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“O mulato enfarruscado, ladrão de cinco mil-réis, agachava-se pelos cantos, exibia furtivo um pedaço

de focinho; Desviava-me dessas chateações próximas, refugiava-me noutras distantes. O mundo se


tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para
nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração.
Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes,
inofensivos e desocupados, farrapos vivos, velhos prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolher-nos
ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias,
repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido. Afligia-me
especialmente supor que não me seria possível nunca mais trabalhar; arrastando-me em ociosidade
obrigatória, dependeria dos outros, indigno e servil. Naquela noite devo ter remoído essas coisas, a
agitar-me levemente, as varandas servindo-me de cobertas. Estávamos no caldeirão do diabo.”
RAMOS, Graciliano. (1953) Memórias do Cárcere.

“Depois de chegarmos ao Abraão, continuamos a viagem. A caravana cavalgava alegre e, pela pouca
prática que alguns da comitiva tinham dessa viagem, a subida foi muito divertida. A todo instante
ouviam-se gritos nervosos das mulheres pedindo ajuda aos guardas e aos presos que nos
acompanhavam, a pé. Ora era um selim que caía, ora um cavalo que empacava. Apesar de todos os
contratempos, a caravana chegou à colônia sem maiores aborrecimentos e fomos logo para a minha
casa. Foi tarefa difícil para mim e meus empregados alojar toda aquela gente. Mas com um pouco de
boa vontade, todos foram acomodados. [...] Na véspera da partida, organizei um baile em minha casa,
como despedida. Essa festa fez sucesso na colônia, convidei, além do diretor e sua filha, alguns
funcionários dentre os mais graduados. Mas, confesso, o motivo principal daquela festa, foi o meu
desejo de dançar com Urânia, aquela gaúcha dos olhos negros e dizer-lhe, quando a tivesse em meus
braços, que a amava e se poderia ter alguma esperança de ser correspondido. O dia seguinte foi o da
partida daquela comissão, cujos componentes iam cheios de saudades dos dias alegres que passaram
na Ilha. Mas, sem que soubessem, também deixavam imorredouras saudades na minha alma.”

SARDINHA, Hermínio Ouropretano. (1969), Memórias de um médico: Ilha Grande.

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