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Tradução de Maria Aparecida Mello Fontes

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Despedida de Rebecca

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CAPÍTULO 1

ESCOLA PARA MOÇAS


DE MISS PINKERTON

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nquanto o século atual estava em plena puberdade, em uma
manhã ensolarada do mês de junho, uma espaçosa carrua-
gem familiar, puxada por dois cavalos gordos em arreios
lustrosos e resplandecentes, conduzida por um cocheiro
corpulento usando um chapéu tricórnio e uma peruca, a uma velocidade
de quatro milhas por hora, deteve-se junto ao grande portão de ferro da
escola para moças de Miss Pinkerton, na alameda Chiswick. Um criado
negro que ocupava o assento ao lado do cocheiro estendeu as pernas tor-
cidas assim que a carruagem parou em frente à placa de latão brilhante
de Miss Pinkerton e, quando tocou a campainha, mais de vinte cabeças
jovens apareceram nas estreitas janelas da majestosa casa de tijolos, en-
tre as quais um observador perspicaz poderia ter reconhecido o narizinho
vermelho da bem-humorada Miss Jemima Pinkerton surgindo sobre al-
guns vasos de gerânio na janela da sala de estar.
– É a carruagem de Mrs. Sedley, irmã – disse Miss Jemima. – Sambo, o
criado negro, acaba de tocar a campainha e o cocheiro tem um novo colete
vermelho.
– Você terminou todos os preparativos necessários para a partida de
Miss Sedley, Miss Jemima? – perguntou a própria Miss Pinkerton, a ma-
jestosa dama, a Semiramis de Hammersmith, amiga do doutor Johnson,
o correspondente da própria Mrs. Chapone.1
– As meninas acordaram às quatro da manhã para preparar seus baús,
irmã – respondeu Miss Jemima –, nós fizemos para ela um ramo de flores.
1. A rainha Semiramis foi casada com o rei Assírio Nino I. Dizem que era extremamente ambiciosa e devassa e
que fundou várias cidades, inclusive Babilônia. Samuel Johnson (1709 -1784), ou simplesmente Doutor Johnson,
foi um pensador e escritor inglês; Hester Chapone (1727-1801) foi uma escritora de livros sobre conduta para
mulheres. (N.T.)

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– Diga um buquê, irmã Jemima, é mais elegante.
– Bem, um buquê tão grande como um palheiro, e eu coloquei duas
garrafas de água de flores para Mrs. Sedley junto com a receita no baú de
Amélia.
– E eu acredito, Miss Jemima, que você fez uma cópia da conta de Miss
Sedley. É esta? Muito bem, noventa e três libras e quatro xelins. Tenha a
gentileza de endereçá-la ao Exmo. John Sedley, juntamente com este billet
que escrevi para sua senhora.
Aos olhos de Miss Jemima, uma carta assinada por sua irmã, Miss
Pinkerton, era objeto de tão profunda veneração quanto uma carta de um
soberano. Somente quando suas alunas deixavam o estabelecimento, ou
quando estavam prestes a se casar, e certa vez, quando a pobre Miss Birch
morreu vítima de escarlatina, é que Miss Pinkerton escrevia pessoalmente
aos pais das estudantes, e era a opinião de Jemima que se alguma coisa pu-
desse atenuar a dor de Mrs. Birch pela perda de sua filha, seria aquela com-
posição piedosa e eloquente na qual Miss Pinkerton anunciava o evento.
No presente caso, o “billet” de Miss Pinkerton teve o seguinte efeito:

Alameda Chiswick, 15 de junho de 18...


Madame, após seis anos de residência nesta escola, tenho a honra e a
felicidade de devolver Miss Amélia Sedley a seus pais, como uma jovem
digna de ocupar uma posição adequada em seu círculo elegante e refina-
do. As virtudes que caracterizam a jovem dama inglesa, as realizações
que correspondem ao seu berço e posição, não estarão ausentes na amá-
vel Miss Sedley, cuja diligência e obediência conquistaram o afeto de seus
mestres, e cujo caráter doce e encantador cativou todas as suas compa-
nheiras, tanto as mais velhas como as mais jovens. Na música, na dança,
na ortografia, em toda variedade de bordados e trabalhos com agulha,
ela tem realizado os desejos de suas amigas. Em Geografia, no entanto,
ainda há muito a desejar e o uso cuidadoso e inabalável do quadro-negro
por quatro horas diárias durante os próximos três anos é recomendado
para a aquisição da conduta e porte dignos, tão necessários à toda dama
da alta sociedade. Com relação aos princípios religiosos e morais, Miss
Sedley honrará este corpo docente que tem a honra de contar com a pre-
sença do grande lexicógrafo e o patrocínio da admirável Mrs. Chapone.
Ao deixar esta instituição, Miss Amélia leva consigo o coração de suas
companheiras e os afetuosos cumprimentos de sua diretora, que tem a
honra de subscrever a presente.

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Madame, sua humilde serva, BARBARA PINKERTON.
P.S.: Miss Sharp acompanha Miss Sedley. Solicita-se encarecida-
mente que a estada de Miss Sharp em Russell Square não exceda dez dias.
A ilustre família com a qual ela está comprometida deseja valer-se de
seus serviços o quanto antes.

Concluída a carta, Miss Pinkerton escreveu seu próprio nome e o de


Miss Sedley na folha de rosto de um dicionário Johnson, obra interessan-
te com a qual a diretora invariavelmente presenteava suas alunas quando
deixavam a escola. Na capa do livro foi inserida uma cópia de “Linhas dedi-
cadas a uma jovem dama ao deixar a escola dirigida por Miss Pinkerton,
pelo reverenciado falecido doutor Samuel Johnson”. De fato, o nome do
lexicógrafo estava sempre nos lábios desta majestosa mulher, e uma visita
que ele lhe havia feito foi a causa de sua reputação e fortuna.
Quando sua irmã mais velha pediu que apanhasse “o dicionário” no
armário, Miss Jemima retirou duas cópias do livro do receptáculo em ques-
tão. Quando Miss Pinkerton terminou a inscrição no primeiro, Jemima,
com um ar um tanto dúbio e tímido, entregou-lhe o segundo.
– Para quem é este, Miss Jemima? – perguntou Miss Pinkerton, com
uma frieza espantosa.
– Para Becky Sharp – respondeu Jemima, tremendo muito e corando
o rosto e pescoço murchos, enquanto dava as costas para a irmã. – Para
Becky Sharp, ela também está indo embora.
– MISS JEMIMA! – exclamou Miss Pinkerton, em alto e bom som. –
Você perdeu o juízo? Coloque o dicionário onde estava e nunca mais se
atreva a tomar tal liberdade no futuro.
– Bem, irmã, são apenas dois xelins e nove centavos, e a pobre Becky
vai se sentir muito infeliz se não ganhar um.
– Diga à Miss Sedley que a estou esperando – respondeu Miss Pinkerton.
Sem se atrever a dizer uma palavra, a pobre Jemima saiu correndo,
extremamente agitada e nervosa.
O pai de Miss Sedley era um comerciante de Londres e um homem
bastante rico, ao passo que Miss Sharp era uma aluna aprendiz, para quem
Miss Pinkerton já havia feito o bastante, ao menos é o que acreditava, sem
precisar lhe conferir a honra de presenteá-la com o dicionário.
Embora as cartas das diretoras de escolas mereçam a mesma confiança
dos epitáfios dos cemitérios, da mesma maneira como às vezes uma pessoa
realmente é merecedora de todos os elogios que o talhador esculpe sobre

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seus ossos, ou seja, que é um bom cristão, um pai exemplar, filho modelo,
esposa ou marido fiel, que verdadeiramente deixa uma família desconsola-
da pela sua perda, assim também nas escolas de um ou outro sexo ocorre
de vez em quando a saída de um aluno digno dos elogios outorgados pelo
desinteressado instrutor. Bem, Miss Amélia Sedley era uma jovem desta
espécie singular e merecia não apenas tudo o que Miss Pinkerton dizia so-
bre ela, mas também muitas qualidades encantadoras que a pomposa e
velha Minerva2 em forma de mulher não podia ver, dadas as diferenças de
posição e idade entre as duas.
Ela não só podia cantar como uma cotovia, ou como a célebre Mrs.
Billington; dançar como Hillisberg ou Parisot, bordar primorosamente e
soletrar tão bem como o próprio dicionário, mas também guardava em seu
peito um coração tão amável, sorridente, terno, gentil e generoso, que ha-
via conquistado o carinho de todos que dela se aproximavam, desde a pró-
pria Minerva até a pobre moça da copa e a filha vesga da confeiteira, que
tinha permissão para vender seus produtos, uma vez por semana, para as
moças da escola. Ela tinha doze amigas próximas e íntimas entre as vinte e
quatro moças que lá residiam. Mesmo a invejosa Miss Briggs nunca falava
mal dela; a ilustre e poderosa Miss Saltire (neta de lorde Dexter) reco-
nhecia que seu porte era elegante; e quanto à Miss Swartz, a riquíssima
mulata de São Kitt, no dia em que Amélia partiu, teve uma crise de choro
tão violenta que houve a necessidade de chamar o Dr. Floss, que quase a
obrigou à força a aspirar sais voláteis. Como é de se imaginar, tanto pela
posição quanto pelas virtudes eminentes de Miss Pinkerton, o afeto que
sentia por Amélia era tranquilo e digno, diferente de Miss Jemima, que
muitas vezes havia chorado diante da ideia da partida da menina e, não
fosse pelo medo que sua irmã inspirava, facilmente teria se deixado levar
por ataques de histerismo tão violentos quanto os da herdeira de São Kitt,
que pagava em dobro. No entanto, tal excesso de choro só era permitido
às hóspedes da escola. Sobre a honrada Jemima pesavam todas as contas,
a lavanderia, os remendos, a sobremesa, o serviço de mesa e os criados
para supervisionar. Mas por que falar tanto sobre a irmã da diretora? É
provável que não voltemos a ouvir falar dela a partir deste momento até o
final dos tempos, e que quando os grandes portões de ferro de filigrana se
fecharem sobre ela, nunca mais saia de lá, assim como sua terrível irmã,
no pequeno mundo da nossa história.
No entanto, como vamos ver e ouvir muito sobre Amélia, não há mal
2. Minerva é a deusa romana da sabedoria, das artes e da guerra. (N.T.)

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nenhum em dizer, no início de nossa relação, que ela era uma criaturinha
encantadora, e que tanto na vida real como nos romances, mais neste do
que naquela, abundam vilões da espécie mais sombria e que necessaria-
mente devemos nos alegrar por termos como companheira uma pessoa de
caráter tão doce e amigável. Como não se trata de uma heroína, não há
necessidade de descrever sua pessoa; na verdade, temo que seu nariz seja
muito pequeno e suas bochechas muito redondas e vermelhas para uma
heroína. Porém, seu rosto corado revela saúde, e seus lábios, o mais fresco
dos sorrisos; nos seus olhos resplandeciam pura alegria, exceto quando se
enchiam de lágrimas, o que ocorria com muita frequência, pois a tolinha
derramava rios de lágrimas por um canário morto, ou sobre um camun-
dongo que o gato, talvez, tivesse capturado; ou no final de um romance,
ainda que fosse estúpido; se alguém lhe dirigisse alguma palavra áspera,
se alguém tivesse o coração duro o suficiente para fazê-lo, ora, tanto pior
para eles. Até mesmo Miss Pinkerton, mulher austera e divina, deixou de
repreendê-la depois da primeira vez e, embora não compreendesse a sen-
sibilidade mais do que a álgebra, deu ordens especiais a todos os mestres
e professores para tratar Miss Sedley com a maior delicadeza, pois o trata-
mento severo era prejudicial a ela.
Assim, quando chegou o dia da partida, entre seus dois costumes opos-
tos, rir e chorar, Miss Sedley ficou muito desconcertada sobre como agir.
Ela estava contente por voltar para casa, mas muito triste por deixar a es-
cola. Nos últimos três dias de sua estada, a pequena Laura Martin, a órfã,
a seguia como um cachorrinho. Ela tinha que fazer e receber pelo menos
quatorze presentes, fazer quatorze promessas solenes de escrever todas as
semanas.
– Envie minhas cartas secretamente para meu avô, o conde de Dexter –
disse Miss Saltire (que, a propósito, era bastante pobre). – Não se preo-
cupe com a postagem, mas escreva todos os dias, minha querida – disse a
impetuosa, mas generosa e afetuosa Miss Swartz; e a pequena órfã Laura
Martin, segurando a mão da amiga, disse com lágrimas nos olhos: – Amé-
lia, quando eu escrever para você, chamarei você de mamãe.
Todos esses detalhes, estou certo de que Jones,3 ao ler este livro em seu
clube, considerará excessivamente tolos, triviais, bobos e ultra sentimen-
tais. Sim, eu posso ver Jones neste minuto (um pouco corado pela carne de
cordeiro e meio litro de vinho), pegando seu lápis e escrevendo embaixo das
palavras “tolo, bobo”, etc., e acrescentando a elas sua própria observação de
3. Jones é um sobrenome muito popular e aqui é usado como uma pessoa qualquer. (N.T.)

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“muito verdadeiro”. Bem, é natural que um homem genial admire o gran-
dioso e o heroico na vida e nos romances, então é melhor já ficar avisado e
buscar outra coisa para fazer.
Em seguida, as flores, os presentes, os baús e caixas de chapéu de Miss
Sedley foram arrumados na carruagem por Mr. Sambo, juntamente com
um baú de pele de vaca muito pequeno e desgastado pelo tempo, com a
etiqueta de Miss Sharp, a qual foi entregue por Sambo ao cocheiro com um
sorriso significativo, e recebido por ele com um escárnio tão significativo
quanto o sorriso. Então chegou o momento da despedida, momento que
foi consideravelmente aliviado pelo admirável discurso que Miss Pinkerton
dirigiu à sua discípula. Não que o discurso de despedida tenha induzido
Amélia a filosofar, nem que de algum modo a tenha armado de calma e
resignação, fruto de uma discussão, mas foi um discurso intoleravelmente
monótono, pomposo e tedioso e, portanto, tendo diante dos seus olhos o
medo da mestra, Miss Sedley não se atrevia, na sua presença, a ceder a
qualquer efervescência de dor particular. Um bolo de sementes e uma gar-
rafa de vinho foram servidos na sala de estar, como nas ocasiões solenes
das visitas dos pais. Depois das bebidas servidas, Miss Sedley estava livre
para partir.
– Vá dizer adeus à Miss Pinkerton, Becky! – disse Miss Jemima a uma
jovem a quem ninguém prestava atenção e que descia as escadas carregan-
do sua própria caixa de fitas.
– Suponho que é minha obrigação – disse Miss Sharp calmamente, e
para grande assombro de Miss Jemima. Tendo batido à porta e recebido
permissão para entrar, Miss Sharp avançou de maneira muito despreocu-
pada e disse em francês e com um sotaque perfeito: – Mademoiselle, je
viens vous faire mes adieux.4
Miss Pinkerton não entendia francês, apenas orientava aqueles que o
faziam; ela mordeu os lábios e, erguendo a venerável cabeça de nariz roma-
no (no topo da qual figurava um grande e solene turbante), disse:
– Miss Sharp, bom dia.
Enquanto a Semiramis de Hammersmith falava, ela acenou com uma
mão, tanto como uma forma de despedida como para dar à Miss Sharp a
oportunidade de apertar a mão que ela havia exposto para esse propósito.
Miss Sharp limitou-se a cruzar as mãos com um sorriso e uma reverência
muito frígidos, declinando a honra oferecida, o que obrigou Semiramis a
arranjar o turbante em um gesto de pura indignação. Na verdade, aquele
4. Livre tradução do francês: “Senhorita, venho me despedir de você”. (N.E.)

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foi um breve combate entre a jovem e a velha dama, no qual a última saiu
derrotada.
– Que Deus a abençoe, minha filha – disse ela, abraçando Amélia e
franzindo o cenho por cima do ombro da menina para Miss Sharp.
– Vamos, Becky – disse Miss Jemima, afastando a jovem, muito alar-
mada. E a porta da sala de visitas se fechou atrás delas para sempre.
Então chegou o momento da separação. Palavras não são suficientes
para descrevê-lo. Todos os criados estavam no salão, todas as queridas
amigas, todas as moças, o mestre de dança que acabara de chegar, e hou-
ve tanta confusão, abraços, beijos, lágrimas, gritinhos histéricos vindos do
quarto de Miss Swartz, a pensionista da sala de aula,5 como nenhuma pena
seria capaz de descrever e como o mais terno coração desejaria esquecer. O
abraço acabou e elas se separaram, isto é, Miss Sedley se separou de suas
amigas. Miss Sharp havia entrado recatadamente na carruagem alguns mi-
nutos antes. Ninguém chorou pela sua partida.
Sambo fechou a porta da carruagem atrás de sua jovem patroa em
prantos.
– Pare! – exclamou Miss Jemima, correndo para o portão com um em-
brulho.
– São alguns sanduíches, minha querida – disse ela para Amélia. –
Você pode ficar com fome, sabe, e Becky, Becky Sharp, aqui está um livro
para você que minha irmã... ou melhor, eu... bem, o dicionário Johnson,
você sabe. Você não deve nos deixar sem ele. Adeus. Pode seguir, cocheiro.
Deus as abençoe!
A amável criatura se retirou para o jardim, tomada pela emoção.
Mas, oh! Assim que a carruagem partiu, Miss Sharp colocou seu pálido
rosto para fora da janela e jogou o livro de volta no jardim.
Isso quase fez Jemima desmaiar de terror. – Bem, eu nunca... – disse
ela –, que audácia! – a emoção a impedia de completar qualquer frase.
A carruagem seguiu em frente, os grandes portões foram fechados e a
campainha tocou anunciando a aula de dança. As duas jovens faziam sua
entrada no mundo e, assim, diziam adeus a Chiswick Mall.

5. Uma pensionista de sala de aula é uma aluna privilegiada, que possui o seu próprio quarto e paga mais
por isso. (N.T.)

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