilidades
de distinção ao t o m a r m o s c o m o característica essencial a a d a p t a ç ã o de u m c í r c u l o espe-
cial de pessoas ao exercício regular de culto, v i n c u l a d o a determinadas n o r m a s , a deter-
minados tempos e lugares e que se r e f e r e a determinadas associações. N ã o há s a c e r d ó c i o
sem culto, mas s i m culto s e m s a c e r d ó c i o especial: assim na C h i n a , onde exclusivamente
os ó r g ã o s estatais e o pai da família c u i d a m do culto aos deuses oficialmente reconhe-
cidos e aos espíritos dos antepassados. E n t r e os típicos " m a g o s " p u r o s , p o r outro lado,
existem t a m b é m noviciado e d o u t r i n a , como, p o r e x e m p l o , na c o n f r a r i a dos hametze
índios e noutras semelhantes n o m u n d o inteiro que e m parte t ê m e m suas m ã o s u m
poder muito forte e cujas festas, m á g i c a s e m sua essência, o c u p a m u m a p o s i ç ã o c e n t r a l
na v i d a do povo; falta-lhes, p o r é m , u m e x e r c í c i o de culto c o n t í n u o e, p o r isso, n ã o
os c h a m a r e m o s " s a c e r d o t e s " . T a n t o no culto s e m sacerdote quanto n o m a g o s e m culto
falta, e m g e r a l , a r a c i o n a l i z a ç ã o das idéias metafísicas, b e m c o m o u m a ética especifi-
camente religiosa. A m b a s as coisas somente costumam desenvolver-se q u a n d o h á u m
s a c e r d ó c i o profissional independente, adestrado p a r a a o c u p a ç ã o contínua c o m o culto
e os problemas da o r i e n t a ç ã o prática das almas. Por isso, o desenvolvimento da ética
no pensamento clássico chinês c o n d u z i u a algo muito distinto de u m a " r e l i g i ã o " metafisi-
camente racionalizada. O m e s m o o c o r r e u c o m a ética do antigo b u d i s m o , que n ã o
tinha culto n e m sacerdotes. E a r a c i o n a l i z a ç ã o da v i d a religiosa f o i r o m p i d a o u posposta,
c o m o mostraremos mais tarde, e m toda parte onde o s a c e r d ó c i o n ã o chegou a u m
desenvolvimento estamental p r ó p r i o e a u m a p o s i ç ã o de poder, c o m o na Antiguidade
mediterrânea. T o m o u caminhos muito peculiares onde u m estamento de antigos magos
e cantores sagrados racionalizou a magia, s e m p o r é m desenvolver u m a c o n c e p ç ã o f u n -
cional p r o p r i a m e n t e sacerdotal, c o m o os b r â m a n e s , na índia. Mas n e m todo s a c e r d ó c i o
desenvolve aquilo que é fundamentalmente n o v o , e m c o m p a r a ç ã o c o m a magia: u m a
metafísica r a c i o n a l e u m a ética religiosa. Pois isto p r e s s u p õ e , e m regra — mas há exce-
ções — , a i n t e r v e n ç ã o de poderes extra-sacerdotais. Por u m lado, a de u m portador
de " r e v e l a ç õ e s " metafísicas o u ético-religiosas: o profeta. Por outro lado, a c o o p e r a ç ã o
dos adeptos não-sacerdotais de u m culto: dos "leigos". Antes de e x a m i n a r como, pela
atuação destes fatores extra-sacerdotais, as religiões se d e s e n v o l v e m depois de superar
os estádios da magia, muito similares n o m u n d o inteiro, temos de registrar certas tendên-
cias típicas de desenvolvimento postas e m m o v i m e n t o pela existência de interessados
sacerdotais e m determinado culto.

8 3. Conceito de d e u s . Ética religiosa. T a b u

Divindades éticas. As divindades da administração do direito, p. 297. — Poderes supradivinos


e impessoais; a ordem como criação divina, p. 298. — Importância sociológica das normas estabe-
lecidas pelo tabu. Totemismo, p. 299 — Tabuização, relação comunitária e estereotipação, p.
300. — Ética mágica, ética religiosa: consciência de pecado, idéia de salvação, p. 301.

A q u e s t ã o m a i s simples, a de se cabe tentar influenciar determinado deus o u


d e m ô n i o mediante c o a ç ã o o u súplica é, e m p r i m e i r o lugar, somente u m a q u e s t ã o do
296 MAX WEBER

resultado. A s s i m c o m o o mago tem de p r o v a r seu c a r i s m a , o deus tem de provar seu


poder. Se a tentativa de influenciá-lo mostra-se constantemente inútil, o u b e m o deus
n ã o possui poder algum o u s ã o desconhecidos os m e i o s adequados p a r a influenciá-lo,
e se desiste de tentá-lo. Na C h i n a , bastam ainda hoje poucos resultados espetaculares
para d ar à imagem de u m deus a f a m a de possuir poder (shen, ling) e, c o m isso,
a f r e q ü e n t a ç ã o pelos crentes. O i m p e r a d o r , c o m o representante dos súditos diante
do c é u , confere títulos e outras distinções aos deuses provados. Por outro lado, poucas
d e c e p ç õ e s marcantes p o d e m ser suficientes p a r a d e i x a r o templo v a z i o p a r a sempre.
A casualidade histórica pela qual se a f i r m o u a f é profética de Isaías, f i r m e c o m o u m a
rocha e contrária a toda probabilidade, de que seu deus n ã o d e i x a r i a J e r u s a l é m cair
nas m ã o s do exército assírio se o r e i permanecesse f i r m e , foi desde e n t ã o o fundamento
inabalável da p o s i ç ã o tanto desse deus quanto de seus profetas. Nada diferente foi
o que o c o r r e u c o m os fetiches pré-animistas e c o m o carisma dos magicamente dotados.
A falta de êxito eventualmente acarreta a m o r t e d o mago. O s sacerdotes, ao contrário,
t ê m a vantagem d e poder passar de s i p r ó p r i o s p a r a seu deus a responsabilidade pelo
fracasso. Mas o d e c l í n i o do prestígio de s e u deus significa t a m b é m o deles. A n ã o
ser que e n c o n t r e m meios p a r a interpretar convincentemente a falta de ê x i t o , de tal
m o d o que a responsabilidade n ã o recaia sobre o deus mas sobre o comportamento
de seus adoradores. E t a m b é m isto possibilita a c o n c e p ç ã o do " s e r v i ç o ao d e u s " , e m
o p o s i ç ã o à " c o a ç ã o sobre o d e u s " . O s crentes n ã o v e n e r a r a m bastante o deus, n ã o
satisfizeram sua apetência de sangue de vítimas o u de filtro de soma o suficiente, ou
até o pospuseram a outros deuses. Por isso, ele n ã o atende a suas súplicas. Mas, e m
certas circunstâncias, tampouco adianta u m a v e n e r a ç ã o r e n o v a d a e mais intensa: os
deuses dos inimigos p e r m a n e c e m os m a i s fortes. Neste caso, está p e r d i d a a reputação
do deus. Passa-se p a r a aqueles deuses mais fortes, a n ã o ser que ainda nesta situação
existam meios p a r a motivar o comportamento renitente do deus, de tal m o d o que seu
prestígio, e m lugar de d i m i n u í d o , seja fortalecido. E m certas circunstâncias, os sacer-
dotes conseguiram inventar tais meios. Isto o c o r r e u c o m m a i o r evidência c o m os sacer-
dotes de J e o v á , cuja r e l a ç ã o c o m seu p o v o , p o r razões a s e r e m ainda explicadas, tornou-
se tanto mais f i r m e quanto mais este se a f u n d o u na desgraça. Para que isso possa aconte-
cer, é mister o desenvolvimento de u m a série de novos atributos do divino.

A o menos n o princípio, a superioridade qualitativa dos deuses e d e m ô n i o s antro-


pomorfizados sobre os h o me n s é somente relativa. Suas p a i x õ e s s ã o desmedidas, como
as dos homens fortes, e desmedida [é] t a m b é m sua avidez de prazeres. Mas n ã o são
oniscientes n e m todo-poderosos — neste ú l t i m o caso, n ã o p o d e r i a m existir vários deles;
tampouco, pelo menos n ã o na Babilônia e entre os germanos, s ã o necessariamente
eternos; só que sabem muitas vezes assegurar a d u r a ç ã o de sua esplêndida existência
mediante comidas e bebidas m á g i c a s que g u a r d a m p a r a s i , d o m e s m o modo que o
filtro d o c u r a n d e i r o prolonga a v i d a dos homens. Qualitativamente distinguem-se entre
eles os poderes úteis e os perniciosos p a r a os homens, sendo os p r i m e i r o s , e m regra,
os " d e u s e s " bons e superiores, que s ã o adorados, e os últimos, ao contrário, os " d e m ô -
n i o s " i n f e r i o r e s , que, muitas vezes dotados de u m a perfídia m a n h o s a , refinada além
da i m a g i n a ç ã o , n ã o s ã o adorados, mas conjurados mediante a magia. Mas n e m sempre
faz-se a distinção c o m base nisso menos ainda na f o r m a de semelhante degradação
a d e m ô n i o s dos donos das forças perniciosas. O g r a u de v e n e r a ç ã o cultual de que
gozam os deuses n ã o depende de sua bondade, sequer d e sua importância universal.
Precisamente os deuses grandes e bons do c é u c a r e c e m muitas vezes de todo culto,
n ã o p o r q u e estejam "demasiadamente distantes" dos h o m e n s mas porque sua atuação
parece demasiadamente constante e, e m v i r t u d e d e sua regularidade, garantida também
sem influência especial. A o contrário, poderes d e caráter claramente d i a b ó l i c o — como,
ECONOMIA E SOCIEDADE 297

por exemplo, Rudra, o deus das epidemias, na índia — nem sempre são mais fracos
do que os deuses "bons" e podem estar revestidos de uma imensa plenitude de poder.
Ao lado da distinção entre poderes bons e diabólicos, importante em determinadas
circunstâncias, começa então — e isto tem importância para nós —, dentro do pgnteão,
o desenvolvimento de divindades especificamente qualificadas sob aspectos éticos. A
qualificação ética da divindade não está limitada, de modo algum, ao monoteísmo.
Neste, ela tem conseqüências de maior alcance, mas, em princípio, é também possível
nos diferentes graus da formação de um panteão. Ao círculo das divindades éticas perten-
ce, freqüentemente, como é natural, o deus funcional especializado na administração
do direito, em cujo poder está o oráculo.
A arte "divinatória" provém, no princípio, diretamente da magia da crença nos
espíritos. Como todos os outros seres, os espíritos não atuam sem regra alguma. Se
se conhecem as condições de sua atuação, podem-se prever suas ações combinando
os sintomas, omina, que, segundo a experiência, indicam sua disposição. A construção
de túmulos, casas e caminhos e a execução de ações econômicas e políticas devem
ocorrer em lugares e tempos que, segundo as experiências anteriores, são favoráveis.
E quando uma camada social, como os chamados sacerdotes taoístas da China, vive
do exercício dessa arte divinatória, sua doutrina (o Fung Shui, na China) pode alcançar
um poder inabalável. Toda racionalidade econômica fracassa então na oposição dos
espíritos: não há construção de ferrovias ou fábricas que não entre, a cada passo, em
conflito com eles. Só o capitalismo, em seu pleno poder, conseguiu acabar com essa
resistência. Ainda na guerra russo-japonesa, o exército japonês parece ter perdido algu-
mas oportunidades por causa de uma divinação desfavorável — enquanto que já Pausâ-
nias, em Platéia, soube evidentemente "estilizar", com habilidade, os presságios favorá-
veis ou desfavoráveis de acordo com as necessidades táticas. Quando o poder político
se apoderou da jurisdição, transformou a mera sentença arbitral, pouco autoritária,
numa sentença coativa nas controvérsias entre os clãs, e a antiga justiça de linchamento
da comunidade ameaçada num processo ordenado, é quase sempre a revelação divina
(o juízo de Deus) que apura a verdade. Onde um grupo de magos conseguiu ter em
suas mãos os oráculos, os juízos de Deus e sua preparação, sua posição de poder é
muitas vezes de imponência duradoura.
Em plena correspondência com a realidade da vida, o guardião da ordem jurídica
não é, de modo algum, necessariamente o deus mais forte: não o eram Varuna, na
índia, nem Maât, no Egito, muito menos ainda Lykos, na Ática, ou Dike ou Têmis,
tampouco Apolo. O que os distingue é somente sua qualificação ética, correspondente
ao significado da' 'verdade" que sempre deve manifestar-se, de algum modo, no oráculo
ou no juízo de Deus. Mas o deus "ético'' não protege a ordem jurídica e os bons costumes
por ser um deus — os deuses antropomórficos, a princípio, têm pouco a ver com
a "ética", menos, em todo caso, do que os homens —, mas porque uma vez aceitou
a custódia sobre esta categoria especial de ações. As exigências éticas aos deuses vão
aumentando: 1 ) com o incremento do poder e, portanto, das exigências no que se
refere à qualidade do apuramento ordenado do direito, dentro de grandes e pacíficas
associações políticas; 2 ) com a ampliação constante da concepção racional, condicionada
pela orientação meteorológica da economia, dos processos universais determinados
pelas leis naturais, como um cosmos permanentemente ordenado em determinado senti-
do; 3 ) com a cada vez maior regulamentação de tipos inovadores de relações humanas
por regras convencionais e a importância crescente da dependência mútua dos homens
em relação à observância destas regras, e, particularmente, 4 ) com a crescente impor-
tância social e econômica da confiabilidade da palavra dada: da palavra do amigo,
do vassalo, do funcionário, da outra parte num ato de troca, do devedor, ou seja de
298 MAX WEBER

q u e m f o r , e m s u m a : c o m a crescente importância da v i n c u l a ç ã o ética d o i n d i v í d u o


a u m cosmos d e " d e v e r e s " q u e t o r n a m s e u comportamento previsível. É c l a r o que
t a m b é m os deuses aos quais se d i r i g e m os h o m e n s e m busca d e p r o t e ç ã o t ê m d e estar
submetidos agora a u m a o r d e m o u , p o r sua v e z , c r i a r semelhante o r d e m e f a z e r dela
o c o n t e ú d o e s p e c í f i c o d e s u a vontade d i v i n a . No p r i m e i r o caso, aparece atrás deles
u m p o d e r s u p e r i o r , impessoal, que os v i n c u l a internamente e m e d e o v a l o r de seus
feitos, m a s , p o r s u a v e z , p o d e ter caráter m u i t o d i v e r s o . Poderes universais impessoais
de natureza sobredivina apresentam-se, a p r i n c í p i o , c o m o f o r ç a s d o " d e s t i n o " . A s s i m ,
a " f a t a l i d a d e " (moira) dos helenos, q u e é u m a e s p é c i e de p r e d e s t i n a ç ã o i r r a c i o n a l e
particularmente indiferente d o ponto de vista ético, dos grandes traços fundamentais
de cada destino i n d i v i d u a l , elástica dentro d e certos limites m a s cuja v i o l a ç ã o demasia-
damente flagrante, mediante intervenções contrárias ao destino, é perigosa (frnépyuopov)
m e s m o para os maiores deuses. Isto e x p l i c a , a l é m de outras coisas, t a m b é m o fracasso
de muitas o r a ç õ e s . D a m e s m a natureza é a atitude interna n o r m a l d o h e r o í s m o g u e r r e i r o ,
n o q u a l está ausente a c r e n ç a racionalizada n u m a " p r o v i d ê n c i a " i m p a r c i a l , sábia e
boa, cujo ú n i c o interesse é de natureza p u r a m e n t e ética. Manifesta-se aqui m a i s u m a
v e z aquela discrepância p r o f u n d a , já b r e v e m e n t e m e n c i o n a d a , entre o h e r o í s m o e toda
espécie d e r a c i o n a l i s m o religioso o u p u r a m e n t e é t i c o q u e encontraremos sempre. D e
m a n e i r a bastante d i v e r s a apresenta-se o p o d e r impessoal das camadas burocráticas o u
teocráticas, c o m o o da b u r o c r a c i a chinesa o u a dos b r â m a n e s da índia. É u m poder
p r o v i d e n c i a l de u m a o r d e m h a r m ô n i c a e r a c i o n a l d o m u n d o , nos casos concretos, às
vezes mais de caráter c ó s m i c o e às vezes m a i s de caráter ético-social, mas abrangendo
regularmente as duas coisas. C a r á t e r c ó s m i c o , mas, ao m e s m o tempo, especificamente
racional-ético tem a o r d e m s u p r a d i v i n a dos confucianos, b e m c o m o a dos taoístas,
sendo ambas poderes providenciais e impessoais que g a r a n t e m a regularidade e o orde-
namento feliz dos acontecimentos universais: c o n c e p ç ã o d e u m a b u r o c r a c i a racionalista.'
A i n d a m a i s ético é o caráter da rita i n d i a n a , p o d e r impessoal que cuida da o r d e m
f i x a tanto d o c e r i m o n i a l religioso quanto d o cosmos e, p o r isso, t a m b é m das ações
dos homens, e m g e r a l : c o n c e p ç ã o d o s a c e r d ó c i o v é d i c o que e x e r c e u m a arte essencial-
mente e m p í r i c a m a i s p r ó x i m a da c o a ç ã o sobre os deuses do que da v e n e r a ç ã o deles.
O u , mais tarde, na índia, a exclusividade s u p r a d i v i n a da existência n ã o submetida às
m u d a n ç a s insensatas e à transitoriedade d o m u n d o dos f e n ô m e n o s visíveis: c o n c e p ç ã o
de u m a e s p e c u l a ç ã o intelectual, indiferente a todos os acontecimentos mundanos. Mas
m e s m o o n d e a o r d e m da natureza e das r e l a ç õ e s sociais, geralmente equiparadas a
esta, c o m o o c o r r e sobretudo c o m o direito, tem v i g ê n c i a n ã o c o m o u m a instância supe-
r i o r aos deuses mas c o m o u m a c r i a ç ã o deles — mais tarde indagaremos e m que condi-
ç õ e s isto o c o r r e — , pressupõe-se c o m o evidente que o deus p r o t e g e r á essas ordens
p o r ele criadas contra infrações. A realização intelectual desse postulado tem conse-
q ü ê n c i a s de g r a n d e alcance p a r a a a ç ã o religiosa e a atitude g e r a l do h o m e m e m relação
ao deus. D á lugar ao desenvolvimento d e u m a ética religiosa, da s e p a r a ç ã o entre as
e x i g ê n c i a s divinas ao h o m e m e a u m a " n a t u r e z a " muitas vezes insuficiente. A o lado
das duas m a n e i r a s p r i m i t i v a s de i n f l u e n c i a r poderes supra-sensíveis — submetê-los
m a g i c a m e n e a fins humanos o u g a n h á - l o s p o r u m comportamento a g r a d á v e l , mas não
pela prática d e virtudes éticas s e n ã o pela satisfação d e seus desejos egoístas — , aparece
agora a observância da l e i religiosa c o m o m e i o e s p e c í f i c o de conquistar a benevolência
do deus.

Mas n ã o é s ó c o m tal c o n c e p ç ã o q u e c o m e ç a u m a ética religiosa. A o contrário,


existe u m a , d e natureza altamente eficaz, precisamente e m f o r m a d e n o r m a s de compor-
tamento motivadas d e m o d o puramente m á g i c o e cuja i n f r a ç ã o é considerada u m sacrilé-
gio. É q u e , desenvolvida a crença nos espíritos, todo processo de v i d a específico, o
ECONOMIA E SOCIEDADE 299

n ã o - c o t i d i a n o , e m todo caso, é p r o d u z i d o p o r ter u m espírito penetrado n o h o m e m :


tanto n a e n f e r m i d a d e quanto n o nascimento, na puberdade e na m e n s t r u a ç ã o . E s s e
espírito pode ser considerado " s a g r a d o " o u " i m p u r o " — e isso está condicionado de
m o d o d i v e r s o e muitas vezes ocasional, p o r é m é quase a m e s m a coisa e m seus efeitos
práticos. Pois e m todo caso n ã o se deve irritar esse espírito e s p e c í f i c o e l e v á - l o assim
a entrar no p r ó p r i o espírito perturbador n ã o chamado o u a p r e j u d i c a r magicamente
este o u q u e m p o r ele está p o s s u í d o . Por isso, a pessoa e m q u e s t ã o é evitada física
e socialmente e t e m que evitar o contato c o m pessoa o u até, e m certas circunstâncias,
consigo m e s m a ; c o m o o c o r r e , p o r e x e m p l o , n o caso dos príncipes carismáticos p o l i n é -
sios, aos quais se d á de c o m e r c o m muita p r e c a u ç ã o , p a r a que n ã o possam infectar
magicamente sua p r ó p r i a comida. U m a v e z dado este m o d o de pensar, as m a n i p u l a ç õ e s
feiticeiras de pessoas que possuem o carisma m á g i c o p o d e m , naturalmente, propor-
cionar a objetos e pessoas a qualidade de " t a b u " , e m r e l a ç ã o a terceiros: tocar neles
teria c o m o c o n s e q ü ê n c i a o m a l e f í c i o . E s s e poder carismático de tabuização foi f r e q ü e n -
temente e x e r c i d o de m a n e i r a muito racional e sistemática, e m m a i o r escala na Indonésia
e na Oceania. Muitos intereses e c o n ô m i c o s e sociais — a p r o t e ç ã o das florestas e da
caça (à m a n e i r a das florestas vedadas pelo r e i , na alta Idade M é d i a ) , o asseguramento
das reservas escassas, e m tempos de carestia, contra u m consumo n ã o - e c o n ô m i c o ; a
criação da p r o t e ç ã o da p r o p r i e d a d e , especialmente p a r a a propriedade privilegiada
dos sacerdotes o u da n o b r e z a ; o asseguramento do botim de g u e r r a c o m u m contra
saques individuais (como p o r J o s u é , n o caso d o A c h a n ) a s e p a r a ç ã o s e x u a l e pessoal
de estamentos, n o interesse da pureza do sangue o u da c o n s e r v a ç ã o do prestígio esta-
mental — encontram-se sob a garantia d o tabu. Na irracionalidade p o r vezes incrível
de suas n o r m a s c r u e l m e n t e gravosas, muitas vezes precisamente p a r a c o m os p r ó p r i o s
privilegiados pelo tabu, este p r i m e i r o caso, o mais g e r a l , de colocar a religião direta-
mente ao serviço de interesses extra-religiosos, mostra, ao m e s m o tempo, que a a ç ã o
religiosa obedece a u m a legalidade p r ó p r i a extremamente persistente. A racionalização
do tabu leva eventualmente a u m sistema de n o r m a s segundo as quais, de u m a v e z
por todas, certas ações s ã o v e r d a d e i r o s sacrilégios que r e c l a m a m alguma e x p i a ç ã o —
e m certas circunstâncias, a m o r t e daquele que os cometeu — p a r a que o m a l e f í c i o
n ã o atinja o p o v o todo, e assim nasce u m sistema de ética garantida na base do tabu:
a p r o i b i ç ã o de determinados alimentos, do trabalho e m " d i a s aziagos", designados
pelo tabu (tal c o m o o e r a , originalmente, o s a b á ) o u do m a t r i m ô n i o dentro de determi-
nados círculos de pessoas, especialmente entre parentes. C l a r o que isto o c o r r e s e m p r e
de tal m a n e i r a que o que u m a v e z se tornou habitual, p o r motivos racionais o u irracionais
concretos — experiências sobre d o e n ç a s e outros m a l e f í c i o s — , assume o caráter de
" s a g r a d o " . As n o r m a s c o m caráter de tabu f o r a m especialmente vinculadas à impor-
tância, p a r a determinados círculos sociais, de certos espíritos que habitam determinados
objetos, particularmente a n i m a i s , de m o d o n ã o totalmente explicável. O Egito fornece
o e x e m p l o mais destacado de que a e n c a r n a ç ã o d e espíritos e m animais, assim conver-
tidos e m animais sagrados, pode tornar-se o elemento central do culto de associações
políticas locais. Mas eles e outros objetos o u artefatos podem v i r a ser t a m b é m o centro
de outras associações sociais, n a t u r a l o u artificialmente criadas. E n t r e as instituições
sociais mais extensas, que t ê m a q u i seu ponto d e partida, verifica-se o chamado totemis-
mo: u m a r e l a ç ã o específica entre u m objeto, na m a i o r i a das v e z e s , u m objeto n a t u r a l
— e m sua f o r m a mais p u r a u m a n i m a l — , e determinado círculo d e pessoas que o
considera u m s í m b o l o da c o n f r a t e r n i z a ç ã o , originalmente, ao que parece, da possessão
c o m u m pelo " e s p í r i t o " desse a n i m a l , adquirida p o r c o m ê - l o e m c o m u m . O alcance
da c o n f r a t e r n i z a ç ã o , n o que se r e f e r e a sua substância, é tão variável c o m o a substância
da r e l a ç ã o e n t r e as pessoas envolvidas e o objeto totêmico. Q u a n d o plenamente desen-
300 MAX WEBER

v o l v i d o , o p r i m e i r o tipo abrange todos os deveres fraternais de u m clã e x ó g a m o ; o


ú l t i m o , a p r o i b i ç ã o de matar e de c o m e r o totem, f o r a dos banquetes cultuais da c o m u n i -
dade, e eventualmente outros deveres de culto que, n a m a i o r i a dos casos, se o r i g i n a m
na c r e n ç a muito difundida (mas n ã o u n i v e r s a l ) na d e s c e n d ê n c i a do a n i m a l totêmico.
Sobre o desenvolvimento dessas confraternizações totêmicas, bastante difundidas no
m u n d o inteiro, há o p i n i õ e s discordantes. Para nós,, d e v e bastar o fato essencial de
que o totem, n o que se r e f e r e a sua f u n ç ã o , é a contrapartida animista dos deuses
daquelas comunidades de culto que, c o n f o r m e já m e n c i o n a m o s , costumam unir-se c o m
os tipos m a i s diversos de associações p o r q u e o pensamento n ã o - " o b j e t i v a d o " n ã o pode
prescindir de u m a c o n f r a t e r n i z a ç ã o pessoal e religiosamente garantida, m e s m o que
seja na f o r m a de u m a " a s s o c i a ç ã o ligada a u m f i m " , puramente artificial q objetiva.
Por isso, particularmente a r e g u l a m e n t a ç ã o da v i d a s e x u a l , a c u j o s e r v i ç o sè colocou
o clã, comportava p o r toda parte u m a garantia religiosa, c o m caráter de tabu, tal c o m o
a o f e r e c i a m n a m e l h o r f o r m a as idéias d o totemismo. Mas o totem n ã o está limitado
a fins político-sexuais, n e m ao " c l ã " , e m g e r a l ; tampouco nasceu necessariamente p r i -
m e i r o dentro desses limites, mas constitui u m a m a n e i r a muito difundida de obter garan-
tia m á g i c a p a r a confraternizações. A crença na v i g ê n c i a u n i v e r s a l do totemismo e muito
mais ainda n a d e r i v a ç ã o de quase todas as comunidades sociais e de toda a religião
a partir dele, encontra-se hoje geralmente descartada, p o r constituir u m enorme'exage-
ro. No entanto, p a r a a divisão do trabalho entre os sexos, magicamente protegida e
f o r ç a d a , e p a r a a esp eciali za ç ã o das profissões e, c o m isso, p a r a o desenvolvimento
e a r e g u l a m e n t a ç ã o da troca c o m o f e n ô m e n o regular nas relações interiores ( e m oposi-
ç ã o ao c o m é r c i o e x t e r i o r ) estes motivos d e s e m p e n h a r a m f r e q ü e n t e m e n t e u m papel
muito importante.
A s tabuizações, especialmente as p r o i b i ç õ e s magicamente condicionadas d e deter-
minados alimentos, mostram-nos u m a n o v a fonte do significado, de alcance tão grande,
da instituição da comensalidade. A p r i m e i r a , c o n f o r m e v i m o s , e r a a comunidade d o m é s -
tica. A segunda é a limitação da comensalidade a pessoas c o m a m e s m a qualificação
m á g i c a , condicionada pela idéia da i m p u r e z a v i n c u l a d a ao tabu. A m b a s as fontes da
comensalidade p o d e m entrar n u m a situação de c o n c o r r ê n c i a e conflito. Por e x e m p l o ,
quando a m u l h e r pertence a outro clã que n ã o o do h o m e m , f r e q ü e n t e m e n t e ela n ã o
pode compartilhar a mesa c o m ele e, e m certas circunstâncias, n e m deve v ê - l o comer.
D o m e s m o m o d o , q u a n d o sob tabu, o r e i , os estamentos privilegiados (castas) o u as
comunidades religiosas n ã o d e v e m compartilhar a mesa c o m outros, n e m as castas
privilegiadas d e v e m estar expostas, e m seus banquetes de culto o u , e m certas circuns-
tâncias, até e m suas refeições cotidianas, ao o l h a r de terceiros " i m p u r o s " . Por outro
lado, o estabelecimento da comensalidade é, muitas vezes, u m dos meios p a r a criar
u m a c o n f r a t e r n i z a ç ã o religiosa e, c o m isso, e m certas circunstâncias, t a m b é m étnica
e política. A p r i m e i r a grande v i r a d a n o desenvolvimento d o cristianismo f o i a comensa-
lidade estabelecida e m Antioquia entre Pedro e os prosélitos incircuncisos, na qual
Paulo, e m sua p o l ê m i c a c o m Pedro, v ê o ponto decisivo. S ã o e x t r a o r d i n a r i a m e n t e gran-
des, p o r outro lado, as inibições, criadas p o r n o r m a s c o m caráter de tabu, ao c o m é r c i o
e ao desenvolvimento de u m a c o m u n i d a d e de m e r c a d o , b e m c o m o de outras vinculações
sociais. A i m p u r e z a absoluta das pessoas que e s t ã o f o r a da própria confissão, como
a v ê o x i i t i s m o do islã, constituiu p a r a seus adeptos u m o b s t á c u l o fundamental ao comér-
cio até a Idade Moderna, q u a n d o se c o m e ç o u a r e m e d i a r a situação p o r meio de ficções
de todas as espécies. As prescrições tabus das castas hindus i n i b i r a m muito mais direta-
mente o contato entre as pessoas d o que o sistema Fung Shui do a n i m i s m o chinês
p ô d e i m p e d i r o p o r obstáculos objetivos ao c o m é r c i o de b o i s . Naturalmente, os limites
do p o d e r da religião diante das necessidades cotidianas manifestam-se t a m b é m nesta
ECONOMIA E SOCIEDADE 301

área: " a m ã o de u m artesão é s e m p r e p u r a " (segundo u m tabu de casta, n a í n d i a ) ,


b e m c o m o o s ã o as m i n a s e ergastérios e tudo que está à v e n d a n u m a loja o u que
u m estudante mendicante ( n o v i ç o ascético dos b r â m a n e s ) toma e m sua m ã o p a r a comer.
O tabu s e x u a l das castas costuma ser r o m p i d o , e m g r a n d e m e d i d a , a f a v o r dos interesses
p o l i g â m i c o s dos grandes proprietários: as filhas d a s ^ a s t a s i n f e r i o r e s e r a m f r e q ü e n -
temente admitidas, e m n ú m e r o limitado, c o m o concubinas. E c o m o o Fung Shui, na
C h i n a , o tabu de casta, n a í n d i a , tornar-se-á pouco a p o u c o ilusório pela simples e x p a n -
s ã o do c o m é r c i o p o r f e r r o v i a . F o r m a l m e n t e , as prescrições d o tabu de casta n ã o t e r i a m
tornado impossível o capitalismo. Mas é evidente que o racionalismo e c o n ô m i c o n ã o
podia encontrar s e u l a r v e r d a d e i r o n u m lugar o n d e as prescrições de tabu já t i n h a m
a l c a n ç a d o semelhante poder. Para isso, apesar de todas as facilitações, e r a m demasia-
damente fortes os obstáculos d e n t r o de u m a e m p r e s a à c o m b i n a ç ã o , e m f o r m a de
divisão do trabalho, de trabalhadores de profissões diferentes, v a l e dizer: de castas
diferentes. A o r d e m de castas atua, ainda que n ã o p o r suas prescrições positivas, m a s
p o r s e u " e s p í r i t o " e seus pressupostos, n o sentido de u m a especialização d o trabalho
cada v e z m a i o r e cada v e z mais artesanal. E a a t u a ç ã o específica da c o n s a g r a ç ã o religiosa
da casta sobre o " e s p í r i t o " da g e s t ã o e c o n ô m i c a é precisamente oposta ao racionalismo.
A o r d e m de castas converte cada atividade na divisão d o trabalho — na m e d i d a e m
que as toma c o m o base da distinção das castas — n u m a " p r o f i s s ã o " religiosamente
atribuída e, por isso, sagrada. T o d a casta, na í n d i a , m e s m o a mais desprezada, v ê
e m sua p r o f i s s ã o — n ã o e x c l u í d a a d o l a d r ã o — u m a realização da v i d a determinada
por deuses específicos o u , p e l o menos, p o r u m a vontade d i v i n a específica e especial-
mente a ela atribuída, e n u t r e seu sentimento d e dignidade pela e x e c u ç ã o tecnicamente
perfeita dessa " t a r e f a p r o f i s s i o n a l " . Mas tal " é t i c a p r o f i s s i o n a l " , p e l o m e n o s n o que
se r e f e r e ao artesanato, é e m certo sentido especificamente " t r a d i c i o n a l i s t a " e n ã o - r a -
cional. E n c o n t r a sua satisfação e c o n f i r m a ç ã o na área da p r o d u ç ã o artesanal, c o m a
absoluta p e r f e i ç ã o qualitativa d o produto. Está longe dela a idéia de r a c i o n a l i z a ç ã o
do modo de p r o d u ç ã o que constitui a base de toda técnica r a c i o n a l m o d e r n a — o u
seja, da sistematização da e m p r e s a e m d i r e ç ã o à e c o n o m i a aquisitiva r a c i o n a l — e
de todo o capitalismo m o d e r n o . A c o n s a g r a ç ã o ética desse racionalismo e c o n ô m i c o

— d o " e m p r e s á r i o " — faz parte da ética d o protestantismo ascético. A ética de castas


glorifica o " e s p í r i t o " d o o f í c i o , n ã o o o r g u l h o d o rendimento econômico em forma
de d i n h e i r o , o u as m a r a v i l h a s da técnica r a c i o n a l c o m p r o v a d a s n o e m p r e g o r a c i o n a l
do trabalho, mas o o r g u l h o da habilidade pessoal, virtuosa e correspondente à casta
do produtor, que se manifesta na beleza e boa qualidade d o produto. D e c i s i v a especial-
mente p a r a a eficácia da o r d e m de castas, n a índia — o que já mencionamos a q u i
c o m o se quiséssemos acabar c o m este assunto — , e r a a c o n e x ã o c o m a crença na transmi-
g r a ç ã o das almas: o m e l h o r a m e n t o das probabilidades de r e e n c a r n a ç ã o somente é possí-
v e l pela p r o v a da eficiência dentro da atividade profissional atribuída à casta própria.
T o d a fuga da casta p r ó p r i a , particularmente toda tentativa de i n t e r f e r i r nas esferas
de atividade d e outras castas s u p e r i o r e s , traz consigo o m a l e f í c i o e a probabilidade
de u m a r e e n c a r n a ç ã o d e s f a v o r á v e l . Isto e x p l i c a p o r que, c o n f o r m e f r e q ü e n t e m e n t e
se o b s e r v a n a í n d i a , precisamente as castas i n f e r i o r e s — as quais, naturalmente, m a i s
se p r e o c u p a m c o m o m e l h o r a m e n t o d e suas probabilidades d e r e e n c a r n a ç ã o — e s t a v a m
m a i s a f e i ç o a d a s a suas castas e seus deveres e ( e m g e r a l ) n u n c a p e n s a v a m e m q u e r e r
d e r r u b a r a o r d e m d e castas p o r m e i o de " r e v o l u ç õ e s s o c i a i s " o u " r e f o r m a s " . A p a l a v r a
bíblica, t a m b é m fortemente ressaltada p o r L u t e r o , "permanece e m teu o f í c i o " é a q u i
elevada a u m d e v e r religioso c a r d i n a l e sancionada p o r graves c o n s e q ü ê n c i a s religiosas.
O n d e a c r e n ç a nos espíritos é racionalizada até tornar-se u m a c r e n ç a nos deuses
— e portanto n ã o h á m a i s os espíritos que q u e r e m s e r f o r ç a d o s pela m a g i a , m a s s i m
302 MAX WEBER

os deuses que q u e r e m ser v e n e r a d o s n o culto e s e r objeto de súplicas — , a ética m á g i c a


da c r e n ç a nos espíritos transforma-se na idéia de que aquele que infringe as n o r m a s
divinas p r o v o c a o desgosto ético d o deus que p ô s aquelas ordens sob sua p r o t e ç ã o
especial. Agora é possível supor que a d e r r o t a diante d o inimigo o u outra desgraça
que caia sobre o p o v o n ã o se deve à falta de p o d e r d o deus local, mas às infrações
pelos seus adeptos das ordens éticas p o r ele protegidas, que p r o v o c a m sua i r a , cabendo,
portanto, aos p r ó p r i o s p e c a d o s , e que deus, c o m u m a d e c i s ã o d e s f a v o r á v e l , quis precisa-
mente castigar e educar seu p o v o amado. O s profetas de I s r a e l n ã o cessam de descobrir
novas malfeitorias, da g e r a ç ã o presente e dos antepassados, às quais o deus reage
c o m sua i r a quase insaciável, fazendo s u c u m b i r seu p o v o a outros que n e m o a d o r a m .
Esta idéia, divulgada e m todas as v a r i a ç õ e s i m a g i n á v e i s p o r toda parte o n d e a c o n c e p ç ã o
do deus assume traços universalistas, t r a n s f o r m a as prescrições m á g i c a s que o p e r a m
somente c o m a idéia d o m a l e f í c i o n u m a " é t i c a r e l i g i o s a " : a c o n t r a v e n ç ã o da vontade
do deus é agora u m " p e c a d o " ético que pesa sobre a c o n s c i ê n c i a , independentemente
das c o n s e q ü ê n c i a s imediatas. Males que atingem o i n d i v í d u o s ã o calamidades que o
deus m a n d o u e c o n s e q ü ê n c i a s do pecado, das quais o i n d i v í d u o espera poder livrar-se,
encontrando " s a l v a ç ã o " , mediante u m comportamento que agrada ao deus — a " p i e d a -
d e " . É praticamente apenas neste sentido elementar e r a c i o n a l da l i b e r a ç ã o de males
concretos que aparece ainda n o Antigo Testamento a idéia, de graves c o n s e q ü ê n c i a s ,
de " s a l v a ç ã o " . E a ética religiosa compartilha c o m a m á g i c a , a p r i n c í p i o , t a m b é m a
outra peculiaridade: de que o c o m p l e x o de mandamentos e p r o i b i ç õ e s cuja infração
constitui o " p e c a d o " é muitas vezes extremamente h e t e r o g ê n e o , derivado de motivos
e ocasiões muito diferentes, e n ã o distingue, segundo nosso p a r e c e r , entre coisas " i m -
portantes" e " i n s i g n i f i c a n t e s " . Pode o c o r r e r agora u m a sistematização dessas concep-
ç õ e s éticas q u e abrange tanto o desejo r a c i o n a l de assegurar p a r a s i , mediante u m
comportamento a g r a d á v e l ao deus, vantagens pessoais externas, quanto a c o n c e p ç ã o
do pecado c o m o u m poder ú n i c o d o antidivino e m cujas m ã o s cai o h o m e m , da " b o n d a -
d e " c o m o u m a capacidade única de disposição santa e de a ç õ e s h o m o g ê n e a s que dela
resultam e, p o r f i m , da esperança de s a l v a ç ã o c o m o u m desejo i r r a c i o n a l de poder
ser " b o m " simplesmente, o u pelo menos, p r i m a r i a m e n t e , p o r ter a gratificante consciên-
cia de sê-lo. U m a série g r a d u a l e ininterrupta das c o n c e p ç õ e s mais diversas, sempre
entrecruzadas c o m idéias puramente m á g i c a s , conduz a estas s u b l i m a ç õ e s da piedade,
r a r a m e n t e alcançadas e m plena p u r e z a e na religiosidade cotidiana, somente de f o r m a
intermitente, sendo a piedade o fundamento que atua continuamente, c o m o motivo
constante, d e uma condução da vida específica. A o c í r c u l o de idéias m á g i c a s pertence
ainda aquela c o n c e p ç ã o d o " p e c a d o " e da " p i e d a d e " c o m o poderes unitários e que
os considera u m a espécie de substâncias materiais, c o m p r e e n d e n d o a natureza daqueles
que agem " b e m " o u " m a l " à m a n e i r a de u m v e n e n o o u de u m s o r o curativo que
atua contra este o u até à m a n e i r a da temperatura d o c o r p o , c o n f o r m e o c o r r e na índia:
tapas — o poder do santo (alcançado p o r ascese) que o h o m e m tem e m seu corpo
— significa originalmente aquele " c a l o r " que a a v e desenvolve e m s i q u a n d o está cho-
cando, o c r i a d o r d o m u n d o , ao criá-lo, o mago, ao p r o d u z i r , mediante m o r t i f i c a ç ã o ,
a histeria sagrada que traz consigo capacidades sobrenaturais. Desde estas idéias até
as de que aquele que age b e m tenha acolhido e m s i u m a " a l m a " especial de p r o c e d ê n c i a
d i v i n a e, finalmente, até as f o r m a s da " p o s s e " interna d o d i v i n o , que e x a m i n a r e m o s
mais tarde, é u m longo caminho. E , do m e s m o m o d o , desde a c o n c e p ç ã o d o " p e c a d o "
c o m o u m v e n e n o dentro do c o r p o do m a l f e i t o r , q u e se c u r a pela magia, até aquela
de u m d e m ô n i o maligno pelo qual este está p o s s u í d o e daí até o poder d i a b ó l i c o do
" m a l r a d i c a l " contra o q u a l ele luta e ao q u a l c o r r e o risco de entregar-se.

N e m toda ética religiosa p e r c o r r e u todo o c a m i n h o até estas c o n c e p ç õ e s . A ética


ECONOMIA E SOCIEDADE 303

d o confucionismo desconhece o m a l r a d i c a l e u m poder ú n i c o antidivino d o " p e c a d o " .


O m e s m o aplica-se à ética helénica e à r o m a n a . E m ambos os casos faltou, a l é m de
u m s a c e r d ó c i o independente organizado, aquele f e n ô m e n o histórico que cria," ainda
que n e m s e m p r e m a s n o r m a l m e n t e , a centralização da ética sob o aspecto da s a l v a ç ã o
religiosa: a profecia. Na í n d i a n ã o faltou a p r o f e c i a , m a s ela teve — o que cabe e x a m i n a r
ainda — u m caráter muito e s p e c í f i c o , tal c o m o t a m b é m a correspondente ética de
salvação, ali e x t r e m a m e n t e sublimada. A profecia e o s a c e r d ó c i o s ã o os dois portadores
da sistematização e r a c i o n a l i z a ç ã o da ética religiosa. A l é m disso, tem g r a n d e i m p o r -
tância, c o m o t e r c e i r o fator q u e d e t e r m i n a o desenvolvimento, a influência daqueles
sobre os quais os profetas e sacerdotes p r o c u r a m influir eticamente: os " l e i g o s " . C a b e
e x a m i n a r agora, b r e v e m e n t e e de m o d o muito g e r a l , c o m o estes três fatores atuam
e m conjunto e uns contra os outros.

8 4. O "profeta"

O "profeta" em oposição ao sacerdote e ao mago, p. 303 — Profeta e legislador, p. 305 —


Profeta e mestre, p. 306. — Mistagogo e profeta, p. 307. — Profecia ética e profecia exemplar,
p. 308. — O caráter da revelação profética, p. 310.

O q u ê é, d o ponto de vista s o c i o l ó g i c o , u m profeta? Prescindimos a q u i da discussão


g e r a l da q u e s t ã o dos " p o r t a d o r e s d e s a l v a ç ã o " , tratada, e m seu tempo, p o r B r e y s i g .
Nem todo deus a n t r o p o m ó r f i c o é u m portador d i v i n i z a d o de salvação interna o u e x t e r n a ,
e n e m de longe todo portador de s a l v a ç ã o tornou-se u m deus o u u m salvador, p o r
mais difundido q u e tenha sido esse f e n ô m e n o .
Por " p r o f e t a " q u e r e m o s entender aqui o portador de u m c a r i s m a puramente
pessoal, o q u a l , e m v i r t u d e de sua m i s s ã o , anuncia u m a doutrina religiosa o u u m m a n -
dado divino. N ã o q u e r e m o s distinguir fundamentalmente entre o profeta que anuncia
de n o v o u m a r e v e l a ç ã o antiga (de fato o u suposta) e aquele que r e i v i n d i c a p a r a si
u m a r e v e l a ç ã o totalmente n o v a , isto é, entre o " r e n o v a d o r " e o " f u n d a d o r " de u m a
religião. A m b a s as coisas p o d e m estar entrelaçadas e, sobretudo, n ã o é a i n t e n ç ã o d o
p r ó p r i o profeta que decide se de sua r e v e l a ç ã o nasce o u n ã o u m a n o v a comunidade;
esta pode surgir t a m b é m devido às doutrinas de r e f o r m a d o r e s não-proféticos. T a m -
pouco nos interessa, a q u i , a q u e s t ã o d e se os adeptos estão mais vinculados à pessoa,
c o m o nos casos de Zaratustra, Jesus e M a o m é , o u à doutrina c o m o t a l , c o m o nos casos
de B u d a e da profecia israelita. O decisivo p a r a n ó s é a v o c a ç ã o " p e s s o a l " . E s t a é
que distingue o profeta d o sacerdote. P r i m e i r o e sobretudo p o r q u e o segundo r e c l a m a
autoridade p o r estar a s e r v i ç o d e u m a tradição sagrada, e o p r i m e i r o , ao c o n t r á r i o ,
e m v i r t u d e de sua r e v e l a ç ã o pessoal o u de s e u carisma. N ã o é casual o fato de q u e ,
c o m p o u q u í s s i m a s e x c e ç õ e s , n e n h u m profeta p r o c e d e u d o s a c e r d ó c i o . O s mestres de
salvação hindus e m r e g r a n ã o s ã o b r â m a n e s , os israelitas n ã o s ã o sacerdotes e somente
Zaratustra talvez proceda da aristocracia sacerdotal. E m o p o s i ç ã o ao profeta, o sacerdote
distribui bens de salvação e m v i r t u d e de s e u cargo. É possível, n o entanto, que a f u n ç ã o
sacerdotal esteja v i n c u l a d a a u m c a r i s m a pessoal. Mas m e s m o neste caso, o sacerdote,
c o m o m e m b r o de u m e m p r e e n d i m e n t o d e s a l v a ç ã o c o m caráter d e r e l a ç ã o associativa,
p e r m a n e c e legitimado p o r s e u cargo, enquanto que o profeta, b e m c o m o o m a g o caris-
m á t i c o , atua somente e m v i r t u d e de s e u d o m pessoal. Este se distingue d o m a g o p e l o
fato de q u e anuncia revelações substanciais e que a substância de sua m i s s ã o n ã o consiste
e m magia m a s e m doutrina o u mandamento. E x t e r i o r m e n t e , a transição é fluida. O
mago é f r e q ü e n t e m e n t e pregador d e d i v i n i z a ç ã o ; à s vezes somente isto. A r e v e l a ç ã o ,
neste e s t á d i o , funciona continuamente c o m o o r á c u l o o u c o m o inspiração n o sonho.
304 MAX WEBER

O r i g i n a l m e n t e , dificilmente h o u v e u m a r e o r g a n i z a ç ã o das relações de comunidade s e m


consulta prévia do mago. E m algumas p a n e s da Austrália, s ã o ainda hoje apenas r e v e l a -
ç õ e s de magos, inspiradas nos sonhos, o que se apresenta p a r a a p r o v a ç ã o nas assem-
bléias dos chefes de clã, e constitui certamente u m a " s e c u l a r i z a ç ã o " a circunstância
de esse costume já ter sido s u p r i m i d o , e m g r a n d e parte. E mais, s e m c o n f i r m a ç ã o
carismática, v a l e dizer n o r m a l m e n t e , m á g i c a , u m profeta somente a l c a n ç o u autoridade
e m circunstâncias especiais. Pelo m e n o s os portadores de doutrinas " n o v a s " quase sem-
p r e p r e c i s a v a m dela. N ã o devemos nos esquecer, e m n e n h u m m o m e n t o , de que Jesus
apoiou a l e g i t i m a ç ã o própria e a p r e t e n s ã o de ele e somente ele conhecer o Pai e
de somente a f é nele ser o c a m i n h o p a r a D e u s , n o c a r i s m a m á g i c o que sentia e m
si m e s m o , e de que, muito a c i m a de qualquer outra coisa, f o i esta consciência de poder
que o fez seguir o c a m i n h o da profecia. A cristandade da é p o c a apostólica e pós-apos-
tólica conhece o profeta ambulante c o m o f e n ô m e n o regular. S e m p r e se exige dele
a p r o v a da posse dos dons específicos do espírito, de determinadas capacidades m á g i c a s
o u extáticas. Muitas vezes, tanto a d i v i n a ç ã o quanto a terapêutica e a consulta m á g i c a
s ã o e x e r c i d a s " p r o f i s s i o n a l m e n t e " . A s s i m o e r a m , p o r e x e m p l o , pelos numerosos " p r o -
f e t a s " (nabi, nebi'im) mencionados n o Antigo Testamento, especialmente nas C r ô n i c a s
e nos l i v r o s proféticos. Mas é precisamente destes que se distingue o p r o f e t a , no sentido
que aqui l h e damos, p o r u m critério puramente e c o n ô m i c o : pelo caráter gratuito de
sua profecia. A m ó s rejeita c o m i r a a d e n o m i n a ç ã o nabi. E a m e s m a d i f e r e n ç a existe
t a m b é m e m r e l a ç ã o aos sacerdotes. O profeta típico propaga a " i d é i a " p o r ela m e s m a
e n ã o — pelo menos n ã o de m o d o perceptível e de f o r m a regulada — p o r u m a r e m u n e -
r a ç ã o . O caráter gratuito da propaganda profética, p o r e x e m p l o , o p r i n c í p i o expressa-
mente estabelecido de que o a p ó s t o l o , o p r o f e t a , o mestre d o cristianismo antigo n ã o
deve f a z e r de sua m i s s ã o u m o f í c i o , de q u e somente p o r curto tempo d e v e desfrutar
da hospitalidade de seus fiéis, d e que deve v i v e r do trabalho p r ó p r i o o u ( c o m o o budista)
daquilo que recebe s e m pedi-lo expressamente, é ressaltado, nas epístolas de Paulo
(e naquela outra v a r i a n t e , nas regras monacais b u d i s t a s ) reiteradamente e c o m maior
ênfase ( " q u e m n ã o trabalha, que n ã o c o m a " dirige-se aos missionários) e constitui,
naturalmente, u m dos segredos p r i n c i p a i s d o sucesso da propaganda da profecia.

O tempo da p r o f e c i a israelita m a i s antiga, p o r e x e m p l o , a de E l i a s , f o i e m todo


o O r i e n t e P r ó x i m o e t a m b é m na G r é c i a u m a é p o c a de intensa propaganda profética.
T a l v e z e m c o n s e q ü ê n c i a da n o v a constituição dos grandes i m p é r i o s , na Asia, e da intensi-
dade crescente do c o m é r c i o internacional, depois de u m a longa i n t e r r u p ç ã o , c o m e ç a ,
especialmente n o O r i e n t e P r ó x i m o , a p r o f e c i a e m todas as suas f o r m a s . A G r é c i a estava
exposta, naquela é p o c a , à invasão tanto d o culto trácio de D i o n i s o quanto às das profe-
cias mais diversas. J u n t o aos r e f o r m a d o r e s sociais s e m i p r o f é t i c o s movimentos p u r a -
mente religiosos i n v a d i r a m a doutrina simples da arte m á g i c a e cultual dos sacerdotes
h o m é r i c o s . Cultos emocionais, b e m c o m o a p r o f e c i a e m o c i o n a l , baseada na "glosso-
l a l i a " e n a aceit ação dos êxtases de embriaguez, d i fi c ul t a r a m o desenvolvimento do
racionalismo teologizante ( H e s í o d o ) das e s p e c u l a ç õ e s c o s m o g ô n i c a s e filosóficas ini-
ciais, das doutrinas filosóficas esotéricas e das religiões de s a l v a ç ã o , e c a m i n h a r a m
paralelamente c o m a c o l o n i z a ç ã o u l t r a m a r i n a e, sobretudo, c o m a f o r m a ç ã o da polis
e sua t r a n s f o r m a ç ã o sobre a base d o e x é r c i t o d e c i d a d ã o s . N ã o cabe descrever aqui
esses processos, brilhantemente analisados p o r Rohde, dos séculos VIII e VII, que e m
parte se estendem até o s é c u l o VI e m e s m o o V — correspondendo temporalmente
à p r o f e c i a tanto judaica quanto persa e i n d i a n a , b e m c o m o , p r o v a v e l m e n t e , às realiza-
ç õ e s p r é - c o n f u c i a n a s da ética chinesa q u e desconhecemos. Esses " p r o f e t a s " helénicos
distinguem-se muito entre s i tanto n o q u e se r e f e r e aos aspectos e c o n ô m i c o s — p r o f i s s i o -
n a l i z a ç ã o o u n ã o — quanto n a existência o u n ã o d e u m a " d o u t r i n a " . T a m b é m o heleno
ECONOMIA E SOCIEDADE 305

(Sócrates) distinguiu entre u m ensino religioso p r o f i s s i o n a l e a propaganda gratuita


de idéias. E t a m b é m n a G r é c i a distinguia-se claramente a única v e r d a d e i r a religiosidade
congregacional, a ó r f i c a , pela existência de u m a autêntica doutrina de s a l v a ç ã o , d e
todas as demais f o r m a s d e p r o f e c i a e técnica de s a l v a ç ã o , especialmente daquela dos
mistérios. T e m o s d e separar a q u i sobretudo os tipos da p r o f e c i a daqueles dos demais
portadores d e salvação religiosa o u de outra espécie.
T a m b é m nos tempos históricos é muitas vezes f l u i d a a transição entre o " p r o f e t a "
e o " l e g i s l a d o r " , entendendo-se p o r este ú l t i m o u m a personalidade encarregada, n o
caso concreto, da tarefa de o r d e n a r sistematicamente u m direito existente o u constituir
u m direito n o v o , c o m o , particularmente, o f a z i a m os aisimnetas h e l é n i c o s (Sólon, C a r o n -
das e t c . ) N ã o há caso e m que semelhante legislador o u sua o b r a n ã o tenha obtido,
pelo m e n o s posteriormente, a a p r o v a ç ã o d i v i n a . U m legislador é algo distinto d o p o d e s t à
italiano, que e r a c h a m a d o d o e x t e r i o r n ã o p a r a c r i a r u m a o r d e m social n o v a mas p a r a
se ter u m senhor i m p a r c i a l , portanto desvinculado de qualquer c a m a r i l h a , e m caso
de lutas entre os clãs dentro da m e s m a camada social. A o c o n t r á r i o , ele é c h a m a d o
— n e m s e m p r e , m a s e m regra — p a r a e x e r c e r s e u cargo q u a n d o existem tensões sociais.
Isto o c o r r e c o m muita f r e q ü ê n c i a q u a n d o se apresenta a situação típica, a m a i s antiga
por toda parte, na qual se exige u m a " p o l í t i c a s o c i a l " planejada: a d i f e r e n c i a ç ã o e c o n ô -
mica dos g u e r r e i r o s , e m v i r t u d e da r i q u e z a recente de d i n h e i r o de alguns e da s e r v i d ã o
por dívidas de outros, e, a l é m disso, u m eventual contraste de aspirações políticas
entre as camadas enriquecidas c o m atividades aquisitivas e a antiga nobreza g u e r r e i r a .
O aisimneta deve recon c i li a r os estamentos e c r i a r u m n o v o direito " s a g r a d o " , vigente
para s e m p r e e divinamente c o n f i r m a d o . É muito p r o v á v e l que Moisés tenha sido u m a
figura histórica. Se o f o i , e n t ã o ele pertence, n o que se r e f e r e a sua f u n ç ã o , aos aisim-
netas, pois as prescrições d o m a i s antigo direito israelita p r e s s u p õ e m u m a e c o n o m i a
monetária e, c o m isso, fortes antagonismos o u já existentes o u pelo m e n o s iminentes
dentro da c o n f e d e r a ç ã o . A c o n c i l i a ç ã o o u a p r e v e n ç ã o desses antagonismos ( p o r e x e m -
plo, a seisakhtheia [ p e r d ã o das dívidas ( N . T . ) ] d o a n o d e p r o m u l g a ç ã o ) e a o r g a n i z a ç ã o
da c o n f e d e r a ç ã o israelita c o m u m deus nacional ú n i c o s ã o o b r a dele, o b r a que, p o r
s e u caráter, se situa m a i s o u m e n o s entre a de M a o m é e a dos aisimnetas da Antiguidade.
A esta l e i , assim c o m o à c o n c i l i a ç ã o dos estamentos e m tantos outros casos (sobretudo
e m R o m a e A t e n a s ) v i n c u l a - s e o p e r í o d o de e x p a n s ã o p a r a o e x t e r i o r d o p o v o r e c é m -
unificado. E depois de Moisés n ã o h o u v e , e m I s r a e l , " n e n h u m profeta igual a e l e " ,
isto é, n e n h u m aisimneta. É que n ã o apenas n ã o s ã o aisimnetas, neste sentido, todos
os profetas, c o m o precisamente n ã o f a z parte desse f e n ô m e n o a p r o f e c i a n o sentido
corrente. S e m d ú v i d a , t a m b é m os profetas posteriores de I s r a e l p a r e c e m interessados
e m problemas " p o l í t i c o - s o c i a i s " . A d v e r t e m aqueles que o p r i m e m e e s c r a v i z a m os po-
bres, a c u m u l a m cada v e z m a i s terras, v i o l a m a jurisdição e m troca de presentes —
sendo estas as f o r m a s típicas da d i f e r e n c i a ç ã o das classees na Antiguidade, mais acen-
tuada ainda, c o m o o c o r r e p o r toda parte, pela o r g a n i z a ç ã o da polis de J e r u s a l é m que
o c o r r e u ao m e s m o tempo. E s t e t r a ç o n ã o d e ve ser anulado na i m a g e m da m a i o r i a
dos profetas israelitas. T a n t o m e n o s quando, p o r e x e m p l o , a p r o f e c i a da í n d i a carece
de t r a ç o a n á l o g o , ainda que a situação a l i , n a é p o c a de B u d a , e a h e l é n i c a , n o s é c u l o
V I , f o r a m julgadas relativamente semelhantes. A diferença p r o v é m de r a z õ e s religiosas
a s e r e m ainda expostas. Mas n ã o devemos desconhecer que p a r a a p r o f e c i a israelita
estas a r g u m e n t a ç õ e s político-sociais s ã o apenas meios p a r a u m f i m . S e u interesse está,
e m p r i m e i r o lugar, n a politica e x t e r n a c o m o palco d e a ç ã o d e s e u deus. A injustiça,
t a m b é m a social, contrária ao espírito da l e i mosaica, é considerada p o r e l a somente
c o m o m o t i v o — c o m o u m dos m o t i v o s — d a i r a d i v i n a e n ã o c o m o base de u m p r o g r a m a
de r e f o r m a s sociais. É característico que precisamente o ú n i c o t e ó r i c o d e r e f o r m a s
306 MAX WEBER

sociais, E z e q u i e l , seja u m t e ó r i c o sacerdotal, quase n ã o podendo mais ser c h a m a d o


de profeta. Jesus, p o r f i m , é absolutamente alheio a r e f o r m a s sociais, c o m o tais. Z a r a -
tustra compartilha o ó d i o de s e u p o v o pecuarista contra os n ô m a d e s espoliadores, mas
seu interesse, sobretudo de natureza religiosa, concentra-se na luta contra o culto de
êxtase m á g i c o e pela crença e m sua própria m i s s ã o d i v i n a , cujas c o n s e q ü ê n c i a s nada
m a i s s ã o do que os aspectos e c o n ô m i c o s de sua p r o f e c i a . Isto se aplica muito mais
ainda a M a o m é , cuja política social, levada a suas últimas c o n s e q ü ê n c i a s por O m a r ,
depende quase exclusivamente d o interesse n a u n i ã o interna dos crentes p a r a a luta
contra o e x t e r i o r , a f i m de m a n t e r o m a i o r possível o n ú m e r o de g u e r r e i r o s pela causa
do deus.
É e s p e c í f i c o nos profetas que a s s u m a m sua m i s s ã o n ã o p o r s e r e m encarregados
pelos h o m e n s , mas p o r u s u r p a ç ã o . Isto f a z e m t a m b é m , s e m d ú v i d a , os " t i r a n o s " da
polis h e l é n i c a , os quais muitas vezes se a p r o x i m a m funcionalmente dos aisimnetas legais
e t ê m igualmente sua política religiosa específica ( f r e q ü e n t e m e n t e , p o r e x e m p l o , o
f o m e n t o d o culto e m o c i o n a l de D i o n i s o , p o p u l a r entre as massas, e m o p o s i ç ã o à nobre-
z a ) Mas os profetas a s s u m e m seu poder, usurpando-o, e m v i r t u d e de r e v e l a ç ã o d i v i n a
e preponderantemente p a r a f i n s religiosos, e s u a propaganda religiosa típica segue
o c a m i n h o oposto ao da política religiosa típica dos tiranos h e l é n i c o s : a luta contra
os cultos extáticos. A religião de M a o m é , n o f u n d o politicamente orientada, e sua p o s i ç ã o
e m Medina — entre a de u m podestà italiano e, p o r e x e m p l o , a de C a l v i n o e m G e n e b r a
— s u r g e m m e s m o assim d e u m a m i s s ã o p r i m a r i a m e n t e profética: ele, o comerciante,
f o i p r i m e i r o o superior d e c o n v e n t í c u l o s pietistas burgueses e m Meca, até que reconhe-
ceu cada v e z m a i s claramente que a o r g a n i z a ç ã o do interesse espoliador dos clãs guer-
r e i r o s constituía u m a boa base externa p a r a sua missão.
Por outro lado, existe u m a c o n e x ã o , p o r v á r i o s estádios de transição, entre o
profeta e o mestre ético, especialmente o ético-social, que, pleno de u m a sabedoria
n o v a o u da c o m p r e e n s ã o r e n o v a d a d e u m a sabedoria antiga, r e ú n e e m volta de si
discípulos, aconselha pessoas c o m u n s e m assuntos p r i v a d o s , príncipes e m assuntos pú-
blicos e eventualmente p r o c u r a instigá-los à c r i a ç ã o de ordens éticas. A p o s i ç ã o do
mestre de sabedoria religiosa o u filosófica e m r e l a ç ã o ao discípulo é regulada de modo
e x t r a o r d i n a r i a m e n t e f i x o e autoritário, precisamente nos direitos sagrados asiáticos,
e pertence p o r toda parte às m a i s f i r m e s r e l a ç õ e s de piedade existentes. O noviciado
dos magos e dos h e r ó i s é, e m r e g r a , organizado d e tal m o d o que o n o v i ç o f i c a subordi-
n a d o a determinado mestre experiente o u — c o m o t a m b é m o c o r r e c o m os novos m e m -
bros nas c o r p o r a ç õ e s estudantis — pode e s c o l h ê - l o ; o v í n c u l o estabelecido entre ambos
constitui u m a r e l a ç ã o de piedade pessoal, o mestre vigiando a f o r m a ç ã o d o aspirante.
T o d a a poesia do a m o r h e l é n i c o aos adolescentes p r o v é m desta r e l a ç ã o d e piedade;
entre os budistas e confucianos e e m toda e d u c a ç ã o m o n a c a l costuma-se proceder de
m o d o semelhante. Este tipo t e m sua f o r m a m a i s c o n s e q ü e n t e n a f i g u r a d o guru no
direito sagrado h i n d u , d o mestre b r â m a n e a cujo ensino e o r i e n t a ç ã o da v i d a t ê m de
entregar-se, durante anos e s e m r e s e r v a s , todos os m e m b r o s dos círculos nobres. Este
tem p o d e r soberano, e a r e l a ç ã o de o b e d i ê n c i a que corresponde aproximadamente
à existente entre o famulus e o magister ocidentais é anteposta à piedade familiar,
d o m e s m o m o d o q u e a p o s i ç ã o do b r â m a n e da corte (purohita) é oficialmente ordenada
de m o d o a e l e v a r sua p o s i ç ã o d e poder a u m nível m u i t o m a i s alto d o que a dos confes-
sores m a i s poderosos d o Ocidente. No entanto, o g u r u é somente u m mestre que comu-
nica u m saber adquirido, n ã o apenas o r e v e l a d o , e ensina n ã o e m v i r t u d e de autoridade
p r ó p r i a , mas p o r encargo. E t a m b é m o é t i c o f i l o s ó f i c o e o r e f o r m a d o r social n ã o são
profetas e m nosso sentido, p o r mais p r ó x i m o s q u e possam estar deles. S ã o os lendários
sábios m a i s antigos dos helenos, E m p é d o c l e s e outros semelhantes, sobretudo Pitágoras,
ECONOMIA E SOCIEDADE 307

que estão mais p r ó x i m o s dos profetas e que d e i x a r a m t a m b é m atrás de s i , e m parte,


comunidades c o m doutrina de s a l v a ç ã o e m o d o de v i d a p r ó p r i o s , a l é m de pretender
para s i , p e l o m e n o s e m parte, a qualidade de salvador. S ã o tipos de mestres intelectuais
de salvação, c o m p a r á v e i s aos f e n ô m e n o s a n á l o g o s da í n d i a , s ó que n ã o a l c a n ç a r a m ,
n e m de longe, a m e s m a o r i e n t a ç ã o c o n s e q ü e n t e da v i d a e da doutrina pela " s a l v a ç ã o " .
Muito m e n o s p o d e m ser considerados " p r o f e t a s " , e m nosso sentido, os fundadores
e os c a b e ç a s das "escolas de f i l ó s o f o s " p r o p r i a m e n t e ditas, p o r mais p r ó x i m o s que
às vezes estejam de sê-los. Transições imperceptíveis l e v a m d e C o n f ú c i o , e m cujo templo
até o i m p e r a d o r executa o koto, a Platão. A m b o s e r a m apenas f i l ó s o f o s que e n s i n a v a m
à m a n e i r a escolar, distinguindo-se apenas pelo fato de que a intenção de i n f l u i r os
príncipes p a r a r e f o r m a s sociais e m C o n f ú c i o e r a central e e m Platão, apenas ocasional.
E o que diferenciava a ambos dos profetas e r a a falta da efetiva prédica emocional,
a q u a l , o c o r r a ela o r a l m e n t e o u e m f o r m a de panfletos o u r e v e l a ç õ e s propagadas p o r
escrito, à m a n e i r a das suras de M a o m é , é p r ó p r i a dos profetas. Estes estão s e m p r e
mais p r ó x i m o s dos demagogos o u dos publicistas políticos do que d o " a f a z e r " de u m
mestre; p o r outro lado, a atividade de u m Sócrates, p o r e x e m p l o , que t a m b é m se
sente e m o p o s i ç ã o ao e x e r c í c i o profissional de sabedoria, distingue-se conceitualmente
da profecia p e l a ausência de u m a m i s s ã o religiosa, diretamente r e v e l a d a . E m Sócrates,
o daimónion reage a situações concretas, e isto sobretudo d e m o d o dissuasivo o u acaute-
lador, funcionando c o m o limite de s e u racionalismo ético, fortemente utilitário, a p r o x i -
madamente n a m e s m a p o s i ç ã o que a d i v i n a ç ã o m á g i c a ocupa e m C o n f ú c i o . J á p o r isso
n e m é possível c o m p a r á - l o c o m a " c o n s c i ê n c i a " da ética p r o p r i a m e n t e religiosa n e m
muito m e n o s ainda c o n s i d e r á - l o u m ó r g ã o p r o f é t i c o . E assim o c o r r e c o m todos os
filósofos e suas escolas, tais c o m o os c o n h e c e r a m a C h i n a , a índia, a Antiguidade helé-
nica, a Idade M é d i a j u d a i c a , á r a b e e cristã, e m f o r m a s que, do ponto de vista s o c i o l ó g i c o ,
s ã o muito parecidas. Podem estar mais p r ó x i m o s da profecia mistagógico-ritual, c o m o
no caso dos pitagóricos, o u da p r o f e c i a e x e m p l a r de salvação ( n o sentido que b r e v e
será e x p o s t o ) c o m o no caso dos cínicos, n o q u e se r e f e r e ao m o d o de v i d a p o r eles
produzido e propagado. P o d e m , c o m o os cínicos, mostrar u m a afinidade e x t e r n a e
interna c o m seitas ascéticas indianas e orientais, e m s e u protesto tanto contra os bens
culturais mundanos quanto contra os dons sacramentais dos mistérios. O profeta, n o
sentido a q u i exposto, está s e m p r e ausente onde n ã o há a a n u n c i a ç ã o de u m a v e r d a d e
religiosa de s a l v a ç ã o e m v i r t u d e de r e v e l a ç ã o pessoal. Esta constitui, p a r a n ó s , a caracte-
rística decisiva do profeta. O s r e f o r m a d o r e s religiosos da índia, p o r f i m , d o tipo de
u m S h a n k a r a e u m R â m â n u j a , e os do tipo de u m L u t e r o , Z w i n g l i , C a l v i n o e Wesley
encontram-se à p a n e da categoria dos profetas p o r n ã o p r e t e n d e r e m atuar e m v i r t u d e
n e m de u m a r e v e l a ç ã o substancialmente n o v a , n e m muito menos de u m encargo d i v i n o
especial, c o m o o f i z e r a m , p o r e x e m p l o , o fundador da igreja dos m ó r m o n s — que,
t a m b é m e m aspectos p u r a m e n t e técnicos, mostra s e m e l h a n ç a c o m M a o m é — , os profe-
tas judaicos, principalmente, e t a m b é m , entre outros, Montanus e Novatianus, b e m
como, ainda c o m fortes tendências racional-doutrinais, Mani e Manu, e, c o m tendências
mais emocionais, G e o r g e F o x .

Se se e x c l u e m do conceito todas as f o r m a s até aqui mencionadas, muitas vezes


bastante p r ó x i m a s dele, restam ainda vários tipos.
E m p r i m e i r o lugar, o mistagogo. Este pratica sacramentos, isto é, atos m á g i c o s
q u e garantem bens de salvação. No m u n d o inteiro h o u v e salvadores deste tipo que
apenas gradualmente se distinguem do m a g o c o m u m , p o r r e u n i r e m volta d e s i u m a
comunidade especial. Muitas vezes desenvolveram-se, e n t ã o , na base d e u m c a r i s m a
sacramental, considerado hereditário, dinastias d e mistagogos que durante séculos m a n -
t i v e r a m s e u p r e s t í g i o , conferindo certos poderes aos discípulos e ocupando assim u m a
308 MAX WEBER

e s p é c i e d e p o s i ç ã o d e h i e r a r c a . Isso o c o r r e pa rti c u la rm e n t e na í n d i a , onde o título


de g u r u aplica-se t a m b é m a este tipo de dispensadores de s a l v a ç ã o e seus representantes.
T a m b é m n a C h i n a , onde, p o r e x e m p l o , o h i e r a r c a dos taoístas e alguns cabeças de
seitas secretas d e s e m p e n h a r a m , d e m o d o h e r e d i t á r i o , u m p a p e l semelhante. O tipo
d e p r o f e c i a e x e m p l a r , que cabe e x a m i n a r e m seguida, costuma transformar-se, na se-
gunda g e r a ç ã o , e m mistagogia. H o u v e u m n ú m e r o e n o r m e de mistagogos n o O r i e n t e
P r ó x i m o que, n a é p o c a profética já m e n c i o n a d a , p a s s a r a m p a r a a G r é c i a . Mas t a m b é m ,
por e x e m p l o , as linhagens aristocráticas m u i t o m a i s antigas, que d i r i g i a m heredita-
riamente os mistérios de Elêusis, r e p r e s e n t a m ainda u m caso-limite pelo lado das linha-
gens de simples sacerdotes hereditários. O mistagogo ministra s a l v a ç ã o m á g i c a , mas
falta-lhe — o u e n t ã o constitui p a r a ele apenas algo acessório, pouco importante —
a doutrina ética. E m lugar desta, d i s p õ e d o saber, hereditariamente transmitido, da
arte m á g i c a . E costuma q u e r e r basear sua existência m a t e r i a l e m sua arte muito solici-
tada. Por isso, e x c l u í m o s t a m b é m ele do conceito de profeta, m e s m o que r e v e l e novos
caminhos d e salvação.
Restam ainda dois tipos de profetas, e m nosso sentido, sendo o p r i m e i r o r e p r e -
sentado mais claramente p o r B u d a , e o segundo, c o m especial c l a r e z a , p o r Zaratustra
e M a o m é . É q u e o p r o f e t a , c o m o o c o r r e n o caso dos dois últimos, pode ser u m instru-
mento que anuncia u m deus e a vontade dele — seja esta u m a o r d e m concreta ou
u m a n o r m a abstrata — , u m a pessoa que, e m v i r t u d e d o encargo d i v i n o , exige a o b e d i ê n -
cia c o m o d e v e r ético (profecia ética). O u pode ser u m h o m e m e x e m p l a r que, p o r seu
p r ó p r i o e x e m p l o , mostra aos outros o c a m i n h o p a r a a s a l v a ç ã o religiosa, c o m o o fez
B u d a , cuja prédica nada sabe de u m encargo d i v i n o n e m de u m d e v e r ético de o b e d i ê n -
cia, mas se dirige ao interesse daqueles que sentem necessidade de s a l v a ç ã o , o interesse
de seguir o c a m i n h o exemplificado (profecia exemplar) Este segundo tipo é particu-
larmente p r ó p r i o da profecia da í n d i a , e m exemplos isolados t a m b é m da chinesa (Lao-
t s e ) e da do O r i e n t e P r ó x i m o ; o p r i m e i r o , p o r é m , encontra-se exclusivamente na profe-
cia d o O r i e n t e P r ó x i m o , s e m distinção d e raça. Pois n e m nos Vedas n e m nos livros
chineses clássicos, cujos componentes m a i s antigos consistem, e m ambos os casos, e m
cânticos d e g l o r i f i c a ç ã o e agradecimento d e cantores sagrados e e m ritos m á g i c o s e
c e r i m ô n i a s , transparece a probabilidade d e ter existido a l i , e m algum tempo, u m a profe-
cia do tipo ético c o m o a d o O r i e n t e P r ó x i m o o u a iraniana. A r a z ã o decisiva disso
está na a u s ê n c i a de u m deus ético pessoal e s u p r a m u n d a n o que, na í n d i a , s ó se encontra
mais tarde, c o m o f i g u r a s a c r a m e n t a l - m á g i c a , dentro da religiosidade hinduísta popular;
mas n a crença daquelas camadas entre as quais f o r a m criadas as c o n c e p ç õ e s proféticas
decisivas de Mahâvíra e B u d a ele aparece apenas de m o d o intermitente e s e m p r e inter-
pretado e m sentido panteísta, enquanto que na C h i n a faltou p o r inteiro na ética da
camada socialmente decisiva. E x p l i c a r e m o s mais tarde c o m o esta circunstância está
ligada, p r o v a v e l m e n t e , à peculiaridade intelectual, socialmente condicionada, daquelas
camadas. No que se r e f e r e à a t u a ç ã o d e fatores infra-religiosos, foi decisivo tanto para
a índia quanto p a r a a C h i n a o fato de a c o n c e p ç ã o de u m m u n d o racionalmente regulado
ter tido s e u ponto d e partida na o r d e m c e r i m o n i a l dos sacrifícios, de cuja regularidade
imutável tudo depende; especialmente a t ã o indispensável regularidade dos f e n ô m e n o s
m e t e o r o l ó g i c o s , o u seja, e m termos animistas, o fu n c i on a m e n t o n o r m a l e a tranqüi-
lidade dos espíritos e d e m ô n i o s , garantidos, na c o n c e p ç ã o chinesa tanto clássica quanto
heterodoxa, p o r u m governo e x e r c i d o de m o d o eticamente c o r r e t o , tal c o m o corres-
p o n d e à autêntica senda da v i r t u d e (tao) e s e m a q u a l , t a m b é m segundo a doutrina
v é d i c a , tudo fracassa. Por isso, rita e í a o s ã o , n a í n d i a e na C h i n a , poderes sobredivinos
e impessoais. O deus ético, pessoal e s u p r a m u n d a n o , ao c o n t r á r i o , é u m a c o n c e p ç ã o
d o O r i e n t e P r ó x i m o , tão fortemente a n á l o g a à q u e l a d e u m r e i ú n i c o , todo-poderoso
ECONOMIA E SOCIEDADE 309

sobre a t e r r a , c o m s e u regime b u r o c r á t i c o r a c i o n a l , que é i n e g á v e l a existência de


u m a c o n e x ã o causal. No m u n d o inteiro, o m a g o é, e m p r i m e i r o lugar, u m fazedor
de chuvas, pois das chuvas suficientes mas n ã o excessivas, e que c a i a m n o m o m e n t o
oportuno, depende a colheita. O i m p e r a d o r pontifical c h i n ê s o t e m sido até o presente
porque, pelo m e n o s no norte da C h i n a , a importância do t e m p o instável supera a das
instalações d e i r r i g a ç ã o , p o r m a i o r que seja o peso desta última. Mais importantes
ainda e r a m as construções de m u r o s e canais p a r a a n a v e g a ç ã o interior, fonte g e n u í n a
da b u r o c r a c i a i m p e r i a l . O i m p e r a d o r tenta i m p e d i r as instabilidades m e t e o r o l ó g i c a s
mediante sacrifícios, e x p i a ç ã o e exercícios de v i r t u d e p ú b l i c o s , c o m o , p o r e x e m p l o ,
a supressão de abusos na a d m i n i s t r a ç ã o , talvez p o r m e i o de u m a p e r s e g u i ç ã o aos c r i m i -
nosos i m p u n e s , pois s e m p r e se p r o c u r a a causa da irritação dos espíritos e da p e r t u r b a ç ã o
da o r d e m cósmica o u e m faltas pessoais d o m o n a r c a o u na d e s o r d e m social. U m a das
coisas que J e o v á , precisamente nas partes m a i s antigas das i tradições, promete c o m o
recompensa a seus adeptos, naquela é p o c a e m sua g r a n d e m a i o r i a ainda camponeses,
é t a m b é m a c h u v a — n ã o m u i t o p o u c o n e m demais ( d i l ú v i o ) Mas, ao r e d o r , tanto
na A r á b i a quanto n a M e s o p o t â m i a , n ã o e r a a c h u v a a g e r a d o r a das colheitas, mas exclusi-
vamente a irrigação artificial. Na M e s o p o t â m i a , esta, c o m o a r e g u l a ç ã o d o r i o , n o E g i t o ,
e r a a fonte e x c l u s i v a da d o m i n a ç ã o absoluta do r e i , que o b t é m suas rendas fazendo
construir canais e, à b e i r a destes, cidades, c o m súditos de toda parte juntados à f o r ç a .
Nos p r ó p r i o s desertos do O r i e n t e P r ó x i m o e r e g i õ e s periféricas, esta p a r e c e ser u m a
das fontes da c o n c e p ç ã o d e u m deus q u e , e m v e z de ter p r o c r i a d o a terra e os h o m e n s
— c o n c e p ç ã o predominante e m outras partes — , os " f a z " do nada: é que t a m b é m
a hidroeconomia do r e i c r i a d o n a d a , n a a r e i a d o deserto, as colheitas. O r e i c r i a
até o direito mediante leis e c o d i f i c a ç õ e s racionais — coisa que o m u n d o conhece
pela p r i m e i r a v e z a l i , na M e s o p o t â m i a . E assim, apesar da ausência daquelas camadas
muito peculiares que p o r t a v a m a ética indiana e a chinesa, e c r i a r a m ali a ética religiosa
" a t é i a " , parece bastante c o m p r e e n s í v e l que, sob esta i m p r e s s ã o , podia ser concebida
a o r d e m do m u n d o c o m o a l e i de u m senhor pessoal, s u p r a m u n d a n o e c o m p l e n a
liberdade de a ç ã o . Certamente fracassou m a i s tarde n o Egito, onde originalmente o
p r ó p r i o f a r a ó era u m deus, a tentativa de A k e n a t o n de introduzir u m m o n o t e í s m o
astral, e m v i r t u d e d o p o d e r j á insuperável dos sacerdotes que t i n h a m sistematizado
o a n i m i s m o popular. E , n a M e s o p o t â m i a , o p a n t e ã o antigo, já sistematizado politica-
mente e pelos sacerdotes, e a o r d e m f i r m e d o Estado opunham-se tanto ao m o n o t e í s m o
quanto a toda profecia d e m a g ó g i c a . Mas a i m p r e s s ã o que a realeza f a r a ô n i c a , assim
c o m o a m e s o p o t â m i c a p r o d u z i u sobre os israelitas f o i muito m a i s f o n e ainda d o que
a d o r e i p e r s a , o basileus p o r e x c e l ê n c i a , xar ki-oxqv, sobre os helenos ( c o n f o r m e
se r e v e l a , p o r e x e m p l o , apesar de sua d e r r o t a , n u m escrito p e d a g ó g i c o elaborado p a r a
acompanhar a Gropedia). O s israelitas s ó e s c a p a r a m da " c a s a de s e r v i d ã o " do f a r a ó
mundano p o r q u e f o r a m ajudados p o r u m r e i d i v i n o . A instituição da realeza m u n d a n a
expressamente declarada u m a apostasia de J e o v á , c o m o o v e r d a d e i r o r e i do p o v o , e
a p r o f e c i a israelita está totalmente orientada pela r e l a ç ã o c o m as grandes potências
políticas, os grandes reis, que p r i m e i r o d e s t r o ç a m o p o v o de I s r a e l , c o m o férulas de
D e u s , e e m seguida, e m v i r t u d e de inspiração d i v i n a , lhe p e r m i t e m a volta à t e r r a
natal. T a m b é m o u n i v e r s o de idéias de Zaratustra parece orientar-se pelas c o n c e p ç õ e s
dos países ocidentais civilizados. Por isso, o p r i m e i r o surgimento tanto da p r o f e c i a
dualista q u a n t o da monoteísta parece estar fortemente condicionado, e m sua peculia-
ridade, a l é m d e p o r outras influências históricas concretas, pela i m p r e s s ã o que os g r a n -
des centros, relativamente p r ó x i m o s , de o r g a n i z a ç ã o social rigorosa e x e r c i a m sobre
os povos v i z i n h o s m e n o s racionalizados, os quais v i a m a cólera e a graça de u m r e i
celeste n a constante a m e a ç a d e g u e r r a s impiedosas p o r parte d e seus temíveis v i z i n h o s .
310 MAX WEBER

Mas, tenha a p r o f e c i a u m caráter mais ético o u mais e x e m p l a r , a r e v e l a ç ã o p r o f é -


tica significa s e m p r e — e isto é o que todas t ê m e m c o m u m — , p r i m e i r o p a r a o p r ó p r i o
profeta e, e m seguida, p a r a seus acólitos: u m a v i s ã o h o m o g ê n e a da v i d a , conside-
rando-se esta conscientemente de u m ponto de vista que lhe atribui u m sentido homogê-
neo. A v i d a e o m u n d o , os acontecimentos sociais e os c ó s m i c o s , t ê m p a r a o profeta
determinado " s e n t i d o " , sistematicamente h o m o g ê n e o , e o comportamento dos homens,
p a r a lhes trazer s a l v a ç ã o , t e m de se orientar p o r ele e, sobre esta base, assumir uma
f o r m a coerente e plena de significado. A estrutura desse " s e n t i d o " pode ser muito
diversa e agregar n u m a unidade motivos que p a r e c e m logicamente h e t e r o g ê n e o s , pois
o que d o m i n a toda a c o n c e p ç ã o n ã o é, e m p r i m e i r o lugar, a c o n s e q ü ê n c i a lógica mas
as v a l o r a ç õ e s práticas. Significa s e m p r e , s ó que e m graus diversos e c o m êxito diferente,
u m a tentativa de sistematização de todas as manifestações da v i d a , portanto, de coorde-
n a ç ã o d o comportamento prático n u m modo de viver, qualquer que seja a f o r m a que
este adote e m cada caso concreto. A l é m disso, traz consigo a importante c o n c e p ç ã o
religiosa do " m u n d o " c o m o u m " c o s m o s " do qual se exige que constitua u m " t o d o " ,
de algum m o d o ordenado segundo u m " s e n t i d o " , e cujos f e n ô m e n o s , cada u m por
si, são medidos e valorados p o r esse postulado. Todas as tensões mais fortes, tanto
n o m o d o de v i v e r intrínseco quanto na r e l a ç ã o e x t e r n a p a r a c o m o mundo, p r o v ê m
e n t ã o da colisão deste m u n d o , c o m o — segundo este postulado — u m todo pleno
de sentido, c o m as realidades empíricas. No entanto, a profecia n ã o é, de m o d o algum,
a única instância que tem de lidar c o m este p r o b l e m a . T a m b é m toda sabedoria não-sa-
cerdotal, a intelectualista e a v u l g a r , ocupam-se dele de alguma m a n e i r a . A última
questão de toda metafísica, desde s e m p r e , f o i esta: se o m u n d o c o m o u m todo e a
v i d a e m especial t ê m u m " s e n t i d o " , q u a l pode ser este e c o m o deve apresentar-se
o m u n d o para lhe corresponder? Mas a p r o b l e m á t i c a religiosa dos profetas e sacerdotes
é o colo materno d o qual se desprendeu a filosofia não-sacerdotal, ali onde ela se
d e s e n v o l v e u , p a r a depois ter de enfrentar, c o m o u m componente muito importante
do desenvolvimento religioso, essa p r o b l e m á t i c a . Por conseguinte, cabe e x a m i n a r mais
detalhadamente as relações recíprocas entre sacerdotes, profetas e não-sacerdotes.

8 5. C o n g r e g a ç ã o

Profeta, séquito e congregação, p. 310. — Religiosidade congregacional, p. 312. — Profeda


e sacerdócio, p. 312.

O profeta, q u a n d o sua p r o f e c i a tem ê x i t o , atrai acólitos permanentes: sodales


( c o m o B a r t o l o m e u traduz o t e r m o dosgâthâ), alunos ( n o Antigo Testamento e na í n d i a )
companheiros (na índia e n o i s l ã ) discípulos ( e m Isaías e no N o v o Testamento), os
quais, e m o p o s i ç ã o aos sacerdotes e a d i v i n h e s que se encontram n u m a r e l a ç ã o associa-
tiva estamental o u h i e r á r q u i c a , d e cargo, juntam-se a ele de m o d o puramente pessoal
— r e l a ç ã o que cabe ainda e x a m i n a r e m c o n e x ã o c o m a casuística das f o r m a s de domina-
ç ã o . E ao lado desses acólitos permanentes, que c o l a b o r a m ativamente e m sua missão,
na m a i o r i a das vezes t a m b é m carismaticamente qualificados de alguma f o r m a , existe
o c í r c u l o de adeptos que o a p ó i a m c o m alojamento, d i n h e i r o e serviços, e esperam
d e sua m i s s ã o a s a l v a ç ã o ; p o r isso, tanto p o d e m u n i r - s e de v e z e m q u a n d o para ações
ocasionais quanto encontrar-se associados de f o r m a p e r m a n e n t e na comunidade de
íiéis,^congregação. U m a " c o m u n i d a d e " neste sentido religioso — a segunda categoria
de comunidade existente, a l é m da associação de v i z i n h a n ç a d e natureza econômica
o u fiscal o u p o r outros motivos políticos — n ã o aparece exclusivamente e m conexão
c o m a p r o f e c i a , e m nosso sentido, e, p o r outro lado, n ã o nasce junto a toda profecia.
ECONOMIA E SOCIEDADE 311

Nasce junto a esta somente c o m o produto d a cotidianização, q u a n d o o u o p r ó p r i o


profeta o u seus discípulos asseguram a continuidade da r e v e l a ç ã o e da a d m i n i s t r a ç ã o
da g r a ç a , garantindo assim t a m b é m , de m o d o permanente, a existência econômica
desta última e de seus gerentes, e monopolizando e m seguida, e m r e l a ç ã o à q u e l e s
que s ã o obrigados a c u m p r i r os respectivos deveres, t a m b é m determinados direitos.
Por isso, existe t a m b é m junto aos mistagogos e aos sacerdotes de religiões n ã o - p r o -
féticas. ^Para o mistagogo, ^sua existência é u m a característica n o r m a l , e m o p o s i ç ã o ao
m e r o m a g o que e x e r c e u m a p r o f i s s ã o l i v r e o u , q u a n d o estamentalmente organizado,
atende determinada associação política o u de v i z i n h o s e n ã o u m a c o n g r e g a ç ã o religiosa
p a r t i c u l a r / M a s a c o n g r e g a ç ã o do mistagogo, c o m o , p o r e x e m p l o , a dos místicos de
Elêusis, costuma p e r m a n e c e r , na m a i o r i a das vezes, n o estado d e u m a r e l a ç ã o c o m u -
nitária n ã o fechada p a r a f o r a e c o m c i r c u l a ç ã o de m e m b r o s . Q u e m necessita d e s a l v a ç ã o
entra n u m a r e l a ç ã o f r e q ü e n t e m e n t e apenas temporária c o m o mistagogo e seus acólitos.
E m todo caso, os místicos de Elêusis, p o r e x e m p l o , f o r m a r a m u m a e s p é c i e de c o m u n i -
dade interlocal. A situação é diferente c o m a p r o f e c i a e x e m p l a r . O p r o f é t a e x e m p l a r
mostra u m c a m i n h o de s a l v a ç ã o mediante seu e x e m p l o pessoal. S ó q u e m segue absoluta-
mente este e x e m p l o — c o m o os monges mendicantes de M a h â v i r a e B u d a — faz parte
da c o n g r e g a ç ã o " e x e m p l a r " limitada, dentro da q u a l , p o r sua v e z , pode h a v e r discípulos
pessoalmente vinculados ao p r o f e t a , c o m autoridade particular. Mas f o r a da congre-
g a ç ã o e x e m p l a r existem adoradores piedosos ( n a í n d i a , os upâsakas) que pessoalmente
n ã o p e r c o r r e m o c a m i n h o total de s a l v a ç ã o , mas q u e r è m alcançar u m ó t i m o relativo
de salvação pela m a n i f e s t a ç ã o de d e v o ç ã o aos santos exemplares. Estes o u c a r e c e m
de toda r e l a ç ã o comunitária p e r m a n e n t e , c o m o originalmente os upâsakas budistas,
o u se e n c o n t r a m t a m b é m , p o r sua v e i , n u m a r e l a ç ã o associativa c o m direitos e deveres
fixos, c o m o o c o r r e regularmente q u a n d o s ã o segregados da c o n g r e g a ç ã o e x e m p l a r
sacerdotes, curas de almas o u mistagogos especiais, c o m o os bonzos budistas, aos quais
se confia o e x e r c í c i o de d e v e r e s cultuais (desconhecidos n o budismo m a i s antigo). Mas
a regra é a l i v r e r e l a ç ã o associativa ocasional e esta situação é c o m u m à m a i o r i a dos
mistagogos e profetas e x e m p l a r e s , c o m seus sacerdotes nos templos das diversas d i v i n -
dades associadas n u m panteão. Todos eles estão assegurados materialmente p o r d o a ç õ e s
e s ã o t a m b é m sustentados p o r oferendas e presentes entregues pelos [religiosamente]
necessitados na ocasião. Mas ainda n ã o se pode falar de u m a c o n g r e g a ç ã o de leigos
permanentes, e nossas c o n c e p ç õ e s de pertinência a u m a c o n f i s s ã o religiosa s ã o inaplicá-
veis. Adepto de u m deus é o i n d i v í d u o apenas n o m e s m o sentido e m que, p o r e x e m p l o ,
o italiano é adepto de d e t e r m i n a d o santo. Parece inextinguível o crasso engano de
considerar, p o r e x e m p l o , a m a i o r i a dos chineses, o u até todos eles, budistas, n o sentido
confessional, s ó p o r q u e g r a n d e parte — educada na escola dentro da ética confuciana,
a única oficialmente a p r o v a d a — pede e m toda c o n s t r u ç ã o de u m a casa o conselho
d o sacerdote a d i v i n h a d o r taoísta e c e l e b r a o luto p o r parentes falecidos segundo o
rito confuciano, mas, ao lado disso, e n c o m e n d a m p a r a eles missas de a l m a budistas.
A l é m daqueles que continuamente participam n o culto d o deus e, eventualmente, de
u m c í r c u l o limitado d e interessados permanentes, existem aqui apenas leigos ocasionais,
" s i m p a t i z a n t e s " — p a r a e m p r e g a r [aqui] analogamente o m o d e r n o t e r m o t é c n i c o dos
partidos políticos p a r a seus eleitores n ã o - o r g a n i z a d o s .

Mas esta situação, naturalmente, já p o r razões puramente e c o n ô m i c a s , n ã o corres-


ponde, e m g e r a l , aos interesses daqueles que administram o'culto,- os quais p o r isso
p r o c u r a m , q u a n d o e onde possível, passar p a r a a f o r m a ç ã o d e u m a c o n g r e g a ç ã o , isto
é, d e u m a r e l a ç ã o associativa d u r a d o u r a entre os adeptos, c o m direitos e d e v e r e s f i x o s .
; A j r a n s f o r m a ç ã o da a d e s ã o pessoal e m u m a c o n g r e g a ç ã o c o n s t i t u i p o r t a n t o ^ a f o r m a
n o r m a l e m q u e o e n s i n o dos profetas entra na v i d a cotidiana, c o m o f u n ç ã o de u m a
312 MAX WEBER

instituição permanente. O s alunos o u discípulos d o profeta tornam-se e n t ã o mistagogos


o u mestres o u sacerdotes o u curas d e almas ( o u tudo isso e m conjunto) de u m a r e l a ç ã o
associativa q u e s e r v e exclusivamente p a r a fins religiosos: a congregação de leigos. Mas
tomando-se outros pontos de partida pode-se chegar ao m e s m o r e s u l t a d o T j T v i m o s
q u e os sacerdotes, n a fase de transição entre a f u n ç ã o de m a g o e o s a c e r d ó c i o p r o p r i a -
mente dito, o u e r a m m e m b r o s de linhagens sacerdotais c o m s e n h o r i o territorial p r ó p r i o
o u sacerdotes d o m é s t i c o s e de corte de senhores territoriais e príncipes o u sacerdotes
sacrificadores qualificados e estamentalmente organizados, aos quais se d i r i g i a m , e m
caso de necessidade, tanto os indivíduos quanto as associações, mas que, f o r a disso,
podiam dedicar-se a qualquer o c u p a ç ã o que n ã o fosse i n c o m p a t í v e l c o m s e u status.
O u , p o r f i m , e r a m sacerdotes d e u m a associação, profissional o u o u t r a , mas sobretudo
de u m a associação política. N ã o existe, e m todos estes casos, u m a c o n g r e g a ç ã o p r o p r i a -
mente dita, ao lado das outras associações. Mas ela pode surgir q u a n d o u m a linhagem
de sacerdotes sacrificadores consegue organizar, c o m o comunidade e x c l u s i v a , os adep-
tos especiais de u m deus o u — o que constitui o caso mais f r e q ü e n t e — quando a
associação política é destruída, mas o g r u p o religioso de adeptos ao deus da associação
e a seus sacerdotes continua existindo c o m o comunidade. O p r i m e i r o destes dois casos
encontra-se na índia e no O r i e n t e P r ó x i m o , c o m várias m o d i f i c a ç õ e s , junto c o m a fase
de transição entre a profecia mistagógica o u e x e m p l a r o u os movimentos d e r e f o r m a
religiosa e a o r g a n i z a ç ã o de c o n g r e g a ç õ e s duradouras. Muitas pequenas c o n g r e g a ç õ e s
hinduístas n a s c e r a m e m v i r t u d e de semelhantes processos. A transição do sacerdócio
de associações políticas à c o n g r e g a ç ã o religiosa, ao c o n t r á r i o , está v i n c u l a d a — quando
o c o r r e pela p r i m e i r a v e z e m grande escala — ao nascimento dos grandes impérios
do O r i e n t e P r ó x i m o , sobretudo d o persa. As associações políticas f o r a m destruídas,
a p o p u l a ç ã o f o i desarmada, enquanto que aos sacerdotes, a l é m de certos direitos políti-
cos, foi garantida sua posição. T a l c o m o se r e c o r r e u à comunidade f o r ç a d a , constituída
da comunidade de v i z i n h a n ç a , p a r a assegurar interesses fiscais, utilizou-se, neste caso,
a comunidade religiosa c o m o m e i o de d o m e s t i c a ç ã o dos subjugados. A s s i m surgiu,
e m v i r t u d e de decretos dos reis persas, desde C i r o até A r t a x e r x e s , o j u d a í s m o como
comunidade religiosa reconhecida p e l o r e i , c o m o centro teocrático e m J e r u s a l é m . Pre-
sumivelmente u m a vitória dos persas teria proporcionado semelhantes possibilidades
ao A p o l o d é l f i c o e às linhagens sacerdotais de outros deuses e t a m b é m , talvez, aos
profetas órficos. No Egito, a p ó s a destruição da autonomia política, o s a c e r d ó c i o nacio-
n a l desenvolveu u m a espécie de o r g a n i z a ç ã o " e c l e s i á s t i c a " , c o m sínodos — a p r i m e i r a
deste tipo, ao que parece. Na í n d i a , ao c o n t r á r i o , as comunidades religiosas nasceram,
na a c e p ç ã o mais estreita, de comunidades " e x e m p l a r e s " , ao consolidar-se a unidade
estamental do b r a m a n i s m o e das regras ascéticas p o r entre a pluralidade das formações
políticas e f ê m e r a s , c o m a c o n s e q ü ê n c i a de p e r m i t i r às éticas de salvação nascentes
atravessarem todas as b a r r e i r a s políticas. No Irã, os sacerdotes de Zaratustra conse-
g u i r a m propagar, n o d e c o r r e r dos s é c u l o s , u m a o r g a n i z a ç ã o religiosa fechada que,
sob os sassânidas, s e tornou u m a " c o n f i s s ã o " política (os a q u e m ê n i d a s e r a m apenas
partidários de Mazda, e n ã o de Zaratustra, c o n f o r m e m o s t r a m seus documentos).

As relações entre o poder p o l í t i c o e a comunidade religiosa, das quais nasce o


conceito de " c o n f i s s ã o " , f a z e m parte da análise da " d o m i n a ç ã o " . C a b e aqui somente
observar que a "religiosidade congregacionaf é u m f e n ô m e n o lábil e n e m sempre
u n í v o c o . Somente falaremos d e sua existência q u a n d o os leigos 1) encontram-se associa-
dos n u m a a ç ã o comunitária permanente, sobre c u j o decurso 2 ) i n f l u e m ativamente
d e alguma m a n e i r a . U m p u r o distrito administrativo q u e delimita as competências dos
sacerdotes é u m a p a r ó q u i a e n ã o u m a c o n g r e g a ç ã o . Mas m e s m o o conceito d e paróquia,
c o m o a l g o distinto da comunidade m u n d a n a de caráter político o u e c o n ô m i c o , falta
ECONOMIA E SOCIEDADE 313

à religiosidade chinesa e da í n d i a antiga e, e m g e r a l , t a m b é m à hinduísta. As fratrias


helénicas e as outras da Antiguidade e comunidades cultuais semelhantes n ã o s ã o p a r ó -
quias mas associações políticas o u de outra natureza, cuja a ç ã o comunitária está sob
o patrocínio de u m deus. A p a r ó q u i a d o budismo antigo é somente u m distrito dentro
do qual os monges ambulantes que ocasionalmente nele se e n c o n t r a m s ã o obrigados
a participar das assembléias quinzenais. A p a r ó q u i a m e d i e v a l ocidental, anglicana, lute-
r a n a , oriental, cristã e islâmica é substancialmente u m a associação eclesiástica passiva
c o m o b r i g a ç õ e s tributárias e u m distrito de c o m p e t ê n c i a d o p á r o c o . Nestas religiões,
t a m b é m o conjunto de todos os leigos n ã o t e m , e m g e r a l , n e n h u m caráter congrega-
cional. Pequenos resíduos de direitos congregacionais encontram-se ainda conservados
e m algumas igrejas cristãs orientais e e x i s t i a m t a m b é m n o Ocidente católico e n o lutera-
nismo. A o c o n t r á r i o , o m o n a q u i s m o budista antigo, a antiga c o m u n i d a d e g u e r r e i r a
islâmica, o j u d a í s m o e a cristandade antiga constituíram c o n g r e g a ç õ e s , a i n d a que c o m
graus muito v a r i a d o s de r i g o r nas relações associativas que ainda n ã o cabe e x a m i n a r
aqui e m seus detalhes. Por outra parte, certa influência efetiva dos leigos — relativa-
imente grande n o islãl especialmente entre os xiitas, ainda que n ã o garantida j u r i d i c a -
mente: o xá n ã o costuma n o m e a r n e n h u m sacerdote s e m ter antes certeza d o consenti-
mento dos leigos locais — é c o m p a t í v e l c o m a ausência d e u m a o r g a n i z a ç ã o congrega-
cional local submetida a regras fixas. \Ao c o n t r á r i o , c o m o se e x a m i n a r á m a i s tarde,
constitui a peculiaridade de todai\"seita"/no sentido t é c n i c o do t e r m o , o fato d e se
basear n a r e l a ç ã o associativa fechada das diversas c o n g r e g a ç õ e s locais, sendo este s e u
v e r d a d e i r o fundamento/A partir deste p r i n c í p i o , representado dentro do protestantismo
pelos batistas e " i n d e p e n d e n t e s " , e, mais tarde, pelos "congregacionalistas", transições
graduais c o n d u z e m até a o r g a n i z a ç ã o típica da igreja r e f o r m a d a , que t a m b é m , q u a n d o
d e fato seja u m a o r g a n i z a ç ã o u n i v e r s a l , considera m e m b r o s somente aqueles q u e , m e -
diante contrato, e n t r a r a m n u m a das c o n g r e g a ç õ e s particulares. Voltaremos ainda à p r o -
blemática que resulta dessas d i f e r e n ç a s . D a s c o n s e q ü ê n c i a s d o desenvolvimento de
u m a autêntica religiosidade çongregacional de e n o r m e alcance, interessa-nos a q u i , so-
bretudo esta: que agora, dentro da c o n g r e g a ç ã o , a r e l a ç ã o entre sacerdotes e leigos
assume importância decisiva p a r a a a t u a ç ã o prática da religiosidade. Q u a n t o m a i s especi-
ficamente ç o n g r e g a c i o n a l o caráter da o r g a n i z a ç ã o , tanto mais a p o s i ç ã o poderosa dos
sacerdotes enfrenta a necessidade de ter e m conta, n o interesse da c o n s e r v a ç ã o e p r o p a -
g a ç ã o d o g r u p o de adeptos, as necessidades dos leigos. E m certo g r a u , n o entanto,
essa situação é c o m u m a todo tipo de s a c e r d ó c i o . Para manter sua p o s i ç ã o de p o d e r ,
f r e q ü e n t e m e n t e tem de condescender, e m alto g r a u , às necessidades dos leigos. As
três f o r ç a s atuantes no círculo dos leigos são: 1 ) a p r o f e c i a ; 2 ) o tradicionalismo leigo;
e 3 ) o intelectualismo leigo. Perante estas f o r ç a s atuam as necessidades e tendências
d o " e x e r c í c i o " sacerdotal, puramente c o m o tal, c o m o outra f o r ç a , t a m b é m essencial-
mente decisiva. F a l a r e m o s e m seguida deste ú l t i m o fator, e m c o n e x ã o c o m o p r i m e i r o
mencionado.

\Q profeta é t i c o e e x e m p l a r , e m r e g r a , é ele m e s m o u m leigo e, e m todo o caso,


apAja «sua pn<:ir3r> p o d ? r sobre o g r u p o de adeptos leigos. E m v i r t u d e de s e u sentido,
toda p r o f e c i a , ainda que e m g r a u d i v e r s o , desvaloriza os elementos m á g i c o s d o sacer-
d ó c i o organizado. B u d a e seus iguais, b e m c o m o os profetas israelitas, rejeitam n ã o
apenas a pertinência aos magos e adivinhos qualificados (que nas fontes israelitas s ã o
t a m b é m chamados d e p r o f e t a s ) i m a s t a m b é m a própria magia, c o m o inútil. Somente
a especificamente religiosa r e l a ç ã o significativa c o m o eterno traz a salvação. U m dos
pecados m o r t a i s dos budistas é vangloriar-se, s e m r a z ã o , de capacidades m á g i c a s , cuja
existência, t a m b é m e precisamente entre os descrentes, n e m os profetas israelitas, n e m
os da í n d i a , n e m os apóstolos cristãos e a tradição d o cristianismo antigo j a m a i s p u s e r a m
314 MAX WEBER

e m d ú v i d a . E m c o n s e q ü ê n c i a dessa r e j e i ç ã o estes o c u p a m t a m b é m u m a p o s i ç ã o cética


— s ó que manifesta e m f o r m a d i v e r s a — e m r e l a ç ã o às atividades sacerdotais p r o p r i a -
mente ditas. N ã o s ã o holocaustos o que o deus dos profetas israelitas q u e r , mas o b e d i ê n -
cia a seus mandamentos. Nada se consegue c o m o saber e ritual v é d i c o p a r a a salvação
d o budista, e o v e n e r á v e l sacrifício d o soma é p a r a o A h u r a m a z d a dos gâthâs mais
antigos algo h o r r e n d o . Por isso, há p o r toda parte tensões entre os profetas, seus adeptos
leigos e os representantes da tradição sacerdotal, e é u m a q u e s t ã o d e poder, condicio-
nada t a m b é m , às v e z e s , c o m o e m I s r a e l , pela situação política e x t e r n a , até que ponto
o profeta pode c u m p r i r s u a m i s s ã o o u se t o r n a u m mártir dela. A l é m de sobre a própria
família, Zaratustra apoiou-se sobre linhagens aristocráticas é principescas contra o p r o -
feta adverso a n ô n i m o ; o m e s m o f i z e r a m M a o m é e os profetas da í n d i a , enquanto que
os israelitas se a p o i a r a m sobre a classe m é d i a burguesa e camponesa. Mas todos eles
aproveitaram-se do prestígio que o c a r i s m a p r o f é t i c o , c o m o t a l , encontrou entre os
leigos e m relação aos técnicos d o culto cotidiano: a santidade da n o v a r e v e l a ç ã o defron-
ta-se c o m a santidade da tradição e, d e p e n d e n d o d o ê x i t o da demagogia de ambas
as partes, o s a c e r d ó c i o compromete-se c o m a n o v a p r o f e c i a , adota-a o u sobrepuja
sua doutrina, elimina-a o u é e l i m i n a d o ele m e s m o .

§ 6. Saber sagrado. S e r m ã o . C u r a de almas

E m todo caso, p o r é m , jO s a c e r d ó c i o é i n c u m b i d o da tarefa de determinar sistemati-


ç a j i i e n t e ^ a ^ o v a j d q u t r i n a _ y i t o r i o s a o u a v e l h a d o u t r i n a d e f e n d i d a c o n t r a o s ataques
prnféjjrns, He H ^ i m i t a r o que é ou não considerado sagrado~e~de i m p r e g n a r isto à
crença dos leigos p a r a garantir sua p r ó p r i a soberania. N e m s e m p r e é a a m e a ç a aguda
ocasionada p o r u m a profecia diretamente voltada contra os sacerdotes que faz fluir
esse processo, antiquíssimo sobretudo na índia. T a m b é m o p u r o interesse na consoli-
d a ç ã o da própria p o s i ç ã o contra possíveis ataques e a necessidade de assegurar a própria
prática contra o ceticismo dos leigos p o d e m l e v a r a resultados semelhantes. Mas, onde
q u e r que se inicie esse processo, ele acarreta duas c o n s e q ü ê n c i a s \ e s c r i t u r a s . c a n ó n i c a s
e d o g m a s j T o d a v i a ambos, sobretudo os últimos, e m d i m e n s õ e s muito diversas. As
escrituras c a n ó n i c a s c o n t ê m as p r ó p r i a s r e v e l a ç õ e s e tradições sagradas; os dogmas
são ensinamentos sacerdotais sobre o sentido de ambas. A c o m p i l a ç ã o das revelações
religiosas de u m a p r o f e c i a o u , ao c o n t r á r i o , da posse d e saber sagrado transmitido
pode o c o r r e r n a f o r m a de tradição o r a l . D u r a n t e longos s é c u l o s , o saber sagrado b r a m â -
nico f o i transmitido apenas o r a l m e n t e , e a f o r m a escrita f o i até repudiada — o que
m a r c o u continuamente a f o r m a literária daquele saber e, de resto, condicionou as dife-
renças n ã o - n e g l i g e n c i á v e i s dos textos das várias çâkhâs ( e s c o l a s ) A r a z ã o p a r a isto
e r a que aquele saber só podia s e r p o s s u í d o p e l o qualificado, nascido duas vezes. C o m u -
nicá-lo ao n ã o - r e n a s c i d o , e x c l u í d o e m v i r t u d e de sua casta ( o çúdra) constituía u m
pecado grave. O r i g i n a l m e n t e , o ensinamento da arte m á g i c a tinha, p o r toda parte,
esse caráter de saber secreto, p o r interesses corporativos. Mas t a m b é m h o u v e , por
toda parte, elementos do saber dos m á g i c o s que se t o r n a r a m objeto d e u m a e d u c a ç ã o
sistemática precisamente d o resto da p o p u l a ç ã o . O fundamento d o mais antigo sistema
m á g i c o de e d u c a ç ã o , d i f u n d i d o p o r toda parte, é a s u p o s i ç ã o animista: de que assim
c o m o o p r ó p r i o m a g o necessita da posse de u m a n o v a a l m a , de u m renascimento,
p a r a e x e r c e r s u a arte, o h e r o í s m o baseia-se n u m c a r i s m a e, p o r isso, tem d e ser desper-
tado, e x p e r i m e n t a d o , inoculado n o h e r ó i p o r m a n i p u l a ç õ e s m á g i c a s , d e v e n d o t a m b é m
o h e r ó i renascer p a r a o h e r o í s m o . A e d u c a ç ã o carismática neste sentido, c o m seus
noviciados, testes de coragem, torturas, g r a u s de o r d e n a ç ã o e d e dignidade, c o n s a g r a ç ã o
de j o v e n s e p r e p a r a ç ã o p a r a a defesa, é u m a instituição u n i v e r s a l , conservada e m rudi-
ECONOMIA E SOCIEDADE 315

mentos e m quase todos os lugares, de toda r e l a ç ã o associativa g u e r r e i r a . Q u a n d o os


magos corporativamente organizados se t o r n a m pouco a pouco sacerdotes, essa f u n ç ã o
importante da e d u c a ç ã o de leigos n ã o cessa de existir e, p o r toda parte, a p r e t e n s ã o
do s a c e r d ó c i o é mantê-la f i r m e e m suas m ã o s . A o m e s m o tempo, q saber sagrado,
como t a l , v a i desaparecendo, e o ensinamento sacerdotal transforma-se n u m a t r a d i ç ã o
fixada literariamente, interpretada pelos sacerdotes mediante dogmas. U m a religião
livresca deste tipo torna-se e n t ã o fundamento de u m sistema de e d u c a ç ã o n ã o apenas
para os p r ó p r i o s m e m b r o s do s a c e r d ó c i o , mas t a m b é m e precisamente p a r a os leigos.
Nem todas, m a s a m a i o r i a das c o l e ç õ e s c a n ó n i c a s sagradas f o r a m isoladas de
elaborações profanas o u , pelo m e n o s , s e m compromissos religiosos, na luta entre vários
grupos e profecias que disputavam a soberania na comunidade. É p o r isso que nos
lugares e m que essa luta n ã o existia o u n ã o a m e a ç a v a o c o n t e ú d o da tradição, muitas
vezes a c a n o n i z a ç ã o f o r m a l das escrituras o c o r r e u apenas muito paulatinamente. A s s i m ,
o c â n o n judaico f o i fechado, caracteristicamente, talvez c o m o b a r r e i r a contra profecias
apocalípticas, somente no s í n o d o de J â m n i a (90 d . C . ) , logo a p ó s a d e c a d ê n c i a do Estado
teocrático, e m e s m o e n t ã o apenas e m princípio. O s Vedas, claramente, f o r a m elaborados
apenas e m c o n s e q ü ê n c i a do antagonismo à heterodoxia intelectual; o c â n o n cristão,
quando a religiosidade baseada sobre a piedade das massas dos pequenos-burgueses
foi a m e a ç a d a pela soteriologia intelectual dos gnósticos. A antiga soteriologia intelectual
budista no c â n o n Pâli, ao contrário, o f o i p o r ser a m e a ç a d a pela religião de s a l v a ç ã o
propagandística e popular do M a h â y â n a . As escrituras clássicas do confucionismo, assim
como a l e i sacerdotal de E s r a , f o r a m impostas p e l o poder político e, justamente p o r
isso, as p r i m e i r a s n u n c a o b t i v e r a m e a segunda apenas muito mais tarde se revestiu
da qualidade de sagrado, que é s e m p r e de o r i g e m sacerdotal. Somente o C o r ã o tinha
de ser redigido a m a n d o do califa e tornou-se sagrado imediatamente p o r q u e p a r a
o semi-analfabeto M a o m é a existência de u m l i v r o sagrado e m s i já v a l i a c o m o s í m b o l o
do prestígio de u m a religião. Isto tem a v e r c o m as idéias tabus, muito difundidas,
sobre o significado m á g i c o de documentos escritos, tais c o m o já existiam, muito tempo
antes do fechamento do c â n o n , p a r a a T o r á e as escrituras proféticas consideradas
autênticas e p e l o contato c o m as quais se " s u j a v a m as m ã o s " . Mas os detalhes desse
processo n ã o nos interessam aqui; tampouco o que está exatamente i n c o r p o r a d o nas
escrituras sagradas canonizadas. A dignidade m á g i c a dos cantores condicionou que nos
Vedas, ao lado das e p o p é i a s h e r ó i c a s , t a m b é m entrassem cantos satíricos sobre o I n d r a
b ê b e d o e poemas de c o n t e ú d o s v a r i a d o s ; que n o c â n o n do Antigo Testamento se incluísse
uma c a n ç ã o de a m o r e tivessem importância todas as m a n i f e s t a ç õ e s pessoais dos p r o f e -
tas; que no Novo Testamento aparecesse u m a carta estritamente particular de Paulo,
e que n o C o r ã o fossem, evidentemente, inseridas suras sobre problemas f a m i l i a r e s
altamente humanos do profeta. O fechamento de u m c â n o n costuma ser justificado
pela teoria de que s ó u m a determinada é p o c a passada f o i a b e n ç o a d a c o m o c a r i s m a
profético: assim, pela teoria dos rabinos, a é p o c a entre Moisés e A l e x a n d r e , e, pela
teoria r o m a n a , somente a é p o c a apostólica. Nisto expressa-se c o m e x a t i d ã o a consciência
do antagonismo entre a sistemática profética e a sacerdotal.|Um profeta é u m sistema-
tizador n o sentido da h o m o g e n e i z a ç ã o da r e l a ç ã o do h o m e m c o m o m u n d o , a partir
de posições últimas de v a l o r homogêneasj||jO sacerdote, p o r sua v e z , sistematiza o con-
t e ú d o da profecia o u das tradições sagradas n o sentido da estruturação racional-ca-
suística e da a d a p t a ç ã o aos costumes mentais e de v i d a de sua p r ó p r i a camada e dos
leigos p o r ele dominados.

O que i m p o r t a , n a prática,\no desenvolvimento de u m a religiosidade p a r a u m a


religião livresca — seja n o sentido pleno da p a l a v r a , isto é, da v i n c u l a ç ã o a u m c â n o n
considerado sagrado, seja n u m sentido menos r í g i d o , isto é , do caráter decisivo das
316 MAX WEBER

n o r m a s sagradas fixadas p o r escrito, c o m o , p o r e x e m p l o , n o antigo L i v r o dos Mortos


e g í p c i o — , é o desenvolvimento da e d u c a ç ã o sacerdotal desde o estado m a i s antigo,
puramente carismático, à e d u c a ç ã o literária. Q u a n t o mais importante se torna o conheci-
mento das escrituras, t a m b é m p a r a a c o n d u ç ã o de n e g ó c i o s p u r a m e n t e mundanos —
e quanto mais estes a d q u i r e m , portanto, o caráter de u m a administração burocrática
que procede p o r regulamentos e atas — , tanto mais a e d u c a ç ã o dos sábios e f u n c i o n á r i o s
mundanos passa às m ã o s do s a c e r d ó c i o letrado o u este ocupa — c o m o nas chancelarias
da Idade M é d i a — , e l e m e s m o , os cargos que se b a s e i a m na f o r m a escrita dos processos.
A e x t e n s ã o e m que u m a dessas duas coisas o c o r r e depende n ã o apenas d o g r a u de
b u r o c r a t i z a ç ã o da administração mas t a m b é m d o quanto outras camadas, sobretudo
a nobreza g u e r r e i r a , d e s e n v o l v e m e controlam u m sistema d e e d u c a ç ã o p r ó p r i o . Falare-
mos mais tarde da b i f u r c a ç ã o dos sistemas educacionais que é possível resultar desta
situação e t a m b é m da supressão total o u d o n ã o - d e s e n v o l v i m e n t o de u m sistema de
e d u c a ç ã o puramente sacerdotal p r o v a v e l m e n t e derivados da falta de p o d e r dos sacer-
dotes o u da falta de u m a p r o f e c i a o u de u m a r e l i g i ã o livresca.
T a m b é m p a r a o desenvolvimento d o c o n t e ú d o e s p e c í f i c o dos ensinamentos sacer-
dotais a f o r m a ç ã o d e comunidades religiosas constitui, se n ã o o ú n i c o , ao menos o
mais forte estímulo.jEsta c r i a a importância específica dos dogmas. Pois c o m ela aparece,
c o m o tendência predominante, a necessidade d e se isolar de doutrinas estranhas concor-
rentes e de manter o d o m í n i o pela propaganda, e, c o m isso, a importância da doutrina
d i s c r i m i n a d o r a . O fato d e C a r l o s Magno ter insistido n o t e r m o filioque para a Igreja
da Francônia — u m a das razões da s e p a r a ç ã o entre O r i e n t e e Ocidente — e recusado
o c â n o n f a v o r á v e l às imagens, implicava r a z õ e s políticas dirigidas contra a supremacia
da igreja bizantina. A a d e s ã o a f ó r m u l a s d o g m á t i c a s totalmente incompreensíveis, c o m o
n o caso da doutrina monofisita entre as grandes massas d o O r i e n t e e do Egito, foi
e x p r e s s ã o do nacionalismo separatista a n t i i m p e r i a l e anti-helênico, e de fato a igreja
copta monofisita p r e f e r i u m a i s tarde os árabes aos r o m a n o s c o m o dominadores. E
assim o c o r r e u muitas vezes. Mas, e m r e g r a , s ã o principalmente o combate sacerdotal
contra o profundamente odiado indiferentismo, contra o perigo de que arrefeça o entu-
siasmo dos adeptos e, p o r outro lado, a ê n f a s e na importância da pertinência ao grupo
religioso p r ó p r i o e a o b s t r u ç ã o da passagem p a r a os outros que f a z e m colocar e m
p r i m e i r o p l a n o as doutrinas e os s í m b o l o s de d i f e r e n c i a ç ã o . O e x e m p l o é dado pelas
tatuagens magicamente condicionadas dos participantes de u m totem o u de u m a aliança
d e g u e r r a . A p i n t u r a de d i f e r e n c i a ç ã o das seitas hindus é o que mais se a p r o x i m a disso
quanto ao aspecto exterior. Mas o Antigo Testamento refere-se repetidas vezes à manu-
t e n ç ã o da circuncisão e do tabu d o sabá c o m o atitude proposital p a r a a diferenciação
dos judeus e m r e l a ç ã o a outros povos, e, de todo m o d o , f u n c i o n o u c o m grande eficácia
nesse sentido. O fato de o dia festivo da semana dos cristãos ser f i x a d o n o dia do
deus d o S o l talvez tenha sido condicionado — entre outras coisas — pelo acolhimento
do mito s o t e r i o l ó g i c o das doutrinas de s a l v a ç ã o mistagógicas da religião do Sol do
O r i e n t e P r ó x i m o , mas teve efeito bruscamente distintivo e m r e l a ç ã o aos judeus. O
fato de M a o m é ter t r a n s f e r i d o s e u culto semanal p a r a a sexta-feira, depois do fracasso
na tentativa de c o n v e r s ã o dos judeus, talvez seja condicionado principalmente pelo
desejo de se distinguir deles, enquanto s u a p r o i b i ç ã o absoluta de tomar v i n h o , nos
tempos antigos e m o d e r n o s , já t e m muitas analogias entre os recabitas, os guerreiros
de Õ e u s , p a r a ser condicionada, c o m o se acreditava, péla necessidade de erguer uma
b a r r e i r a contra os sacerdotes cristãos, obrigados a t o m a r v i n h o (na E u c a r i s t i a ) E m
c o r r e s p o n d ê n c i a c o m o caráter da p r o f e c i a e x e m p l a r , as doutrinas de diferenciação
da índia t ê m caráter mais ético-prático o u ritual, d e v i d o a sua afinidade interior com
a mistagogia. O s famigerados pontos que p r o v o c a r a m a grande cisão d o budismo no
ECONOMIA E SOCIEDADE 317

c o n c í l i o de Vêsalí c o n t ê m apenas questões da r e g r a m o n á s t i c a , entre eles evidentemente


detalhes que f o r a m supervalorizados apenas p a r a justificar a o r g a n i z a ç ã o específica
de M a h â y â n i . A s religiões asiáticas, ao c o n t r á r i o , praticamente desconhecem a d o g m á t i c a
c o m o m a r c a de d i f e r e n c i a ç ã o . Decerto B u d a declara sua q u á d r u p l a v e r d a d e sobre as
grandes ilusões c o m o fundamento da doutrina prática de s a l v a ç ã o d a n o b r e senda óctu-
pla. Mas a c o m p r e e n s ã o dessas verdades, e m vista de suas c o n s e q ü ê n c i a s práticas, é
o objetivo do trabalho d e s a l v a ç ã o e n ã o u m dogma p r o p r i a m e n t e dito, n o sentido
do Ocidente. O m e s m o se aplica à m a i o r i a das m a i s antigas profecias d a índia. E ,
enquanto na comunidade cristã u m dos p r i m e i r o s dogmas realmente comprometedores
é, caracteristicamente, a c r i a ç ã o do m u n d o por D e u s a p a r t i r do nada — portanto,
a f i x a ç ã o do deus s o b r e n a t u r a l e m o p o s i ç ã o à e s p e c u l a ç ã o intelectual gnóstica — , n a
índia as e s p e c u l a ç õ e s c o s m o l ó g i c a s e as outras, metafísicas, c o n t i n u a m sendo assunto
das escolas filosóficas, às quais f o i concedida, e m r e l a ç ã o à o r t o d o x i a , u m a m a r g e m
de a ç ã o m u i t o a m p l a , ainda que n ã o ilimitada. Na C h i n a , a ética confuciana desaprova
toda v i n c u l a ç ã o a dogmas metafísicos, p o r q u e , n o interesse da c o n s e r v a ç ã o dos cultos
aos antepassados — fundamento da o b e d i ê n c i a burocrático-patrimonial ( c o m o se diz
e x p r e s s a m e n t e ) — , t ê m de p e r m a n e c e r intocáveis a magia e a c r e n ç a nos espíritos.
T a m b é m dentro da p r o f e c i a ética e sua religiosidade congregacional, o g r a u de p r o l i f e -
r a ç ã o d o g m á t i c a p r o p r i a m e n t e dita é m u i t o diverso. O islã antigo contentava-se, c o m o
c o n d i ç ã o de pertinência, c o m a f é e m D e u s e n o profeta, e o c u m p r i m e n t o dos poucos
mandamentos principais referentes a rituais práticos. Q u a n t o m a i s , p o r é m , a congre-
g a ç ã o e os sacerdotes e mestres congregacionais se t o r n a m portadores de u m a r e l i g i ã o ,
tanto m a i o r e s se t o r n a m as distinções d o g m á t i c a s de natureza prática e teórica, c o m o
entre os adeptos posteriores de Zaratustra, entre os judeus e os cristãos. Mas a doutrina
dos judeus compartilha c o m a do islã o caráter de u m a simplicidade tão grande que
excepcionais e r a m apenas as o c a s i õ e s p a r a debater questões v e r d a d e i r a m e n t e d o g m á -
ticas. S ó a doutrina da g r a ç a e os aspectos prático-morais, rituais e jurídicos constituem,
e m ambos os casos, a área de disputas. O m e s m o é v á l i d o n o que se r e f e r e aos adeptos
de Zaratustra. Somente e n t r e os cristãos desenvolveu-se u m a d o g m á t i c a extensa de
caráter t e ó r i c o , estritamente c o m p r o m i s s ó r i a e sistematicamente racionalizada, e m par-
te sobre assuntos c o s m o l ó g i c o s , e m parte s o b r e o mito s o t e r i o l ó g i c o (cristologia) e
e m parte sobre a c o m p e t ê n c i a sacerdotal (os sacramentos). Isso se d e u , inicialmente,
na parte helénica d o I m p é r i o R o m a n o ; na Idade M é d i a , ao contrário, desenvolveu-se
n o Ocidente, de m o d o m u i t o mais intenso do que nas igrejas orientais, e e m ambos
os casos c o m intensidade tanto m a i o r quanto mais u m a forte o r g a n i z a ç ã o do s a c e r d ó c i o
dispunha do m a i o r g r a u de autonomia diante do poder político. Mas o que sobretudo
p r o v o c o u , na Antiguidade, essa tendência a u m desenvolvimento muito intenso de dog-
mas f o r a m , p o r u m lado, a peculiaridade d o intelectualismo p r o v i n d o da cultura intelec-
tual h e l é n i c a , as c o n d i ç õ e s e tensões metafísicas particulares criadas p e l o culto cristão
e a necessidade de e n f r e n t a r a camada dos intelectuais inicialmente situados à m a r g e m
d a comunidade cristã, e, p o r outro lado, a atitude desconfiada, d e s a p r o v a d o r a , social-
mente condicionada, das igrejas cristãs e m face do intelectualismo p u r o — e m o p o s i ç ã o
às religiões asiáticas — , representando estas igrejas u m a religiosidade congregacional
de leigos pequeno-burgueses cuja p o s i ç ã o os bispos se v i a m obrigados a respeitar.
No O r i e n t e , c o m a destruição d a éXX.T)vuo) iraiSeíot [ f o r m a ç ã o grega ( N . T . ) ] pelos m o n -
ges que p r o c e d i a m e m g r a n d e parte de círculos pequeno-burgueses, n ã o - h e l ê n i c o s ,
acabou t a m b é m a f o r m a ç ã o r a c i o n a l de dogmas. Mas p a r a esse desenvolvimento contri-
b u i u t a m b é m a f o r m a de o r g a n i z a ç ã o das comunidades religiosas; n o b u d i s m o antigo,
a a u s ê n c i a total e propositada de toda o r g a n i z a ç ã o hierárquica teria inibido qualquer
c o n c o r d â n c i a s o b r e u m a d o g m á t i c a r a c i o n a l do tipo cristão, supondo-se que a doutrina
318 MAX WEBER

de salvação sequer tivesse necessitado de semelhante doutrina. Pois p a r a que o trabalho


intelectual dos sacerdotes e seu concorrente, o r a c i o n a l i s m o leigo despertado pela e d u -
c a ç ã o sacerdotal, n ã o p o n h a m e m perigo a unidade da c o n g r e g a ç ã o , costuma-se postular
u m a instituição que decida sobre a ortodoxia de u m a doutrina. N u m longo desenvol-
v i m e n t o cuja e x p o s i ç ã o n ã o cabe a q u i , a [ c o n g r e g a ç ã o ] r o m a n a fez nascer a cátedra
infalível de seu bispo, c o m base na esperança de que D e u s n ã o d e i x a r i a que se enganasse
a c o n g r e g a ç ã o da p r i n c i p a l cidade d o m u n d o . Somente ali existe essa s o l u ç ã o conse-
q ü e n t e que p r e s s u p õ e a inspiração do catedrático e m casos de decisão sobre u m a dou-
trina. T a n t o o islã quanto a igreja oriental — o p r i m e i r o partindo da c o n f i a n ç a f i r m e
d o profeta de que D e u s nunca p e r m i t i r i a à comunidade de fiéis cair e m e r r o , a última
apoiando-se na prática da igreja antiga — m a n t i v e r a m c o m o c o n d i ç ã o de validade da
verdade d o g m á t i c a , p o r motivos diversos e h e t e r o g ê n e o s , a s e r e m expostos mais tarde,
o " c o n s e n s o " dos portadores nomeados da o r g a n i z a ç ã o d o u t r i n a l eclesiástica, isto é,
predominantemente dos sacerdotes o u dos t e ó l o g o s , dependendo do caso, e i m p e d i r a m
assim a p r o l i f e r a ç ã o d o g m á t i c a . O D a l a i - L a m a , p o r outro lado, apesar de ter, a l é m
do poder político, u m p o d e r regimental eclesiástico, n ã o possui, devido ao caráter
ritualista-mágico da religiosidade, autoridade catedrática p r o p r i a m e n t e dita. Por razões
semelhantes, a autoridade de e x c o m u n g a r dos g u r u s hinduístas dificilmente é e m p r e -
gada p o r motivos d o g m á t i c o s .
O trabalho sacerdotal na sistematização da doutrina sagrada é alimentado constan-
temente por componentes novos que a p a r e c e m na prática profissional dos sacerdotes,
e m o p o s i ç ã o à situação dos feiticeiros m á g i c o s . Na religião congregacional ética surge
o s e r m ã o c o m o algo totalmente n o v o e a c u r a de almas racional c o m o algo substan-
cialmente distinto do auxílio m á g i c o e m caso de necessidade.
\Q sermão, isto é, o e n s i n a m e n t o coletivo sobre coisas religiosas e éticas, no sentido
p r ó p r i o da p a l a v r a , é e m regra u m elemento e s p e c í f i c o da p r o f e c i a e da religião p r o f é -
tica. Q u a n d o aparece f o r a desta, constitui-se n u m a imitação. Sua importância d i m i n u i ,
e m g e r a l , nos casos e m que a religião revelada se converte, devido à cotidianização,
n u m e x e r c í c i o sacerdotal, e encontra-se e m p r o p o r ç ã o inversa aos componentes m á g i c o s
d e u m a religiosidade. O b u d i s m o , n o que se r e f e r e aos leigos, consiste originalmente
somente e m s e r m ã o , e nas religiões cristãs este adquire tanto mais significado quanto
mais se e l i m i n a m os componentes m á g i c o - s a c r a m e n t a i s i Q s e r m ã o ganha m a i o r impor-
tância, portanto, dentro do protestantismo n o q u a l o conceito de sacerdote foi totalmente
substituído pelo conceito de p r e g a d o r j
A cura de almas, a assistência religiosa aos indivíduos, é e m sua f o r m a racional-sis-
temática t a m b é m u m produto da r e l i g i ã o profética revelada. Sua fonte é o o r á c u l o
e o aconselhamento pelo mago e m casos nos quais d o e n ç a s o u outras adversidades
s u g e r e m u m pecado m á g i c o , o que levanta a questão de quais sejam os meios adequados
para acalmar o espírito o u d e m ô n i o o u deus enfurecido. A q u i encontra-se t a m b é m
a origem da " c o n f i s s ã o " . Originalmente, isto n ã o tem nada a v e r c o m influência " é t i c a "
sobre a c o n d u ç ã o da v i d a . Esta s ó se encontra na religiosidade ética, sobretudo a profe-
cia. E t a m b é m e n t ã o a c u r a de almas pode assumir f o r m a s diversas. Na medida em
que é administração de g r a ç a carismática está interiormente muito p r ó x i m a das manipu-
lações m á g i c a s . Mas ela pode ser t a m b é m u m ensinamento individual sobre deveres
religiosos concretos, e m caso de d ú v i d a , o u , p o r f i m , e m certo sentido, encontrar-se
entre os dois casos, sendo administração de consolo religioso individual e m aflições
internas o u externas. '
No que se r e f e r e ao g r a u de influência prática sobre a c o n d u ç ã o da v i d a , o sermão
e a c u r a de almas comportam-se de m a n e i r a diferente. O s e r m ã o manifesta sua m á x i m a
força e m épocas de e x c i t a ç ã o profética. Mas já pelo simples fato de que o carisma
ECONOMIA E SOCIEDADE 319

retórico é u m a qualidade i n d i v i d u a l , seus efeitos sobre o m o d o de v i v e r d i m i n u e m


na v i d a cotidiana c o m e x t r e m a rapidez, até d e s a p a r e c e r e m completamente. [A c u r a de
almas, ao c o n t r á r i o , e m todas suas f o r m a s , léjo v e r d a d e i r o instrumento de p o d e r dos
sacerdotes precisamente na v i d a cotidiana, e tanto m a i s i n f l u e n c i a o m o d o de v i v e r
quanto mais ético seja o caráter da religião) Particularmente o poder das religiões éticas
sobre as massas c a m i n h a paralelamente ao desenvolvimento dela. Q u a n d o sua f o r ç a
permanece intata, o conselho do c u r a de almas é p r o c u r a d o e m todas as situações
da v i d a , d o m e s m o m o d o que, nas religiões m á g i c a s ( C h i n a ) o do sacerdote a d i v i n h a d o r ,
p o r parte tanto de i n d i v í d u o s quanto de f u n c i o n á r i o s da comunidade. F o r a m os conse-
lhos dos rabinos — n o j u d a í s m o — , dos confessores católicos, dos pastores pietistas
e dos diretores espirituais da C o n t r a - R e f o r m a — n o cristianismo — , dos purohitas b r â -
manes — nas cortes — , dos gurus e gosâins — n o h i n d u í s m o — , dos muftis e dos
daroeses-xeques — n o islã — , que continuamente e muitas vezes de m o d o decisivo
i n f l u e n c i a r a m o m o d o de v i v e r cotidiano dos leigos e a atitude dos detentores d o p o d e r
político. O m o d o de v i v e r p r i v a d o , particularmente onde o s a c e r d ó c i o c o m b i n o u u m a
casuística ética c o m u m sistema racional de s a n ç õ e s eclesiásticas, c o m o o f e z c o m perícia
a igreja ocidental, adestrada pela casuística jurídica r o m a n a . S ã o sobretudo essas tarefas
práticas d o s e r m ã o e da c u r a de almas que m a n t ê m e m andamento a sistematização
do trabalho casuístico d o s a c e r d ó c i o , nos mandamentos éticos e nas verdades de f é ,
e que o f o r ç a m a tomar u m a p o s i ç ã o perante os i n ú m e r o s problemas concretos que
n a própria r e v e l a ç ã o n ã o f o r a m decididos. Portanto, s ã o t a m b é m elas a t r a z e r e m consigo
a c o t i d i a n i z a ç ã o do c o n t e ú d o das e x i g ê n c i a s proféticas, e m f o r m a d e prescrições detalha-
das de caráter casuístico e, p o r isso, mais r a c i o n a l ( e m c o m p a r a ç ã o c o m a ética d o
p r o f e t a ) mas, p o r outro lado, l e v a m à p e r d a daquela unidade interna que o profeta
tinha d a d o à ética: da d e d u ç ã o daquilo que se d e ve f a z e r de u m a r e l a ç ã o c o m " s e n t i d o "
e s p e c í f i c o p a r a c o m seu deus, tal c o m o ele m e s m o a m a n t é m e e m v i r t u d e da qual
n ã o pergunta pela aparência e x t e r n a de cada a ç ã o , mas, s i m , p e l o significado dela
dentro da r e l a ç ã o global p a r a c o m o deus. A prática sacerdotal necessita das prescrições
positivas e da casuística leiga e, p o r isso, costuma retroceder inevitavelmente o caráter
é t i c o - i d e o l ó g i c o da religiosidade.

Compreende-se p o r s i m e s m o que as simples prescrições positivas concretas da


ética profética e da sacerdotal, que modifica a p r i m e i r a p o r meios casuísticos, t ê m
q u e t i r a r seu m a t e r i a l dos problemas que os costumes e as c o n v e n ç õ e s e necessidades
objetivas dos leigos do m u n d o circundante lhes apresentam, c o m sua p r o b l e m á t i c a
específica, p a r a resolvê-los na c u r a de almas. Por isso, quanto m a i s u m s a c e r d ó c i o
pretende regulamentar, d e a c o r d o c o m a vontade d i v i n a , a prática da v i d a t a m b é m
dos leigos e, sobretudo, apoiar nisto s e u poder e suas receitas, tanto mais tem de adaptar
sua doutrina e suas ações ao m u n d o de idéias tradicional dos leigos. Isto é p a r t i c u -
larmente importante q u a n d o n ã o h á n e n h u m a demagogia profética que tenha a r r a n c a d o
a f é das massas d e sua v i n c u l a ç ã o tradicional, magicamente motivada. Q u a n t o m a i s
a grande massa se t o r n a e n t ã o objeto da influência e apoio do poder dos sacerdotes,
tanto m a i s o t r a b a l h o sistematizador destes tem de se concentrar nas f o r m a s m a i s tradi-
cionais, isto é, nas f o r m a s m á g i c a s das idéias e práticas religiosas. Por isso, c o m o
crescimento das p r e t e n s õ e s d e p o d e r d o s a c e r d ó c i o e g í p c i o , o culto animista aos a n i m a i s
f o i precisamente o c u p a n d o cada v e z m a i s o centro dos interesses. S e m d ú v i d a , a u m e n t o u
nesse processo o treinamento intelectual sistemático dos sacerdotes, e m c o m p a r a ç ã o
aos tempos anteriores. D o m e s m o m o d o c r e s c e u , n a í n d i a , a sistematização do culto
depois d o afastamento d o p r i m e i r o lugar d o hotar, o cantor sacro carismático, e de
s u a substituição pelo b r â m a n e , o instruído mestre de c e r i m ô n i a s sacrificiais. O A t h a r v a -
v e d a , c o m o produto literário, é muito mais n o v o d o que o Rigveda, e os B r â m a n a s
320 MAX WEBER

são muito mais novos ainda. Mas o material religioso sistematizado n o Atharvaveda é de
p r o v e n i ê n d a muito mais antiga do que o ritual dos nobres cultos védicos e os outros
componentes dos Vedas mais antigos; é muito mais do que estes u m ritual puramente
m á g i c o e, nos Brâmanas, é levado ainda mais adiante esse processo de incorporação de
elementos populares e ao mesmo tempo mágicos pela religiosidade sistematizada pelos
sacerdotes. É que os cultos védicos mais antigos — conforme ressalta Oldenberg — são
cultos das camadas proprietárias, enquanto que o ritual m á g i c o é u m antigo patrimônio
das massas. Mas o mesmo ocorre t a m b é m c o m as profedas. E m relação ao antigo budismo,
produto das alturas mais sublimes da contemplação intelectual nobre, a religiosidade ma-
hâyâna constitui uma popularização cada v e z mais p r ó x i m a da magia pura o u , pelo menos,
do ritualismo sacramental. Nada diferente sucedeu às doutrinas de Zaratustra, de Lao-tse
e dos reformadores religiosos hinduístas e t a m b é m , e m grande extensão, à doutrina de
M a o m é , logo que sua f é se transformou n u m a religião de leigos. O Zend-Avesta sancionou
até o culto de H a o m a , expressa e prindpalmente combatido por Zaratustra, só que despo-
jado, talvez, de alguns componentes báquicos por ele condenados. O hinduísmo mostrou
sempre de novo a tendência a aproximar-se cada vez mais da magia o u , pelo menos,
da soteriologia sacramental semimágica. A propaganda do islã, na África, baseia-se princi-
palmente no fundamento da magia entre as massas, condenada pelo islã antigo, sobrepu-
jando assim toda outra religiosidade. Esse processo, muitas vezes considerado uma "deca-
d ê n c i a " o u "fossilização" das profecias, é quase inevitável. Pois, sem dúvida, o próprio
profeta é geralmente u m demagogo leigo autocrático que quer substituir a tradicional
graça ritualista dos sacerdotes pela sistematização ético-ideológica. Mas a crença que encon-
tra entre os leigos está, e m geral, baseada no fato de ele possuir u m carisma, e isto significa,
e m regra, ser u m mago, só que muito maior e mais poderoso do que os outros, possuir
u m poder nunca visto sobre os d e m ô n i o s e até sobre a morte, ressuscitar os mortos e
porventura ele mesmo o u fazer outras coisas que outros magos n ã o podem fazer. Nada
lhe adianta protestar contra semelhantes exigências, pois após sua morte, o processo irá
continuar. Para sobreviver de alguma f o r m a entre as amplas camadas de leigos, ele tem
de se tornar objeto d e u m culto, isto é, encarnação de u m deus, ou as necessidades dos
leigos, mediante seleção, fazem com que sobreviva sua doutrina na f o r m a que melhor
se adapte a elas.
Estes dois tipos de influência — o poder do c a r i s m a p r o f é t i c o e os costumes
persistentes das massas — atuam, portanto — e e m muitos aspectos e m sentido contrário
— , sobre o trabalho sistematizador dos sacerdotes. No entanto, m e s m o prescindindo-se
da p r o f e c i a , que quase s e m p r e procede de círculos leigos o u neles se a p ó i a , esses
círculos i n c l u e m outros poderes a l é m dos tradicionalistas. A o lado deles, t a m b é m o
racionalismo dos leigos representa u m poder que os sacerdotes t ê m de enfrentar. Estra-
tos diversos p o d e m ser portadores desse racionalismo laico.

5 7. E s t a m e n t o s , c l a s s e s e r e l i g i ã o

A religiosidade da camada camponesa, p. 321 — Caráter urbano da religiosidade cristã primitiva,


p. 323 — Aristocracia e religiosidade. O cavaleiro combatente pela fé, p. 324 — Burocracia
e religiosidade, p. 325 — Diversidade da religiosidade "burguesa", p. 326 — Racionalismo econô-
mico e ético-religioso, p. 328 — Atitude religiosa atípica da pequena burguesia; religiosidade
dos artesãos, p. 328 — A religiosidade ética de salvação dos negativamente privilegiados, p.
331 — Condicionamento da religiosidade de salvação pela classe e pelo estamento, p. 332 —
Religiosidade dos párias judaicos e hindus. Ressentimento, p. 336 — Formação do caráter das
religiões pelas camadas intelectuais, p. 340 — Intelectualismo pequeno-burguês no judaísmo
e cristianismo primitivos, p. 345 — Intelectualismo nobre e intelectualismo plebeu, intelectua-
lismo dos párias e religiosidade das seitas, p. 347 — Constituição de congregações dos religiosa-
mente "iluminados", na Europa ocidental, p. 350
ECONOMIA E SOCIEDADE 321

O destino do c a m p o n ê s está t ã o fortemente v i n c u l a d o à natureza, tão dependente


de processos o r g â n i c o s e f e n ô m e n o s naturais, e economicamente é t ã o p o u c o suscetível
de u m a sistematização r a c i o n a l que ele, e m g e r a l , somente costuma tornar-se portador
de u m a religiosidade q u a n d o está a m e a ç a d o , p o r poderes interiores (fiscais o u senho-
r i a i s ) o u exteriores (pol í ti c o s ) de ser feito e s c r a v o o u proletário. T a n t o a p r i m e i r a
quanto a última situação — a a m e a ç a e x t e r i o r e a o p o s i ç ã o ao p o d e r dos senhores
territoriais (que, c o m o s e m p r e , e r a m na Antiguidade ao m e s m o t e m p o habitantes da
c i d a d e ) — , apresenta-se, p o r e x e m p l o , na antiga religião israelita. O s documentos m a i s
antigos, particularmente o Canto d e D é b o r a , m o s t r a m que a luta dos confederados,
e m sua m a i o r i a camponeses, c u j a associação pode ser c o m p a r a d a à dos etólios, samnitas
e suíços (à deste ú l t i m o t a m b é m pelo fato d e a grande v i a c o m e r c i a l d o E g i t o ao E u f r a t e s ,
atravessando o país, ter c r i a d o u m a situação de " p a í s de t r â n s i t o " semelhantemente
ao que o c o r r e c o m a Suíça, o u seja, u m a e c o n o m i a m o n e t á r i a precoce e contato c o m
outras c u l t u r a s ) que essa luta f o i dirigida contra os senhores de terras filisteus e cananeus
que m o r a v a m nas cidades, cavaleiros que l u t a v a m e m c a r r o s d e f e r r o , " g u e r r e i r o s
treinados desde a j u v e n t u d e " ( c o m o se diz d e G o l i a s ) e que tentavam e x t o r q u i r tributos
dos camponeses das zonas montanhosas " d e onde e m a n a m e l e l e i t e " . F o i u m a conste-
l a ç ã o d e g r a n d e alcance que essa luta, assim c o m o a u n i f i c a ç ã o dos estamentos e a
e x p a n s ã o do p e r í o d o mosaico, tenha se repetido s e m p r e sob a liderança de salvadores
da religião de J e o v á (Maschiach, Messias, c o m o s ã o denominados G e d e ã o e seus iguais,
os chamados " j u í z e s " ) E m v i r t u d e dessa circunstância, penetrou já na antiga d e v o ç ã o
camponesa u m pragmatismo religioso que se e l e v o u acima dos cultos camponeses co-
muns. Í O j n l t o d e J e o v á , ligado às leis sociais mosaicas, s ó assumiu definitivamente
o caráter de u m a autêntica r e l i g i ã o ética n a polis de J e r u s a l é m j M a s ali t a m b é m , c o m o
mostra o matiz social da p r o f e c i a , c o m a participação d o m o r a l i s m o social dos pequenos-
burgueses agrícolas, dirigido contra os grandes proprietários de terras e d e d i n h e i r o
que m o r a v a m n a cidade, e c o m referência às disposições sociais da c o n c i l i a ç ã o esta-
mental mosaica. E m todo caso, p o r é m , a religiosidade profética n ã o se encontra especifi-
camente sob influência camponesa. No m o r a l i s m o do p r i m e i r o e ú n i c o t e ó l o g o da litera-
tura o f i c i a l h e l é n i c a , H e s í o d o , fazia-se sentir t a m b é m a p r e s e n ç a de u m destino p l e b e u
típico. Mas ele decerto n ã o e r a u m " c a m p o n ê s " típico. Q u a n t o m a i s o desenvolvimento
de u m a c u l t u r a se orienta pelo m u n d o dos camponeses — R o m a , n o Ocidente, a í n d i a ,
n a Ásia o r i e n t a l , o E g i t o , n o O r i e n t e P r ó x i m o — tanto mais precisamente esse elemento
populacional pesa n o prato da b a l a n ç a d o tradicional e tanto mais carece a religiosidade,
pelo m e n o s a popular, de u m a r a c i o n a l i z a ç ã o ética. T a m b é m n o desenvolvimento poste-
r i o r das religiões judaica e cristã, os camponeses n ã o a p a r e c e m c o m o portadores de
movimentos éticos r a c i o n a i s , o u o f a z e m de m o d o diretamente negativo ( c o m o n o judaís-
m o ) o u ( c o m o n o c r i s t i a n i s m o ) s ó excepcionalmente, e e n t ã o e m f o r m a comunista
revolucionária. Somente a seita puritana dos donatistas, n a Á f r i c a r o m a n a , a província
c o m a m a i o r a c u m u l a ç ã o de terras, p a r e c e ter encontrado g r a n d e a d e s ã o e m círculos
camponeses, m a s constitui, s e m d ú v i d a , u m a e x c e ç ã o na Antiguidade. O s taboritas —
n a m e d i d a e m que p r o c e d e m de círculos camponeses — a propaganda d o " d i r e i t o
d i v i n o " n a g u e r r a dos camponeses n a A l e m a n h a , os pequenos l a v r a d o r e s comunistas
radicais n a Inglaterra e, sobretudo, os m e m b r o s das seitas camponesas russas t ê m ,
e m r e g r a , pontos de apoio d o tipo d o c o m u n i s m o a g r á r i o e m instituições comunitárias
r u r a i s d e f o r m a m a i s o u m e n o s desenvolvida: e s t ã o a m e a ç a d o s de p r o l e t a r i z a çã o e
se v o l t a m contra a igreja o f i c i a l , e m p r i m e i r o lugar, d e v i d o à c o n d i ç ã o desta d e receptora
do d í z i m o e sustentáculo dos poderes fiscais e senhoriais. S e u v í n c u l o c o m e x i g ê n c i a s
religiosas s ó f o i possível; nesta f o r m a , sobre o fundamento de u m a religiosidade ética
já existente, c o m compromissos específicos que p o d i a m s e r v i r de pontos de partida
322 MAXWEBER

de u m direito natural r e v o l u c i o n á r i o — assunto que e x a m i n a r e m o s alhures. N ã o é


possível, portanto, e m solo asiático, onde a c o m b i n a ç ã o da profecia religiosa c o m ten-
dências revolucionárias (China)apresenta-se de f o r m a muito diferente e n ã o c o m o m o v i -
mento especificamente c a m p o n ê s . O s camponeses r a r a m e n t e s ã o u m a camada que origi-
nalmente tenha sido portadora de u m a religiosidade n ã o - m á g i c a . Mas a profecia de
Zaratustra apelou, a o que parece, ao racionalismo ( r e l a t i v o ) d o trabalho agrícola e
p e c u á r i o ordenado, lutando contra a religiosidade orgiástica e atormentadora de animais
dos falsos profetas (provalmente ligada, c o m o o culto extático combatido p o r Moisés,
ao d e s p e d a ç a m e n t o bacântico de bovinos). U m a v e z que c o n s i d e r o u o solo l a v r a d o
c o m o magicamente " p u r o " , sendo a l a v o u r a , portanto, o ato absolutamente grato a
D e u s , o parsismo c o n s e r v o u t a m b é m a p ó s sua a d a p t a ç ã o à v i d a cotidiana, bastante
modificadora e m r e l a ç ã o à profecia originária, u m caráter claramente a g r á r i o e, por
conseguinte, especificamente antiburguês e m suas disposições ético-sociais. Mas, na
medida e m q u e a p r o f e c i a de Zaratustra coloca e m m o v i m e n t o interesses e c o n ô m i c o s
p r ó p r i o s , estes d e v e m ter sido, originalmente, m a i s os de príncipes e senhores de terras
na capacidade tributária de seus camponeses d o que os destes. E m r e g r a , a camada
camponesa p e r m a n e c e f i x a d a n a magia m e t e o r o l ó g i c a e n a magia animista o u n o ritua-
lismo, sobre o fundamento de u m a religiosidade ética, p o r é m , rigorosamente formalista
do do ut des e m r e l a ç ã o ao deus e ao sacerdote.
O fato de justamente o c a m p o n ê s ser considerado o tipo e s p e c í f i c o do h o m e m
piedoso e grato a D e u s é, s e m d ú v i d a , u m f e n ô m e n o m o d e r n o — prescindindo-se
d o zaratustrismo e dos e x e m p l o s isolados de u m a o p o s i ç ã o feudal-patriarcalista o u ,
p o r outro lado, de u m a o p o s i ç ã o intelectualista de literatos m e l a n c ó l i c o s , ambas contra
a cultura u r b a n a e suas c o n s e q ü ê n c i a s . Nenhuma das religiões de s a l v a ç ã o mais impor-
tantes da Ásia oriental conhece esta idéia. Para a religiosidade de s a l v a ç ã o da índia
e, dentro desta, c o m m a i o r c o n s e q ü ê n c i a , p a r a o budismo, o c a m p o n ê s é u m a pessoa
religiosamente suspeita o u diretamente malvista ( p o r causa da ahimsâ, a p r o i b i ç ã o abso-
luta de m a t a r ) ( A religiosidade israelita da é p o c a pré-profética é ainda u m a religiosidade
fortemente camponesa. Acuxuatrário^aLglorificação da agricultura c o m o grata a D e u s ,
na é p o c a posterior ao e x í l i o , representa a o p o s i ç ã o literária e patriarcal ao desenvol-
v i m e n t o da b u r g u e s i a j A religiosidade efetiva, naquela é p o c a , já deve ter sido outra,
e mais ainda na é p o c a farisaica. Para a posterior d e v o ç ã o congregacional judaica dos
chaberim, " c a m p o n ê s " e " a t e u " s ã o conceitos simplesmente idênticos, [ £ q u e m _ n ã o
é habitante de u m a cidade é tanto política quanto religiosamente u m j u d e u de segunda
categoria) Pois assim c o m o sob as leis rituais budistas e hinduístas, t a m b é m sob as
judaicas é praticamente impossível v i v e r de m o d o realmente correto c o m o c a m p o n ê s .
jA teologia rabínica posterior ao e x í l i o e mais ainda a talmúdica s ã o , c o m suas conse-
qüências práticas, diretamente dificultadoras e m r e l a ç ã o à a g r i c u l t u r a ) A i n d a hoje, a
c o l o n i z a ç ã o sionista da Palestina t r o p e ç a , p o r e x e m p l o , c o m o o b s t á c u l o absoluto, em
u m produto t e o l ó g i c o d o j u d a í s m o posterior: o ano sabático, p a r a o q u a l os rabinos
da E u r o p a oriental ( e m o p o s i ç ã o ao d o u t r i n a r i s m o da ortodoxia a l e m ã ) t i v e r a m de
instituir u m a dispensa justificada pelo caráter especificamente grato a D e u s dessa coloni-
zação. |No cristianismo p r i m i t i v o , chama-se ao p a g ã o simplesmente de h o m e m d o campo
(paganus) A i n d a as igrejas medievais, e m sua doutrina o f i c i a l (Tomás de A q u i n o ) tratam
o c a m p o n ê s , n o fundo, c o m o cristão d e categoria i n f e r i o r , s e m p r e c o m pouquíssima
c o n s i d e r a ç ã o ) A g l o r i f i c a ç ã o religiosa d o c a m p o n ê s e a crença n o v a l o r específico de
sua d e v o ç ã o é s ó produto de u m desenvolvimento m o d e r n o . Inicialmente, é u m a atitude
específica d o luteranismo, n u m contraste bastante sensível c o m o ç a l v i n i s m o e com
a m a i o r i a das seitas protestantes, e, m a i s tarde, da m o d e r n a religiosidade russa, influen-
ciada pela eslavofilia. Portanto, d e comunidades religiosas q u e , pela natureza de sua
ECONOMIA E SOCIEDADE 323

o r g a n i z a ç ã o , e s t ã o fortemente vinculadas a interesses autoritários p r i n c i p e s c o s e aristo-


cráticos e deles dependem. Para o luteranismo m o d e r n i z a d o — pois esta n ã o erá a i n d a
a atitude d o p r ó p r i o L u t e r o — , o interesse f u n d a m e n t a l estava na luta contra o raciona-
l i s m o intelectualista e o l i b e r a l i s m o político; p a r a a ideologia religiosa camponesa e s l a v ó -
f i l a , esse interesse agregava-se ao da luta contra o capitalismo e o socialismo m o d e r n o ;
enquanto que a g l o r i f i c a ç ã o d o sectarismo russo pelos mrodniki p r o c u r a v a p ô r e m
r e l a ç ã o o protesto anti-racionalista d o intelectualismo e a revolta da c a m a d a camponesa
proletarizada contra a igreja b u r o c r á t i c a , que estava a s e r v i ç o dos poderes d o m i n a d o r e s ,
e elevar assim ambos a u m n í v e l religioso. E m todos estes casos trata-se, portanto,
e m g r a u muito f o r t e , de t e n d ê n c i a s reacionárias dirigidas contra o desenvolvimento
do racionalismo m o d e r n o , cujas portadoras s ã o as cidades. E m o p o s i ç ã o ao c a m p o ,
a cidade f o i considerada, n o passado, a sede da d e v o ç ã o , e ainda n o s é c u l o X V I I B a x t e r
v ê nas relações dos t e c e l õ e s de K i d d e r m i n s t e r c o m a grande cidade d e L o n d r e s (nascidas
d o desenvolvimento da indústria c a s e i r a ) expressamente u m f o m e n t o da religiosidade
entre eles. (De fato, a religiosidade cristã p r i m i t i v a é u m a religiosidade u r b a n a e, confor-
m e demonstrou de m o d o convincente H a r n a c k , a importância do cristianismo cresce,
sendo iguais as demais circunstâncias, c o m o tamanho da c i d a d e j Na Idade M é d i a ,
tanto a fidelidade à I g r e j a quanto a religiosidade sectária estão especificamente desenvol-
vid as sobre o solo u r b a n o . É altamente i m p r o v á v e l que u m a religiosidade congrega-
cional organizada, c o m o a a l c a n ç a d a pelo cristianismo p r i m i t i v o , possa ter-se desenvol-
v i d o , de tal f o r m a , f o r a d e u m a v i d a congregacional u r b a n a — " u r b a n a " n o sentido
ocidental da p a l a v r a . \Pois essa religiosidade p r e s s u p õ e , c o m o c o n c e p ç õ e s já existentes,
a m p t u r a das b a r r e i r a s d e tabu e n t r e os clãs e aquela idéia de cargo o u f u n ç ã o , o
conceito de comunidade c o m o ('instituição') o u seja, c o m o estrutura corporativa a
serviço de fins objetivos precisos, que e l a , p o r sua v e z , fortaleceu e cuja n o v a aceitação
pelo desenvolvimento u r b a n o da Idade M é d i a e u r o p é i a f o i p o r ela altamente facilitada.
Mas essas c o n c e p ç õ e s f o r a m plenamente desenvolvidas, n o m u n d o inteiro, apenas n o
solo da cultura m e d i t e r r â n e a , especialmente n o d o direito u r b a n o h e l é n i c o e, definitiva-
mente, d o romano. Mas t a m b é m as qualidades específicas do cristianismo c o m o religião
ética da s a l v a ç ã o e c o m o d e v o ç ã o pessoal e n c o n t r a r a m s e u t e r r e n o de desenvolvimento
g e n u í n o nas cidades, e a l i p r o d u z i r a m s e m p r e novos rebentos, e m o p o s i ç ã o à interpre-
tação modificada e m sentido ritualista, m á g i c o o u formalista que f o i f a v o r e c i d a pela
p r e p o n d e r â n c i a dos poderes feudais.

A n o b r e z a g u e r r e i r a e todos os poderes feudais dificilmente costumam tornar-se


portadores de u m a ética religiosa r a c i o n a l . O m o d o de v i v e r d o g u e r r e i r o n ã o tem
afinidade n e m c o m a idéia de u m a p r o v i d ê n c i a bondosa n e m c o m a de exigências
éticas sistemáticas de u m deus s u p r a m u n d a n o . Conceitos c o m o " p e c a d o " , " r e d e n ç ã o " ,
" h u m i l d a d e " religiosa n ã o apenas c o s t u m a m estar muito distantes do sentimento de
dignidade de todas as camadas politicamente dominantes, sobretudo d o da nobreza
g u e r r e i r a , c o m o diretamente o o f e n d e m . Aceitar u m a religiosidade que o p e r a c o m
esses conceitos e inclinar-se ante o profeta o u sacerdote d e v e p a r e c e r a u m h e r ó i de
g u e r r a o u a u m h o m e m n o b r e — tanto o r o m a n o ainda d o t e m p o d e Tácito quanto
o m a n d a r i m confuciano — u m ato i g n ó b i l e indigno. E n f r e n t a r a m o r t e e as irraciona-
lidades d o destino h u m a n o c o m coragem é p a r a o g u e r r e i r o u m a coisa cotidiana, e
os riscos e aventuras deste m u n d o o c u p a m tanto e s p a ç o e m sua v i d a que n ã o exige
n e m aceita d e b o m g r a d o d e qualquer religião outra coisa que n ã o a p r o t e ç ã o contra
feitiçarias e ritos c e r i m o n i a i s , adequados a o sentimento d e dignidade estamental, que
se t o r n a m componentes da c o n v e n ç ã o estamental, e, q u a n d o m u i t o , ainda preces sacer-
dotais p e l a vitória o u p o r u m a m o r t e f e l i z , que conduza ao c é u dos h e r ó i s . O h e l e n o
culto, c o n f o r m e já m e n c i o n a m o s noutra o c a s i ã o , s e m p r e p e r m a n e c e u t a m b é m u m guer-
324 MAX WEBER

r e i r o , pelo menos e m idéia. No que se r e f e r e à a l m a , a simples crença animista, que


deixa e m suspenso a f o r m a de existência n o a l é m e, e m última instância, a deste m u n d o ,
mas, e m todo caso, tem certeza quase absoluta de que a passagem mais miserável
por este m u n d o é preferível a reinar n o Hades, p e r m a n e c e u entre os helenos c o m o
c o n v i c ç ã o n o r m a l até a é p o c a de despolitização completa, s ó tendo sido superada e m
parte pelos mistérios, c o m seu oferecimento de meios p a r a o m e l h o r a m e n t o ritualístico
do destino neste m u n d o e n o a l é m , p o r é m radicalmente pela religiosidade congrega-
cional ó r f i c a , c o m sua doutrina da metempsicose. É p o c a s de forte c o m o ç ã o religiosa
profética o u r e f o r m a d o r a arrastam t a m b é m , e f r e q ü e n t e m e n t e , a nobreza ao caminho
da religiosidade ética profética, porque penetram todas as camadas estamentais e de
classe e porque a nobreza costuma ser a p r i m e i r a portadora da e d u c a ç ã o leiga. No
entanto, a cotidianização da religiosidade profética costuma causar rapidamente a retira-
da da nobreza do círculo das camadas religiosamente agitadas. J á a é p o c a das guerras
religiosas na França mostra os conflitos éticos dos sínodos huguenotes, por e x e m p l o ,
c o m u m líder c o m o C o n d é . A s s i m c o m o a inglesa e a francesa, a nobreza escocesa
retirou-se afinal quase totalmente da religiosidade calvinista, dentro da qual ela, ou
pelo menos algumas de suas camadas, desempenhara inicialmênte u m papel importante.
A religiosidade profética, por sua própria natureza, é c o m p a t í v e l c o m o sentimento
estamental de cavaleiros q u a n d o suas promessas r e c a e m sobre o combatente pela fé.
Essa c o n c e p ç ã o p r e s s u p õ e a exclusividade de u m ú n i c o deus universal e a a b j e ç ã o
m o r a l dos infiéis, c o m o seus inimigos, cuja existência tranqüila provoca sua justa cólera.
Está, p o r isso, ausente da Antiguidade ocidental, b e m c o m o e m toda a religiosidade
asiática, c o m e x c e ç ã o de Zaratustra. Mas t a m b é m neste ú l t i m o caso falta ainda a c o n e x ã o
direta entre a luta contra a descrença e as promessas religiosas. Esta foi criada, pela
p r i m e i r a vez, pelo islã. Precursores e t a m b é m , provavelmente, modelos disso f o r a m
os compromissos do deus judaico c o m seu povo, tal c o m o os c o m p r e e n d e u e interpretou
M a o m é , a seu modo, depois de transformar-se de dirigente de u m c o n v e n t í c u l o pietista
e m Meca n o p o d e s t à deJathrib-Medina e definitivamente lhe ter sido recusado o reconhe-
cimento c o m o profeta pelos judeus. iAs antigas guerras da c o n f e d e r a ç ã o israelita, sob
a d i r e ç ã o dos salvadores de J e o v á , f o r a m consideradas guerras " s a n t a s " pela tradição.
A g u e r r a santa, isto é, travada e m n o m e de u m deus especialmente para a e x p i a ç ã o
de u m sacrilégio, t a m b é m n ã o é estranha à Antiguidade, particularmente à helénica,
c o m todas suas conseqüências: e x p u l s ã o e destruição absoluta dos inimigos e de todos
os seus haveres. (Mas, no caso dos judeus, o específico era que o povo de J e o v á , como
c o n g r e g a ç ã o especial deste, c o m p r o v a v a seu prestígio diante dos inimigos^ Por isso,
depois de J e o v á tornar-se o deus u n i v e r s a l , a profecia e a religiosidade dos salmos
c r i a r a m , e m lugar da posse da terra da p r o m i s s ã o , a promessa muito mais extensa
da exaltação de I s r a e l , c o m o p o v o de J e o v á , sobre os outros povos que s e r i a m , todos
eles, algum dia obrigados a s e r v i r a J e o v á e prostrar-se diante de I s r a e l J Dessa promessa
M a o m é faz o mandamento da g u e r r a religiosa até a s u b m i s s ã o dos infiéis ao d o m í n i o
político e tributário dos crentes. N ã o é exigido o e x t e r m í n i o daqueles, na medida e m
que pertencem a " r e l i g i õ e s l i v r e s c a s " ; ao contrário, é recomendado p o u p á - l o s já por
interesses financeiros. ^Só a g u e r r a religiosa cristã está sob a divisa agostiniana coge
intrare. os infiéis ou hereges somente t ê m a escolha entre c o n v e r s ã o ou e x t e r m í n i o ;
Muito mais do que a g u e r r a religiosa dos cruzados — aos quais o papa Urbano deu
a entender, c o m toda ênfase, a necessidade de e x p a n s ã o a f i m de obter feudos para
seus descendentes — , a islâmica, por manifestar seu interesse mais claramente, foi
u m empreendimento substancialmente orientado p o r interesses de rendas feudais, para
conquistar terras de senhorio. Ainda n o direito feudal turco, nas regras referentes à
c o n c e s s ã o de prebenda de sipaios, o combate pela f é constitui u m importante fator
ECONOMIA E SOCIEDADE 325

de qualificação. A s promessas q u e , p r e s c i n d i n d o da p o s i ç ã o de d o m i n a d o r , estão v i n c u -


ladas, m e s m o n o islã, à propaganda g u e r r e i r a , e especialmente, portanto, à d o p a r a í s o
islâmico c o m o recompensa pela m o r t e n a g u e r r a religiosa, s ã o , naturalmente, p r o -
messas de s a l v a ç ã o , n o v e r d a d e i r o sentido da p a l a v r a , tanto quanto a promessa do
Walhalla, o u a do p a r a í s o dos h e r ó i s , anunciado ao kshatriya indiano que m o r r e e m
combate ( o h e r ó i de g u e r r a q u e fica farto d a v i d a logo que avista o f i l h o de s e u f i l h o )
o u a d e qualquer o u t r o p a r a í s o dos heróis. E aqueles elementos religiosos d o antigo
islã, que r e p r e s e n t a m o caráter de u m a religião ética de s a l v a ç ã o , r e c u a r a m fortemente,
e m r e l a ç ã o a essas promessas, enquanto o islã continuava sendo substancialmente u m a
religião de g u e r r e i r o s . A religiosidade das ordens d e cavaleiros medievais celibatários
— correspondentes à o r d e m islâmica dos g u e r r e i r o s e criadas nas cruzadas contra o
islã — , particularmente a dos t e m p l á r i o s , b e m c o m o a dos sikhs da índia — procedente
da f u s ã o de idéias islâmicas c o m u m h i n d u í s m o n o p r i n c í p i o estritamente pacifista e
mantida v i v a pela p e r s e g u i ç ã o ao i d e a l da luta i m p l a c á v e l pela f é — e, p o r f i m , a
dos monges budistas g u e r r e i r o s d o J a p ã o , que temporariamnte d e s e m p e n h a r a m u m
papel politicamente importante, e m g e r a l s ó f o r m a l m e n t e , t i n h a m algo a v e r c o m u m a
"religiosidade de s a l v a ç ã o " . M e s m o sua ortodoxia f o r m a l e r a muitas vezes de autenti-
cidade duvidosa.
E n q u a n t o o estamento g u e r r e i r o , nas f o r m a s da c a v a l a r i a , ocupa geralmente u m a
p o s i ç ã o negativa diante da religiosidade d e s a l v a ç ã o e congregacional, esta r e l a ç ã o
é e m parte diferente dentro de exércitos " p e r m a n e n t e s " , isto é, c o m o r g a n i z a ç ã o essen-
cialmente burocrática e c o m " o f i c i a i s " . O e x é r c i t o c h i n ê s , n o entanto, t e m c o m o q u a l -
quer outra p r o f i s s ã o s e u deus especial, u m heros estatalmente canonizado. E a a d e s ã o
f e r v o r o s a d o e x é r c i t o bizantino aos iconoclastas n ã o p r o v e i o de princípios puritanos,
mas da atitude adotada p o r suas p r o v í n c i a s de recrutamento, influenciada pelo islã.
Mas n o e x é r c i t o r o m a n o do p r i n c i p a d o , desde o s é c u l o I I , desempenhou u m p a p e l
muito importante, a l é m d e outros cultos p r e f e r i d o s que a q u i n ã o interessam, a religião
congregacional de Mitra c o m suas promessas do a l é m , concorrente d o cristianismo.
Isto sobretudo (mas n ã o e x c l u s i v a m e n t e ) n a camada dos centuriões, isto é, dos oficiais
subalternos c o m direito a u m a c o l o c a ç ã o c i v i l . S ó que as e x i g ê n c i a s p r o p r i a m e n t e éticas
dos mistérios de Mitra s ã o modestas e m u i t o gerais: é u m a r e l i g i ã o de p u r e z a substan-
cialmente ritualista e exclusivamente m a s c u l i n a — as m u l h e r e s estão excluídas — e,
e m agudo contraste c o m o cristianismo, u m a das doutrinas d e s a l v a ç ã o mais masculinas
existentes, c o m u m a g r a d a ç ã o hierárquica de c o n s a g r a ç õ e s e distinções religiosas e,
ainda, e m o p o s i ç ã o ao cristianismo, n ã o dirigida d e m o d o e x c l u s i v o contra a participação
— n ã o r a r a — noutros cultos e mistérios, e p o r isso protegida pelos imperadores desde
C ô m o d o , que f o i o p r i m e i r o a aceitar as c o n s a g r a ç õ e s ( c o m o n o início os reis da Prússia
aceitavam a q u a l i d a d e de m e m b r o s das lojas m a ç ó n i c a s ) até J u l i a n o , s e u ú l t i m o r e p r e -
sentante entusiasmado. A l é m das promessas referentes a este m u n d o , c o m o s e m p r e
concatenadas c o m as d o a l é m , d e s e m p e n h o u certamente algum p a p e l na f o r ç a de a t r a ç ã o
e x e r c i d a p o r esse culto sobre os oficiais o caráter substancialmente m á g i c o - s a c r a m e n t a l
da dispensa d a graça e a p r o g r e s s ã o hierárquica nas c o n s a g r a ç õ e s .
S e m d ú v i d a , f o r a m esses os m e s m o s fatores que r e c o m e n d a r a m o culto aos funcio-
nários não-militares, e m cujos círculos este f o i t a m b é m estimado. É certo que t a m b é m
encontramos, d e n t r o do f u n c i o n a l i s m o , rudimentos d e inclinações p a r a u m a especifica
religiosidade d e salvação. E x e m p l o s disso s ã o os f u n c i o n á r i o s a l e m ã e s pietistas — m a n i -
festação d o fato d e que a piedade ascético-burguesa, n a A l e m a n h a , encontrou c o m o
representantes de u m m o d o d e v i v e r especificamente " b u r g u ê s " apenas os f u n c i o n á r i o s
e n ã o u m a camada d e e m p r e s á r i o s burgueses — e os generais prussianos realmente
" p i e d o s o s " dos s é c u l o s X V I I I e X I X q u e , n o entanto, s ã o u m f e n ô m e n o m a i s ocasional.
326 MAX WEBER

Mas, e m r e g r a , n ã o é essa a atitude de u m a b u r o c r a c i a dominante diante da religiosidade.


Esta é s e m p r e portadora, p o r u m lado, de u m racionalismo prosaico muito extenso
e, p o r outro, do ideal da " o r d e m " e tranqüilidade disciplinadas, c o m o p a d r ã o de valor
absoluto. U m p r o f u n d o desprezo de toda religiosidade i r r a c i o n a l , combinado c o m o
conhecimento d e sua utilidade c o m o m e i o de d o m e s t i c a ç ã o , costuma caraterizar a buro-
cracia. A s s i m já e r a n a Antiguidade, entre os f u n c i o n á r i o s romanos. A s s i m é hoje, ainda,
c o m a b u r o c r a c i a burguesa e a m i l i t a r 1 . A p o s i ç ã o específica de u m a b u r o c r a c i a e m
r e l a ç ã o a coisas religiosas manifesta-se de f o r m a clássica n o confucionismo: ausência
absoluta d e toda "necessidade de s a l v a ç ã o " e, e m g e r a l , d e todas as a m a r r a ç õ e s da
ética q u e ultrapassem o r e i n o deste m u n d o ; substituição da ética p o r u m a doutrina
artificial — p u r a m e n t e oportunista-utilitária quanto ao c o n t e ú d o , p o r é m esteticamente
n o b r e — de u m convencionalismo estamental b u r o c r á t i c o ; afastamento de toda religio-
sidade i n d i v i d u a l e m o c i o n a l e i r r a c i o n a l q u e v á a l é m da crença tradicional nos espíritos;
c o n s e r v a ç ã o do culto aos antepassados e da piedade f i l i a l c o m o fundamento universal
da s u b o r d i n a ç ã o ; "distância e m r e l a ç ã o aos e s p í r i t o s " , cuja influência m á g i c a o funcio-
n á r i o esclarecido despreza, enquanto o supersticioso participa nela c o m o , entre nós,
n o espiritismo, deixando-se, p o r é m , p r o l i f e r a r ambas as coisas c o m o religiosidade popu-
lar, c o m indiferença depreciativa, e respeitando-as e x t e r i o r m e n t e — desde que isto
encontre sua e x p r e s s ã o e m ritos estatais reconhecidos — c o m o parte dos deveres esta-
mental-convencionais. A c o n s e r v a ç ã o inquebrantada da magia, especialmente, do culto
aos antepassados, c o m o garantia da docilidade, possibilitou ali à b u r o c r a c i a a repressão
total de u m desenvolvimento eclesiástico a u t ô n o m o e de toda religiosidade congrega-
cional. A b u r o c r a c i a e u r o p é i a , apesar de desprezar internamente e m g r a u semelhante
toda religiosidade levada a sério, v ê - s e obrigada, n o interesse da d o m e s t i c a ç ã o das
massas, a respeitar oficialmente a religiosidade eclesiástica existente.

* » *

Se, p a r a a p o s i ç ã o religiosa das camadas e m r e g r a mais fortemente privilegiadas


— n o b r e z a e b u r o c r a c i a — , é possível encontrar, apesar de diferenças notáveis, certas
tendências comuns, as camadas p r o p r i a m e n t e " b u r g u e s a s " r e v e l a m , ao contrário, os
mais fortes contrastes. E isso até q u a n d o se prescinde dos contrastes estamentais extre-
mamente marcados que essas camadas d e s e n v o l v e m entre s i . Pois os " c o m e r c i a n t e s " ,
e m p r i m e i r o lugar, p e r t e n c e m e m parte à camada m a i s privilegiada — , c o m o o patri-
ciado u r b a n o da Antiguidade — e m parte, aos párias — c o m o os comerciantes ambu-
lantes q u e nada possuem — , e m parte a camadas privilegiadas, p o r é m estamentalmente
inferiores à n o b r e z a o u ao f u n c i o n a l i s m o , o u a camadas nada o u até negativamente
privilegiadas, p o r é m de fato poderosas — c o m o , pela o r d e m de importância, os "cava-
l e i r o s " r o m a n o s , os metecos h e l é n i c o s , os vestimenteiros medievais e camadas comer-
ciais semelhantes, a l é m dos prestamistas e grandes comerciantes da B a b i l ô n i a , dos co-
merciantes chineses e indianos e, p o r f i m , da " b u r g u e s i a " dos inícios da Idade Moderna.
A atitude d o patriciado c o m e r c i a l e m r e l a ç ã o à religiosidade, independentemente
dessas d i f e r e n ç a s de p o s i ç ã o , mostra e m todas as é p o c a s contrastes peculiares. A orien-

1 Presenciei que os oficiais num cassino, ao aparecer pela primeira vez o Senhor von Egicy (tenente-coronel

aposentado), nutriram a esperança de que S.M., uma vez que seu camarada tinha evidentemente razão
em criticar a ortodoxia, tomaria a iniciativa de afastar de uma vez por todas do culto militar aqueles velhos
contos infantis dos quais nenhuma pessoa honesta poderia afirmar de acreditar neles. Mas, quando, natural-
mente, isso não aconteceu, chegaram logo à conclusão de que, para os recrutas, o ensinamento da Igreja,
tal como é, constitui o melhor alimento.
ECONOMIA E SOCIEDADE 327

tação e n é r g i c a d e s u a v i d a p o r este m u n d o já p o r si m e s m a pouco lhes sugere a a d e s ã o


a u m a religiosidade profética o u ética. O s grandes comerciantes da Antiguidade e da
Idade Média s ã o os representantes de u m m o d o e s p e c í f i c o de " a q u i s i ç ã o ocasional
de d i n h e i r o " intermitente e s e m caráter de e m p r e s a , financiadores dos comerciantes
ambulantes s e m capital e, nos tempos históricos, constituem e m parte u m a n o b r e z a
que, originalmente proprietária d e terras, v e i o à cidade e e n r i q u e c e u p o r esses n e g ó c i o s
ocasionais; e m parte, ao c o n t r á r i o , s ã o u m a camada de comerciantes que a d q u i r i u
terras e mostra tendências a ascender à aristocracia. A eles juntam-se, q u a n d o as necessi-
dades políticas s ã o cobertas na f o r m a de e c o n o m i a m o n e t á r i a , os representantes d o
capitalismo politicamente orientado p o r f o r n e c i m e n t o e crédito ao Estado e do capita-
lismo colonial que existe e m todas as é p o c a s históricas. T o d a s essas camadas jamais
f o r a m portadoras primárias de u m a religiosidade ética o u de salvação. nQuanto_mais
priyilegiadajijDori^
v o l v i m e n t o de u m a religião do a l é m . A religião das cidades mercantis fenícias, aristocrá-
ticas e plutocráticas, é orientada p u r a m e n t e p o r este m u n d o e, p e l o que sabemos, n ã o
é nada profética. Mas a intensidade da religiosidade e o m e d o aos deuses, dotados
c o m traços l ú g u b r e s , são consideráveis. A aristocracia navegadora e g u e r r e i r a da G r é c i a
antiga, entre pirata e comerciante, ao contrário, d e i x o u na Odisséia o documento religio-
so daquilo que lhe agradava, c o m sua grande falta de respeito aos deuses. O deus
taoísta da r i q u e z a , na C h i n a , v e n e r a d o quase universalmente pela camada dos comer-
ciantes, n ã o apresenta n e n h u m t r a ç o ético mas tem caráter puramente m á g i c o . T a m b é m
o culto a Plutão, deus h e l é n i c o da r i q u e z a (predominantemente a g r á r i a ) constitui parte
dos mistérios de Elêusis, os quais, p r e s c i n d i n d o da p u r e z a ritual e da p r o i b i ç ã o do
h o m i c í d i o , n ã o apresentam e x i g ê n c i a ética alguma. C o m u m a política característica,
Augusto p r o c u r o u f a z e r da camada dos libertos, c o m sua grande f o r ç a de capital, a
portadora específica do culto ao i m p e r a d o r , c r i a n d o a dignidade augustal; f o r a disso,
essa camada n ã o apresenta tendências p r ó p r i a s , específicas, e m seus interesses religio-
sos. Na í n d i a , a parte hinduísta da camada dos comerciantes e t a m b é m particularmente
aqueles círculos de banqueiros procedentes dos antigos grandes prestamistas ao Estado
e grandes comerciantes s ã o , e m sua grande m a i o r i a , vaílabhâchâris, isto é, adeptos
do s a c e r d ó c i o vixnuíta d o Gokulastha Gosain, r e f o r m a d o p o r Vallabha S v a m i , e c u l t i v a m
u m a f o r m a da d e v o ç ã o e r o t o m o r f a a K r i s h n a e Râdhâ, cujas r e f e i ç õ e s cultuais e m h o n r a
d o salvador tornaram-se u m a e s p é c i e de banquete sofisticado. As grandes c o r p o r a ç õ e s
d e comerciantes das cidades guelfas da Idade M é d i a , c o m o , p o r e x e m p l o , a A r t e d i
C a l i m a l a , s ã o certamente leais ao papa n a e s f e r a política, mas, p a r a a r r a n j a r - s e c o m
a p r o i b i ç ã o da usura pela I g r e j a , e n c o n t r a m muitas vezes meios relativamente m e c â n i c o s
e que p a r e c e m uma troça.\Os grandes e n o b r e senhores comerciantes da H o l a n d a protes-
tante o c u p a v a m , c o m o a r m i n i a n o s , u m a p o s i ç ã o religiosa especificamente orientada
pelas realidades políticas e e r a m os p r i n c i p a i s adversários do r i g o r i s m o ético calvinista.
Ceticismo o u indiferença s ã o e f o r a m , p o r toda parte, u m a atitude muito difundida
dos grandes comerciantes e grandes financeiros relativamente à religiosidade.

A estes f e n ô m e n o s facilmente c o m p r e e n s í v e i s confronta-se agora o fato de q u e ,


n o passado, as novas f o r m a ç õ e s d e capital, o u , m a i s precisamente, de p a t r i m ô n i o s
utilizados continuamente, e m f o r m a d e u m a e m p r e s a e de m a n e i r a r a c i o n a l , p a r a obter
l u c r o — e isto aplica-se particularmente ao capital industrial, isto é , capitai v a l o r i z a d o
d e m o d o especificamente m o d e r n o — , estavam d e f o r m a extremamente saliente e c o m
f r e q ü ê n c i a extraordinária concatenadas c o m u m a religiosidade congregacional r a c i o n a l -
ética das respectivas camadas sociais. J á n o c o m é r c i o da índia separam-se (geografica-
m e n t e ) p o r u m lado, os adeptos da r e l i g i ã o de Zaratustra ( p a r s e s ) eticamente rigorista
— sobretudo p o r s e u mandamento incondicional d e v e r a c i d a d e — a i n d a e m sua f o r m a
328 MAX WEBER

m o d e r n i z a d a , que interpreta os mandamentos ritualistas de p u r e z a c o m o prescrições


higiênicas, religião cuja m o r a l e c o n ô m i c a originalmente reconhecia c o m o grata a D e u s
apenas a agricultura e c o n d e n a v a todas as f o r m a s de a q u i s i ç ã o burguesas, e, p o r outro
lado, a seita d e J a i n a , isto é, a religiosidade mais especificamente ascética existente
n a índia, c o m os valia bhâcháris já mencionados (de todo m o d o , apesar d o caráter anti-ra-
cional dos cultos, u m a doutrina de s a l v a ç ã o constituída c o m o congregacional) Se é
v e r d a d e que a religiosidade dos comerciantes islâmicos é , c o m e x t r e m a f r e q ü ê n c i a ,
de d e r v i x e s , n ã o posso decidir, m a s n ã o parece i m p r o v á v e l . A religiosidade congrega-
cional judaica, eticamente r a c i o n a l , é já na Antiguidade, e m alto g r a u , de comerciantes
e prestamistas. E m g r a u m e n o r , p o r é m p e r c e p t í v e l , t a m b é m a congregacional cristã
— herético-sectária o u que se a p r o x i m a d o sectarismo — , e r a na Idade Média u m a
religiosidade " b u r g u e s a " , ainda que n ã o de comerciantes, e isto tanto mais quanto
m a i s r a c i o n a l fosse sua ética. Mas f o r a m sobretudo todas as f o r m a s d o protestantismo
e sectarismo ascético, na E u r o p a ocidental e oriental — os zwinglianos, calvinistas,
reformistas, batistas, menonitas, quacres, pietistas r e f o r m a d o s e, c o m m e n o r intensi-
dade, t a m b é m pietistas luteranos, metodistas, b e m c o m o as seitas russas cismáticas
e heréticas, principalmente as racionais pietistas e, entre estas, e m especial os stundistas
skopetsi — , q u e se concatenaram, ainda q u e de f o r m a m u i t o d i v e r s a , quase sempre
de m a n e i r a m u i t o íntima c o m desenvolvimentos e c o n ô m i c o s racionais e — onde sua
existência e r a economicamente possível — capitalistas. E tanto m a i s forte torna-se,
e m g e r a l , a i n c l i n a ç ã o à a d e s ã o a u m a religiosidade congregacional eticamente racional
quanto mais n o s afastamos daquelas camadas portadoras d o capitalismo sobretudo poli-
ticamente condicionado, tal c o m o existia, desde os tempos de H a m u r á b i , onde quer
que houvesse a r r e n d a m e n t o de impostos, l u c r o p o r f o r n e c i m e n t o ao Estado, g u e r r a ,
pirataria, u s u r a e m g r a n d e escala e c o l o n i z a ç ã o , e quanto m a i s nos a p r o x i m a m o s das
camadas portadoras de u m a m o d e r n a economia e m p r e s a r i a l r a c i o n a l , isto é , camadas
cujo caráter e c o n ô m i c o de classe e r a b u r g u ê s ( n u m sentido a ser explicado mais t a r d e )
A m e r a existência de u m capitalismo de natureza q u a l q u e r evidentemente n ã o basta,
d e m o d o a l g u m , p a r a g e r a r , p o r s i m e s m a , u m a ética h o m o g ê n e a e muito m e n o s uma
religiosidade congregacional ética. D e i x a m o s p a r a mais tarde considerar a natureza
da c o n e x ã o causal, onde ela existe; entre a ética r a c i o n a l religiosa e u m tipo especial
de racionalismo c o m e r c i a l , p o d e m o s o b s e r v a r u m a afinidade eletiva entre o raciona-
l i s m o e c o n ô m i c o , p o r u m lado, e, p o r outro, certas f o r m a s d e religiosidade ético-ri-
gorista, a s e r e m caracterizadas t a m b é m m a i s adiante, afinidade esta que apenas ocasio-
nalmente se mostra f o r a d o â m b i t o d o racionalismo e c o n ô m i c o , portanto, f o r a do Oci-
dente, m a s se destaca claramente dentro dele, e isto tanto mais quanto m a i s nos aproxi-
m a m o s dos portadores clássicos d o r a c i o n a l i s m o e c o n ô m i c o .

^Quando abandonamos as camadas social e economicamemeprjvilegiadaSr-pareoe


aumentar a atipicidade da atitude religiosa. D e n t r o da camada da pequena burguesia,
è s p e c i a l m e n t e entre os artesãos, e x i s t e m , lado a lado, os m a i o r e s contrastes. T a b u de
casta e religiosidade m á g i c a o u mistagógico-sacramental o u orgiástica, na índia; animis-
m o , na C h i n a ; religiosidade d e d e r v i x e s , n o islã; religiosidade congregacional inspiracio-
nal-entusiástica d o cristianismo d a Antiguidade, particularmente n o leste d o Império
Romano; deisidemonismo ao lado de orgias dionisíacas, n o h e l e n i s m o antigo; fidelidade
farisaica à l e i , n o j u d a í s m o antigo das grandes cidades; cristianismo substancialmente
idólatra ao l a d o de todas as espécies de religiosidade sectária, n a Idade M é d i a , e todos
os tipos d e protestantismo nos inícios d a I d a d e Moderna — estes s ã o , s e m dúvida,
os m a i o r e s contrastes imagináveis. U m a religiosidade especifica d e artesãos f o i , no
entanto, desde o c o m e ç o , o cristianismo p r i m i t i v o . S e u salvador, artesão d e u m a cidade
d e província; seus missionários, oficiais ambulantes — o m a i o r deles, u m oficial de
ECONOMIA E SOCIEDADE 329

tecelagem de lonas a q u e m a v i d a r u r a l já e r a t ã o alheia que, n u m a d e suas epístolas,


r e f e r e de m o d o patentemente e r r ô n e o u m a p a r á b o l a à prática do enxerto — , e, p o r
f i m , as c o n g r e g a ç õ e s que, c o n f o r m e j á v i m o s , t i n h a m n a Antiguidade caráter claramente
urbano e r e c r u t a v a m seus m e m b r o s sobretudo n o c í r c u l o dos artesãos, l i v r e s e servos.
E t a m b é m na Idade M é d i a , a pequena burguesia é a camada m a i s devota, ainda que
n e m s e m p r e a mais ortodoxa. Mas t a m b é m n o cristianismo encontramos o f e n ô m e n o
de q u e , dentro da pequena b u r g u e s i a , e n c o n t r a m u m apoio extremamente f i r m e e
aparentemente e m p r o p o r ç ã o igual tanto a p r o f e c i a inspiracional da Antiguidade, e x o r c i -
zadora de d e m ô n i o s , a religiosidade m e d i e v a l absolutamente ortodoxa (da I g r e j a institu-
cionalizada) e o m o v i m e n t o dos monges mendicantes quanto, p o r outro lado, certas
f o r m a s da religiosidade sectária m e d i e v a l e, p o r e x e m p l o , a o r d e m dos H u m i l h a d o s ,
durante m u i t o t e m p o suspeita de h e t e r o d o x i a , b e m c o m o o batismo e m todos os seus
matizes e, p o r outra parte, a piedade das diferentes igrejas r e f o r m a d o r a s , entre elas
a luterana. Portanto, u m a v a r i e d a d e extremamente c o m p l e x a , que demonstra, pelo
menos, que n u n c a h o u v e u m a condicionalidade e c o n ô m i c a u n í v o c a da religiosidade
da camada dos artesãos. D e todo m o d o , destaca-se claramente u m a forte inclinação
à religiosidade congregacional, b e m c o m o à d e s a l v a ç ã o e, p o r f i m , à ética r a c i o n a l ,
e m c o m p a r a ç ã o c o m as camadas camponesas; m a s cabe l e m b r a r , c o m toda ê n f a s e ,
que t a m b é m esta o p o s i ç ã o está muito longe d e u m a d e t e r m i n a ç ã o i n e q u í v o c a , pois,
p o r e x e m p l o , o â m b i t o de d i f u s ã o da religiosidade congregacional batista f o i inicial-
mente sobretudo o c a m p o ( F r i s i a ) enquanto que precisamente sua f o r m a social-revolu-
cionária encontrou u m l a r p r i m e i r o n a cidade ( M ü n s t e r )
O fato de que especialmente n o Ocidente a religiosidade congregacional e a b u r -
guesia u r b a n a pequena e m é d i a c o s t u m a m estar concatenadas entre s i de f o r m a muito
íntima, t e m s u a r a z ã o n a t u r a l p r i m á r i a n o retrocesso relativo das comunidades d e san-
gue, particularmente dos clãs, dentro da cidade ocidental 1 . O substitutivo destas consti-
t u e m , p a r a o i n d i v í d u o , a l é m das associações profissionais que, n o Ocidente c o m o
p o r toda parte, t ê m s i g n i f i c a ç ã o c u l t u a l , p o r é m p e r d e r a m a d e tabu, as r e l a ç õ e s c o m u n i -
tárias religiosas l i v r e m e n t e criadas. Mas esta última circunstância n ã o está determinada
simplesmente pela peculiaridade e c o n ô m i c a da v i d a u r b a n a , já p o r s i , m a s , c o m o se
compreende facilmente, o c o r r e muitas vezes o contrário. Na C h i n a , a s i g n i f i c a ç ã o e x c l u -
siva do culto aos antepassados e a e x o g a m i a de clã m a n t ê m o habitante i n d i v i d u a l
da cidade n u m a r e l a ç ã o f i r m e e d u r a d o u r a c o m o clã e a aldeia natal. Na í n d i a , o
tabu religioso de casta dificulta o surgimento o u limita a importância da religiosidade
congregacional soteriológica, tanto nos povoados c o m caráter u r b a n o quanto n o campo.
E e m ambos os casos aqueles fatores, c o n f o r m e v i m o s , até o b s t r u í r a m o desenvol-
v i m e n t o da cidade a u m a " c o m u n i d a d e " e m g r a u muito m a i s forte d o que n o caso
d a aldeia. Mas, de todo m o d o , a c a m a d a da pequena burguesia t e m , c o m o é c o m p r e e n -
sível, u m a tendência relativamente forte, motivada p o r s e u m o d o de v i v e r e c o n ô m i c o ,
para a religiosidade r a c i o n a l ética, onde h á c o n d i ç õ e s p a r a esta surgir. É c l a r o que
a v i d a do p e q u e n o - b u r g u ê s , sobretudo a d o artesão e d o p e q u e n o comerciante na
cidade, está muito mais distante da v i n c u l a ç ã o à natureza d o que a d o c a m p o n ê s , d e
m o d o q u e a d e p e n d ê n c i a de u m a influência m á g i c a dos espíritos irracionais da natureza
n ã o p o d e desempenhar, p a r a ele, o m e s m o p a p e l que p a r a o ú l t i m o , m a s , ao c o n t r á r i o ,
suas c o n d i ç õ e s de existência e c o n ô m i c a s t ê m u m caráter m u i t o mais r a c i o n a l , isto é ,
acessível à calculabilidade e à influência r a c i o n a l , v i s a n d o a u m f i m . A l é m disso, s u a
existência e c o n ô m i c a sugere, particularmente ao artesão mas t a m b é m , e m c o n d i ç õ e s

1 Veja também o capítulo DC, parágrafo 7. (Nota do organizador.)


330 MAX WEBER

específicas, ao comerciante, a idéia d e que a probidade corresponde a seu p r ó p r i o


interesse, a lealdade n o trabalho e n o c u m p r i m e n t o dos deveres encontrará sua " r e c o m -
p e n s a " e t a m b é m " v a l e " u m a justa r e c o m p e n s a , portanto, u m a v i s ã o d o m u n d o etica-
mente racional n o sentido da ética da r e t r i b u i ç ã o à qual tendem de qualquer modo
todas as camadas não-privilegiadas c o n f o r m e ainda v e r e m o s . E m todo caso, está muito
mais p r ó x i m a do artesão d o que dos camponeses q u e , e m g e r a l , s ó se v o l t a m para
a crença " é t i c a " de retribuição a p ó s a e x t i n ç ã o da magia p o r m e i o de outros poderes,
enquanto que o artesão muitas vezes participa ativamente nesta extinção. E está infinita-
mente m a i s p r ó x i m a d o artesão do que d o g u e r r e i r o o u dos magnatas financeiros interes-
sados economicamente na g u e r r a e na e x p a n s ã o d o p o d e r político, os quais estão menos
acessíveis justamente aos elementos eticamente racionais de u m a religiosidade. Sem
d ú v i d a , nos inícios da d i f e r e n c i a ç ã o das profissões, especialmente o artesão está profun-
damente e n r e d a d o e m limitações m á g i c a s . Pois toda " a r t e " específica, não-cotidiana
e n ã o difundida p o r toda parte, é considerada u m c a r i s m a m á g i c o , pessoal o u , na
m a i o r i a dos casos, hereditário, cuja a q u i s i ç ã o e c o n s e r v a ç ã o s ã o garantidas p o r meios
m á g i c o s ; seus portadores s ã o separados da c o m u n i d a d e das pessoas c o r r i q u e i r a s (cam-
poneses) p o r tabu o u p o r totem e muitas vezes e x c l u í d o s da posse de terras. E os
ofícios que f i c a m e m m ã o s de antigos povoados possuidores d e matérias-primas, que
o f e r e c e m suas m e r c a d o r i a s inicialmente c o m o " p e r t u r b a d o r e s " , depois c o m o isolados
estrangeiros assentados, v ê e m - s e condenados a f o r m a r castas-párias e sua técnica fica
magicamente estereotipada. Mas, u m a v e z r o m p i d a essa situação — e isso ocorre com
m a i o r facilidade sobre o solo de novas p o v o a ç õ e s c o m caráter u r b a n o — , a circunstância
de o artesão e t a m b é m o p e q u e n o comerciante — o p r i m e i r o , quanto ao trabalho,
e o segundo, quanto às atividades aquisitivas — t e r e m de pensar de u m m o d o muito
mais r a c i o n a l d o que qualquer c a m p o n ê s , pode facilmente e x e r c e r seus efeitos. A l é m
disso, especialmente o artesão t e m , durante o trabalho, t e m p o e possibilidade para
e l u c u b r a r , pelo menos e m certos ofícios que, devido a nosso c l i m a , estão fortemente
vinculados a locais fechados — c o m o , n o artesanato têxtil, que p o r toda parte está
impregnado, e m g r a u muito alto, de u m a religiosidade sectária. E m certas circuns-
tâncias, isto se aplica ainda, d e m o d o limitado, ao m o d e r n o tear m e c â n i c o , p o r é m
completamente ao tear d o passado. O n d e q u e r que a v i n c u l a ç ã o a idéias puramente
m á g i c a s o u p u r a m e n t e ritualistas f o i r o m p i d a p o r profetas o u r e f o r m a d o r e s , os artesãos
e pequenos-burgueses tendem, p o r isso, a u m a v i s ã o ética e religiosamente racionalista
da v i d a , ainda que muitas vezes bastante p r i m i t i v a . A l é m disso, já e m v i r t u d e de sua
especialização profissional s ã o portadores de u m " m o d o de v i v e r " h o m o g ê n e o com
caráter específico. Mas de m o d o algum é u n í v o c a a d e t e r m i n a ç ã o da religiosidade por
essas c o n d i ç õ e s gerais da existência de artesão o u de p e q u e n o - b u r g u ê s . Na C h i n a , os
pequenos comerciantes, s o b r e m a n e i r a " c a l c u l a d o r e s " , n ã o s ã o portadores d e u m a reli-
giosidade r a c i o n a l , tampouco, p e l o que saibamos, os artesãos chineses. A l é m de à magia,
a d e r e m , n o m á x i m o , à doutrina budista d o c a r m a . Essa falta de u m a religiosidade
eticamente racional é, neste caso, p r i m o r d i a l e parece ter i n f l u í d o , p o r sua v e z , sobre
a s e m p r e saliente limitação d o racionalismo d e sua técnica. A m e r a existência de artesãos
e pequenos-burgueses n u n c a f o i suficiente, e m parte alguma, p a r a f a z e r nascer, por
si, u m a religiosidade ética, n e m d e u m tipo caracterizado de m o d o muito geral. Vimos,
ao c o n t r á r i o , c o m o o tabu de casta e m u n i ã o c o m a c r e n ç a na metempsicose influenciou
e estereotipou a ética dos artesãos indianos. Somente o n d e s u r g i u u m a religiosidade
congregacional, e especialmente congregacional racional-ética, esta p ô d e , c o m o é com-
preensível, ganhar adeptos c o m facilidade precisamente nos círculos dos pequenos-
burgueses urbanos e, e m seguida, i n f l u i r fortemente sobre o m o d o de v i v e r desses
círculos, c o m o d e fato o c o r r e u .
ECONOMIA E SOCIEDADE 331

Por f i m , as camadas m a i s negativamente privilegiadas d o ponto d e vista e c o n ô m i c o


— o s escravos e j o r n a l e i r o s l i v r e s — , n u n c a n a história f o r a m portadoras d e u m a religio-
sidade específica. O s escravos das antigas c o n g r e g a ç õ e s cristãs e r a m componentes da
pequena burguesia u r b a n a . Mas os escravos h e l é n i c o s , p o r e x e m p l o , os d e Narciso
(provavelmente o f a m o s o liberto d o i m p e r a d o r ) , mencionados n a Epístola aos R o m a n o s ,
o u pertencem aos f u n c i o n á r i o s d o m é s t i c o s , e m p o s i ç õ e s relativamente altas e a u t ô n o -
mas, e à c r i a d a g e m de u m h o m e m muito r i c o , o u , e isso na m a i o r i a dos casos, s ã o
artesãos a u t ô n o m o s que pagam u m tributo a s e u s e n h o r e e s p e r a m juntar, mediante
s e u trabalho, o d i n h e i r o p a r a c o m p r a r sua liberdade, c o m o e r a muito c o m u m e m toda
a Antiguidade e n a Rússia até o s é c u l o X K , o u , p o r f i m , s ã o escravos d o Estado e m
p o s i ç õ e s superiores. T a m b é m a r e l i g i ã o de Mitra tinha, c o n f o r m e m o s t r a m as inscrições,
muitos adeptos nessa camada. ( O fato de que o templo d o A p o l o d é l f i c o ( b e m c o m o ,
c o m certeza, os d e outros d e u s e s ) f u n c i o n a v a abertamente c o m o c a i x a e c o n ô m i c a dos
escravos, muito p r o c u r a d a p o r causa de sua p r o t e ç ã o s a c r a l , e de que os escravos,
c o m suas economias, c o m p r a v a m d e s e u senhor " a l i b e r d a d e " , d e v e ter sido utilizada
p o r Paulo, segundo a interessante h i p ó t e s e de D e i s s m a n n , c o m o i m a g e m do resgate
dos cristãos da s e r v i d ã o das leis e dos pecados, c o m o sangue d o Salvador. Se isto
é correto — devemos l e v a r t a m b é m e m c o n s i d e r a ç ã o , c o m o fonte possível, o gã 'al
o u pâdã d o Antigo Testamento — , m o s t r a e n t ã o o quanto a propaganda cristã contava
precisamente c o m essa p e q u e n a burguesia n ã o - l i v r e que, p o r ser ambiciosa, v i v i a de
u m m o d o economicamente r a c i o n a l j A o c o n t r á r i o , o " i n v e n t á r i o f a l a n t e " das antigas
plantações, essa camada mais b a i x a dos escravos, n ã o constituía t e r r e n o algum p a r a
u m a religiosidade congregacional o u outra propaganda religiosa qualquer. O s oficiais
artesanais de todos os tempos, que p o r sua v e z estão separados da pequena burguesia
a u t ô n o m a somente e m p e r í o d o s de c a r ê n c i a , c o m p a r t i l h a r a m na m a i o r i a das vezes
a religiosidade específica daquela. Isso, n o entanto, muitas vezes c o m u m a inclinação
típica ainda mais forte à religiosidade n ã o - o f i c i a l das seitas, p a r a cujas várias f o r m a s
oferecia p o r toda parte u m t e r r e n o bastante p r o p í c i o o substrato industrial das cidades,
envolvido n a luta contra a miséria cotidiana, contra as oscilações d o p r e ç o d o p ã o
e as possibilidades de ganhar a v i d a , e dependente do " a p o i o f r a t e r n a l " . As numerosas
comunidades secretas o u parcialmente toleradas dos " p o b r e s " , c o m sua religiosidade
congregacional já r e v o l u c i o n á r i a , já comunista-pacifista, já racional-ética, abrangem
e m regra precisamente t a m b é m a camada dos pequenos artesãos e dos oficiais artesanais.
Isto sobretudo pela r a z ã o técnica de que os oficiais ambulantes s ã o os missionários
perfeitos de toda c r e n ç a congregacional de massas. A incrível rapidez c o m que se e x p a n -
d i u o cristianismo sobre a e n o r m e distância d o O r i e n t e até R o m a , dentro de poucos
d e c ê n i o s , ilustra suficientemente este processo.

|P proletariado m o d e r n o , p o r é m , desde que ocupa n a esfera religiosa u m a p o s i ç ã o


p a r t i c u l a r , c o m o amplas camadas da burguesia m o d e r n a p r o p r i a m e n t e dita, é caracte-
rizado p o r u m a atitude indiferente o u negativa e m r e l a ç ã o à esfera do religioso. A
d e p e n d ê n c i a d o r e n d i m e n t o p r ó p r i o é r e p r i m i d a o u completada, neste caso, pela cons-
ciência de depender de constelações puramente sociais, conjunturas e c o n ô m i c a s e rela-
ç õ e s de poder garantidas pela l e i . Por outro lado.tggtá extinta toda idéia de d e p e n d ê n c i a
dos processos naturais c ó s m i c o - m e t e o r o l ó g i c o s o u outros q u e possam s e r interpretados
c o m o causados pela magia o u pela p r o v i d ê n c i a , c o n f o r m e , e m s e u tempo, já b e m e x p ô s
Sombart. O racionalismo proletário, b e m c o m o o r a c i o n a l i s m o d e u m a burguesia alta-
mente capitalista e d e p l e n a posse do poder e c o n ô m i c o , da q u a l é u m f e n ô m e n o comple-
mentar, n ã o p o d e , p o r isso, ter facilmente caráter religioso; e m todo caso, dificilmente
pode g e r a r u m a religiosidade. É que neste caso a religião é substituída, e m r e g r a ,
p o r outros s u c e d â n e o s ideais. A s camadas d o proletariado, m a i s baixas, m a i s instáveis,
332 MAX WEBER

p a r a as quais as c o n c e p ç õ e s racionais s ã o m e n o s acessíveis, e, ainda, as camadas proleta-


róides da pequena b u r g u e s i a , constantemente carentes e a m e a ç a d a s d e proletarização,
p o d e m facilmente s e r captadas p o r missões religiosas, sobretudo q u a n d o estas apresen-
t a m u m caráter m á g i c o , o u , — o n d e a magia p r o p r i a m e n t e dita já f o i exterminada
— q u a n d o o f e r e c e m s u c e d â n e o s da dispensa de g r a ç a m á g i c o - o r g i á s t i c a — c o m o f a z e m ,
p o r e x e m p l o , as orgias soteriológicas de tipo metodista praticadas pelo E x é r c i t o da
S a l v a ç ã o . Certamente sobre esse t e r r e n o p o d e m s u r g i r c o m muito m a i o r facilidade
os elementos emocionais d o que os racionais de u m a ética religiosa, e e m todo caso
a religiosidade ética jamais encontra aqui s e u p r i n c i p a l alimento / U m a religiosidade
específica de " c l a s s e " das camadas negativamente privilegiadas s ó existe n u m sentido"
limitado. T e m o s d e nos ocupar dele n o e x a m e da ética e d o " d i r e i t o n a t u r a l " , na medida
e m q u e , n u m a religião, o conteúdo d e reivindicações " p o l í t i c o - s o c i a i s " é fundamentado
c o m o vontade de D e u s . No que se/refere ao caráter da religiosidade c o m o t a l , é facil-
mente c o m p r e e n s í v e l que a necessidade d e " s a l v a ç ã o " , n o sentido mais a m p l o da pala-
v r a , tenha nas camadas negativamente privilegiadas u m a p o s i ç ã o importante, ainda
que n ã o seja a única o u a p r i n c i p a l coisa, enquanto, d e n t r o das camadas " s a t u r a d a s "
e positivamente privilegiadas, está longe pelo m e n o s dos g u e r r e i r o s , dos burocratas
e da plutocracia.
| U m a religiosidade de s a l v a ç ã o pode muito b e m ter sua p r i m e i r a o r i g e m e m j r a m a -
das socialmente privilegiadas. O carisma do profeta n ã o está v i n c u l a d o a determinada
pertinência estamental; ao c o n t r á r i o , liga-se e m r e g r a a certo m í n i m o de cultura intelec-
tual. As profecias específicas de intelectuais c o m p r o v a m suficientemente ambas as coi-
sas-jMas regidarmente m u d a s e u j a r á t e r n o m o m e n t o e m q u e se estende aos círculos
leigos q u e n ã o c u l t i v a m especifica e profissionalmente o intelectualismo c o m o tal e,
mais ainda, q u a n d o alcança aquela? camadas negativamente privilegiadas às quais o
intelectualismo é e c o n ô m i c a e socialmente inacessível Dessa m u d a n ç a , produto da
a d a p t a ç ã o inevitável às necessidades das massas, pode ser constatado/ de m o d o g e r a l ,
pelo menos u m t r a ç o normal:\p destaque d o salvadorj2essga7,^iyino o u d j y i n o j i u m a n o ,
c o m o portador da religião, sendo as/relações religiosas p a r a c o m e l e a c o n d i ç ã o j a
s a l v a ç ã o j j á conhecemos a t r a n s f o r m a ç ã o da religiosidade cultual e m magia p u r a . C o m o
uma das f o r m a s de a d a p t a ç ã o da religiosidade às necessidades das massas. A religio-
sidade v i n c u l a d a a u m salvador é outra f o r m a típica e, naturalmente, existem entre
ela e a t r a n s f o r m a ç ã o e m magia p u r a as m a i s v a r i a d a s c o n e x õ e s ) Q u a n t o mais se desce
na escala social tanto m a i s radicais c o s t u m a m s e r as f o r m a s q u e assume a necessidade,
u m a v e z surgida, de u m salvador. O s kartâbhajas indianos — seita de V i x n u , que pôs
e m prática ao m á x i m o a r u p t u r a d o tabu de casta, exigida teoricamente p o r muitas
doutrinas de salvação, e, p o r e x e m p l o , estabeleceu pelo m e n o s u m a comensalidade
limitada, t a m b é m na e s f e r a p r i v a d a ( n ã o apenas na p u r a m e n t e c u l t u a l ) entre os mem-
bros de diversas castas, constituindo, p o r é m , e m c o n s e q ü ê n c i a disso, substancialmente
u m a seita de gente modesta — s ã o aqueles que v ã o m a i s longe n a v e n e r a ç ã o antropo-
látrica de s e u g u r u hereditário, chegando até a exclusividade desse culto. E algo seme-
lhante repete-se noutras religiosidades recrutadas p r i n c i p a l m e n t e das camadas mais
baixas o u p o r elas influenciadas. A transferência d e doutrinas d e salvação às massas
quase s e m p r e f a z surgir u m salvador pessoal o u o destaca m a i s fortemente. A substituição
do ideal de B u d a , isto é, da s a l v a ç ã o intelectual e x e m p l a r p a r a o n i r v a n a pelo ideal
de Bodhisattva, e m f a v o r de u m salvador que desce à t e r r a , que r e n u n c i a ao ingresso
p r ó p r i o ao n i r v a n a p a r a s a l v a r seus p r ó x i m o s , b e m c o m o o surgimento da graça de
s a l v a ç ã o mediante a e n c a r n a ç ã o d o deus, nas r e l i g i õ e s populares hinduístas, sobretudo
n o v i x n u í s m o , e a vitória dessa soteriologia e sua g r a ç a sacramental m á g i c a tanto sobre
a n o b r e s a l v a ç ã o atéia dos budistas quanto sobre o antigo r i t u a l i s m o , v i n c u l a d o â educa-
ECONOMIA E SOCIEDADE 333

ção védica, são fenômenos que se encontram também em outros lugares, só que em
formas variadas. Por toda parte manifesta-se a necessidade religiosa da burguesia peque-
na e média por narrativas emotivas, com tendências sentimentais e edificantes, em
vez de criadora de mitos heróicos. Essa forma corresponde à pacificação e maior signifi-
cação da vida doméstica e familiar, em comparação com as camadas dominantes. O
surgimento da devoção interior bhakti, em todos os cultos indianos — tanto na criação
da figura do Bodhisattva quanto nos cultos de Krishna —, a popularidade dos mitos
edificantes do menino Dioniso, de Osíris, do menino Jesus e seus numerosos análogos
pertencem, todos eles, a esta virada da religiosidade burguesa em direção ao caráter
dos "quadros de costumes". A irrupção da burguesia como uma força que, sob a influên-
cia das ordens mendicantes, co-determina a natureza da piedade, significa, ao mesmo
tempo, a substituição do nobre theotókos da arte imperialista [de] Nicola Pisano pelo
quadro de costumes da família sagrada, como o criou seu filho, do mesmo modo que
o menino Krishna, na índia, é o favorito dos cultos populares. Bem como a magia,
o mito soteriológico e seu deus feito homem ou seu salvador feito deus é uma concepção
religiosa especificamente popular e, por isso, nascida espontaneamente nos lugares
mais diversos. Ao contrário, a ordem ética impessoal, supradivina do cosmos e a salvação
exemplar constituem uma idéia intelectualista adequada à educação leiga especifica-
mente impopular, eticamente racional. E a mesma coisa aplica-se ao deus absolutamente
supramundano. Com exceção do judaísmo e do protestantismo, todas as religiões e
éticas religiosas, sem exceção, tiveram novamente de admitir, quando se adaptaram
às necessidades das massas, [o culto aos santos ou heróis ou deuses funcionais/ O confu-
cionismo permite sua subsistência na forma de panteão taoísta; o budismo popularizado
tolera as divindades dos países de sua divulgação como receptoras de culto subordinadas
a Buda; o islã e o catolicismo tiveram de admitir deuses locais, funcionais e de determi-
nadas profissões como santos, aos quais se dirige a verdadeira devoção cotidiana das
massas.
Além disso, em oposição aos cultos da nobreza guerreira, 'é uma característica
da religiosidade dos negativamente privilegiados a admissá"riflsmulheres mm os mes-
mos direitos. A grande diversidade em relação à admissão das mulheres, com partici-
pação mais ativa ou mais passiva, ou sua exclusão dos cultos religiosos, parece ser,
por toda pane, uma função do grau (atual ou passado) da pacificação ou militarização
relativa. Naturalmente, a existência de sacerdotisas, a veneração de adivinhas ou feiticei-
ras, numa palavra, a devoção mais extrema a mulheres individuais que, acredita-se,
têm poderes sobrenaturais ou um carisma, nada significa quanto à igualdade das mulhe-
res como tais no tocante ao culto. E, ao contrário, a igualdade em princípio na relação
com o divino, como o existente no cristianismo e no judaísmo e, com menor conse-
qüência, no islã e no budismo oficial, pode ser combinada com uma monopolização
total pelos homens da função de sacerdote e do direito de intervenção ativa nos assuntos
da congregação, de modo que só eles são admitidos à formação profissional específica
ou considerados qualificados, o que de fato ocorre nestas religiões. A grande suscetibi-
lidade das mulheres para toda profecia religiosa não exclusivamente orientada por idéias
militares ou políticas destaca-se claramente nas relações livres de preconceitos de quase
todos os profetas, tanto de Buda quanto de Cristo ou Pitágoras. Mas dificilmente esta
se conserva além daquela primeira época da congregação, na qual os carismas baseados
na inspiração sagrada são apreciados como características de uma elevação religiosa
específica. Em seguida, com a cotidianização e regulamentação das relações congrega-
cionais, tomam-se sempre atitudes contra os fenômenos inspiracionais, considerados
contrários à ordem e mórbidos nas mulheres. Foi o que ocorreu já na época de Paulo.
E toda profecia político-militar — como o islã — dirige-se exclusivamente aos homens.
334 MAX WEBER

Muitas vezes o culto de u m espírito g u e r r e i r o ( c o m o n o a r q u i p é l a g o Índico ao D u k - D u k ,


e e m epifanias semelhantes, a u m n u m e h e r ó i c o ) está diretamente a serviço da domesti-
c a ç ã o e até d o despojo das comunidades domésticas f e m i n i n a s pelos m e m b r o s da casa
dos g u e r r e i r o s associados c o m o e m cassino o u e m clube. Por toda parte onde domina
o u d o m i n o u a e d u c a ç ã o militar ascética, c o m seu " r e n a s c i m e n t o " do h e r ó i , a m u l h e r
é considerada carente de u m a a l m a s u p e r i o r , h e r ó i c a e, p o r isso, religiosamente desclas-
sificada. É o que o c o r r e na m a i o r i a das comunidades de culto nobres o u especificamente
militares. A m u l h e r está totalmente excluída dos cultos oficiais chineses, b e m c o m o
dos romanos e b r a m â n i c o s , e tampouco a religiosidade intelectual budista é feminista;
m e s m o na é p o c a m e r o v í n g i a , os sínodos cristãos ainda p o d i a m d u v i d a r da equivalência
da a l m a da m u l h e r . A o c o n t r á r i o , os cultos específicos do h i n d u í s m o , assim c o m o parte
das seitas budistas-taoístas da C h i n a e, n o Ocidente, sobretudo o cristianismo p r i m i t i v o
e, mais tarde, as seitas inspiracionais e pacifistas da E u r o p a oriental e ocidental, extraí-
r a m , todos eles, sua f o r ç a de propaganda da a d m i s s ã o e e q u i p a r a ç ã o das mulheres.
T a m b é m na G r é c i a antiga o culto a D i o n i s o , e m seus inícios, t r o u x e consigo u m grau
até e n t ã o inaudito de e m a n c i p a ç ã o de todas as c o n v e n ç õ e s p a r a as m u l h e r e s participantes
nas orgias, u m a liberdade que, n o entanto, f o i , n o d e c o r r e r d o tempo, cada v e z mais
estilizada e regulamentada e m sentido artístico e c e r i m o n i a l e, c o m isso, comprometida
e limitada sobretudo a procissões e outros atos festivos, nos cultos individuais, até
desaparecer completamente e m sua significação prática. Constituiu e n o r m e vantagem
para a propaganda cristã, dentro das camadas da pequena burguesia, diante de sua
mais importante concorrente, a religião de Mitra, o fato de este culto extremamente
masculino ter e x c l u í d o as m u l h e r e s . N u m a é p o c a de paz u n i v e r s a l , isso obrigou seus
adeptos a p r o c u r a r e m para suas m u l h e r e s u m substitutivo e m outros mistérios, por
e x e m p l o , nos de Cibele, e destruiu assim desde o p r i n c í p i o a homogeneidade e universa-
lidade da comunidade religiosa m e s m o dentro das famílias, e m forte contraste c o m
o cristianismo. N ã o totalmente igual quanto aos princípios, mas muitas vezes parecida
e m seus efeitos, e r a a situação e m todos os cultos intelectuais, propriamente ditos,
de natureza gnóstica, maniqueísta o u semelhante. N e m de longe todas as religiões de
" a m o r ao p r ó x i m o e ao i n i m i g o " a s s u m i r a m esse traço por influência f e m i n i n a ou
s ã o de caráter feminista: n ã o f o i absolutamente assim, p o r e x e m p l o , c o m a religiosidade
ahimsâ, na índia. A influência f e m i n i n a costuma intensificar somente os aspectos emo-
cionais, histericamente condicionados, da religiosidade. É o caso da índia. Mas certa-
mente n ã o é indiferente que a religiosidade de s a l v a ç ã o costume glorificar as virtudes
não-militares e antimilitares, o que constitui u m a tendência n a t u r a l das camadas negati-
vamente privilegiadas e das m u l h e r e s .

A importância especial da religiosidade de s a l v a ç ã o p a r a as camadas negativamente


privilegiadas política e economicamente, e m o p o s i ç ã o às positivamente privilegiadas,
pode ser considerada ainda sob alguns outros aspectos gerais. No e x a m e dos "esta-
m e n t o s " e das " c l a s s e s " cabe ainda o b s e r v a r que o sentimento de dignidade das camadas
mais privilegiadas (e não-sacerdotais), especialmente da aristocracia, portanto a "distin-
ç ã o " , baseia-se na consciência da " p e r f e i ç ã o " de sua c o n d u ç ã o de v i d a , c o m o expressão
d o " s e r " qualitativo que repousa dentro de si m e s m o e n ã o se estende para a l é m ,
e m b o r a , por sua própria natureza, possa f a z ê - l o , enquanto que todo sentimento de
dignidade dos negativamente privilegiados baseia-se n u m a " p r o m e s s a " garantida, v i n -
culada a u m a " f u n ç ã o " , " m i s s ã o " o u " p r o f i s s ã o " que lhes foi atribuída. O que n ã o
p o d e m pretender " s e r " eles completam o u pela dignidade daquilo que u m dia serão,
t ê m a " v o c a ç ã o " de ser, n u m a v i d a futura neste m u n d o o u no a l é m , ou (e muitas
vezes ao m e s m o t e m p o ) p o r aquilo que, do ponto de vista da p r o v i d ê n c i a , " s i g n i f i c a m "
o u " r e a l i z a m " . A ânsia por u m a dignidade que n ã o lhes foi atribuída por s e r e m eles
ECONOMIA E SOCIEDADE 335

e o m u n d o c o m o s ã o , c r i a esta c o n c e p ç ã o , da q u a l nasce a idéia racionalista de u m a


" p r o v i d ê n c i a " , de u m a importância perante u m a instância d i v i n a c o m u m a o r d e m de
dignidade diferente.
Projetada p a r a outras camadas, esta situação interna r e v e l a ainda alguns contrastes
característicos naquilo que as religiões t i n h a m d e " r e n d e r " dentro das diferentes c a m a -
das sociais. T o d a necessidade de s a l v a ç ã o é u m a e x p r e s s ã o de " i n d i g ê n c i a " e, p o r
isso, a o p r e s s ã o social o u e c o n ô m i c a é, p o r sua p r ó p r i a n a t u r e z a , u m a fonte muito
eficiente de sua g ê n e s e , ainda que d e m o d o algum seja a única. Sendo iguais as demais
circunstâncias, camadas positivamente privilegiadas dos pontos de vista social e e c o n ô -
m i c o dificilmente sentem p o r si a necessidade de salvação. |4ntes passam à religião,
e m p r i m e i r o lugar, o papel de " l e g i t i m a r " seu m o d o de v i v i f e a situação e m que
v i v e m . Este f e n ô m e n o muito u n i v e r s a l radica e m constelações internas muito gerais.
Q u e a u m h o m e m feliz, c o m r e l a ç ã o ao m e n o s feliz, n ã o lhe baste o simples fato
de sua felicidade, mas que, ainda q u e i r a o " d i r e i t o " a ela, tenha a consciência, portanto,
de a ter " m e r e c i d o " , e m o p o s i ç ã o ao m e n o s feliz — enquanto que este d e v e ter de
algum modo " m e r e c i d o " sua desgraça — , essa necessidade de conforto da a l m a trazida
pela n o ç ã o de legitimidade da felicidade é demonstrada p o r toda e x p e r i ê n c i a cotidiana,
trate-se de destinos políticos, de diferenças na situação e c o n ô m i c a , de s a ú d e c o r p o r a l ,
de sorte na c o m p e t i ç ã o erótica o u de outra situação qualquer. jÉ_essa " l e g i t i m a ç ã o " ,
neste sentido interno, que as camadas positivamente privilegiadas n o í n t i m o e s p e r a m
da religião, se é que e s p e r a m algo. N e m toda camada positivamente privilegiada sente
essa necessidade c o m intensidade igual. Precisamente p a r a o h e r o í s m o g u e r r e i r o os
deuses s ã o seres aos quais a inveja nada tem de estranho. S ó l o n e a sabedoria judaica
antiga estão de acordo justamente sobre o perigo das p o s i ç õ e s elevadas. Apesar dos
deuses e n ã o graças a eles, muitas vezes contra eles, o h e r ó i m a n t é m sua p o s i ç ã o supraco-
tidiana. A épica h o m é r i c a e u m a parte da épica antiga da índia encontram-se e m o p o s i ç ã o
característica tanto aos cronistas burocráticos chineses quanto aos sacerdotais judaicos
n o aspecto e m que estes últimos ressaltam, c o m muito m a i o r ê n f a s e , a idéia da " l e g i t i m i -
d a d e " da felicidade c o m o recompensa p o r v i r t u d e s gratas a Deus. Por outro lado, encon-
tra-se universalmente a idéia da c o n e x ã o entre a desgraça e a i r a e a inveja de d e m ô n i o s
o u deuses. A s s i m c o m o e m quase toda religiosidade popular, tanto na judaica antiga
quanto de m o d o muito acentuado, p o r e x e m p l o , na m o d e r n a chinesa, defeitos corporais
s ã o vistos c o m o indícios de pecados m á g i c o s o u m o r a i s — dependendo do caso —
de seus portadores o u ( n o j u d a í s m o ) dos antepassados destes, e assim c o m o , por e x e m -
plo, nos sacrifícios c o m u n s das comunidades políticas os defeituosos o u outros desgra-
ç a d o s , vítimas da cólera d i v i n a s ã o e x c l u í d o s do círculo dos felizes e portanto gratos
ao deus, quase toda religiosidade ética das camadas positivamente privilegiadas e dos
sacerdotes a seu s e r v i ç o considera a situação social do i n d i v í d u o positivamente o u negati-
vamente privilegiado algo religiosamente m e r e c i d o , e v a r i a m somente as f o r m a s de
l e g i t i m a ç ã o da situação feliz.

I n v e r s a m e n t e correspondente a esta situação é a dos negativamente privilegiados.


\Suajaecessidade e s p e c í f i c a é a _ s a l v a c ã o do sofrimento/ N e m s e m p r e eles sentem essa
necessidade de salvação e m t o r m a r e l i g i o s a — n ã o é assim, p o r e x e m p l o , c o m o proleta-
r i a d o m o d e r n o . E sua necessidade de salvação religiosa, q u a n d o existe, pode tomar
c a m i n h o s diferentes, sobretudo pode e m p a r e l h a r - s e , e m g r a u muito d i v e r s o , c o m a
necessidade de " r e t r i b u i ç ã o " justa, retribuição pelas boas obras próprias e pela injustiça
alheia. U m a esperança de retribuição muitas vezes bastante " c a l c u l a d o r a " p r ó x i m a da
magia e v i n c u l a d a a esta constitui, portanto, a f o r m a m a i s divulgada da crença das
massas n o m u n d o inteiro, e as profecias que p o r sua v e z d e s a p r o v a m pelo m e n o s as
formas m e c â n i c a s desta crença s e m p r e e x p e r i m e n t a r a m , e m seu processo de popula-
336 MAX WEBER

rização e cotidianização, u m a interpretação modificada neste sentido. O tipo e o g r a u


da esperança de retribuição e salvação atuam de m a n e i r a muito d i v e r s a , dependendo
da natureza das esperanças despertadas pela promessa religiosa, e isso sobretudo quan-
do estas s ã o projetadas da v i d a m u n d a n a do i n d i v í d u o a u m f u t u r o situado a l é m de
sua existência atual. U m e x e m p l o particularmente importante do significado do conteú-
do das promessas religiosas é dado pela religiosidade (durante o e x í l i o e depois) dos
judeus.
Desde o e x í l i o de fato e f o r m a l m e n t e t a m b é m desde a destruição do templo,
os judeus f o r a m u m "povo-pária", isto é, n o sentido aqui adotado (que é tão pouco
idêntico à típica p o s i ç ã o da "casta dos p á r i a s " da índia quanto, p o r e x e m p l o , o conceito
de "justiça de c á d i " aos princípios efetivos da jurisdição do qâdíy. u m g r u p o que v e i o
a f o r m a r u m a comunidade hereditária especial, s e m o r g a n i z a ç ã o política a u t ô n o m a ,
e m v i r t u d e do fechamento p a r a f o r a da comunidade de c o n v í v i o e d o c o n ú b i o , por
limites ( o r i g i n a l m e n t e ) m á g i c o s , tabus e rituais, p o r u m lado, e, por outro, e m v i r t u d e
de u m privilegiamento negativo das áreas política e social, e m c o n e x ã o c o m atividades
e c o n ô m i c a s bastante peculiares. As castas negativamente privilegiadas da índia, profis-
sionalmente especializadas, c o m seu fechamento p a r a f o r a garantido pelo tabu e c o m
seus deveres religiosos hereditários quanto a sua c o n d u ç ã o de v i d a , encontram-se, relati-
v a m e n t e , mais p r ó x i m o s dos judeus, p o r q u e t a m b é m e m seu caso as esperanças de
salvação estão vinculadas à p o s i ç ã o de pária. T a n t o as castas hindus quanto os judeus
m o s t r a m o m e s m o efeito e s p e c í f i c o de u m a religiosidade-pária: esta v i n c u l a seus m e m -
bros a si m e s m a e à p o s i ç ã o de pária tanto mais estreitamente quanto mais opressiva
é a situação e m que se encontra o p o v o - p á r i a e quanto mais fortes s ã o , portanto, as
esperanças de salvação ligadas ao c u m p r i m e n t o dos deveres religiosos ordenados pelo
deus. [ C o n f o r m e já m e n c i o n a m o s , f o r a m precisamente as castas mais baixas que se
apegaram c o m tenacidade a seus deveres de casta, c o m o c o n d i ç ã o de seu renascimento
e m situação m e l h o r . O v í n c u l o entre J e o v á e seu p o v o tornou-se tanto mais indestrutível
quanto mais mortais f o r a m o desprezo e a p e r s e g u i ç ã o que p e s a r a m sobre os j u d e u s j
E m o p o s i ç ã o evidente, p o r e x e m p l o , aos cristãos orientais que, sob os o m í a d a s , afluíam
à religião privilegiada do islã e m tão imenso n ú m e r o que o poder político, n o interesse
e c o n ô m i c o da camada dominante, dificultou a c o n v e r s ã o , mostrando-se inúteis, por
isso, todas as f r e q ü e n t e s c o n v e r s õ e s f o r ç a d a s , e m massa, dos judeus, apesar de propor-
cionar-lhes os privilégios da camada dominante. \Q ú n i c o m e i o de salvação, tanto p a r a
as castas hindus quanto p a r a os judeus, e r a o c u m p r i m e n t o dos mandamentos religiosos
especiais p a r a o p o v o - p á r i a , dos quais n i n g u é m peide subtrair-se sem temer u m m a l e f í c i o
para si m e s m o e s e m p ô r e m perigo suas possibilidades n o futuro o u as de seus descen-
dentes. A diferença entre a religiosidade judaica e a religiosidade de casta hinduísta
t e m sua o r i g e m na natureza da esperança de salvação. O h i n d u espera do c u m p r i m e n t o
dos d e v e r e s religiosos a m e l h o r a de suas oportunidades pessoais n o renascimento, isto
é, ascensão o u r e e n c a r n a ç ã o de sua a l m a n u m a casta superior. yO j u d e u , ao contrário,
espera p a r a seus descendentes a participação n u m r e i n o m e s s i â n i c o que salvará toda
sua comunidade de sua p o s i ç ã o de párias p a r a fazer deles os senhores do mundo.
Pois c o m a promessa de que todos os povos da terra t o m a r ã o e m p r é s t i m o s dos judeus
e estes de n i n g u é m , J e o v á n ã o se r e f e r i a ao c u m p r i m e n t o disso e m f o r m a da pequena
u s u r a do gueto, m a s à situação de u m a p o p u l a ç ã o u r b a n a poderosa, típica da Antigui-
dade, cujos devedores e servos p o r dívidas s ã o os habitantes das aldeias e vilas subju-
gadas. O h i n d u trabalha t a m b é m p a r a u m s e r h u m a n o futuro que s ó tem algo a ver
c o m ele sob as c o n d i ç õ e s da doutrina animista da metempsicose: a e n c a r n a ç ã o futura
de sua a l m a , d o m e s m o m o d o que o j u d e u trabalha p a r a seus descendentes cuja relação
c o m ele, interpretada e m sentido animista, constitui sua " i m o r t a l i d a d e sobre a t e r r a "
ECONOMIA E SOCIEDADE 337

Mas, e m o p o s i ç ã o à idéia d o h i n d u , que d e i x a intocada p a r a s e m p r e a estruturação


social do m u n d o e m castas e a p o s i ç ã o de sua casta c o m o t a l , q u e r e n d o m e l h o r a r o
destino f u t u r o de sua a l m a i n d i v i d u a l precisamente d e n t r o dessa m e s m a o r d e m hierár-
quica, o j u d e u espera a s a l v a ç ã o pessoal de u m m o d o justamente c o n t r á r i o , e m f o r m a
de u m a s u b v e r s ã o d a h i e r a r q u i a social atual, a f a v o r de s e u p o v o - p á r i a . Pois s e u p o v o
f o i chamado e escolhido p o r D e u s n ã o p a r a a p o s i ç ã o de p á r i a , mas p a r a a de prestígio.
E p o r isso ganha grande i m p o r t â n c i a , n o t e r r e n o d a ^religiosidade d e s a l v a ç ã o
ética dos judeus, u m elemento, analisado pela p r i m e i r a v e z , p o r j j i e t z s c h e , completa-
mente ausente de toda religiosidade m á g i c a e animista d e castas: o ressentimento. Para
Nietzsche, trata-se de u m f e n ô m e n o que acompanha a ética religiosa dos negativamente
privilegiados, os quais, e m i n v e r s ã o direta da f é antiga, se c o n s o l a m c o m a idéia de
que a distribuição desigual da sorte n a t e r r a t e m sua base n o pecado e n a injustiça
dos positivamente p r i v i l e g i a d o s , o que t e m de acarretar, mais cedo o u mais tarde,
a v i n g a n ç a d i v i n a contra eles.[Na f o r m a dessa teodicéia dos negativamente privilegiados
o m o r a l i s m o s e r v e e n t ã o c o m o m e i o de l e g i t i m a ç ã o d a sede de v i n g a n ç a consciente
o u inconsciente. Isso v i n c u l a - s e , inicialmente, à " r e l i g i o s i d a d e de r e t r i b u i ç ã o " . U m a
v e z dada a idéia religiosa de r e t r i b u i ç ã o , o " s o f r i m e p t n " rornn tal, p o r t r a z e r consigo
fortes esperanças de r e t r i b u i ç ã o , p o d e a s s u m i r o caráter d e a l g o religiosamente v a l i o s o
e m s i mesmo. Certos ensinamentos ascéticos, p o r u m lado, e predisposições neuróticas
específicas, p o r outro, p o d e m atuar de m ã o s dadas c o m essa idéia. Mas o caráter especí-
f i c o de ressentimento s ó é a l c a n ç a d o pela religiosidade do s o f r i m e n t o sob c o n d i ç õ e s
muito determinadas: isso n ã o aconteceu, p o r e x e m p l o , entre os hindus e os budistas,
pois entre eles o s o f r i m e n t o pessoal é considerado algo individualmente m e r e c i d o .
O caso dos judeus é distinto. A religiosidade dos Salmos está repleta de vontade de
v i n g a n ç a , e nas r e f u n d i ç õ e s sacerdotais dos antigos escritos israelitas encontra-se o
m e s m o elemento: a m a i o r i a dos Salmos — e aqui n ã o se leva e m conta se os trechos
e m q u e s t ã o t e n h a m talvez sido acrescentados a u m a v e r s ã o mais antiga — c o n t é m ,
e m f o r m a m u i t o p a l p á v e l , a satisfação moralista e a l e g i t i m a ç ã o da vontade de v i n g a n ç a
de u m p o v o - p á r i a , f r a n c a m e n t e o u contida c o m e s f o r ç o . E isto o c o r r e seja mostrando-se
a D e u s a o b e d i ê n c i a a seus mandamentos e a própria d e s g r a ç a , e, p o r outro lado,
a v i d a ímpia dos descrentes orgulhosos e felizes que escarnecem de suas promessas
e de s e u poder, o u e n t ã o confessando-se h u m i l d e m e n t e os pecados e implorando-se
a D e u s que desista finalmente de sua c ó l e r a e volte a dispensar sua g r a ç a ao p o v o
q u e é, a f i n a l , unicamente o seu. E m ambos os casos v i n c u l a - s e a isto a esperança de
q u e a v i n g a n ç a do deus finalmente reconciliado fará u m d i a , c o m f o r ç a e n t ã o r e d o b r a d a ,
dos inimigos í m p i o s o escabelo dos p é s de I s r a e l — o m e s m o destino que a c o n s t r u ç ã o
historiográfica sacerdotal designa aos inimigos cananeus d o p o v o escolhido — enquanto
este n ã o desperta por d e s o b e d i ê n c i a à i r a de D e u s , c o m isso p r o v o c a n d o sua d e g r a d a ç ã o
até o nível dos infiéis. E m b o r a alguns desses Salmos, c o m o q u e r e m comentaristas mo-
d e r n o s , t e n h a m nascido da i r a i n d i v i d u a l d e piedosos fariseus pelas p e r s e g u i ç õ e s sob
A l e x a n d r e Jannaeus, o q u e i m p o r t a é sua escolha e c o n s e r v a ç ã o ; e outros deles r e a g e m
claramente à p o s i ç ã o de pária dos judeus c o m o t a l . [ E m n e n h u m a religiosidade do m u n d o
existe u m deus u n i v e r s a l c o m a m e s m a i m e n s a sede d e v i n g a n ç a d e J e o v á , e o v i l o r
histórico da descrição dos fatos na historiografia sacerdotal pode quase s e m p r e ser
reconhecido pela circunstância de q u e o acontecimento e m q u e s t ã o ( p o r e x e m p l o , a
batalha de Megiddo) não se adapta a essa teodicéia de retribuição e v i n g a n ç a . A religio-
sidade j u d a i c a t o m o u - s e a^im^rpligiosiHafip tie- rerrihiiição, XOT' è£oX7)V. A s virtudes
exigidas p o r D e u s s ã o praticadas e m vista d a e s p e r a n ç a d e retribuição. E esta é, e m
p r i m e i r o l u g a r , d e caráter coletivo: o p o v o c o m o u m todo d e v e v i v e r a e x a l t a ç ã o ;
s ó deste m o d o p o d e t a m b é m o i n d i v í d u o g a n h a r d e volta sua dignidade. Paralelamente,
338 MAX WEBER

e confundida c o m isso, c a m i n h a naturalmente a teodicéia i n d i v i d u a l de cada destino


pessoal — e isto, s e m d ú v i d a , desde s e m p r e — , cuja p r o b l e m á t i c a se reflete sobretudo
n o L i v r o de J ó , originado e m camadas totalmente diferentes, n ã o populares, p a r a prelu-
diar a l i , na r e n ú n c i a a u m a s o l u ç ã o do p r o b l e m a e na s u b m i s s ã o à soberania absoluta
de D e u s sobre suas criaturas, a idéia puritana da p r e d e s t i n a ç ã o que tinha de nascer
t ã o logo f o i acrescentado o sentimento dos eternos castigos infernais impostos por
D e u s . Mas n ã o nasceu, c o m o é sabido, e o L i v r o de J ó quase n ã o encontrou c o m p r e e n s ã o
alguma n o que se r e f e r e a sua c o n c l u s ã o pretendida pelo poeta, tão inabalável estava
na religiosidade judaica a idéia da retribuição coletiva. A esperança de v i n g a n ç a —
inevitavelmente v i n c u l a d a p a r a o j u d e u piedoso ao m o r a l i s m o de sua l e i , já que p e r m e i a
quase todos os escritos sagrados da é p o c a do e x í l i o e da posterior — , a qual foi necessa-
riamente alimentada s e m p r e de n o v o , consciente o u inconscientemente, durante dois
m i l ê n i o s e m e i o , e m quase todo s e r v i ç o de culto do p o v o , a m a r r a d o p o r duas cadeias
indestrutíveis — o isolamento religioso sagrado do resto do m u n d o e as promessas
para este m u n d o de seu deus — , r e f l u i u naturalmente, dada a d e m o r a do Messias,
na consciência da camada intelectual, dando lugar à v a l o r i z a ç ã o da intimidade devota
e m r e l a ç ã o a D e u s o u de u m a c o n f i a n ç a temperada e sentimental na bondade d i v i n a ,
puramente c o m o tais, e à disposição a v i v e r e m paz c o m o m u n d o inteiro. Isso o c o r r i a
sobretudo q u a n d o a situação social das c o n g r e g a ç õ e s , condenadas à total impotência
política, mostrou-se pelo menos suportável; mas, e m é p o c a s de p e r s e g u i ç õ e s , como
a das Cruzadas, voltava a acender-se, o u n u m grito de v i n g a n ç a , tão penetrante quanto
inútil, elevado a D e u s , o u e n t ã o n u m a súplica de que ainda que a própria a l m a " s e
reduzisse a p ó " , perante os inimigos que m a l d i z i a m dos judeus, estes se preservassem
de obras e palavras m á s e se limitassem a c u m p r i r tacitamente os mandamentos de
Deus e a manter aberto p a r a ele o c o r a ç ã o . E m b o r a seja u m a e n o r m e desfiguração
dos fatos q u e r e r identificar n o ressentimento o ú n i c o elemento decisivo das fortes v a r i a -
ç õ e s históricas na religiosidade judaica, n ã o se d e ve subestimar sua influência sobre
peculiaridades fundamentais dessa religiosidade. E m c o n t r a p o s i ç ã o à q u i l o que esta tem
e m c o m u m c o m outras religiões de salvação, o ressentimento constitui, de fato, u m
de seus traços específicos e, e m n e n h u m a outra religiosidade de camadas negativamente
privilegiadas, reveste-se de tal importância. Mas, de alguma f o r m a , a teodicéia dos
negativamente privilegiados é componente de toda religiosidade de salvação, que encon-
tra seus adeptos sobretudo nestas camadas, e o desenvolvimento da ética sacerdotal
a favoreceu s e m p r e que se tornou parte constitutiva de uma religiosidade congrega-
cional, típica destas camadas. Sua quase total ausência e t a m b é m a falta de quase toda
ética religiosa social-revolucionária na religiosidade do h i n d u piedoso e do asiático
budista explicam-se pela natureza da teodicéia de r e e n c a r n a ç ã o ; a o r d e m de castas,
c o m o tal, p e r m a n e c e eterna e é absolutamente justa. Pois sobre as virtudes o u os pecados
de u m a v i d a anterior fundamenta-se o renascimento e m determinada casta, e sobre
o comportamento na v i d a atual, a possibilidade de m e l h o r i a . N ã o se encontra, portanto,
n e m traço daquele conflito evidente entre a p r e t e n s ã o social criada pelas promessas
divinas e a situação de desprezo na realidade; conflito que, n o j u d e u — que vivia
e m t e n s ã o permanente contra sua situação d e classe e e m esperança inútil — , destruiu
a naturalidade perante o m u n d o e fez c o m que a crítica religiosa aos descrentes ímpios,
respondida c o m impiedoso e s c á r n i o , se transformasse n u m a o b s e r v a ç ã o s e m p r e estrita,
muitas vezes amarga p o r ser constantemente a m e a ç a d a p o r autocrítica secreta, do auto-
c u m p r i m e n t o da l e i sagrada. A isso juntou-se u m a e l u c u b r a ç ã o casuística, praticada
durante toda a v i d a , sobre os deveres religiosos do p o v o inteiro — de cuja definição
correta dependia a g r a ç a f i n a l de J e o v á — , e a m i s t u r a , manifestada de m o d o tão caracte-
rístico e m alguns produtos da é p o c a posterior ao e x í l i o , d e desalento perante qualquer
ECONOMIA E SOCIEDADE 339

sentido deste m u n d o fútil, de s u b m i s s ã o aos castigos de D e u s , de p r e o c u p a ç ã o de ofen-


d ê - l o p o r orgulho, de angustiado comportamento m o r a l - r i t u a l c o r r e t o , que i m p ô s aos
judeus aquele e m p e n h o desesperado n ã o mais pelo respeito dos outros m a s pelo auto-
respeito e pelo sentimento de dignidade. U m sentimento de dignidade que — se, e m
definitivo, o c u m p r i m e n t o das promessas de J e o v á tinha de s e r o critério p a r a m e d i r
o p r ó p r i o v a l o r aos olhos de Deus — podia tornar-se repetidamente p r e c á r i o e m s i
m e s m o e, por isso, deparar c o m o n a u f r á g i o de todo o sentido da própria c o n d u ç ã o
da v i d a .
\0 sucesso nas atividades aquisitivas passou a ser cada v e z mais, p a r a o j u d e u
do gueto, u m a p r o v a tangível da g r a ç a pessoal de Deus. No entanto, a idéia de " a f i r -
m a r - s e " na " p r o f i s s ã o " determinada p o r Deus n ã o se aplica ao j u d e u n o sentido dado
pelo ascetismo intramundano. \Pois a b ê n ç ã o de Deus está arraigada, muito m e n o s do
que entre os puritanos, n u m m é t o d o de v i d a sistemático, ascético e r a c i o n a l , c o m o
a única fonte possível da certitudo salutis. N ã o apenas, por e x e m p l o , a ética s e x u a l
c o n s e r v o u u m caráter diretamente antiascético e naturalista, e a ética e c o n ô m i c a do
j u d a í s m o antigo p e r m a n e c e u fortemente tradicionalista nas relações postuladas, f r a n c a -
mente dominada pela v a l o r i z a ç ã o da r i q u e z a , alheia a toda ascese, c o m o t a m b é m toda
santificação pelas obras dos judeus tem u m fundamento ritualista e, a l é m disso, está
f r e q ü e n t e m e n t e combinada c o m o c o n t e ú d o sentimental e s p e c í f i c o de u m a religiosidade
baseada na f é . Mas os regulamentos tradicionalistas da ética e c o n ô m i c a interna dos
judeus s ó têm pleno v a l o r , c o m o o c o r r e e m toda ética antiga, c o m r e l a ç ã o aos correligio-
nários, e n ã o aos de f o r a . D e todo m o d o , as promessas d e J e o v á p r o d u z i r a m , de fato,
dentro do p r ó p r i o j u d a í s m o , u m a f o n e t e n d ê n c i a ao m o r a l i s m o do ressentimento. Mas
seria muito e r r ô n e a a idéia de que a necessidade de salvação, a teodicéia o u a religio-
sidade congregacional n a s ç a m unicamente sobre o solo das camadas negativamente
privilegiadas o u até exclusivamente d o ressentimento, sendo, portanto, nada m a i s que
o produto de u m a " r e b e l i ã o de escravos na área da m o r a l " . Isto n e m se aplica ao
cristianismo p r i m i t i v o , apesar de que suas promessas se d i r i g e m , c o m m a i o r ê n f a s e ,
precisamente aos espiritual e materialmente " p o b r e s " . iÉ possível, antes, reconhecer,
n o contraste entre a p r o f e c i a de Jesus e suas c o n s e q ü ê n c i a s imediatas, os efeitos inevitá-
veis da desvalorização e r u p t u r a das leis rituais (que propositalmente p r e t e n d i a m u m
fechamento p a r a f o r a ) e, portanto, tda dissolução do v í n c u l o entre a religiosidade e
a c o n d i ç ã o dos crentes c o m o p o v o - p á r i a , isolado ao m o d o de u m a casta. S e m d ú v i d a ,
a profecia cristã p r i m i t i v a c o n t é m traços muito específicos de " r e t r i b u i ç ã o " n o sentido
de u m f u t u r o e q u i l í b r i o entre o destino pessoal (mais evidente na lenda de L á z a r o )
e a v i n g a n ç a que será o b r a de D e u s . E o r e i n o de D e u s é t a m b é m neste caso u m
r e i n o t e r r e n o , n o início claramente destinado especialmente o u pelo menos e m p r i m e i r o
lugar aos judeus, pois estes c r ê e m desde os tempos mais remotos n o v e r d a d e i r o D e u s .
Mas precisamente o ressentimento típico e p r o f u n d o d o p o v o - p á r i a é o que acaba e l i m i -
nado pelas c o n s e q ü ê n c i a s das novas promessas religiosas. E o perigo constituído pela
riqueza p a r a as possibilidades d e s a l v a ç ã o n ã o t e m , de m o d o algum, bases n o ascetismo,
pelo menos nos componentes transmitidos c o m o autêntica prédica de Jesus, e muito
menos pode ser motivado pelo ressentimento — c o m o m o s t r a m os testemunhos sobre
as rélações de Jesus c o m os publicanos ( n a Palestina, e m sua m a i o r i a , pequenos usurá-
r i o s ) Para isso, a indiferença e m r e l a ç ã o ao m u n d o é demasiadamente grande perante
a f o r ç a das esperanças escatológicas. No entanto, se q u e r tornar-se " p e r f e i t o " , isto
é, discípulo, o j o v e m rico tem de r e n u n c i a r incondicionalmente ao " m u n d o " . Mas diz-se
expressamente que c o m D e u s , ainda que difícil, tudo é possível, m e s m o a s a l v a ç ã o
do r i c o que n ã o consegue renunciar a seus bens. "Instintos p r o l e t á r i o s " s ã o t ã o alheios
ao profeta d o a m o r a c ó s m i c o — que t r a z aos espiritual e materialmente pobres a feliz
340 MAX WEBER

mensagem da p r o x i m i d a d e imediata d o r e i n o de D e u s e da liberdade do poder dos


d e m ô n i o s — , quanto, p o r e x e m p l o , a B u d a — p a r a q u e m a s e p a r a ç ã o absoluta d o
m u n d o é o pressuposto incondicional da salvação. E m n e n h u m outro lugar, os limites
da importância d o " r e s s e n t i m e n t o " e a p r o b l e m á t i c a da a p l i c a ç ã o demasiadamente uni-
v e r s a l do esquema da " r e p r e s s ã o " mostram-se m a i s claramente do que n o e r r o de
Nietzsche ao aplicar seu esquema t a m b é m ao e x e m p l o , totalmente inadequado, do b u -
dismo. Este, p o r é m , é o c o n t r á r i o mais r a d i c a l de todo m o r a l i s m o de ressentimento;
é a doutrina de s a l v a ç ã o de u m a camada de intelectuais, recrutada n o p r i n c í p i o quase
exclusivamente das castas privilegiadas, e m especial da g u e r r e i r a , e q u e , cheia de orgu-
lho e distinção, despreza as ilusões tanto deste m u n d o quanto d o a l é m e, n o m e l h o r
dos casos, pode s e r c o m p a r a d a , sob o aspecto da p r o v e n i ê n c i a social, c o m a doutrina
de salvação helenística, sobretudo a n e o p l a t ô n i c a , m a s t a m b é m c o m a maniqueísta ou
a gnóstica, p o r mais profundamente que d i f i r a m estas d o p r i m e i r o . A q u e m n ã o quer
a salvação p a r a o n i r v a n a o bhikshu budista d e i x a o m u n d o inteiro, inclusive o renasci-
m e n t o n o paraíso. Precisamente este e x e m p l o mostra que a necessidade de salvação
e a religiosidade ética t ê m ainda outra fonte a l é m da situação social dos negativamente
privilegiados e do racionalismo da burguesia condicionado pela situação prática da
v i d a : o intelectualismo p u r o , especialmente as necessidades metafísicas do espírito que
é levado a meditar sobre questões éticas e religiosas, n ã o pela miséria material mas
pela necessidade íntima de c o m p r e e n d e r o m u n d o c o m o u m cosmos c o m sentido e
de definir sua p o s i ç ã o perante este.
E m g r a u extremamente amplo, o destino das religiões f o i condicionado pelos
diferentes caminhos que o intelectualismo t o m o u nesse processo e pelas relações diver-
sas deste c o m o s a c e r d ó c i o e os poderes políticos, e essas circunstâncias, p o r sua vez,
f o r a m condicionadas pela p r o v e n i ê n c i a da camada que, e m g r a u específico, e r a porta-
d o r a do intelectualismo. Esta f o i inicialmente o p r ó p r i o sacerdócio, particularmente
q u a n d o t r a n s f o r m a d o n u m a c o r p o r a ç ã o d e literatos, e m v i r t u d e d o caráter dos escritos
sagrados e da necessidade de interpretá-los e de ensinar seu uso correto. Isto n ã o
o c o r r e u nas religiões d ó s povos urbanos da Antiguidade, especialmente na dos fenícios,
helenos e romanos, tampouco na ética chinesa. Nestes povos, o pensamento p r o p r i a -
mente t e o l ó g i c o ( H e s í o d o ) , desenvolvido p o r esta razão apenas e m g r a u muito modesto,
e todo pensamento metafísico e ético c a i u nas m ã o s de não-sacerdotes. O exato oposto
o c o r r e u na í n d i a , n o Egito e na B a b i l ô n i a , c o m os seguidores de Zaratustra, n o islã
e no cristianismo antigo e m e d i e v a l , e, n o que se r e f e r e à teologia, t a m b é m no moderno.
O s a c e r d ó c i o e g í p c i o , o do zaratustrismo, o d o cristianismo antigo, temporariamente,
o b r a m â n i c o , durante a é p o c a v é d i c a — isto é, antes do nascimento da filosofia do
Upanichade e da do ascetismo leigo — , b e m c o m o , e m g r a u m e n o r , c o m freqüentes
interrupções por parte da profecia leiga, o judaico e, e m g r a u quase igualmente limitado
e c o m interrupções p o r parte da e s p e c u l a ç ã o s u f ista, o islâmico, s o u b e r a m monopolizar,
e m g r a u muito forte, o desenvolvimento da metafísica e da ética religiosa. A o lado
dos sacerdotes o u e m lugar deles, e m todos os r a m o s do b u d i s m o , n o islã e n o cristia-
n i s m o m e d i e v a l , f o r a m sobretudo os monges o u os círculos orientados e m sentido
m o n a c a l aqueles que o c u p a r a m e c u l t i v a r a m literalmente n ã o apenas o pensamento
t e o l ó g i c o e ético c o m o t a m b é m o metafísico e p a r t e s < o n s i d e r á v e i s d o científico, como
tal, a l é m de cuidar da p r o d u ç ã o de obras literárias. O fato de os cantores t e r e m feito
parte d o g r u p o de pessoas importantes dentro d o culto condicionou a inclusão da poesia
é p i c a , lírica e satírica da índia nos Vedas e a da poesia erótica de Israel nos escritos
sagrados, [e] afinidade psicológica da e m o ç ã o mística e inspiracional c o m a e m o ç ã o
poética condicionou o papel d o místico na lírica d o O r i e n t e e do Ocidente. Mas o
que importa a q u i n ã o é a p r o d u ç ã o literária c o m suas características, mas o caráter
ECONOMIA E SOCIEDADE 341

específico assumido pela p r ó p r i a religiosidade e m v i r t u d e da peculiaridade das camadas


intelectuais que i n f l u e m sobre ela. A influência do s a c e r d ó c i o , m e s m o q u a n d o este
e r a o portador p r i n c i p a l da literatura, teve intensidade m u i t o d i v e r s a , d e p e n d e n d o
das camadas não-sacerdotais q u e teve de e n f r e n t a r e d e sua p r ó p r i a p o s i ç ã o d e poder.
A mais forte influência especificamente sacerdotal encontra-se n o desenvolvimento ulte-
r i o r da religiosidade d o zaratustrismo, b e m c o m o n a egípcia e na babilónica. O j u d a í s m o
da é p o c a d e u t e r o n ô m i c a e d o e x í l i o t e m u m caráter p r o f é t i c o , m a s t a m b é m ao m e s m o
t e m p o fortemente sacerdotal. Para o das é p o c a s posteriores, é o r a b i n o , e m v e z d o
sacerdote, a f i g u r a decisiva. A religiosidade cristã d o f i m da Antiguidade e da alta Idade
M é d i a e, m a i s tarde, a da C o n t r a - R e f o r m a possui caráter fortemente sacerdotal, a l é m
de m o n a c a l . Intensa influência pastoral m a r c a a religiosidade d o luteranismo e t a m b é m
a do c a l v i n i s m o p r i m i t i v o . O b r a m a n i s m o i m p r e g n o u o h i n d u í s m o e m g r a u e x t r a o r d i n a -
riamente forte, p e l o m e n o s n o que se r e f e r e à substância de seus componentes institu-
cionais e sociais, sobretudo o sistema d e castas, que nasceu p o r toda parte o n d e apare-
c e r a m os b r â m a n e s e c u j a h i e r a r q u i a social é condicionada, e m última instância, pela
p o s i ç ã o atribuída p o r estes a cada casta. O b u d i s m o e m todas suas variedades, particu-
larmente o l a m a í s m o , é totalmente influenciado p e l o m o n a c a l ; e m g r a u m e n o r , t a m b é m
assim se e n c o n t r a m amplas camadas da religiosidade cristã oriental. Mas o que nos
interessa a q u i , especialmente, é a r e l a ç ã o da inteligência não-sacerdotal, isto é, a l é m
da m o n a c a l [particularmente] a leiga, c o m a sacerdotal, e as relações das camadas intelec-
tuais c o m os diversos tipos d e religiosidade e a p o s i ç ã o delas dentro das comunidades
religiosas. Chegamos a o b s e r v a r , sobretudo, o fato fundamentalmente importante de
que todas as grandes doutrinas religiosas asiáticas s ã o criações d e intelectuais. A doutrina
de s a l v a ç ã o do b u d i s m o , b e m c o m o a d o j a i n i s m o e todas as doutrinas afins f o r a m
sustentadas p o r intelectuais nobres c o m f o r m a ç ã o v é d i c a (ainda que n e m s e m p r e n o
sentido de e s p e c i a l i z a ç ã o ) que f e z parte da e d u c a ç ã o n o b r e da í n d i a , sobretudo p o r
m e m b r o s da n o b r e z a K s h a t r i y a , q u e se sentia e m o p o s i ç ã o à b r a m â n i c a . Na C h i n a ,
tanto os portadores d o c o n f u c i o n i s m o , c o m e ç a n d o p e l o p r ó p r i o f u n d a d o r , quanto L a o -
tse, considerado oficialmente o f u n d a d o r d o t a o í s m o , e r a m o u f u n c i o n á r i o s c o m f o r m a -
ç ã o clássico-literária o u f i l ó s o f o s c o m f o r m a ç ã o correspondente. Q u a s e todas as t e n d ê n -
cias principais da filosofia h e l é n i c a e n c o n t r a m sua réplica tanto n a C h i n a quanto na
í n d i a , ainda que muitas v e z e s bastante modificada. O confucionismo, c o m o ética vigen-
te, é sustentado principalmente pela camada d e pretendentes a cargos p ú b l i c o s , c o m
f o r m a ç ã o clássico-literária, enquanto que o t a o í s m o , p o r o u t r o lado, transformou-se
n u m a prática m á g i c a popular. As grandes r e f o r m a s d o h i n d u í s m o f o r a m realizadas
p o r intelectuais nobres, c o m f o r m a ç ã o b r a m â n i c a , ainda q u e , m a i s tarde, a f o r m a ç ã o
congregacional tenha c a í d o parcialmente nas m ã o s d e m e m b r o s de castas i n f e r i o r e s ,
d i f e r i n d o , portanto, nesse aspecto-, da r e f o r m a eclesiástica n o norte da E u r o p a , que
t a m b é m p a r t i u de h o m e n s c o m f o r m a ç ã o c l e r i c a l ; da Co n t r a - Re f o r m a católica q u e ,
n o p r i n c í p i o , se apoiou e m jesuítas c o m f o r m a ç ã o dialética, c o m o S a l m e r ó n e L a y n e z ;
e da reestruturação d a doutrina islâmica ( a l G h a z z â l i ) q u e f u n d i u a mística c o m a ortodo-
x i a e cuja d i r e ç ã o p e r m a n e c e u , e m parte, c o m a h i e r a r q u i a oficial e, e m parte, c o m
u m a aristocracia de f u n c i o n á r i o s c o m f o r m a ç ã o t e o l ó g i c a . D o m e s m o m o d o , as doutrinas
d e s a l v a ç ã o d o m a n i q u e í s m o e d o gnosticismo d o O r i e n t e P r ó x i m o e r a m específicas
r e l i g i õ e s d e intelectuais, n o q u e se r e f e r e tanto a seus c r i a d o r e s quanto à m a i o r i a d e
seus portadores e ao caráter d e sua doutrina d e salvação. Pois, apesar d e todas as
d i f e r e n ç a s , s ã o e m todos estes casos camadas intelectuais muito sofisticadas relativa-
mente, c o m f o r m a ç ã o filosófica, correspondentes m a i s o u m e n o s à s escolas filosóficas
h e l é n i c a s o u a o tipo mais a p e r f e i ç o a d o da f o r m a ç ã o universitária m o n a c a l o u da secular-
humanista d o f i m da Idade M é d i a , q u e constituem os portadores da ética o u doutrina
342 MAX WEBER

de s a l v a ç ã o e m questão. D e n t r o de determinada situação religiosa, as camadas intelec-


tuais p o d e m e n t ã o constituir u m e m p r e e n d i m e n t o c o m caráter d e escola, semelhante,
p o r e x e m p l o , à academia platônica e às escolas helénicas de filosofia afins e, neste
caso, c o m o aquelas, n ã o t o m a m oficialmente p o s i ç ã o alguma e m r e l a ç ã o à prática reli-
giosa existente, mas t a m b é m n ã o se afastam dela diretamente, mas d ã o - l h e u m a nova
interpretação filosófica o u simplesmente a ignoram. Por sua v e z , os representantes
oficiais d o culto, isto é, n a C h i n a , os f u n c i o n á r i o s estatais encarregados dos deveres
do culto o u , na í n d i a , os b r â m a n e s , trataram essas doutrinas c o m o ortodoxas o u (como,
p o r e x e m p l o , as doutrinas materialistas, na C h i n a , e a filosofia dualista S â m k h y a na
í n d i a ) c o m o heterodoxas. Estes movimentos de o r i e n t a ç ã o sobretudo científica e sé
indiretamente relacionados c o m a religiosidade prática n ã o nos interessam e m p o r m e n o i
neste contexto. O que nos interessa s ã o os movimentos já mencionados que, diferente-
mente dos últimos, se d i r i g e m especialmente à c r i a ç ã o d e u m a ética religiosa e cujos
paralelos mais p r ó x i m o s estão representados, na Antiguidade ocidental, pelos pitagó-
ricos e pelos n e o p l a t ô n i c o s — m o v i m e n t o s intelectuais, portanto, que o u p r o v ê m exclu-
sivamente das camadas socialmente privilegiadas o u p e l o m e n o s s ã o dirigidos o u predo-
minantemente influenciados p o r pessoas procedentes destas camadas.
O desenvolvimento de u m a religiosidade d e s a l v a ç ã o pelas camadas socialmente
privilegiadas de u m p o v o o c o r r e , e m r e g r a , de m o d o m a i s eficaz quando estas estãc
desmilitarizadas e excluídas da possibilidade o u d o interesse e m atividades políticas.
Por isso, essa religiosidade aparece tipicamente q u a n d o as camadas dominantes, aristo-
cráticas o u burgueses, o u f o r a m afastadas da v i d a política p o r u m p o d e r estatal unitáric
burocrático-militarista o u q u a n d o elas mesmas, p o r motivos quaisquer, se retiraram
da política, isto é, q u a n d o o desenvolvimento de sua cultura intelectual até suas ultimai
c o n s e q ü ê n c i a s íntimas, no pensamento e na psique, ganhou p a r a eles mais importância
do que a atividade prática m u n d a n a e x t e r n a . Mas n ã o é que n a s ç a m somente nessa
situação. A o c o n t r á r i o , as correspondentes c o n c e p ç õ e s conceituais p o d e m desenvol-
v e r - s e precisamente e m tempos política e socialmente agitados, c o m o conseqüência
de u m a r e f l e x ã o s e m pressupostos. Mas essas t e n d ê n c i a s , inicialmente subterrâneas
somente a l c a n ç a m u m a p o s i ç ã o dominante c o m o início da despolitização dos intelec-
tuais. O confucionismo, a ética de u m a b u r o c r a c i a poderosa, desaprova toda doutrina
de salvação. O j a i n i s m o e o b u d i s m o — o contraste r a d i c a l da a d a p t a ç ã o ao mundo
c o n f u c i o n i s t a — f o r a m a m a n i f e s t a ç ã o p a l p á v e l de u m a c o n c e p ç ã o intelectualista radical-
mente antipolítica, pacifista e adversa ao m u n d o . Mas n ã o sabemos se o n ú m e r o , às
vezes c o n s i d e r á v e l , de seus adeptos na índia cresceu e m v i r t u d e de acontecimentos
c o m efeito despolitizador. O p a r t i c u l a r i s m o dos pequenos príncipes indianos, antes
dos tempos de A l e x a n d r e , que carecia de qualquer c o n t e ú d o político e se opunha à
unidade imponente do b r a m a n i s m o , e n t ã o e m e x p a n s ã o por toda parte, e r a propício
p a r a l e v a r os círculos intelectualmente f o r m a d o s da n o b r e z a a p r o c u r a r e m seus inte-
resses f o r a da política. Por isso, a r e n ú n c i a ao m u n d o , prescrita ao b r â m a n e como
vânaprastha, e a garantia de seu sustento na v e l h i c e q u e , p a r a o povo, e r a u m a instituição
sagrada, e n c o n t r a r a m sua c o n t i n u a ç ã o n o desenvolvimento dos ascetas não-bramânicos
(sramanas) — a n ã o ser que, ao c o n t r á r i o , a r e c o m e n d a ç ã o da renúncia ao mundo,
feita ao b r â m a n e q u e avista o f i l h o de s e u f i l h o , seja o m a i s recente dos dois f e n ô m e n o s
e tenha sido adotada pelos b r â m a n e s . E m todo caso, os sramanas, c o m o portadores
de u m c a r i s m a ascético, s u p e r a r a m logo, n a a v a l i a ç ã o d o p o v o , o s a c e r d ó c i o oficial.
O apoliticismo m o n a c a l dos nobres já e r a , nesta f o r m a , e n d ê m i c o na índia desde os
tempos m a i s antigos, m u i t o antes de t e r e m nascido as doutrinas d e salvação filosóficas
apolíticas. A s religiões d e s a l v a ç ã o d o O r i e n t e P r ó x i m o , d e caráter seja mistagógico,
seja p r o f é t i c o , b e m c o m o as doutrinas de s a l v a ç ã o orientais e helénicas, sustentadas
ECONOMIA E SOCIEDADE 343

pelo intelectualismo leigo, s e j a m estas de caráter mais religioso o u mais f i l ó s o f i c o ,


s ã o quase s e m e x c e ç ã o (desde q u e atinjam as camadas socialmente p r i v i l e g i a d a s ) conse-
q ü ê n c i a do afastamento f o r ç a d o o u v o l u n t á r i o das camadas cultas da influência e da
atividade políticas. A religião b a b i l ó n i c a , penetrada p o r elementos de p r o v e n i ê n c i a ex-
trababilônica, somente voltou-se p a r a a religiosidade de salvação no m a n d e í s m o , e
a religiosidade intelectual do O r i e n t e P r ó x i m o o fez p r i m e i r o ao participar n o culto
de Mitra e outros cultos soteriológicos, e, mais tarde, n o gnosticismo e no m a n i q u e í s m o ,
e t a m b é m aqui depois de e s m o r e c e r todo interesse político da camada culta. U m a religio-
sidade de s a l v a ç ã o s e m p r e existiu na camada intelectual h e l é n i c a , m e s m o antes da seita
pitagórica. Mas n ã o o c u p o u u m a p o s i ç ã o dominante e m suas partes politicamente decisi-
vas. O sucesso da propaganda dos cultos de s a l v a ç ã o e da doutrina de salvação filosófica,
nos círculos leigos nobres da última é p o c a d o helenismo e da r o m a n a , c a m i n h a paralela-
mente ao afastamento definitivo dessas camadas da atividade política. E o c h a m a d o
interesse " r e l i g i o s o " , tão e l o q ü e n t e , de nossas camadas intelectuais alemãs de h o j e
e m dia está n u m a c o n e x ã o muito íntima c o m d e c e p ç õ e s políticas e u m desinteresse
político assim condicionado.
\4jnsia de s a l v a ç ã o n o b r e , procedente das classes privilegiadas, representa, e m
geral, a disposição à mística de " i l u m i n a ç ã o " , a ser analisada mais tarde, que está
concatenada c o m u m a q u a l i f i c a ç ã o de s a l v a ç ã o especificamente intelectualista. D a í r e -
sulta u m a forte desclassificação do n a t u r a l , do c o r p o r a l , do sensual, c o m o — segundo
a experiência psicológica — tentação de afastar-se desse c a m i n h o de salvação específico.
A l g u m papel (que a psicopatologia atual ainda n ã o parece captar sob regras u n í v o c a s )
cabe nisto t a m b é m , por vezes, à intensificação, ao exigente refinamento e, ao m e s m o
tempo, à repressão da sexualidade n o r m a l e m f a v o r de reações substitutivas, devido
à c o n d u ç ã o de v i d a do i n d i v í d u o que nada mais pretende ser que u m intelectual, c o m o
p a r e c e m demonstrar, de f o r m a p a l p á v e l , certos f e n ô m e n o s , particularmente dos misté-
rios gnósticos — sublimados substitutivos masturbatórios das orgias dos camponeses.
C o m estas c o n d i ç õ e s , p u r a m e n t e psicológicas, de u m a irracionalização d o religioso
cruza-se a natural necessidade racionalista do intelectualismo de c o m p r e e n d e r o m u n d o
c o m o u m cosmos pleno de sentido, cujo produto s ã o tanto a doutrina indiana do c a r m a
(à q u a l voltaremos mais t a r d e ) e sua v a r i a ç ã o budista quanto, p o r e x e m p l o , e m I s r a e l
o L i v r o de J ó , c o m sua p r o v á v e l o r i g e m e m círculos intelectuais nobres, as c o l o c a ç õ e s
de problemas afins na literatura e g í p c i a , a e s p e c u l a ç ã o gnóstica e o dualismo m a n i -
queísta.
1 Q u a n d o a. religiosidade e m q u e s t ã o se t o r n a r e l i g i ã o de massas, a p r o v e n i ê n c i a
intelectualista de u m a doutrina d e s a l v a ç ã o , b e m c o m o a de u m a ética, t e m quase s e m p r e
a c o n s e q ü ê n c i a de que, dentro da religiosidade o f i c i a l , popularizada, modificada e m
sentido m á g i c o - s o t e r i o l ó g i c o e adaptada às necessidades dos não-intelectuais, nasce
o u u m a doutrina esotérica o u , p e l o menos.v u m a é t i a ^ e s t a m e n t a l n o b r e p a r a atender
às necessidades dos intelectualmente formados. Isso o c o r r e na ética estamental confu-
ciana da b u r o c r a c i a , totalmente estranha à s a l v a ç ã o , ao lado da q u a l continuam existindo
a magia taoísta e a graça sacramental e ritual budista c o m o religiosidades populares
petrificadas, desprezadas pelos detentores da f o r m a ç ã o clássica. O m e s m o se dá c o m
a ética de salvação budista do estamento mona cal, ao lado da feitiçaria e idolatria dos
leigos, da persistência da magia tabuísta e d o n o v o desenvolvimento da religiosidade
soteriológica hinduísta. O u e n t ã o a religiosidade intelectual assume a f o r m a da mistago-
gia, c o m u m a h i e r a r q u i a de c o n s a g r a ç õ e s — c o m o n a gnose e nos cultos afins — ,
de cuja o b t e n ç ã o fica e x c l u í d o o " p í s t i c o " n ã o - i l u m i n a d o .
\ A s a l v a ç ã o que o intelectual busca s e m p r e é u m a salvação d e " a f l i ç ã o í n t i m a "
e, p o r isso, p o r u m lado, de caráter mais estranho à v i d a , p o r é m , p o r o u t r o , de caráter
344 MAX WEBER

m a i s p r o f u n d o e sistemático d o que a s a l v a ç ã o da miséria concreta que é p r ó p r i a das


camadas não-privilegiadas. O intelectual, p o r caminhos c u j a casuística chega ao infinito,
p r o c u r a dar a seu m o d o de v i v e r u m " s e n t i d o " coerente, portanto, u m a " u n i d a d e "
consigo m e s m o , c o m os h o m e n s , c o m o cosmos. Para ele, a c o n c e p ç ã o do " m u n d o "
é u m p r o b l e m a de " s e n t i d o " . Q u a n t o m a i s o intelectualismo r e p r i m e a c r e n ç a na magia,
" d e s e n c a n t a n d o " assim os f e n ô m e n o s do m u n d o , e estes p e r d e m seu sentido m á g i c o ,
somente " s ã o " e " a c o n t e c e m " , m a s nada " s i g n i f i c a m " , tanto m a i s cresce a urgência
c o m que se exige d o m u n d o e da " c o n d u ç ã o de v i d a " , c o m o u m todo, que tenham-
u m a s i g n i f i c a ç ã o e estejam ordenados segundo u m " s e n t i d o " .
O s conflitos deste postulado c o m as realidades do m u n d o e suas ordens e c o m
as possibilidades de v i v e r nele c o n d i c i o n a m a específica fuga d o m u n d o dos intelectuais,
que tanto p o d e s e r u m a fuga r u m o ao isolamento, o u — m a i s m o d e r n a m e n t e — à
" n a t u r e z a " intocada pelas ordens h u m a n a s (Rousseau) e a u m r o m a n t i c i s m o adverso
ao m u n d o , quanto u m a fuga p a r a o " p o v o " intocado pelas c o n v e n ç õ e s humanas (o
narodnitchestvo r u s s o ) o u tender mais à c o n t e m p l a ç ã o o u a u m ascetismo ativo, procu-
r a r m a i s a s a l v a ç ã o i n d i v i d u a l o u u m a t r a n s f o r m a ç ã o coletiva e ético-revolucionária
do m u n d o . T o d a s estas tendências igualmente acessíveis ao intelectualismo apolítico
p o d e m t a m b é m manifestar-se c o m o doutrinas de s a l v a ç ã o religiosas e ocasionalmente
o f i z e r a m . O caráter e s p e c í f i c o da religiosiade d e intelectuais, de q u e r e r fugir d o mundo,
tem a q u i u m a de suas razões.
Mas esse tipo f i l o s ó f i c o de intelectualismo, cujos portadores s ã o , e m r e g r a , as
classes social e economicamente asseguradas, sobretudo a aristocracia apolítica, rentis-
tas, f u n c i o n á r i o s p ú b l i c o s , beneficiários de prebendas eclesiásticas, monacais, univer-
sitárias e outras, n ã o é o ú n i c o e muitas vezes n ã o tem relevância particularmente
religiosa. A o lado dele existe o intelectualismo p r o l e t a r ó i d e , ligado, por toda parte,
ao intelectualismo n o b r e p o r f o r m a s intermediárias e que somente d i f e r e deste pela
tendência típica de seu sentido. Representantes dele s ã o os pequenos funcionários e
prebendados d e todos os tempos, muitas vezes à b e i r a da existência m í n i m a e dotados
de u m a e d u c a ç ã o considerada subalterna, os escribas, n ã o pertencentes às camadas
privilegiadas — e m tempos q u a n d o o e s c r e v e r e r a u m a p r o f i s s ã o especial — , os profes-
sores elementares de todas as espécies, os cantores, leitores, n a r r a d o r e s e recitadores
ambulantes e semelhantes profissões l i v r e s proletaróides. Sobretudo, p o r é m , a inteli-
g ê n c i a autodidata das camadas negativamente privilegiadas, c o m o a representam na
E u r o p a m o d e r n a , d e f o r m a m a i s clássica, a inteligência camponesa proletaróide da
Rússia, n o leste, e, n o oeste, a inteligência proletária socialista e anarquista, mas da
qual s ã o o u t r o e x e m p l o — ainda que c o m c o n t e ú d o s totalmente diferentes — os campo-
neses holandeses c o m seu p r o f u n d o conhecimento da B í b l i a , ainda na p r i m e i r a metade
d o s é c u l o X K , os pequenos-burgueses puritanos da I n g l a t e r r a , n o s é c u l o X V I I , bem
c o m o os oficiais artesanais religiosamente interessados de todos os tempos e povos
e, sobretudo, c o m o outro e x e m p l o clássico, os judeus piedosos (fariseus, chasideus
e, e m g e r a l , a grande massa dos judeus piedosos que l ê e m os l i v r o s sagrados todos
os d i a s ) Na medida e m que se trata a q u i de u m i n t e l e c t u a l i s m o - " p á r i a " — c o m o no
caso de todos os pequenos beneficiários proletaróides d e prebendas, dos camponeses
russos e dos m a i s o u m e n o s " a m b u l a n t e s " — , sua intensidade deve-se ao fato de que
as camadas situadas f o r a o u n o nível m a i s b a i x o d a h i e r a r q u i a social encontram-se,
p o r assim d i z e r , n o ponto a r q u i m e d i a n o e m r e l a ç ã o às c o n v e n ç õ e s sociais, n o que
se r e f e r e tanto às ordens externas quanto às o p i n i õ e s habituais. Por isso, s ã o capazes
d e t o m a r u m a p o s i ç ã o originária, desvinculada daquelas c o n v e n ç õ e s , c o m respeito ao
" s e n t i d o " d o cosmos e d e n u t r i r u m forte sentimento ético e religioso, n ã o obstruído
p o r c o n s i d e r a ç õ e s materiais. Na medida e m q u e p e r t e n c e m às classes m é d i a s , como
ECONOMIA E SOCIEDADE 345

as camadas religiosamente autodidatas da pequena b u r g u e s i a , sua necessidade religiosa


costuma tomar u m r u m o ético-rigorista o u ocultista. O intelectualismo dos oficiais artesa-
nais encontra-se entre estas duas t e n d ê n c i a s , e sua importância consiste na q u a l i f i c a ç ã o
do artesão ambulante p a r a s e r missionário.
Na Ásia oriental e n a í n d i a falta quase totalmente, pelo que se sabe, o intelectua-
lismo-pária e o da pequena burguesia, p o r q u e falta o sentimento d e comunidade da
burguesia u r b a n a , que é c o n d i ç ã o prévia d o segundo, e a e m a n c i p a ç ã o da m a g i a , que
é c o n d i ç ã o prévia de ambos. Suas gâthâs t o m a m m e s m o as f o r m a s de religiosidade
nascidas sobre o solo das castas i n f e r i o r e s , e m sua grande m a i o r i a , dos b r â m a n e s .
Na C h i n a , n ã o existe n e n h u m intelectualismo a u t ô n o m o , n ã o - o f i c i a l , ao lado da f o r m a -
ç ã o confuciana. O confuciosnimo é, portanto, a ética d o " h o m e m distinto", d o g e n t l e -
man ( c o m o já D v o f a k traduz a c e r t a d a m e n t e ) É expressamente u m a ética estamental,
o u , m a i s corretamente, u m sistema de regras de etiqueta de u m a camada n o b r e c o m
f o r m a ç ã o literária. Semelhante é a situação n o antigo O r i e n t e e n o Egito; a l i , o intelectua-
l i s m o dos escribas, desde que l e v o u a r e f l e x õ e s ético-religiosas, pertence, s e m d ú v i d a ,
ao tipo do intelectualismo q u e , às vezes apolítico, é e m todo caso n o b r e e combate
a ignorância cultural. As coisas s ã o diferentes e m I s r a e l . O autor d o L i v r o de J ó p r e s s u p õ e
c o m o portadoras do intelectualismo n o b r e as linhagens aristocráticas. A sabedoria p r o -
v e r b i a l e tudo que lhe é a f i m r e v e l a m já n a f o r m a s e u caráter fortemente influenciado
pela internacionalização e pelo contato entre as camadas apolíticas c o m nível cultural
elevado, tal c o m o o c o r r e u n o O r i e n t e depois de A l e x a n d r e : os Provérbios apresen-
tam-se, e m parte, diretamente c o m o produtos de u m r e i n ã o - j u d a i c o , assim c o m o toda
literatura atribuída a " S a l o m ã o " t e m algo de u m caráter c u l t u r a l internacional. Q u a n d o
n o l i v r o de Sirac se q u e r salientar a sabedoria dos ancestrais e m face da h e l e n i z a ç ã o ,
precisamente isso p r o v a a existência daquela tendência. E , c o m o ressalta c o m r a z ã o
Bousset, o " e s c r i b a " daquela é p o c a , segundo o l i v r o de S i r a c , é u m gentleman, um
h o m e m culto e bastante viajado; todo o l i v r o é p e r m e a d o — c o m o t a m b é m observa
Meinhold — p o r u m a clara tendência contra os " i g n o r a n t e s " : c o m o pode o c a m p o n ê s ,
o f e r r e i r o , o o l e i r o possuir aquela " s a b e d o r i a " que somente q u e m tem ó c i o p a r a dedi-
car-se à r e f l e x ã o e aos estudos pode alcançar? Designa-se E s d r a s c o m o o " p r i m e i r o
e s c r i b a " , mas, p o r u m lado, é muito m a i s antiga a p o s i ç ã o influente dos indivíduos
religiosamente interessados que se r e ú n e m e m t o r n o dos profetas, i d e ó l o g o s s e m os
quais teria sido impossível a i m p o s i ç ã o d o D e u t e r o n ô m i o , e, p o r outro, é muito m a i s
recente d o que a deste c r i a d o r oficial da teocracia, autorizado pelo r e i dos persas,
a p o s i ç ã o eminente — praticamente quase igual à do mufti do islã — dos escribas,
isto é , dos intérpretes dos mandamentos divinos que entendem o hebraico. A p o s i ç ã o
social dos escribas, s e m d ú v i d a , e x p e r i m e n t o u m u d a n ç a s . Na é p o c a d o r e i n o dos m a c a -
beus, a piedade — n o f u n d o , u m a sabedoria prática, bastante prosaica, algo c o m o ,
por e x e m p l o , a x e n o f i l i a — é idêntica à " e d u c a ç ã o " ; esta (musar, i r a i 8 e ú x ) é o c a m i n h o
da v i r t u d e , considerada, n o m e s m o sentido d a d o pelos helenos, algo que pode ser
ensinado. Mas, já naquele tempo, o intelectual piedoso, b e m c o m o a m a i o r i a dos salmis-
tas, sente-se n u m a forte o p o s i ç ã o contra os ricos e altivos, entre os quais é r a r a a
fidelidade à l e i d i v i n a . Constituem, n o entanto, u m a classe socialmente equiparada
à dos últimos. As escolas de escribas d o t e m p o de H e r o d e s , ao c o n t r á r i o , n a situação
de crescente o p r e s s ã o e t e n s ã o íntimas devidas à d o m i n a ç ã o estrangeira evidentemente
i n a m o v í v e l , p r o d u z i r a m u m a c a m a d a p r o l e t a r ó i d e d e intérpretes da l e i que, n a f u n ç ã o
d e curas d e a l m a , pregadores e professores nas sinagogas — t a m b é m n o s i n é d r i o h o u v e
representantes — influenc i a ra m d e m o d o decisivo a piedade p o p u l a r dos judeus unidos
nas c o n g r e g a ç õ e s e estritamente fiéis à l e i (chaberim) n o sentido dos petvsdúm (fari-
s e u s ) esse tipo de prática profissional t e m sua c o n t i n u a ç ã o n o funcionalismo congrega-
346 MAX WEBER

cional dos rabinos da é p o c a talmúdica. E m o p o s i ç ã o [àqueles intelectuais piedosos],


as [escolas de escribas] d e r a m lugar a u m a d i v u l g a ç ã o e n o r m e d o intelectualismo peque-
n o - b u r g u ê s e pária, c o m o n ã o se encontra e m o u t r o povo: a d o m i n a ç ã o amplamente
divulgada da arte de escrever b e m c o m o a e d u c a ç ã o sistemática n o pensamento casuís-
tico, p o r u m a e s p é c i e de "escolas primárias p ú b l i c a s " , já f o r a m consideradas por F i l o
qualidades específicas dos judeus. A influência desta c a m a d a f o i o que l e v o u a burguesia
judaica u r b a n a a substituir a atividade profética pelo culto da fidelidade à lei e dos
estudos dos escritos sagrados.
Esta camada intelectual popular judaica, totalmente estranha a todo culto de misté-
rios, encontra-se n u m nível social muito mais b a i x o do que a dos filósofos e mistagogos
da sociedade helenística do O r i e n t e P r ó x i m o . Mas, s e m d ú v i d a , existiu t a m b é m no
O r i e n t e helenístico, já nos tempos anteriores à e r a cristã, u m intelectualismo que per-
m e a v a as diferentes camadas sociais e, mediante alegoria e e s p e c u l a ç ã o , p r o d u z i u ,
nos diversos cultos de salvação sacramentais e nas c o n s a g r a ç õ e s , u m a d o g m á t i c a soterio-
lógica semelhante à q u e l a criada pelos ó r f i c o s , que t a m b é m , e m sua grande m a i o r i a ,
e r a m m e m b r o s das camadas m é d i a s . Pelo m e n o s u m escriba da diáspora, c o m o Paulo,
deve ter conhecido e odiado esses mistérios e e s p e c u l a ç õ e s soteriológicos — o culto
de Mitra e r a divulgado, na Cilicia do tempo de P o m p e u , c o m o religião de piratas,
e m b o r a só esteja documentado e m inscrições da é p o c a pós-cristã encontradas e m T a r s o .
Provavelmente h o u v e t a m b é m ao lado do j u d a í s m o , sobretudo nas províncias, durante
muito tempo esperanças soteriológicas de natureza e p r o v e n i ê n c i a mais diversas; de
outro m o d o n ã o se poderia ter encontrado, ao lado dos monarcas futuros de u m povo
judaico d o m i n a d o r , o r e i dos pobres montado n u m b u r r o , n e m ter sido concebida
a idéia do " f i l h o do h o m e m " (visivelmente u m a c o n s t r u ç ã o gramatical semítica). Mas
e m toda soteriologia complicada, que desenvolve abstrações, a b r e perspectivas cósmicas
e v a i a l é m do mito puramente orientado p o r u m f e n ô m e n o natural o u da simples profecia
de u m b o m m o n a r c a futuro que já se encontra oculto e m algum lugar, participa sempre,
de algum m o d o , o intelectualismo leigo, n o b r e o u pária, c o n f o r m e o caso.
Aquele cultivo das escrituras judaicas e o intelectualismo p e q u e n o - b u r g u ê s que
fomenta p e n e t r a r a m , a partir do j u d a í s m o , t a m b é m no cristianismo p r i m i t i v o . Paulo,
u m artesão, c o m o o e r a m , ao que parece, muitos dos escribas do j u d a í s m o tardio,
e m forte contraste c o m a doutrina de sabedoria da é p o c a siracídica, dirigida contra
a ignorância cultural, é u m destacado representante do tipo (só que ele tem outras
qualidades, mais específicas do que e s t a ) sua gnosis, apesar de estar muito distante
daquilo que p o r ela entendeu o intelectualismo especulativo helenístico-oriental, p ô d e
mais tarde oferecer pontos de referência ao m a r c i o n í s m o . Aquele elemento do intelec-
tualismo que está n o orgulho de pensar que somente os chamados por Deus entendem
o sentido das p a r á b o l a s do Mestre apresenta-se t a m b é m de f o r m a muito marcante quan-
do ele se o r g u l h a de que o v e r d a d e i r o conhecimento é " p a r a os judeus u m escândalo
e p a r a os helenos u m a l o u c u r a " . T a m b é m seu dualismo da " c a r n e " e d o " e s p í r i t o " ,
apesar de incorporado n u m a c o n c e p ç ã o diferente, é, portanto, a f i m c o m a posição
da soteriologia típica de intelectuais e m r e l a ç ã o à sensualidade; parece haver u m conhe-
cimento, p r o v a v e l m e n t e u m tanto s u p e r f i c i a l , da filosofia helénica. E sobretudo sua
c o n v e r s ã o n ã o é m e r a m e n t e u m a v i s ã o n o sentido de u m a p e r c e p ç ã o alucinatória mas,
ao m e s m o tempo, n o sentido de u m a p e r c e p ç ã o íntima e pragmática da conjugação
do destino pessoal do ressuscitado e das c o n c e p ç õ e s gerais, que b e m conhecia, da
soteriologia oriental e de suas p r a g m á t i c a s de culto, n a q u a l se e n c a i x a m , para ele,
as promessas da p r o f e c i a judaica. Suas epístolas, pela a r g u m e n t a ç ã o , s ã o exemplos
altamente típicos da dialética d o intelectualismo p e q u e n o - b u r g u ê s : é surpreendente
o g r a u de " i m a g i n a ç ã o l ó g i c a " que u m escrito c o m o a Epístola aos Romanos pressupõe
ECONOMIA E SOCIEDADE 347

nas camadas às quais se dirige e, s e m dúvida alguma, o que n a v e r d a d e f o i acolhido


naquele tempo n ã o foi sua doutrina de justificação, mas s i m suas c o n c e p ç õ e s da r e l a ç ã o
entre inspiração e c o n g r e g a ç ã o e o m o d o de a d a p t a ç ã o relativa às circunstâncias cotidia-
nas do m u n d o circundante. Mas a fúria desenfreada, precisamente contra ele, dos judeus
da diáspora, aos quais seu m é t o d o dialético tinha que p a r e c e r u m v i l abuso da f o r m a ç ã o
pelas escrituras, mostra c o m o aquele m é t o d o correspondia exatamente ao tipo desse
intelectualismo p e q u e n o - b u r g u ê s . Este tem ainda sua c o n t i n u a ç ã o na p o s i ç ã o carismática
dos " m e s t r e s " (ôiôáaxaXoi), nas p r i m i t i v a s c o n g r e g a ç õ e s cristãs (ainda na Didakhe),
e H a r n a c k encontra, na Epístola aos Hebreus, u m e x e m p l o de s e u m é t o d o e x e g é t i c a
Depois, ao destacar-se de m o d o cada v e z mais forte o m o n o p ó l i o dos bispos e presbíteros
na d i r e ç ã o espiritual das c o n g r e g a ç õ e s , desapareceu e s e u lugar f o i ocupado pelo intelec-
tualismo dos apologistas e depois pelo dos Padres da I g r e j a e d o g m á t i c o s , c o m e d u c a ç ã o
helenista e quase todos m e m b r o s do c l e r o , e dos i m p e r a d o r e s , teologicamente diletan-
tes, até que, por f i m , n o O r i e n t e , depois de t r i u n f a r nas lutas dos iconoclastas, se
i m p u s e r a m os monges, recrutados das camadas sociais mais baixas, não-helênicas. Nun-
ca f õ r possível e x t e r m i n a r totalmente, na igreja do O r i e n t e , aquele tipo de dialética
formalista que e r a c o m u m a todos esses círculos, junto c o m o ideal de divinização
própria, meio intelectualista, m e i o m á g i c o - p r i m i t i v o . Mas o decisivo p a r a o destino
do cristianismo p r i m i t i v o foi a circunstância de ele ser, pelo m o d o c o m o nasceu, p o r
seu portador típico e pelo c o n t e ú d o de sua c o n d u ç ã o religiosa da v i d a que este considera
decisivo nele u m a doutrina de s a l v a ç ã o , a q u a l , apesar de ter e m c o m u m c o m o esquema
oriental geral alguns elementos de seu mito s o t e r i o l ó g i c o , de ter tomado outros m o d i f i -
cando-os diretamente e de Paulo ter adotado o m é t o d o dos escribas judaicos, se opôs,
desde o princípio, conscientemente e do m o d o mais c o n s e q ü e n t e , ao intelectualismo.
T o m o u posição tanto contra a e r u d i ç ã o judaica ritual-jurídica quanto contra a soterio-
logia da aristocracia intelectual gnóstica, e mais ainda contra a filosofia da Antiguidade.
É característico do cristianismo desaprovar a d e g r a d a ç ã o gnóstica dos " p í s t i c o s " , susten-
tar que s ã o os " p o b r e s de e s p í r i t o " e n ã o os " s á b i o s " os cristãos e x e m p l a r e s , que
o caminho da salvação n ã o passa pelo conhecimento adquirido, seja o da l e i , seja o
dos fundamentos c ó s m i c o s e psicológicos da v i d a e do sofrimento, o u o das c o n d i ç õ e s
da v i d a no m u n d o , o u dos significados secretos dos ritos, o u dos destinos futuros da
alma no a l é m — tudo isso e, ainda, que a circunstância de que u m a parte essencial
da história eclesiástica interna da cristandade antiga, inclusive a criação dos dogmas,
representa u m a autodefesa contra o intelectualismo, e m todas suas formas. Se se qui-
sesse apresentar sumariamente n u m t ó p i c o as camadas portadoras e propagadoras das
chamadas religiões universais, s e r i a m estas, p a r a o confucionismo, os burocratas orde-
nadores do m u n d o ; para o h i n d u í s m o , os magos ordenadores d o m u n d o ; p a r a o budis-
m o , os monges que p e r a m b u l a m pelo m u n d o ; p a r a o islã, os g u e r r e i r o s que subjugam
o m u n d o ; para o j u d a í s m o , os comerciantes ambulantes; p a r a o cristianismo, os oficiais
artesanais ambulantes, e todos eles n ã o c o m o expoentes de suas profissões o u de " i n t e -
resses de classe" materiais, mas s i m c o m o portadores i d e o l ó g i c o s de u m a ética o u
doutrina de salvação que se enlaçava c o m m a i o r facilidade c o m sua situação social.

O islã, f o r a das escolas oficiais de direito e teologia e do florescimento t e m p o r á r i o


de interesses científicos, somente poderia ter e x p e r i m e n t a d o u m a i r r u p ç ã o intelectua-
lista junto c o m a p e n e t r a ç ã o do sufismo. Mas este n ã o estava orientado e m tal sentido;
precisamente o traço racional falta totalmente à piedade popular dos d e r v i x e s , e apenas
algumas poucas seitas heterodoxas do islã, ainda que bastante influentes e m certas
ocasiões, tinham caráter especificamente intelectualista. D e resto d e s e n v o l v e u ele, do
m e s m o m o d o que o cristianismo m e d i e v a l , e m suas escolas superiores, rudimentos
de u m a escolástica.
348 MAX WEBER

N ã o cabe e x p o r a q u i c o m o e r a m as relações entre o intelectualismo e a religio-


sidade no cristianismo m e d i e v a l . E m todo caso, a religiosidade, e m seus efeitos sociolo-
gicamente relevantes, n ã o foi orientada por f o r ç a s intelectualistas, e a forte atuação
do racionalismo m o n a c a l desenvolvia-se na área dos c o n t e ú d o s culturais e somente
poderia ser esclarecida mediante u m a c o m p a r a ç ã o do monacato ocidental c o m o oriental
e asiático que apenas poderemos r e a l i z a r mais tarde, n u m e s b o ç o muito conciso. Pois
é sobretudo na peculiaridade de seu monacato que se fundamenta a peculiaridade da
a t u a ç ã o c u l t u r a l da igreja do Ocidente. A Idade Média ocidental n ã o conheceu (pelo
menos n ã o e m g r a u r e l e v a n t e ) u m intelectualismo religioso leigo de caráter pequeno-
b u r g u ê s , n e m u m intelectualismo-pária. E x i s t i u , ocasionalmente, dentro das seitas. O
papel das camadas cultas nobres, dentro d o desenvolvimento eclesiástico, n ã o era insig-
nificante. As camadas cultas imperialistas da é p o c a carolíngia, da otônica e da sálico-
stáufica atuavam n o sentido de u m a o r g a n i z a ç ã o c u l t u r a l imperial-teocrática, b e m c o m o
o f a z i a m os monges josefitas na Rússia do s é c u l o X V I ; mas sobretudo o movimento
de r e f o r m a gregoriano e a luta p e l o p o d e r dos papas fundamentavam-se na ideologia
de u m a camada n o b r e de intelectuais que, e m u n i ã o c o m a burguesia nascente, fazia
frente aos poderes feudais. C o m a e x t e n s ã o crescente da f o r m a ç ã o universitária e as
pretensões do papado de monopolizar, p a r a fins fiscais o u de p u r a patronagem, a atribui-
ç ã o do e n o r m e n ú m e r o de prebendas que constituíam o fundamento e c o n ô m i c o dessa
camada, a camada cada v e z mais ampla de interessados nessas prebendas foi-se afas-
tando do poder p a p a l , p r i m e i r o principalmente p o r interesses de m o n o p ó l i o e c o n ô m i c o s
e nacionalistas e, e m seguida, a p ó s o cisma, t a m b é m ideologicamente, tornando-se
u m a das " portadoras'' do m o v i m e n t o de r e f o r m a conciliar e, mais tarde, do humanismo.
N ã o cabe e x a m i n a r a q u i a sociologia dos humanistas que, de p e r s i , n ã o é sem interesse,
sobretudo a da t r a n s f o r m a ç ã o da e d u c a ç ã o cavaleiresca e c l e r i c a l n u m a e d u c a ç ã o condi-
cionada e m sentido cortesão e m e c ê n i c o , c o m suas c o n s e q ü ê n c i a s . Sua atitude ambígua
no cisma religioso foi condicionada sobretudo por motivos i d e o l ó g i c o s . Na medida
e m que este g r u p o n ã o se colocava ao serviço da f o r m a ç ã o das igrejas reformadas
ou da C o n t r a - R e f o r m a , desempenhando nas igrejas, nas escolas e n o desenvolvimento
das doutrinas u m papel organizador e sistematizador muito importante p o r é m jamais
decisivo, mas se tornou portador de u m a religiosidade específica (na v e r d a d e , de toda
u m a série de tipos religiosos particulares), n ã o h o u v e c o n s e q ü ê n c i a s ulteriores duradou-
ras. E m c o r r e s p o n d ê n c i a a seu nível de v i d a , as camadas humanistas c o m f o r m a ç ã o
clássica e r a m contrárias à ignorância e ao sectarismo, desprezavam as disputas e sobre-
tudo a demagogia dos sacerdotes e predicantes, tendo, portanto, idéias erasmianas
e irenistas e sendo, já p o r isso, condenadas a u m a crescente falta de influência.

A o lado de u m ceticismo sofisticado e u m i l u m i n i s m o racionalista, encontramos


entre eles, sobretudo e m solo anglicano, u m a delicada religiosidade sentimental ou,
c o m o n o círculo de Port R o y a i , u m m o r a l i s m o s é r i o , muitas vezes ascético, o u , assim
inicialmente na A l e m a n h a e t a m b é m na Itália, u m a mística individualista. Mas a luta
daqueles que participavam de seus interesses vitais e c o n ô m i c o s e de poder, quando
n ã o diretamente v i o l e n t a , f o i conduzida c o m os meios de u m a demagogia à qual aqueles
círculos n ã o p o d i a m fazer frente. S e m d ú v i d a , pelo m e n o s aquelas igrejas que preten-
d i a m p ô r a seu s e r v i ç o as camadas dominantes e sobretudo as universidades precisavam
dos polemistas c o m f o r m a ç ã o clássica, isto é, t e o l ó g i c a , e d e u m a camada de predica-
dores c o m f o r m a ç ã o semelhante. D e n t r o d o luteranismo, e m correspondência a sua
aliança c o m o poder principesco, a c o m b i n a ç ã o de cultura intelectual e atividade religio-
sa logo chegou a limitar-se substancialmente à teologia profissional. Dos círculos purita-
nos, ao contrário, zomba ainda o Hudibras p o r causa de sua ostensiva e r u d i ç ã o filosófica.
Mas nestes e, sobretudo, nas seitas batistas, o que lhes p r o p o r c i o n a v a inquebrantável
ECONOMIA E SOCIEDADE 349

força de resistência n ã o e r a o intelectualismo n o b r e , mas o p l e b e u e, às v e z e s ( n o


caso dos batistas, nos inícios do m o v i m e n t o sustentado p o r oficiais artesanais ambulantes
ou a p ó s t o l o s ) o intelectualismo-pária. N ã o existia aqui u m a camada específica d e inte-
lectuais c o m c o n d i ç õ e s especiais de v i d a ; f o i , depois d e t e r m i n a r o b r e v e p e r í o d o dos
predicantes missionários ambulantes, a classe m é d i a que acabou impregnada p o r essa
tendência religiosa. A d i v u l g a ç ã o extraordinária do conhecimento da Bíblia e do inte-
resse pelas controvérsias d o g m á t i c a s mais abstrusas e sublimes, m e s m o entre a grande
m a i o r i a dos camponeses, c o m o a encontramos nos círculos puritanos do s é c u l o X V I I I ,
c r i o u u m intelectualismo religioso de massas que n u n c a mais encontrou s e u igual e,
nos tempos anteriores, somente pode ser c o m p a r a d o ao intelectualismo de massas do
j u d a í s m o tardio o u das c o n g r e g a ç õ e s missionárias de Paulo. Na p r ó p r i a I n g l a t e r r a , logo
decaiu, e m o p o s i ç ã o à H o l a n d a , a partes da Escócia e às c o l ô n i a s a m e r i c a n a s , depois
de p a r e c e r e m provadas e estabelecidas as esferas e possibilidades de poder nas lutas
religiosas. Mas toda a peculiaridade do intelectualismo n o b r e a n g l o - s a x ô n i c o , particu-
l a r m e n t e sua d e f e r ê n c i a tradicional e m r e l a ç ã o a u m a religiosidade concebida de m o d o
deísta-iluminista, indefinida mas n u n c a adversa à I g r e j a , r e c e b e u naquela é p o c a seu
caráter que n ã o cabe e x p o r a q u i e m seus detalhes. Constitui, p o r é m , p o r ser condicio-
nada pela p o s i ç ã o tradicional da burguesia politicamente poderosa e p o r seus interesses
moralistas, isto é, p o r u m intelectualismo religioso p l e b e u , o contraste mais forte c o m
o desenvolvimento do intelectualismo substancialmente cortesão e n o b r e dos países
r o m â n i c o s e m d i r e ç ã o a u m a atitude radicalmente adversa o u absolutamente indiferente
e m r e l a ç ã o à Igreja. E ambos os desenvolvimentos, e m última análise igualmente antime-
tafísicos, constituem u m contraste c o m a f o r m a ç ã o religiosa n o b r e alemã não-política,
tampouco apolítica o u antipolítica, condicionada p o r circunstâncias muito concretas
e e m pequena medida (e substancialmente de m o d o negativo) por circunstâncias de
natureza s o c i o l ó g i c a , c o m u m a o r i e n t a ç ã o metafísica mas apenas pouco voltada p a r a
necessidades especificamente religiosas e muito m e n o s ainda p a r a necessidades de " s a l -
v a ç ã o " . O intelectualismo plebeu e pária da A l e m a n h a , ao contrário, assim c o m o o
dos povos r o m â n i c o s , mas e m contraste c o m o dos países a n g l o - s a x ô n i c o s , nos quais,
desde a é p o c a puritana, a religiosidade mais rigorosa n ã o e r a de caráter institucional-
autoritário mas antes sectário, t o m o u cada v e z mais u m r u m o radicalmente anti-reli-
gioso, e m definitivo desde o nascimento da crença socialista, economicamente escato-
lógica.

Somente essas seitas anti-religiosas d i s p õ e m d e u m a camada de intelectuais des-


classificada capaz, pelo m e n o s temporariamente, de s e r portadora de u m a crença pseu-
do-religiosa na escatologia socialista. Q u a n t o mais os economicamente interessados
tomam e m suas próprias m ã o s a defesa de seus interesses, tanto mais retrocede precisa-
mente esse elemento " a c a d ê m i c o " ; a desilusão inevitável da g l o r i f i c a ç ã o quase supers-
ticiosa da " c i ê n c i a " c o m o possível p r o d u t o r a o u , pelo menos, c o m o profetisa da r e v o l u -
ç ã o social, violenta o u pacífica, n o sentido da r e d e n ç ã o da d o m i n a ç ã o de classe, faz
o resto, e a única variante do socialismo, n a E u r o p a ocidental, que pode ser considerada
realmente equivalente a u m a crença religiosa — o sindicalismo — justamente p o r isso
c o r r e facilmente o risco de tornar-se u m a e s p é c i e de esporte r o m â n t i c o de não-inte-
ressados.
O ú l t i m o grande m o v i m e n t o pseudo-religioso de intelectuais, sustentado por u m a
f é n ã o - h o m o g ê n e a , mas c o m u m e m pontos importantes, f o i o da inteligência revolucio-
nária russa. A inteligência n o b r e , a c a d ê m i c a e aristocrática estava nele ao l a d o do intelec-
tualismo p l e b e u , representado p e l o f u n c i o n a l i s m o i n f e r i o r p r o l e t a r ó i d e , bastante v e r s a -
do e m s e u pensamento s o c i o l ó g i c o e seus interesses culturais u n i v e r s a i s , especialmente
pelos f u n c i o n á r i o s da administração a u t ô n o m a ( o c h a m a d o " t e r c e i r o e l e m e n t o " ) p o r
350 MAX WEBER

jornalistas, professores de escolas primárias, apóstolos revolucionários e u m a inteli-


g ê n c i a camponesa nascida das específicas c o n d i ç õ e s sociais russas. Isso teve c o m o conse-
q ü ê n c i a o m o v i m e n t o baseado n o direito n a t u r a l e orientado sobretudo pelo comunismo
a g r á r i o iniciado nos anos 70 d o s é c u l o X I X , c o m o nascimento do c h a m a d o narodnit-
chestvo (populismo), que, nos anos 90, e m parte e n t r o u n u m a controvérsia aguda c o m
a d o g m á t i c a m a r x i s t a , e m parte mesclou-se a ela e m diversas f o r m a s e, e m várias oca-
siões, p r o c u r o u p r i m e i r o f i r m a r u m a r e l a ç ã o geralmente p o u c o clara c o m a religiosidade
eslavófilo-romântica, depois c o m a religiosidade mistica o u , p e l o menos, c o m o entu-
siasmo religioso, mas que e m algumas camadas da inteligência, n ã o r a r o relativamente
amplas, sob a influência de Dostoievski e Tolstoi, c o n d u z i u a u m m o d o de vida pessoal
ascético o u a c ó s m i c o . D e que f o r m a este m o v i m e n t o , fortemente impregnado p o r uma
inteligência p r o l e t a r ó i d e judaica, disposta a qualquer sacrifício, renascerá após a catás-
trofe da r e v o l u ç ã o russa (de 1 9 0 5 ) é algo que ainda desconhecemos [ e m 1913 (N T . ) ] .
Na E u r o p a ocidental, camadas religioso-iluministas c r i a r a m , já desde o século
X V I I , n o â m b i t o cultural tanto a n g l o - s a x ô n i c o quanto, recentemente, n o f r a n c ê s , congre-
g a ç õ e s unitaristas, deístas o u t a m b é m sincretistas, ateístas e de igrejas livres, nas quais
às vezes e n t r a r a m e m jogo c o n c e p ç õ e s budistas (ou outras assim c o n s i d e r d a s ) Na Alema-
n h a , elas e n c o n t r a r a m c o m o tempo seu t e r r e n o quase nos mesmos círculos que a
f r a n c o - m a ç o n a r i a , isto é, entre os economicamente não-interessados, particularmente
entre os professores universitários e igualmente entre i d e ó l o g o s desclassificados e algu-
mas camadas cultas m e i o o u totalmente proletárias. Por outro lado, a i l u m i n a ç ã o h i n -
duísta ( B r a m a - S a m a j ) e a persa, na í n d i a , constituem u m produto do contato c o m a
cultura e u r o p é i a . A importância prática p a r a a cultura era m a i o r n o passado do que
é atualmente. O interesse das camadas privilegiadas e m conservar a religião existente
c o m o m e i o de d o m e s t i c a ç ã o , sua necessidade de distância e sua a v e r s ã o contra o trabalho
de e l u c i d a ç ã o das massas, o qual destrói seu prestígio, sua fundada descrença e m que
as confissões tradicionais, de cujo teor as novas interpretações constantemente extraem
algo (a " o r t o d o x i a " , 10% ; os " l i b e r a i s " , 9 0 % ) , possam ser substituídas p o r uma confis-
s ã o nova que amplas camadas aceitem literalmente e, sobretudo, a indiferença desde-
nhosa p a r a c o m os problemas religiosos e a igreja, cujas formalidades afinal pouco
onerosas p o d e m ser c u m p r i d a s s e m grande sacrifício, pois todos sabem que são simples
formalidades mais b e m c u m p r i d a s pelos g u a r d i ã e s oficiais da ortodoxia e da c o n v e n ç ã o
estamental, e o Estado as exige p a r a se fazer c a r r e i r a — tudo isso faz parecer muito
escassas as possibilidades d o nascimento de u m a religiosidade congregacional séria.
Mas a necessidade do intelectualismo literário, a c a d ê m i c o o u cultivado nos cafés, de
incluir n o inventário de suas fontes de sensações e de seus objetos de discussão os
sentimentos " r e l i g i o s o s " , a necessidade de autores de e s c r e v e r l i v r o s sobre esses interes-
santes problemas, e a, ainda muito mais eficaz, de editores engenhosos de vender
esses livros, ainda que f a ç a m parecer que haja u m "interesse r e l i g i o s o " amplamente
divulgado, e m nada m u d a m o fato de que de tais necessidades de intelectuais e de
seu palavreado jamais nasceu u m a religião n o v a e de que a própria moda que fez
surgir esse assunto de conversa e de publicidade t a m b é m o fará desaparecer.

8 8. O p r o b l e m a d a t e o d l c é i a

A idéia monoteísta de Deus e a imperfeição do mundo, p. 351. — Tipos puros da teodicéia:


escatologia messiânica, p 351 — C r e n ç a no além, crença na providência, crença na retribuição,
crença na predestinação, p. 352. — A s diferentes tentativas de resolver o problema da imperfeição
do mundo, p. 354.
ECONOMIA E SOCIEDADE 351

Rigorosamente " m o n o t e í s t a s " s ã o , no fundo, somente o j u d a í s m o e o islã, e este


último apenas de f o r m a atenuada, e m v i r t u d e da p e n e t r a ç ã o posterior do culto aos
santos. Mas a trindade cristã, e m o p o s i ç ã o à c o n c e p ç ã o triteísta das trindades hinduístas,
budistas tardias e taoístas, parece ser substancialmente monoteísta, enquanto que o
culto das missas e dos santos do catolicismo está de fato muito p r ó x i m o do politeísmo.
T a m p o u c o está todo deus ético necessariamente dotado de absoluta imutabilidade, o n i -
potência e onisciência, e m r e s u m o , de qualidades absolutamente supramundanas. A
e s p e c u l a ç ã o e o p a t h o s [afeto, p a i x ã o (N. T . ) ] ético de profetas entusiasmados p r o p o r c i o -
na-lhes estas qualidades que, entre todos os deuses, c o m plena d e s c o n s i d e r a ç ã o das
c o n s e q ü ê n c i a s , somente f o r a m alcançados pelo deus dos profetas judaicos, que mais
tarde se tornou t a m b é m o deus dos cristãos e dos maometanos. N e m toda c o n c e p ç ã o
ética de u m deus c o n d u z i u a estas c o n s e q ü ê n c i a s o u a u m m o n o t e í s m o ético; n e m
toda a p r o x i m a ç ã o ao m o n o t e í s m o baseia-se n u m a intensificação dos c o n t e ú d o s éticos
da c o n c e p ç ã o de u m deus; muito menos ainda, n e m toda ética religiosa d e u o r i g e m
a u m deus pessoal, s u p r a m u n d a n o , que cria todo ser do nada e g o v e r n a tudo sozinho.
Mas toda profecia especificamente ética, de cuja legitimação s e m p r e faz parte u m deus
dotado de atributos de g r a n d e s u p e r i o r i d a d e sobre o m u n d o , baseia-se n o r m a l m e n t e
e m u m a racionalização t a m b é m da c o n c e p ç ã o do deus naquele sentido. A natureza
e o sentido dessa s u p e r i o r i d a d e , n o entanto, p o d e m ser muito diversos, e isto, e m
parte, deve-se a c o n c e p ç õ e s metafísicas ciadas e f i x a s e, e m parte, é e x p r e s s ã o dos
concretos interesses éticos d o profeta. Mas quanto mais p r ó x i m a a c o n c e p ç ã o d e u m
deus ú n i c o , u n i v e r s a l e s u p r a m u n d a n o , tanto mais facilmente surge o p r o b l e m a de
c o m o o poder aumentado ao infinito de semelhante deus pode ser c o m p a t í v e l c o m
o fato da i m p e r f e i ç ã o do m u n d o que ele c r i o u e governa. O p r o b l e m a assim surgido
da teodicéia está v i v o tanto na literatura do antigo Egito quanto e m J ó e É s q u i l o , s ó
que cada v e z n u m a v a r i a ç ã o peculiar. T o d a a religiosidade da índia está p o r ele influen-
ciada de u m m o d o determinado pelas c o n d i ç õ e s ali dadas: é que t a m b é m u m a o r d e m
do m u n d o impessoal e s u p r a d i v i n a , plena de sentido, tropeça c o m o p r o b l e m a d e sua
i m p e r f e i ç ã o . D e alguma f o r m a o p r o b l e m a faz parte universalmente das causas d e t e r m i -
nantes do desenvolvimento religioso e da necessidade de salvação. N ã o os argumentos
das ciências naturais, mas a incompatibilidade de u m a p r o v i d ê n c i a d i v i n a c o m a injustiça
e i m p e r f e i ç ã o da o r d e m social foi apresentada ainda há poucos a n o s 1 , n u m a pesquisa,
p o r m i l h a r e s de trabalhadores a l e m ã e s c o m o r a z ã o da impossibilidade de aceitar a
idéia da existência de u m deus.
O p r o b l e m a da teodicéia encontrou s o l u ç õ e s diversas e estas estão n u m a r e l a ç ã o
muito íntima c o m a f o r m a ç ã o da c o n c e p ç ã o de deus e t a m b é m c o m a das idéias de
pecado e salvação. E x a m i n a r e m o s apenas os tipos mais " p u r o s " possíveis, do ponto
de vista racional.
U m m o d o de estabelecer o justo e q u i l í b r i o consiste na referência a u m a compen-
sação futura neste m u n d o : escatologias messiânicas. O processo e s c a t o l ó g i c o consiste
então n u m a t r a n s f o r m a ç ã o política e social deste m u n d o . U m h e r ó i poderoso, o u u m
deus, virá — logo, mais tarde, a l g u m dia — e c o l o c a r á seus adeptos na p o s i ç ã o que
m e r e c e m no m u n d o . O s sofrimentos da g e r a ç ã o atual s ã o c o n s e q ü ê n c i a s dos pecados
dos antepassados, pelos quais o deus responsabiliza os descendentes do m e s m o m o d o
que, na vendeta, o assassino se v i n g a n o clã inteiro e que, ainda, o papa G r e g ó r i o
V I I excomungava os descendentes até a sétima g e r a ç ã o . Pode acontecer t a m b é m que
apenas os descendentes dos piedosos, e m v i r t u d e de sua piedade, c h e g a r ã o a v e r o

1 Antes da Primeira Guerra Mundial. (Nota do organizador.)


352 MAX WEBER

r e i n o messiânico. A r e n ú n c i a , talvez necessária à p r ó p r i a e x p e r i ê n c i a da s a l v a ç ã o , n ã o


parecia nada estranho. C u i d a r dos filhos e r a p o r toda parte u m a tendência o r g â n i c a
que apontava, através dos interesses p r ó p r i o s , pessoais, p a r a u m " a l é m " , pelo menos
a p ó s a p r ó p r i a morte. Aos v i v o s cabe o c u m p r i m e n t o rigoroso e e x e m p l a r dos manda-
mentos divinos positivos, e isto, p o r u m lado, p a r a obter p a r a s i mesmos pelo menos
o m á x i m o de oportunidades durante a v i d a , e m v i r t u d e da b e n e v o l ê n c i a d i v i n a , e,
p o r outro, p a r a conquistar p a r a seus descendentes a participação n o r e i n o da salvação.
O " p e c a d o " é u m r o m p i m e n t o da fidelidade ao deus, u m a r e n ú n c i a apóstata às p r o -
messas divinas. O desejo de participação n o r e i n o m e s s i â n i c o leva à intensificação das
atividades religiosas. Nasce u m a e n o r m e e x c i t a ç ã o religiosa q u a n d o parece iminente
o advento d o r e i n o d i v i n o neste m u n d o . S e m p r e d e n o v o a p a r e c e m profetas que o
a n u n c i a m . No entanto, se d e m o r a demasiadamente esse advento, é quase inevitável
a c o n s o l a ç ã o c o m as esperanças de u m f u t u r o n o " a l é m " .
A c o n c e p ç ã o de u m " a l é m " já está dada, e m g e r m e , na passagem da magia à
c r e n ç a nas almas. Mas n e m s e m p r e a existência das almas dos mortos se consolida
na a d m i s s ã o de u m r e i n o especial dos mortos. U m a c o n c e p ç ã o muito corrente foi a
da e n c a r n a ç ã o dos espíritos dos m o n o s e m animais e plantas, diferente segundo o
m o d o de v i v e r e de m o r r e r , segundo o clã e o estamento — a fonte das idéias da
metempsicose. Q u a n d o se c r ê n u m r e i n o dos mortos, p r i m e i r a m e n t e n u m lugar geogra-
ficamente remoto, mais tarde n u m lugar s u b t e r r â n e o o u n o c é u , a v i d a das almas aí
n ã o é necessariamente eterna. A s almas p o d e m ser violentamente aniquiladas o u perecer
p o r o m i s s ã o de sacrifícios o u simplesmente m o r r e r a l g u m dia (ao que parece, a concep-
ç ã o chinesa a n t i g a ) Certa p r e o c u p a ç ã o c o m o p r ó p r i o destino a p ó s a morte surge,
e m c o r r e s p o n d ê n c i a c o m a " l e i da utilidade m a r g i n a l " , quase s e m p r e quando estão
providas as m a i s fundamentais necessidades deste m u n d o e, p o r isso, limita-se inicial-
mente aos círculos dos nobres e proprietários. S ó eles, e às vezes apenas ps cjiefes
e sacerdotes, n u n c a os pobres e r a r a m e n t e as m u l h e r e s , p o d e m assegurar paria si a
existência n o a l é m e, p a r a f a z ê - l o , f r e q ü e n t e m e n t e n ã o r e c u a m n e m diante das maiores
despesas. É sobretudo seu e x e m p l o que propaga a o c u p a ç ã o c o m as esperanças postas
n o a l é m . N ã o se fala de u m a " r e t r i b u i ç ã o " n o outro m u n d o . Q u a n d o s u r g é essa idéia,
trata-se e m p r i m e i r o lugar apenas de falhas rituais que l e v a m a desvantagens: é o que
o c o r r e , e m e x t e n s ã o mais a m p l a , ainda n o direito sagrado da índia. Q u e m infringe
o tabu de casta sofre as torturas infernais. Somente o deus eticamente qualificado dispõe
t a m b é m dos destinos n o a l é m sob aspectos éticos. A distinção entre o i n f e r n o e o paraíso
n ã o surge s ó a partir desta c o n c e p ç ã o , m a s é u m produto relativamente tardio d o desen-
v o l v i m e n t o . C o m a força crescente das esperanças postas no a l é m , isto é, quanto mais
a v i d a neste m u n d o , c o m p a r a d a à q u e l a n o a l é m , é considerada u m a f o r m a de existência
apenas provisória, quanto mais se concebe este m u n d o c o m o algo criado por Deus
a partir do nada, e p o r isso p e r e c í v e l , e o p r ó p r i o c r i a d o r c o m o u m ser submetido
às finalidades e aos v a l o r e s do a l é m , orientando-se, portanto, as a ç õ e s neste mundo
cada v e z mais pelo destino n o a l é m , tanto mais passa ao p r i m e i r o plano do pensamento
o p r o b l e m a da r e l a ç ã o p r i n c i p a l de D e u s c o m o m u n d o e sua i m p e r f e i ç ã o . As esperanças
postas n o a l é m c o n t ê m às vezes u m a i n ve rs ã o direta da c o n c e p ç ã o originária que fez
da q u e s t ã o do a l é m u m assunto dos nobres e ricos, segundo a f ó r m u l a : " o s últimos
s e r ã o os p r i m e i r o s " . Mas m e s m o nas c o n c e p ç õ e s religiosas dos povos-párias esta inver-
s ã o r a r a m e n t e é levada a cabo c o m c o n s e q ü ê n c i a i n e q u í v o c a . Desempenhava, p o r é m ,
u m papel importante, p o r e x e m p l o , n a ética judaica antiga, e a s u p o s i ç ã o de que o
sofrimento, sobretudo o v o l u n t á r i o , apazigua a divindade e m e l h o r a as possibilidades
n o a l é m encontra-se entretecida e m muitas esperanças d o a l é m , desenvolvida por moti-
vos muito diversos, talvez, e m parte, a partir das p r o v a s d e coragem da ascese heróica
ECONOMIA E SOCIEDADE 353

e da prática de m o r t i f i c a ç ã o m á g i c a . A r e g r a , p o r é m , sobretudo e m religiões que estão


sob a influência de camadas dominantes, é a idéia de que t a m b é m n o a l é m n ã o s e r ã o
s e m importância as d i f e r e n ç a s estamentais deste m u n d o , u m a v e z que D e u s as estabe-
leceu, idéia que ainda encontramos entre os monarcas cristãos "sacrossantos". A idéia
especificamente ética, contudo, é a da " r e t r i b u i ç ã o " dos bons e m a u s feitos concretos
c o m base e m u m j u í z o dos mortos, e o processo e s c a t o l ó g i c o é, portanto, e m r e g r a ,
u m dia de j u í z o u n i v e r s a l . Por isso, o pecado t e m d e assumir o caráter d e u m crimen,
que pode e n t ã o ser i n c l u í d o n u m a casuística r a c i o n a l e pelo q u a l se deve d a r alguma
satisfação, neste m u n d o o u n o a l é m , p a r a p o d e r apresentar-se a f i n a l justificado diante
do juiz dos mortos. O s castigos e as recompensas d e v e r i a m ser graduados de a c o r d o
c o m a importância d o m é r i t o o u da falta — c o m o de fato o c o r r e a i n d a e m D a n t e — ,
n ã o podendo, portanto, s e r eternos. Mas, e m vista da palidez e incerteza das possibi-
lidades do a l é m perante a realidade deste m u n d o , os profetas e sacerdotes c o n s i d e r a v a m
quase s e m p r e impossível a r e n ú n c i a a castigos eternos, a l é m de que s ó estes satisfaziam
a necessidade de v i n g a n ç a contra os malfeitores descrentes, apóstatas, ateus impunes
sobre a terra. C é u , i n f e r n o e j u í z o dos mortos a l c a n ç a r a m significado quase u n i v e r s a l ,
m e s m o e m religiões a cuja natureza e r a m originalmente t ã o estranhos quanto ao budis-
m o antigo. No entanto, m e s m o que h o u v e s s e ' ' reinos i n t e r m é d i o s ' ' (Zaratustra) o u ' ' pur-
g a t ó r i o s " , p a r a atenuar a c o n s e q ü ê n c i a d e "castigos" temporalmente ilimitados, eter-
nos, p o r u m a existência temporalmente limitada, s e m p r e continuava existindo a dificul-
dade de tornar c o m p a t í v e l u m a " p u n i ç ã o " de atos h u m a n o s c o m u m c r i a d o r ético
e ao mesmo t e m p o onipotente do m u n d o que e r a , portanto, o ú n i c o responsável p o r
esses atos. Pois a esta c o n s e q ü ê n c i a — u m a e n o r m e distância ética entre o deus do
a l é m e os homens constantemente enredados e m n o v a culpa — t i n h a m de l e v a r aquelas
c o n c e p ç õ e s , tanto m a i s quanto mais se cogitava do p r o b l e m a insolúvel da i m p e r f e i ç ã o
do m u n d o e m vista da o n i p o t ê n c i a do deus. A f i n a l , nada restava a n ã o ser aquela conclu-
s ã o e m que já e m J ó a c r e n ç a na o n i p o t ê n c i a e n o c r i a d o r d o m u n d o está prestes a
tirar: a de colocar esse deus todo-poderoso a l é m de todas as pretensões éticas de suas
criaturas, de considerar suas d e t e r m i n a ç õ e s tão inacessíveis a toda c o m p r e e n s ã o h u m a -
n a , seu poder absoluto sobre suas criaturas t ã o ilimitado e, portanto, t ã o impossível
a aplicação a seus feitos dos critérios da justiça h u m a n a que se desfaz p o r s i m e s m o
o p r o b l e m a da teodicéia c o m o tal. O A l á islâmico f o i concebido assim p o r seus adeptos
mais fervorosos, c o m o t a m b é m o D e u s absconditus cristão, precisamente pelos virtuosos
da piedade cristã. A r e s o l u ç ã o de D e u s , l i v r e , soberana, absolutamente inescrutável
e — c o n s e q ü ê n c i a de sua onisciência — f i x a d a desde s e m p r e decidiu tanto os destinos
sobre a terra quanto os destinos a p ó s a morte. Desde a eternidade está tanto determinado
o destino sobre a terra quanto predestinado o destino n o A l é m . D o m e s m o m o d o que
os condenados p o d e r i a m lamentar-se d e sua inclinação ao pecado, f i x a d a p o r predesti-
n a ç ã o , os animais p o d e r i a m q u e i x a r - s e p o r n ã o s e r e m criados c o m o h o m e n s (assim
expressamente n o c a l v i n i s m o ) Neste caso, o comportamento ético jamais pode ter o
sentido de m e l h o r a r as possibilidades p r ó p r i a s neste m u n d o o u n o a l é m , mas s i m aquele
outro q u e , e m certas circunstâncias, t e m u m efeito p r á t i c o - p s i c o l ó g i c o ainda m a i s forte:
o de s e r sintoma d o estado d e g r a ç a p r ó p r i o , f i x a d o pela d e c i s ã o de D e u s . Pois precisa-
mente a soberania absoluta desse deus obriga o interesse religioso p r ó p r i o a q u e r e r
conhecer suas intenções pelo menos n o caso concreto, e especialmente o conhecimento
d o destino p r ó p r i o n o a l é m é u m a necessidade elementar de cada i n d i v í d u o . Paralela-
m e n t e à t e n d ê n c i a a conceber D e u s c o m o senhor d e p o d e r ilimitado sobre suas criaturas
existe, portanto, a o u t r a , d e v e r e d e interpretar p o r toda parte sua " p r o v i d ê n c i a " ,
sua i n t e r v e n ç ã o pessoal n o curso d o m u n d o . A " c r e n ç a na p r o v i d ê n c i a " é a raciona-
lização c o n s e q ü e n t e da a d i v i n h a ç ã o m á g i c a , da q u a l e l a p r o v é m , m a s q u e justamente
354 MAX WEBER

por isso deprecia, e m p r i n c í p i o , de m o d o relativamente mais completo. N ã o pode h a v e r


n e n h u m a c o n c e p ç ã o das relações religiosas que: 1 ) seja tão radicalmente contrária a
toda magia, tanto teórica quanto praticamente, c o m o essa crença que d o m i n a as grandes
religiões teístas do O r i e n t e P r ó x i m o e do Ocidente; 2 ) t r a n s f i r a e m semelhante extensão
a essência d o d i v i n o p a r a u m " f a z e r " ativo, p a r a o g o v e r n o pessoal e p r o v i d e n c i a l
do m u n d o ; 3 ) acredite tão f i r m e m e n t e na graça d i v i n a , l i v r e m e n t e doada, e na necessi-.
dade de graça das criaturas, na e n o r m e distância entre todas as criaturas e Deus e,
p o r isso, 4 ) na condenabilidade da " d i v i n i z a ç ã o das c r i a t u r a s " , c o m o ofensa da majes-
tade de Deus. Precisamente p o r n ã o oferecer n e n h u m a s o l u ç ã o racional p a r a o p r o b l e m a
prático da teodicéia, essa crença c o n t é m as mais fortes tensões entre o m u n d o e D e u s ,
entre o d e v e r e o ser.
S o l u ç õ e s sistematicamente refletidas do p r o b l e m a da i m p e r f e i ç ã o do m u n d o , a l é m
do da p r e d e s t i n a ç ã o , s ã o oferecidas por apenas dois tipos de c o n c e p ç õ e s religiosas.
E m p r i m e i r o lugar, o d u a l i s m o , tal c o m o o c o n t ê m , c o m m a i o r o u m e n o r c o n s e q ü ê n c i a ,
o desenvolvimento posterior da religião de Zaratustra e numerosas f o r m a s de crença
do O r i e n t e P r ó x i m o , quase s e m p r e influenciadas p o r esta, sobretudo as formas finais
da religião babilónica (influenciadas pelo j u d a í s m o e pelo c r i s t i a n i s m o ) d o m a n d e í s m o
e da gnose, até as grandes c o n c e p ç õ e s do m a n i q u e í s m o , que, p o r volta do s é c u l o I I I ,
t a m b é m na Antiguidade m e d i t e r r â n e a parece estar prestes a disputar a d o m i n a ç ã o do
m u n d o . D e u s n ã o é todo-poderoso, e o m u n d o n ã o é sua c r i a ç ã o a partir do nada.
Injustiça, maus feitos, pecado, tudo, portanto, que faz s u r g i r o p r o b l e m a da teodicéia
é c o n s e q ü ê n c i a da t u r v a ç ã o da radiante p u r e z a dos deuses grandes e bons pelo contato
c o m o poder — independente deles — das trevas, e c o m a matéria i m p u r a , considerada
idêntica a este, poder que permite a u m a f o r ç a satânica d o m i n a r o m u n d o e que nasceu
e m c o n s e q ü ê n c i a de u m c r i m e original dos homens o u dos anjos o u — c o m o para
alguns gnósticos — e m v i r t u d e da i n f e r i o r i d a d e de u m c r i a d o r subalterno do mundo
(de J e o v á o u do " d e m i u r g o " ) . A vitória f i n a l dos deuses luminosos na luta que então
c o m e ç a está assegurada, na m a i o r i a das vezes — u m r o m p i m e n t o do dualismo rigoroso.
O processo c ó s m i c o doloroso, mas inevitável, é u m a d e p u r a ç ã o contínua que separa
a luz da i m p u r e z a . A idéia da luta f i n a l , devido a sua p r ó p r i a natureza, desenvolve
u m pathos e s c a t o l ó g i c o muito forte. A c o n s e q ü ê n c i a g e r a l de semelhantes idéias deve
ser u m sentimento de prestígio aristocrático dos puros e seletos. A c o n c e p ç ã o do m a l ,
que c o m o pressuposto de u m deus absolutamente todo-poderoso s e m p r e mostra a
tendência a u m a v e r s ã o puramente ética, pode assumir neste caso u m caráter fortemente
espiritual, p o r q u e o h o m e m n ã o se encontra, c o m o criatura, diante de u m a onipotência
absoluta, mas tem participação n o r e i n o da luz, e p o r q u e é quase inevitável a identifi-
c a ç ã o da luz c o m o elemento mais l ú c i d o n o h o m e m , o espiritual, e, ao contrário,
a das trevas c o m o m a t e r i a l , c o r p o r a l , que e n c e r r a todas as tentações mais grosseiras.
O c o r r e e n t ã o facilmente que esta c o n c e p ç ã o acolhe a idéia de " i m p u r e z a " da ética
d o tabu. O m a l apresenta-se c o m o i m p u r i f i c a ç ã o ; o pecado, da mesma maneira que
o c r i m e m á g i c o , c o m o queda desprezível, conduzindo à sujidade e à justa ignominia,
do r e i n o da p u r e z a e claridade p a r a o r e i n o das trevas e da c o n f u s ã o . Inconfessadas
limitações da o n i p o t ê n c i a d i v i n a e m f o r m a de elementos de u m pensamento dualista
encontram-se e m quase todas as religiões eticamente orientadas.

A s o l u ç ã o f o r m a l m e n t e m a i s perfeita d o p r o b l e m a da teodicéia é a o b r a especifica


da doutrina indiana do " c a r m a " , da chamada crença na t r a n s m i g r a ç ã o das almas. O
m u n d o é u m cosmos ininterrupto de retribuição ética. C u l p a e m é r i t o s ã o infalivelmente
retribuídos dentro d o m u n d o , p o r m e i o dos destinos n u m a v i d a futura pelos quais
a a l m a terá de passar e m n ú m e r o infinito, renascendo p a r a existências animalescas
o u humanas o u até divinas. Méritos éticos nesta v i d a p o d e m levar ao renascimento
ECONOMIA E SOCIEDADE 355

n o c é u , mas s e m p r e apenas t e m p o r a r i a m e n t e , até que se esgote a conta dos méritos.


D o m e s m o m o d o , a finitude de toda v i d a terrestre é a c o n s e q ü ê n c i a da finitude dos
bons e maus feitos na v i d a a n t e r i o r da m e s m a a l m a , e os sofrimentos da v i d a àtual,
que p a r e c e m injustos do ponto de vista da retribuição, s ã o e x p i a ç õ e s de pecados de
u m a v i d a passada. No sentido m a i s rigoroso, é exclusivamente o p r ó p r i o i n d i v í d u o
que cria seu destino. A c r e n ç a na metempsicose remonta à idéia animista muito corrente
da t r a n s m i g r a ç ã o dos espíritos dos mortos p a r a objetos naturais. Racionaliza-a e c o m
isto t a m b é m o cosmos sob princípios p u r a m e n t e éticos. A " c a u s a l i d a d e " naturalista
de nossos hábitos de pensamento é, portanto, substituída p o r u m mecanismo u n i v e r s a l
de retribuição e m que n u n c a se p e r d e r á algum feito eticamente relevante. A conse-
q ü ê n c i a d o g m á t i c a consiste na circunstância de que u m deus todo-poderoso que interfira
neste mecanismo é totalmente dispensável e i n i m a g i n á v e l : pois o eterno processo cós-
m i c o executa as tarefas éticas de semelhante deus p o r s e u automatismo p r ó p r i o . Cons-
titui, portanto, a c o n c l u s ã o c o n s e q ü e n t e que se tira da supradivinidade da " o r d e m "
eterna do m u n d o , e m o p o s i ç ã o ao caráter s u p r a m u n d a n o do deus que reina pessoal-
mente, c o n c e p ç ã o que conduz necessariamente à idéia de predestinação. No budismo
antigo, que perscruta essa idéia até as últimas c o n s e q ü ê n c i a s , t a m b é m a " a l m a " acaba
eliminada: existem apenas as a ç õ e s , boas o u m á s , relevantes p a r a o m e c a n i s m o do
c a r m a , e m c o n e x ã o c o m a ilusão do " e u ' . E todas as a ç õ e s , p o r sua v e z , s ã o produtos
da luta s e m p r e inútil de toda v i d a f o r m a d a e já p o r isso condenada a p e r e c e r pela
existência própria, destinada ao aniquilamento, u m a luta da " s e d e de v i v e r " da q u a l
nasce tanto a ânsia pelo a l é m quanto toda entrega aos prazeres deste m u n d o e q u e ,
c o m o fundamento i n e x t e r m i n á v e l da i n d i v i d u a ç ã o , c r i a , enquanto existe, s e m p r e de
n o v o a v i d a e a r e e n c a r n a ç ã o . O " p e c a d o " e m sentido rigoroso n ã o existe, mas apenas
violações do interesse p r ó p r i o de escapar dessa " r o d a " s e m f i m o u , pelo menos, de
n ã o se e x p o r a u m renascimento p a r a u m a v i d a ainda mais penosa. O sentido d o compor-
tamento ético somente pode consistir, e m caso d e e x i g ê n c i a s modestas, n o m e l h o r a -
mento das possibilidades de r e e n c a r n a ç ã o o u , q u a n d o se pretende t e r m i n a r a luta inútil
pela m e r a existência, na supressão do renascimento c o m o tal. A cisão do m u n d o e m
dois princípios n ã o consiste, a q u i , c o m o na religiosidade de p r o v i d ê n c i a ético-dualista,
no dualismo entre a majestade sagrada e onipotente de D e u s e a insuficiência ética
de toda criatura, n e m , c o m o n o dualismo espiritualista, na divisão de todo o acontecer
e m luz e trevas, e m espírito c l a r o e p u r o e matéria tenebrosa e m a c u l a d o r a , mas s i m
n o d u a l i s m o o n t o l ó g i c o entre os f e n ô m e n o s e ações perecíveis do m u n d o e o ser p e r m a -
nente e repousante da o r d e m eterna e — o que é idêntico a ela — do d i v i n o i m ó v e l ,
adormecido s e m sonhos. Esta c o n s e q ü ê n c i a da doutrina da transmigração das almas
f o i atingida, n o s e u pleno sentido, apenas pelo budismo; ela é a s o l u ç ã o m a i s r a d i c a l
da teodicéia, mas justamente p o r isso, t ã o pouco quanto a crença n a p r e d e s t i n a ç ã o ,
constitui u m a satisfação de e x i g ê n c i a s éticas perante u m deus.

§ 9. Salvação e r e n a s c i m e n t o

Dos tipos mais p u r o s de s o l u ç ã o d o p r o b l e m a da r e l a ç ã o entre D e u s , o m u n d o


e os homens que acabamos d e e s b o ç a r , somente poucas religiões de salvação desenvol-
v e r a m u m tipo particular e m f o r m a p u r a e, q u a n d o o c o r r e u , este f o i mantido, n a m a i o r i a
das vezes, por apenas pouco tempo. Q u a s e todas elas, e m v i r t u d e d e r e c e p ç ã o m ú t u a
e sobretudo sob a p r e s s ã o da necessidade de atender às várias e x i g ê n c i a s éticas e intelec-
tuais d e seus adeptos, c o m b i n a r a m diversas f o r m a s de pensar, de m o d o que as d i f e r e n ç a s
entre elas consistem no g r a u de a p r o x i m a ç ã o a u m o u a outro desses tipos.
356 MAX WEBER

O s diferentes matizes da c o n c e p ç ã o de D e u s e d o pecado encontram-se n u m a


c o n e x ã o muito íntima c o m a busca de "salvação", cuja substância pode m o s t r a r tendên-
cias muito d i v e r s a s , dependendo da circunstância " d e q u e " e " p a r a q u e " se deseja
s e r salvo. N e m toda ética religiosa racional é u m a ética d e salvação. O confucionismo
é u m a ética " r e l i g i o s a " , m a s n a d a sabe de u m a necessidade d e salvação. O budismo,
ao contrário, é exclusivamente u m a doutrina de s a l v a ç ã o , mas n ã o conhece deus algum.
Muitas outras religiões c o n h e c e m a " s a l v a ç ã o " somente c o m o u m assunto especial,
cultivado e m conventículos limitados, muitas vezes c o m o culto secreto. T a m b é m e m .
a ç õ e s religiosas que s ã o consideradas especificamente " s a g r a d a s " e p r o m e t e m aos parti-
cipantes u m a s a l v a ç ã o somente alcançável p o r esse c a m i n h o , encontram-se muitas vezes
esperanças extremamente utilitaristas e m lugar d e algo que n ó s costumamos chamar
" s a l v a ç ã o " . A c e l e b r a ç ã o p a n t o m í m i c o - m u s i c a l das grandes divindades da t e r r a , que
d o m i n a v a m ao m e s m o t e m p o o resultado das safras e o r e i n o dos mortos, prometia
aos místicos ritualmente puros de Elêusis sobretudo a riqueza, a l é m d o m e l h o r a m e n t o
d o destino n o a l é m , mas s e m qualquer idéia de retribuição, puramente c o m o conse-
q ü ê n c i a da d e v o ç ã o ao culto. A r i q u e z a que, e m seguida a u m a longa v i d a , é o b e m
s u p r e m o na tábua de bens d o shu ching, depende p a r a os súditos chineses da prática
correta d o culto oficial e d o c u m p r i m e n t o dos d e v e r e s religiosos, enquanto que faltam
totalmente quaisquer esperanças postas n o a l é m o u idéias d e restituição. É sobretudo
a riqueza, ao lado de grandes promessas referentes ao a l é m , que Zaratustra espera
da g r a ç a de seu deus, p a r a s i m e s m o e seus fiéis. U m a v i d a longa e h o n r o s a e a riqueza
s ã o consideradas, pelo budismo, a recompensa pelo comportamento ético dos leigos,
e m p l e n o acordo c o m a doutrina d e toda ética religiosa intramundana da índia. C o m
riqueza a b e n ç o a Deus o j u d e u piedoso. Mas a riqueza é t a m b é m — q u a n d o adquirida
r a c i o n a l e legalmente — u m dos sintomas da " c o m p r o v a ç ã o " d o estado de g r a ç a nas
s e ç õ e s ascéticas d o protestantismo (calvinistas, batistas, menonitas, quacres, pietistas
r e f o r m a d o s , metodistas) No entanto, já nos encontramos, c o m estes últimos casos,
dentro de u m a c o n c e p ç ã o que, n ã o obstante, se r e c u s a r i a decididamente a considerar
a r i q u e z a (e outros bens quaisquer deste m u n d o ) u m " f i m r e l i g i o s o " . Mas, na prática,
s ã o fluidas as transições que c o n d u z e m a esse ponto de vista. As promessas de uma
salvação d e o p r e s s ã o é sofrimento, tal c o m o a a n u n c i a m as religiões dos povos-párias,
sobretudo dos judeus, m a s t a m b é m Zaratustra e M a o m é , n ã o p o d e m s e r rigorosamente
separadas das c o n c e p ç õ e s de s a l v a ç ã o dessas religiões — n e m a promessa d o d o m í n i o
do m u n d o e d o prestígio social dos crentes q u e , n o islã antigo, os fiéis l e v a r a m consigo
na m o c h i l a c o m o recompensa pela participação n a g u e r r a santa contra todos os descren-
tes, n e m a promessa daquele prestígio religioso e s p e c í f i c o que foi transmitida aos israe-
litas c o m o compromisso de D e u s . Particularmente p a r a os judeus, s e u deus é e m primei-
r o lugar u m salvador p o r q u e os libertou da s e r v i d ã o egípcia e os salvará do gueto.
A o lado d e semelhantes promessas e c o n ô m i c a s e políticas aparece sobretudo a liberação
d o m e d o dos m a u s d e m ô n i o s e d o m a l e f í c i o e m g e r a l , u m a v e z que este é responsável
pela m a i o r i a dos males da v i d a . A n o v a d e que Cristo r o m p e u o poder dos d e m ô n i o s
pela f o r ç a de sua inspiração e salvaria seus adeptos d o poder deles constituía n o cristia-
n i s m o p r i m i t i v o u m a das m a i s destacadas e eficazes de suas promessas. E t a m b é m
o r e i n o d e D e u s , já chegado o u prestes a chegar, d e Jesus d e N a z a r é , e r a u m reino
da b e m - a v e n t u r a n ç a neste m u n d o , l i v r e de todo e g o í s m o h u m a n o , de angústia e miséria,
e somente mais tarde destacaram-se o c é u e o Hades. Pois todas as escatologias deste
m u n d o t ê m , p o r sua p r ó p r i a natureza, a t e n d ê n c i a a t r a n s f o r m a r - s e e m esperanças
postas n o a l é m , q u a n d o se d e m o r a a parúsia [ o r e t o r n o d o S e n h o r ( N . T . ) ] e se i m p õ e
e n t ã o o desejo dos atualmente v i v o s que n ã o a v e r ã o neste m u n d o , de vivê-la após
a m o r t e , ressuscitados dos mortos.
ECONOMIA E SOCIEDADE 357

A substância específica da s a l v a ç ã o n o " a l é m " p o d e r e f e r i r - s e m a i s à liberdade


dos sofrimentos físicos, psíquicos o u sociais da existência terrestre o u mais à l i b e r a ç ã o
do desassossego e da transitoriedade, s e m sentido, da v i d a c o m o tal o u m a i s à l i b e r a ç ã o
da inevitável i m p e r f e i ç ã o pessoal, seja esta concebida m a i s c o m o m á c u l a crônica o u
c o m o inclinação aguda ao pecado o u , de m o d o mais espiritual, c o m o a n á t e m a que
prende os homens n a obscura c o n f u s ã o da ignorância terrestre.
Para nós, a ânsia pela salvação, qualquer que seja sua natureza, é de interesse especial,
na medida e m que traz conseqüências para o comportamento prático na vida. Esse r u m o
positivo e mundano é dado de m o d o mais intenso pela criação de u m a "condução da
vida" especificamente determinada pela religião e consolidada por u m sentido central
ou u m f i m positivo, isto é, pela circunstância de que surge, a partir de motivos religiosos,
uma sistematização das ações práticas e m f o r m a da orientação destas pelos mesmos valores.
O f i m e o sentido desta c o n d u ç ã o da vida podem estar dirigidos puramente ao a l é m o u ,
t a m b é m , pelo menos e m parte, a este mundo. E m grau muito diverso e qualidade tipica-
mente distinta isso ocorre e m todas as religiões e, dentro de cada u m a delas, entre seus
diversos adeptos. Mas t a m b é m a sistematização religiosa do modo de viver, como é claro,
encontra firmes limites quando pretende ganhar influência sobre o comportamento e c o n ô -
mico. E de modo algum os motivos religiosos, sobretudo a ânsia pela salvação, têm de
ganhar necessariamente influência sobre o modo de v i v e r , n ã o particularmente na área
econômica, mas podem alcançá-la e m g r a u muito alto.
A esperança da s a l v a ç ã o t e m as m a i s profundas c o n s e q ü ê n c i a s p a r a a c o n d u ç ã o
da v i d a q u a n d o é u m processo que já neste m u n d o projeta de a n t e m ã o suas sombras
o u t r a n s c o r r e intimamente dentro deste m u n d o . Isto é, q u a n d o o u ela m e s m a é conside-
rada u m a " s a n t i f i c a ç ã o " o u p e l o m e n o s c o n d u z a esta o u a tem c o m o c o n d i ç ã o prévia.
Nestes casos, o processo da santificação p o d e apresentar-se na f o r m a de u m processo
paulatino de p u r i f i c a ç ã o o u c o m o m u d a n ç a repentina da espiritualidade (metánoia)
como "renascimento".
A idéia d o renascimento c o m o tal é m u i t o antiga e encontra-se desenvolvida de
f o r m a clássica precisamente na c r e n ç a m á g i c a nos espíritos. A posse d o c a r i s m a m á g i c o
p r e s s u p õ e quase s e m p r e o renascimento: a e d u c a ç ã o específica dos m á g i c o s e a dos
heróis g u e r r e i r o s dirigida p o r estes, b e m c o m o o m o d o d e v i v e r e s p e c í f i c o dos p r i m e i -
ros, t ê m p o r objetivo o renascimento e a a s s e g u r a ç ã o da posse de u m a f o r ç a m á g i c a ,
que se a l c a n ç a m p o r m e i o d o " e s c a p e " , e m f o r m a de êxtase, e da a q u i s i ç ã o de u m a
n o v a " a l m a " , que t e m p o r c o n s e q ü ê n c i a , n a m a i o r i a das v e z e s , t a m b é m u m a m u d a n ç a
de n o m e — m u d a n ç a que, c o m o r u d i m e n t o de semelhantes idéias, ainda o c o r r e na
c o n s a g r a ç ã o dos monges. O " r e n a s c i m e n t o " limita-se, e m p r i m e i r o lugar, aos magos
profissionais; transforma-se, p o r é m , nos tipos mais c o n s e q ü e n t e s das " r e l i g i õ e s d e sal-
v a ç ã o " , de pressuposto m á g i c o d o c a r i s m a m á g i c o o u h e r ó i c o e m qualidade espiritual
indispensável p a r a a s a l v a ç ã o religiosa, qualidade que o i n d i v í d u o t e m d e a d q u i r i r
e c o n f i r m a r e m sua c o n d u ç ã o da v i d a .

8 10. O s c a m i n h o s de salvação e s u a influência sobre a c o n d u ç ã o d a vida

Religiosidade mágica e ritualismo; conseqüências da religiosidade de devoção ritualista, p. 358.


— Sistematização religiosa da ética cotidiana, p. 358. — Êxtase, orgia, euforia e método de
salvação religiosa racional, p. 361. — Sistematização e racionalização do método de salvação
e da condução da vida, p. 363 — Virtuosidade religiosa, p. 364. — Ascetismo de rejeição do
mundo e ascetismo intramundano, p. 365. — Contemplação mística, em fuga do mundo, p.
366. — Diversidade da religiosidade de salvação asiática e da ocidental, p. 370. — Mitos de
salvadores e soteriologias, p. 373 — Salvação pela graça sacramental e pela graça institucional,
p. 375. — Salvação pela fé, p. 377. — Salvação pela graça de predestinação, p. 382.
358 MAX WEBER

A influência de u m a religião sobre a c o n d u ç ã o da v i d a e especialmente as c o n d i ç õ e s


prévias do renascimento v a r i a m muito, d e p e n d e n d o do caminho de salvação e — o
que se encontra n u m a c o n e x ã o muito íntima c o m este — da qualidade psíquica da
salvação que se pretende alcançar.
I . A s a l v a ç ã o pode ser a o b r a pessoal do salvado, a ser alcançada s e m qualquer
ajuda de poderes sobrenaturais, como, p o r e x e m p l o , n o budismo antigo. Neste caso,
as obras pelas quais se consegue a salvação p o d e m ser
1. Atos de culto e c e r i m ô n i a s puramente rituais, tanto dentro de u m o f í c i o divino
quanto n o curso da v i d a cotidiana. E m sua a t u a ç ã o sobre a condução da vida, o ritualismo
p u r o n ã o difere muito da magia e às vezes está, neste aspecto, até atrás da religiosidade
m á g i c a , na m e d i d a e m que esta, e m certas circunstâncias, d e s e n v o l v e u determinado
m é t o d o bastante r a d i c a l do renascimento, o que o ritualismo t a m b é m conseguiu muitas
vezes, m a s n e m sempre. U m a religiosidade de salvação pode sistematizar os atos rituais
particulares, puramente f o r m a i s , a l c a n ç a n d o u m a espiritualidade específica, a " d e v o -
ç ã o " , dentro da qual os ritos s ã o praticados c o m o simbolos d o divino. Neste caso,
aquela espiritualidade é o b e m que salva na verdade. Subtraindo-se e l a , resta o puro
e f o r m a l ritualismo m á g i c o , e precisamente isto o c o r r e u s e m p r e de novo c o m toda
religiosidade de d e v o ç ã o , devido à própria natureza dela, durante o processo de cotidia-
nização.
As c o n s e q ü ê n c i a s de u m a religiosidade de d e v o ç ã o ritualista p o d e m ser muito
diversas. A r e g u l a m e n t a ç ã o ritual total da v i d a do h i n d u piedoso, as exigências — incrí-
veis p a r a o critério e u r o p e u — que lhe i m p õ e todos os dias, quase e x c l u i r i a m , quando
c u m p r i d a s c o m e x a t i d ã o rigorosa, a c o m b i n a ç ã o de u m a v i d a intramundana e m piedade
e x e m p l a r c o m u m a atividade aquisitiva intensa. Esse tipo mais e x t r e m o de piedade
devota constitui neste aspecto o p ó l o oposto do puritanismo. Somente o abastado, livre
da necessidade de trabalho intenso, poderia praticar este ritualismo.
Mais p r o f u n d a , p o r é m , que esta c o n s e q ü ê n c i a pelo m e n o s evitável é a circuns-
tância de que a s a l v a ç ã o ritual dá a m a i o r importância ao " c o n t e ú d o sentimental" do
momento de d e v o ç ã o , que parece garantir a s a l v a ç ã o , especialmente quando limita
o leigo ao papel de espectador o u a u m a participação e m f o r m a de m a n i p u l a ç õ e s simples
o u principalmente receptivas, e isto precisamente q u a n d o sublima a espiritualidade
ritual n o m á x i m o possível a u m a d e v o ç ã o sentimental. A o que se aspira, neste caso,
é a posse de u m estado de ânimo que, p o r sua própria natureza, é transitório e que,
e m v i r t u d e daquela " a u s ê n c i a de responsabilidade" peculiar, p r ó p r i a , por exemplo,
do momento d e assistir u m a missa o u u m a r e p r e s e n t a ç ã o mística, atua quase tão pouco
sobre o m o d o de agir, terminada a c e r i m ô n i a , quanto a e m o ç ã o , por maior que seja,
do p ú b l i c o espectador de u m a peça teatral bela e edificante costuma influenciar sua
ética cotidiana. T o d a salvação mediante mistérios tem esse caráter de descontinuidade.
E s p e r a alcançar seu f i m ex opere operato p o r m e i o de u m a d e v o ç ã o piedosa ocasional.
Faltam-lhe os motivos intrínsecos p a r a e x i g i r u m a comprovação que poderia garantir
u m " r e n a s c i m e n t o " . Q u a n d o , ao contrário, se p r o c u r a conservar t a m b é m na vida coti-
diana a d e v o ç ã o ocasional ritualmente p r o d u z i d a , intensificada a u m a piedade perene,
esta tende a assumir u m caráter místico: pois a posse de u m estado de ânimo como
objetivo da d e v o ç ã o a conduz neste caminho. A disposição p a r a a mística, porém, é
u m carisma i n d i v i d u a l . Por isso, n ã o é n e n h u m acaso que precisamente profecias de
salvação místicas, c o m o as indianas e outras orientais, e m seu processo de cotidiani-
z a ç ã o , costumavam transformar-se logo e m ritualismo p u r o . No ritualismo, o hábito
espiritual que se pretende alcançar e m última instância — e isto é importante para
n ó s — tem caráter diretamente desviante da a ç ã o racional. Q u a s e todos os cultos de
mistérios atuavam dessa m a n e i r a . Seu sentido típico é a dispensa de " g r a ç a sacramen-
ECONOMIA E SOCIEDADE 359

t a l " : s a l v a ç ã o da culpa pela santidade da m a n i p u l a ç ã o c o m o t a l , p o r u m processo,


portanto, que compartilha a t e n d ê n c i a de toda magia a e x c l u i r - s e da v i d a cotidiana
e a d e i x a r de influenciá-la. Totalmente diferente pode s e r , n o entanto, a a t u a ç ã o de
u m " s a c r a m e n t o " q u a n d o s u a dispensa está ligada ao pressuposto de que traria a salva-
ç ã o somente aos eticamente puros perante D e u s , e aos outros, a p e r d i ç ã o . O m e d o
terrível da c o m u n h ã o , devido ao p r i n c í p i o " q u e m n ã o c r ê , mas c o m e e bebe, c o m e
e bebe a s i m e s m o p a r a o j u í z o " , mantinha-se v i v o e m amplos círculos até muito recente-
mente e, na ausência d e u m a instância " a b s o l v e n t e " , c o m o n o protestantismo ascético,
e e m caso d e c o m u n h ã o f r e q ü e n t e — que p o r isso constituía u m i n d í c i o importante
da piedade — , podia de fato i n f l u e n c i a r fortemente o comportamento cotidiano. Ligada
a isso existia, e m todas as igrejas cristãs, a p r e s c r i ç ã o da confissão antes do sacramento.
No entanto, o decisivo nessa instituição é e m que disposição religiosamente prescrita
se pode receber o sacramento c o m proveito. Q u a s e todos os cultos de mistérios da
Antiguidade e a m a i o r i a dos não-cristãos e x i g i a m p a r a isso apenas a p u r e z a ritual; a l é m
disso e r a m considerados desqualificadores, e m certas circunstâncias, casos graves de
h o m i c í d i o o u outros"pecados específicos. A m a i o r i a desses mistérios n ã o conhecia, por-
tanto, a confissão. Mas q u a n d o a e x i g ê n c i a de p u r e z a ritual f o i racionalizada, transfor-
mando-se na p u r e z a de pecados da a l m a , t ê m t a m b é m importância, p a r a o m o d o e
a e x t e n s ã o e m que p o d e m atuar sobre a v i d a cotidiana, a f o r m a de controle e, h a v e n d o
a confissão, seu caráter possivelmente muito diverso. E m todo caso, o rito c o m o t a l ,
d o ponto de vista prático, é apenas o v e í c u l o p a r a influenciar as a ç õ e s extra-rituais,
e essas ações s ã o o que v e r d a d e i r a m e n t e importa. T ã o importante que, precisamente
quando está plenamente depreciado o caráter m á g i c o do sacramento e q u a n d o falta
todo controle mediante a confissão — ambas as coisas aplicam-se aos puritanos — ,
m e s m o assim, e eventualmente precisamente por isso, ele pode desenvolver plenamente
aquela a t u a ç ã o ética.

Por u m c a m i n h o diferente e indireto, u m a religiosidade ritualista pode atuar etica-


mente quando o c u m p r i m e n t o dos mandamentos rituais exige a a ç ã o ritual ativa (ou
sua o m i s s ã o ) d o leigo e o lado formalista do rito é e n t ã o sistematizado p a r a f o r m a r
u m a " l e i " extensa, de tal m o d o q u e , p a r a c o n h e c ê - l a suficientemente, s ã o necessários
u m treino e ensinamentos específicos, c o m o f o i o caso n o j u d a í s m o . A circunstância,
ressaltada p o r F i l o , de que os judeus já na Antiguidade, e m o p o s i ç ã o a todos os outros
povos, passavam desde os inícios da juventude p o r u m treino intelectual c o n t í n u o ,
sistemático-casuístico, à m a n e i r a de nosso c u r s o elementar, e de que, p o r esta r a z ã o ,
t a m b é m n o p e r í o d o m o d e r n o , n o leste da E u r o p a , somente eles r e c e b i a m u m a e d u c a ç ã o
elementar sistemática, é c o n s e q ü ê n c i a desse caráter letrado da lei judaica que, já na
Antiguidade, fazia os judeus piedosos identificarem os não-instruídos nos estudos da
l e i , os amhaaretz, c o m os ateus. Semelhante treino casuístico d o intelecto pode fazer-se
sentir, é c l a r o , igualmente na v i d a cotidiana, e isto tanto mais q u a n d o já n ã o se trata
— c o m o o c o r r e de m o d o predominante n o direito indiano — de d e v e r e s de culto
puramente rituais, mas de u m a r e g u l a m e n t a ç ã o sistemática t a m b é m da ética cotidiana.
As obras que t r a z e m a s a l v a ç ã o já s ã o e n t ã o , e m sua grande m a i o r i a , distintas dos
atos de culto, especialmente
2. obras sociais. Podem ter caráter muito diverso. O s deuses da g u e r r a , p o r e x e m -
plo, muitas vezes admitem a s e u p a r a í s o somente aqueles que m o r r e r a m e m combate,
o u pelo menos os p r e m i a m . A ética b r a m â n i c a r e c o m e n d o u diretamente ao r e i que
buscasse a m o r t e na batalha a o avistar o f i l h o de s e u filho. Por outro lado, p o d e m
s e r o b r a s d e " a m o r ao p r ó x i m o " . Mas e m todo caso é possível iniciar a sistematização
e, e m r e g r a , c o m o já v i m o s , é f u n ç ã o da profecia encontrá-la. A sistematização de
u m a ética das " b o a s o b r a s " pode a s s u m i r dois tipos de caráter. Cada ato virtuoso o u
360 MAX WEBER

pecaminoso pode ser avaliado separadamente e imputado positiva o u negativamente


ao necessitado de salvação. O i n d i v í d u o c o m o portador de suas a ç õ e s aparece então
c o m o u m ser lábil e m suas n o r m a s éticas, o r a m a i s forte, o r a mais fraco diante das
tentações, dependendo da situação interna e e x t e r n a , u m ser cujo destino religioso
está determinado pelas obras efetivas e a p r o p o r ç ã o entre estas. Esta c o n c e p ç ã o é de
m o d o m a i s u n í v o c o o ponto de vista da religião de Zaratustra, precisamente nas gâthâs
mais antigas do p r ó p r i o fundador, nas quais o j u i z dos mortos pondera n u m a contabi-
lidade exata a culpa e o m é r i t o de cada a ç ã o e, de a c o r d o c o m o resultado desse cálculo
de conta c o r r e n t e , atribui ao i n d i v í d u o seu destino religioso. É , e m g r a u ainda mais
intenso, a c o n s e q ü ê n c i a da doutrina d o c a r m a na índia: dentro do mecanismo ético
do m u n d o jamais se p e r d e alguma a ç ã o boa o u m á ; cada u m a tem de trazer consigo
inevitavelmente e de m o d o puramente m e c â n i c o suas c o n s e q ü ê n c i a s , seja nesta vida,
seja n u m a r e e n c a r n a ç ã o futura. O p r i n c í p i o de conta corrente p e r m a n e c e u , e m sua
substância, t a m b é m c o m o a c o n c e p ç ã o popular fundamental do j u d a í s m o c o m respeito
à r e l a ç ã o entre o i n d i v í d u o e Deus. E , p o r f i m , t a m b é m estão p r ó x i m o s deste ponto
de vista, p e l o m e n o s na prática, o catolicismo r o m a n o e as igrejas orientais. Pois a
intentio, que é o decisivo p a r a a a v a l i a ç ã o ética das a ç õ e s , segundo a doutrina do
pecado d o catolicismo, n ã o é u m a qualidade constante da personalidade cuja expressão
é a a ç ã o , mas a " o p i n i ã o " no m o m e n t o de cada a ç ã o concreta, n o sentido de bona
fides, mala fides, culpa e dolus do direito r o m a n o . Q u a n d o se m a n t é m conseqüente,
essa c o n c e p ç ã o r e n u n c i a à e x i g ê n c i a d o " r e n a s c i m e n t o " n o sentido rigoroso da ética
de c o n v i c ç ã o . A c o n d u ç ã o da v i d a n ã o passa e n t ã o de u m a seqüência, sem m é t o d o
ético, de a ç õ e s particulares.
O u e n t ã o a sistematização ética trata a obra particular somente c o m o sintoma
e m a n i f e s t a ç ã o de u m a personalidade ética correspondente que nela se expressa. É
sabido que e m E s p a r t a a p o s i ç ã o rigorista n ã o considerava reabilitado u m companheiro
que encontrara a m o r t e na batalha, mas t a m b é m a p r o c u r a r a p a r a e x p i a r u m a covardia
anterior — portanto, c o m o u m a e s p é c i e de " m e d i d a de p u r i f i c a ç ã o " — , e isto porque
f o r a corajoso por certas " r a z õ e s " e n ã o " d e v i d o à totalidade de seu c a r á t e r " , como
p o d e r í a m o s dizer. E m termos religiosos, isto significa: e m lugar da santidade f o r m a l
pela o b r a , alcançada p o r visíveis atos particulares, encontramos aqui t a m b é m o valor
do habitus global pessoal, neste caso: o da espiritualidade heróica habitual. O mesmo
aplica-se a todas as obras sociais, seja qual f o r sua natureza. Q u a n d o s ã o de " a m o r
ao p r ó x i m o " , a sistematização exige a posse do c a r i s m a da " b o n d a d e " Mas, e m todo
caso, a natureza da a ç ã o particular interessa somente na medida e m que esta tenha
caráter realmente sintomático; todas as outras a ç õ e s que s ã o produtos do " a c a s o " não
t ê m importância alguma. A ética de c o n v i c ç ã o pode, portanto, ser mais tolerante em
r e l a ç ã o a infrações isoladas, e isto precisamente de a c o r d o c o m sua f o r m a mais sistema-
tizada, e m caso de exigências muito elevadas quanto ao nível total. Mas n e m sempre
o é; na m a i o r i a das vezes, é a f o r m a específica do r i g o r i s m o ético. O habitus global
positivamente qualificado, do ponto de vista religioso, pode ser, nestes casos, uma
simples d o a ç ã o da graça d i v i n a cuja existência se manifesta precisamente naquela orien-
tação geral pelas exigências religiosas, isto é, n u m a c o n d u ç ã o da vida h o m o g ê n e a ,
metodicamente orientada. O u , ao contrário, pode ser de p r i n c í p i o adquirível, "treinan-
do-se" o b o m . Mas t a m b é m esse treino, por sua própria natureza, s ó pode ser realizado
na f o r m a de u m a o r i e n t a ç ã o racional e metódica da c o n d u ç ã o de vida global, e não
c o m a ç õ e s isoladas e desconexas. O s resultados, portanto, s ã o muito semelhantes em
ambos os casos. Mas c o m isso a qualidade ético-social das a ç õ e s passa totalmente para
o segundo plano. D o trabalho religioso na p r ó p r i a pessoa depende tudo. As boas obras
religiosamente qualificadas e socialmente orientadas s ã o e n t ã o apenas meios de
ECONOMIA E SOCIEDADE 361

3. auto-aperfeiçoamento. F a z e m e n t ã o parte d o " m é t o d o de s a l v a ç ã o " . U m m é t o -


do de salvação n ã o aparece pela p r i m e i r a v e z na religiosidade ética. A o c o n t r á r i o ,
desempenha u m p a p e l m u i t o importante, n u m a f o r m a f r e q ü e n t e m e n t e sistematizada
e m alto g r a u , na p r o m o ç ã o daquele renascimento que garante a posse das f o r ç a s m á g i -
cas, o u , na v e r s ã o animista: a e n c a r n a ç ã o de u m a n o v a a l m a dentro da p r ó p r i a pessoa
o u a obsessão de u m forte d e m ô n i o o u o escape p a r a o r e i n o dos espíritos, mas, e m
ambos os casos, a possibilidade de a t u a ç ã o sobre-humana. Q u a l q u e r finalidade ligada
ao " a l é m " n ã o apenas lhe é totalmente alheia, c o m o r e q u e r capacidade de êxtase p a r a
os fins mais diversos: pois t a m b é m o h e r ó i g u e r r e i r o , p a r a r e a l i z a r atos h e r ó i c o s sobre-
humanos, tem de a d q u i r i r u m a nova a l m a mediante o renascimento. E m todos os vestí-
gios de iniciação de adolescentes, de investidura c o m as insígnias v i r i s (na C h i n a e
na índia os [ m e m b r o s ] das castas superiores s ã o chamados " o s que n a s c e r a m duas
v e z e s " ) , de r e c e p ç ã o na c o n f r a r i a religiosa da f r a t r i a , de d e c l a r a ç ã o de aptidão p a r a
portar a r m a s , esconde-se o sentido o r i g i n á r i o do " r e n a s c i m e n t o " c o m o " h e r ó i " o u
" m á g i c o " , dependendo d o caso. O r i g i n a l m e n t e e r a m todos eles concatenados c o m atos
que p r o d u z i a m o u s i m b o l i z a v a m êxtase, e o e x e r c í c i o p r e l i m i n a r tem a finalidade de
e x p e r i m e n t a r e despertar a a p t i d ã o p a r a ele.
O êxtase c o m o m e i o de " s a l v a ç ã o " o u " a u t o d i v i n i z a ç ã o " , única f u n ç ã o que nos
interessa a q u i , pode ter mais o caráter de u m escape e u m a o b s e s s ã o agudos o u m a i s
o caráter c r ô n i c o de u m h á b i t o especificamente religioso, mais contemplativo o u mais
ativo, dependendo d o caso, n o sentido seja de m a i o r intensidade de v i d a , seja de m a i o r
alheamento e m r e l a ç ã o a ela. Para p r o d u z i r o simples êxtase agudo, o m é t o d o de salva-
ç ã o planejada n ã o e r a , naturalmente, o c a m i n h o certo. Para a l c a n ç á - l o , s e r v i a m sobre-
tudo os meios de r o m p i m e n t o de todas as inibições o r g â n i c a s : p r o d u ç ã o de u m a e m b r i a -
guez tóxica aguda (mediante o á l c o o l , o tabaco o u outros t ó x i c o s ) o u musical-orquestral
ou erótica ( o u de todas as três e m c o n j u n t o ) a orgia. O u e n t ã o , p r o v o c a v a m - s e , e m
pessoas qualificadas p a r a isso, ataques d e histeria o u epileptiformes que p r o v o c a v a m
os estados orgiásticos nos outros. Mas esses êxtases agudos, p o r sua p r ó p r i a natureza
e t a m b é m pela intenção, s ã o transitórios. D e i x a m poucas marcas positivas n o hábito
cotidiano. E c a r e c e m t a m b é m da substância " s i g n i f i c a t i v a " desenvolvida pela religio-
sidade profética. A o c o n t r á r i o , as f o r m a s mais suaves de u m a euforia, sentida mais
de m o d o visionário (místico), c o m o " i l u m i n a ç ã o " , o u mais de m o d o ativo ( é t i c o ) c o m o
c o n v e r s ã o , p a r e c e m garantir c o m m a i o r segurança a posse permanente do estado caris-
mático, p r o d u z i n d o u m a r e l a ç ã o plena de sentido c o m o " m u n d o " e correspondendo
qualitativamente às v a l o r a ç õ e s de u m a o r d e m " e t e r n a " o u de u m deus ético, c o m o
o anuncia a profecia. J á a m a g i a , c o n f o r m e v i m o s , conhece ao lado da orgia apenas
aguda u m m é t o d o de s a l v a ç ã o sistemático p a r a " d e s p e r t a r " as qualidades carismáticas.
Pois o mago o u g u e r r e i r o profissional necessita n ã o apenas do êxtase agudo mas t a m b é m
de u m h á b i t o carismático permanente. E os profetas de u m a s a l v a ç ã o ética n ã o apenas
n ã o necessitam d a embriaguez orgiástica c o m o esta estorva diretamente a c o n d u ç ã o
de v i d a ética sistemática que exigem. Sobretudo contra e l a e contra o culto orgiástico
do sacrifício d o s o m a , indigno do ser h u m a n o e que atormenta os a n i m a i s , dirige-se
o i r a d o r a c i o n a l i s m o ético de Zaratustra, c o m o o de Moisés se volta contra a orgia
de d a n ç a e c o m o a m a i o r i a dos fundadores o u profetas de religiões eticamente racionais
se dirigia contra a " p r o s t i t u i ç ã o " , isto é, a prostituição orgiástica nos templos. C o m
a r a c i o n a l i z a ç ã o crescente, o objetivo do m é t o d o de salvação religiosa é cada v e z mais
a t r a n s f o r m a ç ã o da embriaguez aguda, alcançada mediante a o r g i a , n u m h á b i t o p o s s u í d o
crônica e, sobretudo, conscientemente. Este desenvolvimento está t a m b é m condicio-
nado pela natureza da c o n c e p ç ã o do " d i v i n o " . Por toda parte, o f i m s u p r e m o ao q u a l
pode s e r v i r o m é t o d o de salvação permanece sendo, e m p r i m e i r o lugar, o m e s m o
362 MAX WEBER

a que, e m f o r m a aguda, t a m b é m s e r v e a orgia: a e n c a r n a ç ã o de seres supra-sensíveis


e, nesse caso, de u m deus, dentro do h o m e m : a autodivinização. S ó que agora, se
possível, esta deve tornar-se u m hábito permanente. O m é t o d o de salvação é dirigido,
portanto, à posse do d i v i n o neste mundo. Mas q u a n d o u m deus todo-poderoso e supra-
m u n d a n o se encontra diante das criaturas, o f i m do m é t o d o de salvação não pode
mais ser a a u t o d i v i n i z a ç ã o , neste sentido, mas a conquista das qualidades religiosas
exigidas p o r esse deus: esta adquire, portanto, u m a o r i e n t a ç ã o pelo a l é m ou ética,
n ã o quer " p o s s u i r " o deus — isso n ã o é possível — , mas o u 1) ser u m "instrumento"
do deus, o u 2 ) estar permanentemente pleno dele. O segundo h á b i t o está evidentemente
mais p r ó x i m o da idéia de autodivinização do que o p r i m e i r o . Essa diferença tem, c o m o
cabe e x p o r mais tarde, c o n s e q ü ê n c i a s importantes p a r a a própria natureza do m é t o d o
de salvação. Mas h á , antes, coincidência e m pontos importantes. Pois, e m ambos os
casos, o n ã o - d i v i n o é aquilo de que a pessoa c o m u m tem de se desfazer p a r a poder
ser igual a u m deus. E o n ã o - d i v i n o é sobretudo o h á b i t o cotidiano do corpo humano
e o m u n d o cotidiano tais c o m o s ã o dados pela natureza. Neste ponto, o m é t o d o de
salvação s o t e r i o l ó g i c o está diretamente concatenado c o m seu [predecessor] m á g i c o ,
cujos procedimentos apenas racionaliza e adapta a suas idéias diferentes da essência
do sobre-humano e do sentido da posse da s a l v a ç ã o religiosa. A experiência ensinou
que, mediante a " m o r t i f i c a ç ã o " histericizante e m pessoas qualificadas, e r a possível
tornar o corpo insensível o u catalepticamente rígido e exigir dele a realização de atos
que u m a i n e r v a ç ã o n o r m a l jamais poderia produzir. Q u e precisamente nesse estado
a p a r e c i a m c o m m a i o r facilidade, e m algumas pessoas, todos os tipos de f e n ô m e n o s
visionários e inspiracionais c o m o a glossolalia, o poder h i p n ó t i c o o u sugestivo de outra
f o r m a e, e m outras, sensações de e n c a r n a ç ã o , disposições para a inspiração mística
e c o n v e r s ã o ética, p a r a a profunda aflição pelos pecados e o sentimento e u f ó r i c o da
u n i ã o c o m D e u s , muitas vezes revezando-se bruscamente, mas que tudo isso desaparecia
q u a n d o essas pessoas, obedecendo à " n a t u r e z a " , v o l t a v a m a entregar-se simplesmente
às f u n ç õ e s e necessidades do corpo o u a interesses cotidianos dispersivos. As conse-
qüências disso para a atitude e m relação à corporalidade p r i m i t i v a e natural e à vida
cotidiana social e e c o n ô m i c a f o r a m tiradas, de alguma f o r m a , e m toda parte onde
se encontra desenvolvida a ânsia pela salvação.
Os meios específicos do m é t o d o de salvação s o t e r i o l ó g i c o , e m sua f o r m a mais
refinada, são quase todos de p r o v e n i ê n c i a indiana. F o r a m desenvolvidos na índia em
contato indubitável c o m o m é t o d o de c o n j u r a ç ã o m á g i c a de espíritos. Aí mesmo, nesse
país, esses meios tinham cada v e z mais a tendência a transformar-se n u m m é t o d o de
autodivinização, e nunca p e r d e r a m totalmente esse caráter. E l e é predominante desde
o culto de embriaguez pelo soma no v e d i s m o antigo até os m é t o d o s sublimes de êxtase
dos intelectuais, por u m lado,, e, por outro, até a orgia erótica (efetiva ou realizada
na i m a g i n a ç ã o , durante o ato de culto) que ainda hoje d o m i n a , de f o r m a mais refinada
ou mais grosseira, a religiosidade hinduísta mais popular: o culto a Krishna. Através
do sufismo, tanto o êxtase sublimado dos intelectuais quanto a orgia dos dervixes,
e m b o r a e m f o r m a atenuada, chegaram ao islã. Indianos s ã o , até na Bósnia (segundo
u m a recente i n f o r m a ç ã o autêntica do D r . F r a n k 1 ) , ainda hoje seus portadores típicos.
O s dois m a i o r e s poderes religioso-racionalistas da história — a Igreja romana no Oci-
dente e o confucionismo na C h i n a — os r e p r i m i r a m de m o d o c o n s e q ü e n t e nestas regiões
o u pelo menos os s u b l i m a r a m nas f o r m a s da mística b e r n a r d i n a semi-erótica, da devoção
à V i r g e m Maria, e do quietismo da C o n tra -R e fo rma o u do pietismo sentimental de Zinzen-
dorf. O caráter especificamente extracotidiano de todos os cultos orgiásticos e especial-

1 Texto escrito por volta de 1912-13 [Nota de Marianne Weber ]


ECONOMIA E SOCIEDADE 363

mente dos eróticos, s e m influência sobre as ações cotidianas o u pelo menos n ã o n o


sentido de m a i o r r a c i o n a l i z a ç ã o e sistematização, manifesta-se palpavelmente na signifi-
c a ç ã o negativa da religiosidade hinduísta e t a m b é m ( e m g e r a l ) da dos d e r v i x e s n o que
se r e f e r e à c r i a ç ã o de u m m é t o d o p a r a a c o n d u ç ã o de v i d a cotidiana.
O desenvolvimento r u m o à sistematização e r a c i o n a l i z a ç ã o da a p r o p r i a ç ã o de
bens de salvação religiosos dirigia-se precisamente à e l i m i n a ç ã o dessa c o n t r a d i ç ã o entre
o habitus religioso cotidiano e o extracotidiano. D a plenitude infinita daqueles estados
íntimos que o m é t o d o de salvação pode p r o d u z i r destacavam-se a f i n a l alguns poucos
c o m o v e r d a d e i r a m e n t e centrais, p o r q u e n ã o apenas r e p r e s e n t a v a m u m a d i s p o s i ç ã o cor-
poral-anímica extracotidiana mas t a m b é m p a r e c i a m c o m p r e e n d e r e m s i a posse segura
e contínua d o b e m religioso e s p e c í f i c o : a certeza da graça (certitudo salutis, perseve-
rança gratiae). A certeza da g r a ç a , tenha ela u m matiz m a i s místico o u mais ativo etica-
mente — aspecto a que logo v o l t a r e m o s — , significa e m todo caso a posse consciente
de u m fundamento h o m o g ê n e o duradouro da condução da vida. No interesse da cons-
cientização da posse religiosa toma o lugar da orgia, por u m lado, e dos meios de
mortificação irracionais, p o r outro, a d i m i n u i ç ã o planejada das f u n ç õ e s corporais: sub-
alimentação c o n t í n u a , continência s e x u a l , r e g u l a ç ã o da f r e q ü ê n c i a respiratória etc. A l é m
disso, o treino dos processos a n í m i c o s e do pensamento e m d i r e ç ã o à c o n c e n t r a ç ã o
sistemática da a l m a n o religiosamente essencial: a técnica indiana da ioga, a repetição
contínua de sílabas sagradas (o/n), a m e d i t a ç ã o sobre círculos e outras figuras, exercícios
que sistematicamente " e s v a z i a m " a consciência etc. Mas, n o interesse da duração e
regularidade do habitus religioso, a racionalização do m é t o d o de s a l v a ç ã o acabou p o r
superá-las e l e v o u , aparentemente e m sentido contrário, a u m a limitação planejada
dos exercícios aos meios que garantiam a continuidade do habitus religioso, o u seja,
à e l i m i n a ç ã o de todos os meios higienicamente irracionais. Pois assim c o m o toda e s p é c i e
de embriaguez, tanto o êxtase c o m o as orgias eróticas e a embriaguez da d a n ç a , se
alternava inevitavelmente c o m o colapso físico, a saturação histérica pela inspiração
se alternava c o m o colapso p s í q u i c o , e m sua v e r s ã o religiosa, c o m estados de p r o f u n d o
abandono por Deus. E assim c o m o , por isso, o cultivo de u m h e r o í s m o g u e r r e i r o discipli-
nado entre os helenos chegou a t r a n s f o r m a r o êxtase h e r ó i c o n o e q u i l í b r i o constante
da sopbrosyne, que tolerava somente as f o r m a s de êxtase produzidas p o r meios p u r a -
mente rítmico-musicais, e t a m b é m nessa atitude — do m e s m o m o d o que o racionalismo
confuciano, só que menos rigoroso d o que este, que admitia apenas a pentatônica

— p o n d e r a v a cuidadosamente o ethos da música sob o aspecto de sua conformidade


" p o l í t i c a " , t a m b é m o m é t o d o d e salvação m o n a c a l desenvolveu-se cada v e z mais racio-
nalmente, tanto na índia — até os m é t o d o s do budismo antigo — quanto n o Ocidente
— até os m é t o d o s da o r d e m historicamente mais influente: aos jesuítas. Nesse processo
o m é t o d o torna-se cada v e z m a i s u m a c o m b i n a ç ã o de higiene física e psíquica c o m
uma r e g u l a ç ã o igualmente m e t ó d i c a de todo pensar e fazer, segundo a f o r m a e o conteú-
do, n o sentido do perfeito domínio desperto — , que obedece à vontade e combate
os instintos — , dos processos corporais e a n í m i c o s p r ó p r i o s e u m a r e g u l a m e n t a ç ã o
sistemática da v i d a , subordinada ao f i m religioso. O c a m i n h o p a r a este f i m e os detalhes
do c o n t e ú d o do m e s m o n ã o s ã o u n í v o c o s , e a c o n s e q ü ê n c i a da realização do m é t o d o
é t a m b é m muito vacilante.
Mas quaisquer que sejam o f i m e as f o r m a s d o m é t o d o , a experiência fundamental
de toda religiosidade baseada n u m método de salvação sistemático é a diversidade
da qualificação religiosa das pessoas. A s s i m c o m o n e m toda pessoa possuía o carisma
para p r o v o c a r e m si mesma os estados que c o n d u z i a m ao renascimento c o m o feiticeiro
m á g i c o , n e m toda pessoa tinha o c a r i s m a p a r a manter continuamente na v i d a cotidiana
aquele h á b i t o especificamente religioso que garantia a certeza permanente da graça.
364 MAX WEBER

O renascimento parecia, portanto, apenas acessível a u m a aristocracia d e religiosamente


qualificados. Por isso, do m e s m o m o d o que os feiticeiros magicamente qualificados,
os virtuosos religiosos que metodicamente t r a b a l h a v a m e m sua salvação constituíam,
p o r toda parte, u m " e s t a m e n t o " religioso especial dentro da comunidade dos crentes,
estamento ao q u a l cabia f r e q ü e n t e m e n t e t a m b é m o e s p e c í f i c o de todo estamento, u m a
h o n r a social particular, dentro de s e u círculo. Na í n d i a , nesse sentido, todos os direitos
sagrados ocuparam-se dos ascetas; as religiões de s a l v a ç ã o indianas s ã o religiões de
monges; nos documentos do cristianismo p r i m i t i v o , eles s ã o alistados c o m o categoria
especial entre os m e m b r o s da c o n g r e g a ç ã o e f o r m a m mais tarde as ordens monacais;
n o protestantismo, constituem as seitas ascéticas o u as ecclesiae pietistas; entre os judeus
os peruschím (pharisaíoi) constituem u m a aristocracia de salvação e m o p o s i ç ã o aos
amhaaretz-, n o islã os d e r v i x e s e, dentro do c í r c u l o deles, seus virtuosos, f o r m a m os
sufis v e r d a d e i r o s ; e, entre os skopetsi russos o é a comunidade esotérica dos castrados.
Ainda v o l t a r e m o s a estas c o n s e q ü ê n c i a s s o c i o l ó g i c a s importantes.
Na interpretação da ética de c o n v i c ç ã o o m é t o d o de salvação significa na prática
s e m p r e a s u p e r a ç ã o de determinadas apetências o u afetos da natureza h u m a n a c r u a ,
n ã o trabalhada pela religião. Se aquilo contra o q u a l se d e v e lutar principalmente s ã o
os afetos de c o v a r d i a o u de brutalidade e e g o í s m o o u de sensualidade s e x u a l o u outros
quaisquer, p o r q u e s ã o os que mais desviam a a t e n ç ã o d o habitus carismático, tem a
v e r c o m cada caso especial e faz parte das características m a i s importantes d o c o n t e ú d o
de cada religião particular. Mas u m a doutrina d e s a l v a ç ã o religiosa m e t ó d i c a nesse
sentido s e m p r e , é u m a ética de virtuosos. C o m o o carisma m á g i c o , ela s e m p r e exige
a comprovação da virtuosidade. Seja o virtuoso religioso o m e m b r o de u m a o r d e m
conquistadora d o m u n d o — c o m o os m u ç u l m a n o s n o tempo de O m a r — , o u u m virtuoso
da ascese de rejeição do m u n d o — c o m o o e r a m , na m a i o r i a das vezes, os monges
cristãos e, c o m m e n o r c o n s e q ü ê n c i a , os jainistas — , o u u m mestre da c o n t e m p l a ç ã o
negadora d o m u n d o — c o m o os monges budistas — , o u u m virtuoso d o martírio passivo
— c o m o os cristãos p r i m i t i v o s — , o u da v i r t u d e v o c a c i o n a l intramundana — como
os protestantes ascéticos — , o u do c u m p r i m e n t o f o r m a l da l e i — c o m o os judeus farisai-
cos — , o u da bondade a c ó s m i c a [indiferente ao m u n d o ( N T . ) ] c o m o S ã o Francisco
— , e m todo caso, c o m o já dissemos, ele s ó tem a v e r d a d e i r a certeza de salvação quando
c o m p r o v a para si m e s m o , s e m p r e de n o v o , sua espiritualidade de virtuoso e m situações
de tentação. Essa c o m p r o v a ç ã o da certeza da g r a ç a pode apresentar-se de f o r m a muito
d i v e r s a , dependendo d o caráter da própria salvação religiosa. Mas s e m p r e compreende
a m a n u t e n ç ã o do nível religioso e ético, isto é, que se e v i t e m pelo m e n o s os pecados
muito graves, tanto p a r a o arhat budista quanto p a r a o cristão p r i m i t i v o . Q u e m tenha
q u a l i f i c a ç ã o religiosa, e isto n o cristianismo p r i m i t i v o significa u m i n d i v í d u o batizado,
n ã o pode e, portanto, n ã o d e ve mais cometer u m pecado m o r t a l . "Pecados mortais"
s ã o aqueles que desfazem a q u a l i f i c a ç ã o religiosa e, p o r isso, s ã o imperdoáveis ou,
pelo menos, s ó p o d e m ser absolvidos p o r a l g u é m carismaticamente qualificado por
u m a a g r a c i a ç ã o totalmente nova c o m o c a r i s m a cuja p e r d a documenta. Q u a n d o essa
doutrina dos virtuosos se tornou praticamente insustentável dentro das congregações
de massas d o cristianismo p r i m i t i v o , a religiosidade dos virtuosos d o montanismo man-
teve c o n s e q ü e n t e aquela única e x i g ê n c i a de p e l o m e n o s o pecado de covardia ser imper-
d o á v e l — assim c o m o a religião h e r ó i c a g u e r r e i r a d o islã p u n i a c o m a morte, sem
e x c e ç ã o , a apostasia — e separou-se da igreja de massas dos cristãos comuns quando,
dentro desta, a p e r s e g u i ç ã o p o r D é c i o e D i o c l e c i a n o t o r n o u impraticável também esta
exigência do ponto de vista d o interesse dos sacerdotes na c o n s e r v a ç ã o quantitativa
das c o n g r e g a ç õ e s . Mas, de resto, o caráter positivo da c o m p r o v a ç ã o da salvação e
t a m b é m , portanto, d o comportamento prático, c o m o já mencionamos repetidas vezes,

1
ECONOMIA E SOCIEDADE 365

é fundamentalmente d i v e r s o , e isto sobretudo e m c o r r e s p o n d ê n c i a c o m o caráter daque-


le b e m de s a l v a ç ã o cuja posse garante a b e m - a v e n t u r a n ç a .
Este d o m de s a l v a ç ã o pode significar uma de duas coisas. O u é u m d o m e s p e c í f i c o
da ação ética, c o m a consciência de que D e u s guia estas a ç õ e s , de constituir u m instru-
mento de Deus. Para nossos fins, c h a m a r e m o s este tipo de p o s i ç ã o , condicionada pelo
m é t o d o de s a l v a ç ã o religiosa, p o s i ç ã o r e l i g i o s o - " a s c é t i c a " , — s e m negar que é possível
empregar e de fato se e m p r e g a esta e x p r e s s ã o t a m b é m n u m sentido diferente, m a i s
amplo: mais adiante isso ficará claro. Neste caso, a virtuosidade religiosa s e m p r e conduz,
a l é m de à s u b m i s s ã o dos instintos naturais a u m a c o n d u ç ã o de v i d a sistematizada, a
u m a crítica ético-religiosa das r e l a ç õ e s c o m a v i d a social da comunidade, de suas virtudes
inevitavelmente n ã o - h e r ó i c a s , mas s i m convencionais e utilitárias. A m e r a v i r t u d e " n a t u -
r a l " neste m u n d o n ã o apenas n ã o garante a salvação c o m o a p õ e e m perigo p o r ocultar
aquilo que é v e r d a d e i r a m e n t e necessário. As relações sociais, o " m u n d o " , n o sentido
religioso, representam portanto a tentação, p o r s e r e m o lugar n ã o apenas dos prazeres
sensuais eticamente irracionais, que afastam as pessoas do d i v i n o , mas muito mais de
u m a frugalidade que é p r ó p r i a do c u m p r i m e n t o dos deveres cotidianos p o r parte do
i n d i v í d u o religioso m é d i o à custa da c o n c e n t r a ç ã o e x c l u s i v a das a ç õ e s n o e m p e n h o
ativo pela salvação. Essa c o n c e n t r a ç ã o pode fazer parecer necessária u m a explícita reti-
rada do " m u n d o " , dos laços sociais e a n í m i c o s da família, da p r o p r i e d a d e , dos interesses
políticos, e c o n ô m i c o s , artísticos, eróticos e, e m g e r a l , de todos os interesses da criatu-
r a , e toda atividade neles p a r e c e r u m a a c e i ta ç ã o do m u n d o alheadora de Deus: ascetismo
de rejeição do mundo. O u , ao c o n t r á r i o , pode e x i g i r a atividade da p r ó p r i a espiritua-
lidade sagrada específica, da qualidade de instrumento eleito p o r D e u s , precisamente
dentro da o r d e m do m u n d o e diante dela: ascetismo intramundano. Neste ú l t i m o caso,
o m u n d o torna-se u m " d e v e r " imposto ao virtuoso religioso. Isto pode significar que
a tarefa consiste e m t r a n s f o r m á - l o de acordo c o m os ideais ascéticos. Neste caso, o
asceta se converte n u m r e f o r m a d o r o u r e v o l u c i o n á r i o r a c i o n a l , c o m base n o " d i r e i t o
n a t u r a l " , tal c o m o o c o n c e b e r a m o " p a r l a m e n t o dos santos" sob C r o m w e l l , o Estado
dos quacres e, noutra f o r m a , o c o m u n i s m o r a d i c a l pietista de c o n v e n t í c u l o . Mas o c o r r e
s e m p r e que, d e v i d o à diversidade de q u a l i f i c a ç ã o religiosa, essas c o n g r e g a ç õ e s de asce-
tas se t r a n s f o r m a m e m o r g a n i z a ç õ e s aristocráticas particulares dentro, o u m e l h o r , f o r a
d o m u n d o dos homens c o m u n s que as c i r c u n d a — neste aspecto e m nada diferentes,
e m princípio, das " c l a s s e s " . T a l v e z elas possam d o m i n a r o m u n d o , m a s n ã o e l e v a r
sua qualidade m é d i a à altura da própria virtuosidade. Todas as relações associativas
racionais de caráter religioso t i v e r a m de e x p e r i m e n t a r e m s i mesmas as c o n s e q ü ê n c i a s
dessa circunstância q u a n d o a i g n o r a r a m . O m u n d o c o m o u m todo p e r m a n e c e , do ponto
de vista ascético, u m a massa perditionis. Resta, portanto, a outra alternativa, de r e n u n -
ciar à esperança de que ele possa satisfazer às e x i g ê n c i a s religiosas. Q u a n d o m e s m o
assim a c o m p r o v a ç ã o d e ve realizar-se dentro da o r d e m m u n d a n a , o m u n d o , justamente
por ser o inevitável recipiente n a t u r a l d o pecado, portanto e m vista do pecado e da
luta contra ele, torna-se u m a " t a r e f a " p a r a a c o m p r o v a ç ã o da espiritualidade ascética.
O [ m u n d o ] permanece e m sua mesquinhez de criatura: u m a entrega prazerosa a seus
bens p õ e e m perigo a c o n c e n t r a ç ã o n o b e m de salvação e e m sua posse, e seria sintoma
de u m a espiritualidade p r o f a n a e de fracasso d o renascimento. N ã o obstante, o m u n d o ,
c o m o c r i a ç ã o de D e u s , cujo poder atua nele apesar d e seu caráter de c r i a t u r a , é o
ú n i c o material e m que o p r ó p r i o c a r i s m a religioso tem de ser c o m p r o v a d o mediante
a ç õ e s éticas racionais, p a r a se obter a certeza do estado de g r a ç a pessoal e continuar
c o m ela. C o m o objeto dessa c o m p r o v a ç ã o ativa, a o r d e m do m u n d o transforma-se,
para o asceta nela colocado, n u m a " v o c a ç ã o " que d e v e " c u m p r i r " racionalmente. Des-
preza-se, portanto, o desfrute da r i q u e z a , considerando-se c o m o " v o c a ç ã o " a e c o n o m i a
366 MAX WEBER

ordenada de m o d o racional e ético e dirigida e m legalidade rigorosa, cujo êxito, isto


é, o l u c r o torna visível a b ê n ç ã o de Deus ao trabalho do piedoso e, portanto, a benevo-
lência p a r a c o m s e u m o d o de v i v e r e c o n ô m i c o . Despreza-se todo excesso de sentimento
nos h o m e n s , c o m o e x p r e s s ã o da divinização das criaturas que nega o v a l o r ú n i c o da
dispensa d i v i n a da g r a ç a , considerando-se c o m o " v o c a ç ã o " a c o l a b o r a ç ã o racional e
sensata c o m os objetivos reais estabelecidos por D e u s n o ato da c r i a ç ã o , das associações
mundanas e racionais referentes a fins. Despreza-se a erótica d i v i n i z a d o r a da criatura,
considerando-se c o m o " v o c a ç ã o " desejada p o r D e u s a " p r o c r i a ç ã o desapaixonada de
f i l h o s " ( c o m o o expressam os p u r i t a n o s ) dentro d o m a t r i m ô n i o . Despreza-se a violência
do i n d i v í d u o contra os outros, por p a i x ã o o u sede de v i n g a n ç a , p o r motivos pessoais
e m g e r a l , considerando-se c o m o vontade de Deus a repressão e o castigo racionais
do pecado e da renitência n u m Estado adequadamente organizado. Despreza-se c o m o
divinização da criatura o desfrute pessoal do poder m u n d a n o , considerando-se c o m o
vontade de Deus o d o m í n i o da o r d e m racional da lei. O "asceta i n t r a m u n d a n o " é
u m racionalista tanto n o sentido de u m a sistematização racional de sua c o n d u ç ã o de
vida pessoal quanto no sentido da rejeição de tudo o que é eticamente i r r a c i o n a l , trate-se
de m a n i f e s t a ç õ e s artísticas, trate-se de sentimentos pessoais, dentro do m u n d o e de
sua o r d e m . Mas, antes de tudo, o objetivo e s p e c í f i c o é s e m p r e o d o m í n i o m e t ó d i c o
" d e s p e r t o " da c o n d u ç ã o da própria v i d a . E m p r i m e i r o lugar, mas c o m " c o n s e q ü ê n c i a "
diversa e m suas variantes particulares, pertencia a esse tipo de "ascetismo intramun-
d a n o " o protestantismo ascético, que conhecia a c o m p r o v a ç ã o dentro da o r d e m do
m u n d o c o m o ú n i c o indício da q u a l i f i c a ç ã o religiosa.
Pode t a m b é m ser que o b e m de salvação específico n ã o constitua u m a qualidade
ativa do fazer, n ã o sendo, portanto, a consciência da e x e c u ç ã o da vontade d i v i n a , mas
s i m u m estado de ânimo de natureza específica. E m sua f o r m a excelsa: a " i l u m i n a ç ã o
mística". T a m b é m ela somente pode ser conquistada por u m a m i n o r i a de especifi-
camente qualificados e mediante u m a atividade sistemática de natureza especial: a " c o n -
t e m p l a ç ã o " . A c o n t e m p l a ç ã o , p a r a alcançar seu f i m , r e q u e r s e m p r e a e l i m i n a ç ã o dos
interesses cotidianos. S ó q u a n d o a criatura dentro do h o m e m se m a n t é m e m total silên-
cio, Deus pode falar na a l m a , segundo a experiência dos quacres c o m a qual coincide,
n ã o pelas palavras mas pela substância, toda mística contemplativa, desde Lao-tse e
B u d a até T a u l e r . A c o n s e q ü ê n c i a pode ser a fuga absoluta do mundo. Esta fuga contem-
plativa d o m u n d o , que é p r ó p r i a do b u d i s m o antigo e, e m certo g r a u , de quase todas
as f o r m a s de salvação da Asia e do O r i e n t e P r ó x i m o , parece-se c o m a c o n c e p ç ã o ascética
do m u n d o , mas deve ser distinguida dela c o m rigor. O ascetismo negador do mundo,
no sentido aqui adotado da p a l a v r a , está p r i m a r i a m e n t e dirigido à atividade. Somente
ações de determinada natureza a j u d a m o asceta a alcançar as qualidades a que aspira,
e estas, por sua vez, refere m-s e a u m poder agir devido à graça divina. Pela consciência
de que a f o r ç a p a r a agir lhe aflui a partir da posse da s a l v a ç ã o religiosa central e
de que c o m essa força s e r v e a D e u s , o b t é m s e m p r e de novo a c o n f i r m a ç ã o de seu
estado de g r a ç a . Sente-se c o m o combatente por D e u s , seja q u a l f o r a f o r m a e m que
se apresentem o inimigo o u os meios p a r a c o m b a t ê - l o , e a fuga do m u n d o , do ponto
de vista p s i c o l ó g i c o , n ã o é n e n h u m a fuga, mas u m a vitória s e m p r e renovada sobre
tentações s e m p r e novas, contra as quais tem de lutar ativamente sem cessar. O asceta
que rejeita o m u n d o t e m , pelo menos, p a r a c o m o " m u n d o " a r e l a ç ã o íntima negativa
de u m a luta incessante. Por isso, é mais adequado falar neste caso de "rejeição do
mundo" e n ã o de "fuga do mundo", a q u a l caracteriza mais o místico contemplativo.
A c o n t e m p l a ç ã o , ao contrário, é principalmente a busca de u m " r e p o u s o " no divino
e somente nele. Não agir e, n o e x t r e m o , n ã o pensar, esvaziar-se de tudo o que de
algum m o d o l e m b r a o " m u n d o " , a m i n i m i z a ç ã o absoluta e m qualquer caso de todo
ECONOMIA E SOCIEDADE 367

fazer e x t e r n o e interno — este é o c a m i n h o p a r a alcançar aquele estado f r u í d o c o m o


posse d o d i v i n o , c o m o uniomystica c o m ele: trata-se, portanto, de u m h á b i t o e m o c i o n a l
específico que parece transmitir u m " s a b e r " . Subjetivamente pode ser que se encontre
no p r i m e i r o plano o u o c o n t e ú d o particular e e x t r a o r d i n á r i o desse saber o u , ao contrá-
r i o , a c o n f i g u r a ç ã o sentimental de sua posse; objetivamente, p o r é m , o que decide é
esta última. Pois o saber místico é tanto mais i n c o m u n i c á v e l quanto m a i s possui o que
lhe atribui s e u caráter específico: é precisamente o fato d e não obstante se apresentar
c o m o saber que lhe a t r i b u i seu caráter específico. N ã o se trata de n e n h u m conhecimento
n o v o de fatos o u doutrinas, mas da c o m p r e e n s ã o de u m sentido ú n i c o do m u n d o e,
nesta a c e p ç ã o , c o m o repetem de f o r m a s e m p r e v a r i a d a os místicos, de u m saber prático.
E m sua essência central é muito m a i s u m " p o s s u i r " , a partir do q u a l se chega à q u e l a
nova o r i e n t a ç ã o prática e m r e l a ç ã o ao m u n d o e, eventualmente, t a m b é m a novos " c o -
nhecimentos" c o m u n i c á v e i s . E s s e s conhecimentos s ã o idéias de v a l o r e s e desvalores
do m u n d o , e n ã o nos interessam a q u i ; o que nos interessa é aquele efeito negativo
sobre a a ç ã o que, e m o p o s i ç ã o à ascese — n o sentido aqui adotado da p a l a v r a — ,
é p r ó p r i o de toda c o n t e m p l a ç ã o . É ó b v i o que a o p o s i ç ã o é f l u i d a , tanto e m g e r a l quanto
particularmente aquela entre a ascese negadora do m u n d o e a c o n t e m p l a ç ã o que foge
do m u n d o , o que q u e r e m o s ressaltar já a q u i , à r e s e r v a de u m e x a m e mais detalhado.
Pois, e m p r i m e i r o lugar, a c o n t e m p l a ç ã o que foge do m u n d o d e v e estar conjugada
pelo menos c o m u m g r a u considerável de r a c i o n a l i z a ç ã o sistemática do m o d o de v i v e r .
Somente este m o d o de v i v e r conduz à c o n c e n t r a ç ã o no b e m de salvação. Mas é apenas
o meio para alcançar o f i m da c o n t e m p l a ç ã o , e a r a c i o n a l i z a ç ã o é de natureza substan-
cialmente negativa e consiste na rejeição das p e r t u r b a ç õ e s da natureza e do m e i o social.
C o m isso, a c o n t e m p l a ç ã o n ã o se torna u m a entrega passiva aos sonhos n e m u m a simples
auto-hipnose, e m b o r a na prática possa a p r o x i m a r - s e disso. Mas o c a m i n h o e s p e c í f i c o
que conduz a ela é u m a c o n c e n t r a ç ã o muito e n é r g i c a e m certas " v e r d a d e s " , sendo
que o decisivo p a r a o caráter d o processo está e m que o essencial n ã o é o c o n t e ú d o
dessas verdades ( c o m o pode simplesmente p a r e c e r muitas vezes ao n ã o - m í s t i c o ) m a s
a m a n e i r a c o m o s ã o ressaltadas e a p o s i ç ã o central e m que s ã o assim colocadas dentro
do aspecto global d ó mundo, determinando-o e m sentido u n i f o r m e . A c o m p r e e n s ã o
mais i n e q u í v o c a e m e s m o a crença manifesta na v e r d a d e dos princípios aparentemente
muito triviais d o dogma central budista n ã o bastam p a r a fazer d e a l g u é m u m iluminado.
Mas a c o n c e n t r a ç ã o do pensamento e outros meios eventuais do m é t o d o de salvação
s ã o apenas o c a m i n h o que conduz ao f i m . E s s e f i m consiste exclusivamente n u m a q u a l i -
dade sentimental singular, que, e m termos concretos, é a u n i ã o sentida d o saber e
da espiritualidade prática que o f e r e c e ao místico a c o n f i r m a ç ã o decisiva de s e u estado
religioso d e g r a ç a . T a m b é m p a r a o asceta a c o m p r e e n s ã o sentida e consciente d o d i v i n o
t e m importância central. S ó que esse sentir está, p o r assim d i z e r , condicionado e m
termos " m o t o r e s " . Está presente q u a n d o existe a consciência de que se consegue agir
de m o d o racionalmente ético, orientado unicamente p o r D e u s e c o m o instrumento
deste. Mas esse agir eticamente empenhado — e m sentido positivo o u negativo —
é para o místico contemplativo, que n u n c a deseja n e m pode ser " i n s t r u m e n t o " mas
apenas " r e c i p i e n t e " do d i v i n o , u m a exteriorização d o d i v i n o e m u m a f u n ç ã o periférica;
é o n ã o agir, o u pelo menos a e v i t a ç ã o de todo agir racional orientado p a r a u m f i m
C a ç ã o c o m u m f i m " ) c o m o f o r m a mais perigosa da m u n d a n i z a ç ã o , que o b u d i s m o
antigo r e c o m e n d a c o m o c o n d i ç ã o prévia da c o n s e r v a ç ã o d o estado de g r a ç a . Para o
asceta, a c o n t e m p l a ç ã o do místico parece s e r u m a auto-satisfação indolente, religiosa-
mente estéril e asceticamente c o n d e n á v e l , u m sibaritismo idolatrador da criatura e m
sentimentos p o r e l e m e s m o criados. D o ponto de vista d o místico contemplativo, o
asceta, e m parte p o r s e u tormento e luta e x t r a m u n d a n o s , mas sobretudo p o r s e u agir
368 MAX WEBER

ascético-racional i n t r a m u n d a n o , é constantemente e n r e d a d o na situação pesada de toda


v i d a m o l d a d a , c o m tensões insolúveis entre violência e bondade, objetividade e a m o r ,
afastando-se assim cada v e z m a i s da u n i ã o e m e c o m D e u s , e sendo f o r ç a d o a conviver
c o m contradições e compromissos desastrosos. D o ponto d e vista d o asceta, o místico
contemplativo n ã o pensa e m D e u s , n o aumento de s e u r e i n o e de sua glória e no
c u m p r i m e n t o ativo d e sua vontade, mas exclusivamente e m si p r ó p r i o ; ele existe, a l é m
disso, desde que exista m e s m o , n u m a i n c o n s e q ü ê n c i a constante, já pelo m e r o fato
de ter de cuidar d e sua sobrevivência. E isso sobretudo q u a n d o v i v e dentro d o m u n d o
e d e s e u ordenamento. E m certo sentido, já o místico que foge d o m u n d o é mais
" d e p e n d e n t e " do m u n d o do que o asceta. Pode manter-se a s i m e s m o c o m o anacoreta
e ao m e s m o t e m p o ter certeza de s e u estado de g r a ç a pelo trabalho ao q u a l se dedica.
O místico contemplativo, se quisesse s e r absolutamente c o n s e q ü e n t e , d e v e r i a v i v e r
somente daquilo que lhe oferecessejn voluntariamente a natureza o u os homens: das
bagas da floresta e, u m a v e z que çstas n ã o estão s e m p r e disponíveis p o r toda parte,
de esmolas, c o m o realmente o c o r r i a entre os sramanes indianos e m suas variações
mais c o n s e q ü e n t e s (donde a p r o i b i ç ã o particularmente rigorosa de todas as regras dos
bhikshu indianos [e t a m b é m dos budistas]: n ã o aceitar nada que n ã o fosse dado volunta-
riamente). E m todo caso, v i v e de dádivas do m u n d o e, portanto, n ã o poderia v i v e r
se o m u n d o constantemente n ã o fizesse justamente aquilo que e l e considera u m pecado
e u m a atividade alheadora de Deus: tfabalhar. Particularmente p a r a o monge budista,
a agricultura, p o r r e q u e r e r o f e r i m e n t o violento dos a n i m a i s n o solo, é a m a i s c o n d e n á v e l
de todas as o c u p a ç õ e s — mas as esmqlas que r e c o l h e consistem e m p r i m e i r o lugar
e m produtos agrícolas. Precisamente nessa circunstância destaca-se de f o r m a drástica
o inevitável aristocratismo de s a l v a ç ã o d o místico, que abandona o m u n d o à m e r c ê
d o destino inevitável de todos os n ã o - i l u m i n a d o s , dos indivíduos incapazes de plena
i l u m i n a ç ã o — a v i r t u d e central dos leigos budistas, n o f u n d o a ú n i c a , é originalmente
a v e n e r a ç ã o e o sustento c o m esmolas dos monges que constituem exclusivamente a
c o n g r e g a ç ã o . D e m o d o muito g e r a l , qualquer pessoa, e t a m b é m o p r ó p r i o místico,
" a g e " inevitavelmente e apenas m i n i m i z a suas a ç õ e s p o r q u e n u n c a lhe podem dar
a certeza de seu estado de g r a ç a m a s s e m d ú v i d a p o d e m afastá-lo da u n i ã o c o m o
d i v i n o , enquanto que o asceta pode c o n f i r m a r s e u estado de graça precisamente por
suas ações. O contraste entre os dois tipos de comportamento mostra-se mais claramente
q u a n d o n ã o se t i r a m as c o n s e q ü ê n c i a s da plena n e g a ç ã o o u fuga do m u n d o . O asceta,
quando q u e r agir dentro d o m u n d o , isto é, q u a n d o se trata de u m ascetismo intramun-
dano, d ev e estar dotado c o m u m a e s p é c i e de obtusidade tranqüila e m r e l a ç ã o a qualquer
q u e s t ã o acerca de u m " s e n t i d o " d o m u n d o , n ã o se p r e o c u p a n d o c o m este. Por isso,
n ã o é p o r acaso que o ascetismo i n t r a m u n d a n o tenha podido desenvolver-se de f o r m a
mais c o n s e q ü e n t e precisamente sobre a base da c o n c e p ç ã o calvinista da absoluta inescru-
tabilidade dos motivos da a ç ã o d i v i n a , subtraída ao alcance de todos os p a d r õ e s huma-
nos. O asceta i n t r a m u n d a n o é, p o r isso, o " h o m e m de v o c a ç ã o " p o r e x c e l ê n c i a , que
n ã o pergunta n e m t e m necessidade de perguntar pelo sentido de sua atividade profis-
sional prática dentro d o m u n d o c o m o u m todo — p o r este responde D e u s , e n ã o ele
— , pois basta-lhe a consciência de executar, c o m suas a ç õ e s racionais pessoais neste
m u n d o , a vontade d e D e u s , inescrutável p a r a e l e e m s e u sentido último. A o místico
contemplativo, ao c o n t r á r i o , importa-lhe precisamente a v i s ã o daquele "serttido" do
m u n d o , c u j a " c o m p r e e n s ã o " racional lhe escapa, justamente porque o concebe como
u m a unidade além de todos os f e n ô m e n o s reais. N e m s e m p r e a c o n t e m p l a ç ã o mística
tem p o r c o n s e q ü ê n c i a a fuga d o m u n d o n o sentido d e evitar todo contato c o m o meio
social. T a m b é m o místico pode e x i g i r de s i m e s m o , c o m o p r o v a da certeza de seu
estado d e g r a ç a , sua a f i r m a ç ã o justamente diante do o r d e n a m e n t o d o m u n d o : t a m b é m
ECONOMIA E SOCIEDADE 369

para ele sua p o s i ç ã o nesse ordenamento torna-se u m a " v o c a ç ã o " . Mas isso c o m u m a
tendência muito d i v e r s a da d o ascetismo intramundano. O m u n d o c o m o tal n ã o é apro-
v a d o n e m pelo ascetismo n e m pela c o n t e m p l a ç ã o . O asceta, p o r é m , desaprova s e u
caráter de criatura, e m p í r i c o , eticamente i r r a c i o n a l , c o m o refuta as tentações da ética
pelos prazeres m u n d a n o s , pelo f r u i r e repousar sobre suas alegrias e dádivas. A o contrá-
r i o , a p r o v a a a ç ã o r a c i o n a l p r ó p r i a dentro de suas ordens c o m o tarefa e m e i o de confir-
m a r a graça. Para o místico contemplativo c o m u m m o d o de v i d a i n t r a m u n d a n o , ao
contrário, a a ç ã o , e sobretudo a a ç ã o dentro do m u n d o , é já p o r s i m e s m a u m a tentação
contra a q u a l deve defender s e u estado de g r a ç a . Portanto, m i n i m i z a suas a ç õ e s , " c o n f o r -
m a n d o - s e " c o m as ordens d o m u n d o tais c o m o s ã o , v i v e n d o dentro delas, p o r assim
dizer, i n c ó g n i t o , c o m o o f a z e m desde s e m p r e os "silenciosos da t e r r a " , u m a v e z que
D e u s estabeleceu q u e é nesta t e r r a que devemos v i v e r . É típico da a ç ã o intramundana
do místico contemplativo — da q u a l ele s e m p r e q u e r fugir, e de fato o faz, p a r a o
silêncio da u n i ã o c o m D e u s — u m caráter especificamente " r o m p i d o " , c o m matiz de
humildade. O asceta, desde que aja e m unidade consigo m e s m o , tem certeza de ser
u m instrumento de Deus. Por isso, sua devida " h u m i l d a d e " de criatura é s e m p r e de
autenticidade duvidosa. O ê x i t o d e suas a ç õ e s é, na v e r d a d e , u m êxito d e D e u s , p a r a
o qual simplesmente c o n t r i b u i u , mas pelo menos u m sinal da b ê n ç ã o toda especial
de D e u s a e l e e a suas obras. Para o místico autêntico, ao contrário, o ê x i t o de suas
a ç õ e s intramundanas n ã o pode ter n e n h u m peso n o sentido de sua salvação, e a m a n u -
t e n ç ã o de u m a humildade autêntica n o m u n d o é de fato a única garantia de que sua
a l m a n ã o está perdida. Q u a n t o m a i s está i m e r s o n o m u n d o , tanto mais " r o m p i d a "
se torna, e m g e r a l , sua atitude e m r e l a ç ã o a este, e m contraste c o m o orgulhoso aristocra-
tismo de salvação, p r ó p r i o da c o n t e m p l a ç ã o terrestre extramundana. Para o asceta,
a certeza da salvação comprova-se n a a ç ã o racional unívoca e m sentido, meios e f i m ,
de acordo c o m princípios e regras. Para o místico, que está realmente de posse do
b e m de salvação, concebido c o m o u m a c o n d i ç ã o , a c o n s e q ü ê n c i a dessa c o n d i ç ã o pode
ser, ao contrário, o anomismo: o sentimento — n ã o manifestado n o agir e n a natureza
desse agir mas n u m a c o n d i ç ã o sentida e na qualidade desta — de n ã o estar m a i s v i n c u -
lado a n e n h u m a regra da a ç ã o , p o r é m d e conservar a certeza absoluta da s a l v a ç ã o ,
faça o que fizer. C o m estahconseqüência (o irávTa yuoi H-etrriv ["tudo p a r a m i m "
( N . T . ) ] ) teve de lutar, entre outros, Paulo, e ela f o i repetidas vezes o resultado da
. busca de salvação mística.

A l é m disso, p a r a o asceta, as exigências d e seu deus à criatura podem intensificar-se


até a de u m d o m í n i o incondicional d o m u n d o mediante a n o r m a da v i r t u d e religiosa
e até sua t r a n s f o r m a ç ã o revolucionária p a r a alcançar esse f i m . Saindo de sua cela m o n a -
cal, isolada d o m u n d o , o asceta enfrenta o m u n d o c o m o profeta. Mas o que e l e e n t ã o
exige, correspondendo a sua p r ó p r i a autodisciplina metodicamente r a c i o n a l , é s e m p r e
u m a o r d e m e disciplina eticamente r a c i o n a l . Se, ao contrário, é o místico que toma
u m c a m i n h o semelhante, isto é, se sua u n i ã o c o m D e u s e a p e r e n e e constante e u f o r i a
de sua solitária posse contemplativa do b e m de salvação d i v i n o transforma-se n u m
sentimento agudo de possessão sagrada p o r deus o u de possuir o deus — que f a l a
dentro e através dele, que v e m e traz a s a l v a ç ã o eterna, agora m e s m o , bastando que
os h o m e n s , tal c o m o o p r ó p r i o místico, lhe p r e p a r e m a sede na t e r r a , o u s e j a , e m
suas almas — nesse caso, c o m o u m mago, e l e sentirá ter e m seu poder deuses e d e m ô -
nios, e, na c o n s e q ü ê n c i a prática, tornar-se-á u m mistagqgo, c o m o o c o r r e u tantas vezes.
N ã o podendo seguir esse c a m i n h o — das razões possíveis falaremos m a i s tarde — ,
mas apenas dar testemunho d e s e u deus pelo ensinamento, e n t ã o sua prédica r e v o l u c i o -
nária dirigida ao m u n d o torna-se quiliasticamente i r r a c i o n a l , desprezando toda idéia
de u m a " o r d e m " racional. O caráter absoluto de s e u p r ó p r i o sentimento de a m o r u n i -
370 MAX WEBER

v e r s a i e a c ó s m i c o será p a r a ele o fundamento suficiente e o ú n i c o desejado por D e u s ,


p o r ser o ú n i c o de o r i g e m d i v i n a , da comunidade misticamente r e n o v a d a dos homens.
A t r a n s f o r m a ç ã o repentina d o h á b i t o místico afastado d o m u n d o e m quiliástico- revolu-
c i o n á r i o o c o r r e u c o m f r e q ü ê n c i a , de f o r m a m a i s impressionante n o g r u p o revolucio-
n á r i o dos batistas n o s é c u l o X V I . O processo c o n t r á r i o é tipicamente representado,
p o r e x e m p l o , pela c o n v e r s ã o de J o h n L i l b u r n e aos quacres.
Q u a n d o u m a religião de salvação intramundana é determinada por traços contem-
plativos, a c o n s e q ü ê n c i a n o r m a l é a aceitação p e l o m e n o s relativamente indiferente
ao m u n d o , e m todo caso p o r é m h u m i l d e , da o r d e m social dada. O místico de caráter
taulérico p r o c u r a , a p ó s o trabalho do dia, à noite, a u n i ã o contemplativa c o m D e u s ,
voltando na outra m a n h ã , c o m o descreve T a u l e r c o m grande p a i x ã o , a s e u trabalho
habitual c o m a disposição íntima adequada. D e a c o r d o c o m Lao-tse, é a partir da h u m i l -
dade e do apequenamento e m face dos semelhantes que se reconhece o h o m e m que
encontrou a u n i ã o c o m o tao. A tendência mística da religiosidade luterana, cujo s u p r e m o
b e m d e s a l v a ç ã o neste m u n d o é, e m última instância, a unio mystica, condicionou
(junto c o m outros m o t i v o s ) a indiferença relativa à f o r m a da o r g a n i z a ç ã o externa da
prédica e t a m b é m seu caráter antiascético e tradicionalista. O místico típico n ã o é,
e m g e r a l , n e m u m h o m e m de intensa a ç ã o social, n e m , muito menos ainda, p r o p õ e
a t r a n s f o r m a ç ã o racional das ordens terrestres mediante u m m o d o de v i v e r m e t ó d i c o ,
dirigido a resultados visíveis. Q u a n d o a a ç ã o comunitária o c o r r e n o t e r r e n o da mística
g e n u í n a , o que determina seu caráter é o acosmismo d o sentimento d e a m o r místico.
Nesse sentido, a mística, ao contrário do " l o g i c a m e n t e " d e d u z í v e l , pode atuar psicologi-
camente c o m o f o r m a d o r a de comunidades. A f i r m e c o n v i c ç ã o de que o a m o r fraternal
cristão, q u a n d o bastante p u r o e forte, d e ve conduzir à unidade de todas as coisas (tam-
b é m na crença d o g m á t i c a ) e, portanto, de que os homens que se a m e m o bastante
misticamente, n o sentido de S ã o J o ã o , t a m b é m pensam de f o r m a igual e, precisamente
na base da irracionalidade deste sentir, agem solidariamente segundo a vontade de
D e u s , é a idéia central d o conceito de igreja místico-oriental que, p o r isso, pode prescin-
dir da autoridade d o u t r i n a l racional e infalível, na q u a l se fundamenta t a m b é m o con-
ceito eslavófilo de comunidade dentro e f o r a da igreja. E m certo g r a u , essa idéia era
c o m u m t a m b é m n o cristianismo p r i m i t i v o , e constitui a base da crença de M a o m é na
inutilidade de u m a autoridade doutrinal f o r m a l , e — ao lado de outros motivos —
da m i n i m i z a ç ã o da o r g a n i z a ç ã o na c o n g r e g a ç ã o m o n a c a l do budismo antigo. A o contrá-
r i o , a religião d e salvação i n t r a m u n d a n a onde q u e r que apresente traços especificamente
ascéticos, s e m p r e exige o racionalismo prático n o sentido da intensificação da ação
racional c o m o t a l , d o sistemático m é t o d o do m o d o d e v i v e r extrínseco e da objetivação
e socialização racionais das ordens terrestres, trate-se de comunidades monacais ou
de teocracias. A diferença historicamente decisiva entre a m a i o r i a das f o r m a s orientais
e asiáticas de religiosidade de s a l v a ç ã o e a m a i o r i a das ocidentais está e m que as primeiras
d e s e m b o c a m essencialmente na c o n t e m p l a ç ã o e as últimas, n o ascetismo. O fato de
a d i f e r e n ç a ser fluida e, a l é m disso, as variadas c o m b i n a ç õ e s s e m p r e repetidas de traços
místicos e ascéticos, p o r e x e m p l o , na religiosidade m o n a c a l do Ocidente, mostrarem
a compatibilidade desses elementos n o f u n d o h e t e r o g ê n e o s , n ã o m u d a e m nada a grande
importância da própria diferença p a r a nossa c o n s i d e r a ç ã o puramente empírica. Pois
o que nos interessa é o efeito sobre a a ç ã o . Na í n d i a , m e s m o u m m é t o d o de salvação
tão ascético c o m o o dos monges de Jaina c u l m i n a n u m ú l t i m o f i m místico, puramente
contemplativo; na Ásia o r i e n t a l , o budismo tornou-se a religiosidade de salvação especí-
fica. No Ocidente, ao c o n t r á r i o , prescindindo-se de representantes isolados de u m quie-
tismo e s p e c í f i c o , que pertencem somente à Idade Moderna, m e s m o a religiosidade
fortemente mística transforma-se s e m p r e na v i r t u d e ativa e e n t ã o , naturalmente, quase
ECONOMIA E SOCIEDADE 371

s e m p r e ascética, o u m e l h o r , n u m a s e l e ç ã o íntima dos motivos; s ã o p r e f e r i d o s e postos


e m prática aqueles que c o n d u z e m preponderantemente a alguma a ç ã o ativa, geralmente
à ascese. N e m a c o n t e m p l a ç ã o b e m a r d i a n a o u a franciscano-espiritualista, n e m a batista
o u a jesuíta, n e m o e x t r e m o sentimentalismo de Zinzendorf, i m p e d i r a m que, na congre-
g a ç ã o e f r e q ü e n t e m e n t e n o p r ó p r i o místico, a a ç ã o e a c o n f i r m a ç ã o da g r a ç a na a ç ã o
mantivessem s e m p r e a s u p r e m a c i a — ainda que e m g r a u muito d i v e r s o — na f o r m a
p u r a da ascese o u na impregnada p o r elementos contemplativos, e mestre E c k h a r d t
coloca Marta a c i m a de M a r i a , a despeito do Salvador. Mas, e m certo g r a u , esta já e r a
u m a peculiaridade d o cristianismo desde o início. J á nos p r i m e i r o s tempos, q u a n d o
todas as espécies de dons carismáticos irracionais do espírito e r a m considerados caracte-
rísticas distintivas da santidade, a apologética dá à pergunta: e m que se podia reconhecer
a p r o v e n i ê n c i a d i v i n a e n ã o talvez satânica o u d e m o n í a c a daquelas a ç õ e s inspiracionais
de Cristo e dos cristãos?, a resposta de que a ó b v i a influência d o cristianismo sobre
a m o r a l de seus adeptos c o m p r o v a v a sua o r i g e m d i v i n a . A s s i m n e n h u m indiano poderia
ter respondido.
Das razões dessa d i f e r e n ç a fundamental q u e r e m o s destacar aqui as seguintes:
1. A c o n c e p ç ã o de u m deus ú n i c o , s u p r a m u n d a n o , de o n i p o t ê n c i a ilimitada, e
do caráter de criatura d o m u n d o p o r ele c r i a d o , a partir do nada, c o n c e p ç ã o q u e ,
partindo do O r i e n t e P r ó x i m o , f o i imposta ao Ocidente. A o m é t o d o de s a l v a ç ã o f o i
assim fechado o c a m i n h o à a u t o d i v i n i z a ç ã o e à posse genuinamente mística do d i v i n o ,
p e l o menos n o sentido cabal de u m a d i v i n i z a ç ã o blasfema da c r i a t u r a , e t a m b é m às
últimas c o n s e q ü ê n c i a s panteístas, considerando-se este c a m i n h o s e m p r e u m a hetero-
doxia. T o d a salvação tinha de assumir, s e m p r e , o caráter de u m a " j u s t i f i c a ç ã o " ética
diante daquele deus, justificação q u e , e m última instância, apenas podia ser dada e
confirmada p o r m e i o de u m a a ç ã o de alguma f o r m a positiva. Pois a " c o n f i r m a ç ã o "
da qualidade realmente d i v i n a da posse mística d o b e m de salvação (perante o p r ó p r i o
f o r o do místico) somente pode ser obtida p o r esse c a m i n h o q u e , p o r sua v e z , traz
à própria mística paradoxos, tensões e a impossibilidade da a p r o x i m a ç ã o total do deus,
aos quais foi poupada a mística indiana. O m u n d o d o místico ocidental é u m a " o b r a "
é " c r i a d o " e n ã o simplesmente dado, c o m suas ordens, p o r toda a eternidade, c o m o
o do asiático. Por isso, n o Ocidente, a salvação mística n ã o podia ser encontrada total-
mente na consciência da u n i ã o absoluta c o m u m a " o r d e m " sábia s u p r e m a , que seria
o ú n i c o " s e r " v e r d a d e i r o , n e m e r a jamais, p o r outro lado, u m a o b r a de p r o v e n i ê n c i a
d i v i n a n o sentido de constituir o objeto possível da fuga mais absoluta, c o m o o c o r r e
no Oriente.
2. Mas esse contraste devia-se t a m b é m ao caráter das religiões de salvação asiáti-
cas, de religiões p u r a m e n t e d e intelectuais que nunca a b a n d o n a r a m a idéia d e u m
" s e n t i d o " inerente ao m u n d o e m p í r i c o . Por isso, p a r a o indiano, h a v i a u m c a m i n h o
que, através de u m a " v i s ã o " das últimas c o n s e q ü ê n c i a s da causalidade d o c a r m a , podia
conduzir à i l u m i n a ç ã o e à u n i ã o do " s a b e r " c o m a a ç ã o , c a m i n h o eternamente fechado
a toda religiosidade que se encontra perante o p a r a d o x o absoluto da " c r i a ç ã o " de
u m m u n d o imperfeito p o r u m deus perfeito e q u e , portanto, ao tratar de s u p e r á - l o
intelectualmente, longe d e se a p r o x i m a r de D e u s , dele se afasta. A mística ocidental
c o m fundamentos puramente filosóficos é, p o r isso, d o ponto de vista prático, aquela
q u e mais se a p r o x i m a da asiática.
3- E n t r e os fatores práticos m e r e c e a t e n ç ã o o de q u e , p o r razões ainda a s e r e m
expostas, apenas o Ocidente r o m a n o , n o m u n d o inteiro, d e s e n v o l v e u e manteve u m
direito r a c i o n a l . A r e l a ç ã o c o m D e u s tornou-se e m g r a u e s p e c í f i c o u m a e s p é c i e de
r e l a ç ã o d e s ú d i t o , juridicamente d e f i n í v e l ; a q u e s t ã o da s a l v a ç ã o f o i decidida n u m a
espécie d e processo jurídico, c o m o ainda se pode encontrar caracteristicamente desen-
372 MAX WEBER

v o l v i d o e m A n s e l m o de Canterbury. N e m u m poder d i v i n o impessoal o u u m deus que


n ã o se encontre acima d o m u n d o , mas dentro d e u m m u n d o eterno que se regula
a s i m e s m o pela causalidade d o c a r m a , n e m o tao o u os espíritos celestes dos antepas-
sados d o i m p e r a d o r da C h i n a , n e m , muito menos ainda, os deuses populares asiáticos
p o d i a m jamais p r o d u z i r semelhante tendência do m é t o d o de salvação. As f o r m a s mais
elevadas da d e v o ç ã o t o m a v a m s e m p r e o c a m i n h o d o p a n t e í s m o e, e m seus impulsos
práticos, da c o n t e m p l a ç ã o .
4. T a m b é m e m outro aspecto o caráter r a c i o n a l d o m é t o d o de salvação e r a de
p r o v e n i ê n c i a parcialmente r o m a n a , parcialmente judaica. O h e l e n i s m o , apesar de todas
as r e s e r v a s d o patriciado u r b a n o contra o culto dionisíaco de embriaguez, apreciava
o êxtase, sua f o r m a aguda, orgiástica, c o m o embriaguez d i v i n a , e a mais suave da
e u f o r i a , evocada sobretudo pelo r i t m o e pela m ú s i c a , c o m o p e r c e p ç ã o do especifi-
camente mais d i v i n o dentro do h o m e m . Precisamente a camada dominante dos helenos
c o n v i v i a c o m essa f o r m a suave d o êxtase desde a infância. Faltava na G r é c i a , desde
o d o m í n i o da disciplina dos hoplitas, u m a camada de prestígio social igual ao da nobreza
f u n c i o n a l de R o m a . As circunstâncias e r a m , e m todos os aspectos, m a i s restritas e menos
feudais. O sentimento de dignidade da nobreza r o m a n a — u m a n o b r e z a racional de
f u n c i o n á r i o s , colocada n u m pedestal cada v e z m a i s alto até finalmente alcançar cidades
e países n a clientela das famílias individuais — d e s a p r o v o u já na terminologia o conceito
de superstitio, que corresponde ao de êxtase, c o m o algo especificamente indecente,
indigno d o h o m e m distinto, fazendo o m e s m o c o m a dança. E n c o n t r a m o s a dança
de culto somente nos c o l é g i o s sacerdotais mais antigos, e n o sentido p r ó p r i o da ciranda
apenas entre os fratres arvales, mas, tipicamente, a portas fechadas, distante da congre-
g a ç ã o . D e resto, p o r é m , a d a n ç a e r a p a r a os r o m a n o s algo indecente, assim como
a música — na q u a l R o m a e r a , p o r isso m e s m o , absolutamente i m p r o d u t i v a — e as
lutas desnudas nos ginásios, criadas c o m o treinamento pelos g u e r r e i r o s espartanos.
O s cultos de embriaguez dionisíacos f o r a m proibidos pelo senado. O r e p ú d i o a toda
e s p é c i e de êxtase, b e m c o m o a qualquer o c u p a ç ã o c o m u m m e t ó d o de salvação indivi-
d u a l , p o r parte da nobreza f u n c i o n a l m i l i t a r de R o m a , d o m i n a d o r a d o m u n d o — corres-
p o n d e n d o m a i s o u menos à b u r o c r a c i a confuciana t a m b é m rigorosamente adversa a
todo m é t o d o de s a l v a ç ã o — , e r a e n t ã o u m a das fontes daquele racionalismo estritamente
objetivo, orientado p o r fins prático-políticos, que o desenvolvimento das c o n g r e g a ç õ e s
cristãs ocidentais e n c o n t r o u já c o m o característica f i x a de toda religiosidade possível
n o solo genuinamente r o m a n o e que especialmente a c o n g r e g a ç ã o r o m a n a adotou com
plena consciência e c o n s e q ü ê n c i a . D e s d e a p r o f e c i a carismática até as maiores inovações
da m ú s i c a s a c r a , essa c o n g r e g a ç ã o n ã o acrescentou à religiosidade o u à cultura nenhum
elemento i r r a c i o n a l p o r iniciativa própria. E r a infinitamente mais p o b r e n ã o apenas
e m pensadores t e o l ó g i c o s , mas t a m b é m , segundo a i m p r e s s ã o obtida das fontes, e m
qualquer e s p é c i e de m a n i f e s t a ç ã o " i n s p i r a d a " , do que o O r i e n t e helenístico e, por
e x e m p l o , a c o n g r e g a ç ã o d e Corinto. N ã o obstante, até precisamente p o r isso, seu racio-
n a l i s m o prático e prosaico, a h e r a n ç a m a i s importante d o m u n d o r o m a n o na Igreja,
desempenhou, c o m o se sabe, quase p o r toda parte o papel decisivo n a sistematização
d o g m á t i c a e ética da f é . A isso corresponde t a m b é m o desenvolvimento ulterior do
m é t o d o de s a l v a ç ã o n o Ocidente. A s e x i g ê n c i a s ascéticas d a antiga regra beneditina,
b e m c o m o as d a r e f o r m a d u n i a c e n s e , s ã o , e m r e l a ç ã o aos p a d r õ e s da índia o u do
antigo O r i e n t e , extremamente modestas e adaptadas a n o v i ç o s de círculos nobres; por
o u t r o lado, destaca-se precisamente n o Ocidente, c o m o característica essencial, o traba-
lho c o m o m e i o higiênico-ascético, e ganha ainda m a i s importância na r e g r a cisterciense
que cultiva metodicamente a simplicidade m a i s r a c i o n a l . O m o n a q u i s m o mendicante,
e m contraste aos monges mendicantes da í n d i a , é f o r ç a d o , logo depois de surgir, a
ECONOMIA E SOCIEDADE 373

entrar no serviço h i e r á r q u i c o , utilizado p a r a fins racionais, o u seja, para a caridade


sistemática — que n o O c i d e n t e desenvolveu-se e m u m a " e m p r e s a " racionalizada —
o u p a r a a prédica e jurisdição herética. A o r d e m jesuíta, p o r f i m , se desfez totalmente
dos elementos anti-higiênicos d o ascetismo antigo e representa a disciplina racional
mais perfeita p a r a fins da I g r e j a . Mas esse desenvolvimento, por sua v e z , estava evidente-
mente ligado ao fato de que
5- a Igreja é aqui u m a o r g a n i z a ç ã o h o m o g ê n e a r a c i o n a l , c o m d i r e ç ã o m o n á r q u i c a
e controle centralizado da d e v o ç ã o , isto é, de que ao lado do deus pessoal s u p r a m u n d a n o
encontrava-se t a m b é m u m regente intramundano dotado c o m poder i m e n s o e a capaci-
dade de regulamentar ativamente a v i d a . As religiões da Ásia oriental c a r e c i a m disso,
e m p a n e p o r razões históricas, e m parte p o r razões de religiosidade. O l a m a í s m o rigoro-
samente organizado, c o m o v e r e m o s mais tarde, n ã o tem a rigorosidade de u m a organi-
z a ç ã o burocrática. O s hierarcas asiáticos, p o r e x e m p l o , os patriarcas hereditários taoístas
o u outros de seitas chinesas e indianas, sempre se t o r n a m e m parte mistagogos, e m
parte objetos de u m a v e n e r a ç ã o antropolátrica, e e m parte, c o m o o D a l a i - L a m a e o
T a c h i l a m a , chefes de u m a religião m o n a c a l p u r a de caráter m á g i c o . Somente no O c i -
dente, onde se t r a n s f o r m o u e m tropa disciplinada de u m a b u r o c r a c i a f u n c i o n a l r a c i o n a l ,
o ascetismo e x t r a m u n d a n o do monacato foi sistematizado gradativamente e m d i r e ç ã o
a u m m é t o d o d e v i d a ativamente r a c i o n a l . E somente o Ocidente v i v e u e n t ã o t a m b é m
a transferência do ascetismo r a c i o n a l à própria v i d a m u n d a n a , n o protestantismo ascé-
tico. Pois as ordens de d e r v i x e s intramundanas c u l t i v a m u m m é t o d o de salvação q u e ,
ainda que diversificado, n ã o d e i x a de se orientar, e m última instância, pela busca de
salvação indiano-persa dos sufis, diretamente orgiástica o u inspiracional o u contem-
plativa, e m todo caso não-ascética no sentido aqui adotado da p a l a v r a , mas, s i m , mística.
E n c o n t r a m o s indianos participando c o m o dirigentes nas orgias de d e r v i x e s , até m e s m o
na p r ó p r i a Bósnia. O ascetismo dos d e r v i x e s n ã o é, c o m o a ética dos protestantes ascéti-
cos, u m a "ética v o c a c i o n a l " religiosa, pois as obras religiosas n ã o t ê m , e m g e r a l , n e n h u -
m a c o n e x ã o , quanto ao m é t o d o de s a l v a ç ã o , c o m as exigências profissionais mundanas;
no m á x i m o , trata-se de u m a c o n e x ã o extrínseca. S e m d ú v i d a , aquele m é t o d o de salvação
pode p r o d u z i r indiretamente efeitos sobre a v i d a profissional. O d e r v i x e piedoso co-
m u m , sendo iguais as demais circunstâncias, é mais digno de c o n f i a n ç a c o m o artesão
do que o irreligioso, assim c o m o , p o r e x e m p l o , o parse devoto p r o s p e r a c o m o comer-
ciante e m v i r t u d e d o mandamento rigoroso d e veracidade. Mas u m a u n i ã o d e p r i n c í p i o ,
sistemática e íntegra, entre a ética profissional i n t r a m u n d a n a e a certeza de s a l v a ç ã o
religiosa f o i p r o d u z i d a , n o m u n d o inteiro, somente pela ética profissional do protestan-
tismo ascético. Pois, neste, o m u n d o , e m seu estado pecaminoso de criatura, tem signifi-
c a ç ã o religiosa exclusivamente c o m o objeto d o c u m p r i m e n t o dos deveres, p o r a ç õ e s
racionais, segundo a vontade de u m deus absolutamente supramundano. O caráter
r a c i o n a l , s ó b r i o das a ç õ e s n ã o entregues ao m u n d o , mas s i m a certa finalidade, e seu
ê x i t o i n d i c a m que repousa sobre eles a b ê n ç ã o de Deus. N ã o a castidade, c o m o no
monge, mas a e l i m i n a ç ã o d e todo " p r a z e r " e r ó t i c o , n ã o a pobreza, m a s a e l i m i n a ç ã o
de todo prazer à base de rendas e da alegre ostentação feudal da r i q u e z a , n ã o a m o r t i f i -
c a ç ã o ascética d o convento, m a s o m o d o d e v i v e r desperto, racionalmente dominado,
e a evitação de toda entrega à beleza d o m u n d o o u à arte o u às impressões e sentimentos
p r ó p r i o s , estas s ã o as e x i g ê n c i a s , disciplina e m é t o d o no m o d o de v i v e r , o f i m u n í v o c o ,
o " h o m e m de v o c a ç ã o " , o representante típico, a o b j e t i v a ç ã o e socialização racionais
das r e l a ç õ e s sociais, a c o n s e q ü ê n c i a específica, d o ascetismo intramundano ocidental
e m contraste c o m todas as outras f o r m a s de religiosidade d o m u n d o .

I I . A salvação pode s e r a l c a n ç a d a , a l é m disso, n ã o pelas próprias obras — as


quais neste caso s ã o consideradas totalmente insuficientes p a r a este f i m — , m a s pelas
374 MAX WEBER

obras realizadas p o r u m h e r ó i agraciado o u até p o r u m deus encarnado e que r e v e r t e m


e m f a v o r de seus adeptos c o m o graça ex opere operato, e isso o u c o m o graça dispensada
diretamente pela magia o u a partir d o excedente daquela g r a ç a que o salvador h u m a n o
o u d i v i n o obteve p o r m é r i t o de suas obras.
A serviço dessa f o r m a de s a l v a ç ã o está o desenvolvimento dos mitos soteriológicos,
sobretudo o dos mitos d o deus g u e r r e i r o o u s o f r e d o r q u e se torna u m ser h u m a n o
o u desce à t e r r a o u ao r e i n o dos mortos, e m todas as suas v a r i a d a s f o r m a s . E m lugar
de u m deus da natureza, particularmente de u m deus solar, que luta c o m outros poderes
naturais, sobretudo, portanto, c o m as trevas e o f r i o , e cuja vitória traz a p r i m a v e r a ,
nasce sobre o solo dos mitos de s a l v a ç ã o u m salvador que liberta os h o m e n s d o poder
dos d e m ô n i o s ( c o m o C r i s t o ) o u da s e r v i d ã o sob a d e t e r m i n a ç ã o astrológica d o destino
(os sete arcontes dos g n ó s t i c o s ) o u , p o r i n c u m b ê n c i a d e u m deus clemente e oculto,
d o m u n d o d e p r a v a d o já e m sua própria c o n c e p ç ã o pelo deus c r i a d o r i n f e r i o r (demiurgo
o u J e o v á , na g n o s e ) o u da impenitência desapiedada do m u n d o que p r o c u r a justificar-se
p o r suas obras (Jesus) e da a f l i ç ã o p r o d u z i d a pela consciência d o pecado que somente
nasce c o m o saber da obrigatoriedade da l e i , cujas e x i g ê n c i a s s ã o incumpríveis (Paulo
e, c o m pequenas m o d i f i c a ç õ e s , t a m b é m Agostinho e L u t e r o ) o u da d e p r a v a ç ã o d e sua
própria natureza pecaminosa ( A g o s t i n h o ) e os conduz à s e g u r a n ç a que e n c o n t r a m na
g r a ç a e n o a m o r d o deus bondoso. A l é m disso, o salvador luta, dependendo do caráter
da salvação, contra d r a g õ e s e d e m ô n i o s malignos. À s vezes, p o r ainda n ã o poder enfren-
tá-los ( f r e q ü e n t e m e n t e é u m a criança l i v r e de p e c a d o ) tem de crescer p r i m e i r o n u m
lugar oculto o u s e r m o r t o pelos inimigos e descer ao r e i n o dos mortos, p a r a ressuscitar
vitoriosamente. A partir d a l i pode-se desenvolver a idéia de q u e sua morte seja u m
tributo de resgate p a r a o direito d o diabo à a l m a dos homens, p o r causa do pecado
(cristianismo p r i m i t i v o ) O u , ao c o n t r á r i o , é o m e i o p a r a aplacar a i r a de D e u s , diante
do q u a l ele é intercessor, c o m o Cristo, M a o m é e outros profetas e salvadores. O u
ele traz aos h o m e n s , c o m o os antigos salvadores das religiões m á g i c a s , o conhecimento
proibido d o fogo o u das artes técnicas o u da escrita e assim, p o r sua v e z , o conhecimento
dos meios p a r a v e n c e r os d e m ô n i o s n o m u n d o o u n o c a m i n h o ao c é u ( g n o s e ) O u ,
p o r f i m , sua o b r a decisiva n ã o consiste e m suas lutas e sofrimentos concretos, mas
na última r a i z metafísica de todo o processo: na e n c a r n a ç ã o h u m a n a de u m deus pura-
mente c o m o tal (ponto f i n a l da e s p e c u l a ç ã o de s a l v a ç ã o helénica e m A t a n á s i o ) como
o ú n i c o m e i o d e fechar o abismo entre D e u s e toda a criatura. A e n c a r n a ç ã o humana
de D e u s o f e r e c e u a possibilidade de p r o p o r c i o n a r aos h om e n s u m a participação anímica
e m D e u s , de " f a z e r c o m que os h o me n s se t o r n e m d e u s e s " , c o m o já se lê e m I r i n e u ,
e a f ó r m u l a pós-atanasiana, segundo a q u a l pela e n c a r n a ç ã o h u m a n a tenha penetrado
nele a essência (a idéia p l a t ô n i c a ) da h u m a n i d a d e , mostra a significação metafísica do
"ófAooúoxoç" [da similaridade (N T . ) ] . O u e n t ã o D e u s n ã o se contenta c o m u m ato
ú n i c o de e n c a r n a ç ã o h u m a n a , mas, e m c o n e x ã o c o m a idéia da eternidade do mundo,
da qual quase todo o pensamento asiático está convencido, encarna-se de tempos em
tempos o u continuamente: tal é a idéia d o Bodhisattva, concebida n o budismo mahayâ-
nico (há algumas referências isoladas já e m m a n i f e s t a ç õ e s ocasionais d o p r ó p r i o B u d a ,
nas quais parece r e v e l a r - s e a c r e n ç a na d u r a ç ã o limitada d e sua doutrina sobre a t e r r a )
À s vezes considera-se o Bodhisattva u m ideal s u p e r i o r ao B u d a , porque renuncia ao
p r ó p r i o ingresso, de significação apenas e x e m p l a r , ao n i r v a n a , e m f a v o r de sua f u n ç ã o
u n i v e r s a l a serviço dos homens: t a m b é m a q u i " s a c r i f i c a " - s e , portanto, o salvador. D o
m e s m o m o d o q u e , e m s e u tempo, o culto a Jesus já e r a s u p e r i o r ao dos salvadores
dos outros cultos soteriológicos concorrentes, pelo fato de que, nele, o salvador era
u m h o m e m de c a r n e e osso que os p r ó p r i o s apóstolos v i r a m ressuscitar dos mortos,
assim t a m b é m a e n c a r n a ç ã o d i v i n a continuamente v i v a na pessoa d o Dalai-Lama é a
ECONOMIA E SOCIEDADE 375

culminância lógica de toda soteriologia de e n c a r n a ç ã o . Mas n o caso e m que o dispen-


sador da graça d i v i n a v i v e c o m o e n c a r n a ç ã o e, m a i s ainda, q u a n d o n ã o se encontra
mais continuamente sobre a t e r r a , s ã o igualmente necessários meios explícitos p a r a
que as massas de crentes possam participar pessoalmente de seus dons de g r a ç a . E
somente esses meios d e c i d e m sobre o caráter da religiosidade, sendo, p o r é m , muito
variados entre si.
D e caráter essencialmente m á g i c o é a idéia de que, mediante a a b s o r ç ã o física
de u m a substância d i v i n a , de u m a n i m a l t o t ê m i c o e m que estava e n c a r n a d o u m espírito
poderoso, o u de u m a hóstia transmutada n o corpo d i v i n o pela magia, se possa introduzir
e m si p r ó p r i o a f o r ç a d i v i n a , o u a de que, através d e algum tipo de mistério, se possa
participar diretamente de seu g ê n i o e assim tornar-se i m u n e contra os poderes malignos
("graça s a c r a m e n t a l " ) . A a p r o p r i a ç ã o dos bens da graça pode e n t ã o tomar u m r u m o
m á g i c o o u ritualista, e r e q u e r , e m todo caso, a l é m d o salvador o u d o deus v i v e n d o
encarnado, sacerdotes o u mistagogos humanos. O caráter assumido pela dispensa da
graça depende t a m b é m , e m g r a u c o n s i d e r á v e l , da circunstância de ser o u n ã o exigido
desses mediadores entre os h o m e n s e o salvador a posse pessoal e a c o m p r o v a ç ã o
de dons carismáticos da g r a ç a ; de m o d o que se n ã o participam deles ( c o m o o sacerdote
que caiu e m pecado m o r t a l ) n ã o p o d e m transmitir a g r a ç a , n e m administrar validamente
o sacramento. Esta c o n s e q ü ê n c i a rigorosa (administração carismática da graça) f o i tira-
da, p o r exemplo, pela p r o f e c i a dos montanistas, dos donatistas e, e m g e r a l , de todas
as comunidades de f é da Antiguidade que se f u n d a m e n t a v a m n a o r g a n i z a ç ã o de poder
profético-carismática da I g r e j a : n e m todo bispo, credenciado apenas institucional e
exteriormente por s e u " c a r g o " , pode administrar a g r a ç a de m o d o eficaz; f á - l o apenas
o credenciado pela profecia e outros testemunhos espirituais, pelo menos n o caso de
u m pecado m o r t a l daquele que solicita a g r a ç a . Logo que se prescinde dessa e x i g ê n c i a ,
encontramo-nos já n o â m b i t o de outra c o n c e p ç ã o . A s a l v a ç ã o o c o r r e e n t ã o e m v i r t u d e
de graças dispensadas continuamente p o r u m a comunidade institucional, credenciada,
p o r sua v e z , p o r sua f u n d a ç ã o d i v i n a o u profética: graça institucional. E s t a , p o r sua
vez, pode atuar diretamente por m e i o de sacramentos puramente m á g i c o s o u e n t ã o
e m v i r t u d e da disposição que lhe f o i concedida sobre o tesouro das obras santificantes
excedentes de seus f u n c i o n á r i o s o u adeptos. Mas, e m caso de realização c o n s e q ü e n t e ,
v i g o r a m s e m p r e estes três princípios: 1 ) exrra ecclesiam nulla salus — somente pela
pertinência à instituição administradora da g r a ç a pode-se obter g r a ç a ; 2 ) o cargo legal-
mente c o n f e r i d o e n ã o a q u a l i f i c a ç ã o pessoal carismática d o sacerdote é que decide
sobre a eficácia da administração da g r a ç a ; 3 ) a q u a l i f i c a ç ã o pessoal religiosa do neces-
sitado de salvação é, e m p r i n c í p i o , s e m importância diante do p o d e r administrador
de g r a ç a do cargo. A salvação é , portanto, u n i v e r s a l e acessível n ã o apenas aos virtuosos
religiosos. Estes últimos p o d e m até facilmente parecer a m e a ç a d o s e m suas possibi-
lidades de s a l v a ç ã o e na autenticidade d e sua religiosidade, e e m todo caso isso tem
de o c o r r e r e m alto g r a u , q u a n d o ele espera chegar a D e u s p o r u m c a m i n h o i n d i v i d u a l ,
especial, e m v e z de confiar na g r a ç a institucional. C u m p r i r as e x i g ê n c i a s de D e u s ,
de tal m o d o que basta p a r a a s a l v a ç ã o o a c r é s c i m o da g r a ç a dispensada pela instituição,
isto d e ve ser possível, e m p r i n c í p i o , a todos os homens. O nível da c o n t r i b u i ç ã o ética
pessoal exigida pode ser assim estabelecido d e a c o r d o c o m u m a q u a l i f i c a ç ã o m é d i a
e, portanto, n ã o muito profunda. Q u e m c o n t r i b u i c o m mais, portanto, o virtuoso, pode
assim r e a l i z a r , a l é m de p a r a a s a l v a ç ã o p r ó p r i a , obras p a r a o tesouro da instituição,
a p a r t i r d o qual esta doa aos necessitados. E s t e é o ponto d e vista e s p e c í f i c o da Igreja
católica que constitui seu caráter de instituição da g r a ç a e que f o i f i x a d o n u m desenvol-
v i m e n t o de séculos, terminado sob G r e g ó r i o , o G r a n d e , oscilando na prática entre
u m a c o n c e p ç ã o mais m á g i c a e outra m a i s ético-soteriológica. Mas a m a n e i r a c o m o a
376 MAX WEBER

dispensa carismática da g r a ç a e a dispensa institucional influenciam o m o d o de v i v e r


depende dos pressupostos aos quais se v i n c u l a o d e f e r i m e n t o dos meios de salvação.
A situação é, portanto, semelhante à do ritualismo, c o m o q u a l a g r a ç a sacramental
e a institucional m o s t r a m já p o r isso u m a afinidade eletiva muito íntima. E ainda e m
outro aspecto, às vezes importante, toda e s p é c i e de autêntica dispensa da g r a ç a por
u m a pessoa, seja esta legitimada pelo c a r i s m a o u pelo cargo, acrescenta à religiosidade
ética u m a peculiaridade que atua n o m e s m o sentido, d i m i n u i n d o as e x i g ê n c i a s éticas.
E l a significa s e m p r e u m alívio interno d o necessitado d e salvação. T o r n a n d o - l h e mais-
l e v e , portanto, o peso da culpa e poupando-o — sendo iguais as demais circunstâncias
— muito mais d o que aos outros do desenvolvimento de u m m é t o d o de v i d a p r ó p r i o ,
eticamente sistematizado. Pois o pecador sabe que s e m p r e d e n o v o obterá a absolvição
de todos os pecados mediante u m a a ç ã o religiosa ocasional. E , sobretudo, p e r m a n e ce m
os pecados c o m o atos isolados aos quais se c o n f r o n t a m outros atos isolados de compen-
sação o u e x p i a ç ã o . O que é avaliado n ã o é o habitus global da personalidade — a
ser continuamente reconstituído p o r m e i o de ascese o u c o n t e m p l a ç ã o o u autocontrole
permanentemente alerto e d e novas provas — , mas as a ç õ e s concretas isoladas. Falta,
portanto, a necessidade de conquistar p o r si m e s m o , p o r e s f o r ç o p r ó p r i o , a certitudo
salutis, e toda essa categoria eticamente t ã o eficaz passa p a r a o segundo plano e m
importância. O controle constante da c o n d u ç ã o da v i d a p o r u m administrador de graça
(confessor, diretor espiritual), antes bastante eficaz e m certas circunstâncias, é muitas
vezes compensado e m excesso pelo fato de que a g r a ç a pode ser administrada continua-
mente. Particularmente a instituição da c o n f i s s ã o conjugada c o m a a b s o l v i ç ã o dos peca-
dos mostra e m seus efeitos práticos u m a face dupla e tem f u n ç õ e s diferentes, depen-
dendo de seu emprego. A f o r m a muito g e r a l , p o u c o especializada, de confissão dos
pecados — muitas vezes u m reconhecimento coletivo d e haver pecado — praticada
especialmente pela Igreja russa, n ã o é n e n h u m m e i o de influência d u r a d o u r a sobre
o m o d o de v i v e r , e t a m b é m a prática de c o n f i s s ã o d o luteranismo antigo e r a , sem
d ú v i d a , pouco eficaz. O s catálogos de pecados e penitências dos escritos sagrados da
índia v i n c u l a m a c o m p e n s a ç ã o de pecados rituais e éticos quase s e m p r e a atos de obe-
diência puramente rituais ( o u sugeridos pelo interesse estamental dos b r â m a n e s ) de
m o d o que a c o n d u ç ã o da v i d a cotidiana s ó podia ser influenciada n o sentido do tradicio-
nalismo, e a graça sacramental dos g u r u s hinduístas enfraqueceu mais ainda a eventual
eficácia da influência. A I g r e j a católica d o Ocidente, por m e i o de seu sistema de confissão
e penitência, desenvolvido pela c o m b i n a ç ã o da técnica jurídica r o m a n a e da idéia germâ-
nica da c o m p e n s a ç ã o pecuniária d o assassinato, e que n ã o tem p a r n o m u n d o inteiro,
i m p ô s c o m í m p e t o singular a cristianização da E u r o p a ocidental. iMas a limitação de
sua eficácia, n o sentido do desenvolvimento de u m m é t o d o racional para o modo de
v i v e r , teria existido t a m b é m s e m a prática desleixada da indulgência que inevitavelmente
a a m e a ç a v a . N ã o obstante, podemos o b s e r v a r ainda h o j e , às vezes, " n u m e r i c a m e n t e "
a influência da confissão n o e x e m p l o dos católicos piedosos que rejeitam decididamente
o sistema de dois filhos, p o r mais que se m o s t r e m na França t a m b é m nesta área os
limites d o poder da Igreja. Mas o fato de, p o r u m lado, o j u d a í s m o e, por outro,
o protestantismo ascético n ã o c o n h e c e r e m n e n h u m a c o n f i s s ã o e dispensa de graça por
u m a pessoa h u m a n a e n e n h u m a graça sacramental m á g i c a , e x e r c e u historicamente aque-
la p r e s s ã o imensamente forte que l e v o u ao desenvolvimento de f o r m a s eticamente
racionais da v i d a , p r e s s ã o c o m u m a ambas as f o r m a s de religiosidade, p o r mais dife-
rentes que elas sejam nos demais aspectos. Falta u m a possibilidade de alívio tal como
a p r o p o r c i o n a m a instituição da c o n f i s s ã o e a g r a ç a institucional. Somente, por exemplo,
a c o n f i s s ã o dos pecados nas " r e u n i õ e s dos d o z e " dos metodistas e r a u m a que atuava
de m o d o semelhante, ainda que e m sentido e c o m efeito bastante diferentes. Mesmo
ECONOMIA E SOCIEDADE 377

assim podia desenvolver-se a p a r t i r d a l i a prática m e i o orgiástica d e penitência d o E x é r -


cito da S a l v a ç ã o .
Por f i m e sobretudo g r a ç a institucional, d e v i d o a sua p r ó p r i a n a t u r e z a , t e m a
tendência de d e s e n v o l v e r , c o m o v i r t u d e c a r d i n a l e c o n d i ç ã o decisiva da s a l v a ç ã o , a
o b e d i ê n c i a , a s u b m i s s ã o à autoridade, seja esta a da instituição c o m o tal o u a d o adminis-
trador carismático da g r a ç a , p o r e x e m p l o , na í n d i a , d o g u r u , que às vezes e x e r c i a
autoridade ilimitada. Neste caso, a c o n d u ç ã o da v i d a n ã o constitui u m a sistematização
que v e m d e dentro d o i n d i v í d u o , d e u m centro que este m e s m o construiu lutando,
m a s alimenta-se d e u m centro situado f o r a dele. Q u a n t o à substância da c o n d u ç ã o
da v i d a c o m o t a l , isto n ã o pode mostrar n e n h u m efeito que estimule u m a sistematização
ética, s e n ã o muito p e l o contrário. Na prática, p o r é m , facilita a a d a p t a ç ã o de manda-
mentos sagrados concretos a c o n d i ç õ e s externas modificadas, p o r aumentar sua elastici-
dade, s ó que c o m efeito d i v e r s o da ética d e c o n v i c ç ã o . No s é c u l o X K , p o r e x e m p l o ,
estava praticamente anulada, p a r a a Igreja católica, a p r o i b i ç ã o d o j u r o , apesar de
sua vigência eterna manifestada na Bíblia e nos decretos papais. Isto n ã o o c o r r e u aberta-
mente, e m f o r m a de s u a a b o l i ç ã o ( i m p o s s í v e l ) m a s p o r u m a simples instrução interna
d o Santo O f í c i o aos confessores de n ã o indagar a partir de e n t ã o , n o c o n f e s s i o n á r i o ,
acerca de infrações da p r o i b i ç ã o d o j u r o e d e conceder a a b s o l v i ç ã o , suposto q u e h o u -
vesse certeza de que o confessado, n o caso de a Santa S é r e c o r r e r n o f u t u r o aos princípios
antigos, aceitaria obedientemente essa d e c i s ã o . Na França, o c l e r o lutou várias vezes
p o r u m tratamento semelhante ao sistema d e dois filhos. O v a l o r religioso ú l t i m o n ã o
é, portanto, o concreto d e v e r é t i c o e s u a substância, n e m a q u a l i f i c a ç ã o ética de v i r t u o s o ,
metodicamente alcançada p o r este, mas a o b e d i ê n c i a à instituição, b e n e m é r i t a c o m o
tal. A humildade f o r m a l da o b e d i ê n c i a é o ú n i c o p r i n c í p i o que, n a realização conse-
q ü e n t e da g r a ç a institucional, abraça u n i f o r m e m e n t e a c o n d u ç ã o da v i d a , p r i n c í p i o
a f i m à mística e m seu efeito, p e l o caráter especificamente " r o m p i d o " d o devoto. A
a f i r m a ç ã o de Mallinckrodt — a l i b e r d a d e d o católico consiste e m poder obedecer ao
papa — é, neste aspecto, de v a l i d a d e u n i v e r s a l .

O u então a s a l v a ç ã o está v i n c u l a d a à fé. D e s d e que este conceito n ã o seja identi-


ficado c o m a s u b m i s s ã o a n o r m a s práticas, ele s e m p r e s u p õ e q u e s e j a m tomados p o r
v e r d a d e i r o s certos fatos metafísicos, isto é, o desenvolvimento de certos " d o g m a s " ,
cuja aceitação é considerada o sinal essencial da pertinência ao grupo. C o m o já v i m o s ,
o g r a u d e desenvolvimento de dogmas é muito d i v e r s o nas diferentes religiões. Mas
a existência de certo g r a u de " d o u t r i n a " é a característica distintiva da profecia e da
religiosidade sacerdotal e m face da p u r a magia. É c l a r o que toda magia exige a c r e n ç a
n o poder m á g i c o d o feiticeiro. E m p r i m e i r o lugar, a f é deste e m s i m e s m o e e m sua
capacidade. Isto se aplica a toda religiosidade, inclusive à cristã p r i m i t i v a . Por d u v i d a r
do poder p r ó p r i o , os discípulos n ã o p o d i a m , assim lhes e x p l i c a Jesus, c u r a r u m possesso.
Mas a f é de q u e m está completamente convencido d e sua capacidade d e f a z e r milagres
fará m o v e r as montanhas. Por outro lado, t a m b é m a magia r e q u e r — ainda h o j e —
á f é daqueles q u e p e d e m o milagre m á g i c o . E m sua t e r r a natal e às vezes t a m b é m
noutras cidades, Jesus n ã o pode f a z e r milagres e " a d m i r a - s e d e sua d e s c r e n ç a " . C o m o
declara repetidas vezes, ele c u r a possessos e aleijados p o r q u e c r ê e m nele e e m s e u
poder. Isto é e n t ã o s u b l i m a d o , p o r u m lado, n u m sentido ético. Porque a adúltera
c r ê e m s e u poder d e p e r d o a r pecados, ele pode perdoar-lhe seus pecados. Por outro
lado, p o r é m — e é disso q u e se trata, e m p r i m e i r o lugar — , desenvolve-se a c r e n ç a
n o sentido d e tomar p o r v e r d a d e i r o s certos dogmas intelectualmente compreendidos
que, p o r sua v e z , s ã o produtos de r e f l e x ã o intelectual. O confucionismo, que nada
sabe d e dogmas, n ã o constitui precisamente p o r isso u m a ética d e s a l v a ç ã o . O islã
e o j u d a í s m o antigos n ã o estabelecem n e n h u m a exigência p r o p r i a m e n t e d o g m á t i c a ,
378 MAX WEBER

mas e x i g e m apenas, c o m o faz a religião p r i m i t i v a p o r toda parte, a c r e n ç a n o poder


(e, portanto, n a existência) d o deus p r ó p r i o , agora considerado o " ú n i c o " , e n o de
seus profetas. S e n d o religiões livrescas, seus textos sagrados d e v e m ser considerados
inspirados — n o islã até criados — p o r D e u s , e s e u c o n t e ú d o é, portanto, tomado
p o r v e r d a d e i r o . Mas, a l é m de n a r r a ç õ e s c o s m o g ô n i c a s , mitológicas e históricas, a L e i ,
os Profetas e o C o r ã o c o n t ê m essencialmente mandamentos práticos e n ã o r e q u e r e m ,
na v e r d a d e , n e n h u m a c o m p r e e n s ã o intelectual de determinada natureza. Somente as
religiões não-proféticas c o n h e c e m a f é c o m o m e r o saber sagrado. Nelas, os sacerdotes,
b e m c o m o os feiticeiros, s ã o g u a r d i ã e s d o saber m i t o l ó g i c o e c o s m o g ô n i c o e, como
cantores sagrados, t a m b é m das lendas heróicas. A ética v é d i c a e a confuciana v i n c u l a m
a q u a l i f i c a ç ã o ética plena à f o r m a ç ã o literária transmitida e m f o r m a escolar, f o r m a ç ã o
que e m g r a u muito a m p l o é idêntica a u m saber perpetuado pela m e m ó r i a . O " c o m -
p r e e n d e r " intelectual, c o m o e x i g ê n c i a , já c o n d u z à f o r m a de s a l v a ç ã o filosófica ou
gnóstica. Mas c o m isso cria-se u m i m e n s o abismo entre os plenamente qualificados
do ponto de vista intelectual e as massas. No entanto, u m a " d o g m á t i c a " propriamente
oficial ainda n ã o existe nestas f o r m a s ; há apenas o p i n i õ e s filosóficas consideradas mais
o u m e n o s ortodoxas, c o m o os V e d â n t a ortodoxos e o sâmkhya heterodoxo n o hinduís-
m o . As igrejas cristãs, ao c o n t r á r i o , ao crescer cada v e z mais a p e n e t r a ç ã o do intelectua-
l i s m o e a necessidade d e e n f r e n t á - l o d e s e n v o l v e r a m u m a quantidade jamais alcançada
de dogmas racionais, oficiais e comprometedores, u m a crença de t e ó l o g o s . A exigência
d o conhecimento e da c o m p r e e n s ã o desses dogmas e da c r e n ç a neles é praticamente
irrealizável. H o j e até achamos difícil imaginar, limitando-nos, p o r e x e m p l o , ao conteúdo
c o m p l e x o da Epístola aos Romanos, que já este tenha sido totalmente assimilado intelec-
tualmente p o r u m a c o n g r e g a ç ã o (preponderantemente) pequeno-burguesa, o que pare-
ce ter sido r e a l . Pelo m e n o s neste caso operava-se ainda c o m idéias que e r a m correntes
n u m a camada u r b a n a de prosélitos, acostumada a c i s m a r sobre as c o n d i ç õ e s da salvação
e e m certo g r a u f a m i l i a r i z a d a c o m a casuística judaica o u h e l é n i c a , e, por outro lado,
é sabido que t a m b é m nos séculos X V I e X V I I amplos círculos pequeno-burgueses assimi-
l a r a m intelectualmente os dogmas dos s í n o d o s de D o r d r e c h t e Westminster, e as muitas
e complicadas f ó r m u l a s d e compromisso das Igrejas r e f o r m a d a s . Mas, e m condições
n o r m a i s , semelhante e x i g ê n c i a é irrealizável e m religiões congregacionais s e m a conse-
q ü ê n c i a de e x c l u i r da s a l v a ç ã o todos aqueles que n ã o f a z e m parte dos conhecedores
filosóficos (gnósticos) — c o m o o c o r r e u c o m os " h í l i c o s " e os " p s í q u i c o s " , os mistica-
mente n ã o - i l u m i n a d o s — o u , p e l o m e n o s , a de limitar os devotos não-intelectuais (písti-
c o s ) a u m a b e m - a v e n t u r a n ç a d e g r a u i n f e r i o r , tal c o m o existe na gnose e, de forma
semelhante, e m algumas religiões d e intelectuais da índia. C o n s e q ü e n t e m e n t e , continua
durante todos os p r i m e i r o s séculos d o cristianismo antigo a disputa expressa o u latente
sobre a q u e s t ã o de se a " g n o s e " t e o l ó g i c a o u a simples f é , pistis, seja a qualidade
s u p e r i o r o u a única que garanta a s a l v a ç ã o ; n o islã, os mutazilitas s ã o os representantes
da teoria de que o p o v o " c r e n t e " n o sentido c o r r e n t e , s e m instrução dogmática, não
pertence p r o p r i a m e n t e à comunidade dos crentes; e p o r toda parte as relações entre
o intelectualismo t e o l ó g i c o , o v i r t u o s i s m o intelectual d o conhecimento religioso e a
piedade dos não-intelectuais, sobretudo, p o r é m , a religiosidade dos virtuosos da ascese
e da c o n t e m p l a ç ã o (ambos t i n h a m d e r e f u t a r o " s a b e r m o r t o " c o m o qualificação que
conduz à s a l v a ç ã o ) i n f l u e n c i a r a m decisivamente a peculiaridade de cada religiosidade.

J á nos p r ó p r i o s evangelhos, a f o r m a de p a r á b o l a da p r é d i c a de Jesus é apresentada


c o m o esotérica intencional. Se n ã o se q u e r t i r a r esta c o n s e q ü ê n c i a de u m a aristocracia
d e intelectuais, e n t ã o a f é t e m d e s e r algo diferente d o c o m p r e e n d e r profundamente
e t o m a r p o r v e r d a d e i r o u m sistema t e o l ó g i c o de dogmas. E de fato o é e m todas a%.
religiões proféticas, desde o início o u , e n t ã o , c o m o desenvolvimento da dogmática,
ECONOMIA E SOCIEDADE 379

transformou-se nesse sentido, particularmente n o m o m e n t o e m que se t o r n a r a m r e l i -


g i õ e s congregacionais. S e m d ú v i d a , a aceitação dos dogmas n ã o é i r r e l e v a n t e e m ne-
n h u m lugar, exceto aos olhos dos virtuosos ascéticos o u — sobretudo — dos místicos.
Mas o reconhecimento pessoal e x p r e s s o de dogmas, chamado tecnicamente fides expli-
cita no cristianismo, costuma ser exigido apenas p a r a determinados "artigos de f é " ,
considerados absolutamente essenciais e m o p o s i ç ã o a outros dogmas. No caso dos outros
dogmas, as e x i g ê n c i a s v ã o m a i s o u menos longe. As e x i g ê n c i a s impostas a este respeito
pelo protestantismo, na base da " j u s t i f i c a ç ã o pela f é " , e r a m especialmente elevadas,
e sobretudo (ainda que n e m e x c l u s i v a m e n t e ) n o caso d o protestantismo ascético, p a r a
o qual a Bíblia e r a u m a c o d i f i c a ç ã o d o direito d i v i n o . O estabelecimento de escolas
primárias universais d o tipo judaico, a instrução intensiva particularmente dos j o v e n s
nas seitas, deve-se substancialmente a essa e x i g ê n c i a religiosa; o conhecimento p r o f u n d o
da Bíblia tanto dos holandeses, p o r e x e m p l o , c o m o t a m b é m dos pietistas e metodistas
a n g l o - s a x ô n i c o s ( e m contraste c o m a situação nas escolas primárias ingleses) s u r p r e e n -
d e u os viajantes a i n d a na metade d o s é c u l o X K . Neste caso, a c o n v i c ç ã o da univocidade
dogmática da Bíblia e r a o fundamento da a m p l a demanda de u m conhecimento p r ó p r i o
da f é . A o contrário, n u m a I g r e j a rica e m dogmas, e m vista da quantidade destes, s ó
é possível exigir a fides implícita, a disposição g e r a l de subordinar a c o n v i c ç ã o p r ó p r i a
à autoridade da f é competente n o caso concreto, tal c o m o o fazia e ainda o faz, e m
a m p l o g r a u , a I g r e j a católica. Mas, de fato, u m a fides implícita d e i x o u de s e r u m tomar
p o r v e r d a d e i r o s , pessoalmente, os dogmas; é u m a d e c l a r a ç ã o de c o n f i a n ç a e de entrega
a u m profeta o u a u m a autoridade ordenada p o r u m a instituição. C o m isso, a f é religiosa
p e r d e t a m b é m s e u caráter intelectualista. Q u a n d o a religiosidade se torna p r e d o m i -
nantemente ético-racional, a f é possui esse caráter, e m todo caso, apenas e m g r a u
insignificante. Pois o m e r o tomar p o r v e r d a d e i r o de conhecimentos é p a r a u m a " é t i c a
de c o n v i c ç ã o ' ' apenas o degrau mais b a i x o da f é , o que ressalta, entre outros, Agostinho.
T a m b é m a f é deve tornar-se u m a qualidade de c o n v i c ç ã o . O apego pessoal a u m deus
especial é algo m a i s d o que " s a b e r " e, p o r isso, é chamado " f é " . A s s i m , tanto n o
Antigo quanto n o N o v o Testamento. A " f é " que é " c r e d i t a d a à justiça" de A b r a ã o n ã o
é n e n h u m tomar p o r v e r d a d e i r o intelectual de dogmas, mas c o n f i a n ç a nas promessas
de Deus. E x a t a m e n t e o m e s m o significa a f é , e m s e u sentido c e n t r a l , p a r a Jesus e
Paulo. O saber e o conhecimento dos dogmas r e t r o c e d e m consideravelmente. N u m a
Igreja organizada c o m o instituição a e x i g ê n c i a da fides explicita costuma ficar limitada,
pelo menos na prática, aos sacerdotes, pregadores e t e ó l o g o s dogmaticamente instruí-
dos. T o d a religiosidade sistematicamente teologizada faz c o m que nasça e m seu m e i o
essa aristocracia dos dogmaticamente instruídos e cientes, os quais e n t ã o , e m g r a u
e c o m ê x i t o d i v e r s o s , f a z e m q u e s t ã o d e ser os v e r d a d e i r o s portadores dessa religiosi-
dade. A idéia ainda hoje muito popular entre os leigos de que o p á r o c o deva mostrar-se
capaz de c o m p r e e n d e r e c r e r m a i s d o que o intelecto h u m a n o c o m u m — c o n c e p ç ã o
difundida sobretudo entre os camponeses — é apenas u m a das f o r m a s de m a n i f e s t a ç ã o
da q u a l i f i c a ç ã o " e s t a m e n t a l " e m v i r t u d e de " i n s t r u ç ã o " , f e n ô m e n o que encontramos
e m toda b u r o c r a c i a estatal, militar, eclesiástica e p r i v a d a . Mais p r i m i t i v a d o que essa
c o n c e p ç ã o é a já mencionada, própria t a m b é m d o N o v o Testamento, q u e considera
a f é u m c a r i s m a e s p e c í f i c o d e confiança extracotidiana na p r o v i d ê n c i a pessoal de D e u s ,
c a r i s m a que d e v e m possuir os pastores de almas o u os heróis da f é . E m v i r t u d e desse
c a r i s m a d a c o n f i a n ç a — que excede a capacidade h u m a n a c o m u m — n o a u x í l i o de
D e u s , o h o m e m de c o n f i a n ç a da c o n g r e g a ç ã o , c o m o virtuoso da f é , t e m a possibilidade
de agir, n a prática, de m o d o diferente d o leigo e realizar obras q u e este n ã o pode.
A f é p r o p o r c i o n a , neste caso, u m a e s p é c i e de s u c e d â n e o de capacidades m á g i c a s .

E s s a atitude interna especificamente anti-racional, própria de u m a religiosidade


380 MAX WEBER

de c o n f i a n ç a ilimitada e m D e u s , q u e chega às vezes até a u m a indiferença acósmica


perante c o n s i d e r a ç õ e s práticas de tipo intelectual e leva f r e q ü e n t e m e n t e à q u e l a confian-
ça incondicional n a p r o v i d ê n c i a d e D e u s — que imputa a ele, exclusivamente, as conse-
q ü ê n c i a s dos p r ó p r i o s atos, sentidos c o m o algo q u e r i d o p o r D e u s — , encontra-se tanto
n o cristianismo quanto n o islã e p o r toda parte e m forte contraste c o m o " s a b e r " ,
particularmente o saber t e o l ó g i c o . Isso pode configurar-se c o m o soberba virtuosidade
de f é o u , ao contrário, quando evita o perigo dessa p r e s u n ç ã o d i v i n i z a d o r a da criatura,
c o m o u m a atitude de incondicional entrega religiosa e h u m i l d a d e absorta e m Deus,
que exige antes de tudo a m o r t i f i c a ç ã o d o o r g u l h o intelectual. D e s e m p e n h a u m papel
dominante sobretudo n o cristianismo antigo, c o m Jesus e Paulo, mas t a m b é m na luta
contra a filosofia h e l é n i c a , mas tarde n a a v e r s ã o aos t e ó l o g o s das seitas místico-inspi-
racionais d o s é c u l o X V I I , na E u r o p a ocidental, e dos séculos X V I I I e X I X , na E u r o p a
oriental. T o d a d e v o ç ã o f i e l genuinamente religiosa, d e natureza qualquer, inclui direta
o u indiretamente, e m a l g u m ponto, o " s a c r i f í c i o d o intelecto", e m f a v o r daquela quali-
dade espiritual específica, supra-intelectual, da entrega absoluta e da confissão, cheia
de c o n f i a n ç a : credo, non quod, sed quia absurdum est [Tertuliano: c r e i o porque é
absurdo ( N T . ) ] . A q u i , c o m o a l h u r e s , a religiosidade de s a l v a ç ã o das religiões crentes
n u m deus s u p r a m u n d a n o sublinha a insuficiência da f o r ç a intelectual e m face da sublimi-
dade de D e u s , e constitui, portanto, algo fundamentalmente distinto da renúncia budista
ao saber d o a l é m — p o r q u e n ã o s e r v e à q u e l a c o n t e m p l a ç ã o que unicamente traz a
s a l v a ç ã o — o u da renúncia cética ao conhecimento de u m " s e n t i d o " d o m u n d o , c o m u m
a todas as camadas de intelectuais de todos os tempos, tanto aos epitáfios helenistas
quanto aos produtos supremos d o Renascimento (por e x e m p l o , S h a k e s p e a r e ) às filoso-
fias e u r o p é i a , chinesa e indiana o u ao intelectualismo m o d e r n o , renúncia que, ao contrá-
r i o , ela deve combater energicamente. A crença n o " a b s u r d o " , o t r i u n f o , que já aparece
nas prédicas d e Jesus, sobre o fato de s e r e m as crianças e os ignorantes, e n ã o os
cientes, aqueles que r e c e b e m de D e u s este c a r i s m a da f é , indica a tensão e n o r m e entre
esse [tipo] de religiosidade e o intelectualismo, apesar de que ela, ao m e s m o tempo,
p r o c u r a e m p r e g a r este, continuamente, p a r a seus p r ó p r i o s fins. E m v i r t u d e de sua
i m p r e g n a ç ã o crescente c o m f o r m a s d e pensar helénicas, ela o fomenta j á na Antiguidade,
depois novamente e c o m muito mais e m p e n h o n a Idade M é d i a , [pela] c r i a ç ã o das univer-
sidades c o m o lugares de cultivo da dialética, que foi p o r ela criada sob a impressão
das obras dos juristas r o m â n i c o s e m f a v o r d o concorrente poder i m p e r i a l . E m todo
caso, a religiosidade de f é p r e s s u p õ e s e m p r e u m deus pessoal, mediador o u profeta
e m c u j o f a v o r se r e n u n c i a , e m algum ponto, à justificação e ao saber próprios. Por
isso, nesta f o r m a é especificamente alheia à religiosidade asiática.

C o m o v i m o s , a " f é " pode assumir f o r m a s diferentes, segundo sua tendência espe-


cífica. A religiosidade de f é voltada p a r a a " s a l v a ç ã o " , das camadas sociais pacificadas,
tem certo parentesco, c l a r o que e m graus muito diversos, c o m a mística contemplativa,
mais d o que c o m a c o n f i a n ç a p r i m i t i v a d o g u e r r e i r o n o poder imenso de seu deus,
predominante na religião de J e o v á e n o islã antigo. Pois todo b e m de " s a l v a ç ã o " como
esse, almejado e m termos d e " r e d e n ç ã o " , p e l o m e n o s tende a tornar-se u m a relação
" e s t á t i c a " c o m o d i v i n o , u m a unio mística. E quanto m a i s sistemática é e n t ã o a elabo-
r a ç ã o d o caráter de c o n v i c ç ã o prático da f é , tanto mais facilmente p o d e m surgir, como
e m toda mística, c o n s e q ü ê n c i a s diretamente anomísticas. J á as Epístolas de Paulo, bem
c o m o certas e x p r e s s õ e s contraditórias e n c o n t r a d i ç a s n o legado de Jesus, mostram a
g r a n d e dificuldade de se estabelecer u m a r e l a ç ã o i n e q u í v o c a entre u m a autêntica religio-
sidade d e " s a l v a ç ã o " , baseada na " f é " n o sentido de u m a r e l a ç ã o de confiança, e deter-
minadas e x i g ê n c i a s éticas. C o n s e q ü e n t e m e n t e , o p r ó p r i o Paulo tem de se debater cons-
tantemente c o m as c o n s e q ü ê n c i a s imediatas d e sua c o n c e p ç ã o mediante d e d u ç õ e s muito
ECONOMIA E SOCIEDADE 381

complicadas. O desenvolvimento c o n s e q ü e n t e da c o n c e p ç ã o p a u l i n a da s a l v a ç ã o pela


f é n o m a r c i o n i s m o mostra claramente as c o n c l u s õ e s anomistas. E m r e g r a , a s a l v a ç ã o
pela f é , q u a n d o muito acentuada, n ã o atua facilmente, n u m a religião cotidiana, n o
sentido de u m a r a c i o n a l i z a ç ã o ética ativa da c o n d u ç ã o da v i d a , c o m o p o d e muito b e m
o c o r r e r n a pessoa d o profeta. E m certas circunstâncias atua diretamente e m sentido
anti-racional, tanto e m q u e s t õ e s isoladas quanto d e p r i n c í p i o . A s s i m c o m o , e m pequena
escala, p a r a alguns luteranos crentes a c o n c l u s ã o de contratos d e s e g u r o seria u m a
m a n i f e s t a ç ã o de d e s c o n f i a n ç a na p r o v i d ê n c i a d i v i n a , e m g r a n d e escala, p a r a a religio-
sidade de f é , todo m é t o d o r a c i o n a l de s a l v a ç ã o , toda f o r m a de justificação pelas obras
e, sobretudo, toda s u p e r a ç ã o da m o r a l i d a d e n o r m a l mediante obras ascéticas é vista
c o m o u m a insistência pecaminosa n a f o r ç a h u m a n a . Q u a n d o desenvolvida de f o r m a
c o n s e q ü e n t e , esta religiosidade r e p e l e — c o m o q antigo islã — o ascetismo s u p r a m u n -
dano, particularmente o monacato. Desse m o d o ; p o d e f a v o r e c e r diretamente, c o m o
o c o r r e u n o protestantismo luterano, a v a l o r i z a ç ã o religiosa d o trabalho profissional
intramundano e fortalecer seus estímulos, sobretudo q u a n d o desvaloriza a graça p e n i -
tencial e sacramental dos sacerdotes e m f a v o r da importância ú n i ca da r e l a ç ã o de f é
pessoal c o m Deus. O l u t e r a n i s m o fez isso desde o início, e c o m m a i o r intensidade
ainda e m seu d e s e n v o l v i m e n t o u l t e r i o r , a p ó s a e l i m i n a ç ã o total da c o n f i s s ã o , especial-
mente nas f o r m a s d o pietismo asceticamente influenciado p o r Spener e F r a n c k e , através
de canais quacrianos e outros dos quais n e m estavam cientes. D a t r a d u ç ã o luterana
da Bíblia p r o v é m a p a l a v r a a l e m ã Beruf [ v o c a ç ã o o u p r o f i s s ã o ( N . T . ) ] , e a v a l o r a ç ã o
da v i r t u d e profissional i n t r a m u n d a n a c o m o a única f o r m a de v i d a a g r a d á v e l a D e u s
é inteiramente essencial ao l u t e r a n i s m o desde o início. Mas u m a v e z que as " o b r a s "
n ã o constituíam u m fundamento r e a l n e m da s a l v a ç ã o da a l m a , c o m o n o catolicismo,
n e m do conhecimento d o renascimento, c o m o n o protestantismo ascético, e, a l é m disso,
o hábito e m o c i o n a l de saber-se protegido na bondade e g r a ç a de D e u s continuava
sendo a f o r m a p r e d o m i n a n t e da certeza d e s a l v a ç ã o , a p o s i ç ã o diante d o m u n d o p e r m a -
necia u m paciente " c o n f o r m a r - s e " c o m suas ordens, e m o p o s i ç ã o marcante a todas
aquelas f o r m a s d o protestantismo que e x i g i a m p a r a a certeza de s a l v a ç ã o u m a p r o v a
(entre os pietistas, //'efes efficax, entre os charidehitas islâmicos, o amai) e m f o r m a
d e boas obras o u de u m a específica c o n d u ç ã o da v i d a m e t ó d i c a , e e m o p o s i ç ã o total
à religião de virtuosos das seitas ascéticas. Falta ao luteranismo todo impulso a u m a
atitude social o u politicamente r e v o l u c i o n á r i a o u até apenas r a c i o n a l - r e f o r m a d o r a . T r a -
ta-se de c o n s e r v a r o b e m d e s a l v a ç ã o da f é dentro d o m u n d o e contra ele, e n ã o de
t r a n s f o r m a r o m u n d o d e m o d o racional-ético. O n d e q u e r que a p a l a v r a d e D e u s é
anunciada p u r a e claramente, tudo que é essencial ao cristão virá p o r s i m e s m o , e
a o r g a n i z a ç ã o e x t e r n a d o m u n d o , e m e s m o da I g r e j a , é adiáfora [eticamente indiferente
( N . T . ) ] . Na realidade, essa f é d ó c i l e relativamente indiferente ao m u n d o , p o r é m " a b e r -
t a " a este e m o p o s i ç ã o ao ascetismo, é resultado de u m desenvolvimento. A específica
religiosidade de f é n ã o pode facilmente p r o d u z i r traços racionais d e caráter antitradi-
cionalista na c o n d u ç ã o da v i d a e falta-lhe todo impulso intrínseco p a r a u m a d o m i n a ç ã o
e t r a n s f o r m a ç ã o racional d o m u n d o .

A " f é " , na f o r m a e m que a c o n h e c e m as religiões g u e r r e i r a s d o islã antigo e


t a m b é m a religião mais antiga de J e o v á , t e m o caráter de u m a simples lealdade de
sequaz ao deus o u ao profeta, c o m o é p r ó p r i o , desde a o r i g e m , a todas as r e l a ç õ e s
c o m deuses ant r o p o m o r f os. O deus gratifica a lealdade d o sequaz e castiga a deslealdade.
E s s a r e l a ç ã o pessoal c o m D e u s somente g a n h a outras qualidades o n d e comunidades
pacificadas e e m especial adeptos oriundos d e camadas burguesas s ã o portadores de
u m a religiosidade d e salvação. S ó e n t ã o p o d e a f é c o m o m e i o d e s a l v a ç ã o assumir
s e u caráter de sentimento e adotar os traços do amor ao deus o u ao salvador, tais
382 MAX WEBER

c o m o já a p a r e c e m n a religiosidade do j u d a í s m o no exílio e a p ó s este e, de m o d o m a i s


intenso, n o cristianismo p r i m i t i v o , sobretudo c o m Jesus e J o ã o . D e u s aparece c o m o
patrão m a g n â n i m o o u c o m o pai de família. S e m d ú v i d a , é u m crasso e r r o q u e r e r encon-
trar n a qualidade paterna do deus anunciado p o rJ e s u s u m elemento de u m a religiosidade
não-semítica, p o r q u e os deuses dos povos do deserto ( e m sua m a i o r i a semíticos)' 'criam''
os homens, e os helénicos os " e n g e n d r a m " . Pois o deus cristão nunca pensou e m engen-
d r a r homens ( y e w n d e v r o t pü\ iroi/riõéuTa, engendrado e n ã o c r i a d o , este é precisa-
mente o predicado que distingue o Cristo trinitariamente divinizado dos h o m e n s ) e
ele, apesar de abraçar os homens c o m u m a m o r s o b r e - h u m a n o , está muito longe de.
ser u m terno papai m o d e r n o , sendo antes u m patriarca real preponderantemente b e n é -
v o l o mas t a m b é m iracundo e rigoroso, c o m o já e r a o deus judaico. Mas o caráter
sentimental da religiosidade de f é pode s e r intensificado pela consciência de ser " f i l h o
de D e u s " ( e m v e z da c o n c e p ç ã o ascética de s e r instrumento de D e u s ) procurando-se
p o r isso ainda mais a unidade da c o n d u ç ã o da v i d a na disposição sentimental e na
c o n f i a n ç a e m D e u s ao invés de na consciência da c o m p r o v a ç ã o ética, c o m o que se
debilitando ainda mais seu caráter prático-racional. J á o tom plangente dos tipicos ser-
m õ e s luteranos na A l e m a n h a , na "linguagem de C a n a ã " , popular desde o renascimento
do pietismo, insinua aquela e x i g ê n c i a sentimental que tantas vezes afugentou homens
vigorosos da Igreja.
Completamente anti-racionais s ã o , e m regra os efeitos da religiosidade de f é sobre
a c o n d u ç ã o da v i d a onde a relação c o m o deus o u o salvador tem o caráter de d e v o ç ã o
apaixonada, mostrando-se portanto na f é , de m o d o latente o u aberto, elementos eróti-
cos. A s s i m , nas diversas variações do a m o r a D e u s dos sufis e na mística bernardiana
acerca do Cântico dos Cânticos, no culto a Maria e ao c o r a ç ã o de Jesus e noutras formas
a n á l o g a s de d e v o ç ã o , e t a m b é m e m algumas f o r m a s excessivamente sentimentais do
pietismo especificamente luterano (Zinzendorf). Sobretudo, p o r é m , na piedade especifi-
camente hinduísta de bhakti ( a m o r ) que desde os séculos V e V I foi substituindo o
budismo, essa orgulhosa e distinta religiosidade de intelectuais, e constitui ali a forma
popular de religião de salvação entre as m a s s a s — e s p e c i a l m e n t e as formas soteriológicas
do v i x n u í s m o . A d e v o ç ã o ao K r i s h n a elevado do Mahâbhârata a salvador mediante
apoteose, particularmente ao m e n i n o K r i s h n a , é intensificada através dos quatro graus
de c o n t e m p l a ç ã o : a m o r s e r v i l , a m o r amistoso, a m o r filial ( o u p a t e r n a l ) até o grau supre-
m o da d e v o ç ã o expressamente erótica, à m a n e i r a do a m o r de gopis (o a m o r que as
amantes de K r i s h n a sentem p o r e l e ) E s s a religiosidade, que, já e m virtude de sua
f o r m a adversa ao cotidiano de obter a salvação, p r e s s u p õ e s e m p r e algum g r a u de trans-
missão sacramental-sacerdotal da g r a ç a pelos gurus egosâins, é e m seus efeitos práticos
u m a contraparte sublimada da religiosidade hinduísta de sakti, popular nas camadas
mais baixas, u m a d e v o ç ã o às m u l h e r e s dos deuses que n ã o raramente incluía u m culto
erótico-orgiástico, mas s e m p r e está p e l o menos p r ó x i m a da religiosidade orgiástica.
Situa-se marcantemente distanciada, e m todos os aspectos, das f o r m a s cristãs de religio-
sidade de f é p u r a , o u seja, constante e inabalável, n a providência divina. A relação
tendencialmente erótica c o m o salvador é estabelecida sobretudo de m a n e i r a técnica,
p o r exercícios de d e v o ç ã o . A crença cristã na p r o v i d ê n c i a , ao contrário, é u m carisma
a ser f i r m a d o mediante a vontade.
Por f i m , a s a l v a ç ã o pode ser u m a g r a ç a m a g n â n i m a , totalmente l i v r e e sem funda-
mento, de u m deus inescrutável e m suas decisões, imutável e m v i r t u d e de sua onisciência
e completamente inacessível à influência h u m a n a : graça de predestinação. Esta pressu-
p õ e , de m o d o mais absoluto, o deus c r i a d o r s u p r a m u n d a n o e falta, por isso, a toda
religiosidade asiática e da Antiguidade. Distingue-se da c o n c e p ç ã o de u m destino supra-
d i v i n o , q u e se encontra e m algumas religiões g u e r r e i r a s , de h e r ó i s , p o r seu caráter
ECONOMIA E SOCIEDADE 383

de p r o v i d ê n c i a , isto é, p o r s e r u m a o r d e m i r r a c i o n a l do ponto de vista h u m a n o , p o r é m


racional do ponto de vista de D e u s , u m regime u n i v e r s a l . Por outro lado, e x c l u i a
bondade de D e u s , que se torna u m r e i d u r o , majestático. E l a compartilha c o m a c r e n ç a
no destino a c o n s e q ü ê n c i a de educar p a r a a distinção e a d u r e z a ainda que, o u antes
precisamente p o r q u e , perante este D e u s a desvalorização total da f o r ç a p r ó p r i a do
i n d i v í d u o é o pressuposto da salvação unicamente p o r l i v r e graça. Naturezas impassíveis
e seriamente éticas, c o m o Pelágio, p o d i a m c r e r na suficiência das próprias obras. E n t r e
os profetas, a p r e d e s t i n a ç ã o é a crença de pessoas que o u — c o m o C a l v i n o e M a o m é
— estão possuídas de u m a excessiva sede de poder r a c i o n a l religiosa — a certeza da
missão p r ó p r i a , apoiada menos na sua c o n d i ç ã o pessoal s e m m á c u l a d o que na situação
do m u n d o e na vontade de Deus — , o u e n t ã o — c o m o Agostinho e t a m b é m , d e n o v o ,
M a o m é — tinham de d o m a r p a i x õ e s imensas e v i v i a m c o m a s e n s a ç ã o de que, se o
conseguiram, f o i c o m o apoio de u m p o d e r e x t e r i o r e acima delas. No p e r í o d o de
forte excitação que segue a d u r a luta contra o pecado, t a m b é m L u t e r o conheceu esta
sensação, p a r a mais tarde relegá-la ao segundo plano, c o m a crescente adaptação ao
mundo.
A p r e d e s t i n a ç ã o p r o p o r c i o n a ao agraciado o m á x i m o de certeza de salvação desde
que ele esteja c o n v e n c i d o de pertencer à aristocracia de s a l v a ç ã o dos poucos eleitos.
Mas o i n d i v í d u o precisa de sintomas da posse desse c a r i s m a incomparavelmente impor-
tante, u m a v e z que a incerteza absoluta n ã o pode s e r suportada p o r muito tempo.
C o m o Deus condescendeu e m r e v e l a r pelo m e n o s alguns mandamentos positivos refe-
rentes às ações que lhe a g r a d a m , tais sintomas s ó p o d e m consistir n a c o m p r o v a ç ã o
aqui decisiva — c o m o p a r a todo c a r i s m a religiosamente ativo — da capacidade de
colaborar c o m o instrumento d e D e u s n o c u m p r i m e n t o deles, e isto de m o d o c o n t í n u o
e m e t ó d i c o , pois a g r a ç a é algo que se possui o u s e m p r e o u n u n c a . Pouco i m p o r t a m
as faltas isoladas — que o c o r r e m ao predestinado, por ser criatura, c o m o a todos os
pecadores; o que dá a certeza da s a l v a ç ã o e da p e r s e v e r a n ça da g r a ç a é saber que
n ã o é dessas faltas, mas d o agir desejado p o r D e u s , que nasce a r e l a ç ã o íntima e autêntica
c o m D e u s , originada da misteriosa r e l a ç ã o d e g r a ç a , portanto da qualidade central
e constante da personalidade. Por isso, e m lugar de l e v a r à c o n s e q ü ê n c i a aparentemente
" l ó g i c a " d o fatalismo, a c r e n ç a na p r e d e s t i n a ç ã o justamente ensina seus adeptos mais
coerentes a t e r e m os mais fortes motivos i m a g i n á v e i s p a r a agir segundo a vontade
de Deus. É c l a r o que esses motivos d i f e r e m segundo o c o n t e ú d o p r i m á r i o da profecia.
Tanto a a b n e g a ç ã o das p r i m e i r a s g e r a ç õ e s dos combatentes pela f é islâmicos, que se
e n c o n t r a v a m sob o mandamento religioso da g u e r r a santa p a r a a conquista do m u n d o ,
quanto o r i g o r i s m o ético, a legalidade e o m é t o d o racional de v i d a dos puritanos que
v i v i a m sob a l e i m o r a l cristã resultavam da influência dessa crença. A disciplina na
g u e r r a pela f é e r a a fonte da invencibilidade da cavalaria islâmica, b e m c o m o da de
C r o m w e l l , e a ascese i n t r a m u n d a n a e a busca disciplinada da s a l v a ç ã o na profissão
desejada p o r D e u s e r a m a fonte da virtuosidade aquisitiva entre os puritanos. A desvalo-
rização r a d i c a l e realmente definitiva de toda administração de g r a ç a m á g i c a , sacra-
mental e institucional perante a vontade soberana de D e u s é a c o n s e q ü ê n c i a inevitável
de toda g r a ç a de p r e d e s t i n a ç ã o realizada de m o d o c o n s e q ü e n t e e d e fato o c o r r e u por
toda parte onde esta existiu e f o i conservada e m plena pureza. Sua influência mais
forte, neste sentido, f o i sobre o puritanismo. A p r e d e s t i n a ç ã o islâmica n ã o conhecia,
p o r u m lado, o decreto duplo: a Alá n ã o e r a imputada a predestinação ao i n f e r n o ,
mas apenas a p r i v a ç ã o d e sua g r a ç a e, c o m isso, a " a d m i s s ã o " da falta — inevitável
e m vista da i m p e r f e i ç ã o d o h o m e m . Por outro lado, correspondendo ao caráter guer-
r e i r o da religião ela apresentava o m e s m o matiz da moira h e l é n i c a , n o sentido de
estarem muito menos desenvolvidos, p o r u m lado, os elementos especificamente rácio-
ECONOMIA E SOCIEDADE 385

n i s m o referente a este m u n d o , desta v a l o r a ç ã o religiosa da f é é aquela f o r m a específica


de " v e r g o n h a " e — p o r alssim dizer — s e n s a ç ã o atéia de c u l p a , p r ó p r i a t a m b é m do
h o m e m m o d e r n o , e m v i r t u d e de u m a sistematização ética, qualquer que seja s e u funda-
mento metafísico, n o sentido da ética de c o n v i c ç ã o . O tormento secreto d o h o m e m ,
neste caso, n ã o p r o v é m de ter feito alguma coisa, mas de ele, s e m sua i n t e r v e n ç ã o ,
isto é e m v i r t u d e de sua natureza inalterável, " s e r " c o m o lhe r e v e l a ser o que fez,
e isso t a m b é m lhe expressa o " f a r i s a í s m o " determinista dos demais — t ã o i n u m a n o ,
p o r igualmente carecer da possibilidade sensata de u m " p e r d ã o " é de u m " a r r e n p e -
d i m e n t o " o u d e u m a " r e p a r a ç ã o " , quanto o e r a a p r ó p r i a c r e n ç a religiosa na predesti-
n a ç ã o , a q u a l pelo m e n o s podia imaginar alguma secreta ratio divina.

8 1 1 . Ética religiosa e " m u n d o "

A tensão entre a ética religiosa de convicção e o mundo, p. 385. — A ética de vizinhança como
fundamento da ética religiosa, p. 387. — A condenação religiosa da cobrança de juros, p. 389.
— A tensão entre a racionalização ético-religiosa e a racionalização econômica da vida, p. 389-
— Acosmismo de amor religioso e violência política, p. 392. Mudanças na posição do cristia-
nismo em relação ao Estado, p. 396. — Ética profissional "orgânica", p. 397. — Religiosidade
e sexualidade, p. 399. — Ética fraternal e arte, p. 402.

Quanto m a i s sistemática e interiorizada a religiosidade de s a l v a ç ã o n o sentido


de u m a " é t i c a de c o n v i c ç ã o " , tanto mais p r o f u n d a a t e n s ã o entre ela e as realidades
do mundo. E n q u a n t o se trata de u m a religiosidade simplesmente ritual o u vinculada
à " l e i " , essa t e n s ã o manifesta-se de u m m o d o que pouco atinge os princípios. Essa
f o r m a de religiosidade atua essencialmente da m e s m a m a n e i r a que a ética m á g i c a .
E m termos gerais isto significa que ela p r o p o r c i o n a às c o n v e n ç õ e s que adota o caráter
sagrado inviolável, p o r q u e t a m b é m nela a totalidade dos adeptos do deus está interes-
sada e m evitar a i r a d i v i n a e, portanto, n o castigo pela transgressão das n o r m a s . Por
isso, q u a n d o u m preceito atinge a importância de u m a o r d e m d i v i n a , ele se eleva do
círculo das c o n v e n ç õ e s , suscetíveis de m u d a n ç a , p a r a a esfera da santidade. S e m p r e
v i g o r o u e p a r a s e m p r e v i g o r a r á , tal c o m o as o r d e n a ç õ e s do cosmos, e s ó pode ser
interpretado mas n ã o modificado, a n ã o s e r que o p r ó p r i o deus r e v e l e u m mandamento
n o v o . A s s i m c o m o o si mbo li s mo tem efeito estereotipador sobre determinados e l e m e n -
tos substanciais da cultura — e as prescrições m á g i c a s tabus sobre os tipos concretos
de relações c o m pessoas e objetos materiais — , a religião, neste estádio, é estereoti-
padora e m r e l a ç ã o a toda a área da o r d e m jurídica e das c o n v e n ç õ e s . O s l i v r o s sagrados
dos indianos e d o islã, dos parses e dos judeus, c o m o t a m b é m os l i v r o s clássicos dos
chineses, tratam de m o d o inteiramente equivalente as n o r m a s cerimoniais e rituais
e as prescrições jurídicas. O direito é u m direito " s a g r a d o " . O p r e d o m í n i o de u m
direito religiosamente estereotipado constitui u m a das b a r r e i r a s mais importantes p a r a
a racionalização da o r d e m jurídica e, portanto, da economia. Por outro lado, o r o m p i -
m e n t o de n o r m a s m á g i c a s o u rituais estereotipadas p o r u m a p r o f e c i a ética pode dar
o r i g e m a r e v o l u ç õ e s — agudas o u paulatinas — t a m b é m n a o r d e m cotidiana da v i d a
e particularmente na economia. E m ambos os sentidos, o p o d e r da religião naturalmente
tem seus limites. N e m de longe é o elemento i m p u l s o r o n d e q u e r que se alinhe c o m
a t r a n s f o r m a ç ã o . Particularmente n ã o c r i a , e m lugar algum, c o n d i ç õ e s e c o n ô m i c a s p a r a
as quais n ã o t e n h a m existido pelo m e n o s as possibilidades, muitas vezes até impulsos
bastante intensos, nas c o n d i ç õ e s e constelações de interesses anteriores. E t a m b é m
neste caso é muito limitada sua f o r ç a competitiva diante d e poderosos interesses e c o n ô -
micos. N ã o é possível oferecer u m a f ó r m u l a g e r a l p a r a o poder relativo dos diferentes
384 MAX WEBER

nais do " r e g i m e u n i v e r s a l " e, p o r outro, a d e t e r m i n a ç ã o d o destino religioso d o indiví-


duo no a l é m . P r e d o m i n a v a a idéia de estar determinado pela predestinação n ã o o destino
n o a l é m , mas o destino extracotidiano neste m u n d o , p o r e x e m p l o (e particularmente)
a questão de se o combatente pela f é i r i a tombar na batalha o u n ã o . O destino n o
a l é m , ao contrário, estava suficientemente garantido pela simples crença e m Alá e seu
profeta, e n ã o r e q u e r i a , p o r isso, n e n h u m a c o m p r o v a ç ã o na c o n d u ç ã o da v i d a — pelo
menos segundo a c o n c e p ç ã o mais antiga: u m sistema r a c i o n a l de ascese cotidiana e r a
originalmente alheio a esta religião de g u e r r e i r o s . Por isso, n o islã, a predestinação
desenvolveu s e u poder continuamente nas lutas religiosas, c o m o ainda naquelas do
Mahdi, mas perdeu-o c o m todo o " a b u r g u e s a m e n t o " d o islã p o r n ã o d a r o r i g e m a
qualquer m é t o d o de v i d a intracotidiana c o m o o c o r r e u n o p u r i t a n i s m o , e m que a predes-
tinação afetava o destino n o a l é m e, portanto, a certitudosalutis estava vinculada precisa-
mente à c o m p r o v a ç ã o da v i r t u d e intracotidiana pelo que a u m e n t a v a , c o m o aburgue-
samento da religiosidade de C a l v i n o , sua importância e m c o m p a r a ç ã o às idéias origi-
nárias do p r ó p r i o fundador. É muito caraterístico que — e m o p o s i ç ã o à c r e n ç a puritana
na p r e d e s t i n a ç ã o , p o r toda parte considerada, pelas autoridades, perigosa p a r a o Estado
e inimiga da autoridade, p o r seu ceticismo e m r e l a ç ã o a toda legitimidade e autoridade
mundana — a dinastia dos o m í a d a s , difamada p o r ser especificamente " m u n d a n a " ,
tenha sido adepta da c r e n ç a na p r e d e s t i n a ç ã o , pois esperava v e r legitimado o p r ó p r i o
poder, ilegitimamente conseguido, pela vontade predestinadora de Alá. V ê - s e c o m o
a tendência à d e t e r m i n a ç ã o dos processos concretos d o m u n d o , e m lugar da [orientação]
p a r a o destino n o a l é m , faz d i m i n u i r imediatamente o caráter eticamente racional da
predestinação. E u m a v e z que tinha efeitos ascéticos — c o m o f o i de fato o caso entre
os antigos, simples combatentes pela f é — , o islã, que e m todo caso estabelecia, quanto
à m o r a l , exigências principalmente externas e de resto rituais, f e z retroceder essa in-
fluência na v i d a cotidiana, e adotou na religiosidade popular, devido a seu caráter
menos r a c i o n a l , traços tendencialmente fatalistas (kismet) e n ã o r e p r i m i u , justamente
p o r isso, a magia na religião do povo. É característico da ética confuciana da burocracia
p a t r i m o n i a l chinesa o fato de, n e l a , p o r u m lado, o saber da existência de u m " d e s t i n o "
ser considerado aquilo que garante a espiritualidade n o b r e e, p o r outro lado, de esse
destino assumir às vezes, na c r e n ç a m á g i c a das massas, traços fatalistas, e na crença
dos cultos ocupar u m a p o s i ç ã o m é d i a entre p r o v i d ê n c i a e moira. A s s i m c o m o a moira
e a teimosia de v e n c ê - l a a l i m e n t a m o o r g u l h o h e r ó i c o d o g u e r r e i r o , a predestinação
alimenta o o r g u l h o ( " f a r i s a i c o " ) da h e r ó i c a ascese burguesa. Mas e m n e n h u m lugar
o o r g u l h o de u m a aristocracia predestinada à salvação está tão intimamente concatenado
c o m o lado profissional do h o m e m e c o m a idéia d e que o ê x i t o da a ç ã o racional
demonstre a b ê n ç ã o de D e u s , e, p o r isso, e m n e n h u m lugar é t ã o intensa a influência
de motivos ascéticos sobre a mentalidade e c o n ô m i c a c o m o n o â m b i t o da graça de predes-
tinação puritana. T a m b é m a g r a ç a d e p r e d e s t i n a ç ã o é u m a crença de virtuosos religiosos
que unicamente admitem a idéia de u m " d e c r e t o d u p l o " existente desde sempre. C o m
sua p e n e t r a ç ã o crescente na v i d a cotidiana e na religiosidade das massas, a seriedade
s o m b r i a da doutrina é cada v e z m e n o s tolerada, até ficar c o m o caput mortuum, no
protestantismo ascético ocidental, aquele t r a ç o que t a m b é m esta doutrina d e graça impri-
m i u na mentalidade capitalista r a c i o n a l : a idéia da c o m p r o v a ç ã o m e t ó d i c a na v i d a profis-
sional. O neocalvinismo d e K u y p e r n ã o ousa m a i s defender plenamente a doutrina
p u r a . Mas a f é c o m o tal n ã o é de m o d o a l g u m extinta; apenas m u d a de f o r m a . Realmente,
e m todas as circunstâncias, o d e t e r m i n i s m o da p r e d e s t i n a ç ã o tem sido u m meio da
centralização sistemática mais intensa i m a g i n á v e l da " é t i c a d e c o n v i c ç ã o " . A "persona-
lidade g l o b a l " , c o m o d i r í a m o s hoje, e n ã o alguma a ç ã o isolada, recebe pela " e l e i ç ã o
d i v i n a " o acento de v a l o r externo. A contrapartida n ã o - r e l i g i o s a , baseada n u m determi-
386 MAX WEBER

componentes d o desenvolvimento, n o que se r e f e r e à substância d o processo, e p a r a


o m o d o c o m o eles se " a d a p t a m " u m ao outro. As necessidades da v i d a e c o n ô m i c a
fazem-se v a l e r seja mediante u m a interpretação modificada dos mandamentos sagrados
seja mediante u m s u b t e r f ú g i o casuísta, às vezes t a m b é m pela simples e l i m i n a ç ã o deles
na prática, p o r v i a da jurisdição eclesiástica penitencial e absolvedora que, p o r exemplo,
dentro da I g r e j a católica e l i m i n o u totalmente, t a m b é m in foro conscientiae ( c o m o vere-
mos e m b r e v e ) , u m a prescriç ã o t ã o importante c o m o a p r o i b i ç ã o dos j u r o s , s e m p o r é m
— o que teria sido impossível — ab-rogá-la explicitamente. O m e s m o deve ocorrer
c o m o igualmente censurado onanismus matrimonialis (sistema de dois f i l h o s ) A conse-
qüência da a m b i g ü i d a d e , naturalmente muito f r e q ü e n t e , o u do silêncio das normas
religiosas diante de novos problemas ç dessas práticas é a coexistência independente
de estereotipações absolutamente inabaláveis, p o r u m lado, e de u m a extraordinária
arbitrariedade e total imprevisibilidade de sua v i g ê n c i a efetiva, por outro. Quanto à
Shari'a islâmica, é quase impossível dizer n o caso concreto o que hoje ainda tem vigência
prática, e o m e s m o aplica-se a todos os direitos e mandamentos m o r a i s de caráter
f o r m a l casuístico-ritualista, sobretudo t a m b é m à lei judaica. Diante dessas c o n d i ç õ e s ,
a sistematização fundamental dos deveres religiosos n o sentido de u m a "ética de convic-
ção" cria u m a situação substancialmente modificada. Rompe a estereotipação das nor-
mas individuais e m f a v o r de u m a o r i e n t a ç ã o " s i g n i f i c a t i v a " global da c o n d u ç ã o da
v i d a pelo f i m religioso de salvação. Desconhece qualquer " d i r e i t o s a g r a d o " , exceto
apenas u m a "espiritualidade s a g r a d a " que, de acordo c o m a situação, pode sancionar
diferentes m á x i m a s de comportamento, sendo, portanto, elástica e adaptável. E m vez
de atuar pela estereotipação, ela pode p r o d u z i r a partir de si efeitos revolucionários,
dependendo do r u m o que toma a c o n d u ç ã o da v i d a p o r ela criada. Mas adquire essa
capacidade ao p r e ç o de u m a problemática bastante agravada e " i n t e r i o r i z a d a " . Na ver-
dade, a tensão íntima entre o postulado religioso e as realidades do m u n d o n ã o d i m i n u i ,
mas aumenta. E m lugar do postulado de equilíbrio e x t e r n o da teodicéia aparecem,
c o m a crescente sistematização e racionalização das relações comunitárias e de seu
c o n t e ú d o , os conflitos entre legalidades intrínsecas às diversas esferas de v i d a e o postu-
lado religioso, e tanto mais fazem do " m u n d o " u m p r o b l e m a quanto mais intensa é
a necessidade religiosa. D e v e m o s , antes de mais nada, esclarecer esta situação e m seus
principais pontos de conflito.

A ética religiosa i n t e r f e r e na esfera da o r d e m social e m profundidade muito diver-


sa. Decisivas s ã o , a q u i , n ã o apenas as diferenças na v i n c u l a ç ã o m á g i c a e ritual, e na
religiosidade, mas sobretudo sua p o s i ç ã o de p r i n c í p i o e m r e l a ç ã o ao m u n d o , como
tal. Q u a n t o m a i s sistemático-racional é o m o d o c o m o este é moldado e m u m cosmos,
sob aspectos religiosos, tanto mais fundamental pode tornar-se a t e n s ã o ética entre
ele e as ordens intramundanas, e isto tanto m a i s quanto mais estas, p o r sua vez, são
sistematizadas de acordo c o m suas legalidades intrínsecas. Surge a ética religiosa da
rejeição do m u n d o e falta-lhe, c o m o t a l , o caráter estereotipador dos direitos sagrados.
Precisamente a t e n s ã o que acarreta às relações c o m o m u n d o constitui u m poderoso
fator d i n â m i c o de desenvolvimento.
Na medida e m que a ética religiosa se limita a adotar as virtudes gerais da vida
m u n d a n a , estas n ã o p r e c i s a m ser expostas aqui. As relações dentro da família, ao lado
de veracidade, confiabilidade, respeito pela v i d a e p r o p r i e d a d e alheias, considerando-se
as m u l h e r e s t a m b é m parte da propriedade, s ã o coisas óbvias. Mas o acento posto nas
diversas virtudes mostra d i f e r e n ç a s características. A s s i m , a ê n f a s e extraordinária da
piedade f a m i l i a r n o confucionismo, magicamente motivada e m c o n s e q ü ê n c i a da impor-
tância dos espíritos ancestrais e zelosamente cultivada na prática por u m a o r g a n i z a ç ã o
política dominante de caráter patriarcal e p a t r i m o n i a l - b u r o c r á t i c o , p a r a a q u a l , segundo
ECONOMIA E SOCIEDADE 387

u m a sentença de C o n f ú c i o , a " i n s u b o r d i n a ç ã o é p i o r que a m e s q u i n h e z " e q u e , p o r


isso, tinha d e considerar, c o m o o faz explicitamente, a s u b o r d i n a ç ã o às autoridades
familiares u m sinal de qualidades sociais e políticas. E m o p o s i ç ã o a isto está o r o m p i -
mento de todos os v í n c u l o s f a m i l i a r e s pela f o r m a mais r a d i c a l da religiosidade congrega-
cional: q u e m n ã o pode odiar s e u pai n ã o pode ser discípulo de Jesus. O u e n t ã o o
[dever] d e veracidade, m u i t o mais rigoroso n a ética indiana e de Zaratustra d o que
n o d e c á l o g o judaico-cristão (limitação ao testemunho j u d i c i a l ) e , p o r outro lado, a pospo-
sição total do d e v e r de v e r a c i d a d e e m r e l a ç ã o aos mandamentos c e r i m o n i a i s de etiqueta
na ética estamental da b u r o c r a c i a confuciana da C h i n a . O u , característica de toda religio-
sidade especificamente indiana e m o p o s i ç ã o a quase todas as outras, a p r o i b i ç ã o absoluta
de matar qualquer ser v i v o (ahimsâ) a q u a l v a i muito a l é m d o mandamento de n ã o
maltratar os animais da religião d e Zaratustra, condicionado originalmente pela atitude
antiorgiástica deste, e que se fundamenta e m idéias animistas (de m e t e m p s i c o s e )
D e resto, o c o n t e ú d o de toda ética religiosa, que v a i a l é m de prescrições m á g i c a s
particulares e da piedade f a m i l i a r , está condicionado, e m p r i m e i r o lugar, pelos dois
motivos simples que d e t e r m i n a m a a ç ã o cotidiana n ã o v i n c u l a d a à família: justo talião
contra infratores e ajuda f r a t e r n a l ao v i z i n h o amigo. A m b a s as coisas constituem u m a
retribuição: o infrator " m e r e c e " o castigo cuja e x e c u ç ã o aplaca a c ó l e r a , do m e s m o
m o d o que o v i z i n h o m e r e c e a ajuda. Q u e aos inimigos se paga m a l p o r m a l é u m a
coisa ó b v i a p a r a a ética chinesa, v é d i c a e de Zaratustra, e t a m b é m p a r a a judaica até
a é p o c a a p ó s o exílio. Pois toda o r d e m social parece fundamentar-se sobre a justa
retribuição, e p o r isso repugna à ética da a d a p t a ç ã o ao m u n d o de C o n f ú c i o a idéia
do a m o r ao inimigo, baseada e m parte, na C h i n a , e m motivos místicos e e m parte
e m motivos social-utilitários, c o m o algo diretamente dirigido contra a r a z ã o de Estado.
E a ética judaica da é p o c a posterior ao e x í l i o somente s r a c e i t a , n o f u n d o , c o n f o r m e
e x p õ e Meinhold, n o sentido de u m a h u m i l h a ç ã o m a i o r e mais n o b r e do inimigo por
bons feitos p r ó p r i o s e, sobretudo, c o m a r e s e r v a importante que faz t a m b é m o cristia-
nismo: que a v i n g a n ç a é coisa de D e u s e que este tanto m a i s certamente a realizará
quanto mais se abstenha dela o h o m e m . À s comunidades do clã, dos i r m ã o s de sangue
e da tribo a religiosidade congregacional acrescenta, c o m o objeto d o d e v e r de apoio,
os m e m b r o s da c o n g r e g a ç ã o . O u antes, coloca-os n o lugar dos m e m b r o s do clã: q u e m
n ã o pode abandonar pai e m ã e n ã o pode ser discípulo de Jesus, e é neste sentido
e neste contexto q u e t a m b é m se p r o n u n c i a a sentença de que ele n ã o v e i o p a r a trazer
a paz m a s a espada. D a l i desenvolve-se e n t ã o o mandamento da " f r a t e r n i d a d e " , especí-
fico da religiosidade congregacional — n ã o de todas suas f o r m a s , mas particularmente
desta religiosidade — , p o r q u e e la realiza e m m a i o r profundidade a e m a n c i p a ç ã o da
associação política. M e s m o na cristandade p r i m i t i v a , p o r e x e m p l o p a r a Clemente de
A l e x a n d r i a , a fraternidade e m sua e x t e n s ã o p l e n a rege apenas dentro do c í r c u l o dos
correlgionários, e n ã o , s e m r e s e r v a , f o r a dele. A ajuda f r a t e r n a l , n o caso de necessidade,
tem sua o r i g e m , c o m o já v i m o s 1 , n a associação de vizinhos. O " p r ó x i m o " a j u d a ao
v i z i n h o , pois t a m b é m aquele pode u m dia p r e c i s a r da ajuda deste. S ó u m a forte m i s t u r a
das comunidades políticas e étnicas e a d e s v i n c u l a ç ã o dos deuses, c o m o poderes u n i v e r -
sais, da associação política c o n d u z e m à possibilidade d o u n i v e r s a l i s m o do a m o r . Diante
da religiosidade alheia, este torna-se m u i t o difícil n o caso de u m a forte c o n c o r r ê n c i a
entre as religiosidades congregacionais e da p r e t e n s ã o de que seu deus seja o ú n i c o .
O s m o n g e s d e Jaina a d m i r a v a m - s e , segundo a tradição budista, c o m o fato de B u d a
ter o r d e n a d o a seus discípulos q u e dessem comida t a m b é m a eles.

1 Ver acima p. 247. (Nota do organizador.)


388 MAX WEBER

A s s i m c o m o os costumes d e c o l a b o r a ç ã o e ajuda e m caso de necessidade entre


v i z i n h o s s ã o transferidos, c o m a d i f e r e n c i a ç ã o e c o n ô m i c a , às relações entre as diversas
camadas sociais, assim o c o r r e t a m b é m c o m muita rapidez na ética religiosa. O s cantores
e magos, c o m o as p r i m e i r a s " p r o f i s s õ e s " desvinculadas d o solo, v i v e m da generosidade
dos ricos. E l o g i a m estes e m todos os tempos, enquanto a m a l d i ç o a m os avarentos. Nas
c o n d i ç õ e s da economia n ã o - m o n e t á r i a , o que enobrece as pessoas, c o m o mais tarde
v e r e m o s 2 , n ã o é a p r o p r i e d a d e c o m o t a l , m a s a c o n d u ç ã o da v i d a generosa e hospitaleira.
Por isso, a esmola é u m componente u n i v e r s a l e p r i m á r i o t a m b é m de toda religiosidade
ética. A religiosidade ética dá a este motivo interpretações diferentes. A beneficência
aos pobres é motivada p o r Jesus, às vezes, totalmente segundo os princípios da retribui-
ç ã o : q u e precisamente a impossibilidade da retribuição neste m u n d o , p o r parte das
pobres, t o r n e tanto mais segura a d o a l é m , p o r Deus. A isto junta-se o p r i n c í p i o da
solidariedade entre os i r m ã o s na f é que às vezes v a i t ã o longe que a fraternidade já
é quase u m " c o m u n i s m o d o a m o r " . No islã, a esmola faz parte dos cinco mandamentos
absolutos p a r a a pertinência à f é , n o h i n d u í s m o antigo, b e m c o m o e m C o n f ú c i o e
n o j u d a í s m o antigo ela constitui a " b o a o b r a " c o m o tal; n o b u d i s m o antigo é original-
mente a ú nica o b r a do leigo piedoso que r e a l m e n t e importa e n o cristianismo da Antigui-
dade a d q u i r i u quase a dignidade d e u m sacramento (ainda n a é p o c a de Agostinho é
considerada n ã o - v e r d a d e i r a a f é s e m e s m o l a ) Pois o combatente pela f é islâmico, des-
p r o v i d o de recursos, o m o n g e budista, os pobres i r m ã o s n a f é d o cristianismo antigo
(particularmente da c o n g r e g a ç ã o de J e r u s a l é m ) b e m c o m o os profetas, apóstolos e
muitas vezes t a m b é m os sacerdotes das religiões d e s a l v a ç ã o , dependem todos eles
de esmolas, e a possibilidade da esmola e da ajuda na necessidade, n o cristianismo
antigo e mais tarde nas seitas até a c o n g r e g a ç ã o dos quacres, c o m o u m a espécie de
" l u g a r de a p o i o " religioso, é u m dos principais elementos e c o n ô m i c o s da propaganda
e da solidariedade da c o n g r e g a ç ã o religiosa. Por isso, a importância da esmola diminui
imediatamente, e m m a i o r o u m e n o r g r a u , e esta mecaniza-se e m sentido ritualista quan-
do u m a religiosidade congregacional p e r d e esse caráter. N ã o obstante, continua existin-
d o e m p r i n c í p i o . No cristianismo, apesar desse desenvolvimento, a esmola é t ã o absolu-
tamente necessária p a r a que o r i c o alcance a b e m - a v e n t u r a n ç a que os pobres s ã o consi-
derados quase u m " e s t a m e n t o " especial e indispensável dentro da I g r e j a . D e maneira
semelhante apresentam-se os e n f e r m o s , as viúvas e os ó r f ã o s c o m o objetos religiosa-
mente valiosos d e obras éticas. Pois a a ju d a estende-se naturalmente muito a l é m da
esmola: e m caso de necessidade, espera-se d o a m i g o e d o v i z i n h o , e p o r isso também
do i r m ã o na f é , que d ê crédito s e m j u r o s e cuide dos filhos — as associações americanas
secularizadas, que o c u p a m o lugar das seitas, estabelecem muitas vezes essas exigências.
E isso é esperado especialmente da generosidade dos poderosos. Pois, dentro de certos
limites, o cuidado e a bondade p a r a c o m os súditos é u m interesse p r ó p r i o do detentor
do poder, u m a v e z que, p o r falta d e meios racionais d e controle, da boa vontade
e a f e i ç ã o daqueles dependem e m alto g r a u sua segurança e suas rendas. Por outro
lado, a possibilidade de conseguir a p r o t e ç ã o e ajuda e u m poderoso constitui para
toda pessoa s e m recursos , especialmente p a r a os cantores sagrados, u m estímulo para
p r o c u r á - l o e elogiar sua bondade. Por isso, o n d e q u e r que constelações de poder patriar-
cais d e t e r m i n e m a estruturação social — especialmente n o O r i e n t e — , as religiões
proféticas p u d e r a m c r i a r u m a e s p é c i e de " p r o t e ç ã o aos f r a c o s " — m u l h e r e s , crianças,
escravos — , na s e q ü ê n c i a direta daquela situação p u r a m e n t e prática. D á - s e isso, particu-
l a r m e n t e , na p r o f e c i a mosaica e na islâmica. E isso se r e f e r e t a m b é m às relações entre

2 Ver volume 2, capítulo VIII, § 6; capítulo DC, § 1, § 2 (Nota do organizador.)


ECONOMIA E SOCIEDADE 389

as classes. No c í r c u l o dos v i z i n h o s m e n o s poderosos rege a e x p l o r a ç ã o desenfreada


daquela situação de classe típica da é p o c a pré-capitalista: s e r v i d ã o implacável p o r dívida
e aumento da p r o p r i e d a d e de terras (o que é a p r o x i m a d a m e n t e idêntico), a p r o v e i -
tamento da m a i o r capacidade p a r a a c u m u l a r bens de c o n s u m o n o intuito da e x p l o r a ç ã o
especulativa da situação f o r ç a d a alheia, c o m o v i o l a ç ã o da solidariedade, o que provoca
forte r e p r o v a ç ã o social e t a m b é m , portanto, censura religiosa. Por outro lado, a antiga
nobreza g u e r r e i r a despreza c o m o p a r v e n u aquele que s u b i u pela aquisição de dinheiro.
Por isso, essa f o r m a de " a v a r e z a " é condenada religiosamente p o r toda parte, tanto
nos livros jurídicos indianos quanto no cristianismo antigo e no islã; no j u d a í s m o , c o m
a instituição característica do ano da dispensa das dívidas e da s e r v i d ã o e m f a v o r dos
correligionários, cujo espírito t e o l ó g i c o excessivamente c o n s e q ü e n t e e equivocado de
u m a piedade puramente u r b a n a construiu o " a n o s a b á t i c o " . Na ética de c o n v i c ç ã o ,
a sistematização r e ú n e todas essas exigências particulares no conceito da atitude de
a m o r especificamente religiosa: da caritas.
E m quase todas as r e g u l a m e n t a ç õ e s éticas da v i d a repete-se, n a área e c o n ô m i c a ,
c o m o m a n i f e s t a ç ã o dessa espiritualidade central, a c o n d e n a ç ã o dos juros. Sua completa
ausência na ética religiosa f o r a d o protestantismo somente o c o r r e onde, c o m o no confu-
cionismo, esta se t o r n o u u m a p u r a a d a p t a ç ã o ao m u n d o o u onde, c o m o na ética b a b i l ó -
nica antiga e nas do M e d i t e r r â n e o da Antiguidade, a burguesia u r b a n a , particularmente
a nobreza urbana interessada no c o m é r c i o , impede o desenvolvimento de u m a ética
caritativa c o n s e q ü e n t e . Nos l i v r o s religioso-jurídicos da índia, c o b r a r j u r o s é conside-
r a d o desprezível pelo m e n o s p a r a as duas castas superiores; p a r a os judeus, entre os
m e m b r o s de seu povo; n o islã e no cristianismo antigo, inicialmente, entre irmãos
na f é e, mais tarde, e m g e r a l . No cristianismo, a p r o i b i ç ã o dos j u r o s , c o m o tal, talvez
n ã o seja originária. D e u s n ã o retribuirá q u a n d o se empresta s e m risco — é assim que
Jesus motiva a prescrição de emprestar t a m b é m à q u e l e s que n ã o t ê m recursos. Esta
passagem foi convertida, p o r u m e r r o na leitura e t r a d u ç ã o , na p r o i b i ç ã o dos j u r o s
(jjLTjBèv e m vez de jjwi8évot ònreXTríÇovreç, donde a v e r s ã o da Vulgata: nihilinde speran-
res). A razão originária da c o n d e n a ç ã o dos j u r o s encontra-se geralmente n o caráter
de " o b r a de f a v o r " do p r i m i t i v o e m p r é s t i m o e m caso de necessidade, segundo o qual
os j u r o s " e n t r e i r m ã o s " constituíam u m a v i o l a ç ã o d o d e v e r de ajuda. Mas p a r a o rigor
crescente da p r o i b i ç ã o no cristianismo, e m circunstâncias totalmente diferentes, outros
motivos f o r a m parcialmente decisivos. N ã o a ausência dos " j u r o s de c a p i t a l " e m conse-
q ü ê n c i a das c o n d i ç õ e s gerais da economia n ã o - m o n e t á r i a , cujo " r e f l e x o " (segundo
o p a d r ã o d o materialismo histórico) seria a p r o i b i ç ã o . Pois observamos justamente ao
contrário que, m e s m o na alta Idade M é d i a , isto é, precisamente na é p o c a da economia
n ã o - m o n e t á r i a , a Igreja cristã e seus s e r v i d o r e s , inclusive o papa, c o b r a v a m j u r o s s e m
hesitar e, a l é m disso, os t o l e r a v a m , e que, p o r outro lado, e m quase exato p a r a l e l i s m o
c o m o c o m e ç o d o desenvolvimento de f o r m a s de i n t e r c â m b i o realmente capitalistas
e, e m especial, do capital aquisitivo n o c o m é r c i o m a r í t i m o , nasceu a p e r s e g u i ç ã o pela
Igreja contra os j u r o s sobre e m p r é s t i m o s , tornando-se cada v e z mais rigorosa. Trata-se,
portanto, de u m a luta de princípios entre a racionalização e c o n ô m i c a e a racionalização
ética da economia. Somente n o s é c u l o X I X , c o m o v i m o s , a I g r e j a , e m face dos fatos
inalteráveis, teve de abolir a p r o i b i ç ã o , da f o r m a já mencionada.

O motivo realmente religioso da antipatia contra os j u r o s e r a mais p r o f u n d o e


estava v i n c u l a d o à p o s i ç ã o da ética religiosa perante a legalidade da atividade aquisitiva
c o m e r c i a l r a c i o n a l c o m o tal. T o d a atividade aquisitiva puramente c o m e r c i a l é quase
s e m p r e julgada de m o d o desfavorável nas religiões p r i m i t i v a s , sobretudo naquelas que
a v a l i a m a posse de riquezas e m s i c o m o algo muito positivo. E isto t a m b é m o c o r r e
n ã o apenas n a economia predominantemente n ã o - m o n e t á r i a e sob a influência da n o b r e -
390 MAX WEBER

za g u e r r e i r a , mas t a m b é m precisamente onde as transações comerciais estão relativa-


mente desenvolvidas, e e m protesto consciente contra essa situação. E m p r i m e i r o lugar,
toda racionalização e c o n ô m i c a da aquisição mediante a troca conduz a u m abalo da
tradição sobre a qual se baseia a autoridade d o direito sagrado. J á p o r isso a ânsia
por d i n h e i r o , c o m o tipo da a m b i ç ã o aquisitiva r a c i o n a l , é religiosamente suspeita. Por
isso, se possível, o s a c e r d ó c i o (é o que parece, no E g i t o ) f a v o r e c i a a c o n s e r v a ç ã o da
economia não-monetária onde q u e r q u e r n ã o se opusessem a ela os interesses e c o n ô -
micos próprios dos templos, c o m o caixas de depósitos e e m p r é s t i m o s protegidas p o r
seu caráter sagrado. Mas é sobretudo o caráter impessoal, economicamente racional
e por isso m e s m o eticamente i r r a c i o n a l , das relações puramente comerciais que provoca
a desconfiança nunca claramente p r o n u n c i a d a , p o r é m tanto mais seguramente sentida
por p a n e das religiões éticas. T o d a r e l a ç ã o puramente pessoal entre os homens, qual-
quer que seja sua natureza, m e s m o a e s c r a v i d ã o mais absoluta, pode ser regulada etica-
mente; ela admite postulados éticos, pois sua f o r m a depende da vontade individual
dos envolvidos, dando, portanto, m a r g e m ao desdobramento d e virtudes caritativas.
Mas n ã o é assim c o m as relações racionais d e n e g ó c i o , e tanto menos quanto mais
estejam diferenciadas racionalmente. As relações entre o detentor de u m título de hipo-
teca e o devedor de u m banco h i p o t e c á r i o , entre o detentor de u m título de dívida
do Estado e o contribuinte de impostos, entre o acionista e o trabalhador de u m a fábrica,
entre o importador de tabaco e o trabalhador de u m a p l a n t a ç ã o , entre o consumidor
industrial de matéria-prima e o m i n e i r o , n ã o p o d e m s e r reguladas caritativamente n e m
de fato n e m e m principio. A o b j e t i v a ç ã o da e c o n o m i a sobre a base da r e l a ç ã o associativa
no m e r c a d o obedece a suas próprias legalidades objetivas, cuja não-observância tem
p o r c o n s e q ü ê n c i a o fracasso e c o n ô m i c o e, a longo p r a z o , a ruína. A relação associativa
e c o n ô m i c a r a c i o n a l significa s e m p r e u m a o b j e t i v a ç ã o nesse sentido, e u m cosmos de
ações sociais objetivamente racionais n ã o pode ser dominado mediante exigências carita-
tivas a pessoas concretas. Sobretudo o cosmos objetivado d o capitalismo n ã o oferece
lugar a tal idéia. Nele, as e x i g ê n c i a s da caridade religiosa n ã o apenas fracassam na
o b s t i n a ç ã o e insuficiência das pessoas concretas, c o m o o c o r r e p o r toda parte, mas per-
d e m qualquer sentido. C o n t r a p õ e - s e à ética religiosa u m m u n d o de relações interpes-
soais que, e m p r i n c í p i o , n ã o podem submeter-se a suas n o r m a s p r i m o r d i a i s . D a í que,
c o m peculiar a m b i v a l ê n c i a , o s a c e r d ó c i o s e m p r e apoiou, t a m b é m no interesse do tradi-
cionalismo, o patriarcalismo e m o p o s i ç ã o às r e l a ç õ e s d e d e p e n d ê n c i a impessoais, ainda
que, p o r outro lado, a profecia r o m p a as associações patriarcais. E quanto m a i s uma
religiosidade sente sua o p o s i ç ã o ao racionalismo e c o n ô m i c o c o m o u m a q u e s t ã o de prin-
cípio tanto mais p r ó x i m a está, p a r a o v i r t u o s i s m o religioso, a c o n s e q ü ê n c i a da rejeição
antieconômica do mundo.
No m u n d o dos fatos, a ética religiosa e x p e r i m e n t o u , nesse aspecto, c o m o resultado
dos compromissos inevitáveis, destinos diferentes. Desde s e m p r e f o i utilizada direta-
mente p a r a fins e c o n ô m i c o s racionais, sobretudo p o r p a n e dos credores. Isso particu-
larmente onde a dívida, d o ponto de vista j u r í d i c o , estava rigorosamente ligada à pessoa
do devedor. E m tal situação, tirava-se proveito da d e v o ç ã o dos h e r d e i r o s pelos antepas-
sados. Pertencem a esses casos a p e n h o r a da m ú m i a d o defunto, n o Egito, o u a idéia,
corrente e m algumas religiosidades asiáticas, de que a pessoa que n ã o c u m p r e uma
promessa, c o m o a d e pagar u m a dívida, sobretudo q u a n d o feita sob j u r a m e n t o , seja
atormentada n o a l é m e, p o r sua parte, possa p e r t u r b a r p o r m a l e f í c i o a paz dos descen-
dentes. Na Idade M é d i a , c o n f o r m e mostra Schulte, o bispo é particularmente digno
de crédito, p o r q u e e m caso de q u e b r a da p a l a v r a dada, sobretudo da j u r a d a , a excomu-
n h ã o destruiria toda sua existência (analogamente, neste aspecto, à típica dignidade
de crédito dos tenentes a l e m ã e s e dos estudantes organizados e m associações). D e ma-
neira p e c u l i a r m e n t e p a r a d o x a l , c o n f o r m e já m e n c i o n a m o s , o ascetismo recai na contra-
d i ç ã o de que s e u caráter racional leva à a c u m u l a ç ã o de bens. Sobretudo a vantagem
que o trabalho barato d e celibatários ascéticos oferece, e m o p o s i ç ã o ao trabalho b u r g u ê s
ECONOMIA E SOCIEDADE 391

onerado c o m o m í n i m o de existência p a r a u m a f a m í l i a , conduz à e x p a n s ã o dos n e g ó c i o s


próprios na baixa Idade M é d i a , q u a n d o a r e a ç ã o da burguesia contra os conventos
tem sua o r i g e m precisamente na " c o n c o r r ê n c i a pela e x p l o r a ç ã o d o trabalho b a r a t o "
destes na área industrial, o c o r r e n d o o m e s m o n o caso da vantagem da e d u c a ç ã o m o n á s -
tica sobre a dada pelos professores leigos casados. Muitas vezes explicam-se as p o s i ç õ e s
da religiosidade p o r motivos aquisitivos e c o n ô m i c o s . O s monges bizantinos estavam
economicamente atados ao culto das imagens da m e s m a m a n e i r a que os monges chineses
o estavam aos produtos de suas imprensas e oficinas, e a f a b r i c a ç ã o m o d e r n a de aguar-
dente e m conventos — v e r d a d e i r a i r o n i a relativa à luta religiosa contra o á l c o o l —
é apenas u m e x e m p l o e x t r e m o e m sentido semelhante. Fatores deste tipo atuam contra
toda rejeição a n t i e c o n ô m i c a do m u n d o . T o d a o r g a n i z a ç ã o , e sobretudo toda religio-
sidade institucional, precisa t a m b é m de meios de poder e c o n ô m i c o s , e quase n e n h u m a
doutrina tem sido o a l v o de m a l d i ç õ e s papais t ã o terríveis, particularmente p o r parte
do maior organizador f i n a n c e i r o da I g r e j a , J o ã o X X I I , quanto a coerente defesa que
f a z i a m os franciscanos da v e r d a d e bíblica segundo a q u a l Cristo o r d e n o u a seus discípu-
los autênticos que se desfizessem de tudo. C o m e ç a n d o p o r A r n o l d o de B r e s c i a , o n ú m e r o
de mártires desta doutrina aumentou continuamente n o d e c o r r e r dos séculos.
É difícil, e m g e r a l , de avaliar o efeito prático da p r o i b i ç ã o cristã da u s u r a e da
sentença referente à atividade aquisitiva p o r n e g ó c i o s , especialmente o c o m é r c i o —
Deoplacerenonpotest. A p r o i b i ç ã o da usura p r o d u z i u todo tipo de escapatórias jurídi-
cas. Assim c o m o fez c o m os j u r o s cobrados abertamente, a I g r e j a teve a f i n a l de admitir,
depois de lutar d u r a m e n t e , n e g ó c i o s de penhores, e m b e n e f í c i o dos pobres, nas institui-
ç õ e s caritativas dos montes pietatis (definitivamente desde L e ã o X ) O privilégio dos
judeus v e i o e m s o c o r r o da classe m é d i a necessitada de crédito, o f e r e c i d o apenas a
j u r o s fixos. D e resto devemos l e m b r a r que, na Idade M é d i a , os j u r o s f i x o s f o r a m utiliza-
dos e m p r i m e i r o lugar precisamente nos contratos de crédito aquisitivo, c o n c l u í d o s
para n e g ó c i o s de alto risco, sobretudo n o c o m é r c i o m a r í t i m o ( c o m o , p o r e x e m p l o ,
f o r a m t a m b é m usados u n i v e r s a l m e n t e , na Itália, p a r a os bens de m e n o r e s ) que, de
todo modo, constituía u m a e x c e ç ã o , pois o c o m u m e r a u m a participação diferentemente
limitada e às vezes ( n o constitutum usus de Pisa) tarifada n o risco e n o l u c r o do n e g ó c i o
(commenda dare ad proficuum de marí) Mas as grandes c o r p o r a ç õ e s de comerciantes
protegiam-se contra a a c u s a ç ã o de usurária pravitas e m parte p o r m e i o de e x c l u s ã o
da c o r p o r a ç ã o , boicote e listas negras ( c o m o , p o r e x e m p l o , a legislação da bolsa atual
contra a a c u s a ç ã o de m á - f é ) . Os m e m b r o s , p o r é m , e m f a v o r da s a l v a ç ã o das suas almas,
mediante bulas d e indulgência gerais compradas pela c o r p o r a ç ã o ( c o m o na A r t e d i
C a l i m a l a ) e grandes somas de d i n h e i r o deixadas e m testamento p a r a l i m p a r a consciência
o u instituindo f u n d a ç õ e s pias. No entanto, o abismo entre as necessidades inevitáveis
dos n e g ó c i o s e o ideal d e v i d a cristão e r a muitas vezes sentido profundamente e mantinha
afastados da v i d a de n e g ó c i o s precisamente os elementos mais piedosos e eticamente
mais racionais, atuando, sobretudo, repetidamente n o sentido da desqualificação ética
e da inibição d o espírito r a c i o n a l dos n e g ó c i o s . Mas a r e c o m e n d a ç ã o da I g r e j a institu-
cional da Idade M é d i a , de g r a d u a r os d e v e r e s de m o d o estamental, de acordo c o m
o carisma religioso e a v o c a ç ã o ética, e, paralelamente, a prática das indulgências,
n ã o d e i x o u m a r g e m a que surgisse u m m é t o d o sistemático de v i d a ética na área e c o n ô -
m i c a . (A dispensa de indulgências e os princípios extremamente lassos da ética proba-
bilista dos jesuítas, a p ó s a C o n t r a - R e f o r m a , e m nada m u d a r a m o fato de precisamente
pessoas eticamente lassas e n ã o as eticamente rigoristas p o d e r e m dedicar-se a atividades
aquisitivas, c o m o t a i s . ) A c r i a ç ã o d e u m a ética capitalista somente f o i o b r a — ainda
q u e n ã o intencionada — d o ascetismo i n t r a m u n d a n o d o protestantismo, o q u a l [abriu]
precisamente aos elementos m a i s piedosos e eticamente m a i s rigoristas o c a m i n h o à
392 MAX WEBER

v i d a dos n e g ó c i o s e [lhes] apontava, sobretudo, o ê x i t o nessa área c o m o fruto de u m a


c o n d u ç ã o da v i d a r a c i o n a l . A própria p r o i b i ç ã o dos j u r o s f o i limitada pelo protestan-
tismo, especialmente pelo ascético, a casos concretos d e falta de caridade. O s juros
f o r a m condenados, e n t ã o , c o m o u s u r a s e m caridade, precisamente onde a própria Igreja
efetivamente os t o l e r a r a , nos montes pietatis-. n o cródito aos pobres — tanto os judeus
quanto o m u n d o cristão de n e g ó c i o s de h á m u i t o sentiam-se incomodados p o r essa
c o n c o r r ê n c i a — , ao passo que f o r a m legitimados c o m o f o r m a d e participação do aplica-
d o r de capital n o l u c r o obtido pelos n é g o c i o s feitos c o m o d i n h e i r p emprestado e,-
e m g e r a l , n o crédito aos poderosos e ricos (crédito político a p r í n c i p e s ) Teoricamente
isso f o i o b r a de Salmásio. Mas sobretudo o c a l v i n i s m o d e s t r u i u , e m g e r a l , as formas
tradicionais da caritas. A esmola n ã o - o r g a n i z a d a f o i a p r i m e i r a coisa que ele eliminou.
No entanto, já desde a i n t r o d u ç ã o de n o r m a s f i x a s p a r a a distribuição do dinheiro
do bispo na Igreja antiga tardia e, depois, c o m a instituição dos hospitais medievais,
caminhava-se já e m d i r e ç ã o à sistematização da caritas, assim c o m o n o islã o imposto
e m b e n e f í c i o dos pobres significara u m a centralização r a c i o n a l . Mas a esmola não-orga-
nizada c o n s e r v a r a sua s i g n i f i c a ç ã o c o m o boa o b r a . As i n ú m e r a s f u n d a ç õ e s caritativas
de todas as religiões éticas c o n d u z i a m naturalmente t a m b é m ao cultivo direto da mendi-
cância e, a l é m disso, c o m o mostra o n ú m e r o f i x a d o das sopas diárias p a r a os pobres
nas f u n d a ç õ e s monacais bizantinas e o " d i a da s o p a " o f i c i a l na C h i n a , transformaram
a caritas n u m gesto puramente ritual. O c a l v i n i s m o p ô s u m f i m a tudo isso. Sobretudo
à atitude b e n é v o l a p a r a c o m os mendigos. Para ele, o deus inescrutável tem seus bons
motivos p a r a distribuir desigualmente os bens de felicidade, e o h o m e m afirma-se exclu-
sivamente n o trabalho profissional. A m e n d i c â n c i a é considerada diretamente u m a viola-
ç ã o do a m o r ao p r ó x i m o e m r e l a ç ã o à q u e l e a q u e m se pede, e todos os pregadores
puritanos p a r t e m sobretudo da idéia de que o desemprego de pessoas capazes de traba-
l h a r s e m p r e é culpa delas. Para os incapacitados de trabalhar, p o r é m , p a r a aleijados
e ó r f ã o s , a caritas deve ser organizada racionalmente, e m h o n r a de D e u s , e isto, por
e x e m p l o , à m a n e i r a dos internos d o orfanato de A m s t e r d ã que ainda hoje s ã o conduzidos
pelas ruas à igreja, de m o d o ostensivo, e m roupas esquisitas que l e m b r a m fantasias
de arlequins. O tratamento dos pobres é conduzido n o sentido de assustar os pregui-
çosos, sendo típica neste caso a assistência puritana aos pobres, na Inglaterra, e m oposi-
ç ã o aos princípios sociais anglicanos, muito b e m descritos p o r H . Levy. E m todo caso,
a própria caritas transforma-se agora n u m " e m p r e e n d i m e n t o " r a c i o n a l , e sua impor-
tância religiosa acaba, c o m isso, o u e l i m i n a d a o u diretamente convertida n o contrário,
c o m o o c o r r e c o m a religiosidade ascético-racional c o n s e q ü e n t e .

A religiosidade mística, e m face da r a c i o n a l i z a ç ã o da economia, tem de tomar


o c a m i n h o contrário. Precisamente o fracasso fundamental do postulado de fraternidade
na realidade desumana d o m u n d o e c o n ô m i c o , assim que se age nele de f o r m a racional,
eleva nessa religiosidade a e x i g ê n c i a d o a m o r ao p r ó x i m o a postulado da "bondade"
indiscriminada — que n ã o pergunta n e m pelo motivo e êxito da absoluta entrega ao
altruísmo, n e m pela dignidade o u pela capacidade de ajudar-se a si m e s m o daquele
q u e pede, dando a camisa a q u e m precisa do casaco; aquela bondade para a qual,
justamente p o r isso e e m suas últimas c o n s e q ü ê n c i a s t a m b é m o i n d i v í d u o pelo qual
ela se sacrifica torna-se, p o r assim d i z e r , f u n g í v e l e n i v e l a d o e m seu v a l o r , sendo o
" p r ó x i m o " aquele que casualmente c r u z a o c a m i n h o , relevante apenas p o r sua necessi-
dade e s e u pedido: u m a f o r m a peculiar de fuga mística d o m u n d o , u m a entrega amorosa
s e m objeto, n ã o p o r causa d o h o m e m , m a s p o r causa da entrega, da "santa prostituição
da a l m a " ÇBaudelaire)
D e m o d o igualmente agudo e pelos mesmos motivos, o acosmismo d o a m o r reli-
gioso, e de alguma m a n e i r a toda religiosidade ética r a c i o n a l , entra e m tensão com
ECONOMIA E SOCIEDADE 393

o cosmos da a ç ã o política, assim que a religião se tenha distanciado da associação po-


lítica.
O antigo deus local político, t a m b é m ético e universalmente poderoso, existe
apenas p a r a a p r o t e ç ã o dos interesses políticos de sua associação. A s s i m c o m o o deus
local d e u m a polis da Antiguidade, ainda hoje o deus dos cristãos é invocado c o m o
" d e u s das b a t a l h a s " o u " d e u s de nossos p a i s " ; exatamente c o m o , p o r e x e m p l o , o c u r a
cristão teve, t a m b é m nesse sentido, de r e z a r p o r séculos ao longo das praias do m a r
do Norte p o r u m a " p r a i a b e n d i t a " (muitos n a u f r á g i o s ) O s a c e r d ó c i o , p o r sua v e z ,
depende quase s e m p r e direta o u indiretamente da associação política — e e m grande
medida nas Igrejas atuais subvencionadas pelo Estado, e muito m a i s ainda quando os
clérigos e r a m f u n c i o n á r i o s cortesãos o u patrimoniais dos regentes o u senhores territo-
riais, c o m o o purohita, na í n d i a , o u o bispo da corte bizantina de Constantino, o u
q u a n d o eles mesmos e r a m senhores feudais laicos, c o m o n a Idade M é d i a [ocidental],
o u pertencentes a linhagens nobres d e sacerdotes c o m poder mundano. O s cantores
sacros, cujos cantos f o r a m incluídos nos l i v r o s sagrados, e m quase todas as p a n e s ,
tanto nos chineses quanto nos indianos e judaicos, e x a l t a m a m o r t e h e r ó i c a que, segundo
os l i v r o s do direito s a c r o b r a m â n i c o , tem o v a l o r d e d e v e r ideal de casta d o kshatryia
ao alcançar a idade e m que " a v i s t a o f i l h o de seu f i l h o " , a idade m e s m a e m que o
b r â m a n e deve se retirar p a r a a floresta p a r a meditar. A idéia do " c o m b a t e pela f é "
n ã o é concebida pela religiosidade m á g i c a , mas a vitória política e sobretudo a v i n g a n ç a
contra os inimigos s ã o p a r a ela e t a m b é m p a r a a antiga religião de J e o v á a v e r d a d e i r a
recompensa divina.
Quanto m a i s , p o r é m , o s a c e r d ó c i o p r o c u r a organizar-se c o m o grupo a u t ô n o m o
e m r e l a ç ã o ao p o d e r político e quanto mais racional se torna sua ética, tanto m a i s
essa posição p r i m i t i v a s o f r e alteração. Mas a c o n t r a d i ç ã o entre a p r é d i c a da fraternidade
entre os correligionários e a g l o r i f i c a ç ã o da g u e r r a contra os estranhos n ã o costuma
ser decisiva p a r a a d e s q u a l i f i c a ç ã o das v i r t u d e s g u e r r e i r a s , pois p a r a este caso h o u v e
o escape da distinção entre g u e r r a s " j u s t a s " e " i n j u s t a s " — u m produto farisaico desco-
nhecido à antiga ética g u e r r e i r a g e n u í n a . Muito mais importante f o i o surgimento de
religiões congregacionais e m povos politicamente desarmados e sob controle sacerdotal,
como, por e x e m p l o , os judeus, e o de amplas camadas pelo menos relativamente n ã o -
g u e r r e i r a s m a s crescentemente significativas p a r a o sustento e a p o s i ç ã o de poder do
c l e r o , onde este se organizava c o m o g r u p o a u t ô n o m o . O c l e r o tinha de adotar tanto
mais exclusivamente as v i r t u d e s específicas dessas camadas — simplicidade, paciente
resignação c o m a miséria, a c e i ta ç ã o h u m i l d e da autoridade existente, bondoso p e r d ã o
e transigência p a r a c o m a injustiça — quanto m a i s estas fossem t a m b é m precisamente
as v i r t u d e s que f a v o r e c e s s e m a s u j e i ç ã o às d e c i s õ e s do deus ético e dos p r ó p r i o s sacerdo-
tes, e porque todas elas, a l é m disso, e r a m , e m certo g r a u , complementares da v i r t u d e
fundamental dos poderosos — a caritas m a g n â n i m a — e, c o m o tais, esperadas e solici-
tadas dos p r ó p r i o s ajudadores patriarcais pelo ajudados. Circunstâncias políticas contri-
b u í r a m tanto m a i s p a r a g l o r i f i c a r religiosamente a ética dos dominados, quanto mais
u m a religiosidade se t o r n a v a " c o n g r e g a c i o n a l " . A p r o f e c i a judaica, reconhecendo r e a -
listicamente a situação da política e x t e r n a , p r e g o u a c o n f o r m a ç ã o c o m o destino, dese-
jado p o r D e u s , d e p r e d o m í n i o das grandes potências. E a d o m e s t i c a ç ã o das massas,
q u e tanto os d o m i n a d o r e s estrangeiros (de início e sistematicamente os p e r s a s ) quanto
t a m b é m , mais tarde, os detentores internos do p o d e r r e c o m e n d a m aos sacerdotes p o r
eles — e m conjunto c o m a peculiaridade de sua atividade pessoal, n ã o - g u e r r e i r a , e
c o m a e x p e r i ê n c i a u n i v e r s a l d a a t u a ç ã o particularmente intensa de motivos religiosos
sobre as m u l h e r e s — , oferece, c o m a p o p u l a r i z a ç ã o crescente d a r e l i g i ã o , cada v e z
mais razões p a r a c o n s i d e r a r aquelas virtudes substancialmente f e m i n i n a s dos dominados
394 MAX WEBER

algo especificamente religioso. Mas n ã o somente esta " r e b e l i ã o de e s c r a v o s " n a m o r a l ,


organizada sacerdotalmente, c o m o t a m b é m o aumento c o n t í n u o da p r o c u r a pessoal
da s a l v a ç ã o , de natureza ascética e, sobretudo, mística, p o r parte d o i n d i v í d u o desvin-
culado da t r a d i ç ã o , conduz, e m v i r t u d e de sua legalidade intrínseca, na m e s m a direção.
E determinadas situações externas típicas intensificam esse proceso. T a n t o as m u d a n ç a s
aparentemente s e m sentido nas pequenas estruturas políticas, particulares e e f ê m e r a s
e m c o m p a r a ç ã o a u m a religiosidade universalista e u m a c u l t u r a social (relativamente)
h o m o g ê n e a ( c o m o na índia), quanto, ao contrário, a p a c i f i c a ç ã o u n i v e r s a l e extinção
de toda luta pelo poder nos grandes i m p é r i o s e especialmente a b u r o c r a t i z a ç ã o da
d o m i n a ç ã o política ( c o m o n o I m p é r i o r o m a n o ) todos os fatores, portanto, que subtraem
a base dos interesses políticos e sociais vinculados à luta g u e r r e i r a pelo poder e à
luta social entre os estamentos, atuam fortemente n o m e s m o sentido da rejeição antipo-
lítica do mundo e d o desenvolvimento de u m a ética f r a t e r n a l religiosa que r e p r o v a
a v i o l ê n c i a . N ã o de interesses "politico-sociais" n e m , muito menos, de instintos " p r o l e t á -
r i o s " , mas precisamente da e l i m i n a ç ã o total desses interesses nasce a f o r ç a da religião
de a m o r cristã, de o r i e n t a ç ã o apolítica, assim c o m o , e m g e r a l , cresce a importância
de todas as doutrinas de s a l v a ç ã o e religiosidades congregacionais, desde o p r i m e i r o
e segundo s é c u l o da é p o c a i m p e r i a l . Nessa t r a m a , n ã o s ã o apenas, sequer preponde-
rantemente, as camadas dominadas e sua r e b e l i ã o de escravos moralista as que se t o r n a m
portadoras de religiosidades de salvação especialmente antipolíticas, mas sobretudo
as camadas politicamente desinteressadas dos cultos, p o r n ã o t e r e m influência o u esta-
r e m desiludidas.
A e x p e r i ê n c i a u n i v e r s a l de que da violência nasce s e m p r e outra violência, de
que p o r toda parte interesses de d o m i n a ç ã o sociais o u e c o n ô m i c o s se e n l a ç a m c o m
os movimentos mais idealistas p o r r e f o r m a e r e v o l u ç ã o , de que a violência contra a
injustiça, e m última instância, conduz à vitória n ã o da justiça m a i o r mas do poder
o u da esperteza m a i o r , n ã o passa despercebida, pelo menos, à camada dos desinte-
ressados intelectuais e produz continuamente o postulado mais radical da ética fraternal
— o de n ã o se opor o m a l c o m a vi o lê n c i a — , postulado c o m u m ao budismo e à
prédica de Jesus. Mas este é p r ó p r i o t a m b é m de religiosidades de resto especialmente
místicas, pois a p r o c u r a mística da s a l v a ç ã o , c o m sua m i n i m i z a ç ã o das ações que procura
o i n c ó g n i t o n o m u n d o c o m o única c o n f i r m a ç ã o da salvação, exige essa atitude de h u m i l -
dade e abandono de si m e s m o , que já resulta necessariamente, p o r razões puramente
psicológicas, d o sentimento de a m o r a c ó s m i c o , s e m objeto, que lhe é p r ó p r i o . Mas
a todo intelectualismo p u r o é inerente a possibilidade de t o m a r semelhante r u m o místi-
co. O ascetismo i n t r a m u n d a n o , ao c o n t r á r i o , pode pactuar c o m a existência da o r d e m
política de poder, que o aprecia c o m o m e i o da t r a n s f o r m a ç ã o ética racional do mundo
e d a repressão do pecado. No entanto, a c o o p e r a ç ã o neste caso n ã o é tão fácil assim
c o m o n o caso dos interesses e c o n ô m i c o s d e aquisição. Pois e m g r a u muito mais elevado
do que a atividade aquisitiva p r i v a d a , na e c o n o m i a , a atividade política autêntica, que
lida c o m qualidades h u m a n a s m é d i a s , compromissos, astúcia e e m p r e g o de outros
meios, e sobretudo de pessoas, eticamente r e p r o v á v e i s , e a l é m disso c o m a relatividade
de todos os fins, obriga à renúncia a e x i g ê n c i a s éticas rigoristas. T u d o isso é t ã o ó b v i o
que, sob o glorioso d o m í n i o dos macabeus, assim que se dissipou o p r i m e i r o entusiasmo
da g u e r r a de libertação, nasceu precisamente entre os judeus m a i s devotos u m partido
que p r e f e r i u a d o m i n a ç ã o estrangeira à m o n a r q u i a n a c i o n a l , caso a n á l o g o ao de algumas
seitas puritanas que c o n s i d e r a v a m apenas de c o m p r o v a d a autenticidade religiosa as
Igrejas sob a c r u z , isto é sob o d o m í n i o d e infiéis. E m ambos os casos atuava, por
u m lado, a idéia de que autenticidade somente podia s e r p r o v a d a n o martírio, por
outro lado, p o r é m , h a v i a a idéia fundamental d e que v i r t u d e s v e r d a d e i r a m e n t e religio-
ECONOMIA E SOCIEDADE 395

sas, tanto a ética r a c i o n a l intransigente quanto a fraternidade a c ó s m i c a , n u n c a p o d i a m


encontrar sua sede d e n t r o d o aparato coativo político. O parentesco d o ascetismo intra-
m u n d a n o c o m a m i n i m i z a ç ã o da atividade d o E s t a d o ( " m a n c h e s t e r i s m o " ) t e m a q u i
u m a de suas raízes.
O conflito da ética ascética e da espiritualidade f r a t e r n a l mística c o m o aparato
coativo que constitui o fundamento de todas as f o r m a ç õ e s políticas resultou nas f o r m a s
mais diversas de tensões e acordos. Naturalmente, a t e n s ã o entre religião e política
é m í n i m a quando, c o m o n o confucionismo, a r e l i g i ã o é crença e m espíritos, o u simples-
mente magia, e a ética nada m a i s é d o que a prudente a d a p t a ç ã o d o h o m e m culto
ao m u n d o . Por outro lado, o conflito sequer existe q u a n d o u m a religiosidade sente
c o m o d e v e r a p r o p a g a ç ã o violenta d a p r o f e c i a v e r d a d e i r a , c o m o o islã antigo que cons-
cientemente r e n u n c i o u ao u n i v e r s a l i s m o da c o n v e r s ã o e cujo f i m é a s u b j u g a ç ã o e
a s u j e i ç ã o dos infiéis ao d o m í n i o de u m a o r d e m que se dedica ao combate pela f é
c o m o d e v e r fundamental, e n ã o à s a l v a ç ã o dos submetidos. Pois neste caso n ã o se
trata, evidentemente, de u m a religião d e s a l v a ç ã o universalista. A situação desejada
p o r D e u s é precisamente o d o m í n i o coativo dos fiéis sobre os infiéis tolerados, n ã o
constituindo n e n h u m p r o b l e m a , portanto, a v i o l ê n c i a c o m o tal. Certo parentesco c o m
isso mostra o ascetismo i n t r a m u n d a n o q u a n d o considera desejado p o r D e u s , c o m o
o faz o c a l v i n i s m o r a d i c a l , o d o m í n i o dos virtuosos religiosos pertencentes à I g r e j a
" p u r a " sobre o m u n d o pecaminoso, p a r a s o f r e á - l o , idéia que constituía a base, p o r
e x e m p l o , da teocracia da Nova I n g l a t e r r a , n ã o explicitamente, mas s e m d ú v i d a na práti-
ca, naturalmente c o m v á r i o s compromissos. O conflito está ausente, t a m b é m , onde,
c o m o nas doutrinas de s a l v a ç ã o intelectualistas da índia (budismo, j a i n i s m o ) , toda r e l a -
ç ã o c o m o m u n d o e a a ç ã o neste é r o m p i d a e s ã o tanto a v i o l ê n ci a própria quanto
a resistência contra a v i o l ê n c i a absolutamente proibidas, mas t a m b é m carentes de obje-
to. Somente conflitos isolados entre e x i g ê n c i a s concretas d o Estado e mandamentos
religiosos concretos s u r g e m o n d e u m a religiosidade é religião de párias de u m g r u p o
e x c l u í d o da igualdade de direitos políticos, cuja p r o m e s s a é, p o r é m , o restabelecimento
p o r intervenção d i v i n a d o justo status de casta, c o m o n o caso d o j u d a í s m o , que n u n c a
condenou o Estado e a v i o l ê n c i a , mas e s p e r o u pelo menos até a destruição do templo
p o r A d r i a n o , u m déspota político p r ó p r i o na pessoa do Messias.

O conflito l e v a ao martírio o u à passiva tolerância antipolítica d o d o m í n i o coativo


onde u m a religiosidade congregacional condena toda v i o l ê n c i a c o m o contrária à vonta-
de d i v i n a e realmente se e m p e n h a e m evitá-la entre seus m e m b r o s , s e m p o r é m subtrair
disso a c o n s e q ü ê n c i a da absoluta fuga do m u n d o , pretendendo p e r m a n e c e r de algum
m o d o dentro dele. O a n a r q u i s m o religioso, segundo a e x p e r i ê n c i a histórica, existiu
até agora apenas c o m o f e n ô m e n o de curta d u r a ç ã o , p o r q u e a intensidade d a f é que
o condiciona é u m c a r i s m a pessoal. Mas e x i s t i r a m f o r m a ç õ e s políticas a u t ô n o m a s sobre
u m a base n ã o puramente anarquista, p o r é m e m p r i n c í p i o pacifista. A m a i s importante
f o i a comunidade dos quacres n a Pensilvânia, q u e , durante duas g e r a ç õ e s , e m o p o s i ç ã o
a todas as c o l ô n i a s v i z i n h a s , conseguiu v i v e r e p r o s p e r a r s e m v i o l ê n ci a contra os índios.
A t é que os conflitos armados das grandes potências coloniais f i z e r a m d o pacifismo
u m a f i c ç ã o e, p o r f i m , a g u e r r a d e i n d e p e n d ê n c i a americana/ que f o i conduzida e m
n o m e d e princípios fundamentais dos quacres, mantendo p o r é m á distância os ortodoxos
dessa f é p o r causa do p r i n c í p i o d e não-resistência, desacreditou a f u n d o esses princípios
t a m b é m internamente. E a a d m i s s ã o tolerante d e dissidentes, e m c o n s o n â n c i a c o m
seus princípios, obrigou n a p r ó p r i a Pensilvânia os quacres, p r i m e i r o , a aceitar u m a
geometria de distritos eleitorais cada v e z m a i s penosa e, finalmente, a abdicar da partici-
p a ç ã o n o governo. O apoliticismo fundamentalmente passivo — c o m o o defendido
nas mais diversas regiões da t e r r a pelos menonitas autênticos e, d e f o r m a semelhante,
396 MAX WEBER

pela m a i o r i a das c o n g r e g a ç õ e s batistas, a l é m de numerosas seitas, particularmente rus-


sas, c o m m o t i v a ç õ e s diferentes e nas regiões m a i s diversas — somente l e v o u , e m f a c e
da docilidade absoluta que resulta da c o n d e n a ç ã o da violência, a conflitos agudos,
sobretudo onde f o r a m exigidos serviços militares pessoais. A atitude das seitas religiosas
n ã o absolutamente apolíticas e m r e l a ç ã o à g u e r r a foi distinta e m cada caso concreto,
dependendo de se tratar de p r o t e ç ã o da liberdade religiosa contra intervenções do
poder político o u de guerras puramente políticas. Para ambos os tipos de violência
g u e r r e i r a existem duas m á x i m a s extremas: p o r u m lado, tolerância puramente passiva
de violência alheia e intransigência contra a exigência da participação própria e m atos
de violência, c o m a c o n s e q ü ê n c i a eventual do martírio pessoal. Esta é n ã o apenas a
atitude do apoliticismo místico, absolutamente indiferente ao m u n d o , e das f o r m a s
pacifistas de p r i n c í p i o do ascetismo intramundano, muitas vezes adotada t a m b é m , c õ m o
c o n s e q ü ê n c i a , pela religiosidade de f é puramente pessoal, u m a v e z que esta desconhece
u m a o r d e m e x t e r n a racional e u m a d o m i n a ç ã o racional d o m u n d o desejadas p o r Deus.
Lutero condenou s e m mais tanto a g u e r r a religiosa quanto a r e v o l u ç ã o pela f é . Por
outro lado, existe o ponto de vista da resistência violenta pelo menos contra a supressão
da f é . A r e v o l u ç ã o pela f é está m a i s p r ó x i m a do racionalismo ascético intramundano,
que conhece ordens do m u n d o sagradas e desejadas p o r Deus. D e n t r o do cristianismo
isso se dá sobretudo n o c a l v i n i s m o , que considera u m d e v e r a defesa violenta da f é
contra tiranos (ainda que, correspondendo a seu caráter de Igreja institucional, p a r a
o p r ó p r i o C a l v i n o , apenas p o r iniciativa de instâncias competentes, estamentais) As
religiões da g u e r r a de propaganda e seus derivados, tais c o m o as seitas dos mádis
e outras seitas islâmicas (e t a m b é m a hinduísta dos sikhs, eclética, inicialmente até
pacifista, influenciada pelo islã), c o n h e c e m naturalmente t a m b é m o d e v e r da r e v o l u ç ã o
pela f é . C o m respeito à g u e r r a religiosamente indiferente, puramente política, n o entan-
to, as posições dos representantes dos dois pontos de vista opostos p o d e m eventualmente
inverter-se na prática. Religiosidades que apresentam ao cosmos político exigências
éticas racionais t ê m de ocupar, c o m respeito a g u e r r a s puramente políticas, u m a posição
muito mais negativa do que aquelas que aceitam as ordens do m u n d o c o m o dadas
e de m a n e i r a relativamente indiferente. O e x é r c i t o invicto de C r o m w e l l peticionou
n o parlamento a a b o l i ç ã o do recrutamento f o r ç a d o , alegando que o cristão somente
pode participar e m guerras que sua própria consciência a p r o v e c o m o justas. Desse
ponto de vista, o exército m e r c e n á r i o deve ser considerado u m a instituição relativa-
mente ética, pois o m e r c e n á r i o toma perante D e u s e a própria consciência a responsa-
bilidade pela escolha dessa profissão. A vi o lê n c i a p o r p a n e do Estado, p o r é m , é ética
somente na medida e m que r e p r i m e o pecado e m h o n r a de D e u s e faz frente à injustiça
religiosa, isto é, q u a n d o s e r v e a fins religiosos. Para L u t e r o , ao contrário, a guerra
religiosa, a r e v o l u ç ã o pela f é e a resistência ativa d e v e m ser refutadas de m o d o absoluto;
e m caso de g u e r r a política a única responsável p o r sua legitimidade é a autoridade
m u n d a n a , cuja e s f e r a n ã o é afetada pelos postulados racionais da religião; o súdito
n ã o tem encargos de consciência q u a n d o — n u m a tal situação, c o m o e m todas aquelas
que n ã o afetem sua r e l a ç ã o c o m D e u s — obedece t a m b é m ativamente.
Mas a p o s i ç ã o do cristianismo antigo e m e d i e v a l e m r e l a ç ã o ao Estado c o m o u m
todo oscilou o u , m e l h o r dito, m u d o u quanto à importância que atribuiu a u m dos
pontos de vista seguintes: 1 ) r e p ú d i o absoluto ao I m p é r i o r o m a n o existente — cuja
p e r d u r a ç ã o até o f i m do m u n d o f o i considerada ó b v i a p o r todos n a Antiguidade tardia,
inclusive pelos cristãos — c o m o i m p é r i o d o Anticristo; 2 ) i n d i f e r e n ç a total e m relação
ao Estado, isto é, tolerância passiva da violência ( s e m p r e ilegítima) e, p o r isso, cumpri-
m e n t o ativo de todas as o b r i g a ç õ e s que n ã o p õ e m diretamente e m perigo a salvação
religiosa, assim particularmente o pagamento de impostos (a frase " a C é s a r o que é
de C é s a r " n ã o significa, c o m o a entende a m o d e r n a tendência h a r m o n i z a d o r a , u m
reconhecimento positivo, mas a absoluta i n d i f e r e n ç a perante as coisas deste mundo);
3 ) distância relativamente à comunidade política concreta, p o r q u e a participação nela
ECONOMIA E SOCIEDADE 397

l e v a necessariamente a o pecado (culto ao i m p e r a d o r ) m a s reconhecimento positivo


da autoridade, inclusive da i n f i e l , c o m o instituição desejada p o r D e u s , a i n d a que p e c a m i -
nosa, representando e l a , c o m o todas as ordens deste m u n d o , u m castigo pelos pecados,
ordenado p o r D e u s , que nos t r o u x e a queda d e A d ã o e que o cristão t e m de aceitar
obedientemente; 4 ) j u í z o positivo da autoridade, inclusive da i n f i e l , c o m o m e i o de
supressão — inevitável n o estado de pecado — dos pecados c o n d e n á v e i s até p a r a os
p a g ã o s religiosamente n ã o - i l u m i n a d o s , e m v i r t u d e da c o m p r e e n s ã o n a t u r a l que D e u s
lhes d e u , e c o m o c o n d i ç ã o g e r a l de toda existência terrestre q u e r i d a p o r D e u s . Destes
pontos d e vista, os dois p r i m e i r o s p e r t e n c e m principalmente ao p e r í o d o da e s p e r a n ç a
escatológica, m a s t a m b é m a p a r e c e m m a i s tarde, de tempos e m tempos. O ú l t i m o ponto
d e vista n ã o f o i r e a l m e n t e superado, e m princípio, pelo cristianismo da Antiguidade,
n e m a p ó s seu reconhec i me n to c o m o religião de Estado. A grande m u d a n ç a nas relações
c o m o Estado realiza-se somente na I g r e j a m e d i e v a l , c o m o r e v e l a m d e m o d o b r i l h a n t e
as pesquisas de T r o e l t s c h . S e m d ú v i d a , o p r o b l e m a que se apresenta ao cristianismo
nesta situação n ã o lhe é e x c l u s i v a m e n t e p r ó p r i o , mas somente nele, p o r r a z õ e s e m
parte intra-religiosas, e m parte extra-religiosas, desenvolveu-se d e m a n e i r a t ã o conse-
qüente. Trata-se da p o s i ç ã o do c h a m a d o " d i r e i t o n a t u r a l " : e m r e l a ç ã o , p o r u m l a d o ,
à r e v e l a ç ã o religiosa e, p o r o u t r o , às estruturas políticas positivas e s e u comportamento.
T e r e m o s d e nos ocupar b r e v e m e n t e disso, e m parte, ao e x p o r as f o r m a s de c o m u n i d a d e
religiosas e, e m parte, ao e x a m i n a r as f o r m a s d e d o m i n a ç ã o . S o b r e o m o d o de s o l u ç ã o
p a r a a ética i n d i v i d u a l p o d e m o s dizer fundamentalmente o seguinte: o e s q u e m a g e r a l
segundo o q u a l u m a religião que p r e d o m i n a dentro de u m a associação política e é
privilegiada p o r esta — pa rti c u la rme n te q u a n d o se trata d e u m a religiosidade de g r a ç a
institucional — costuma r e s o l v e r as tensões entre a ética religiosa e as e x i g ê n c i a s n ã o - é -
ticas o u antiéticas da v i d a n a o r d e m secular violenta do Estado e da e c o n o m i a , consiste
na relativização e d i f e r e n c i a ç ã o da ética n a f o r m a da ética profissional "orgânica" (em
o p o s i ç ã o à a s c é t i c a ) Esta pode — e m T o m á s d e A q u i n o , p o r e x e m p l o , e e m o p o s i ç ã o
à doutrina estóica anticristã da idade d e o u r o e d o f e l i z estado p r i m i t i v o da igualdade
a n á r q u i c a dos h o m e n s , c o m o ressalta T r o e l t s c h acertadamente — acolher a c o n c e p ç ã o
(já bastante difundida entre as c r e n ç a s animistas nos espíritos e n o a l é m ) da desigualdade
natural dos h o m e n s , independente t a m b é m de todas as c o n s e q ü ê n c i a s do pecado, a
qual d e t e r m i n a d i f e r e n ç a s estamentais nos destinos neste m u n d o e n o a l é m . A d e m a i s ,
p o r é m , ela deduz as r e l a ç õ e s d e p o d e r desta v i d a d è m o d o metafísico. C o m base n o
pecado o r i g i n a l , e m v i r t u d e o u dst causalidade d o c a r m a i n d i v i d u a l o u da c o r r u p ç ã o
dualisticamente e x p l i c a d a d o m u n d o , os h o m e n s estão condenados a suportar v i o l ê n c i a ,
p e n a , s o f r i m e n t o , c a r ê n c i a de a m o r e particularmente as d i f e r e n ç a s n a situação esta-
m e n t a l e de classe. A p r o v i d ê n c i a organiza as profissões o u castas d e tal m o d o que
a cada u m a delas cabe sua tarefa específica e indispensável, desejada p o r D e u s o u
estabelecida p o r u m a o r d e m c ó s m i c a impessoal, v a l e n d o assim p a r a cada u m a e x i g ê n c i a s
éticas diferentes. E l a s se p a r e c e m c o m as partes d e u m organismo. A s relações d e
p o d e r h u m a n a s que daí r e s u l t a m s ã o relações d e autoridade desejadas p o r D e u s , e
rebelar-se contra elas o u r e c l a m a r p o r u m a v i d a diferente daquela que corresponde
à o r d e m estamental é u m ato d e soberba da criatura que contraria a vontade d i v i n a
e infringe a tradição sagrada. D e n t r o dessa o r d e m o r g â n i c a está atribuída aos virtuosos
da religiosidade, s e j a m estes d e caráter ascético o u contemplativo, sua tarefa específica:
c r i a r o tesouro das boas obras excedentes, a partir d o q u a l é dispensada a g r a ç a institu-
c i o n a l , d o m e s m o m o d o c o m o s ã o indicadas aos príncipes, g u e r r e i r o s , juízes, artesãos
e camponeses suas f u n ç õ e s especiais. Pela s u b m i s s ã o à v e r d a d e revelada e à c o r r e t a
espiritualidade de a m o r é precisamente dentro destas o r d e n s q u e o i n d i v í d u o alcança
a felicidade neste m u n d o e a r e c o m p e n s a n o a l é m . No islã esta c o n c e p ç ã o " o r g â n i c a "
398 MAX WEBER

e toda sua p r o b l e m á t i c a e r a m muito m a i s alheias, p o r q u e , r e n u n c i a n d o ao u n i v e r s a -


lismo, c o n c e b e u a estratificação ideal d o m u n d o e m camadas estamentais c o m o d i v i s ã o
e m fiéis dominadores e p o v o s - p á r i a s infiéis que p r o v ê m o sustento dos p r i m e i r o s , d e i -
x a n d o estes últimos, de resto, inteiramente l i v r e s p a r a a r e g u l a ç ã o de suas próprias
c o n d i ç õ e s de v i d a , totalmente indiferentes do ponto de vista religioso. E x i s t e aqui o
conflito da ortodoxia institucional c o m a p r o c u r a da s a l v a ç ã o mística e da religiosidade
ascética dos virtuosos, a l é m d o outro, que surge e m todo lugar o n d e existem n o r m a s
jurídicas sagradas positivas, entre direito sagrado e p r o f a n o e questões de ortodoxia
n a constituição teocrática, mas n ã o o p r o b l e m a , f u n d a m e n t a l p a r a o direito natural"
religioso, da r e l a ç ã o entre a ética religiosa e a o r d e m m u n d a n a c o m o tais. A o contrário,
os textos jurídicos indianos estabelecem, quanto ao e s q u e m a , a ética da v o c a ç ã o o r g â n i -
co-tradicionalista de f o r m a a n á l o g a , p o r é m m a i s c o n s e q ü e n t e d o que a doutrina católica
m e d i e v a l e muito m a i s ainda do que a doutrina l u t e r a n a , extremamente pobre, do
status ecclesiasticus, politicus e oeconomicus. E d e fato, c o m o já v i m o s , a o r d e m esta-
mental na í n d i a , c o m o ética de casta, encontra-se u n i d a a u m a doutrina de salvação
específica: a possibilidade da a s c e n s ã o progressiva n u m a v i d a terrestre futura justamente
p e l o c u m p r i m e n t o dos deveres da própria casta, p o r mais desprezados que s e j a m social-
mente. Por isso, ela atuou de m o d o m a i s r a d i c a l n o sentido da aceitação da o r d e m
terrestre, e isso precisamente nas castas m a i s b a i x a s , as quais t ê m m a i s a ganhar c o m
a t r a n s m i g r a ç ã o das almas. A p e r p e t u a ç ã o cristã m e d i e v a l das d i f e r e n ç a s estamentais
da curta existência terrestre e m u m a existência n o a l é m , temporalmente " e t e r n a " —
c o m o a e x p l i c a , p o r e x e m p l o , B e a t r i z n o Paradiso — teria parecido absurda à teodicéia
indiana, pois de fato p r i v a o tradicionalismo estrito da ética profissional o r g â n i c a de
todas as ilimitadas esperanças postas n o f u t u r o p e l o h i n d u piedoso que c r ê na transmi-
g r a ç ã o das almas e, portanto, na possibilidade de u m a existência terrestre cada v e z
m a i s elevada. Por isso, s u a influência, t a m b é m d o ponto de vista puramente religioso,
e m b e n e f í c i o da estruturação tradicionalista das profissões, f o i muito m a i s incerta do
que a f i r m e ancoragem da casta nas promessas de u m a outra v i d a da doutrina da metemp-
sicose. A l é m disso, a ética da v o c a ç ã o tradicionalista da Idade M é d i a e a de Lutero
fundamentavam-se, de fato, n u m pressuposto g e r a l cada v e z mais frágil e evanescente
e que as duas t i n h a m e m c o m u m c o m a ética confuciana: o caráter puramente perso-
nalista tanto das relações d e p o d e r e c o n ô m i c a s quanto das políticas, situação e m que
a justiça e sobretudo a administração constituem u m cosmos dos resultados de relações
pessoais d e s u b m i s s ã o , d o m i n a d o p o r arbítrio e g r a ç a , i r a e a m o r , sobretudo, p o r é m ,
pela piedade m ú t u a entre o d o m i n a d o r e os submetidos, à m a n e i r a da família. Um
caráter das r e l a ç õ e s de poder, portanto, ao q u a l é possível v i n c u l a r postulados éticos
n o m e s m o sentido e m que se o faz c o m q u a l q u e r outra r e l a ç ã o puramente pessoal.
Mas n ã o apenas a " e s c r a v i d ã o s e m s e n h o r " ( W a g n e r ) d o proletariado m o d e r n o , como
t a m b é m sobretudo o cosmos da instituição r a c i o n a l d o Estado, d o " m a r o t o Estado"
desprezado p e l o r o m a n t i s m o , n ã o t e m m a i s , e m absoluto, esse caráter, c o m o poderemos
v e r mais adiante. Q u e se d e v a p r o c e d e r distintamente d e a c o r d o c o m cada pessoa é
algo ó b v i o n a o r d e m estamental personalista, e apenas a q u e s t ã o de e m que sentido
isso será feito constitui ocasionalmente u m p r o b l e m a , c o m o , p o r e x e m p l o , e m Tomás
de A q u i n o . É " s e m c o n s i d e r a ç õ e s p e s s o a i s " , sine ira et studio, s e m ó d i o e portanto
s e m a m o r , s e m arbítrio e portanto s e m g r a ç a , c o m o simples d e v e r profissional objetivo
e n ã o e m v i r t u d e de r e l a ç õ e s pessoais concretas q u e o homo politicus b e m como o
homo oeconomicus realiza h o j e suas tarefas, tanto m a i s quanto m a i s rigorosamente
atua d e acordo c o m as regras racionais d o ordenamento d e p o d e r moderno. N ã o por
i r a pessoal o u vontade d e v i n g a n ç a , m a s d e u m m o d o pessoalmente indiferente e devido
a n o r m a s e f i n s objetivos, a justiça m o d e r n a condena o c r i m i n o s o da v i d a p a r a a morte,
ECONOMIA E SOCIEDADE 399

simplesmente p o r f o r ç a d e sua legalidade intrínseca r a c i o n a l imanente, agindo seme-


lhantemente à retribuição impessoal do c a r m a e m o p o s i ç ã o à f u r i o s a sede de v i n g a n ç a
de J e o v á . Progressivamente a violência politica interna torna-se m a i s objetiva, transfor-
mando-se n u m a " o r d e m d o Estado de d i r e i t o " — do ponto de vista religioso, somente
a f o r m a m a i s eficiente de disfarçar a brutalidade. T o d a a política orienta-se pela r a z ã o
de Estado objetiva, pelo pragmatismo e pela absoluta finalidade, justificada apenas
p o r s i m e s m a , da c o n s e r v a ç ã o das r e l a ç õ e s externas e internas de poder, que d o ponto
de vista religioso p a r e c e quase inevitavelmente carecer de qualquer sentido. Somente
assim ela o b t é m u m a f e i ç ã o e u m fabuloso pathos p r ó p r i o , peculiarmente r a c i o n a l ,
f o r m u l a d o de m o d o brilhante p o r N a p o l e ã o , que já e m suas raízes d e v e p a r e c e r estranho
a toda ética f r a t e r n a l , tal c o m o as ordens e c o n ô m i c a s racionais. N ã o cabe e x p o r a q u i
e m seus detalhes as diversas a d a p t a ç õ e s da ética eclesiástica m o d e r n a a esta situação.
Na grande m a i o r i a significam u m acomodamento, de caso e m caso, e, particularmente
quando se trata da I g r e j a católica, a s a l v a ç ã o dos p r ó p r i o s interesses de poder sacerdo-
tais, t a m b é m crescentemente objetivados n o sentido de u m a " r a z ã o de I g r e j a " , c o m
os mesmos o u parecidos m e i o s atuais de que se s e r v e m as pretensões de poder m u n d a -
nas. Realmente adequada internamente à o b j e t i v a ç ã o do p o d e r f o r ç a d o — c o m suas
reservas ético-racionais que a b r i g a m a p r o b l e m á t i c a — é apenas a ética profissional
do ascetismo intramundano. U m a das c o n s e q ü ê n c i a s efetivas da r a c i o n a l i z a ç ã o da v i o -
lência — que costumavam aparecer, c o m intensidade e e m f o r m a s diversas, onde q u e r
que a violência se afastasse paulatinamente das idéias h e r ó i c a s e sociais personalistas
e m d i r e ç ã o a u m " E s t a d o " r a c i o n a l — é a fuga progressiva r u m o às irracionalidades
d o sentimento apolítico: seja p a r a a mística e ética a c ó s m i c a da " b o n d a d e " absoluta
o u p a r a as irracionalidades da esfera sentimental extra-religiosa, sobretudo a erótica.
Mas as religiões de s a l v a ç ã o e n vo lve m-s e t a m b é m e m tensões específicas c o m as f o r ç a s
desta última e s f e r a . Sobretudo c o m a mais poderosa entre elas, o a m o r s e x u a l , o compo-
nente fundamental mais u n i v e r s a l do c u r s o efetivo da a ç ã o social h u m a n a , ao lado
dos interesses " v e r d a d e i r o s ' ' o u e c o n ô m i c o s e dos interesses sociais de p o d e r e prestígio.

As relações entre a religiosidade e a sexualidade, e m parte conscientes, e m parte


inconscientes, às vezes diretas, às vezes indiretas, s ã o cada v e z mais e x t r a o r d i n a r i a m e n t e
íntimas. D e i x a m o s de lado, p o r sua pouca importância p a r a n ó s , as numerosas idéias
e simbolismos m á g i c o s e animistas e m que existem tais r e l a ç õ e s , e limitamo-nos a alguns
traços sociologicamente relevantes. E m p r i m e i r o lugar a e x a l t a ç ã o s e x u a l é tipicamente
u m componente da p r i m i t i v a a ç ã o social religiosa dos leigos: da orgia. C o n s e r v a esta
f u n ç ã o às vezes direta e conscientemente t a m b é m e m religiosidades relativamente siste-
matizadas. A s s i m , na religiosidade dos sakti, na í n d i a , quase ainda à m a n e i r a dos antigos
cultos fálicos e ritos das diversas divindades funcionais que r e i n a m sobre a p r o c r i a ç ã o
(dos h o m e n s , d o gado, das s e m e n t e s ) E m parte e c o m muito m a i s f r e q ü ê n c i a , p o r é m ,
a orgia erótica é c o n s e q ü ê n c i a n ã o - p r e t e n d i d a d o êxtase provocado p o r outros meios
orgiásticos, sobretudo a d a n ç a . A s s i m , entre as seitas m o d e r n a s , ainda nas orgias de
d a n ç a dos clistes, — o q u e , c o m o já v i m o s , causou a c r i a ç ã o da seita dos skopetsi,
que se p r o p u n h a acabar precisamente c o m esta c o n s e q ü ê n c i a contrária à ascese. Certas
instituições, f r e q ü e n t e m e n t e mal-interpretadas, c o m o a prostituição nos templos, t ê m
sua o r i g e m e m cultos orgiásticos. E m sua f u n ç ã o prática, a prostituição nos templos
adotou muitas vezes o papel de u m b o r d e l sob p r o t e ç ã o sacra p a r a os comerciantes
viajantes, que ainda h o j e constituem p o r toda parte, c o m o é n a t u r a l , a clientela típica
dos bordéis. Q u e r e r v e r a o r i g e m das orgias sexuais extracotidianas n u m a " p r o m i s -
c u i d a d e " e n d ó g a m a de clã o u de tribo, c o m o instituição p r i m i t i v a da v i d a cotidiana,
é p u r a tolice.
A orgia d e e x a l t a ç ã o s e x u a l pode s e r sublimada, c o m o já v i m o s , n u m a m o r —
400 MAX WEBER

explicitamente o u n ã o — erótico ao D e u s o u ao salvador. O u t r o s derivados religiosos


do abandono s e x u a l , que n ã o nos interessam a q u i , p o d e m t a m b é m s u r g i r dela, junto
c o m outros tipos de representações m á g i c a s , e t a m b é m da prostituição nos templos:
Por outro lado, n ã o há d ú v i d a de que p a n e c o n s i d e r á v e l precisamente das religiosidades
antieróticas místicas e ascéticas representa u m a satisfação substitutiva de necessidades
fisiológicas sexualmente condicionadas. No entanto, o que nos interessa na aversão
religiosa à sexualidade n ã o s ã o as c o n e x õ e s n e u r o l ó g i c a s , ainda u m tanto discutíveis
e m pontos importantes, mas as c o n e x õ e s de " s e n t i d o " . Pois o " s e n t i d o " que se q u e r
v e r na atitude adversa à sexualidade, nas mesmas c o n d i ç õ e s n e u r o l ó g i c a s , pode suscitar
consideráveis diferenças práticas n o comportamento, das quais nos interessa aqui tam-
b é m somente u m a parte. Sua f o r m a mais limitada, a castidade apenas de culto, isto
é, u m a abstinência temporária dos sacerdotes atuantes o u t a m b é m dos participantes
do culto, c o m o c o n d i ç ã o prévia da dispensa d o sacramento, está p r o v a v e l m e n t e relacio-
nada de f o r m a v a r i a d a a n o r m a s de tabu às quais a esfera s e x u a l está sujeita p o r motivos
m á g i c o s e d e i s i d e m ô n i c o s que n ã o interessam aqui e m seus detalhes. A o contrário,
a ascese de castidade carismática dos sacerdotes e virtuosos religiosos, isto é, a absti-
nência permanente, parece partir sobretudo da idéia de que a castidade, c o m o compor-
tamento altamente extracotidiano, seja e m parte sintoma de qualidades carismáticas
e e m parte fonte de qualidades extáticas, as quais, p o r sua v e z , s ã o empregadas c o m o
meios de c o a ç ã o m á g i c a sobre o deus. Mais tarde, especialmente n o cristianismo do
Ocidente, f o r a m decisivos p a r a o celibato sacerdotal, p o r u m lado, a necessidade de
n ã o p e r m i t i r que o m é r i t o ético dos f u n c i o n á r i o s fosse i n f e r i o r ao dos virtuosos ascéticos
(monges) e, p o r outro lado, p o r é m , o interesse h i e r á r q u i c o e m evitar que as prebendas
se tornassem hereditárias. No estádio da religiosidade ética desenvolvem-se, e m lugar
dos diversos tipos de motivos m á g i c o s , duas novas relações de sentido típicas da aversão
à sexualidade. A abstinência pode ser considerada o m e i o central e indispensável da
p r o c u r a mística de s a l v a ç ã o mediante a saída contemplativa d o m u n d o , cuja tentação
mais intensa é esse instinto m a i s forte que v i n c u l a o h o m e m à existência de criatura:
ponto de vista da fuga mística do m u n d o . O u rege a idéia ascética de que a vigilância
racional ascética, o d o m í n i o de s i m e s m o e o m é t o d o de v i d a s ã o postos e m perigo
na m a i o r i a das vezes pela irracionalidade e x t r e m a desse ato, o ú n i c o que, pelo menos
e m sua f ô r m a definitiva, nunca pode ser influenciado racionalmente. Muitas vezes atuam
naturalmente as duas m o t i v a ç õ e s . T a m b é m todas as profecias g e n u í n a s , s e m e x c e ç ã o ,
e as sistematizações sacerdotais não-proféticas ocupam-se, p o r tais motivos, c o m as
relações sexuais, e isso quase s e m p r e n o m e s m o sentido: e m p r i m e i r o lugar, e l i m i n a ç ã o
da orgia s e x u a l (a " f o r n i c a ç ã o " dos sacerdotes j u d a i c o s ) — c o m o corresponde à posição
g e r a l , já exposta, das profecias e m r e l a ç ã o às orgias — , mas n u m segundo passo elimi-
n a ç ã o t a m b é m das r e l a ç õ e s sexuais l i v r e s e m g e r a l , e m f a v o r d o " m a t r i m ô n i o " regula-
mentado e legitimado c o m o sagrado. Isto se aplica t a m b é m a u m profeta c o m o M a o m é
que, pessoalmente e na f o r m a de suas promessas do a l é m , feitas aos combatentes pela
f é , tanto d e u m a r g e m à luxúria s e x u a l ( e que, c o m o se sabe, dispensou-se a si mesmo,
n u m a s u r a especial, do limite imposto aos outros do n ú m e r o d e m u l h e r e s ) . As formas
até e n t ã o legais de a m o r n ã o - c o n j u g a l e de prostituição estão proscritas n o islã ortodoxo
c o m u m ê x i t o que até h o j e dificilmente tem par. Para o ascetismo cristão e o ascetismo
indiano e x t r a m u n d a n o , a atitude adversa entende-se p o r s i m e s m a . As profecias místicas
indianas da absoluta fuga contemplativa do m u n d o r e j e i t a m , naturalmente, c o m o condi-
ç ã o prévia da s a l v a ç ã o p l e n a , toda r e l a ç ã o s e x u a l . Mas t a m b é m a ética confuciana da
a d a p t a ç ã o absoluta ao m u n d o considera o erotismo i r r e g u l a r u m a irracionalidade des-
prezível, p o r q u e p e r t u r b a o e q u i l í b r i o interno d o genüeman e porque a m u l h e r é u m
ser i r r a c i o n a l , difícil d e g o v e r n a r . T a n t o o d e c á l o g o mosaico quanto os direitos sagrados
ECONOMIA E SOCIEDADE 401

hinduístas e as éticas relativistas de leigos das profecias monacais indianas c o n d e n a m


o adultério, e a profecia de Jesus, c o m a e x i g ê n c i a da monogamia absoluta e indissolúvel,
v a i a l é m de todas as outras na limitação da sexualidade legítima admissível; adultério
e f o r n i c a ç ã o s ã o considerados, n o cristianismo p r i m i t i v o , quase o ú n i c o pecado m o r t a l
absoluto, e a univira constitui u m f e n ô m e n o e s p e c í f i c o da c o n g r e g a ç ã o cristã dentro
da Antiguidade m e d i t e r r â n e a d e helenos e romanos já educados na m o n o g a m i a , mas
c o m liberdade de d i v ó r c i o . A atitude pessoal e m r e l a ç ã o à m u l h e r e a p o s i ç ã o desta
na c o n g r e g a ç ã o é naturalmente muito distinta entre os diversos profetas, dependendo
do caráter de sua p r o f e c i a , e m especial n o que diz respeito à carga de emotividade
f e m i n i n a que esta traz consigo. E o m e r o fato de que o profeta ( t a m b é m B u d a ) gosta
de v e r m u l h e r e s talentosas a seus p é s e as utiliza c o m o propagandistas (como Pitágoras),
nada significa quanto à p o s i ç ã o do g ê n e r o . A m u l h e r i n d i v i d u a l é e n t ã o " s a g r a d a " ,
o g ê n e r o é u m recipiente do pecado. A i n d a assim, quase toda propaganda orgiástica
e mistagógica, inclusive a de D i o n i s o , p r o m o v e u pelo menos temporária e relativamente
u m a " e m a n c i p a ç ã o " das m u l h e r e s , q u a n d o n ã o se s o b r e p u s e r a m outras tendências
religiosas o u o r e p ú d i o de profecias f e m i n i n a s histéricas — c o m o entre os discípulos
de B u d a o u n o cristianismo já c o m Paulo — o u o temor monacal a m u l h e r e s , c o m o
o c o r r e u e m f o r m a mais e x t r e m a entre os neurastênicos sexuais, p o r e x e m p l o , Alfonso
de' L i g u o r i . A importância das m u l h e r e s é m a i o r nos cultos inspiracionais (histéricos
o u sacramentais) de seitas, c o m o t a m b é m , p o r e x e m p l o , e m alguns cultos chineses.
Q u a n d o elas n ã o t ê m importância n e n h u m a p a r a a propaganda, c o m o na religião de
Zaratustra e e m I s r a e l , a situação é diferente desde o princípio. O p r ó p r i o m a t r i m ô n i o
legalmente regulamentado é quase s e m p r e considerado pela ética profética e sacerdotal
— de acordo c o m a ética helénica e r o m a n a e, e m g e r a l , c o m todas as éticas do m u n d o
que se d ã o conta dessa q u e s t ã o — n ã o u m v a l o r " e r ó t i c o " , mas, e m c o n t i n u a ç ã o da
c o n c e p ç ã o prosaica dos chamados " p o v o s p r i m i t i v o s " , u m a simples instituição e c o n ô -
mica p a r a engendrar e c r i a r filhos c o m o f o r ç a de trabalho e portadores d o culto aos
mortos. O motivo da isenção do h o m e m r e c é m - c a s a d o dos deveres políticos — p a r a
que possa gozar de seu n o v o a m o r — , n o j u d a í s m o antigo, é u m f e n ô m e n o muito
isolado. A m a l d i ç ã o do Antigo Testamento sobre o pecado de O n ã (coitus interruptus),
que foi assimilada pelo catolicismo na c o n d e n a ç ã o da c ó p u l a estéril, c o m o pecado mor-
tal, mostra que t a m b é m n o j u d a í s m o n ã o se fazia c o n c e s s ã o alguma ao erotismo que,
n o que se r e f e r e às c o n s e q ü ê n c i a s , carece de qualquer sentido d o ponto de vista r a c i o n a l .
É ó b v i o que a limitação da v i d a s e x u a l legítima aquele f i m racional constitua o ponto
de vista de todo ascetismo i n t r a m u n d a n o , sobretudo d o puritanismo. Por outro lado,
no que concerne à mística, as c o n s e q ü ê n c i a s anomísticas e semi-orgiásticas às quais
ela pode eventualmente c o n d u z i r seu sentimento de a m o r a c ó s m i c o , somente e m oca-
siões isoladas f i z e r a m c o m que se deslocasse essa r e l a ç ã o unívoca. A p o s i ç ã o valorativa
da ética profética e t a m b é m da ética sacerdotal, p o r f i m , n o que se r e f e r e às relações
sexuais (legítimas e n o r m a i s ) puramente c o m o tais, isto é, a r e l a ç ã o última entre o
religioso e o o r g â n i c o , n ã o é u n í v o c a . E n q u a n t o que n o confucionismo, do m e s m o
m o d o que n o j u d a í s m o antigo, idéias e m parte animistas, e m p a n e derivadas destas
p r i m e i r a s , universalmente divulgadas ( t a m b é m na ética v é d i c a e h i n d u í s t a ) sobre a
importância dos descendentes t i n h a m p o r c o n s e q ü ê n c i a u m mandamento direto de p r o -
c r i a ç ã o de filhos, o m e s m o mandamento positivo referente ao m a t r i m ô n i o e r a motivado,
pelo menos e m parte, já n o j u d a í s m o t a l m ú d i c o e t a m b é m n o islã, pelas mesmas razões
que a e x c l u s ã o dos ordenados n ã o - c a s a d o s das prebendas ( i n f e r i o r e s ) nas Igrejas o r i e n -
tais, isto é , pela idéia de ser absolutamente insuperável o instinto s e x u a l do h o m e m
c o m u m , sendo p o r isso preciso a b r i r p a r a este u m c a m i n h o legitimamente regulamen-
tado. A este ponto d e vista corresponde n ã o apenas a relativização da ética leiga das
402 MAX WEBER

religiões de s a l v a ç ã o contemplativas da í n d i a , c o m sua p r o i b i ç ã o do adultério p a r a


os upâsakas, c o m o t a m b é m a p o s i ç ã o de Paulo, que considera a dignidade da abstinência
absoluta, deduzida na base de u m a m o t i v a ç ã o mística que a q u i n ã o interessa, u m carisma
puramente pessoal dos virtuosos religiosos, b e m c o m o a relativização da ética leiga
do catolicismo. Mas é t a m b é m a p o s i ç ã o de L u t e r o , que v i u na sexualidade intrama-
trimonial apenas o m a l m e n o r , p a r a evitar a f o r n i c a ç ã o e a necessidade, por parte
de D e u s , de " p a s s a r p o r c i m a " deste pecado l e g í t i m o , sendo ele a c o n s e q ü ê n c i a da
insuperabilidade absoluta, criada pelo pecado o r i g i n a l , da c o n c u p i s c ê n c i a — idéia q u e .
explica e m parte sua p o s i ç ã o n o p r i n c í p i o apenas relativamente adversa ao monacato,
semelhante à de M a o m é . No r e i n o d i v i n o de Jesus — b e m entendido, u m futuro r e i n o
terrestre — , n ã o h a v e r á sexualidade alguma e toda teoria cristã oficial condenou precisa-
mente o lado interno, emotivo, da sexualidade, c o m o " c o n c u p i s c ê n c i a " e c o n s e q ü ê n c i a
do pecado original.
À idéia ainda muito difundida de que isto seja u m a especialidade do cristianismo
o p õ e - s e o fato de n ã o h a v e r religiosidade dirigida especialmente à salvação que tome
u m a p o s i ç ã o fundamentalmente diferente. Isto se e x p l i c a p o r várias causas bastante
gerais. E m p r i m e i r o lugar, pelo m o d o c o m o , p o r r a c i o n a l i z a ç ã o das c o n d i ç õ e s de v i d a ,
se desenvolve a inserção da esfera s e x u a l na v i d a e m g e r a l . No nível d o c a m p o n ê s ,
o ato s e x u a l é u m a a ç ã o cotidiana que e m muitos povos p r i m i t i v o s n ã o inclui n e n h u m
sentimento de pudor, n e m na presença de estranhos, e n e n h u m a significação sentida
c o m o supracotidiana. O desenvolvimento decisivo p a r a nossa p r o b l e m á t i c a é o de que
a esfera s e x u a l é sublimada e m fundamento de sensações específicas, e m " e r o t i s m o " ,
adquirindo assim u m v a l o r p r ó p r i o e tornando-se u m f e n ô m e n o extracotidiano. Os
dois fatores mais importantes que atuam neste sentido s ã o , p o r u m lado, as inibições
das relações sexuais estabelecidas crescentemente pelos interesses e c o n ô m i c o s do clã
e, mais tarde, pelas c o n v e n ç õ e s estamentais, relações que, s e m dúvida, e m n e n h u m
estádio conhecido d o desenvolvimento estão l i v r e s de r e g u l a m e n t a ç õ e s sacras e e c o n ô -
micas, mas originalmente estavam m e n o s submetidas às limitações convencionais que
se u n i a m paulatinamente c o m as e c o n ô m i c a s e que mais tarde s e r i a m específicas dessa
esfera. A influência particular das m o d e r n a s limitações " é t i c a s " , c o m o fonte suposta
da prostituição, n o entanto, f o i quase s e m p r e avaliada de m o d o falso. A " p r o s t i t u i ç ã o "
profissional, heterossexual e homossexual (iniciação de tríbades) é encontrada, uma
v e z que lugar algum está isento de limitação sacra, militar o u economicamente condicio-
nada, t a m b é m nos estádios mais p r i m i t i v o s da cultura. S ó que sua proscrição absoluta
data do f i n a l do s é c u l o XV. Mas as e x i g ê n c i a s do clã quanto ao asseguramento dos
filhos das m u l h e r e s e as exigências de nível de v i d a do j o v e m casal crescem progressi-
vamente c o m o refinamento da cultura. C o m isso, destaca-se cada v e z mais outro fator
do desenvolvimento. Pois de m o d o mais p r o f u n d o , ainda que muito menos perceptível,
a s e p a r a ç ã o entre a substância da existência global h u m a n a , cada v e z m a i s racionalizada,
e o ciclo o r g â n i c o da existência simples do c a m p o n ê s atua nas relações c o m a ética.
A s s i m c o m o o c o r r e e m r e l a ç ã o ao m a i s forte poder i r r a c i o n a l da v i d a pessoal,
a religiosidade ética, especialmente a f r a t e r n a l , envolve-se t a m b é m n u m a profunda
tensão interna c o m a esfera da arte. Na o r i g e m a r e l a ç ã o p r i m i t i v a entre ambas foi
certamente a mais íntima imaginável. í d o l o s e ícones de todo tipo, a música c o m o
m e i o d e êxtase o u de e x o r c i s m o o u de atos culturais a p o t r o p é i c o s , c o m o a dos cantores
sacros e dos magos, os templos e as igrejas c o m o as m a i o r e s obras artísticas, paramentos
e instrumentos sacros de todo tipo c o m o objetos particulares d o trabalho artesanal
f a z e m da religião u m a fonte inesgotável de possibilidades de realização artística. No
entanto, quanto m a i s a arte se constitui c o m o u m a e s f e r a dotada de legalidade intrínseca
— produto da f o r m a ç ã o dos leigos — , tanto m a i s costuma destacar-se diante das inteira-
ECONOMIA E SOCIEDADE 403

mente díspares ordens hierárquicas de v a l o r e s ético-religiosas que s ã o assim consti-


tuídas. T o d a atitude receptiva i n g ê n u a p a r a c o m a arte parte e m p r i m e i r o lugar da
significação do c o n t e ú d o , e este pode ter efeito gerador de comunidade. A descoberta
consciente do especificamente artístico está reservada à civilização intelectualista. Mas
é precisamente c o m isso que desaparece o caráter da arte de f u n d a d o r a da comunidade,
b e m c o m o sua compatibilidade c o m a vontade de salvação religiosa. N ã o apenas a
religiosidade ética e a mística g e n u í n a c o n d e n a m e n t ã o aquela salvação intramundana
que a arte puramente c o m o tal pretende oferecer, vendo-a c o m o coisa contrária a
D e u s e adversa a toda s a l v a ç ã o da irracionalidade ética do m u n d o , c o m toda entrega
a v a l o r e s artísticos, puramente c o m o tais, e significando p a r a o ascetismo autêntico
u m a grave v i o l a ç ã o da sistematização racional da c o n d u ç ã o da v i d a , c o m o t a m b é m
a t e n s ã o se exacerba c o m a e x p a n s ã o da atitude, própria ao intelectualismo, calcada
na esfera estética, aos assuntos éticos. A r e j e i ç ã o da responsabilidade p o r u m j u í z o
ético e o m e d o de parecer apegado à tradição, típicos de é p o c a s intelectualistas, condu-
z e m à t r a n s f o r m a ç ã o de juízos éticos e m f o r m a l m e n t e estéticos ( e x e m p l o c o m u m : dizer
" d e m a u gosto" e m v e z de " c o n d e n á v e l " ) . Mas a inapelabilidade subjetivista de todo
j u í z o estético acerca das relações h u m a n a s , c o m o de fato é p r o m o v i d a pelo culto do
esteticismo — e m o p o s i ç ã o à n o r m a ético-religiosa à qual o i n d i v í d u o — que condena
eticamente, e se sente t a m b é m condenado, p o r saber de sua própria c o n d i ç ã o de criatura
— se submete c o m o os outros, cuja a ç ã o julga no caso concreto, e cuja justificação
e c o n s e q ü ê n c i a s se r e v e l a m , e m princípio, discutíveis — , pode ser considerada pela
religiosidade u m a f o r m a e x t r e m a de falta de a m o r específica combinada c o m c o v a r d i a .
E m todo caso, a ética f r a t e r n a l c o n s e q ü e n t e , que p o r sua v e z está s e m p r e orientada
e m sentido antiestético, n ã o oferece guarida à atitude estética c o m o tal, n e m se dá
o inverso.

C o m o é natural, a d e s v a l o r i z a ç ã o religiosa da arte assim condicionada c a m i n h a


quase exatamente e m paralelo c o m a dos elementos m á g i c o s , orgiásticos e ritualísticos
da religiosidade, f a v o r e c e n d o os ascéticos e místico-espiritualistas. Isso t a m b é m se aplica
ao caráter racional e literário da f o r m a ç ã o sacerdotal e leiga que costuma ser a conse-
qüência de u m a religião livresca. Mas há dois fatores atuando sobretudo e m sentido
antiestético na p r o f e c i a autêntica. P r i m e i r o , a r e j e i ç ã o s e m p r e ó b v i a das orgias e, na
m a i o r i a das vezes, da magia. Para a a v e r s ã o dos judeus a " i m a g e n s e s í m i l e s " , original-
mente condicionada p o r motivos m á g i c o s , a profecia encontra u m a interpretação modi-
ficada espiritualista, baseando-se n o conceito de u m deus absolutamente supramundano.
E e m algum m o m e n t o torna-se e n t ã o evidente a tensão entre a o r i e n t a ç ã o centralmente
ético-religiosa da religião profética e as " o b r a s h u m a n a s " , que d e r i v a , segundo o profe-
ta, do fato de que a salvação prometida p o r estas é apenas aparente. A tensão é tanto
mais irreconciliável quanto mais se concebe c o m o s u p r a m u n d a n o e ao m e s m o tempo
sagrado o deus anunciado pela profecia.
Por outro lado, a religiosidade encontra-se constantemente diante da sensação
da inegável " d i v i n d a d e " de certas obras artísticas, e precisamente na religiosidade de
massas s e m p r e tem de r e c o r r e r diretamente a meios " a r t í s t i c o s " p a r a impressioná-las
de m o d o drástico, e inclina-se a fazer c o n c e s s õ e s às necessidades mágico-idolátricas
das massas. Isto a l é m de que u m a religiosidade de massas organizada n ã o raras vezes
está intimamente concatenada c o m a arte p o r interesses e c o n ô m i c o s , c o m o , por e x e m -
plo, no caso do c o m é r c i o de ícones dos monges bizantinos, adversários do poder impe-
r i a l cesaro-papista, que se apoiava n u m exército recrutado das províncias fronteiriças
do islã, religião naquela é p o c a rigorosamente espiritualista e portanto iconoclasta, e n -
quanto que este poder i m p e r i a l , p o r sua v e z , q u e r i a a r r u i n a r a existência desse adver-
sário mais perigoso a seus planos de d o m i n a ç ã o eclesiástica pelo corte daquela fonte
404 MAX WEBER

de r e n d a . T o d a religiosidade baseada n o estado de â n i m o , sej a ela orgiástica o u ritualista,


e t a m b é m da religiosidade do a m o r , que busca o r o m p i m e n t o místico da individualidade,
p o r mais h e t e r o g ê n e o que seja seu " s e n t i d o " ú l t i m o , conduz c o m e x t r e m a facilidade
p o r u m c a m i n h o p s i c o l ó g i c o de volta à arte: a p r i m e i r a segue particularmente e m direção
ao canto e à m ú s i c a ; a segunda, à arte plástica; a última, à lírica e à música. Todas
as e x p e r i ê n c i a s , desde a literatura e a arte da í n d i a e os sufis, abertos ao m u n d o e
s e m p r e dispostos a cantar, até as c a n ç õ e s de S ã o F r a n c i s c o e a influência imensa da
simbólica religiosa e precisamente dos estados de â n i m o misticamente condicionados,
m o s t r a m esta c o n e x ã o . Mas n ã o apenas as diversas f o r m a s da religiosidade empírica
m o s t r a m atitudes fundamentalmente diferentes e m r e l a ç ã o à arte, c o m o t a m b é m , dentro
de cada u m a delas, suas diferentes f o r m a s estruturais, suas camadas sociais e seus porta-
dores. Os profetas distinguem-se, neste aspecto, dos mistagogos e sacerdotes; os m o n -
ges, dos leigos; as religiões de massas, das seitas de virtuosos, e destas as ascéticas
pensam de f o r m a muito diferente das místicas, ao se o r i e n t a r e m , c o n f o r m e a sua nature-
za, p o r p r i n c í p i o e m m a i o r o p o s i ç ã o à arte. U m v e r d a d e i r o e q u i l í b r i o interior entre
a atitude religiosa e a artística, c o n f o r m e seu sentido ú l t i m o (subjetivamente represen-
t a d o ) torna-se n o entanto cada v e z mais difícil o n d e q u e r que tenha sido definitivamente
superado o estádio da magia o u do ritualismo p u r o .
Para n ó s o que importa é somente o significado da r e j e i ç ã o de todos os meios
genuinamente artísticos p o r parte de determinadas religiões, especificamente racionais
neste sentido, c o m o o c o r r e e m particular n o culto da sinagoga e n o cristianismo antigo,
e depois novamente no protestantismo ascético. D e p e n d e n d o do caso, ela é o sintoma
o u m e i o da intensificação da influência racionalizadora de u m a religião sobre a c o n d u ç ã o
da v i d a . A a f i r m a ç ã o , p o r parte de alguns representantes de influentes movimentos
de r e f o r m a judaicos, de que o-segundo mandamento seja até a causa decisiva do raciona-
lismo judaico parece i r longe demais. Mas n ã o há d ú v i d a n e n h u m a de que a c o n d e n a ç ã o
sistemática d e toda entrega descontraída aos v a l o r e s f o r m a d o r e s da arte — cuja eficácia
está suficientemente c o m p r o v a d a pela quantidade e qualidade da produtividade artística
nos círculos judaicos e puritanos piedosos — necessariamente atua no sentido de uma
o r g a n i z a ç ã o da v i d a intelectualista e r a c i o n a l .

§ 12. As religiões mundiais e o " m u n d o "

O caráter aberto ao mundo do judaísmo, p. 404. — A atitude dos católicos, judeus e puritanos
em relação às atividades aquisitivas, p. 407. — Religiosidade de lei e tradicionalismo no judaísmo,
p. 409 —Judeus e puritanos, p. 410. — Caráter adaptado ao mundo do islã, p. 412. — Caráter
arredio ao mundo do budismo antigo, p. 414. — As religiões mundiais e o capitalismo, p. 416.
— A rejeição do mundo do cristianismo primitivo, p. 416.

A t e r c e i r a religião "adaptada ao m u n d o " e m certo sentido e pelo menos "aberta


ao m u n d o " , e que n ã o recusa o " m u n d o " mas apenas a o r d e m social hierárquica nele
vigente, é o judaísmo e m sua f o r m a posterior ao e x í l i o , sobretudo a talmúdica, a única
que nos interessa aqui e sobre cuja p o s i ç ã o s o c i o l ó g i c a global já falamos antes. Suas
promessas, e m seu sentido subjetivo, s ã o promessas deste m u n d o , e ele somente conhe-
ce a fuga contemplativa o u ascética d o m u n d o c o m o f e n ô m e n o excepcional, semelhante
nisso à religiosidade chinesa e ao protestantismo. Distingue-se do puritanismo pela
ausência ( c o m o s e m p r e , relativa) da ascese sistemática. Pois os elementos "ascéticos"
da religiosidade cristã p r i m i t i v a n ã o se o r i g i n a m do j u d a í s m o mas encontram-se precisa-
mente nas c o n g r e g a ç õ e s cristão-pagãs da m i s s ã o de Paulo. O c u m p r i m e n t o da " l e i "
judaica é tão pouco " a s c e s e " quanto o c u m p r i m e n t o de quaisquer normas rituais ou
de tabu. A r e l a ç ã o da religiosidade c o m a r i q u e z a , por u m lado, e a vida sexual, por
ECONOMIA E SOCIEDADE 405

outro, nada tem de ascética mas, muito pelo contrário, é altamente naturalista. A r i q u e z a
é u m d o m de D e u s , a satisfação do instinto s e x u a l — de f o r m a legal, é c l a r o — é
quase inevitável, de tal m o d o que q u e m n ã o esteja casado e m determinada idade é
diretamente considerado m o r a l m e n t e suspeito pelo T a l m u d e . A c o n c e p ç ã o do matri-
m ô n i o c o m o instituição p u r a m e n t e e c o n ô m i c a , destinada a engendrar e c r i a r filhos,
n ã o é nada especificamente judaico mas u n i v e r s a l . A c o n d e n a ç ã o estrita (e p o r isso
muito eficaz dentro dos círculos piedosos) das relações sexuais n ã o - l e g a i s é compar-
tilhada pelo j u d a í s m o c o m o islã e todas as religiões proféticas, e a l é m disso c o m o
h i n d u í s m o ; os p e r í o d o s de abstinência, por motivos h i g i ê n i c o s , s ã o compartilhados
c o m a m a i o r i a das religiões ritualistas, de m o d o que n ã o se pode f a l a r de u m a signifi-
c a ç ã o específica da ascese s e x u a l . As r e g u l a m e n t a ç õ e s citadas p o r Sombart n ã o a l c a n ç a m
a casuística católica do s é c u l o X V I I e encontram analogias e m algumas outras casuísticas
de tabu. Nem o gozo desinibido da v i d a e n e m m e s m o o l u x o s ã o proibidos c o m o
tais, desde que sejam observados as p r o i b i ç õ e s e os tabus positivos da " l e i " . A injustiça
social, contrária ao espírito da l e i mosaica, que tantas vezes é praticada contra os c o r r e l i -
g i o n á r i o s judaicos na a q u i s i ç ã o da r i q u e z a , e a l é m disso a tentação de lassidão na fideli-
dade à l e i , de desprezo soberbo pelos mandamentos e portanto pelas promessas de
J e o v á , é o que faz c o m q u e , nos Profetas, nos Salmos, nos Provérbios e t a m b é m mais
tarde, a riqueza p a r e ç a ser algo que facilmente pode tornar-se u m perigo. N ã o é fácil
escapar às tentações da r i q u e z a , mas precisamente p o r isso é tanto mais meritório:
" S a l v a ç ã o para o r i c o que se encontra s e m m e r e c i m e n t o de castigo." U m a v e z que
falta a idéia de predestinação o u c o n c e p ç õ e s que atuem n o m e s m o sentido, o trabalho
infatigável e o sucesso nas atividades aquisitivas n ã o p o d e m ser avaliados c o m o sinais
da " a f i r m a ç ã o " naquele sentido p r ó p r i o , de m o d o m a i s acentuado, dos puritanos calvi-
nistas, mas e m certo g r a u t a m b é m de todo protestantismo ascético ( c o m o mostra, por
exemplo, a o b s e r v a ç ã o de J o h n Wesley a respeito). N ã o obstante, a idéia de v e r na
atividade aquisitiva bem-sucedida u m sinal da vontade f a v o r á v e l de D e u s está n ã o apenas
tão p r ó x i m a da religiosidade judaica quanto da religiosidade chinesa, da budista dos
leigos e, e m g e r a l , de toda religiosidade n ã o - n e g a d o r a do m u n d o , c o m o até muito
mais p r ó x i m a , p o r tratar-se de u m a religião que tinha diante de si as promessas muito
específicas de u m deus s u p r a m u n d a n o , e m c o n e x ã o c o m sinais muito visíveis de sua
ira contra o p o v o que a f i n a l ele m e s m o elegeu. É c l a r o que as aquisições conseguidas
podiam e d e v i a m de fato ser interpretadas c o m o sintomas de agrado pessoal a D e u s .
E isso realmente o c o r r e u seguidamente. Mas, p a r a o j u d e u (piedoso) dedicado a ativida-
des aquisitivas, a situação e r a fundamentalmente diferente da do puritano, e essa dife-
rença n ã o ficou s e m c o n s e q ü ê n c i a s práticas p a r a a importância e c o n ô m i c o - h i s t ó r i c a
do judaísmo. E x a m i n a r e m o s p r i m e i r o e m que consistia, mais o u menos, essa signi-
ficação.

Na p o l ê m i c a contra o engenhoso l i v r o de Sombart n ã o se d e v e r i a ter contestado


seriamente o fato de que o j u d a í s m o participou intensamente n o desenvolvimento do
sistema e c o n ô m i c o capitalista da Idade Moderna. S ó que, e m m i n h a o p i n i ã o , esta tese
de Sombart necessita m a i o r precisão. Q u a i s são as contribuições e c o n ô m i c a s específicas
do j u d a í s m o na Idade M é d i a e na Moderna? E m p r é s t i m o s , desde a casa de penhores
até o financiamento de grandes Estados, determinados tipos de c o m é r c i o , destacando-se
fortemente o ambulante e o de miudezas e as mercearias específicas d e r e g i õ e s r u r a i s ,
certas partes do c o m é r c i o atacadista e sobretudo do de títulos e v a l o r e s , ambos especial-
mente e m f o r m a d e c o m é r c i o bolsista, c â m b i o d e d i n h e i r o e os n e g ó c i o s de transferência
geralmente ligados a este, fornecimentos ao Estado, financiamento de guerras e, e m
g r a u preeminente, de f u n d a ç õ e s de c o l ô n i a s , a r r e n d a m e n t o de impostos (naturalmente,
exceto o arrendamento d e impostos c o n d e n á v e i s , c o m o aqueles feitos aos r o m a n o s )
406 MAX WEBER

n e g ó c i o s de crédito e b a n c á r i o s , e financiamento de emissões de todo tipo. Destes,


são próprias d o capitalismo ocidental moderno ( e m o p o s i ç ã o ao da Antiguidade, da
Idade M é d i a e da Ásia oriental d o passado) determinadas formas de n e g ó c i o s (altamente
importantes), tanto jurídicas quanto e c o n ô m i c a s . A s s i m , do lado jurídico: as formas
de r e l a ç ã o associativa capitalistas e as baseadas e m títulos e valores. Mas estas n ã o
s ã o de p r o v e n i ê n c i a especificamente judaica. Na medida e m que tenham sido introdu-
zidas n o Ocidente de m o d o e s p e c í f i c o pelos judeus, talvez s e j a m de o r i g e m orientai
g e r a l (babilónica) e, sobre esta base, de o r i g e m helenística e bizantina, e somente através
deste m e i o t ê m p r o c e d ê n c i a judaica, a l é m de s e r e m geralmente c o m u n s aos judeus
e árabes. Por outra p a n e , p o r é m , s ã o criações ocidental-medievais, e m parte até c o m
componentes especificamente g e r m â n i c o s . P r o v a r isto e m seus detalhes levaria longe
demais. Mas, p o r e x e m p l o , do ponto de vista e c o n ô m i c o , a bolsa c o m o " m e r c a d o dos
c o m e r c i a n t e s " n ã o f o i criada por judeus mas p o r cristãos, e o m o d o especial c o m o
as f o r m a s jurídicas medievais f o r a m adaptadas às finalidades empresariais racionais
— c o m o , p o r e x e m p l o , c o m a instituição de comanditas, maones, companhias privile-
giadas de todo tipo e, p o r f i m , sociedades por a ç õ e s — n ã o dependeu de u m a influência
especificamente judaica, por mais que posteriormente os judeus tenham participado
de sua f u n d a ç ã o . Por f i m , os princípios do atendimento à necessidade pública e privada
de crédito, específicos da Idade Moderna, f o r a m desenvolvidos p r i m e i r o e m g e r m e
sobre o solo das cidades medievais, adaptando-se m a i s tarde economicamente sua f o r m a
jurídica m e d i e v a l nada judaica às necessidades dos Estados m o d e r n o s e dos outros
solicitantes de crédito. Mas, sobretudo, falta na certamente grande lista das atividades
e c o n ô m i c a s dos judeus uma. s e ç ã o — n ã o por inteiro, mas relativamente e n u m g r a u
que c h a m a a a t e n ç ã o — , a saber, aquela que é precisamente própria do capitalismo
m o d e r n o : a o r g a n i z a ç ã o do trabalho artesanal e m indústrias caseiras, manufaturas e
fábricas. C o m o se e x p l i c a o fato de que, e m face das grandes massas de proletários
nos guetos, e m tempos nos quais p a r a cada f u n d a ç ã o industrial se o b t i n h a m dos príncipes
patentes e privilégios (pelo pagamento de quantias adequadas) e, a l é m disso, se dispunha
de suficientes campos de atividade 7/Vres de v i n c u l a ç õ e s corporativas p a r a novas criações
industriais — c o m o se explica o fato de que, e m face de tudo isso, n ã o tenha ocorrido
a n e n h u m j u d e u devoto criar u m a indústria c o m os círculos de trabalhadores judaicos
devotos n o gueto da m e s m a m a n e i r a c o m o o f i z e r a m tantos empresários puritanos
devotos c o m devotos trabalhadores e artesãos cristãos? O u e n t ã o o fato de que, mesmo
c o m base e m amplas camadas de artesãos judaicos v i v e n d o na miséria, até o c o m e ç o
de nossa é p o c a n ã o se tenha f o r m a d o n e n h u m a significativa burguesia especificamente
m o d e r n a , isto é, industrial, e x p l o r a n d o aquele trabalho judaico e m indústrias caseiras?
F o r n e c i m e n t o ao Estado, a r r e n d a m e n t o de impostos, financiamento de guerras, colônias
e especialmente plantações, c o m é r c i o i n t e r m e d i á r i o , usura sobre e m p r é s t i m o s , todos
eles têm existido quase n o m u n d o inteiro desde m i l ê n i o s c o m o f o r m a s de valorização
capitalistas da propriedade. E precisamente nestas atividades, conhecidas e m quase
todas as é p o c a s e todos os países, particularmente na Antiguidade, participam os judeus,
e isto nas f o r m a s jurídicas e empresariais especificamente modernas criadas já na Idade
Média, mas n ã o pelos judeus. A o contrário, eles estão quase inteiramente ausentes
( e m termos relativos) do que é especificamente n o v o do capitalismo m o d e r n o , isto
é, a o r g a n i z a ç ã o racional do trabalho, sobretudo d o artesanal, e m " e m p r e s a s " indus-
triais. E sobretudo aquela atitude e c o n ô m i c a que e r a e ainda é típica de todo c o m é r c i o
g e n u í n o , da Antiguidade, da Ásia oriental, da í n d i a , da Idade M é d i a , dos pequenos
comerciantes e dos grandes prestamistas: a idéia e a vontade de e x p l o r a r implaca-
velmente toda oportunidade de l u c r o — " d e navegar pelo l u c r o através do inferno,
m e s m o que se q u e i m e m as v e l a s " — , tal atitude é t a m b é m fortemente própria dos
ECONOMIA E SOCIEDADE 407

judeus. Mas precisamente ela está muito longe de ser algo e s p e c í f i c o do capitalismo
moderno, e m c o m p a r a ç ã o c o m outras é p o c a s capitalistas. Muito ao contrário. N e m
o especificamente n o v o do m o d e r n o sistema e c o n ô m i c o n e m o especificamente n o v o
da m o d e r n a atitude e c o n ô m i c a s ã o especificamente judaicos. As razões últimas funda-
mentais disto estão de n o v o e m c o n e x ã o c o m o caráter especial do p o v o - p á r i a dos
judeus e com sua religiosidade. E m p r i m e i r o lugar, dificuldades puramente externas
i m p e d e m os judeus de participar na o r g a n i z a ç ã o do trabalho artesanal: a precária situa-
ç ã o de fato e de direito dos judeus, que, s i m , suporta o c o m é r c i o , sobretudo o m o n e t á r i o ,
mas n ã o u m a empresa industrial racional permanente c o m capital f i x o . Mas há t a m b é m
a situação interna, ética. O s judeus, c o m o p o v o - p á r i a , c o n s e r v a r a m a m o r a l dupla que
caracteriza as relações e c o n ô m i c a s primitivas de toda comunidade. O que é c o n d e n á v e l
" e n t r e i r m ã o s " , é permitido contra estranhos. E m r e l a ç ã o aos outros judeus, a ética
judaica é sem d ú v i d a tradicionalista, partindo da idéia do " s u s t e n t o " , e na medida
e m que os rabinos f i z e r a m concessões — o que c o m toda justeza aponta Sombart — ,
e isto t a m b é m c o m respeito ao procedimento c o m e r c i a l entre judeus, trata-se somente
de concessões à lassidão; q u e m r e c o r r e u a estas ficou atrás das exigências mais altas
da ética c o m e r c i a l judaica, e m v e z de " a f i r m a r - s e " . A área do procedimento c o m e r c i a l
c o m estranhos, quanto às coisas c o n d e n á v e i s entre judeus, é na m a i o r parte u m a esfera
eticamente indiferente. Essa ética c o m e r c i a l n ã o apenas é a p r i m i t i v a , c o m u m a todos
os povos no m u n d o inteiro, mas t a m b é m o fato de ter sido conservada é simplesmente
ó b v i o para o j u d e u , a q u e m o estranho, já na Antiguidade, se apresentou quase p o r
toda parte c o m o " i n i m i g o " . Todas as b e m conhecidas advertências dos rabinos, de
mostrar b o a - f é t a m b é m e precisamente c o m estranhos, naturalmente e m nada podiam
m u d a r a impressão produzida pelo fato de que a lei proibia aos judeus cobrar juros,
enquanto o p e r m i t i a aos estranhos, e que (o que ressalta c o m todo direito S o m b a r t )
o grau da legalidade prescrita (por e x e m p l o , quanto ao aproveitamento de erros de
outras pessoas) e r a m e n o r p a r a o estranho, o u seja, o inimigo. E n ã o é necessário
demonstrar (pois o contrário seria simplesmente i n c o m p r e e n s í v e l ) a circunstância de
que, e m v i r t u d e da situação de p o v o - p á r i a , c r i a d a , c o m o v i m o s , pelas promessas de
J e o v á , e do desprezo permanente daí resultante da parte dos estranhos, u m p o v o n ã o
podia reagir de outra m a n e i r a s e n ã o conservando c o m os outros u m a m o r a l c o m e r c i a l
diferente da observada c o m seus p r ó p r i o s m e m b r o s .

A situação recíproca de católicos, judeus e puritanos na aquisição e c o n ô m i c a pode,


portanto, ser resumida mais o u m e n o s assim: o católico ortodoxo movia-se nas atividades
aquisitivas s e m p r e dentro da esfera o u à beira de u m comportamento que e m parte
infringia as constituições papais e somente c o m o c o n d i ç ã o de fato rebus sic stantibus,
e r a ignorado n o c o n f e s s i o n á r i o o u permitido por uma m o r a l lassa ( p r o b a b i l i s t a ) sendo
e m parte diretamente duvidoso, e m parte pelo menos n ã o positivamente a g r a d á v e l
a D e u s ; o judeu devoto encontrava-se, nesta área, inevitavelmente na situação de fazer
coisas que entre os de s e u p o v o e r a m diretamente contrárias à l e i , ou duvidosas do
ponto de vista desta l e i , o u apenas admissíveis graças a u m a interpretação lassa, e
que somente e r a m permitidas c o m estranhos, mas nunca t i v e r a m u m v a l o r ético positivo;
seu comportamento ético somente podia, por corresponder à m é d i a do habitual e n ã o
ser contrário à lei, ser considerado permitido por Deus e indiferente e m sentido ético.
É precisamente nisto que se baseia o que há de realmente certo nas a f i r m a ç õ e s sobre
o baixo p a d r ã o de legalidade dos judeus. O fato de Deus coroar alguma coisa c o m
o êxito certamente podia ser u m sinal de que nesta área n ã o f o r a feito nada diretamente
proibido e de que noutras áreas h a v i a m sido observados os mandamentos divinos;
mas n ã o era tão fácil para o judeu a f i r m a r - s e eticamente precisamente pela a ç ã o aquisi-
tiva especificamente m o d e r n a , na área e c o n ô m i c a . E e r a justamente esse o caso do
408 MAX WEBER

puritano, que nada fazia que lembrasse u m a interpretação lassa o u u m a m o r a l d u p l a ,


o u que constituísse algo eticamente indiferente e c o n d e n á v e l do ponto de vista da esfera
dos v a l o r e s éticos; mas, ao contrário, ele agia c o m a consciência mais l i m p a possível,
precisamente p o r q u e , ao agir legal e objetivamente, objetivava na " e m p r e s a " a organi-
z a ç ã o racional de sua c o n d u ç ã o da v i d a global, mas legitimando-se apenas na medida
e m que e pelo fato de que estava totalmente c o n f i r m a d a a incontestabilidade absoluta,
não-relativa, de seu comportamento. Nenhum puritano realmente devoto — e é isto
que importa — jamais poderia ter considerado u m ganho a g r a d á v e l a Deus o dinheiro
obtido p o r usura c o m penhores, por aproveitamento do e r r o da parte contrária (o
que era permitido aos judeus c o m os estranhos), por pechincha e regateio, por partici-
p a ç ã o e m ganhos roubados, políticos ou coloniais. À certeza c o m p r o v a d a do p r e ç o
f i x o e da conduta c o m e r c i a l absolutamente objetiva, desprezando toda c o b i ç a , incondi-
cionalmente legal p a r a c o m todo m u n d o , atribuíam os quacres e batistas o fato de
que e r a m precisamente os ateus que c o m p r a v a m deles, e n ã o de seus iguais, e que
a eles e n ã o a seus iguais c o n f i a v a m seu d i n h e i r o e m d e p ó s i t o ou comandita, fazendo-os
ricos; e e r a justamente essa qualidade que os a f i r m a v a diante de seu Deus. O direito
e m r e l a ç ã o aos estranhos, na prática o direito-pária, ao c o n t r á r i o , apesar de todas
as r e s e r v a s , permitia a m a n i f e s t a ç ã o c o m os n ã o - j u d e u s precisamente daquela menta-
lidade que os puritanos a b o m i n a v a m c o m o espírito c o b i ç o s o de m e r c e e i r o , mas que
para os judeus devotos era c o m p a t í v e l c o m a legalidade mais rigorosa, c o m o pleno
c u m p r i m e n t o da l e i , c o m a profundidade da própria religiosidade, c o m o amor mais
disposto a sacrifícios e m relação aos m e m b r o s da família e da c o n g r e g a ç ã o e c o m
misericórdia e c l e m ê n c i a p a r a c o m toda criatura de Deus. Precisamente na prática da
v i d a , a esfera da a q u i s i ç ã o lícita no d o m í n i o do direito relativo aos estranhos nunca
foi considerada pela d e v o ç ã o judaica c o m o aquela e m que se c o n f i r m a a autenticidade
da o b e d i ê n c i a aos mandamentos divinos. U m judeu devoto, n o entanto, nunca mediu
o nível interno de sua ética por aquilo que julgava permitido nesta área. Mas, assim
c o m o para o confuciano o v e r d a d e i r o ideal da vida é ogentleman universalmente desen-
v o l v i d o e m sentido c e r i m o n i a l e estético, c o m cultura literária e que passa a vida inteira
estudando os clássicos, para o j u d e u esse ideal é o perito na casuística da lei, o escriba,
o " i n t e l e c t u a l " que, às custas de seu n e g ó c i o , que muitas vezes deixa aos cuidados
da m u l h e r , se aprofunda cada v e z mais nos estudos dos textos sagrados e dos comen-
tários.

É precisamente contra este traço intelectualista, de escriba, do g e n u í n o judaísmo


tardio que se revolta Jesus. N ã o são os instintos " p r o l e t á r i o s " que as interpretações
q u e r e m lhe atribuir, mas é a natureza da crença e o nível do c u m p r i m e n t o da lei dos
moradores das pequenas cidades e dos artesãos r u r a i s , e m o p o s i ç ã o aos virtuosos do
conhecimento da l e i , que constitui, nesse aspecto, seu contraste com as camadas cres-
cidas no solo da polis de J e r u s a l é m , que perguntam, c o m o todo c i d a d ã o das grandes
cidades da Antiguidade: " O que pode v i r de b o m para nós de N a z a r é ? " . A maneira
de c u m p r i r a lei e o conhecimento que tem dela é aquela m é d i a efetivamente realizada
pelo h o m e m que trabalha praticamente e que n e m no sabá pode d e i x a r sua ovelha
caída no p o ç o . A o contrário, o conhecimento da l e i , o b r i g a t ó r i o para o judeu verdadei-
ramente devoto, já e m sua f o r m a de educar a juventude, ultrapassa de longe o conheci-
mento que o puritano tem da Bíblia, quantitativa e qualitativamente, e, no melhor
dos casos, s ó pode ser comparado ao das leis rituais dos indianos e persas, s ó que
e m p r o p o r ç ã o muito m a i o r inclui, a l é m das n o r m a s puramente rituais e de tabu, também
mandamentos éticos. O comportamento e c o n ô m i c o dos judeus movia-se simplesmente
no sentido da m e n o r resistência que lhes o f e r e c i a m essas n o r m a s , e isto significava,
na prática, que o "instinto de a q u i s i ç ã o " , existente e m todas as camadas e nações,
ECONOMIA E SOCIEDADE 409

mas atuando de m o d o distinto, se dirigia ao c o m é r c i o c o m estranhos, isto é, " i n i m i g o s " .


O judeu devoto, já nos tempos de Josias e muito mais ainda na é p o c a posterior ao
exílio, é u m h o m e m u r b a n o . T o d a a l e i está talhada p o r essa circunstância. U m a v e z
que e r a necessário ter u m j u d e u c o m o a ç o u g u e i r o , o j u d e u ortodoxo n ã o v i v i a isolado,
mas, se possível, e m comunidades (ainda hoje u m a característica específica da o r t o d o x i a ,
e m o p o s i ç ã o aos judeus r e f o r m a d o s , p o r e x e m p l o , nos Estados Unidos). O ano sabático
— n a c o n c e p ç ã o atual das prescrições, s e m d ú v i d a , u m a c r i a ç ã o de escribas urbanos
da é p o c a posterior ao e x í l i o — t o r n a v a impossível, onde v i g o r a v a , a agricultura intensiva
racional: ainda e m nosso t e m p o 1 , os rabinos a l e m ã e s q u e r i a m i m p o r sua aplicação
à c o l o n i z a ç ã o sionista da Palestina que teria assim fracassado, e na é p o c a dos fariseus
u m " h o m e m d o c a m p o " significava o m e s m o que u m judeu de segunda categoria,
que n ã o o b s e r v a v a plenamente a lei e n e m podia fazê-lo. A participação nos banquetes
das c o r p o r a ç õ e s e, e m g e r a l , toda comensalidade c o m n ã o - j u d e u s , que, tanto na Antigui-
dade quanto na Idade M é d i a e r a a base indispensável de toda i n c o r p o r a ç ã o ao m e i o
social, era proibida pela lei. Por outro lado, o costume do " d o t e da n o i v a " , c o m u m
a todo o O r i e n t e e baseado originalmente na e x c l u s ã o das filhas da h e r a n ç a , favorecia
(e f a v o r e c e ) a tendência de estabelecer-se, n o momento do casamento, c o m o m e r c e e i r o
(isto se faz sentir, e m p a n e , ainda hoje na " c o n s c i ê n c i a de classe" pouco desenvolvida
dos empregados de c o m é r c i o judaicos). E m quase todas as outras atividades, o j u d e u ,
b e m c o m o o h i n d u devoto, se v ê a cada passo limitado p o r c o n s i d e r a ç õ e s da l e i . O
v e r d a d e i r o estudo da lei e r a m a i s c o m p a t í v e l — c o m o ressalta c o m razão G u t t m a n n
— c o m os n e g ó c i o s de prestamista, que e x i g e m relativamente p o u c o trabalho c o n t í n u o .
A a ç ã o da l e i e a f o r m a ç ã o legal intelectual constituem a " o r g a n i z a ç ã o da v i d a " do
j u d e u e seu " r a c i o n a l i s m o " . " N u n c a m u d e o h o m e m seus c o s t u m e s " , é u m p r i n c í p i o
do T a l m u d e . F o i somente na área das transações e c o n ô m i c a s c o m estranhos que a tradi-
ç ã o d e i x o u o v á c u o do eticamente ( r e l a t i v a m e n t e ) i r r e l e v a n t e , e e m mais n e n h u m a .
A tradição e sua casuística i m p e r a m e m toda a área do relevante diante de D e u s , e
n ã o a a ç ã o r a c i o n a i , m e t ó d i c a , orientada independentemente p o r u m f i m , s e m c o n d i ç õ e s
prévias e partindo de u m " d i r e i t o n a t u r a l " . O efeito " r a c i o n a l i z a d o / ' d o m e d o da
lei é extremamente penetrante, mas totalmente indireto. " V i g i l a n t e " e s e m p r e cons-
ciente, s e m p r e controlado e equilibrado é t a m b é m o confuciano, o puritano, o monge
budista e qualquer outro, o x e q u e á r a b e , o senador r o m a n o . O que d i f e r e é o motivo
e o sentido do autodominio. O a u t o d o m í n i o vigilante do puritano resulta da necessidade
de submeter tudo que tem caráter de criatura à o r d e m e ao m é t o d o r a c i o n a l , n o interesse
de sua própria certeza de salvação; o do confuciano d e r i v a do desprezo da irraciona-
lidade plebéia p o r parte do h o m e m culto e m sentido clássico, educado na decência
e na dignidade, e a do j u d e u devoto, no sentido tradicional e m a n a do cismar sobre
a lei que c o n t r i b u i u p a r a desenvolver seu intelecto e da necessidade de concentrar-se
n o c u m p r i m e n t o exato dela. Mas esta situação ganhou s e u matiz e sua eficácia específicos
peia consciência do j u d e u devoto de que somente ele e s e u p o v o t ê m esta l e i e por
isso são perseguidos e difamados por todo o m u n d o — l e i que, n ã o obstante, é vinculante
— e de que algum d i a , por u m ato repentino, cujo m o m e n t o n i n g u é m pode saber
n e m contribuir p a r a sua a c e l e r a ç ã o , D e u s inverterá a o r d e m hierárquica deste m u n d o
para f o r m a r u m r e i n o messiânico p a r a aqueles que p e r m a n e c e r a m fiéis a sua lei. E l e
sabe que já i n ú m e r a s g e r a ç õ e s t ê m esperado e continuam a esperar, a despeito de
todo escárnio, e à s e n s a ç ã o de u m a certa " s u p e r v i g i l â n c i a " que dai resulta une-se p a r a
ele a necessidade, aumentada pela perspectiva de ter de continuar esperando e m v ã o
p o r muito tempo, de alimentar o sentimento de dignidade própria a partir da l e i e

1 Antes da Primeira Guerra Mundial. (Nota do organizador.)


410 MAX WEBER

de seu c u m p r i m e n t o minucioso. Por f i m , mas n ã o menos importante, a necessidade


de estar s e m p r e cauteloso e n u n c a d a r l i v r e c u r s o a sua p a i x ã o e m face de inimigos
t ã o f o r m i d á v e i s c o m o desapiedados, e m c o n e x ã o c o m o efeito já mencionado do " r e s -
s e n t i m e n t o " , c o m o m a r c a inevitável d e r i v a d a das promessas de J e o v á e dos destinos
deste povo, inauditos e m toda a história. S ã o estas as circunstâncias e m que se funda-
menta substancialmente o " r a c i o n a l i s m o " judaico. Mas n ã o se trata de " a s c e t i s m o " .
H á traços " a s c é t i c o s " n o j u d a í s m o , m a s eles n ã o s ã o , e m s i , o c e n t r a l , mas e m parte
apenas c o n s e q ü ê n c i a s da lei e e m parte procedentes da p r o b l e m á t i c a peculiar da piedade
judaica; e m todo caso, s ã o t ã o secundários c o m o tudo que o j u d a í s m o possui de mística
g e n u í n a . Sobre esta última n ã o precisamos f a l a r a q u i , já que n e m suas formas cabalísticas
n e m as hassídicas n e m outras o f e r e c e r a m motivos típicos p a r a a atitude prática dos
judeus e m r e l a ç ã o à economia, p o r mais importantes que s e j a m , enquanto sintomáticos,
os dois produtos religiosos mencionados. O distanciamento " a s c é t i c o " de toda e x p r e s s ã o
artística tem seu fundamento, a l é m do segundo mandamento — que de fato impediu
a m a n i f e s t a ç ã o e m f o r m a s artísticas da angelologia, bastante desenvolvida naquele tem-
po — , sobretudo n o caráter típico do culto da sinagoga, que se ocupa apenas c o m
a doutrina e os mandamentos (na diáspora, já muito antes da destruição d o culto do
templo). J á a p r o f e c i a depreciava precisamente os elementos plásticos do culto e e l i m i -
nava quase totalmente os de natureza orgiástica. O s r o m a n o s e puritanos seguiam,
quanto ao efeito, caminhos semelhantes (mas p o r motivos muito diferentes). A escultura,
a p i n t u r a e o d r a m a c a r e c i a m , portanto, dos pontos de contato religiosos n o r m a i s por
toda parte, e o forte recuo de todo o l i r i s m o ( m u n d a n o ) e especialmente da s u b l i m a ç ã o
erótica do s e x u a l , e m o p o s i ç ã o ao apogeu da sensualidade ainda muito c r u a r e p r e -
sentado pelo Cântico dos Cânticos, tem sua causa n o naturalismo c o m que a ética tratava
esta esfera. C o m respeito à ausência de todos estes elementos, e m g e r a l , pode-se dizer
que a espera calada, fiel e interrogativa de u m a salvação d o i n f e r n o desta existência
p o r u m p o v o eleito p o r D e u s se v i a continuamente remetida à l e i e às promessas antigas
e que, e m face disso, m e s m o que n ã o existissem na t r a d i ç ã o o b s e r v a ç õ e s correspon-
dentes dos rabinos, toda entrega desinibida à g l o r i f i c a ç ã o artística e poética de u m
m u n d o que, quanto à finalidade de sua c r i a ç ã o , constituiu às vezes u m p r o b l e m a já
para os c o n t e m p o r â n e o s do r e i n o m a c a b e u tardio, d e v i a de fato parecer u m a coisa
extremanente fútil e desviadora dos caminhos e fins do Senhor. O que falta é precisa-
mente aquilo que dá ao "ascetismo i n t r a m u n d a n o " sua característica decisiva: a relação
unitária c o m o " m u n d o " sob o aspecto da certeza da s a l v a ç ã o , da certitudo saiutis,
sendo esta o centro do qual tudo se alimenta. T a m b é m aqui o caráter-pária da religio-
sidade e as promessas de J e o v á s ã o a causa decisiva última. T r a t a r o m u n d o , n o sentido
do ascetismo i n t r a m u n d a n o — este m u n d o agora t ã o fundamentalmente e r r a d o , devido
aos pecados de I s r a e l , mas que pode ser restaurado p o r u m l i v r e m i l a g r e d e D e u s ,
que os h o m ens n ã o podem f o r ç a r n e m acelerar — , c o m o uma " t a r e f a " e c o m o c e n á r i o
de u m a " p r o f i s s ã o " religiosa que pretende submeter este m u n d o , e precisamente tam-
b é m o pecado nele, às n o r m a s racionais da vontade d i v i n a r e v e l a d a , p a r a a glória
de D e u s e c o m o sinal de ser u m eleito — tal p o s i ç ã o calvinista e r a naturalmente a
última que p o d e r i a ter chegado à mente de u m j u d e u devoto n o sentido tradicional.
Este d e v i a s u p e r a r u m destino interno muito m a i s d u r o d o que o d o puritano, assegurado
de s e r " e l e i t o " p a r a o a l é m . O i n d i v í d u o precisa c o n f o r m a r - s e c o m a situação d o mundo
r e a l — c o n t r á r i a às promessas — , na medida e m que D e u s a t o l e r a , e dar-se p o r satisfeito
q u a n d o este lhe dispensa a g r a ç a e o ê x i t o nas r e l a ç õ e s c o m os inimigos de seu povo,
os quais ele, se q u e r corresponder às exigências de seus rabinos, enfrenta legal e calcula-
damente, s e m a m o r e s e m ó d i o , d e m o d o " o b j e t i v o " , tratando-os c o m o D e u s ordenou.
É e r r a d o dizer que a religião tenha exigido o c u m p r i m e n t o apenas externo da lei.
ECONOMIA E SOCIEDADE 411

Isto, naturalmente, o c o r r i a e m m é d i a . Mas o postulado encontrava-se n u m nível mais


alto. E m todo caso, p o r é m , é a a ç ã o isolada c o m o tal a que é comparada a outras,
t a m b é m isoladas, e levada e m conta. E ainda que a c o n c e p ç ã o da r e l a ç ã o c o m D e u s
c o m o u m a conta corrente (que, aliás, se encontra t a m b é m ocasionalmente entre os
puritanos) das obras isoladas, boas e m á s , c o m resultado total incerto, n ã o fosse a
oficialmente reinante, a o r i e n t a ç ã o central metódico-ascética da c o n d u ç ã o da v i d a , que
carateriza o puritanismo, é n o j u d a í s m o muito menos acentuada d o que naquele, e
isto — prescindindo-se das razoes já mencionadas — , p o r u m lado, e m c o n s e q ü ê n c i a
da m o r a l dupla. Por outro lado, p o r é m , porque nele, b e m c o m o n o catolicismo, cada
ato e m conformidade c o m a lei constitui de fato u m a p r o d u ç ã o de possibilidades próprias
de salvação, m e s m o que a graça de D e u s tenha de compensar (tanto neste quanto
n a q u e l e ) a insuficiência h u m a n a — que, aliás, n ã o e r a de m o d o a l g u m universalmente
reconhecida (como n o catolicismo). A g r a ç a institucional eclesiástica, desde a d e c a d ê n c i a
da antiga confissão palestina (teschuvâ), e r a muito menos desenvolvida do que n o catoli-
cismo, e essa auto-responsabilidade e ausência de u m intermediário tinha de tornar
de fato a c o n d u ç ã o da v i d a judaica muito m a i s m e t ó d i c a e m si m e s m a e sistemática
do que e r a , e m m é d i a , a do católico. Mas a falta dos motivos ascéticos especificamente
puritanos e o tradicionalismo e m p r i n c i p i o ininterrupto da m o r a l interna judaica p u n h a m
t a m b é m nesta área u m limite à m e t o d i z a ç ã o . H á , portanto, numerosos motivos isolados
que atuam e m sentido ascético, s ó que falta precisamente o elo religioso unificador
do motivo fundamental ascético. Pois a f o r m a m a i s elevada da d e v o ç ã o d o j u d e u situa-se
do lado d o "estado de â n i m o " e n ã o do da a ç ã o : c o m o poderia ele sentir-se, neste
m u n d o fundamentalmente e r r a d o e — c o m o sabe ele desde o tempo de A d r i a n o —
inalterável mediante a a ç ã o h u m a n a e hostil a ele, executor da vontade de D e u s , estabele-
cendo n o m u n d o u m a n o v a o r d e m racional? Isto pode fazer o livre-pensador judaico,
mas nunca o j u d e u devoto. Por isso, a l é m de sentir o parentesco interno c o m o j u d a í s m o ,
o puritanismo sentiu t a m b é m seus limites. O parentesco, apesar de s e r e m fundamen-
talmente diversas as c o n d i ç õ e s , é e m p r i n c í p i o o m e s m o que já n o cristianismo dos
adeptos d e Paulo. O s judeus s e m p r e e r a m p a r a os puritanos, assim c o m o p a r a os cristãos
primitivos, o p o v o u m a v e z eleito por Deus. O feito de Paulo, que t r o u x e c o n s e q ü ê n c i a s
inauditas p a r a o cristianismo p r i m i t i v o , consistiu, p o r u m lado, e m fazer do l i v r o sagrado
dos judeus u m l i v r o sagrado dos cristãos — naquele tempo o ú n i c o — , pondo assim
u m limite rigoroso ( c o m o destacou particularmente W e r n l e ) a todas as irrupções do
intelectualismo h e l é n i c o (gnóstico) e, por outro, aqui e a l i , — apoiado n u m a dialética
que somente u m rabino podia possuir — e m e x t i r p a r da " l e i " precisamente o específico
e especificamente atuante no j u d a í s m o , isto é, as n o r m a s tabus e as particulares pro-
messas messiânicas, t ã o terríveis e m s e u efeito, que s ã o o fundamento da v i n c u l a ç ã o
de toda a dignidade religiosa d o j u d e u à p o s i ç ã o de pária. E o fez p o r considerá-las,
e m parte, ab-rogadas pelo nascimento de Cristo e, e m parte, cumpridas, c o m o argu-
mento triunfal, altamente impressionante d e que precisamente os patriarcas de Israel
tenham v i v i d o , antes da p r o c l a m a ç ã o daquelas n o r m a s , de acordo c o m a vontade d i v i n a
e, e m v i r t u d e de sua f é que e r a a garantia da e l e i ç ã o p o r Deus, tenham a l c a n ç a d o
a b e m - a v e n t u r a n ç a . O e n o r m e í m p e t o proporcionado pela consciência de ter escapado
ao destino de pária, de poder ser u m heleno p a r a os helenos do m e s m o m o d o que
u m judeu para os judeus, e de tê-lo conseguido n ã o pelo c a m i n h o d o esclarecimento
racional, adverso à f é mas dentro do p a r a d o x o desta m e s m a f é — esta sensação apaixo-
nada de liberdade é a f o r ç a m o t r i z d o trabalho i n c o m p a r á v e l da m i s s ã o de Paulo. E l e
ficou realmente l i v r e das promessas d o deus de q u e m seu salvador se sentiu abandonado
na cruz. O ó d i o terrível, suficientemente documentado, precisamente dos judeus da
diáspora contra este h o m e m , a v a c i l a ç ã o e o e m b a r a ç o da c o n g r e g a ç ã o cristã p r i m i t i v a ,
412 MAX WEBER

a tentativa de J a c ó e dos " a p ó s t o l o s estilitas" de estabelecer, eles mesmos, segundo


a legalidade laica de Jesus, u m " m í n i m o é t i c o " de legalidade c o m o compromisso g e r a l
e, p o r f i m , a hostilidade aberta dos judeus-cristãos, e r a m os f e n ô m e n o s concomitantes
de tal r o m p i m e n t o das cadeias decisivas determinantes da posição-pária dos judeus.
E m cada linha escrita p o r Paulo sentimos o j ú b i l o envolvente d e u m h o m e m que foi
resgatado, c o m o sangue do Messias, da e s c r a v i d ã o s e m e s p e r a n ç a daquela " l e i " p a r a
a liberdade. A possibilidade de u m a m i s s ã o cristã u n i v e r s a l f o i a c o n s e q ü ê n c i a . A s s i m
t a m b é m a s s u m i r a m os puritanos n ã o a l e i talmúdica n e m a l e i ritual especificamente
judaica do Antigo Testamento, mas as outras m a n i f e s t a ç õ e s da vontade de D e u s , docu-
mentadas no Antigo Testamento — incertos sobre o g r a u de sua validade atual — ,
muitas vezes e m todos os detalhes e e m c o n e x ã o c o m a n o r m a s d o N o v o Testamento.
N ã o os judeus ortodoxos devotos mas os r e f o r m a d o s que escaparam à ortodoxia —
ainda hoje, p o r e x e m p l o , alunos da E d u c a t i o n a l A l l i a n c e — , e mais ainda os judeus
batizados, f o r a m absorvidos precisamente pelos povos puritanos, e m especial os norte-a-
mericanos, n o passado e ainda hoje, apesar de tudo, c o m facilidade relativa, até desapa-
r e c e r e m totalmente as d i f e r e n ç a s , enquanto que, na A l e m a n h a , p o r e x e m p l o , p e r m a n e -
c e r a m sendo durante muitas g e r a ç õ e s nada m a i s d o que " j u d e u s assimilados". T a m b é m
nesta circunstância manifesta-se o " p a r e n t e s c o " d o p u r i t a n i s m o c o m o j u d a í s m o . Mas
é precisamente o que de n ã o - j u d a i c o existe n o p u r i t a n i s m o que o capacitou tanto p a r a
s e u p a p e l n o desenvolvimento da mentalidade e c o n ô m i c a quanto p a r a essas a b s o r ç õ e s
de prosélitos judaicos, o que n ã o conseguiram os povos de outra o r i e n t a ç ã o religiosa.
T a m b é m "adaptado ao m u n d o " , mas n u m sentido totalmente diferente, o islã
é o f r u t o tardio, fortemente condicionado, entre outras coisas, p o r motivos do Antigo
Testamento e judaico-cristãos, do m o n o t e í s m o d o O r i e n t e P r ó x i m o . A religiosidade
escatológica de M a o m é , que e m seu p r i m e i r o p e r í o d o , e m Meca, ainda se apresentava
n u m círculo pietista u r b a n o , fechado ao m u n d o , transformou-se já e m Medina e depois
n o desenvolvimento da comunidade islâmica p r i m i t i v a , n u m a religiosidade de guer-
r e i r o s n a c i o n a l - á r a b e e, sobretudo, estamentalmente orientada. Aqueles confessores
cuja c o n v e r s ã o representou o ê x i t o decisivo d o profeta e r a m e m sua m a i o r i a m e m b r o s
de clãs poderosos. O mandamento religioso da g u e r r a santa n ã o se r e f e r i u , e m p r i m e i r o
lugar, à c o n v e r s ã o mas ao p e r í o d o " a t é que eles (os adeptos d e outras religiões livrescas)
p a g u e m h u m i l d e m e n t e o tributo (dscft/â/a)", isto é, até que o islã chegue a ser, neste
m u n d o , o p r i m e i r o e m prestígio social diante dos tributários de outras religiões. T u d o
isto, e m c o n e x ã o c o m a importância d o e s p ó l i o de g u e r r a nos ordenamentos, nas pro-
messas e, sobretudo, nas esperança d o islã mais antigo, i m p r i m i u - l h e o cunho de u m a
religião de senhores, c o n f i r m a d o t a m b é m pelo fato de os elementos últimos de sua
ética e c o n ô m i c a s e r e m p u r a m e n t e feudais. Precisamente os m a i s devotos já da p r i m e i r a
g e r a ç ã o e r a m os mais ricos, o u m e l h o r , os que m a i s e n r i q u e c e r a m , entre todos os
c o m p a n h e i r o s , c o m o e s p ó l i o de g u e r r a ( e m sentido mais a m p l o ) A importância de
que se reveste n o islã a propriedade originada d o e s p ó l i o de g u e r r a e do enriquecimento
político, e a r i q u e z a e m g e r a l , é totalmente contrária à p o s i ç ã o puritana. A tradição
descreve c o m gosto o vestuário l u x u o s o dos devotos, seus p e r f u m e s e o e s m e r o c o m
que c u i d a v a m de suas barbas, constituindo assim o e x t r e m o oposto de toda ética e c o n ô -
m i c a puritana. Mas o que, segundo a t r a d i ç ã o , M a o m é diz às pessoas abastadas que
a p a r e c e m diante dele e m trajes de pobres — que D e u s , q u a n d o a b e n ç o a u m h o m e m
c o m prosperidade, deseja que " o s vestígios desta s e j a m visíveis n e l e " , o u seja, na lingua-
g e m m o d e r n a , que u m r i c o é obrigado a " v i v e r de a c o r d o c o m s e u nível s o c i a l " —
corresponde à c o n c e p ç ã o estamental f e u d a l . O r e p ú d i o estrito n o C o r ã o n ã o de toda
ascese ( M a o m é manifesta s e u respeito pelas pessoas que j e j u a m , r e z a m e f a z e m penitên-
c i a ) mas de todo m o n a q u i s m o (rahbanija) pode ter, n a m e d i d a e m que a castidade
ECONOMIA E SOCIEDADE 413

desempenhou algum papel — n o caso de M a o m é pessoalmente — , motivos semelhantes


aos inerentes às conhecidas palavras na quais se destaca a natureza rigorosa e sensual
de Lutero, e t a m b é m , portanto, na c o n v i c ç ã o do T a l m u d e : aquele que n ã o esteja casado
e m certa idade, deve ser considerado u m pecador. Mas q u a n d o u m dito do profeta
p õ e e m d ú v i d a o caráter daquele que durante quarenta dias n ã o c o m e carne o u quando
u m reconhecido p i l a r d o islã antigo, celebrado c o m f r e q ü ê n c i a c o m o m á d i , responde
à pergunta de p o r que, ao contrário de s e u pai A l i , usava cosméticos p a r a o cabelo,
dizendo: " p a r a ter sucesso c o m as m u l h e r e s " , estamos diante de fatos s e m p a r na
hagiologia de u m a " r e l i g i ã o de s a l v a ç ã o " de natureza ética. No entanto, o islã n ã o
é u m a religião de salvação neste sentido. O conceito de " s a l v a ç ã o " , n o sentido ético
da p a l a v r a , lhe é diretamente estranho. Seu deus é u m senhor de poder ilimitado,
mas t a m b é m m a g n â n i m o , e c u m p r i r seus mandamentos n ã o é de m o d o algum superior
à força h u m a n a . A e l i m i n a ç ã o das lutas privadas e m interesse da f o r ç a ofensiva p a r a
o exterior, a r e g u l a m e n t a ç ã o das relações sexuais legítimas n u m sentido rigorosamente
patriarcal e a c o n d e n a ç ã o de todas as f o r m a s ilegítimas ( e m c o n s e q ü ê n c i a da p e r d u r a ç ã o
do concubinato c o m escravas e da facilidade d o d i v ó r c i o , de fato u m forte privilegia-
mento sexual dos ricos), a c o n d e n a ç ã o da " u s u r a " e as c o n t r i b u i ç õ e s p a r a a g u e r r a
e o apoio aos pobres e r a m medidas de caráter substancialmente político. A estas junta-
ram-se essencialmente c o m o deveres distintivos específicos: a f é n o ú n i c o deus e e m
seu profeta c o m o única e x i g ê n c i a d o g m á t i c a ; u m a v e z na v i d a u m a p e r e g r i n a ç ã o a
Meca; o j e j u m d i u r n o n o m ê s de j e j u m ; a presença s e m a n a l n o culto e as preces diárias.
A l é m disso, p a r a a v i d a cotidiana: o vestuário ( u m a prescrição economicamente impor-
tante ainda hoje nas c o n v e r s õ e s de povos selvagens), a recusa de certos alimentos i m p u -
ros, do v i n h o e do jogo de azar (o que se tornou t a m b é m importante, p a r a a atitude
e m relação a n e g ó c i o s especulativos). Riqueza, poder e h o n r a s ã o as promessas do
islã antigo p a r a este m u n d o : promessas a soldados, portanto, e u m paraíso sensual
n o a l é m p a r a soldados. Igualmente orientado n o sentido feudal parece estar o conceito
p r i m i t i v o e g e n u í n o do " p e c a d o " . A " i m p e c a b i l i d a d e " do profeta, sujeito a fortes pai-
x õ e s sensuais e ataques de c ó l e r a pelos menores motivos, é u m a construção t e o l ó g i c a
tardia, que lhe é totalmente estranha n o C o r ã o , c o m o , desde sua m u d a n ç a p a r a Medina,
todo o " t r á g i c o " do pecado, e este ú l t i m o traço p e r d u r o u n o islã ortodoxo: p a r a ele,
o " p e c a d o " é e m parte i m p u r e z a ritual, e m parte sacrilégio ( c o m o a schirk, a v e n e r a ç ã o
de muitos d e u s e s ) e m parte d e s o b e d i ê n c i a aos mandamentos positivos do profeta,
e m parte falta de dignidade estamental pela v i o l a ç ã o dos costumes e da d e c ê n c i a . O
caráter inquestionável da e s c r a v i d ã o e da s e r v i d ã o , a poligamia e a f o r m a de s u j e i ç ã o
e d o m e s t i c a ç ã o das m u l h e r e s , o tom predominantemente ritualista dos deveres religio-
sos, e m c o n e x ã o c o m a grande simplicidade das exigências nesta área e a ainda m a i o r
modéstia das exigências éticas, s ã o t a m b é m características de u m espírito especifica-
mente estamental e feudal. A a m p l i a ç ã o de influência experimentada pelo islã, p o r
u m lado, pelo surgimento da casuística teológico-jurídica e das escolas filosóficas, e m
parte iluministas, e m parte pietistas, e, p o r outro, pela p e n e t r a ç ã o do sufismo p e r s a ,
procedente da í n d i a , e pela constituição das ordens de d e r v i x e s , ainda hoje sob forte
influência indiana, n ã o o a p r o x i m o u do j u d a í s m o e d o cristianismo nos pontos decisivos.
Estas e r a m religiosidades especificamente urbano-burguesas, enquanto que p a r a o islã
a cidade tinha apenas u m significado político. T a n t o a f o r m a do culto oficial quanto
os mandamentos sexuais e rituais p o d e m atuar n o sentido de u m a certa sobriedade
do m o d o de v i v e r . A pequena burguesia é e m grande p r o p o r ç ã o portadora da religio-
sidade de d e r v i x e s , quase universalmente existente, a q u a l , aumentando s e m p r e seu
poder, s u p e r o u a religiosidade eclesiástica oficial. Mas essa religiosidade, e m parte
orgiástica, e m parte mística, p o r é m s e m p r e extracotidiana e i r r a c i o n a l , e t a m b é m a
414 MAX WEBER

ética cotidiana o f i c i a l , totalmente tradicionalista e eficaz e m sua propaganda, e m v i r t u d e


de sua grande simplicidade, d i r e c i o n a m a c o n d u ç ã o da v i d a por caminhos que, quanto
ao efeito, c o r r e m precisamente e m sentido contrário à da o r g a n i z a ç ã o da v i d a puritana
e à de qualquer outra de natureza ascética intramundana. E m c o m p a r a ç ã o c o m o judaís-
m o , falta-lhe a exigência de u m amplo conhecimento da l e i e o treino n o pensamento
casuístico que nutre o " r a c i o n a l i s m o " deste. O g u e r r e i r o , n ã o o literato, é o ideal
da religiosidade. E l a carece t a m b é m de todas aquelas promessas de u m r e i n o messiânico
na t e r r a ligadas à rigorosa fidelidade à l e i , as quais, e m c o n e x ã o c o m a doutrina sacer-
dotal da história, da e l e i ç ã o , do pecado e do desterro de I s r a e l , d e r a m o r i g e m ao
caráter-pária da religiosidade judaica e a tudo que dele resultou. H o u v e t a m b é m seitas
ascéticas. Certa tendência à " s i m p l i c i d a d e " e r a p r ó p r i a de a m p l a s círculos de g u e r r e i r o s
n o islã antigo, e fazia c o m que eles, desde o p r i n c í p i o , se opusessem ao d o m í n i o dos
omíadas. Sua serena alegria m u n d a n a e r a considerada decadente comparada à rigorosa
disciplina vigente nas fortalezas nas quais O m a r concentrara os g u e r r e i r o s islâmicos
n o território conquistado, o n d e c o m e ç o u a surgir u m a aristocracia feudal. Mas trata-se
da ascese de u m acampamento militar o u de u m a o r d e m d e cavaleiros g u e r r e i r o s ,
e n ã o da ascese m o n a c a l sistemática e muito menos ainda burguesa da conduta da
v i d a — d o m i n a n d o de fato apenas periodicamente e s e m p r e propensa a transformar-se
repentinamente e m fatalismo. J á falamos a q u i sobre os efeitos fundamentalmente distin-
tos que a crença na predestinação tinha de desenvolver e m tais c o n d i ç õ e s . A p e n e t r a ç ã o
do culto dos santos e, p o r f i m , da magia afastou definitivamente toda idéia de u m
g e n u í n o m é t o d o de v i d a .
E m contraste c o m essas éticas religiosas, especificamente e c o n ô m i c a intramun-
danas e m seus efeitos, encontra-se, c o m o ética mais e x t r e m a da rejeição do mundo,
a c o n c e n t r a ç ã o na i l u m i n a ç ã o mística do antigo budismo g e n u í n o , mas n ã o , natural-
mente, as v a r i a ç õ e s totalmente transformadas que este e x p e r i m e n t o u na religiosidade
popular tibetana, chinesa e japonesa. T a m b é m esta ética é " r a c i o n a l " n o sentido de
u m constante d o m í n i o vigilante de todos os instintos naturais, mas c o m u m f i m total-
mente distinto. O que se p r o c u r a n ã o é apenas a salvação d o pecado e do sofrimento
mas do p e r e c í v e l c o m o tal, da " r o d a " da causalidade d o c a r m a , p a r a encontrar a paz
eterna. N ã o há p r e d e s t i n a ç ã o , n e m g r a ç a d i v i n a , n e m p r e c e , n e m culto. A causalidade
de c a r m a do m e c a n i s m o c ó s m i c o de retribuição f i x a automaticamente os p r ê m i o s e
castigos p a r a cada a ç ã o i n d i v i d u a l , boa o u m á , s e m p r e proporcionais e, por isso, tempo-
ralmente limitados, e enquanto a sede de v i v e r estimula à a ç ã o , o i n d i v í d u o tem continua-
mente de saborear os frutos de suas a ç õ e s , de u m a existência animalesca, celeste ou
i n f e r n a l , n u m a v i d a h u m a n a s e m p r e r e n o v a d a e c r i a r p a r a si novas possibilidades no
futuro. T a n t o o entusiasmo mais nobre quanto a sensualidade mais v u l g a r conduzem
igualmente a u m s e m p r e r e n o v a d o encadeamento p a r a a i n d i v i d u a ç ã o ( s e m razão, a
samsâra é chamada " t r a n s m i g r a ç ã o da a l m a " , pois a metafísica budista n ã o conhece
a l m a alguma), enquanto n ã o esteja absolutamente extinta a " s e d e " de v i v e r , no além
o u neste m u n d o , a luta impotente pela existência própria i n d i v i d u a l c o m todas suas
ilusões, sobretudo aquela de u m a a l m a e " p e r s o n a l i d a d e " h o m o g ê n e a s . T o d a ação
racional c o m vista a u m f i m — exceto a atividade interna da c o n t e m p l a ç ã o concentrada
que apaga na a l m a a sede d o m u n d o — e toda v i n c u l a ç ã o aos interesses do mundo,
quaisquer que s e j a m , afasta o i n d i v í d u o da salvação. Mas alcançar essa salvação é o
destino d e m u i t o poucos, m e s m o entre aqueles que se decidem a v i v e r sem bens, em
castidade e sem trabalhar (pois o trabalho é u m a a ç ã o c o m vista a u m f i m ) vivendo,
portanto, de esmolas e, f o r a da é p o c a das grandes chuvas, s e m p r e vagando, desvincu-
lados da família e d o m u n d o , p a r a p r o c u r a r alcançar, mediante o cumprimento das
prescrições d o c a m i n h o certo (dharma) o objetivo da i l u m i n a ç ã o mística. Q u a n d o alcan-
ECONOMIA E SOCIEDADE 415

ç a d o , este p r o p o r c i o n a , pela alta alegria e o terno sentimento de a m o r s e m objeto


que lhe é p r ó p r i o , a mais elevada felicidade possível neste m u n d o , até a entrada n o
sono eterno s e m sonho do n i r v a n a , o ú n i c o estado que n ã o está sujeito a n e n h u m a
m u d a n ç a . Todos os outros, mediante a a p r o x i m a ç ã o às prescrições das regras e a absten-
ç ã o de pecados graves, p o d e m m e l h o r a r as possibilidades daquela v i d a futura que,
segundo a causalidade do c a r m a , e m v i r t u d e da conta ética n ã o equilibrada e da sede
de v i v e r n ã o " a b - r e a g i d a " p o r assim dizer, se dará inevitavelmente e m a l g u m lugar
através de u m a nova i n d i v i d u a ç ã o ao extinguir-se sua v i d a atual, mas a salvação v e r d a -
deira e eterna lhes será inevitavelmente negada. N e n h u m c a m i n h o conduz desta p o s i ç ã o
arredia ao m u n d o , a única realmente c o n s e q ü e n t e nisso, a qualquer ética e c o n ô m i c a
o u social r a c i o n a l . O "sentimento de c o m p a i x ã o " u n i v e r s a l d i r i g i d o a toda c r i a t u r a ,
que racionalmente é c o n s e q ü ê n c i a da solidariedade estabelecida pela causalidade do
c a r m a e à qual todos os seres v i v o s e, portanto, perecíveis estão igualmente sujeitos
e que psicologicamente é produto d o sentimento de a m o r místico, e u f ó r i c o , u n i v e r s a l
e a c ó s m i c o , n ã o pode ser portador de a ç ã o racional alguma, mas atua diretamente
e m sentido contrário.
O budismo pertence ao c í r c u l o daquelas doutrinas de s a l v a ç ã o gerado antes e
depois e m grande n ú m e r o pelo intelectualismo das camadas nobres de leigos cultos,
na índia, das quais é somente a f o r m a m a i s c o n s e q ü e n t e . Sua f r i a e orgulhosa l i b e r a ç ã o
da existência c o m o tal, que exige iniciativa própria d o i n d i v í d u o , jamais poderia tornar-
se u m a crença de massas na salvação. Sua a t u a ç ã o a l é m do c í r c u l o dos cultos estava
vinculada ao prestígio e n o r m e desde s e m p r e ali desfrutado pelo sramana (asceta) e
revestiu-se sobretudo de traços má g i c o -a n tro po lá trico s . Q u a n d o o budismo se t o r n o u
u m a "religiosidade p o p u l a r " de tipo missionário, transformou-se c o n s e q ü e n t e m e n t e
n u m a religião de salvador sobre a base da retribuição do c a r m a , c o m esperanças postas
no a l é m estribadas e m exercícios espirituais, e m g r a ç a cultual e sacramental e e m obras
de misericórdia e, c o n f o r m e sua própria natureza, manifestando a tendência a acolher
idéias puramente m á g i c a s . Na própria índia ele s u c u m b i u , nas camadas superiores,
ao renascimento da filosofia de s a l v a ç ã o enraizada n o v e d i s m o e, nas massas, à concor-
rência das religiões de salvador hinduístas, principalmente das diversas f o r m a s d o v i x -
n u í s m o , da magia tantrística e da religiosidade de mistérios orgiástica, sobretudo da
d e v o ç ã o do bhakti ( a m o r a D e u s ) . No l a m a í s m o , o b u d i s m o tornou-se u m a p u r a religio-
sidade de monges, cujo poder religioso sobre os leigos teocraticamente d o m i n a d a s
é de caráter inteiramente m á g i c o . E m sua esfera de influência na Ásia o r i e n t a l , e x p e r i -
mentou u m a forte t r a n s f o r m a ç ã o de seu caráter g e n u í n o e, na c o m p e t i ç ã o c o m o t a o í s m o
chinês e na c o m b i n a ç ã o c o m ele e m muitos cruzamentos, tornou-se a religiosidade
popular específica, que v a i a l é m da v i d a neste m u n d o e do culto aos antepassados
e oferece graça e salvação. Mas n e m a d e v o ç ã o budista, n e m a taoísta, n e m a hinduísta
c o n t ê m incitamentos p a r a o desenvolvimento de u m a o r g a n i z a ç ã o de v i d a r a c i o n a l .
Particularmente a última é, segundo seus pressupostos, o p o d e r tradicionalista mais
forte que possa existir, p o r q u e representa a f u n d a m e n t a ç ã o religiosa mais c o n s e q ü e n t e
da c o n c e p ç ã o " o r g â n i c a " da sociedade e a justificação absoluta e incondicional da distri-
b u i ç ã o existente de poder e felicidade, que resulta, e m v i r t u d e da retribuição mecanica-
mente p r o p o r c i o n a l , da culpa e do m é r i t o dos atingidos n u m a existência anterior. Todas
essas religiosidades populares asiáticas d e r a m m a r g e m tanto ao "instinto de a q u i s i ç ã o "
do m e r c e e i r o quanto ao interesse d e " s u s t e n t o " do artesão e ao tradicionalismo d o
c a m p o n ê s e d e i x a r a m seguir seus p r ó p r i o s caminhos a e s p e c u l a ç ã o filosófica e a o r i e n -
tação da v i d a , convenc i o n a l e m termos estamentais, das camadas privilegiadas, conser-
v a n d o seus traços feudais n o J a p ã o , patrimonial-burocráticos e portanto fortemente
utilitários na C h i n a , e e m parte cavaleirescos, e m parte patrimoniais e e m parte intelec-
416 MAX WEBER

tualistas na índia. N e n h u m a delas podia conter quaisquer motivos e instruções p a r a


a t r a n s f o r m a ç ã o ética racional de u m " m u n d o " , enquanto criatura, segundo u m manda-
mento divino. Pois p a r a todas elas este m u n d o e r a algo dado e f i x o , o m e l h o r de todos
os mundos possíveis, e p a r a o tipo mais elevado do devoto — o s á b i o — somente
havia a escolha entre a a d a p t a ç ã o ao tao, a m a n i f e s t a ç ã o da o r d e m impessoal deste
mundo, c o m o o ú n i c o especificamente d i v i n o , o u , ao contrário, a salvação de si m e s m o ,
pela própria a ç ã o , d o encadeamento causal i n e x o r á v e l p a r a entrar n o ú n i c o eterno:
o sono do n i r v a n a , l i v r e de sonhos.
O "capitalismo" existiu n o solo de todas essas religiosidades. E x a t a m e n t e aquele
que t a m b é m existiu na Antiguidade e na Idade Média ocidental. Mas n ã o h o u v e n e n h u m
desenvolvimento, nem em germe, e m d i r e ç ã o ao capitalismo moderno e, sobretudo,
n e n h u m " e s p í r i t o capitalista" no sentido p r ó p r i o do protestantismo ascético. Q u e r e r
atribuir ao comerciante, m e r c e e i r o , artesão o u cule indiano, chinês o u islâmico u m
"instinto de a q u i s i ç ã o " mais fraco do que, p o r e x e m p l o , ao protestante seria fechar
os olhos aos fatos. Q u a s e o exato contrário é v e r d a d e i r o : o traço e s p e c í f i c o do purita-
n i s m o é precisamente o controle racional ético do " v í c i o de l u c r a r " . E n ã o há n e m
s o m b r a de p r o v a p a r a se a f i r m a r que a m e n o r " a p t i d ã o " n a t u r a l p a r a o " r a c i o n a l i s m o "
técnico e e c o n ô m i c o constitua a r a z ã o da d i f e r e n ç a . Todos esses povos i m p o r t a m hoje
esse " b e m " c o m o produto mais importante do Ocidente, e nisto os obstáculos n ã o
se e n c o n t r a m na área do q u e r e r o u poder, mas na das tradições dadas e fixas, assim
c o m o e m nossa Idade Média. Na m e d i d a e m que n ã o e n t r a m e m jogo as c o n d i ç õ e s
puramente políticas (as f o r m a s estruturais internas da " d o m i n a ç ã o " ) , a s e r e m e x a m i -
nadas mais tarde, cabe p r o c u r a r a razão principalmente na religiosidade. Somente o
protestantismo ascético acabou realmente c o m a magia, c o m a extramundanidade da
busca de salvação e c o m a " i l u m i n a ç ã o " contemplativa intelectualista c o m o sua f o r m a
m a i s elevada; somente ele c r i o u os motivos religiosos p a r a buscar a salvação precisa-
mente n o e m p e n h o na " p r o f i s s ã o ' ' i n t r a m u n d a n a — e isto e m contraste c o m a c o n c e p ç ã o
rigorosamente tradicionalista de p r o f i s s ã o hinduísta, ao c u m p r i r as exigências profis-
sionais de m o d o metodicamente racionalizado. Para a religiosidade popular asiática
de todo tipo, ao contrário, o m u n d o p e r m a n e c e u u m grande j a r d i m encantado: a vene-
r a ç ã o o u c o n j u r a ç ã o dos " e s p í r i t o s " o u a busca de s a l v a ç ã o ritualista, idolátrica ou
sacramental constituíram o c a m i n h o p a r a orientar-se e assegurar-se nele na prática,
tanto p a r a este m u n d o quanto p a r a o a l é m . E , assim c o m o a a d a p t a ç ã o ao m u n d o
do confucionismo o u a n e g a ç ã o do m u n d o do budismo ou o d o m í n i o do m u n d o do
islã o u as esperanças-párias do j u d a í s m o , tampouco aquela religiosidade m á g i c a dos
não-intelectuais asiáticos conduziu a u m a o r g a n i z a ç ã o de v i d a racional.

A magia e a crença nos d e m ô n i o s estão t a m b é m presentes n o b e r ç o da segunda


grande religião de " r e j e i ç ã o do m u n d o " n u m sentido muito específico: o cristianismo
antigo. Seu salvador é sobretudo u m mago, sendo o c a r i s m a m á g i c o u m apoio nunca
prescindível de sua autoconsciência. Mas sua peculiaridade está particularmente condi-
cionada, p o r u m lado, pelas promessas d o j u d a í s m o , singulares no m u n d o inteiro —
o aparecimento de Jesus o c o r r e n u m a é p o c a de esperanças messiânicas mais intensas
— , e, p o r outro lado, pelo caráter intelectualista, de escriba, da d e v o ç ã o judaica de
o r d e m superior. E m face disso, o evangelho cristão s u r g i u c o m o boa nova de u m M o - i n -
telectual somente p a r a não-intelectuais, p a r a os " p o b r e s de e s p í r i t o " . A " l e i " , da qual
Jesus n ã o queria tirar u m a única letra, e r a praticada e entendida p o r ele c o m o a entendia
e adaptava às e x i g ê n c i a s de sua p r o f i s s ã o a m a i o r i a dos h o m e n s comuns e dos incultos,
dos devotos do c a m p o e das pequenas cidades, e m o p o s i ç ã o aos nobres e ricos heleni-
zados e ao v i r t u o s i s m o casuístico dos escribas e fariseus: quase s e m p r e , sobretudo
nas prescrições rituais e especialmente na santificação d o sabá, n u m sentido moderado,
ECONOMIA E SOCIEDADE 417

e e m alguns aspectos, c o m o nos princípios do d i v ó r c i o , n u m sentido m a i s rigoroso.


E parece que aqui se p r e l u d i a a c o n c e p ç ã o de Paulo q u a n d o se c o n s i d e r a m as exigências
da lei mosaica condicionadas pela natureza pecaminosa dos pretensos devotos. E m
todo caso, Jesus estabelece mandamentos p r ó p r i o s que neste sentido se distinguem
da tradição antiga. N ã o s ã o , p o r é m , os supostos "instintos p r o l e t á r i o s " que lhe d ã o
aquela autoconsciência específica, aquele saber de estar unido c o m o patriarca d i v i n o
e de constituir, ele e somente ele, o caminho que leva a este último. A o contrário,
ele, que n ã o é escriba, possui o carisma do poder sobre os d e m ô n i o s e sua poderosa
prédica, dispondo destas duas qualidades mais que qualquer escriba o u f a r i s e u ; pode
subjugar os d e m ô n i o s s e m p r e que os homens c r e i a m nele — mas apenas sob esta condi-
ç ã o e, nesse caso, t a m b é m entre os p a g ã o s , pois essa f é que lhe dá a f o r ç a m á g i c a
de o p e r a r milagres ele n ã o a encontra e m sua cidade natal, e m sua família, entre os
ricos e distintos d o país, entre os escribas e virtuosos da l e i , mas entre os pobres e
aflitos, entre publicanos, pecadores e até entre os soldados romanos — s ã o esres, n ã o
devemos nunca esquecer, os componentes absolutamente decisivos de sua autocons-
ciência messiânica. Por isso, ressoa o " a i " sobre as cidades da G a l i l é i a , c o m o a indignada
m a l d i ç ã o da figueira infecunda; p o r isso lhe parece s e m p r e p r o b l e m á t i c a a e l e i ç ã o
de Israel, duvidosa a importância do templo e certa a c o n d e n a ç ã o dos fariseus e escribas.
Jesus conhece dois " p e c a d o s m o r t a i s " absolutos: o " p e c a d o contra o e s p í r i t o " ,
cometido pelo escriba, que despreza o carisma e seus portadores, e o de c h a m a r " t o l o "
o i r m ã o — a soberba nada f r a t e r n a l do intelectual e m r e l a ç ã o ao pobre de espírito.
E s s e traço antiintelectualista, a c o n d e n a ç ã o da sabedoria h e l é n i c a , b e m c o m o da rabí-
nica, é o ú n i c o elemento " e s t a m e n t a l " e altamente específico da doutrina, que, de
resto, está muito longe de ser u m a boa nova para todo m u n d o e todos os fracos. Certa-
mente, o jugo é leve, mas somente p a r a aqueles que p o d e m voltar a ser c o m o as
crianças. Na v e r d a d e , a mensagem apresenta e n o r m e s e x i g ê n c i a s , e a salvação está
sujeita a princípios rigorosamente aristocráticos. Nada está mais longe de Jesus do que
a idéia de u m u n i v e r s a l i s m o da g r a ç a divina: poucos s ã o eleitos p a r a passar pela estreita
porta — aqueles que f a z e m penitência e c r ê e m nele; os outros D e u s m e s m o torna
duros e impenitentes, e naturalmente s ã o precisamente os orgulhosos e ricos que quase
sempre s o f r e m este destino. E m c o m p a r a ç ã o às outras profecias, n ã o h a v i a nada de
completamente n o v o nisto: t a m b é m a profecia do judaismo antigo p r e v i r a , afinal, e m
face da soberba dos grandes desta t e r r a , a chegada do Messias c o m o a de u m r e i que
entraria e m J e r u s a l é m montado no a n i m a l de carga dos pobres. Jesus come na casa
de pessoas abastadas, a b o m i n á v e i s aos olhos dos virtuosos da lei. T a m b é m ao j o v e m
rico manda ele f a z e r presente de sua riqueza somente n o caso de este q u e r e r ser " p e r -
f e i t o " , isto é , u m discípulo. Mas isto p r e s s u p õ e o r o m p i m e n t o de todos os v í n c u l o s
c o m o mundo, tanto os da família quanto os da propriedade, c o m o o c o r r e c o m B u d a
e todos os profetas semelhantes. S e m d ú v i d a — ainda que a D e u s tudo seja possível
— o apego a Mamona continua sendo u m dos obstáculos mais difíceis p a r a a salvação
e o acesso ao r e i n o de Deus. E l e desvia os homens da salvação religiosa, que é a
única coisa que importa. N ã o se diz explicitamente que conduz t a m b é m à falta de frater-
nidade, mas essa idéia está implícita. D e fato, os mandamentos anunciados c o n t ê m
t a m b é m a q u i a p r i m i t i v a ética de apoio m ú t u o da comunidade de vizinhança de gente
modesta. Mas é c l a r o que tudo está sistematizado, c o n f o r m e à " é t i c a de c o n v i c ç ã o " ,
no sentido de u m a espiritualidade de a m o r f r a t e r n a l , e o mandamento refere-se " u n i v e r -
salisticamente" a qualquer u m que e m certo momento seja o " p r ó x i m o " , e chega a
ser u m p a r a d o x o a c ó s m i c o na sentença de que somente Deus q u e r r e t r i b u i r e o fará.
Perdoar s e m c o n d i ç õ e s , dar s e m c o n d i ç õ e s , a m a r s e m c o n d i ç õ e s t a m b é m o inimigo,
aceitar s e m c o n d i ç õ e s a injustiça, sem resistir c o m violência ao m a l — estas exigências
418 MAX WEBER

ao h e r o í s m o religioso b e m p o d e r i a m s e r produtos de u m acosmismo de a m o r condicio-


nado misticamente. Mas n ã o devemos d e i x a r de perceber, c o m o muitas vezes acontece,
que Jesus as relaciona s e m p r e c o m a idéia de retribuição judaica: algum dia, Deus
retribuirá, v i n g a r á e p r e m i a r á e, p o r isso, o h o m e m n ã o d e v e f a z ê - l o n e m se vangloriar
de seus bons feitos: caso contrário, ele antecipa sua recompensa. Por isso, p a r a juntar
u m tesouro n o c é u , deve-se emprestar t a m b é m à q u e l e que talvez nada v e n h a a devolver
— pois de outro m o d o n ã o seria u m mérito. Opera-se fortemente c o m o justo equilíbrio
dos destinos na lenda de Lázaro, mas t a m b é m e m outras ocasiões: já p o r isso a riqueza
é u m d o m perigoso. D e resto, o decisivo é a absoluta i n d i f e r e n ç a e m relação ao m u n d o
e seus assuntos. O r e i n o de D e u s , u m r e i n o de felicidade s e m sofrimento e sem culpa
sobre a terra está p r ó x i m o ; esta g e r a ç ã o n ã o m o r r e r á s e m v ê - l o ; ele virá c o m o o ladrão
na noite; na verdade já c o m e ç a e m m e i o aos homens. E m v e z de agarrar-se ao Mamona
injusto, é m e l h o r fazer-se de amigo c o m ele. Pode-se dar a C é s a r o que é de C é s a r
— que i m p o r t a m essas coisas? Deve-se r e z a r a D e u s pelo p ã o de cada dia sem se
preocupar c o m o dia seguinte. A v i n d a do r e i n o n ã o pode ser acelerada p o r n e n h u m a
a ç ã o h u m a n a . Mas é b o m preparar-se p a r a ela. E , neste ponto, ainda que a lei n ã o
esteja suspensa f o r m a l m e n t e , absolutamente tudo da natureza c o m e ç a a depender da
c o n v i c ç ã o , identificando-se todo.o c o n t e ú d o da lei e dos profetas com o simples manda-
mento do a m o r a Deus e ao p r ó x i m o e acrescentando-se a sentença, de grande alcance:
que se deve reconhecer a espiritualidade g e n u í n a p o r seus frutos, isto é, p o r suas provas.
Depois que as visões da ressurreição, certamente sob a influência dos mitos sote-
riológicos difundidos nessa r e g i ã o , t i v e r a m c o m o c o n s e q ü ê n c i a u m a e n o r m e irrupção
de carismas inspiracionais e a f o r m a ç ã o da c o n g r e g a ç ã o c o m a própria família até então
incrédula n o topo, e que a c o n v e r s ã o de Paulo teve, entre suas graves c o n s e q ü ê n c i a s ,
a dissolução da religiosidade-pária, conservando p o r é m a profecia antiga e a missão
junto aos p a g ã o s , c o n t i n u a r a m sendo decisivas, p a r a a p o s i ç ã o das c o n g r e g a ç õ e s do
território da m i s s ã o e m r e l a ç ã o ao " m u n d o " , p o r u m lado, a expectativa do retorno
de Jesus e, p o r outro, a imensa importância dos dons carismáticos do " e s p í r i t o " . O
m u n d o p e r m a n e c e c o m o é, até que v e n h a o Senhor. E o i n d i v í d u o deve p e r m a n e c e r
igualmente e m sua p o s i ç ã o e e m sua " v o c a ç ã o " (xX-ijaiç), submisso à autoridade, a
n ã o ser que esta lhe exija o pecado 1 .

' Segundo anotações no manuscrito, era prevista a continuação deste capítulo. [Nota de Marianne Weber ]
Capítulo VI

O mercado

(Inacabado.)

A todas as f o r m a s de c o m u n i d a d e até aqui examinadas, que e m regra e n v o l v e m


u m a racionalização apenas p a r c i a l de sua a ç ã o social, sendo de resto muito diversas
quanto a sua estrutura — mais o u m e n o s a m o r f a o u socializada, mais o u menos contínua
ou descontínua, mais o u menos aberta o u fechada — se c o n t r a p õ e agora, c o m o a r q u é -
tipo de toda a ç ã o social, a r e l a ç ã o associativa p o r troca n o mercado. Falamos de m e r c a d o
quando pelo menos p o r u m lado há u m a pluralidade de interessados que competem
p o r oportunidades de troca. Q u a n d o estes se r e ú n e m e m determinado lugar, n o m e r c a d o
local, n o do c o m é r c i o a grande distância (anual, f e i r a ) o u n o de comerciantes (bolsa),
temos apenas a f o r m a mais c o n s e q ü e n t e da constituição de u m m e r c a d o , sendo esta,
no entanto, a única que possibilita o pleno desdobramento do f e n ô m e n o e s p e c í f i c o
do mercado: o regateio. J á que o e x a m e dos processos de m e r c a d o constitui o c o n t e ú d o
essencial da Economia Social, n ã o cabe e x p ô - l o s aqui. D o ponto de vista s o c i o l ó g i c o ,
o mercado representa u m a coexistência e seqüência de relações associativas racionais,
das quais cada u m a é especificamente e f ê m e r a p o r extinguir-se c o m a entrega dos
bens de troca, a n ã o ser que já tenha sido estabelecida u m a o r d e m que i m p õ e a cada
qual e m relação à parte contrária na troca a garantia da aquisição legítima do b e m
de troca (garantia de evicção). A troca realizada constitui u m a r e l a ç ã o associativa apenas
c o m a parte contrária na troca. O regateio preparatório, p o r é m , é s e m p r e u m a r e l a ç ã o
social no sentido de que ambos os interessados na troca o r i e n t a m suas ofertas pela
a ç ã o potencial de u m a pluralidade indeterminada de outros interessados t a m b é m con-
correntes, reais o u imaginados, e n ã o apenas por aquela do p a r c e i r o na troca, e isto
tanto mais quanto mais f r e q ú e n t e m n t e se dá essa situação. T o d a troca c o m o uso de
dinheiro ( c o m p r a ) é t a m b é m u m a r e l a ç ã o social e m v i r t u d e do e m p r e g o desse d i n h e i r o ,
o qual desempenha sua f u n ç ã o somente p o r r e f e r i r - s e à a ç ã o potencial de outras pessoas.
A circunstância de o d i n h e i r o ser aceito fundamenta-se exclusivamente na expecta-
t i v a de e l e c o n s e r v a r s u a s q u a l i d a d e s e s p e c í f i c a s d e s e r s o l i c i t a d o e u t i l i z á v e l
c o m o meio de pagamento. A r e l a ç ã o comunitária baseada n o uso de d i n h e i r o é o p ó l o
oposto característico de toda r e l a ç ã o associativa fundamentada n u m a o r d e m racional-
mente pactuada o u imposta. O d i n h e i r o faz surgir u m a r e l a ç ã o comunitária graças
às relações de interesses reais entre os interessados atuais e potenciais n o m e r c a d o
e no pagamento, de m o d o que o resultado — n o caso de desenvolvimento pleno, a
chamada economia m o n e t á r i a , que é de caráter muito específico — se comporta c o m o
se tivesse sido c r i a d a u m a o r d e m c o m o f i m de obtê-io. Isto d e r i v a d o fato de que,
dentro da comunidade de m e r c a d o , o ato de troca, particularmente aquele n o qual
se emprega d i n h e i r o , se orienta n ã o isoladamente pela a ç ã o do p a r c e i r o , mas,,pela
420 MAX WEBER

de todos os participantes potenciais na troca, e isto tanto mais quanto maislracionalmente


é ponderado. A comunidade de m e r c a d o c o m o tal constitui a r e l a ç ã o vital prática m a i s
impessoal que pode existir entre os homens. N ã o porque o m e r c a d o implica a luta
entre os interessados. T o d a r e l a ç ã o h u m a n a , m e s m o a mais íntima — t a m b é m a entrega
pessoal mais incondicional — , é e m algum sentido de caráter relativo e pode significar
u m a luta c o m a outra parte, p a r a salvar sua a l m a , p o r e x e m p l o . Mas porque ele é
orientado de m o d o especificamente objetivo, pelo interesse nos bens de troca e por
nada mais. Q u a n d o o m e r c a d o é deixado à sua legalidade intrínseca, leva apenas e m
c o n s i d e r a ç ã o a coisa, n ã o a pessoa, inexistindo p a r a ele deveres de fraternidade e devo-
ç ã o o u qualquer das relações humanas originárias sustentadas pelas comunidades pes-
soais. Todas essas coisas constituem obstáculos p a r a o l i v r e desenvolvimento da relação
comunitária no m e r c a d o , c o m o tal, e os interesses específicos desta, p o r sua vez, são
u m a tentação específica p a r a elas. Interesses racionais ligados a u m f i m determinam
e m g r a u muito alto os processos de mercado, e a legalidade r a c i o n a l , particularmente
a inviolabilidade f o r m a l do u m a v e z prometido, é a qualidade que se espera da outra
parte na troca e que constitui o c o n t e ú d o da ética d e m e r c a d o , a qual sob este aspecto
constitui u m a escola de c o n c e p ç õ e s extremamente rigorosas: nos anais da bolsa é quase
inaudito o r o m p i m e n t o até m e s m o do acordo menos controlado e c o m p r o v á v e l , feito
apenas mediante sinais. T a l o b j e t i v a ç ã o absoluta o p õ e - s e — c o m o ressalta particular-
mente Sombart repetidas vezes, de f o r m a brilhante — a todas as f o r m a s estruturais
originárias das relações humanas. O m e r c a d o " l i v r e " , isto é, n ã o comprometido por
n o r m a s éticas, c o m sua e x p l o r a ç ã o da c o n s t e l a ç ã o de interesses e da situação de mono-
p ó l i o e c o m seu regateio é considerado p o r toda ética algo c o n d e n á v e l entre irmãos.
O m e r c a d o , e m c o n t r a p o s i ç ã o a todas as demais relações comunitárias que sempre
p r e s s u p õ e m a c o n f r a t e r n i z a ç ã o pessoal e na m a i o r i a das vezes a c o n s a n g ü i n i d a d e , é
estranho, já na raiz, a toda c o n f r a t e r n i z a ç ã o . A troca l i v r e realiza-se inicialmente somen-
te c o m parceiros f o r a da comunidade de v i z i n h o s e de todas as associações de caráter
pessoal; o m e r c a d o é u m a r e l a ç ã o que atravessa as fronteiras do povoado, do sangue
e da tribo, sendo originalmente a única f o r m a l m e n t e pacífica deste tipo. U m a transação
c o m a intenção de obter ganho na troca n ã o pode ser realizada originalmente entre
m e m b r o s da m e s m a comunidade, e n e m é necessária entre eles nos tempos das econo-
mias agrárias a u t ô n o m a s . U m a das f o r m a s características do c o m é r c i o pouco desenvol-
v i d o , a troca m u d a — que evita o contato pessoal, sendo a oferta e a contra-oferta
feitas c o m as mercadorias colocadas n o lugar habitual, e o regateio c o m o aumento
da quantidade dos objetos oferecidos p o r ambas as partes, até que uma das partes
o u se retira insatisfeita o u leva consigo as m e r c a d o r i a s da outra — , ilustra de f o r m a
drástica o contraste c o m a c o n f r a t e r n i z a ç ã o pessoal. A garantia da legalidade do p a r c e i r o
na troca baseia-se, e m última instância, no pressuposto, geralmente feito c o m razão
p o r ambas as partes, de que cada u m dos dois esteja interessado t a m b é m n o futuro
na c o n t i n u a ç ã o das relações de troca, seja c o m este p a r c e i r o , seja c o m outros, e de
que p o r isso c u m p r i r á as promessas dadas e evitará pelo menos v i o l a ç õ e s graves da
b o a - f é Desde que haja semelhante interesse, v a l e a m á x i m a : honesty is the bestpolicy,
que, naturalmente, n ã o está universalmente certa do ponto de vista r a c i o n a l , tendo,
p o r isso, validade empírica variável, claro que m á x i m a , e m empreendimentos racionais
c o m clientela permanente. D e fato, sobre o fundamento de relações de clientela fixas
e, p o r isso, suscetíveis de se a c o m p a n h a r e m de a p r e ç o pessoal m ú t u o n o que se refere
às qualidades éticas de mercado, as r e l a ç õ e s de troca, sustentadas pelo interesse dos
participantes, podem mais facilmente desfazer-se d o caráter d e regateio irrestrito e m
f a v o r de u m a limitação relativa, por interesse p r ó p r i o , das oscilações de preços e da
e x p l o r a ç ã o da c o n s t e l a ç ã o m o m e n t â n e a . O s detalhes das c o n s e q ü ê n c i a s importantes
ECONOMIA E SOCIEDADE 421

p a r a a f o r m a ç ã o dos p r e ç o s n ã o interessam a q u i . O p r e ç o f i x o , isto é, igual p a r a todos


os c o m p r a d o r e s , e a honestidade estrita n ã o apenas s ã o p r ó p r i o s dos mercados locais
regulados da Idade M é d i a ocidental, n u m g r a u especificamente alto e m o p o s i ç ã o ao
O r i e n t e P r ó x i m o e ao E x t r e m o O r i e n t e , mas t a m b é m constituem u m pressuposto e
mais tarde u m produto de determinada fase da e c o n o m i a capitalista, isto é , d o capita-
lismo p r i m i t i v o . E s t ã o ausentes, a l é m disso, de todos os estamentos e outros grupos
que n ã o p a r t i c i p a m ativamente n a troca r e g u l a r , m a s apenas ocasional e passivamente.
Segundo a e x p e r i ê n c i a , o prinpípio de cautela caveat emptor é m a i s adequado p a r a
transações c o m o as feitas c o m as camadas feudais o u n a c o m p r a d e cavalos entre c a m a -
radas da c a v a l a r i a , c o m o sabe todo oficial. A ética de m e r c a d o específica lhes é a l h e i a ,
e o c o m é r c i o , tanto n a c o n c e p ç ã o deles c o m o n a da comunidade de v i z i n h a n ç a campo-
nesa, é definitivamente idêntico a u m comportamento e m que somente interessa a
questão de q u e m engana q u e m .
Limites típicos d o m e r c a d o s ã o gerados p o r tabus sagrados o u relações associativas
estamentais monopolistas q u e impossibilitam a troca d e bens c o m o e x t e r i o r . C o n t r a
esses limites pressiona s e m cessar a comunidade de m e r c a d o , cuja m e r a existência
implica a tentação a participar e m suas oportunidades lucrativas. Q u a n d o o processo
de apropriação n u m a comunidade monopolista alcança o ponto e m que esta se fecha
para o exterior, isto é, q u a n d o n u m a comunidade de aldeia as terras o u os direitos
de utilizar as terras c o m u n i t á r i a s estão apropriados definitiva e hereditariamente, surge
— c o m a e x p a n s ã o da e c o n o m i a m o n e t á r i a , que possibilita a d i f e r e n c i a ç ã o crescente
das necessidades que p o d e m ser satisfeitas pela troca indireta e u m a existência desvin-
culada da propriedade de terras — u m interesse quase s e m p r e crescente dos indivíduos
atingidos e m p o d e r t i r a r p r o v e i t o d o p a t r i m ô n i o a p r o p r i a d o , pela m e l h o r oferta, tam-
b é m mediante a troca c o m o e x t e r i o r . É o que o c o r r e c o m os co-proprietários de u m a
fábrica herdada, que, c o m o tempo, quase s e m p r e se decidem a constituir u m a sociedade
p o r ações p a r a poder v e n d e r l i v r e m e n t e suas cotas de participação. E , de outra parte,
u m a economia aquisitiva capitalista e m desenvolvimento, à m e d i d a que se fortalece,
v a i exigindo cada v e z m a i s a possibilidade de negociar n o m e r c a d o e x t e r n o os meios
de p r o d u ç ã o materiais e a f o r ç a de trabalho, s e m restrição p o r v i n c u l a ç õ e s sagradas
o u estamentais, e de v e r suas oportunidades d e v e n d a liberadas das limitações estabe-
lecidas pelos m o n o p ó l i o s de estamento. O s interessados e m sentido capitalista conti-
n u a m desejando a crescente a m p l i a ç ã o d o l i v r e m e r c a d o até que alguns deles se a r r i s -
c a m , mediante a c o m p r a de privilégios d o p o d e r político o u simplesmente g r a ç a s à
f o r ç a de s e u p r ó p r i o capital, a conquistar m o n o p ó l i o s p a r a a vencia de seus produtos
o u para a o b t e n ç ã o de seus m e i o s de p r o d u ç ã o materiais, f e c h a n d o e n t ã o , p o r sua
v e z , o mercado. Por isso, a a p r o p r i a ç ã o completa de todos os m e i o s de p r o d u ç ã o mate-
riais é seguida p r i m e i r o d o r o m p i m e n t o dos m o n o p ó l i o s estamentais, q u a n d o os interes-
sados n o lado capitalista estão e m c o n d i ç õ e s de i n f l u e n c i a r e m f a v o r d e seus interesses
as comunidades que r e g u l a m a p r o p r i e d a d e de bens e a f o r m a d e sua v a l o r i z a ç ã o ,
o u quando n o â m b i t o d e comunidades estamentais monopolistas c h e g a m a p r e d o m i n a r
os interesses p o r u m a v a l o r a ç ã o n o m e r c a d o do p a t r i m ô n i o apropriado. A l é m disso,
s ã o limitados a bens materiais e direitos resultantes d e r e l a ç õ e s d e d í v i d a , inclusive
prestações de trabalho combinadas, os direitos adquiridos e adquiríveis que s ã o garan-
tidos pelo aparato coativo da c o m u n i d a d e r e g u l a d o r a da p r o p r i e d a d e de bens. T o d a s
as outras a p r o p r i a ç õ e s , pa rti c u la rme n te as a p r o p r i a ç õ e s de clientela e m o n o p ó l i o s de
v e n d a estamentais, s ã o a o c o n t r á r i o destruídas. Esta é a situação q u e c h a m a m o s l i v r e
c o n c o r r ê n c i a e que d u r a até o m o m e n t o e m que a p a r e c e m e m s e u lugar outros m o n o p ó -
lios, os capitalistas, conquistados n o m e r c a d o e m v i r t u d e d o p o d e r da propriedade.
Esses m o n o p ó l i o s capitalistas distinguem-se dos estamentais p o r estarem racionalmente
422 MAX WEBER

condicionados sob aspectos p u r a m e n t e e c o n ô m i c o s . D e n t r o d e sua e s f e r a de p o d e r ,


os m o n o p ó l i o s estamentais impossibilitam, pela limitação das possibilidades de v e n d a
c o m o tais o u das c o n d i ç õ e s de v e n d a admissíveis, o m e c a n i s m o de m e r c a d o c o m seu
regateio e, sobretudo, c o m seu c á l c u l o r a c i o n a l . J á os m o n o p ó l i o s exclusivamente condi-
cionados pelo p o d e r da p r o p r i e d a d e , ao c o n t r á r i o , baseiam-se n u m a política mono-
polista r a c i o n a l , isto é, n a d o m i n a ç ã o , orientada pelo c á l c u l o r a c i o n a l , dos processos
de m e r c a d o q u e p o d e m até f i c a r inteiramente l i v r e s n o aspecto f o r m a l . As v i n c u l a ç õ e s
sagradas, estamentais e tradicionais s ã o os obstáculos paulatinamente afastados que
i m p e d e m a f o r m a ç ã o r a c i o n a l dos p r e ç o s n o m e r c a d o , enquanto que, ao c o n t r á r i o ,
os m o n o p ó l i o s condicionados p o r c o n s i d e r a ç õ e s p u r a m e n t e e c o n ô m i c a s s ã o a última
c o n s e q ü ê n c i a desta. O s monopolistas estamentais d e f e n d e m s e u p o d e r contra o m e r c a -
do, restingindo-o; o monopolista e c o n ô m i c o r a c i o n a l d o m i n a p o r m e i o do mercado.
Aos interessados c u j a situação e c o n ô m i c a os capacita a chegar ao poder e m v i r t u d e
da liberdade f o r m a l do m e r c a d o d e n o m i n a m o s interessados n o mercado.
U m m e r c a d o concreto pode estar sujeito a u m a o r d e m acordada autonomamente
pelos participantes o u imposta pelas comunidades m a i s diversas, particularmente asso-
c i a ç õ e s políticas o u religiosas. Q u a n d o esta n ã o c o n t é m u m a restrição da liberdade
d e m e r c a d o , isto é, d o regateio e da c o n c o r r ê n c i a , o u estabelece garantias p a r a a obser-
v a ç ã o da legalidade d o m e r c a d o , a f o r m a e o m e i o d o pagamento, e l a s e r v e , e m é p o c a s
d e insegurança i n t e r l o c a l , sobretudo p a r a garantir a paz do m e r c a d o — garantia que
se d e i x a inicialmente e m r e g r a aos cuidados de poderes d i v i n o s , d o m e s m o m o d o que
os costumes de g u e r r a c o m caráter de direito internacional, já que o m e r c a d o é original-
mente u m a r e l a ç ã o associativa c o m n ã o - c o m p a n h e i r o s , isto é, inimigos. Muitas vezes
encontra-se a paz do m e r c a d o sob a p r o t e ç ã o de u m templo, m a s a l é m disso costuma
o cacique o u p r í n c i p e fazer dessa p r o t e ç ã o da paz u m a fonte d e impostos. Pois a troca
é a f o r m a especificamente pacífica d e obter poder e c o n ô m i c o . Naturalmente isso pode
u n i r - s e alternativamente c o m a violência. O navegador da Antiguidade e da Idade Média
p r e f e r e t o m a r s e m pagar o q u e pode conseguir c o m violência e somente r e c o r r e ao
regateio p a c í f i c o q u a n d o precisa f a z ê - l o diante d e u m p o d e r igualmente forte o u para
n ã o arriscar possibilidades futuras de troca proveitosa q u e , d e outro m o d o , estariam
a m e a ç a d a s . Mas a e x p a n s ã o intensa das r e l a ç õ e s de troca c o r r e p o r toda parte paralela
a u m a p a c i f i c a ç ã o relativa. A s p r o c l a m a ç õ e s d e paz p ú b l i c a da Idade M é d i a estão todas
a serviço d e interesses d e troca, e a a p r o p r i a ç ã o d e bens pela troca l i v r e , racional
sob aspectos p u r a m e n t e e c o n ô m i c o s , é p o r sua f o r m a , c o m o s e m p r e reiteradamente
salientou O p p e n h e i m e r , o p ó l o oposto conceituai à a p r o p r i a ç ã o de bens mediante coa-
ç ã o de qualquer tipo, n a m a i o r i a das vezes física, cujo e x e r c í c i o regulamentado é particu-
larmente constitutivo p a r a a comunidade política.

Você também pode gostar