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21/10/2021 09:34 Queer o quê? Ativismo e estudos transviados
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O convite da revista CULT para contribuir neste dossiê, levou-me a relembrar a força
que textos de algumas teóricas queer (https://revistacult.uol.com.br/home/tag/queer/)
tiveram em minha trajetória. Revi meus dilemas provocados pela falta de um suporte
teórico para minhas angústias durante a produção de minha tese de doutorado.
Naquele momento, nos início do anos 2000, pouquíssima bibliografia tinha sido
traduzida para o português. Fosse pelo tema da minha pesquisa (transexualidade) ou
pelo recorte teórico que elegi para interpretá-la (estudos queer), sentia um frio na
barriga quando pensava que teria que enfrentar uma banca no meu Programa de Pós-
gradução em Sociologia. Quando me perguntavam sobre o tema de minha pesquisa e
eu dizia do que se tratava, eu escutava geralmente, um “hummm… mas você não está
fazendo uma tese de Psicologia?”. A mesma estranheza era notável quando eu tentava
explicar os meus aportes teóricos: “Queer?! O que é isto?”. Talvez um dos maiores
dramas dos trabalhos considerados pioneiros seja a falta de espaços mais consolidados
para o diálogo, dimensão fundamental para a produção científica.
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A minha convivência não se limitava ao mundo do hospital. Foram horas, dias, meses
de convivência com pessoas que tinham uma agência e jogos de cintura para lidar com
situações limite de humilhação que poucas vezes encontrei nas pessoas não trans.
Afinal, se não tivessem essa capacidade não sobreviveriam, pois, geralmente são
expulsas de casa e de todas as instituições sociais normatizadas ainda muito jovens.
Não demorou muito para eu concluir que o problema da literatura ensinada nas
universidades padecia de um problema: os seus formuladores não sabiam nada,
absolutamente nada, dos sujeitos que diziam interpretar. Eram pequenos fragmentos
pinçados das visitas das pessoas trans aos consultórios e que eram lidos por uma
determinada concepção de normalidade de sexualidade e de gênero.
Foi com uma alegria quase infantil que eu li os textos de Judith Butler
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/judith-butler/) e outras teóricas queer. A
partir daquele momento, o dispositivo transexual (como eu nomeei os saberes
produzidos pelo saber/poder médico voltados para o controle e patologização das
experiências trans) passaram a ser lidos como uma poderosa engrenagem que
objetivava dar suporte à concepção segundo a qual nossas identidades sexuais e de
gênero seriam um reflexo de estruturas naturais (hormônios, cromossomos, neurais).
A patologização das experiências ou expressões de gênero fora da norma começou a se
configurar como um mecanismo que assegura a própria existência da naturalização
das identidades.
Logo depois, eu fiz parte de minha pesquisa em coletivos trans espanhóis. Era comum
escutar as pessoas nas reuniões contando os absurdos que os psicólogos tinham lhes
perguntado: “Você é muito emocional?”, “Você gosta de cozinhar?”. Para produção de
um parecer que iria autorizar as pessoas trans a fazer a cirurgia, os especialistas
acionavam os mapas socialmente construídos para definir o que é ser um homem e
ser uma mulher e que pretende coincidir masculinidades = homens e feminilidades =
mulheres. A autorização para fazer a cirurgia demora, no mínimo, dois anos. Durante
esse período o/a candidato/a (assim é como identificam as pessoas trans que esperam
a cirurgia) tem uma rotina semanal de idas ao hospital. O protocolo é organizado em
torno de três questões; 1) a exigência do teste de vida (os/as candidatos/as passam a
usar as roupas apropriadas para o gênero com o qual se identifica); 2) a terapia
hormonal; 3) os testes de personalidade (HIP, MMPI, Haven e o Rorscharch). Além das
sessões de terapia e dos exames clínicos. Enfim, uma parafernália discursiva voltada à
permanente patologização das experiências trans.
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Não existe um processo específico para a constituição das identidades de gênero para
as pessoas trans. O gênero só existe na prática, na experiência, e sua realização se dá
mediante reiterações cujos conteúdos são interpretações sobre o masculino e o
feminino em um jogo, muitas vezes contraditório e escorregadio, estabelecido com as
normas de gênero. O ato de pôr uma roupa, escolher uma cor, acessórios, o corte de
cabelo, a forma de andar, enfim, a estética e a estilística corporal são atos que fazem o
gênero, que visibilizam e estabilizam os corpos na ordem dicotomizada dos gêneros.
Os/as homens/mulheres não trans se fazem na repetição de atos que se supõe sejam
os mais naturais. Através da citacionalidade de uma suposta origem, trans e não trans
se igualam. Nossos corpos são fabricados por tecnologias precisas e sofisticadas que
têm como um dos mais poderosos resultados, nas subjetividades, a crença de que a
determinação das identidades está inscrita em alguma parte dos corpos.
Nos últimos meses tenho vivido em Nova York e assistido a palestras sobre diversas
dimensões da teoria e ativismo queer. Nos centros de estudos que eram dedicados às
questões de gays, lésbicas e transgêneros (identidade local para “abrigar” a
multiplicidade de expressões de gênero) também passaram a adotar o Q (queer) em
suas siglas. No movimento social também é comum escutarmos LGBTQ (lésbicas,
gays, bissexuais, transgêneros e queer). A primeira conclusão: os estudos/ativismo
queer conseguem um nível de adesão pulsante se comparada ao contexto brasileiro.
Reivindicar uma não-identidade, lutar contra as identidades essencializadas, afirmar-
se queer no ativismo, construir teorias com esta nomeação, faz sentido no contexto
local. Mas como traduzir o queer para o contexto brasileiro? Qual a disseminação deste
campo de estudos no Brasil? Se eu perguntar para qualquer pessoa no Brasil “você é
queer?”, provavelmente escutarei “o que é queer?”.
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Retrato de ‘crossdressers’ em um clube em Pitsburgo, na Pensilvânia. (Reprodução Art & Queer Culture, de C. Lord & R. Meyer,
2013)
O desejo de ser amado, respeitado, incluído, faz com que os sujeitos “anormais”
passem a desejar o desejo daquele que admiramos, mesmo que isso signifique uma
profunda violência subjetiva. O reconhecido, nestes termos, não acontece mediante a
afirmação da diferença, mas pela submissão ao desejo do outro, que passa a me
constituir como sujeito no mundo. Muitas vezes escutamos uma criança insultando
outra de “bicha” ou de “sapatão”. Ela provavelmente não sabe nada sobre o que
significa estes termos, mas entende que é uma coisa feia, e chega a esta conclusão
pelas fisionomias de nojo e ódio dos seus pais ao proferirem estas palavras.
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Acredito que “o pulo do gato” que os estudos/ativismo queer inauguram, é olhar para
o “senhor” e dizer: “eu não desejo mais teu desejo. O que você me oferece é pouco.
Isso mesmo, eu sou bicha, eu sou sapatão, eu sou traveco. E o que você fará comigo?
Eu estou aqui e não vou mais viver uma vida miserável e precária. Quero uma vida
onde eu possa dar pinta, transar com quem eu tenha vontade, ser dona/dono do meu
corpo, escarrar no casamento como instituição apropriada e única para viver o amor e
o afeto, vomitar todo o lixo que você me fez engolir calada/o.”
Neste momento, a dialética (binária) do senhor e escravo tem que acertar suas contas
com um terceiro termo: o abjeto. No entanto, o outro-abjeto sempre esteve presente,
como ente fantasmagórico fazendo seu trabalho incessante de produção da vergonha e
garantindo, assim, por sua presente-ausência, a reprodução das normas de gênero.
“Queer” só tem sentido se assumido como lugar no mundo aquilo que serviria para me
excluir. Portanto, se eu digo queer no contexto norte-americano é inteligível, seja
como ferramenta de luta política ou como agressão. Qual a disputa que se pode fazer
com o nome “queer” no contexto brasileiro? Nenhuma.
Ainda soa como uma esquisitice homens que se afirmam feministas, mulheres trans
que se confrontam com um feminismo conservador que negam a possibilidade de se
viver o gênero fora dos marcos das identidades genitalizados (onde mulher/vagina e
homem/pênis seriam as expressões legítimas e normais das feminilidades e
masculinidades). Contraditoriamente, os movimentos sociais que demandam mais
políticas públicas referendadas nas supostas diferenças naturais estão reforçando o
poder do Estado no controle e seleção das vidas.
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