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ALISTER E.

MCGRATH

Fundamentos do diálogo
entre Ciência e Religião

Tradução
Jaci Maraschin

Edições Loyola
Título original:
Science & Religion: an introduction
© 1999 by Alister E. McGrath
Blackwell Publishing, Oxford
ISBN 0-631-20842-9

PREPARAÇÃO: Maurício B. Leal


DIAGRAMAÇÃO: Minam de Melo
REVISÃO: J. Brito

Edições Loyola
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ISBN: 85-15-03111-6
EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2005
Sumário

Prefácio 9
Como usar este livro 11
1 Marcos históricos 13
Síntese medieval 13
Nova astronomia: Copérnico e Galileu 19
Universo mecanicista: Newton e o deísmo 30
Origens da humanidade: controvérsia darwinista 35
2 Religião: aliada ou inimiga da ciência? 43
Definição de religião: esclarecimentos 44
Variedades no interior das religiões: o caso do cristianismo 46
Protestantismo liberal 47
Modernismo 51
Neo-ortodoxia 55
Evangelicalismo 58
Modelos de interação entre ciência e religião 62
Modelos em confronto 62
Modelos de diálogo 67
Religião e desenvolvimento das ciências naturais 69
Conservadorismo da religião tradicional 69
Desafio da religião tradicional pela cosmovisão científica 70
Estudar a natureza é estudar Deus 71
Ordenação divina da natureza 72
3 Religião e filosofia da ciência 77
Racionalismo e empirismo 78
Realismo e idealismo 84
Tese de Duhem-Quine 89
Positivismo lógico: o Círculo de Viena 94
Falsificação: Karl Popper 100
Mudanças de paradigma: Thomas S. Kuhn 105
Conhecimento e compromisso: Michael Polanyi 109
4 Ciência e filosofia da religião 115
Argumentos filosóficos em favor da existência de Deus 116
Argumento ontológico de Anselmo de Cantuária 116
As cinco vias de Tomás de Aquino 119
Ciência e argumentos em favor da existência de Deus 123
Argumento cosmológico 123
O argumento kalam 125
Argumento teleológico 128
Ação de Deus no mundo 132
Deísmo: Deus age por meio das leis da natureza 132
Tomismo: Deus age por meio de agentes secundários 134
Teologia do processo: Deus age por meio de persuasão 135
5 Criação e ciências 143
Alguns temas relacionados com o conceito de criação 143
Criação: breve análise teológica 145
Três modelos de criação 147
Emanação 148
Construção 148
Expressão artística 149
Criação e tempo 150
Criação e ecologia 152
Criação e leis da natureza 156
6 Teologia natural: Deus na natureza 163
Objeções à teologia natural 163
Objeções teológicas 164
Objeções filosóficas 168
Três abordagens da teologia natural 171
Apelo à razão 171
Apelo à ordem do mundo 171
Apelo à beleza da criação 173
Teologia natural e teologia revelada 176
7 Modelos e analogias em ciência e religião 181
Modelos nas ciências naturais 182
Analogia, metáfora e religião 187
Ambivalência da analogia: estudos de caso
em ciência e religião 196
Analogia da "seleção natural" 196
Analogia do "Deus pai" 200
Modelos, analogias e metáforas: ciência e religião
comparadas 203
Conceito de complementaridade 206
Complementaridade na teoria quântica 207
Complementaridade em teologia 210
8 Questões em ciência e religião 221
Física e cosmologia 222
Big bang 223
Princípio antrópico 226
Biologia 232
Charles Darwin (1809-1882) 233
Neodarwinismo: Richard Dawkins 237
Teísmo evolucionário 239
Psicologia 241
Ludwig Feuerbach (1804-1872) 242
William James (1842-1910) 246
Sigmund Freud (1856-1939) 250
9 Estudos de caso em religião e ciência 257
Ian G. Barbour (1923-) 258
Charles A. Coulson (1910-1974) 260
Wolfhart Pannenberg (1928-) 263
Arthur Peacocke (1924-) 266
John Polkinghorne (1930-) 270
Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955) 273
Thomas F. Torrance (1913-) 277
Conclusão 281
Bibliografia 285
Citações 297
Índice de nomes 307
Prefácio

O ESTUDO DA CIÊNCIA e da religião é uma das atividades


mais fascinantes da inteligência humana. O crescente interesse nes-
sa área é visível na grande circulação de livros e documentos sobre
Deus e física, espiritualidade e ciência e sobre os mistérios da natu-
reza e do destino humanos. Hoje há um sem-número de escolas,
seminários e universidades que oferecem cursos sobre esse tema,
atraindo audiências sempre interessadas e variadas.
No entanto, muitas pessoas interessadas por esse assunto mos-
tram-se desejosas de aprofundar seus conhecimentos básicos a res-
peito dele. Percebem que para apreciar a complexa interação entre
ciências naturais e religião faz-se necessário um certo conhecimen-
to operacional de pelo menos uma religião e uma área científica, de
preferência física ou biologia. Assim, muitos que gostariam de explo-
rar um campo tão fascinante quanto esse sentem-se desanimados
em razão da falta de conhecimentos prévios sobre o tema. Este livro
procura lidar com essa situação partindo do pressuposto de que seus
leitores conhecem pouco, ou até mesmo quase nada, a respeito de
ciências naturais e religião — procura, pois, partir do zero.
Trata-se aqui, então, de uma introdução aos temas principais
relacionados com essas duas áreas do conhecimento. Os que
porventura já estejam familiarizados com alguns aspectos desse es-
tudo vão se dar conta, naturalmente, de que nem todas as informa-
ções aqui transmitidas lhes trarão novidades. O autor espera que
10 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

esse fato não torne o texto aborrecido ou entediante. De qualquer


forma, o interesse principal do livro é o estudo do relacionamento
entre ciência e religião. Pode ser, contudo, que muitos dos leitores já
conhecedores dos temas aqui tratados encontrem neste texto novas
maneiras de interpretação que lhes sejam de valia.
Faz mais de vinte anos que tenho me interessado popessa área
de estudo. Comecei minha carreira acadêmica na Universidade de
Oxford, no campo da química, especializando-me na teoria quântica
antes de defender meu doutorado em biofísica molecular. Depois
disso estudei teologia em Oxford e Cambridge, concentrando-me
em especial nas relações entre ciência e religião, com ênfase nos
séculos XVI e XIX. Espero que minha própria experiência nesse campo
possa ajudar outras pessoas preocupadas com o mesmo tema.
Para escrever este livro fui enormemente ajudado por pesquisa-
dores dessas duas áreas, separadas ou em mútua relação. Como são
muitos para nomear aqui, espero que aceitem meu reconhecimento
pela assistência dada, pelo incentivo e pelo apoio. Sou especialmen-
te grato à Fundação John Templeton pelo auxílio concedido durante
o tempo da redação do texto.
ALISTER MCGRATH
Oxford, junho de 1998
Como usar este livro

ES'l E LIVRO TEM a finalidade de introduzir os leitores em al-


guns dos principais temas do estudo da ciência e da religião. Pressu-
põe, pois, que saibam muito pouco ou até mesmo que nada saibam
a respeito do assunto. Por isso, tentará abranger o tema tanto quanto
possível no espaço disponível, consciente de suas limitações.

(1) O material deve ser lido na ordem proposta. Cada capítulo


pressupõe que o leitor já conhece o material apresentado no(s)
capítulo (s) anterior (es) .
(2) É essencial que o leitor tome conhecimento dos três mar-
cos históricos principais no desenvolvimento das relações
entre ciência e religião: os debates astronômicos do século
XVI e início do século XVII; o surgimento da cosmovisão
newtoniana no final do século XVII e começo do século
XVIII; e a controvérsia darwinista do século XIX. Esses
marcos são considerados, em geral, fundamentais para o
desenvolvimento das relações entre a ciência e a religião.
Para se apreciar esse desenvolvimento, é preciso ter com-
preendido bem esses temas básicos.
(3) Este livro pretende equipar seus leitores para outras leitu-
ras e outros estudos. No final de cada capítulo aparecem
sugestões para leituras complementares. Tais referências
destinam-se a oferecer possibilidades de escolha segundo
os interesses específicos de cada um. Os que tiverem estu-
12 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

dado toda a matéria desta obra estarão aptos a examinar


outras obras e artigos apresentados nas bibliografias e te-
rão adquirido novos conhecimentos nessa fascinante área
de estudo. Todas as fontes das citações mais importantes
no texto estão indicadas no final do livro (pp. 297-305).
(4) Os leitores devem sempre ter em mente que este livro é
apenas uma introdução! Espera-se que sirva para despertar
o apetite para novos conhecimentos: por isso oferece suges-
tões de inúmeras outras leituras. Como qualquer outra obra
introdutória, esta sofre também de severas limitações de es-
paço, com a inevitável conseqüência de nem sempre tratar
de todos os temas com a extensão que por certo mereceriam.
1
Marcos históricos

PARA SE ENTENDER a interação da ciência com a religião é


preciso examinar três marcos principais: os debates astronômicos
ocorridos nos séculos XVI e XVII; o surgimento da visão newtoniana
de mundo no final do século XVII e início do século XVIII; e a con-
trovérsia darwinista do século )(EX. Este capítulo pretende considerar
esses debates indicando suas preocupações centrais e sua impor-
tância para o tema do livro. Como os três debates são constante-
mente mencionados na literatura relacionada com "ciência e reli-
gião" — bem como, naturalmente, neste texto —, convém que os
leitores procurem dominar as idéias básicas que os orientam bem
como seus desenvolvimentos.
Estudaremos, inicialmente, como se constituíram os fundamen-
tos intelectuais da ciência moderna na Idade Média, porque foram
eles que estabeleceram o que veio depois.

Síntese medieval

Sugere-se, às vezes, que a revolução científica dos séculos XVI e


XVII deva muito pouco à Idade Média. Tal ponto de vista, muito
comum na literatura mais antiga que tratava da história da ciência,
tem sido recentemente criticado por especialistas da área, como, por
exemplo, Edward Grant, que se mostra convencido de que as ori-
14 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

gens da revolução científica remontam à Idade Média. Para ele, o


período medieval foi responsável pela criação do contexto intelec-
tual no qual as ciências naturais puderam se desenvolver na quali-
dade de disciplinas intelectuais sérias, oferecendo-lhes idéias e
métodos para seu desenvolvimento.
Há, pois, três momentos que podem ser considerados funda-
mentais para o estabelecimento do contexto no qual as ciências
naturais vieram a se desenvolver. São os seguintes.

(1) Na Idade Média importantes textos científicos da antiga


tradição grega e árabe foram traduzidos para o latim, então
a língua corrente da comunidade erudita ocidental euro-
péia. Assim, apareceram traduções não só da obra de
Aristóteles mas de muitos comentários árabes de seus tex-
tos. A redescoberta de Aristóteles produziu enorme impac-
to sobre a teologia e a filosofia medievais em escritores como
Tomás de Aquino, estimulando-lhes a reflexão. Tais textos
— não limitados apenas aos escritos de Aristóteles — esti-
mularam também o debate a respeito das ciências naturais.
Embora se possa imaginar que as ciências naturais teriam
se desenvolvido mesmo sem a ajuda desses textos, sem eles,
no entanto, esse desenvolvimento teria sem dúvida sido
retardado.
(2) As grandes universidades da Europa ocidental foram fun-
dadas na Idade Média. Elas contribuíram decisivamente para
o desenvolvimento das ciências naturais. Seus estudantes
aprendiam lógica, filosofia natural, geometria, música, arit-
mética e astronomia. A introdução de cursos de filosofia
natural no currículo abria possibilidades para o estudo de
grande número de temas científicos. As universidades me-
dievais típicas eram compostas de quatro faculdades: artes,
medicina, direito e teologia. A faculdade de artes oferecia
as bases para estudos mais avançados. Observemos que era
nessa faculdade que se situavam os cursos de "filosofia
natural".
1 Marcos históricos 1 15

(3) Surgiu uma nova classe de "filósofos-teólogos naturais",


quase sempre no contexto universitário, convencidos de que
o estudo do mundo natural era teologicamente legítimo.
Embora Aristóteles fosse considerado um filósofo pagão
(conseqüentemente, de pouco valor para os cristãos), ofe-
recia recursos para a melhor compreensão do mundo e,
portanto, do Deus que o havia criado. Convém observar
que muitos dos grandes nomes envolvidos com ciência
natural no mundo medieval, como Robert Grosseteste,
Nicola Oresme e Henry de Langenstein, foram teólogos que
não viam contradição entre a fé e a investigação da ordem
natural.

A crescente ênfase na "filosofia natural" muito contribuiu para o


surgimento das ciências da natureza na Europa ocidental. Deve-se
levar em consideração, ainda, a atenção dada nessa época à inter-
pretação da Bíblia, que teria importantes desdobramentos no século
XVI. As leituras mais superficiais da Bíblia pareciam sugerir um uni-
verso, criado em seis dias, centrado na terra (geocêntrico). A huma-
nidade teria sido criada no sexto dia. Em face das inúmeras discus-
sões a respeito das possíveis interpretações dos primeiros capítulos
do livro do Gênesis, abriam-se caminhos para novas leituras bem
mais simpáticas aos achados das ciências naturais.
Sabia-se que todos os textos precisavam ser interpretados. A
Bíblia cristã não era exceção. Em certo sentido, a história da teologia
cristã pode ser entendida como a história da interpretação bíblica.
Como algumas passagens eram interpretadas literalmente e outras
de modo não-literal ou alegórico, o desenvolvimento dessa questão
adquiriu enorme importância para os estudiosos da Idade Média.
Esse debate, no entanto, fundamentava-se no período patrístico,
alguns séculos antes. Eram duas as principais escolas de interpreta-
ção bíblica dessa época, a de Alexandria e a de Antioquia. A escola
de Alexandria baseava-se nos métodos desenvolvidos pelo escritor
judeu Fílon de Alexandria (c. 30 a.C.—c. 45 d.C.). Partia de antigas
tradições judaicas, que permitiam suuplementar as interpretações
16 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

literais com a ajuda da alegoria. Mas o que significava alegoria? O


filósofo grego Heráclito a definia como "dizer alguma coisa e sig-
nificar uma outra diferente do que havia sido dito". Fílon entendia
que era necessário procurar, sob o sentido superficial da escritura,
seu sentido mais profundo. Tais idéias foram adotadas por teólogos
alexandrinos, entre os quais Clemente, Orígenes e Dídimo, o Cego.
Na verdade, Jerônimo referia-se jocosamente a ele como "Dídimo,
oVisionário", por causa das intuições espirituais resultantes da apli-
cação do método alegórico em suas interpretações bíblicas. O modo
como esse método era empregado pode ser exemplificado por meio
das interpretações de passagens de imagens centrais do Antigo Tes-
tamento feitas por Orígenes. A conquista da terra prometida por
Josué, interpretada alegoricamente, referia-se à conquista do peca-
do na Cruz efetuada por Cristo. A legislação sacrifical do Levítico
indicava os futuros sacrifícios espirituais dos cristãos.
Em contraste, a escola de Antioquia procurava interpretar os
textos bíblicos a partir de seu contexto histórico. Escritores como
Deodoro de Tarso, João Crisóstomo e Teodoro de Mopsuéstia enfati-
zavam a localização histórica das profecias do Antigo Testamento.
Tal preocupação estava ausente nos escritos de Orígenes e de outros
autores da escola de Alexandria. Assim, Teodoro, ao considerar as
profecias do Antigo Testamento, acentuava a relevância de suas
mensagens tanto para seus ouvintes originais como para os cristãos
no futuro. Cada oráculo profético, ao ser interpretado, possuía ape-
nas um sentido histórico consistente, o literal. Em conseqüência,
Teodoro tendia a interpretar apenas algumas passagens do Antigo
Testamento em referência a Cristo, enquanto a escola de Alexandria
considerava Cristo o conteúdo oculto da maioria das passagens, tanto
proféticas como históricas.
Na Igreja ocidental, desenvolveram-se tendências um pouco
diferentes. Em muitos de seus escritos, Ambrósio de Milão expôs
seu sistema de compreensão tríplice do sentido das Escrituras: além
do significado natural, o intérprete deveria discernir os sentidos
morais e racionais contidos no texto. Agostinho seguiu esse cami-
nho, simplificando-o porém para dois tipos de interpretação, o his-
Marcos históricos 1 17

tórico-literal e o alegórico-místico-espiritual, embora admitindo que


algumas passagens pudessem ser interpretadas das duas maneiras.
"Os ditos dos profetas possuem significado tríplice, pois às vezes
referem-se à Jerusalém terrena, outras vezes à cidade celestial e,
ainda, em certas ocasiões, a ambas". Não se aceitava a interpretação
meramente histórica do Antigo Testamento; a chave de sua compreen-
são era a interpretação correta.
A distinção entre o sentido literal ou histórico das Escrituras, de
um lado, e o sentido espiritual ou alegórico mais profundo, de outro,
acabou por ser aceita pela Igreja durante os primeiros séculos da Ida-
de Média. O método aceito pela Igreja para a interpretação bíblica,
nessa época, era conhecido em geral pelo nome de Quadriga, ou do
"sentido quádruplo das Escrituras". A origem desse método é a dis-
tinção entre os sentidos literal e espiritual. Acreditava-se, então, que
as Escrituras possuíam quatro sentidos diferentes. Além do sentido
literal havia outros três: o alegórico, que definia aquilo no que os cris-
tãos deveriam crer; o tropológico ou moral, que determinava o que os
cristãos deveriam fazer; e o analógico, voltado para mostrar o que
deveriam esperar. Esses quatro sentidos podem ser assim resumidos:

(1) Sentido literal , no qual o texto é recebido como está escrito.


(2) Sentido alegórico, que interpreta certas passagens das Es-
crituras com a finalidade de estabelecer doutrinas. Trata-se
de passagens pouco compreensíveis ou possuidoras de sen-
tido literal inaceitável pelos leitores, por razões teológicas.
(3) Sentido tropológico ou moral, que interpreta passagens
destinadas à orientação moral para a conduta cristã.
(4) Sentido analógico, que interpreta passagens indicativas dos
fundamentos da esperança cristã, voltadas para a consu-
mação futura das promessas divinas na Nova Jerusalém.

Procurava-se evitar certa fraqueza potencial ao se insistir que


não se poderia crer em nada com base no sentido não-literal das
Escrituras a não ser que pudesse ser primeiramente estabelecido
com base no sentido literal. Tal insistência na prioridade do sentido
18 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

literal do texto sagrado envolvia certa crítica ao método alegórico de


Orígenes que deixava aberta a possibilidade de se interpretar qual-
quer passagem da Bíblia de acordo com a interpretação "espiri-
tual"escolhida.
Estabelecia-se, no ápice da Idade Média, certa metodologia so-
fisticada de interpretação bíblica que permitia a algumas passagens
a interpretação literal e a outras a espiritual. Agostinho acentuava a
importância de se respeitar as conclusões da ciência nos trabalhos
exegéticos. Ele mesmo mostrou a importância disso em seu comen-
tário ao Gênesis. Acreditava que certas passagens abriam-se genui-
namente a diversas interpretações; devia-se, pois, incentivar a pes-
quisa científica para ajudar os intérpretes no caminho dos modos mais
adequados de compreensão de determinados textos:
Em assuntos obscuros que ultrapassam a nossa visão, encontramos
nas Sagradas Escrituras passagens que podem ser interpretadas de
diferentes maneiras sem prejuízo para a fé recebida. Nesses casos, não
deveríamos apressadamente tomar partido, pois pode acontecer que o
progresso da pesquisa nos mostre que estávamos errados. Não deve-
ríamos lutar em favor de nossa própria interpretação mas pelo ensino
das Sagradas Escrituras. Não deveríamos querer que o sentido das
Sagradas Escrituras se conformasse com a nossa interpretação, mas
que a nossa interpretação se conformasse com o sentido das Sagradas
Escrituras.

Agostinho, portanto, insistia que a interpretação bíblica levasse


em consideração o que pudesse ser aceito como fato estabelecido.
De certa forma, tal tipo de interpretação bíblica permitiu que a
teologia cristã não caísse na armadilha da visão pré-científica do
mundo. Edward Grant demonstrou a importância deste fato em
relação com o desenvolvimento da cosmologia medieval entre 1200
e 1687, observando especialmente a maneira como o método de
Agostinho foi adotado e desenvolvido por Tomás de Aquino. Os
resultados gerais do método de Agostinho foram adotados por in-
fluentes teólogos católicos romanos no século XVI. Sabe-se que seu
Marcos históricos 1 19

notável comentário sobre o Gênesis teria influenciado o desenvol-


vimento da interpretação bíblica de Galileu.
Como veremos, vamos nos reportar a esses temas ao tratarmos
das principais controvérsias entre ciência e religião que incluem os
debates astronômicos dos séculos XVI e XVII ao redor das teorias de
Copérnico e Galileu. É o que consideraremos a seguir.

Nova astronomia: Copérnico e Galileu

Cada época caracteriza-se por determinadas crenças responsá-


veis por sua visão de mundo. A Idade Média não foi exceção. Um
dos mais importantes elementos da cosmovisão medieval era a crença
de que o sol e os demais corpos celestes — como a lua e os planetas
— giravam ao redor da Terra. Considerava-se esse conceito geo-
cêntrico do universo auto-evidente e, portanto, verdadeiro. A Bíblia
era interpretada à luz dessa idéia. Os pressupostos geocêntricos eram
aplicados a inúmeras passagens. A maioria das línguas vivas ainda
dá testemunho disso. Por exemplo, mesmo em nossa língua moder-
na ninguém se escandaliza ao ouvir que "o sol se levantou às 6 da
manhã", a despeito do fato de que isso refletiria a crença de que ele
circula ao redor da terra. Não fazia muita diferença no dia-a-dia das
pessoas saber se de fato o geocentrismo era verdadeiro ou não. Era
um assunto de pouco interesse.
O modelo de universo mais amplamente aceito no início da Idade
Média fora imaginado por Cláudio Ptolomeu, astrônomo que vivera
na cidade egípcia de Alexandria na primeira metade do século II.
Em sua obra Almagesto, reunira idéias já existentes a respeito dos
movimentos da lua e dos planetas a partir das seguintes premissas:

(1) A terra é o centro do universo.


(2) Todos os corpos celestes circulam ao redor da terra.
(3) Essas rotações são circulares, o centro das quais se moven-
do também em outro círculo. Esta idéia central, original-
mente de Hiparco, baseia-se na noção de epiciclos — deter-
20 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

minado movimento circular impõe-se sobre outro movi-


mento circular.

A observação cada vez mais pormenorizada e precisa do movi-


mento dos planetas e das estrelas causava dificuldades cada vez
maiores para a sustentação dessa teoria. Inicialmente, as discrepân-
cias anotadas podiam ser acomodadas com o acréscimo de novos
epiciclos. No final do século XV, o modelo se tornara tão complexo
e insustentável que estava à beira do colapso. Mas o que se poderia
imaginar em seu lugar?
Durante o século XVI, o modelo geocêntrico do sistema solar foi
abandonado em favor do que postulava que o sol ocupava o lugar
central, o heliocêntrico, no qual a terra era apenas um dos inúmeros
planetas em sua órbita. O novo modelo representava uma mudança
radical. Tratava-se, na verdade, de uma das mais importantes mu-
danças na percepção humana da realidade acontecida no último
milênio. Embora estejamos acostumados a chamar esse fato de "re-
volução copernicana", concorda-se, em geral, que tais mudanças
dependeram de três grandes cientistas.

(1) Nicolau Copérnico (1473-1543), cientista polonês, afirma-


va que os planetas moviam-se em círculos ao redor do sol.
A terra, além de sua rotação ao redor do sol, também circu-
lava em torno de seu próprio eixo. O aparente movimento
das estrelas e dos planetas resultava da combinação da ro-
tação da terra em torno de seu próprio eixo e de sua rotação
ao redor do sol. O modelo possuía simplicidade e elegância
e se mostrava mais favorável à aceitação do que o modelo
ptolomaico, cada vez mais complicado. Entretanto, não
conseguia ainda explicar os dados provenientes da obser-
vação. A teoria precisava se aperfeiçoar para ser aceita.
(2) O cientista dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), num
observatório de uma ilha perto de Copenhagen, relizou
inúmeras observações precisas sobre o movimento dos pla-
netas entre 1576 e 1592. Suas observações fundamentaram
Marcos históricos 21

o modelo modificado do sistema solar de Kepler. Kepler era


assistente de Tycho quando este foi obrigado a se mudar para
a Boêmia depois da morte de Frederico II da Dinamarca.
(3) Johannes Kepler (1571-1630) concentrou suas observações
nos movimentos do planeta Marte. O modelo copernicano,
segundo o qual os planetas circulavam em órbitas ao redor
do sol, não coincidia com suas observações. Em 1609, Kepler
anunciou que tinha descoberto duas leis gerais sobre o mo-
vimento de Marte. Em primeiro lugar, Marte rotava em for-
ma elíptica com o sol num de seus dois focos. Em segundo
lugar, a linha de conjunção entre Marte e o sol cobria áreas
iguais em iguais períodos de tempo. Em 1619, ele estendeu
essas duas leis aos demais planetas e descobriu uma terceira
lei: o quadrado do tempo periódico de um planeta (isto é, o
tempo levado pelo planeta para completar uma órbita ao redor
do sol) era diretamente proporcional ao cubo de sua distân-
cia média do sol.

O modelo de Kepler representava importante modificação das


idéias de Copérnico. Convém lembrar que o novo modelo radical de
Copérnico não conseguia explicar os dados da observação empírica,
apesar de sua elegância e sua simplicidade, por causa de sua insis-
tência na circularidade das órbitas. Suas afirmações, curiosamente,
pareciam vir da geometria euclidiana: Copérnico nunca conseguira
se libertar completamente da maneira clássica grega de pensar.
A publicação da obra de Copérnico De revolutionibus orbium
coelestium (Sobre os movimentos dos corpos celestes) em maio de
1543 causou pouca sensação, embora a aceitação final do modelo
tivesse ainda de esperar pelo elaborado trabalho de Kepler nas pri-
meiras duas décadas do século XVII. Como já vimos, o antigo mo-
delo (conhecido em geral como "teoria geocêntrica") era ampla-
mente aceito pelos teólogos da Idade Média. Estes haviam se torna-
do tão familiarizados com a leitura dos textos bíblicos por meio da
visão geocêntrica que sentiam agora dificuldades para acompanhar
a nova abordagem.
22 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

As primeiras defesas da teoria copernicana, como o Treatise on


Holy Scripture and the Motion of the Earth (Tratado sobre as Sagradas
Escrituras e o movimento da Terra), de G. J. Rheticus, considerado o
mais antigo escrito conhecido que examina explicitamente a relação
da Bíblia com a teoria copernicana, tinham de tratar de duas coisas.
Em primeiro lugar, precisavam examinar a evidência empírica se-
gundo a qual a terra e outros planetas realizavam suas órbitas em
torno do sol. Em segundo lugar, precisavam demonstrar que esse
ponto de vista era consistente com a cosmovisão bíblica, que por
muitos séculos dependera da concepção geocêntrica do universo.
Como já mostramos, a evidência empírica só foi levada em conside-
ração depois das modificações feitas por Kepler no modelo coper-
nicano. Como, porém, podiam ser encarados os aspectos teológicos
desse modelo? Como reconsiderar as idéias em face da mudança
radical do universo centralizado na terra para o heliocentrismo?
Não há dúvida de que o surgimento do heliocentrismo levou os
teólogos a reformular a maneira como algumas passagens bíblicas
eram interpretadas. Já examinamos anteriormente (ver p. 16-19),
como alguns temas relacionados com a interpretação bíblica foram
atingidos. Neste momento, no entanto, pretendemos estudar três
tipos de interpretação na tradição cristã. Nos parágrafos seguintes
vamos examiná-los e mostrar sua importância para o diálogo entre
ciência e religião. Em termos gerais, são estes:

(1) O modo literal considera o texto ao pé da letra. Por exem-


plo, ao interpretar o primeiro capítulo do Gênesis afirma
que a obra da criação relizou-se em seis períodos de 24
horas cada um.
(2) O modo não-literal ou alegórico admite que certas passa-
gens das Escrituras foram escritas em estilo inadequado à
interpretação literal. Durante a Idade Média, reconheciam-
se três sentidos não-literais das Escrituras, coisa que no
século XVI era considerada demasiadamente elaborada.
Segundo esse ponto de vista, os primeiros capítulos do
Gênesis são narrativas poéticas ou alegóricas, das quais se
Marcos históricos 23

podem tirar princípios éticos e teológicos; não seriam, as-


sim, tratados como documentos históricos literais sobre as
origens da Terra.
(3) O terceiro modo baseava-se na idéia de acomodação. Esse tipo
de interpretação acabou por ser considerado o mais impor-
tante método para a interação entre interpretação bíblica e
ciências naturais. Ele parte da idéia de que a revelação se dá
de maneiras e formas cultural e antropologicamente condici-
onadas e exige, portanto, interpretação adequada. Esse méto-
do foi muito empregado no judaísmo e na teologia cnstã e
influenciou diversos escritores do período patrístico. Contu-
do, só amadureceu no século XVI. Ele entende que os primei-
ros capítulos do Gênesis usam linguagem e imagens apropri-
adas às condições culturais de suas audiências originais; não
foram escritos para ser tomados "literalmente", mas para ser
interpretados pelos leitores contemporâneos a partir de idéias
básicas segundo formas e termos especificamente adaptados
ou "acomodados" às suas condições.

O terceiro tipo mostrou-se valioso nos debates sobre a relação entre


teologia e astronomia nos séculos XVI e XVII. O conhecido reformador
João Calvino (1509-1564) fez duas contribuições positivas para a apre-
ciação e o desenvolvimento das ciências naturais. Em primeiro lugar,
incentivou positivamente o estudo científico da natureza; em segundo
lugar, eliminou o principal obstáculo ao prosseguimento desse estudo,
ao ressaltar o modo de interpretação da Bíblia em termos de "acomo-
dação". Sua primeira contribuição liga-se especificamente à ênfase na
ordem da criação; tanto o mundo físico como o corpo humano dão
testemunho da sabedoria e do caráter de Deus.
Para que ninguém fosse excluído dos meios designados para a obten-
ção da felicidade, quis Deus não apenas incutir em nossa mente as
sementes da religião da qual já falamos, mas tornar conhecida a sua
perfeição na estrutura inteira do universo, manifestando-se à nossa
visão, de tal maneira que não pudéssemos abrir os olhos sem observá-
lo imediatamente. [...] Para exibir sua imensa sabedoria, tanto os céus
24 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

como a terra nos oferecem inúmeras provas — não apenas as mais


avançadas provas com as quais a astronomia, a medicina e todas as
outras ciências naturais se propõem ilustrar, mas as que se impõem à
atenção mesmo do mais analfabeto camponês, que não consegue abrir
seus olhos sem contemplá-las.

Calvino, então, recomenda o estudo da astronomia e da medi-


cina. Elas são capazes de se aprofundar no mundo natural melhor
do que a teologia e, assim, descobrir novas evidências a respeito da
ordem da criação e da sabedoria do criador. Pode-se dizer, pois, que
Calvino deu nova motivação religiosa à investigação científica da
natureza. Acreditava que dessa maneira se podia discernir a presen-
ça da sábia mão de Deus na criação. A Confessio Belgica (1561), de-
claração calvinista de fé que exerceu influência especial nos Países
Baixos (região que se tornaria conhecida particularmente por seus
notáveis botânicos e físicos), declarava que a natureza era "perante
nossos olhos o belíssimo livro no qual todas as coisas criadas, gran-
des e pequenas, são como letras que mostram para nós as coisas
invisíveis de Deus". Deus poderia ser discernido com o estudo por-
menorizado da criação por meio das ciências naturais.
A segunda maior contribuição de Calvino consistiu em eliminar
o literalismo bíblico, importante obstáculo ao desenvolvimento das
ciências naturais. Ele ensinava que a Bíblia se preocupava principal-
mente com o conhecimento de Jesus Cristo. Não se tratava, pois, de
texto astronômico, geográfico nem biológico. Portanto, para
interpretá-la dever-se-ia ter em mente o fato de que Deus se "ajus-
ta" às capacidades da razão e do coração humanos. Deus precisa
descer ao nosso nível para que haja revelação. A revelação oferece
uma versão "acomodada" e condescendente de Deus para nós, por
causa de nossas limitações. Assim como a mãe humana curva-se
para atender o filho, Deus desce ao nosso nível. A revelação é um
ato de divina condescendência.
Ao considerar as narrativas bíblicas da criação (Gênesis 1),
Calvino entende que elas se acomodam à capacidade e ao horizonte
humanos de um povo relativamente simples e não-sofisticado. Não
Marcos históricos 1 25

pretendem ser representações literais da realidade. O autor do


Gênesis, afirma, "fora ordenado para ser mestre tanto dos ignoran-
tes e primitivos como dos sábios; para realizar esse intento precisou
utilizar meios de instrução mais rudes". A frase "seis dias da criação"
não designa seis períodos de 24 horas cada um, mas é mera acomo-
dação ao modo humano de pensar para designar certos períodos de
tempo. As "águas acima do firmamento" são simplesmente uma
maneira acomodada de falar a respeito das nuvens.
O impacto dessas idéias sobre o processo de teorização cientí-
fica, especialmente durante o século XVII, foi considerável. Por exem-
plo, o escritor inglês Edward Wright, defensor da teoria copernicana
heliocêntrica contra o literalismo bíblico, dizia que, em primeiro lugar,
as Escrituras não estavam preocupadas com a física e, em segundo,
falavam de maneira "acomodada à compreensão e ao jeito de falar
do povo simples, como as babás fazem com as crianças". Seus argu-
mentos derivavam diretamente de Calvino, que certamente muito
contribuiu para o desenvolvimento das ciências naturais.
Nas primeiras décadas do século XVII, na Itália, eclodiu uma nova
controvérsia relacionada com o sistema heliocêntrico. Como resulta-
do disso, a Igreja católica romana acabou por condenar Galileu Galilei
(1564-1642). Tratou-se de claro erro de julgamento da parte de alguns
burocratas eclesiásticos. Galileu montou a principal defesa da teoria
copernicana do sistema solar. Seus pontos de vista foram recebidos
inicialmente com simpatia nos círculos mais respeitáveis da Igreja,
em parte por causa de sua amizade com o favorito do papa, Giovanni
Ciampoli. Com a queda de Ciampoli, Galileu perdeu o apoio dos cír-
culos papais e se tornou vulnerável à condenação.
Embora a controvérsia centralizada em Galileu seja quase sem-
pre considerada a luta entre ciência e religião, ou entre libertarismo
e autoritarismo, o que estava verdadeiramente em jogo era o senti-
do da correta interpretação da Bíblia. Esse fato não foi percebido no
passado por causa da falha dos historiadores em entender o proble-
ma teológico (e, mais precisamente, hermenêutico) na raiz do debate.
Em parte, a situação talvez reflita o fato de que muitos dos estudiosos
interessados nessa controvérsia fossem cientistas ou historiadores da
26 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

ciência, alheios aos complexos debates em andamento a respeito de


interpretação bíblica. Contudo, é claro que o tema dominante da
discussão entre Galileu e seus críticos residia na maneira de inter-
pretar certas passagens bíblicas. Veremos mais adiante que o tema
da acomodação era central no debate.
Para examinar essa questão, voltemo-nos para um importante
trabalho publicado em janeiro de 1615. Em sua Lettera sopra l'opinione
de' Pittagorici e del Copernico (Carta sobre a opinião dos pitagóricos
e Copérnico), o frei carmelita Paolo Antonio Foscarini argumentava
que o modelo heliocêntrico do sistema solar não era incompatível
com a Bíblia. Não introduzia novos princípios de interpretação e
utilizava apenas as regras já existentes.
Quando as Sagradas Escrituras atribuem algo a Deus ou a qualquer de
suas criaturas que pareça impróprio ou incomensurável, tal atribuição
deve ser interpretada e explicada por meio de um dos seguintes mo-
dos. Em primeiro lugar, pode-se dizer que se trata de metáfora ou de
proporcionalidade ou, ainda, de semelhança. Em segundo lugar, o que
se diz aí [...] é dito segundo o nosso modo de consideração, apreensão,
compreensão, conhecimento etc. Em terceiro lugar, tal atribuição está
de acordo com a opinião vulgar e a maneira comum de se falar.

O segundo e o terceiro modos empregados por Foscarini são


considerados, em geral, tipos de "acomodação", o terceiro modelo
de interpretação bíblica já examinado antes. Como já vimos, esse
modelo estaria em uso nos primeiros séculos cristãos e não era con-
siderado controverso.
A inovação de Foscarini não estava no método adotado mas nas
passagens bíblicas às quais o aplicava. Em outras palavras, sugeria
que algumas passagens até então interpretadas literalmente deveriam
ser interpretadas segundo o modelo da acomodação. Tais passagens
eram precisamente as que se referiam à movimentação do sol ao
redor de uma terra estática. Ele argumentava da seguinte maneira:
As Escrituras falam segundo nossa maneira de entender e de acordo
com as aparências, em respeito a nós. Assim, esses corpos são descri-
Marcos históricos I 27

tos para nós na maneira comum e vulgar do pensamento humano, a


saber, a terra parece parada e imóvel e o sol parece girar em torno dela.
É por isso que as Escrituras nos falam nesse modo comum e vulgar,
pois de nosso ponto de vista parece que a terra permanece firmemente
imóvel e que o sol gira ao seu redor, e não o contrário.

A crescente adesão de Galileu à posição copernicana levou-o a


adotar um método de interpretação bíblica semelhante ao de
Foscarini.
O que estava em jogo era a maneira de interpretar a Bíblia. Os
críticos de Galileu argumentavam que algumas passagens bíblicas o
contradiziam. Por exemplo, mencionavam Josué 10,12, que relata a
parada do sol sob o comando de Josué. Não estaria aí a prova de que
era o sol que se movia ao redor da terra? Em sua Letter to the Grand
Countess Christina (Carta à grande condessa Cristina), Galileu retru-
cou dizendo que se tratava apenas de um modo comum de falar.
Não se poderia esperar que Josué conhecesse as complexidades da
mecânica celestial e que, portanto, tenha usado essa maneira "co-
mum" de expressão.
A condenação oficial de seu ponto de vista baseou-se em duas
considerações:

(1) As escrituras deviam ser interpretadas segundo "o signifi-


cado próprio das palavras". Rejeitava-se, assim, o método
adotado por Foscarini em favor do método literal. Como já
assinalamos, os dois métodos de interpretação eram consi-
derados legítimos e tinham longa história de uso na teolo-
gia cristã. O debate, entretanto, centralizou-se em determi-
nar qual deles era apropriado para a interpretação das pas-
sagens em questão.
(2) A Bíblia devia ser interpretada segundo "a interpretação e
a compreensão comuns dos Santos Padres e dos teólogos
competentes". Em outras palavras, argumentava -se que
nenhuma autoridade respeitável havia até então adotado o
28 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

método interpretativo de Foscarini; deveria ele, pois, ser


rejeitado como inovação.

Determinou-se, então, que os procedimentos de Foscarini e


Galileu fossem abandonados porque não havia para eles preceden-
tes na história do pensamento cristão.
Este segundo ponto é da maior importância e precisa ser exami-
nado com cuidado. Ele se relaciona com o amargo e longo debate,
incentivado pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) entre o pro-
testantismo e o catolicismo romano, sobre se o protestantismo re-
presentava mera inovação ou se era a recuperação do cristianismo
autêntico. A idéia da imutabilidade da tradição católica tornou-se
elemento integral da polêmica contra o protestantismo. Jacques-
Bénigne Bossuet (1627-1704), notável apologista do catolicismo
romano, assim se expressou em 1688:
O ensinamento da Igreja é sempre o mesmo. [...] O evangelho nunca
é diferente do que era antes. Portanto, se em qualquer época alguém
diz que a fé inclui algo que anteriormente não fazia parte da fé, será
heterodoxia, que é o nome que se dá a qualquer doutrina diferente da
ortodoxia. Não há dificuldades para se reconhecer doutrinas falsas;
não é preciso discutir essas doutrinas. Elas são reconhecidas imediata-
mente quando aparecem simplesmente por serem novas.

Argumentos dessa natureza eram muito usados no começo


daquele século e se refletem claramente na crítica oficial a Foscarini.
A interpretação que ele oferecia nunca tinha aparecido antes e es-
tava, por essa simples razão, errada.
Percebe-se, assim, que esse debate crítico sobre a interpretação
da Bíblia deve ser visto no contexto de situações bastante comple-
xas. A atmosfera altamente politizada da época prejudicava o diálo-
go teológico com medo de que qualquer concessão ao novo pudes-
se ser entendida como concessão às reivindicações protestantes de
legitimidade. Qualquer aceitação da possibilidade de mudanças sig-
nificativas no ensinamento católico romano abriria potencialmente
fronteiras capazes de conduzir inevitavelmente ao reconhecimento
Marcos históricos 1 29

da ortodoxia dos ensinamentos básicos do protestantismo, que ha-


viam sido rejeitados pela Igreja católica romana como "inovações".
Entende-se assim por que os pontos de vista de Galileu foram
recebidos com resistência. A questão fundamental era a da inovação
teológica: a aceitação da interpretação de certas passagens bíblicas
por Galileu minaria seriamente a crítica católica do protestantismo.
Para os católicos, o protestantismo havia introduzido novas (e, por-
tanto, erradas) interpretações de certas passagens bíblicas. A comple-
ta rejeição do ponto de vista de Galileu estava, pois, marcada. Sabe-
se, como já vimos, que a positiva reputação de Galileu se devia a sua
amizade com Giovanni Ciampoli, favorito do papa. Quando este
caiu em desgraça na primavera de 1632, a posição de Galileu foi
enfraquecida e, finalmente, rejeitada. Sem a proteção de Ciampoli,
Galileu tornou-se vulnerável às acusações de "heresia por inovação"
levantadas contra ele por seus críticos.

Cosmovisão heliocêntrica

Tema básico
A antiga cosmovisão geocêntrica (centralizada na Terra) tornou-se incapaz de
explicar o movimento dos planetas Tais dificuldades foram diminuídas (mas não
totalmente resolvidas) pela sugestão de Copérnico de que a terra e os demais
planetas circulavam ao redor do sol. A hipótese de Kepler de que a terra e os planetas
traçavam órbitas elípticas e não circulares ao redor do sol ajudou a entender a
maioria dos aspectos relacionados com o movimento dos planetas.

Nomes principais
Nicolau Copérnico (1473-1543)
Tycho Brahe (1546-1601)
Johannes Kepler (1571-1630)
Galileu Galilei (1564-1642)

Importância religiosa
O resultado dessa controvérsia desafiou o ponto de vista de que a terra era o
centro do universo. Essa idéia era aceita pela Igreja, apoiada por certas passa-
gens bíblicas e pelos escritos de inúmeros teólogos influentes.
30 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Universo mecanicista: Newton e o deísmo

O surgimento do modelo heliocêntrico do sistema solar resol-


vera problemas de geometria. Permaneciam, no entanto, sem solu-
ção questões de mecânica. Kepler estabelecera que o quadrado do
tempo periódico do planeta era diretamente proporcional ao cubo
de sua distância média do sol. Mas qual era o fundamento dessa lei?
Qual era sua importância? Poderia o movimento da terra, da lua e
dos planetas depender desse único princípio? Parte do gênio de Isaac
Newton (1642-1727) consistiu em demonstrar que esse único prin-
cípio poderia estar no fundamento da "mecânica celeste".
A contribuição particular de Newton foi demonstrar a conexão
entre observações aparentemente sem relações entre si e o estabe-
lecimento de idéias cada vez mais precisas até então apenas vaga-
mente discutidas. Foi tal a força de sua demonstração da mecânica
do sistema solar que o poeta Alexander Pope sentiu-se movido a
escrever este sugestivo epitáfio para ele:
Nature and Nature's Law lay hid in Night
God said, let Newton be, and all was Light' .

Newton valeu-se dos conceitos de massa, espaço e tempo, con-


ceitos mensuráveis capazes de ser manipulados pela matemática.
Embora a ênfase de Newton no conceito de massa tenha sido subs-
tituída pelo interesse no movimento (produto da massa e da velo-
cidade), esses temas básicos ainda são importantes hoje nos estu-
dos de física clássica. A partir desses três conceitos fundamentais ele
conseguiu desenvolver idéias precisas de aceleração, força, movi-
mento e velocidade.
A melhor maneira para entender a demonstração de Newton
das leis do movimento planetário é partir da série de princípios que
ele estabeleceu sobre o comportamento dos objetos na terra e pro-
curar relacioná-los com a movimentação dos planetas. Por exemplo,

1. Estavam a natureza e sua lei por trás da escuridão até que disse Deus, exista
Newton, e veio o seu clarão (N.T.)
Marcos históricos I 31

consideremos a famosa história da queda da maçã. A mesma força


que atraíra a fruta para a terra, segundo Newton, operaria entre o
sol e os planetas. A atração gravitacional entre a terra e a maçã seria
precisamente a mesma força em operação entre o sol e os planetas
ou entre a terra e a lua.
Ele começara seu trabalho procurando descobrir as leis que pre-
sidiam o movimento. Suas três leis do movimento estabeleciam os
princípios gerais do movimento terrestre. Ele percebeu que essas
mesmas leis aplicavam-se tanto à mecânica celeste como à terrestre.
Newton começara a trabalhar em sua teoria planetária desde 1666.
Depois de partir de suas próprias leis do movimento, passou a es-
tudar as três leis de Kepler do movimento planetário. Não lhe foi
difícil demonstrar que a segunda lei de Kepler poderia ser entendi-
da se se pudesse aceitar que a força entre um planeta e o sol era
inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles. Tal
força poderia ser determinada matematicamente, com base no que
mais tarde seria conhecido pela expressão "lei da gravitação univer-
sal", expressa da seguinte maneira:
Dois corpos materiais, sejam quais forem, P e P', com massas m e m
atraem-se mutuamente com a força F, dada pela fórmula F = Gmm'/d2,

sendo d a distância entre eles, e G a constante gravitacional.


Observemos que Newton não achou necessário determinar o valor
preciso de G para explicar as leis de Kepler.
Newton aplicou as leis do movimento à órbita da lua ao redor
da terra. Partindo do pressuposto de que a foça que atraía a maçã
para cair na terra também mantinha a lua em sua órbita ao redor da
terra, e que essa força era inversamente proporcional ao quadrado
da distância entre a lua e a terra, Newton conseguiu calcular o pe-
ríodo da órbita da lua. Percebeu, no entanto, que havia uma pe-
quena margem de incorreção, de aproximadamente 10 por cento.
Na verdade, esse erro vinha da inexatidão verificada na distância
entre a terra e a lua. Newton apenas utilizara a estimativa existente
dessa distância; quando se empregaram valores mais acurados, de-
32 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

terminados pelo astrônomo francês Jean Picard em 1672, a teoria e


a observação acabaram, afinal, por coincidir.
Não temos a intenção de realizar aqui a análise histórica com-
pleta de como e quando Newton chegou a suas conclusões, nem
de examinar seus pormenores. O importante é perceber que
Newton foi capaz de demonstrar que uma vasta gama de dados
observáveis podia ser explicada a partir de certos princípios uni-
versais. O sucesso da explicação newtoniana da mecânica terrestre
e celestial favoreceu o surgimento da idéia de que o universo po-
deria ser pensado como uma grande máquina que funcionava se-
gundo leis fixas, o que se conhece, às vezes, pelo nome de "visão
mecanicista" do mundo.
Examinaremos a seguir as implicações religiosas dessa teoria. A
idéia do mundo como máquina imediatamente sugere a imagem de
design. O próprio Newton aceitava essa interpretação. Embora escri-
tores posteriores gostassem de sugerir que o mecanismo em ques-
tão era totalmente autocontido e auto-sustentado — sem requerer, por-
tanto, a existência de Deus —, tal ponto de vista não era comum
por volta de 1690. Talvez a mais conhecida aplicação do pensamen-
to de Newton encontre-se nos escritos de William Paley, que com-
parava a complexidade do mundo natural ao desenho do relógio. As
duas realidades precisavam de desenho e de propósito, e, portanto,
de um criador.
O sucesso da cosmovisão mecanicista de Newton incentivou
notável desenvolvimento religioso, muito importante para o nosso
tema. Pode-se demonstrar facilmente que a ênfase de Newton na
regularidade da natureza ajudou no surgimento do "deísmo". Esse
termo (do latim deus) é empregado muitas vezes para designar a
doutrina que aceita a criação divina mas nega o envolvimento de
Deus com o mundo. Contrasta freqüentemente com "teísmo (do
grego theos, "deus"), que permite o envolvimento divino com o
mundo. Pode-se até considerar o deísmo uma forma de cristianis-
mo por causa de sua ênfase na regularidade do mundo, muito em-
bora seja criticado por reduzir Deus a mero relojoeiro.
Marcos históricos I 33

O termo "deísmo" é empregado para designar os pontos de vis-


ta de alguns pensadores ingleses da "Idade da Razão", no final do
século XVII e começo do XVIII. Em seu influente estudo The Princi-
pal Deistic Writers (Principais escritores deístas) de 1757, John Leland
reuniu sob esse nome diversos escritores, entre os quais Lord Herbert
de Cherbury, Thomas Hobbes e David Hume. Não se sabe se esses
escritores teriam aceito para si a designação. O exame mais preciso
de suas convicções religiosas demonstra que possuem relativamen-
te pouca coisa em comum, além do ceticismo geral sobre algumas
doutrinas cristãs específicas, principalmente sobre as doutrinas tra-
dicionais da revelação e da salvação. A cosmovisão newtoniana ofe-
receu ao deísmo meios altamente sofisticados de defender e propa-
gar seus pontos de vista, permitindo que se concentrassem na idéia
da sabedoria de Deus para criar o mundo.
A natureza do deísmo pode ser apreendida até certo ponto em
Essay concerning Human Understanding (Ensaio sobre o entendimento
humano), 1690, de John Locke. Encontra-se aí a idéia de Deus que
se tornaria característica do deísmo posterior. Na verdade, esse en-
saio de Locke estabeleceu a maior parte dos fundamentos do deísmo.
Locke afirmava que "a razão nos leva ao conhecimento desta verda-
de certa e evidente de que existe um ser eterno, poderosíssimo e
conhecido". Seus atributos são os que a razão reconhece apropria-
dos para ele. Depois de considerar as qualidades morais e racionais
adequadas a Deus, Locke entende que "aumentamos cada uma delas
com nossa idéia de infinito, e assim, reunindo-as, elaboramos nossa
complexa idéia de Deus". Em outras palavras, a idéia de Deus resul-
ta de nossas qualidades morais e racionais elevadas ao grau infinito.
Matthew Tindal, em sua obra Christianity as Old as Creation (O
cristianismo tão antigo como a criação), de 1730, ensinava que a
religião cristã nada mais era do que a "reedição da religião da nature-
za". Deus é entendido como extensão das idéias humanas de justiça,
racionalidade e sabedoria. Tal religião universal encontra-se dispo-
nível em todos os tempos e lugares, enquanto o cristianismo de-
pende da idéia da revelação divina, inacessível aos que viveram antes
de Cristo. Os pontos de vista de Tindal propagaram-se antes das
suspeitas levantadas contra a "razão universal" pela sociologia do
34 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

conhecimento. Essas idéias ilustram o racionalismo característico do


movimento que veio, mais tarde, exercer influência no Iluminismo.
As idéias do deísmo inglês espalharam-se pela Europa por meio
de traduções (especialmente para o alemão) e de escritos de indiví-
duos familiarizados com o movimento e simpatizantes dele, como,
por exemplo, as Cartas filosóficas, de Voltaire. O racionalismo
iluminista tem sido muitas vezes considerado o florescimento final
do botão do deísmo inglês. Para nossos propósitos, contudo, con-
vém observar a consonância óbvia entre o deísmo e a cosmovisão
newtoniana. Pode-se, pois, afirmar que o deísmo deveu muito de
seu sucesso à visão mecanicista do mundo de Newton.
A junção da filosofia natural newtoniana com certas formas de
teologia anglicana tornou-se popular e plausível na Inglaterra pós-
revolucionária (ver p. 128-132). Entretanto, essa associação mostrou-
se instável. Como já vimos, fazia pouco tempo que as discrepâncias
entre a mecânica celeste e a religião tinham começado a diminuir. A
mecânica celeste parecia sugerir a muitos que o mundo constituía-
se de um mecanismo auto-suficiente sem nenhuma necessidade da
intervenção divina para o seu funcionamento. Esse perigo já fora
reconhecido por um dos intérpretes de Newton, Samuel Clark. Em
sua correspondência com Leibniz, Clark mostrava-se preocupado
com as implicações potenciais da crescente ênfase na regularidade
da natureza:
A noção de que o mundo seja uma grande máquina funcionando sem
a interferência divina, como o relógio que trabalha sem a assistência do
relojoeiro, pertence ao materialismo e ao destino, e tende (sob a preten-
são de fazer de Deus uma inteligência supramundana) a excluir a pro-
vidência bem como realmente o governo de Deus sobre o mundo.

A imagem do Deus "relojoeiro" (e da teologia natural a ela as-


sociada que apelava para a regularidade do mundo) podia gerar uma
compreensão puramente naturalista do universo, na qual Deus nada
representava.
Marcos históricos I 35

Cosmovisão mecanicista

Tema básico
O sistema solar pode ser tratado como um mecanismo que opera segundo cer-
tos princípios universais definidos. Os mesmos princípios que governam o mo-
vimento dos corpos na Terra também governam os movimentos dos planetas.

Nome principal
lssac Newton (1642-1727)

Importância religiosa
O newtonianismo gerou temporariamente um novo interesse pela teologia na-
tural, porque a regularidade do mundo passou a ser vista como evidência dos
desígnios de Deus na natureza. Com o passar do tempo, o mesmo movimento
suscitou a eliminação da necessidade de Deus em muitos níveis. O universo era
considerado um mecanismo autogovernado e auto-sustentável sem nenhuma
necessidade do envolvimento de Deus em seus processos. O movimento religioso
conhecido como "deísmo" foi influenciado pelas idéias de Newton.

Mas, se Deus podia ser excluído do mecanismo do mundo, outros


pensadores sugeriram que os desígnios e os atos de Deus poderiam
ser ainda encontrados no mundo biológico. É neste ponto que pre-
cisamos considerar a controvérsia darwinista do século XIX, respon-
sável por uma nova área de debate científico que também afetaria as
crenças religiosas

Origens da humanidade: controvérsia darwinista

Na seção anterior sugerimos que os vários componentes da teoria


planetária de Newton já haviam sido identificados por outros cien-
tistas; o gênio de Newton revelou-se ao relacionar observações que
ainda permaneciam desconexas. É possível perceber que algo se-
melhante aplica-se ao caso de Charles Darwin (1809-1882). Entre
os estudos que preparam o caminho para o surgimento da teoria de
Darwin ocupa lugar de destaque a obra de Charles Lyell Principies of
36 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Geology (Princípios de geologia), de 1830. A compreensão popular


predominante da história da terra desde sua criação tomava a forma
de séries de mudanças catastróficas. Lyell defendia a idéia do "unifor-
mitarismo" (termo cunhado por James Hutton em 1795), segundo a
qual as forças que podem agora ser observadas atuando no mundo
natural seriam as mesmas em ação ao longo de vastos períodos de
tempo no passado. A teoria da evolução de Darwin baseia-se em
premissas relacionadas com essa idéia: de que as forças provocado-
ras de novos tipos de plantas ou animais no presente operavam já
ao longo de vastos períodos de tempo no passado.
O principal rival da teoria de Darwin foi o naturalista sueco do
século XVIII Carl von Linné (1707-1778), mais conhecido pela ver-
são latina de seu nome: Carolus Linnaeus. Ele argumentava em fa-
vor da "fixidez das espécies". Em outras palavras, achava que o nú-
mero de espécies agora observadas no mundo natural representava
o modo como as coisas se haviam dado no passado e também como
seriam no futuro. Sua classificação pormenorizada das espécies dava
a impressão de que a natureza tornara-se fixa desde o momento de
sua origem. Tal conceito parecia estar de acordo com a leitura popu-
lar e tradicional das narrativas da criação do Gênesis, e sugeria que
o mundo botânico de hoje corresponderia mais ou menos ao esta-
belecido pela criação. Considerava que cada espécie havia sido cri-
ada separada e distintamente por Deus, de quem recebiam seu ca-
ráter imutável.
Buffon, em especial, observou que certos fósseis evidenciavam a
extinção de algumas espécies. Em outras palavras, tais fósseis en-
contrados continham restos preservados de plantas (e de animais)
que não mais se encontravam na Terra. Esses achados não estariam
contradizendo a idéia da imutabilidade das espécies? E, além disso,
se antigas espécies desapareciam, não seria possível que surgissem
novas espécies para substituí-las? Havia outros fatos que também
causavam dificuldades à teoria da criação especial — como, por
exemplo, a distribuição geográfica irregular das espécies.
Convém abordar agora certos temas específicos que precisam
de explicação. Para Darwin, seriam os seguintes:
Marcos históricos i 37

(1) É preciso explicar a questão da adaptação, isto é, a maneira


pela qual as formas dos organismos se adaptam a suas ne-
cessidades. A doutrina da criação especial explicava esse
fato argumentando que o criador já relacionara cada orga-
nismo criado com o seu ambiente.
(2) Por que algumas espécies se extinguem? Sabe-se que as
teorias de Thomas Malthus sobre crescimento populacional
causaram certo impacto sobre o pensamento de Darwin.
Inicialmente não se podia explicar por que ocorria a extinção
de espécies aparentemente bem adaptadas e bem-sucedi-
das sem recurso a teorias de "catástrofe".
(3) Por que as formas de vida eram distribuídas geograficamente
de maneira desigual? As viagens pessoais de Darwin no
Beagle, devotadas à pesquisa, convenceram-no de que era
necessária a criação de uma teoria que fosse capaz de expli-
car as peculiaridades das populações de ilhas.
(4) Como explicar a existência de certos vestígios de estruturas
— como os mamilos de mamíferos machos? Era difícil
explicá-los por meio da teoria da criação especial, pois eram
redundantes e não serviam a propósito algum.

Darwin procurou explicações para essas questões que fossem


mais satisfatórias do que as oferecidas pela teoria da criação espe-
cial. A história de como Darwin chegou a esses resultados, em parte
durante sua viagem no Beagle, é fascinante e digna de ser seguida
em seus pormenores. Embora essa narrativa tenha sido embelezada
romanticamente, é claro que ele foi guiado pela crença de que os
fenômenos morfológicos e geográficos podiam ser entendidos de
maneira convincente por meio de uma única teoria de seleção na-
tural. Darwin tinha consciência de que sua explicação da evidência
biológica não era a única maneira de ver as coisas. Contudo, acre-
ditava que sua teoria possuía maior poder explanatório do que as
teorias rivais, como, por exemplo, a da criação especial. "Diversos
fatos que permaneciam obscuros na teoria da criação especial eram
agora esclarecidos".
38 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Os elementos básicos da teoria de Darwin são os seguintes. Ele


achava que existia na natureza um processo de "seleção natural".
Os capítulos iniciais de A origem das espécies mostram a maneira
como novos tipos de plantas e animais são desenvolvidos por pro-
dutores comerciais. Processo semelhante lhe parecia acontecer na
natureza. As variações surgem naturalmente. Perguntava, entretanto,
se a nova variante seria mais bem adaptada para sobreviver do que a
precedente. Se fossem mais bem adaptadas teriam mais chance de so-
breviver e suas características seriam herdadas pelos sucessores. A
frase "sobrevivência do mais apto" (originalmente de Herbert
Spencer) seria usada mais tarde para descrever esse processo.
A noção de competição na natureza para sobreviver reflete as
leituras de Darwin dos escritos de Thomas Malthus (1766-1834) sobre
as populações. Competição significava que as espécies mais bem
adaptadas teriam mais chance de sobrevivência. No início de seu
pensamento sobre a origem das espécies, Darwin não conseguia
explicar por que certas espécies desapareciam apesar de parecer bem
adaptadas e sadias. Inicialmente pensou na necessidade de invocar
alguma forma de "teoria da catástrofe" para explicar o fenômeno,
mas as teorias sobre crescimento populacional de Malthus, expostas
em seu Essay on the Principie of Population (Ensaio sobre o princípio
da população), de 1798, ofereciam explicação mais persuasiva — de
que a competição pela sobrevivência de uma espécie bem-sucedida
seria superada por espécies ainda mais bem adaptadas. Assim, Darwin
"procurou aplicar a doutrina de Malthus com múltipla força aos
reinos animal e vegetal".
No final, a teoria de Darwin mostrava inúmeras fraquezas e
inconseqüências. Por exemplo, exigia que o surgimento de novas
espécies (processo geralmente denominado "especiação") sempre
devesse ocorrer; contudo, não havia evidência disso. O próprio
Darwin devotou uma longa seção de A origem das espécies a exami-
nar certas dificuldades de sua teoria, notando, em particular, "as
imperfeições dos dados geológicos", que davam pouca indicaçãO da
existência de espécies intermediárias, e "a extrema perfeição e com-
plicação" de certos órgãos individuais, como o olho. Contudo, estava
Marcos históricos 39

convencido de que essas dificuldades poderiam ser toleradas em


face da superioridade explanatória de sua abordagem. Mesmo sa-
bendo que não havia resolvido todos os problemas, tinha consciên-
cia de que sua explicação era a melhor disponível:
O leitor deve ter notado muitas dificuldades. Algumas delas são tão
graves que até hoje não consigo refletir nelas sem ficar perplexo; mas,
segundo meu melhor julgamento, a maior parte delas é apenas apa-
rente, e as verdadeiras não são, penso, fatais para a minha teoria.

Essas teorias podem ser encontradas em seus dois livros princi-


pais: A origem das espécies, de 1859, e Descent of Man (A descendên-
cia do homem), de 1871. Em seu conjunto, as duas obras afirmam
que todas as espécies — incluindo a humanidade — resultam de
longo e complexo processo de evolução biológica. Essa teoria tem
implicações religiosas claras. O pensamento tradicional cristão con-
siderava que a humanidade havia sido separada por Deus do resto
da natureza para ser a coroa da criação, única detentora da "ima-
gem de Deus". A teoria de Darwin sugeria que a natureza humana
emergira gradualmente, ao longo de muito tempo, e que não havia
distinção biológica fundamental entre os seres humanos e os ani-
mais em termos de sua origem e seu desenvolvimento.
A controvérsia darwinista tornou-se popular depois do encontro
da Associação Britânica em Oxford, em 30 de junho de 1860. Essa
sociedade tinha como objetivo principal a popularização da ciência. A
obra de Darwin A origem das espécies havia sido publicada um ano
antes e era natural discuti-la naquele encontro. Darwin já estava doente
e não participou da reunião. Segundo a lenda popular, Samuel
Wilberforce, bispo de Oxford, tentou desprestigiar a teoria da evolu-
ção argumentando que ela ensinava que os seres humanos haviam
descendido dos macacos. Teria sido, então, duramente corrigido e
criticado por T. H. Huxley, que lhe mostrou que não passava de um
clérigo arrogante e ignorante. A narrativa clássica legendária desse
acontecimento data de 1898, e tem a forma de memória autobiográ-
fica escrita por Isabella Sidgewick, publicada em Macmillan's Magazine:
40 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Fiquei muito feliz de estar presente na ocasião memorável em Oxford


quando o senhor Huxley desafiou o Bispo Wilberforce. H O bispo
levantou-se, e num tom levemente escamecedor, florido e fluente, nos
assegurou que não havia nada na teoria da evolução; pombos sempre
tinham sido pombos. Então, voltando-se para seu antagonista com
sorridente insolência, perguntou-lhe se era da parte de seu avô ou de
sua avó que ele reivindicava sua descendência dos macacos?

A narrativa contradiz outros relatos que circularam na ocasião do


encontro. A verdade é que Wilberforce escrevera extensa resenha sobre
o livro A origem das espécies indicando algumas de suas sérias fraque-
zas. Darwin levara a sério essa resenha e modificara sua discussão em
alguns pontos em resposta às críticas de Wilberforce. A resenha não
apresenta traços de "obscurantismo eclesiástico". Contudo, no início
do século )0( a legendária narrativa estava firmemente estabelecida e
acabou por reforçar o modelo de "conflito" ou de "guerra" entre ciên-
cia e religião, tema ao qual voltaremos no próximo capítulo.

Darwinismo

Tema básico
Os vários tipos de planta e de vida animal (incluindo os seres humanos) vieram
a existir por meio de um processo de seleção natural, no qual as espécies mais
bem adaptadas para a sobrevivência superavam as outras, que acabavam por se
extinguir gradualmente.

Nome principal
Charles Darwin (1809-1882)

Importância religiosa
O darwinismo desafiou a idéia cristã tradicional de que a vida recebia suas ca-
racterísticas específicas por meio de atos individuais da criação divina. Mais
particularmente, questionou a posição única e privilegiada da humanidade como
ápice da criação divina

Este capítulo examinou três importantes temas da história da


interação entre a ciência e a religião, centralizada no cristianismo.
Marcos históricos 1 41

Convém observar que esses temas também se relacionam com ou-


tras religiões, particularmente com o judaísmo e o islamismo. Como
vimos, o cristianismo esteve particularmente envolvido com essas
disputas porque ocorreram em áreas nas quais ele atuava e em que
as ciências naturais se desenvolveram.
Tratar-se-á de mero acidente histórico? Ou haverá razões para se
sugerir que o cristianismo tenha alguma relação com o desenvolvi-
mento das ciências naturais? No próximo capítulo consideraremos
outros temas históricos e teóricos relacionados com essas questões.

Leituras recomendadas

BIAGIOLI, M. Galileo, Courtier: The Practice of Science in the Culture of


Absolutism. Chicago, University of Chicago Press, 1993.
BLACKWELL, R. J. Galileo, Bellarmine and the Bible. Notre Dame, IN,
University of Notre Dame Press, 1991.
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Spain: The Case of Diego de ZUriiga. Isis 86 (1995) 52-78.
CLAGETT, M. Giovanni Marliani and Late Medieval Physics. New York,
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42 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

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London, University of California Press, 1975, p. 17-39.
Religião: aliada ou
inimiga da ciência?

NO CAPÍTULO ANTERIOR, exploramos alguns dos debates


históricos sobre a relação entre ciência e religião. Essa breve discus-
são levantou uma importante questão, que pode ser assim formula-
da: será a religião estímulo ou impedimento para o desenvolvimen-
to das ciências naturais? Somos tentados a oferecer respostas sim-
ples a essa pergunta. Contudo, ela exige respostas complexas, pelas
seguintes razões:

(1) A pergunta pressupõe a existência de certa entidade uni-


forme chamada "ciência", quando na verdade existem inú-
meras disciplinas científicas, cada qual com sua esfera pró-
pria de estudo e seus métodos correspondentes de pesqui-
sa. Como examinaremos mais tarde, as relações entre física
e religião são muito diferentes das relações entre biologia e
religião. O termo "ciência" precisa ser qualificado ou defini-
do para que a questão seja tratada adequadamente.
(2) A pergunta assume também que o termo "religião" pode
ser facilmente definido e corresponde a determinado fenô-
meno homogêneo, mas não é assim. É extremamente difí-
cil definir com precisão o conceito de religião. Ao longo do
século )0( apareceram inúmeras maneiras de encarar a
natureza da religião, cada qual reivindicando caráter "cien-
tífico" ou "objetivo". Algumas delas (principalmente as de
44 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Karl Marx, Sigmund Freud e Emile Durkheim) foram forte-


mente reducionistas, refletindo em geral as agendas pessoais
ou institucionais de seus defensores. Essas posições foram
submetidas a duras críticas por escritores como Mircea
Eliade por causa de suas falhas óbvias. Além disso, diferen-
tes religiões suscitam diferentes atitudes perante as ciências,
exigindo que a religião em questão se torne clara a respeito
antes da busca de qualquer resposta. Não se pode presumir
que o cristianismo, o islamismo ou o hinduísmo mante-
nham o mesmo tipo de relação com a física.
(3) Mesmo no interior da mesma religião aparecem diferenças
de opinião. Não se pode, pois, imaginar que cada opinião
adote a mesma posição das outras a respeito da ciência. Por
exemplo, vamos considerar quatro tendências diferentes na
teologia cristã moderna para demonstrar as diferentes res-
postas que oferecem à nossa questão.

Começaremos examinando o significado do termo "religião".

Definição de religião: esclarecimentos

Acentuemos, de início, que raramente as definições de religião


são neutras. Em geral surgem para favorecer crenças e instituições
com as quais seus autores simpatizam e penalizar as que lhe são
hostis. As definições de religião quase sempre dependem de propó-
sitos e preconceitos específicos de estudiosos individuais. Assim,
teóricos empenhados em demonstrar que todas as religiões dão
acesso à mesma realidade divina incluirão em sua definição de re-
ligião essa crença (por exemplo, a conhecida definição de F. Max
Mueller segundo a qual "religião é a disposição que capacita o ser
humano a apreender o infinito sob diferentes nomes e disfarces").
Semelhante agenda encontra-se em escritos mais recentes voltados
para o ponto de vista de que todas as religiões nada mais são do que
respostas locais culturalmente condicionadas à mesma realidade
suprema transcendente.
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 45

Para apreciarmos as complexidades históricas da interação da


ciência com a religião é preciso considerar cada religião em seus
próprios termos. O cristianismo não é igual ao budismo e as dife-
renças entre eles podem ser de importância crítica para nos ajudar
a entender por que as ciências naturais desenvolvidas no contexto
cristão diferem do que se passa no contexto budista. A investigação
histórica dessas questões será bastante prejudicada se partirmos do
pressuposto de que "todas as religiões dizem a mesma coisa".
Talvez o melhor método a seguir seja o respeito à integridade
das diferentes religiões do mundo, em vez de tentar homogeneizar
suas idéias forçando-as a entrar no mesmo molde. Cresce o consen-
so de que não se pode tratar as diferentes tradições religiosas como
se fossem apenas variações sobre o mesmo tema. "Nessa vasta plu-
ralidade, não existe essência única, nem conteúdos revelados ou ilu-
minados, nem um só caminho de emancipação ou de libertação"
(David Tracy). John B. Cobb Jr. também observou as grandes dificul-
dades enfrentadas pelos que desejam argumentar em favor da exis-
tência de determinada "essência da religião".
Não fazem sentido os argumentos que pretendem estabelecer o que
seja verdadeiramente religião. Não existe essa coisa chamada religião.
Existem apenas tradições, movimentos, comunidades, gente, crenças e
práticas com feições associadas pelas pessoas com o que chamam de
religião.

Cobb acredita que a afirmação de que a religião tenha sua es-


sência própria tem apenas confundido e desorientado seriamente a
recente discussão a respeito das relações entre as tradições religio-
sas do mundo. Por exemplo, entende que tanto o budismo como o
confucionismo possuem elementos "religiosos", sem que isso seja
suficiente para caracterizá-los como "religiões". Inúmeras "religiões",
segundo Cobb, seriam mais bem entendidas como movimentos cul-
turais possuidores de componentes religiosos.
O conceito da universalidade da religião, em relação com a qual
as religiões seriam subclasses, teria surgido na época do Iluminismo.
46 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Para empregar uma analogia biológica, a idéia de que exista o gêne-


ro da religião, em relação com o qual as religiões particulares seriam
espécies, é muito ocidental, sem nenhum paralelo fora de nossa cul-
tura, com exceção do pensamento de alguns religiosos orientais edu-
cados no Ocidente, que teriam assimilado sem nenhuma crítica tal
pressuposto.
Escritores especializados em antropologia de campo (como E. E.
Evans-Pritchard e Clifford E. Geertz) consideram modelos mais
complexos de religião. Um dos principais debates em curso na an-
tropologia e na sociologia da religião oscilam entre considerá-la "fun-
cionalmente" (a religião limita-se a certas funções sociais ou pessoais
relacionadas com idéias e rituais) e "substancialmente" (a religião
limita-se a certas crenças sobre seres divinos ou espirituais). Apesar
de grandes diferenças de terminologia (muitos escritores discordam
a respeito do uso de termos como "sobrenatural", "espiritual" e "mís-
tico"), parece haver, pelo menos, certa medida de concordância real
de que a religião, seja como for concebida, envolve de certa maneira
crenças e comportamentos relacionados com o mundo sobrenatural
de seres divinos ou espirituais.
Não é nossa intenção resolver as dificuldades presentes nesse
debate. Importa observar que definir o termo "religião" é mais difícil
do que se pensa. É consideravelmente mais produtivo e valioso com-
parar as religiões particulares (como o cristianismo e o islamismo)
segundo a maneira como se relacionam com as ciências naturais.
Entretanto, convém apreciar as importantes variações existentes no
âmbito das religiões, como veremos a seguir.

Variedades no interior das religiões: o caso do cristianismo

Como já observamos, a religião que mais profundamente tem


se envolvido com a interação entre religião e ciências naturais é o
cristianismo. Contudo, o termo "cristão" refere-se a uma ampla va-
riedade de posições intelectuais que exigem atencioso exame. Por
exemplo, algumas formas de cristianismo, como a protestante, a
Religião: aliada ou inimiga da ciência? I 47

católica romana e a ortodoxa oriental, diferem bastante entre si.


Estamos preocupados, no entanto, com os níveis mais acadêmicos
da discussão no cristianismo ocidental por causa de sua íntima re-
lação com as ciências naturais ao longo de alguns séculos.
Para entender o relacionamento complexo da teologia cristã com
as ciências precisamos nos familiarizar até certo ponto com as prin-
cipais escolas de pensamento cristão no período moderno. Resumi-
remos quatro dessas escolas no cristianismo ocidental que se mos-
traram importantes em relação com as ciências naturais. Há enor-
mes diferenças a respeito de inúmeros temas que afetam direta-
mente sua atitude perante as ciências. Por exemplo, o protestantis-
mo liberal tende a ter atitudes positivas em relação às ciências na-
turais, enquanto a neo-ortodoxia insiste em separar as esferas de
atividade da religião e da ciência.

Protestantismo liberal

O protestantismo liberal é, sem dúvida, um dos mais importan-


tes movimentos surgidos no pensamento cristão moderno. Suas
origens são complexas. Contudo, ajuda-nos pensar que tenha sur-
gido em resposta ao programa teológico estabelecido por F. D.
Schleiermacher (1768-1834), especialmente a ênfase que deu ao
"sentimento" humano e o incentivo ao relacionamento da fé cristã
com a situação humana. O liberalismo protestante clássico origi-
nou-se na Alemanha da metade do século XIX, a partir da compreen-
são de que a fé cristã e a teologia precisavam ser reconstruídas à luz
do conhecimento moderno. Na Inglaterra, a crescente recepção
positiva à teoria da seleção natural de Charles Darwin (popular-
mente conhecida como "teoria darwinista da evolução") favorecia o
surgimento do clima intelectual no qual algumas afirmações da teo-
logia cristã tradicional (como a doutrina da criação em sete dias)
tornavam-se insustentáveis. Desde sua origem, o liberalismo mos-
trava-se comprometido em superar a distância entre fé cristã e co-
nhecimento moderno.
48 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

O programa do liberalismo exigia alto grau de flexibilidade em


relação à teologia cristã tradicional. Seus principais teóricos acha-
vam que a reconstrução da fé era essencial se o cristianismo queria
ser ainda uma séria opção no mundo moderno. Por causa disso,
lutaram em favor de certo grau de liberdade em relação à herança
doutrinária do cristianismo, de um lado, e em relação, ainda, aos
métodos tradicionais de interpretação das Escrituras. Quando esses
métodos tradicionais de interpretação das Escrituras e as crenças
tradicionais pareciam comprometidos pelo desenvolvimento do
conhecimento humano, era preciso descartá-los ou reinterpretá-los
para ficar de acordo com o que agora se sabia a respeito do mundo.
As implicações teológicas dessa mudança foram enormes. Inú-
meras crenças cristãs foram consideradas seriamente prejudicadas
em face dos novos conhecimentos. Assim, muitas dessas crenças
foram abandonadas ou reinterpretadas.

(1) Foram abandonadas quando consideradas fora de época ou


baseadas em pressupostos errados. A doutrina do pecado
original ilustra o fato. Essa doutrina teria resultado de uma
leitura defeituosa do Novo Testamento à luz dos escritos de
Santo Agostinho, cujos julgamentos nessa matéria tinham
sido obscurecidos por causa de seu envolvimento com a
seita fatalista dos maniqueus.
(2) Foram reinterpretadas segundo o espírito da época. Incluem-
se nesta categoria inúmeras doutrinas centrais sobre a pes-
soa de Jesus Cristo como, por exemplo, a doutrina de sua
divindade (que era interpretada como a afirmação das qua-
lidades exemplares de Jesus abertas a qualquer pessoa que
as quisesse alcançar).

Ao longo desse processo de reinterpretação doutrinária (que


continuou no movimento da "história do dogma"), buscou-se fun-
damentar a fé cristã no mundo da humanidade, principalmente na
experiência humana e na cultura moderna. Percebendo dificuldades
potenciais na fundamentação da fé cristã no apelo exclusivo às Es-
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 49

crituras ou à pessoa de Jesus Cristo, o liberalismo procurou ancorar


a fé na experiência humana comum, interpretando-a de maneira a
fazer sentido em face da cosmovisão moderna.
O liberalismo inspirou-se na visão da humanidade capaz de
ascender a novos patamares de progresso e prosperidade. A doutri-
na da evolução deu nova vitalidade a essa crença, nutrida que era
pela forte evidência de estabilidade cultural na Europa ocidental da
última parte do século XIX. A religião relacionava-se com as neces-
sidades espirituais da humanidade moderna e dava orientação ética
à sociedade. A forte dimensão ética do protestantismo liberal
transparece nos escritos de Albrecht Benjamin Ritschl.
Para Ritschl, a idéia do "reino de Deus" era central. Ele tendia a
pensar que se tratava do reino estático dos valores éticos, que im-
pulsionaria o desenvolvimento da sociedade germânica naquele
momento. A história, dizia, desenrolava-se, sob a orientação divi-
na, para a perfeição. A civilização fazia parte desse processo de
evolução. No decurso da história humana apareciam certos indiví-
duos portadores da iluminação divina. Jesus fora um deles. Outros
seres humanos, seguindo seu exemplo e participando em sua vida
interior, podiam também se desenvolver. Esse movimento basea-
va-se em um enorme otimismo em relação às capacidades e aos
potenciais humanos. A religião e a cultura praticamente se con-
fundiam. Críticos posteriores do movimento chamaram-no de "pro-
testantismo cultural", por causa de sua dependência das normas
culturais em voga.
Inúmeros outros críticos, como Karl Barth, na Europa, e Reinhold
Niebuhr, na América do Norte, consideravam o protestantismo li-
beral irremediavelmente dependente do ponto de vista otimista acer-
ca da natureza humana. Acreditavam que tal otimismo havia sido
destruído pelos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial e que,
portanto, perdera a credibilidade cultural. Parece que se enganaram,
porém. Em melhor aspecto, o protestantismo liberal pode ser visto
como um movimento comprometido com a reformulação da fé cris-
tã em termos aceitáveis para a cultura contemporânea. Assim, o li-
beralismo continuou a se considerar mediador entre duas inevitá-
50 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

veis alternativas: a mera reformulação da fé cristã tradicional (des-


crita, em geral, como "tradicionalismo" ou "fundamentalismo" por
seus críticos) ou a rejeição do cristianismo em sua totalidade. Os
teóricos liberais têm apaixonadamente buscado a via média entre
essas alternativas.
É provável que a melhor e mais influente versão do protestan-
tismo liberal encontre-se nos escritos de Paul Tillich (1886-1965),
que alcançou a fama nos Estados Unidos entre 1950 e 1960, já perto
do fim de sua carreira, e é considerado o mais importante teólogo
americano desde Jonathan Edwards.
O programa de Tillich pode ser resumido no termo "correla-
ção". Ele entendia que a tarefa da teologia moderna consistia em
estabelecer o diálogo entre cultura humana e fé cristã. Reagiu forte-
mente ao programa teológico de Karl Barth, por considerá-lo hostil
a esse relacionamento. Para Tillich, as questões existenciais, ou su-
premas, como gostava de chamá-las, encontram-se na cultura hu-
mana. A filosofia moderna, a literatura e as artes criativas revelam as
nossas questões humanas. A teologia formula respostas a essas
questões, estabelecendo pontes entre o Evangelho e a cultura mo-
derna. O Evangelho precisa se dirigir à cultura e só pode realizar
essa tarefa quando ouve as questões formuladas por essa cultura.
Segundo David Tracy (Chicago), a imagem do diálogo entre o
Evangelho e a cultura é controladora: esse diálogo envolve a corre-
ção e o enriquecimento mútuos entre os dois pólos. Assim, estabe-
lece-se uma íntima relação entre teologia e apologética, uma vez
que a tarefa da teologia consiste em interpretar a resposta cristã às
necessidades humanas visíveis por meio da análise cultural. Obvia-
mente, a prática da "correlação" incentiva o diálogo entre a ciência
e a religião, já que a ciência é um importante elemento da cultura
ocidental moderna.
O termo "liberal" poderia então ser aplicado aos "teólogos da
tradição de Schleiermacher e Tillich, preocupados com a reconstru-
ção da fé em resposta à cultura contemporânea". O liberalismo tem
sido criticado de muitas maneiras, como, por exemplo:
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 51

(1) Seus defensores tendem a dar demasiada ênfase à noção


de experiência humana religiosa universal. Tal noção é vaga
e mal definida, incapaz de ser examinada e avaliada publi-
camente. Há também boas razões para se considerar a "ex-
periência" mero resultado da interpretação muito mais se-
riamente do que o liberalismo está disposto a reconhecer.
(2) O liberalismo tem dado demasiada ênfase a desdobramen-
tos culturais transitórios, a ponto de parecer manipulado
pela agenda secular, sem nenhum senso crítico.
(3) Além disso, estaria desproporcionalmente disposto a aban-
donar certas doutrinas características do cristianismo para
se tornar mais aceitável à cultura contemporânea.

O protestantismo liberal é muito importante para o nosso estu-


do porque adota atitudes geralmente positivas a respeito do valor
religioso das ciências naturais. Bom exemplo disso é a maneira como
encara a teoria darwinista da evolução, aceita por muitos liberais
como a melhor ilustração da maneira como a natureza e a sociedade
humana se desenvolvem. O liberalismo inclina-se, em geral, a inter-
pretar passagens bíblicas potencialmente difíceis com o intuito de
reduzir sua carga sobrenatural e harmonizar as narrativas da criação
com a teoria darwinista da evolução. Embora o liberalismo conserve
idéias cristãs tradicionais (enquanto o modernismo, a ser examina-
do a seguir, as abandona), reinterpreta-as na perspectiva da evolu-
ção biológica.
Da mesma maneira, atitudes positivas em relação às ciências
naturais encontram-se também no movimento conhecido pelo nome
de "modernismo", ao qual voltamos agora a atenção.

Modernismo

O termo "modernismo" foi primeiramente empregado para de-


signar uma escola de teólogos católicos romanos que atuava no fi-
nal do século XIX. Eles adotavam posições críticas a doutrinas cristãs
52 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

tradicionais, especialmente relacionadas com cristologia e soterio-


logia. Mostravam-se simpáticos à crítica bíblica radical e davam
ênfase às dimensões éticas da fé em detrimento das mais teológicas.
O modernismo pode ser visto, em muitos pontos, como a tentativa
de estudiosos católicos romanos de responder às injunções do
Iluminismo até então ignoradas pela Igreja.
O termo, no entanto, é vago e não deve supor a existência de
certa escola de pensamento com método próprio e ensino homogê-
neo. É verdade que a maioria dos escritores modernistas mostra-
vam-se preocupados com a integração do pensamento cristão ao
espírito do Iluminismo, especialmente no que se relacionava à nova
compreensão da história e das ciências naturais então em ascen-
dência. Da mesma forma, certos escritores modernistas inspiravam-
se na obra de Maurice Blondel (1861-1949), para quem o sobrena-
tural era intrínseco à existência humana, e Henri Bergson (1859-
1941), que privilegiava a intuição em detrimento do intelecto. Por
outro lado, não há suficiente concordância entre os modernistas fran-
ceses, ingleses e norte-americanos nem entre os modernistas católi-
cos romanos e protestantes para considerá-los com rigor membros
de uma mesma escola.
Entre os pensadores modernistas católicos romanos merecem
atenção especial Alfred Loisy (1857-1940) e George Tyrrell (1861-1909).
Na última década do século XIX, Loisy empenhou-se em criticar os
pontos de vista tradicionais sobre as narrativas bíblicas da criação, e
ensinava que se podia discernir nas Escrituras um claro desenvolvi-
mento de doutrina. Sua obra mais importante, L 'évangile et l'église (O
evangelho e a Igreja), apareceu em 1902. Tratava-se de importante
resposta às posições de Adolf von Hamack, publicada dois anos antes
sob o título What is Christianity? (O que é cristianismo?), sobre as
origens e a natureza do cristianismo. Loisy rejeitava a sugestão de
Hamack de que haveria descontinuidade radical entre Jesus e a Igre-
ja; entretanto, fez importantes concessões às idéias sobre as origens
cristãs do protestante liberal Hamack, incluindo a aceitação do papel
e da validade da crítica bíblica para a interpretação dos evangelhos.
Como resultado disso, sua obra foi posta na lista dos livros proibidos
pelas autoridades católicas romanas em 1903.
Religião: aliada ou inimiga da ciência? I 53

O escritor britânico jesuíta George Tyrrell seguiu Loisy em sua


crítica radical do dogma católico. Juntamente com Loisy, criticou o
estudo de Harnack sobre as origens cristãs em sua obra Christianity at
the Crossroads (Cristianismo na encruzilhada), de 1909, rejeitando a
reconstrução histórica da vida de Jesus por ser "o reflexo de uma face
protestante liberal, vista no fundo de um poço muito fundo". A obra
também incluía a defesa da obra de Loisy, argumentando que a hos-
tilidade oficial da Igreja católica romana "ao livro e a seu autor criava
a impressão geral de que se tratava de defesa do protestantismo libe-
ral contra as posições católicas romanas, e que o 'modernismo' nada
mais era do que um movimento protestantizante e racionalizante".
Em parte, essa desconfiança vinha da crescente influência das
atitudes modernistas nas principais denominações protestantes. Na
Inglaterra, a Churchmen's Union (União dos Membros da Igreja)
fora fundada em 1898 para a promoção do pensamento religioso
liberal; em 1928, alterava seu nome para Modem Churchmen's Union
(União Moderna dos Membros da Igreja). Entre os pensadores as-
sociados a esse grupo destacamos Hastings Rashdall (1858-1924),
cuja obra Idea of Atomement in Christian Theology (A idéia da expia-
ção na teologia cristã), de 1919, ilustra o tom geral do modernismo
inglês. Partindo de certa forma acriticamente dos primeiros escritos
de pensadores protestantes liberais como Ritschl, Rashdall achava
que a teoria da expiação, associada ao teólogo medieval Pedro
Abelardo, era mais aceitável às formas do pensamento moderno do
que as teorias tradicionais baseadas na noção de sacrifício vicário. A
forte ênfase moral ou exemplarista dessa teoria da expiação, que
interpretava a morte de Cristo quase exclusivamente como demons-
tração do amor de Deus, produziu enorme impacto no pensamento
inglês, principalmente anglicano, entre 1920 e 1930. Contudo, os
eventos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e o surgimento
posterior do fascismo na Europa nos anos 1930 minaram a
credibilidade do movimento. Somente depois de 1960 haveria de
surgir um movimento renovado de radicalismo no cristianismo inglês.
O surgimento do modernismo nos Estados Unidos seguiu mo-
delo semelhante. O crescimento do protestantismo liberal no final
54 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

do século XIX e começo do século XX era considerado um desafio


direto aos pontos de vista evangélicos mais conservadores. A obra
Passing Protestantism and Coming Catholicism (O protestantismo pas-
sado e o catolicismo vindouro), de 1908, de Newman Smyth, sugeria
que o modernismo católico romano poderia servir de mentor para o
protestantismo americano de diferentes maneiras, incluindo sua crí-
tica do dogma e sua compreensão histórica do desenvolvimento da
doutrina. A situação foi se tornando cada vez mais polarizada com o
aparecimento de um outro movimento conhecido pelo nome de
"fundamentalismo"em resposta às atitudes modernistas.
O modernismo é de grande importância para o nosso estudo
por causa de seu forte apoio às teorias darwinistas da evolução.
Sempre mais radical do que o liberalismo, o modernismo não via
dificuldade para eliminar os aspectos do pensamento cristão que
lhe parecessem inconvenientes. É o que se torna evidente na sua
atitude para com a evolução biológica. O modernismo parecia
divinizar a evolução, revestindo o processo evolutivo de significado
sobrenatural por meio do apelo a forças espirituais ou cósmicas
capazes de conduzir o processo à consumação. Essa idéia também
aparece nos livros de Henri Bergson. Seu livro Creative Evolution
(Evolução criativa) desenvolveu a idéia do processo evolucionário
guiado pelo "impulso vital" (élan vital) no âmbito da natureza. Bergson
detectou na natureza uma força imanente em ascensão na busca de
alvos ainda não atingidos. Se por um lado mostrava-se vago sobre a
natureza exata desse "impulso vital", ou sobre a maneira como pode-
ria ser observado, demonstrava, por outro, enorme atração pelo ro-
mantismo capaz de captar a imaginação de muitos de seus contem-
porâneos. George Tyrrell simpatizava com uma idéia da imanência
divina na natureza semelhante ao pensamento de Bergson.
Para os modernistas, a maior parte da teologia cristã tradicional
baseava-se em mal-entendidos e erros. O surgimento das ciências
naturais oferecia corretivos a essa situação, permitindo, assim, que
os teólogos cristãos corrigissem seus erros. Para Lyman Abbott, a
religião estava sempre em processo de desenvolvimento. Em seu
livro Theology of an Evolutionist (Teologia de um evolucionista), de
Religião: aliada ou inimiga da ciência? I 55

1897, procurava mostrar que a Bíblia retratava o alvorecer gradual


da compreensão incompleta do mundo e de Deus na humanidade.
Tal compreensão estava ainda em processo de desenvolvimento e
correção. As ciências naturais deveriam ser vistas como importante
elemento nesse processo.
Todavia , devemos voltar agora ao início do século XX para con-
siderar uma das primeiras reações ao liberalismo, que está particu-
larmente associada ao nome de Karl Barth: a neo-ortodoxia. Como
veremos, esse movimento foi muito menos positivo na sua avalia-
ção do papel religioso das ciências naturais.

Neo-ortodoxia

Logo depois da Primeira Guerra Mundial muita gente se desi-


ludiu com a teologia liberal, embora sem rejeitá-la totalmente. Essa
teologia estava associada com Schleiermacher e seus seguidores.
Diversos autores achavam que ele havia reduzido o cristianismo a
mera experiência religiosa, centralizado mais nas preocupações
humanas do que em Deus. Acreditava-se que a guerra havia des-
truído a possibilidade de tal crença. A teologia liberal parecia con-
centrar-se nos valores humanos: como levá-los a sério quando ha-
viam contribuído para conflitos globais em escala tão impressio-
nante? Ao acentuar a alteridade de Deus, escritores como Karl Barth
(1886-1968) acreditavam poder escapar da fracassada teologia libe-
ral centralizada no ser humano.
Barth expôs suas idéias em Church Dogmatics (Dogmática da
Igreja), entre 1936 e 1969, talvez a obra teológica mais importante
do século XX. Contudo, ele não conseguiu viver tempo suficiente
para concluir a doutrina da redenção. O tema fundamental da obra
é a necessidade de levar a sério a revelação de Deus em Cristo por
meio das Escrituras. Embora essa temática possa parecer mera reite-
ração do pensamento de Calvino e Lutero, Barth a tratou com ini-
gualável grau de criatividade.
A obra é dividida em cinco volumes, cada um ulteriormente
subdividido. O volume I trata da Palavra de Deus — que, para Barth,
56 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

é a fonte e o ponto de partida tanto da fé como da teologia cristã. O


volume II trata da doutrina de Deus e o volume III da doutrina da
criação. O volume IV refere-se à doutrina da reconciliação ou "ex-
piação" e o incompleto volume V trata da doutrina da redenção.
Sem falar no previsível (e relativamente não-informativo)
"barthianismo", dois termos têm sido usados para descrever seu
método. O primeiro, " teologia dialética", vem de seu comentário
sobre a Epístola aos Romanos, de 1919, no qual elabora a "dialética
entre tempo e eternidade" ou " entre Deus e a humanidade". Esse
termo acentua a insistência característica de Barth em contradição
ou dialética, em vez de continuidade, entre Deus e a humanidade.
O segundo termo, "neo-ortodoxia", denota a afinidade de Barth com
os escritos da ortodoxia reformada, especialmente no século XVII.
De certa forma, Barth teria mesmo entrado em diálogo com diver-
sos teóricos reformados desse período.
Talvez dos pontos mais importantes de sua obra foi a maneira
como desenvolveu sua "teologia da Palavra de Deus". Segundo Barth,
a teologia procura manter a proclamação da Igreja cristã fiel a seu
fundamento, que é Jesus Cristo, segundo a revelação contida nas
Escrituras. A teologia não é resposta à situação humana nem a suas
perguntas; é resposta à Palavra de Deus, que exige respostas de
acordo com a sua natureza intrínseca.
A neo-ortodoxia tornou-se muito importante no cenário norte-
americano da década de 1930, especialmente graças aos escritos de
Reinhold Niebuhr, entre outros, que criticavam as posturas otimis-
tas de boa parte do pensamento social liberal protestante da época.
No entanto, a neo-ortodoxia tem sido criticada de muitas ma-
neiras; as seguintes têm especial importância:

(1) Sua ênfase na transcendência e na "alteridade" de Deus dis-


tancia-o dos seres humanos e o torna potencialmente
irrelevante. Muitos estudiosos sugerem que essa posição leva
ao extremo ceticismo.
(2) Observa-se certa circularidade na idéia da supremacia da re-
velação divina incapaz de ser verificada fora dela mesma. Em
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 57

outras palavras, não há pontos externos de referência para


julgar a veracidade da neo-ortodoxia. Muitos de seus críticos
consideram-na uma espécie de fideísmo, isto é, um sistema
de crenças acima de qualquer possibilidade de crítica.
(3) A neo-ortodoxia não oferece resposta para as pessoas atraí-
das por outras religiões, que serão sempre rejeitadas como
distorções e perversões da verdade. Há, todavia, outras posi-
ções teológicas que levam em consideração essas religiões,
estabelecendo um relacionamento entre elas e a fé cristã.

Interessa-nos em especial a maneira como a neo- ortodoxia se


relaciona com as ciências naturais. Barth afirmava que a teologia
tinha seu método próprio para estudar o tema de Deus. Deus deve-
ria ser considerado de maneira completamente diferente daquela
com que se considerava o mundo. Os métodos empregados para o
estudo do mundo não serviam para a teologia. A ciência empenha-
va-se em investigar o mundo: a teologia procurava responder à auto-
revelação de Deus. Segundo Barth, as ciências naturais não tinham
competência para confirmar ou contradizer a teologia porque trata-
vam de objeto diferente, utilizavam linguagem própria e métodos
especiais. Por sua vez, Barth nunca mostrou grande interesse pelas
ciências naturais, atendo-se, quase sempre, a noções em voga mais
no século XIX do que no século XX. Em particular, Barth sempre
rejeitou qualquer idéia de que se pudesse conhecer Deus por meio
da natureza. A própria idéia da "teologia natural" contradizia, para
ele, a prioridade da revelação divina.
Contudo, convém observar que nem todos os seguidores de
Barth adotaram essa abordagem negativa a respeito das ciências
naturais. Thomas F. Torrance, um dos mais importantes intérpretes
de Barth, adotou atitude completamente diferente da do mestre a
respeito das ciências naturais a partir de nova interpretação do lugar
da teologia natural. Mais à frente consideraremos a contribuição
de Torrance.
58 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Evangelicalismo

O termo "evangelical" vem do século XVI. Era aplicado a escri-


tores católicos desejosos de utilizar mais crenças e práticas bíblicas
do que era costume na Idade Média. O termo é empregado hoje em
dia para designar a tendência transdenominacional na teologia e na
espiritualidade voltada para a valorização do lugar das Escrituras
na vida cristã. Examinemos as tendências do evangelicalismo:

(1) Ênfase na autoridade e na suficiência das Escrituras.


(2) Exclusividade da redenção por meio da morte de Cristo na
cruz.
(3) Necessidade de conversão pessoal.
(4) Necessidade, propriedade e urgência do evangelismo.

O movimento permite certa margem de diversidade nas demais


questões teológicas.
Ocupa lugar de importância particular a compreensão da natu-
reza da Igreja. Historicamente, o evangelicalismo não priorizou ne-
nhuma teoria especial da Igreja, reconhecendo a possibilidade de
diversas interpretações a respeito, no Novo Testamento. As diferen-
ças denominacionais sempre foram consideradas secundárias em
relação ao evangelho. Mas isso não significa que os evangélicos
evitem qualquer compromisso com a Igreja considerada por eles
corpo de Cristo. Na verdade, eles não se comprometem com teorias
específicas a respeito da Igreja. Não subordinam a vida comunitária
na Igreja a determinada compreensão denominacional de sua natu-
reza. De certa forma, trata-se da adoção de uma teoria "minimalista"
da "eclesiologia" (como se designa a teoria da Igreja em geral). Ad-
mitem que o Novo Testamento não estipula com precisão formas de
governo eclesiástico, deixando, portanto, os cristãos livres a respei-
to. As conseqüências dessa atitude são enormes e nos ajudam a
entender o movimento.

(1) O evangelicalismo é transdenominacional. Não se confina


a determinadas denominações nem é em si mesmo uma
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 159

denominação. Assim, pode-se falar de evangélicos "angli-


canos", "presbiterianos", "metodistas" e até mesmo "cató-
licos romanos".
(2) Por não ser uma denominação com eclesiologia própria,
manifesta-se como tendência nas principais denominações.
(3) O evangelicalismo pode ser considerado um movimento
ecumênico. Observa-se uma afinidade natural entre seus
seguidores, não importando a denominação a que perten-
çam, baseada em crença e pontos de vista comuns. A carac-
terística recusa dos evangélicos em aceitar qualquer
eclesiologia como normativa, ao mesmo tempo que reco-
nhecem os que estão claramente fundados no Novo Testa-
mento e na tradição cristã, significa que as potencialmente
divergentes questões da ordem e do governo da Igreja são
consideradas de importância secundária.

Convém agora examinar as relações entre fundamentalismo e


evangelicalismo. O fundamentalismo surgiu como reação ao avanço
da cultura secular no interior de algumas Igrejas norte-americanas.
Sempre foi um movimento de contracultura e de afirmação de cer-
tos limites doutrinários. Algumas doutrinas centrais, principalmente
a da absoluta autoridade literal das Escrituras e da segunda vinda de
Cristo antes do fim dos tempos (conhecida como "retorno pré-
milenar de Cristo"), serviram para estabelecer fronteiras em face da
cultura secular bem como sinais de identidade e propósito. O mo-
vimento caracterizou-se pelo que se poderia chamar de mentalida-
de de resistência. Suas comunidades consideravam-se cidades siti-
adas ou (no espírito dos pioneiros) cercadas de diligências, para
defender suas marcas distintivas contra a cultura descrente ao redor.
A ênfase no retorno pré-milenar de Cristo teve importância es-
pecial. Esse ponto de vista tem longa história, muito embora só te-
nha adquirido proeminência no século XIX. Contudo, tornou-se
poderosa arma nas mãos dos fundamentalistas contra a idéia liberal
cristã da presença do reino de Deus na terra a ser alcançado mediante
ação social. Assim, o fundamentalismo também acabou por desen-
60 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

volver e adotar o que veio a se chamar de "dispensacionalismo pré-


milenarista".
No final de 1940 e início da década seguinte surgiram algumas
inquietações entre os fundamentalistas norte-americanos. A nova cor-
rente do neo-evangelicalismo, que examinaremos mais adiante, surgia
para reformular situações fundamentalistas então inaceitáveis. O
fundamentalismo e o evangelicalismo distinguem-se em três níveis:

(1) O fundamentalismo mostra-se totalmente hostil a qualquer


noção de crítica bíblica, comprometendo-se, portanto, com
a interpretação literal das Escrituras. O evangelicalismo, por
sua vez, aceita a crítica bíblica (embora insistindo que se a
use responsavelmente) e reconhece a diversidade de for-
mas literárias nas Escrituras.
(2) O fundamentalismo, teologicamente, defende com rigor
certas doutrinas às vezes consideradas pelos evangélicos
secundárias (como, por exemplo, as relacionadas com o
dispensacionalismo) ou até mesmo irrelevantes. Há por
outro lado coincidências de crenças (como na autoridade
das Escrituras) que facilmente mascaram diferenças de com-
preensão e temperamento.
(3) Sociologicamente falando, o fundamentalismo pode ser
descrito como movimento reacionário contracultural, que
exige de seus seguidores, em geral pertencentes a classes
sociais menos favorecidas, o cumprimento de severas re-
gras. O evangelicalismo, por sua vez, tem critérios pouco
claros de identificação e se expressa melhor entre as classes
mais altas. Não se encontra no evangelicalismo o mesmo
elemento de irracionalismo comum no fundamentalismo,
coisa que explica a produção de importantes escritos evan-
gélicos nas áreas da filosofia da religião e da apologética.

A ruptura entre o fundamentalismo e o neo-evangelicalismo no


final dos anos 1940 e início da década de 1950 mudou tanto a na-
tureza como a percepção deste último. Billy Graham, talvez o repre-
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 1 61

sentante público mais visível do novo estilo evangélico, tornou-se


uma figura muito conhecida na sociedade inglesa e modelo para a
nova geração. Nos Estados Unidos o reconhecimento público da
nova importância do evangelicalismo se deu no início dos anos 1970.
A crise de confiança vivida pelo cristianismo liberal americano nos
anos 1960 apontava a necessidade de uma nova forma de crença
cristã mais publicamente confiável. Em 1976, os Estados Unidos
despertaram para viver o "Ano Evangélico" com um presidente
(Jimmy Carter) nascido de novo, orquestrado por enorme interesse
da mídia e envolvimento cada vez maior do evangelicalismo na ação
política organizada.
A atitude desse movimento em relação às ciências naturais é
muito complexa. Muitos deles acreditam que a compreensão bíblica
da criação depende da interpretação literal dos dois primeiros capí-
tulos do livro do Gênesis. Por isso, argumentam que não se pode
falar de "evolução". Para eles a narrativa bíblica da criação parece
envolver todas as formas de vida biológica, incluindo a humanida-
de, criadas no período de sete dias. Tal posição opõe-se, natural-
mente, ao ponto de vista evolucionário sobre as origens da natureza
humana. O movimento conhecido como "criacionismo científico" se
originou no contexto evangélico.
Mas há alguns evangélicos que consideram a teoria da evolu-
ção consistente com a idéia da providência divina que teria orien-
tado o aparecimento da humanidade. Embora criticando a idéia de
que a evolução biológica tenha dependido do acaso ("acaso" signi-
ficando "fora do controle de Deus"), escritores como Benjamin B.
Warfield pensavam que a evolução era consistente com o ponto de
vista bíblico_ das origens da vida humana. À medida que o
evangelicalismo foi se tornando presença mais importante no cris-
tianismo ocidental, as divergências dentro do movimento sobre as
relações da religião com a ciência foram também adquirindo maior
relevância.
Estamos agora preparados para examinar certos desdobramen-
tos das relações entre religião e ciências naturais nos últimos dois
séculos.
62 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Modelos de interação entre ciência e religião

Quando se pesquisa a vasta literatura devotada às relações en-


tre ciência e religião percebe-se grande diversidade de interpreta-
ções. Torna-se pois necessário classificar essas diferentes maneiras
de entender. Talvez o modo mais simples de examinar a questão
seja propor estas duas perguntas:

(1) Ciência e religião tratam da mesma realidade?


(2) Os resultados das pesquisas nos campos da ciência e da
religião se contradizem ou se complementam?

Embora esta abordagem corra o risco de simplificação, ela per-


mite, contudo, a identificação de alguns de seus traços principais.

Modelos em confronto

Historicamente, o modelo mais importante da relação entre ciên-


cia e religião é o do "conflito" ou, talvez, até mesmo da "luta". Esse
modelo fortemente antagonista continua a influenciar profundamen-
te os debates populares, mesmo se amenizado entre os estudiosos.
Em vista de sua importância, convém examinar com certa precisão
sua origem histórica.
O tom geral do encontro da religião (principalmente do cristia-
nismo) com as ciências naturais foi estabelecido por duas obras
publicadas no final do século XIX: History of the Conflict between Religion
and Science (História do conflito entre religião e ciência), de 1874, de
John William Draper, e History of the Warfare of Science with Theology
in Christendom (História da luta da ciência com a teologia na cristan-
dade), 1896, de Andrew Dickson White. Esses dois livros refletem for-
temente o ponto de vista histórico positivista e "republicano", inte-
ressados em pôr fim a velhas querelas com a religião organizada, con-
trastando claramente com a relação mais estabelecida e simbiótica
entre o que havia de mais típico entre a América do Norte e a Grã-
Bretanha por volta de 1830.
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 63

A History of the Conflict..., de Draper, afirmava que as ciências


naturais deveriam ser bem recebidas como libertadoras da humani-
dade da opressão do pensamento e das estruturas do pensamento
religioso tradicional, particularmente do catolicismo romano. "A his-
tória da ciência não é mero registro de descobertas isoladas; é a
narrativa do conflito entre dois poderes beligerantes, a força expan-
siva do intelecto humano, de um lado, e a repressão oriunda da fé
tradicionalista e dos interesses humanos, de outro." Draper sentia-
se particularmente ofendido por desenvolvimentos na Igreja católi-
ca romana que ele considerava pretensiosos, opressivos e tirânicos.
O surgimento da ciência (especialmente da teoria darwinista) era
para Draper o meio mais importante para "pôr em perigo a posição
da Igreja católica". Por isso, a ciência deveria ser incentivada por
todos os meios possíveis. Como muitas obras polêmicas, esse livro
tornou-se conhecido muito mais por causa de suas estridentes
asserções do que pela substância dos argumentos; contudo, o tom
geral de seu estilo ajudou a criar certo estado mental que foi admi-
ravelmente sintetizado no famoso epitáfio de Sir Richard Gregory:
Meu avô pregava o evangelho de Cristo.
Meu pai pregava o evangelho do socialismo.
Eu prego o evangelho da ciência.

As origens da History of the Warfare . . ., de Andrew Dickson White,


prendem-se a circunstâncias ligadas à fundação da Universidade de
Cornell. Diversas escolas denominacionais sentiam-se ameaçadas
pelo estabelecimento da nova universidade e incentivavam ataques
contra ela e contra White, seu primeiro reitor, ambos acusados de
ateísmo. Irritado com esse injusto tratamento, White decidiu lançar
uma ofensiva contra seus críticos numa palestra pronunciada em
Nova York, em 18 de dezembro de 1869, intitulada "O campo de
batalha da ciência". A ciência foi, uma vez mais, retratada como força
libertadora na busca da liberdade acadêmica. Essa palestra foi ex-
pandida até ser publicada em 1876 com o título de The Warfare of
Science (A luta da ciência). O material reunido nesse livro foi depois
64 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

suplementado pela série "Novos capítulos na luta da ciência",


publicada em forma de artigos no Popular Science Monthly entre 1885
e 1892. O livro em dois volumes de 1896 consiste de material com-
pilado do livro de 1876 com acréscimos.
O próprio White declarava que "o maior erro das idéias erra-
das" era a afirmação de que "a religião e a ciência eram inimigas".
Contudo, esta era precisamente a impressão causada por seu livro,
independentemente de sua intenção. A cristalização da metáfora
da "luta" na mente popular era sem dúvida catalisada pela escrita
vigorosamente polêmica de White e pela reação popular a ela. A
interpretação popular da teoria darwinista no final do século XIX
em termos da "sobrevivência do mais apto" incentivava o imaginá-
rio do conflito: Não era assim que a natureza determinava as coi-
sas? Não era a própria natureza um espetacular campo de batalha
onde se lutava pela sobrevivência biológica? Não seria, pois, nor-
mal esperar que semelhante luta pela sobrevivência também acon-
tecesse entre os pontos de vista religioso e científico, quando o
vencedor eliminaria o vencido, sem nenhuma chance de reapare-
cer no incessante desenvolvimento evolucionário do pensamento
e do conhecimento humanos?
Por trás desse modelo de "conflito" emergia uma significativa
mudança social. Na perspectiva sociológica, o conhecimento cientí-
fico podia ser visto como recurso cultural construído e desenvolvido
por certos grupos para a conquista de determinados objetivos e in-
teresses. Essa abordagem esclarece a crescente competição entre dois
grupos distintos na sociedade inglesa do século XIX: o clero e os
cientistas profissionais. O clero era em geral considerado uma elite
no começo do século. O "pároco sabe tudo" era um estereótipo bem
estabelecido na época.
Com o aparecimento do "cientista profissional", contudo, ini-
ciou-se a luta para determinar quem chegaria à ascendência cultu-
ral na segunda metade do século. Esse "conflito" deve ser entendido
em termos das condições específicas da era vitoriana, na qual novos
grupos intelectuais emergentes procuravam substituir os antigos. O
surgimento da teoria darwinista parecia justificar cientificamente esse
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 65

modelo. Tratava-se da luta pela sobrevivência dos intelectualmente


mais aptos. No início do século XIX muitos clérigos faziam parte da
British Association. O "pároco-naturalista" era uma categoria social
aceitável na época. Mas no final do século os clérigos foram consi-
derados inimigos da ciência e, conseqüentemente, do progresso in-
telectual e social. Resultava disso maior simpatia pelo modelo de
interação entre a ciência e a religião retratando a religião e seus
representantes com termos depreciativos e desabonadores.
Para muitos, especialmente os religiosos, a popularidade do ima-
ginário da "luta" resultava de métodos propagandistas de certos cien-
tistas naturais. Por outro lado, convém observar que certos tipos de
crença religiosa fundamentalista opunham-se implacavelmente às
ciências naturais, promovendo ativamente o conceito de conflito.
Consideremos, por exemplo, o titulo de recente obra de Henry Morris,
presidente do Institute for Creation Research (Instituto para a Pesquisa
sobre criação), The Long War against God (A longa guerra contra Deus),
que representa bem elaborada crítica da moderna teoria da evolução.
No prefácio desse livro, um pastor conservador batista declara
que "o evolucionismo moderno é apenas a continuação da longa
luta de Satanás contra Deus". Encontramos aí um resumo do teor
da obra que parece afirmar que a teoria darwinista da evolução
mistura-se com ocultismo, magia e toda a sorte de depravação hu-
mana. Trata-se de análise altamente especulativa e exegeticamente
duvidosa. Morris nos convida a imaginar Satanás planejando a idéia
da evolução com a finalidade de destronar Deus. Percebe-se que a
persistência da imagem da "luta" não tem sido alimentada apenas
por um grupo de cientistas anti-religiosos. Uma significativa mino-
ria de religiosos ativistas ainda insiste em acusar a ciência de decla-
rar guerra à religião. Para esse grupo, a melhor forma de defesa seria
o contra-ataque.
A plausibilidade do imaginário da luta liga-se especificamente
ao cristianismo protestante norte-americano de tendência funda-
mentalista. Examinemos, pois, sua origem e seu desenvolvimento.
Como já observamos, o fundamentalismo surgiu no interior da cul-
tura protestante americana da década de 1920 em face da expansão
66 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

da cultura secular. O nome do movimento vem de uma série de


doze livros intitulados The Fundamentais (Os fundamentos), empe-
nhados em divulgar a perspectiva conservadora protestante sobre a
cultura e a teologia de então.
Apesar do amplo uso do termo para movimentos religiosos no
âmbito do islamismo e do judaísmo, o "fundamentalismo" designa
original e propriamente o movimento nascido no cristianismo pro-
testante americano entre 1920 e 1940, em oposição à sociedade se-
cular. Sua inerente propensão ao confronto resultou inevitavelmen-
te no modelo da "luta" entre religião e sociedade. Seus expoentes
consideravam as ciências naturais (principalmente a teoria da evo-
lução biológica) a guarda avançada da tendência secularizante na
sociedade como um todo.
O infame julgamento de Scopes em 1925 transformou-se em
ícone dessa confrontação. Esse incidente aumentou a credibilidade
do imaginário da "luta" fortalecida pelas táticas empregadas nas
cortes de justiça e fora delas pelos antievolucionistas. Em maio de
1925, John T. Scopes, jovem professor de ciência na escola secundá-
ria, tornou-se vítima do estatuto recentemente adotado que proibia
o ensino da evolução nas escolas públicas do estado do Tennessee.
The American Civil Liberties Union (A União das Liberdades Civis
Americanas) veio em apoio de Scopes, enquanto Willliam Jennings
Bryan atuava como testemunha de acusação. Esse fato transformou-
se no maior desastre de todos os tempos no campo das relações
públicas para o fundamentalismo.
Bryan, que intempestivamente declarara que o julgamento era
"um duelo de morte"(observemos de novo o uso explícito do ima-
ginário do conflito) entre o cristianismo e o ateísmo, foi mal asses-
sorado pelo advogado agnóstico Clarence Darrow. A decisão legal
foi simples e brilhante ao mesmo tempo. Bryan foi chamado como
testemunha e interrogado acerca de seus pontos de vista sobre a
evolução. Foi forçado a admitir que não conhecia geologia nem re-
ligiões comparadas, nem mesmo as civilizações antigas. Acabou por
demonstrar também que suas opiniões sobre religião eram ingênuas.
O "julgamento dos macacos" (como ficou conhecido) transformou-se
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 1 67

num símbolo do pensamento religioso reacionário em face do pro-


gresso científico.
O modelo de "conflito" ou "luta" ainda exerce certa influência
hoje em dia, particularmente na mídia popular quando trata do tema.
O slogan "a ciência contraria a religião" ainda aparece em certas
apresentações da mídia no Ocidente. Mas há outros modelos a ser
considerados. É o que veremos a seguir.

Modelos de diálogo

Na seção anterior examinamos modelos de "conflito" ou "luta"


nas relações entre ciência e religião. Esses modelos ainda exercem
alguma influência atualmente. Contudo, há dois outros importantes
modelos da relação entre ciência e religião que podem ser subdivi-
didos em inúmeras subcategorias. O que lhes aproxima é a ausência
de qualquer idéia de "conflito" ou "luta" entre as duas disciplinas.
CIÊNCIA E RELIGIÃO SÃO CONVERGENTES. São inúmeros os teólogos
cristãos ocidentais que acentuam a idéia de que "toda verdade é
verdade de Deus". Baseados nessa premissa, acolhem com satisfa-
ção os avanços e desenvolvimentos da compreensão científica do
universo, acomodando-os à fé cristã. Tal atitude exige inevitavel-
mente ajustes no conteúdo da fé em diversos pontos. Essa tendên-
cia teria começado com o deísmo inglês no século XVII, embora só
se tenha firmado no século XIX.
O protestantismo liberal tornou-se força dominante no cristia-
nismo ocidental ao longo do século XIX. F. D. E. Schleiermacher
(1768-1834), considerado geralmente o pai do movimento, procura-
va interpretar a fé cristã de maneira consistente com os conheci-
mentos da época. Embora tivesse morrido um quarto de século antes
da publicação de A origem das espécies, de Darwin, seu pensamento
foi aplicado ao tema por seus seguidores, entre os quais Albrecht
Ritschl. O protestantismo liberal acreditava que as teorias da evolu-
ção levavam a teologia a apreciar a maneira particular da presença
68 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

e da ação de Deus no mundo. O movimento achava que a evolução


era consistente e contínua com a existência e a ação de Deus.
A teologia do processo (ver pp. 135-139) dá-nos um bom exem-
plo da forma de um pensamento religioso disposto a adaptar a tra-
dição cristã às descobertas das ciências naturais. A partir dos escri-
tos de Alfred North Whitehead e Charles Hartshorne, a teologia do
processo acentuava a maneira como Deus podia ser compreendido
em ação nos processos naturais. Semelhante atitude transparece nos
escritos do notável jesuíta e paleontólogo francês Pierre Teilhard de
Chardin, que percebia no processo da evolução a mão orientadora
de Deus na construção de estruturas e níveis de existência mais
complexos (ver p. 273-275).
A interação entre ciência e religião também transparece nos
escritos do teólogo de Cambridge Charles Raven, particularmente
em Natural Religion and Christian Theology (Religião natural e teolo-
gia cristã), de 1953. Para ele, os mesmos métodos básicos devem ser
empregados em todos os aspectos da busca de conhecimento, seja
religioso seja científico. "O processo básico é o mesmo, estejamos
investigando a estrutura dos átomos ou o problema da evolução
animal, períodos da história ou a experiência religiosa de algum
santo." Raven rejeita veementemente qualquer tentativa de dividir o
universo em elementos "espirituais" e "físicos", insistindo que deve-
mos contar "a mesma história de um universo singular e indivisível".
CIÉNCIA E RELIGIÃO sÃo DISTINTAS. Há os que acentuam o caráter
distinto de cada uma das disciplinas em questão. É o caso, por exem-
plo, da neo-ortodoxia surgida em reação ao protestantismo liberal
por causa de sua tendência a se "acomodar" à cultura dominante.
Talvez Karl Barth tenha sido o representante mais notável dessa pos-
tura. Para ele, as ciências naturais não exercem influência alguma
sobre o cristianismo. Não podem ser utilizadas para apoiar nem para
contradizer a fé, uma vez que a ciência e a teologia atuam a partir de
pressupostos bastante diferentes.
A ênfase nas diferenças entre ciência e religião encontra-se nos
escritos de muitos estudiosos norte-americanos influenciados pela neo-
ortodoxia. Langdon Gilkey é bom exemplo dessa abordagem. Em seu
Religião: aliada ou inimiga da ciência? I 69

livro de 1959 Maker of Heaven and Earth (Criador do céu e da terra),


defende a idéia de que as ciências naturais e a teologia representam
modos independentes e diferentes de estudar a realidade. As ciências
naturais perguntam pelo "como" enquanto a teologia busca o "porquê"
da realidade. As ciências naturais envolvem-se com causas secundárias
(isto é, com as interações observáveis no âmbito da natureza); a teolo-
gia, com causas primeiras (isto é, com a origem e os propósitos supre-
mos da natureza).

Religião e desenvolvimento das ciências naturais

Como já observamos, esta questão deve ser tratada com refe-


rência especial ao cristianismo por causa do surgimento das ciências
naturais no contexto especificamente cristão da Europa ocidental.
Contudo, a discussão pode ser ampliada para outras religiões. Nas
páginas seguintes consideraremos alguns dos fatores gerais — po-
sitivos e negativos — envolvidos nessa interação. Examinaremos
em primeiro lugar dois modos pelos quais a religião pode represen-
tar empecilho ao avanço científico.

Conservadorismo da religião tradicional

Iniciaremos pelo exame do caráter geralmente conservador de


boa parte da religião tradicional. Convém observar que, no contexto
específico da Europa ocidental entre 1100 e 1900, as Igrejas cristãs
sentiam-se guardiãs da tradição em oposição radical a novas idéias.
Esse fato não resulta necessariamente da teologia cristã, mas reflete
o papel social representado pelas Igrejas nesse longo período da his-
tória européia ocidental. Por outro lado, as ciências naturais mostra-
ram-se, muitas vezes, radicais ao questionarem a sabedoria recebida.
Este tema extrapola o âmbito do cristianismo e da Europa oci-
dental, mostrando-se valioso também em outros contextos. Fre-
eman Dyson detecta, num ensaio intitulado "The Scientist as Rebel"
70 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

(O cientista rebelde), a presença de um elemento comum na maior


parte dos estudos científicos. Esse elemento seria "a rebelião contra
as restrições impostas pela cultura local dominante". A ciência era,
quase por definição, considerada uma atividade subversiva. Essa idéia
aparece numa conferência feita na "Society of Herectics" (Sociedade
dos Hereges), em Cambridge, pelo biólogo J. B. S. Haldane, em fe-
vereiro de 1923. Para o matemático e astrônomo árabe Ornar
Khayyam, a ciência representava uma rebelião contra os limites inte-
lectuais impostos pelo islamismo. Para os cientistas japoneses do sé-
culo XIX, a ciência se opunha ao antigo feudalismo de sua cultura.
Para os grandes físicos indianos do século XX, a ciência era poderosa
força intelectual dirigida contra a ética fatalista do hinduísmo (sem
falar no imperialismo britânico, dominante na região). Na Europa oci-
dental o avanço científico envolvia inevitavelmente confrontos com a
cultura dominante — incluindo aspectos políticos, sociais e religiosos.
Num Ocidente dominado pelo cristianismo, não nos surpreende ve-
rificar que as tensões entre ciência e cultura ocidental acabaram por
ser confundidas com o confronto entre ciência e cristianismo.

Desafio da cosmovisão científica à religião tradicional

Apesar do perigo de exagero, o surgimento da cosmovisão cien-


tífica questionou diversos pontos de vista das religiões tradicionais.
Por exemplo, o surgimento e a aceitação gradual do modelo coper-
nicano do sistema solar desafiou seriamente a visão de um universo
geocêntrico, ensinamento implícito em quase todo o pensamento
religioso tradicional. Pode-se, contudo, perguntar se as afirmações
do geocentrismo estariam assim tão enraizadas nos meios religio-
sos. Como já vimos, o ponto de vista geral de que a Bíblia apoiava
o geocentrismo depende da afirmação de que a Terra era o centro de
todas as coisas e de que, portanto, a Bíblia apenas dizia o mesmo. As
técnicas de interpretação bíblica conseguiram "eliminar" da Bíblia
elementos culturalmente condicionados e muitos de seus intérpre-
tes souberam contornar as dificuldades existentes.
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 1 71

No caso da cosmovisão newtoniana, parecia, inicialmente, que


os avanços da pesquisa científica confirmavam certos temas centrais
do ensino religioso tradicional, como, por exemplo, a doutrina da
criação. Mais tarde, o newtonianismo adquiriu tons anti-religiosos,
principalmente quando parecia dispensar qualquer necessidade de
Deus para o funcionamento do universo.
Assim, a controvérsia darwinista foi a que mais ameaçou as cren-
ças religiosas tradicionais, ao contrariar a crença de que Deus criara
cada espécie diretamente ("criação especial") e ao rejeitar a idéia de
que a humanidade teria sido o clímax da criação divina, completa-
mente diferente das demais espécies animais. As idéias de Darwin
(que ele cautelosamente expôs, ciente de que melindrariam muita
gente) conotavam claramente a afirmação de que os seres humanos
eram menos especiais do que em geral se pensava.
Enquanto as teorias de Copérnico desafiavam determinado as-
pecto da interpretação tradicional da narrativa da criação do Gênesis,
o darwinismo atacava em outros flancos. Embora muitos pensado-
res acreditassem que era perfeitamente possível reconciliar a Bíblia,
Copérnico e Darwin (lembremos aqui a idéia da "evolução teísta"),
a maioria das pessoas desconfiava de uma discrepância fundamen-
tal e até mesmo fatal entre ciência e religião. Embora essas posições
tenham sido polarizadas por fatores sociais e políticos típicos da
Europa ocidental (especialmente na Inglaterra) no final do século
XIX, permanecem certas tensões que alimentam a hostilidade entre
a religião e o avanço da ciência.
O quadro geral, no entanto, é bem mais complexo do que se
pode imaginar. Depois de observarmos dois fatores negativos, pas-
semos a considerar outros dois, desta vez, positivos. Por enquanto,
vamos apenas mencioná-los, deixando o tratamento mais porme-
norizado de seus elementos para mais adiante.

Estudar a natureza é estudar Deus

Quase todas as pessoas concordam que a idéia da criação do


mundo por Deus oferece motivação fundamental para a pesquisa
72 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

científica. Distinguimos três posições gerais sobre a questão do status


da ordem natural:

(1) O mundo natural é divino.


(2) O mundo natural foi criado e carrega em si as marcas de
seu criador.
(3) O mundo natural não tem nenhuma relação com Deus.

Percebemos claramente certo grau de simplificação nas três pre-


missas mencionadas acima. Contudo, elas nos permitem estabele-
cer um elemento de fundamental importância. Suponhamos que
alguém seja fortemente religioso. Se o mundo natural não tiver
nenhuma relação com Deus, não haverá motivo para estudá-lo. Por
outro lado, se o mundo natural relacionar-se de alguma forma com
Deus, haverá claras razões para estudá-lo, uma vez que tal estudo
nos fará compreender melhor a natureza do Deus criador. Interes-
sa-nos, pois, explorar a maneira como a doutrina da criação — como
aquela associada ao judaísmo e ao cristiansmo — estabelece certa
conexão entre Deus e a ordem natural.
Inúmeros religiosos dos séculos XVI e XVII sublinharam a idéia
de que o Deus invisível poderia ser estudado por meio da criação
visível. Essa idéia (às vezes manifesta quando se fala nos "dois li-
vros", o das Escrituras e o da Natureza) impulsionou o estudo da
natureza. Se não se podia ver Deus, ele deixara impressa na nature-
za, pela criação, o seu ser. Seria possível, pois, apreciarmos a natu-
reza e o propósito de Deus por meio do estudo da ordem natural.

Ordenação divina da natureza

Nosso segundo tema refere-se à ordem da natureza. Um dos


temas fundamentais da doutrina da criação (tanto a cristã como a
judaica) é que Deus impôs ordem, racionalidade e beleza na natu-
reza. A doutrina da criação leva-nos diretamente à noção de que o
universo possui determinada. regularidade passível de ser apreendi-
Religião: aliada ou inimiga da ciência? 73

da pela humanidade. Este tema, expresso muitas vezes como "leis


da natureza", foi de fundamental importância para o surgimento e
o desenvolvimento das ciências naturais. A fundamentação religio-
sa da noção de regularidade na natureza foi muito importante para
o surgimento das ciências naturais e será considerada mais adiante.
Parece-nos claro que qualquer análise da interação entre ciência
e religião elaborada em termos puramente negativos ou puramente
positivos estará comprometida e será, portanto, inaceitável. Os fatos
nos mostram que as interações históricas têm sido ambivalentes. A
crença religiosa tem tanto incentivado como encorajado o surgimento
das ciências naturais.
Nossa análise tem sido, até aqui, fundamentalmente de nature-
za histórica. Para a apreciação mais completa de nosso tema, faz-se
necessária a consideração pormenorizada de temas teóricos. Vamos
começar essa análise pela exploração de alguns temas filosóficos
relacionados com ciência e religião.

Leituras recomendadas

BARBOUR, I. G. Issues in Science and Religion. Englewood Cliffs, Prentice-


Hall, 1966.
. Myths, Models and Paradigms: A Comparative Study in
Science and Religion. NewYork, Harper & Row, 1974.
. Experiencing and Interpreting Nature in Science and
Religion. Zygon 29 (1994) 457-487.
BARTH, K., E. BRUNNER. Natural Theology. London, SCM Press, 1947.
BROOKE, J. H. Science and Religion: Some Historical Perspectives.
Cambridge/NewYork, Cambridge University Press, 1991.
. Telling the Story of Science and Religion: A Nuanced Account.
Cambridge, Cambridge University Press, 1991.
COSSLETT, T. Science and Religion in the Nineteenth Century. Cambridge/
NewYork, Cambridge University Press, 1984.
GILBERT, J. Burhoe and Shapley: A Complementarity of Science and
Religion. Zygon 30 (1995) 531-539.
74 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

GILKEY, L. Nature, Reality and the Sacred: A Meditation in Science


and Religion. Zygon 24 (1989) 283-298.
GILLEY, S., LOADES, A. Thomas Henry Huxley: The War between
Science and Religion. Journal of Religion 61 (1981): 285-308.
LINDBERG, D. C., Numbers, R. L. Beyond War and Peace: A Reappraisal
of the Encounter between Christianity and Science. Church History
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. God and Nature: Historical Essays on the Encounter between
Christianity and Science. Berkeley, University of California Press,
1986.
McGRATH, A. E. Evangelicalism and the Future of Christianity. Downers
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Evangelicalism. Downers Grove, IL, Inter Varsity Press, 1996.
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OLSHEWSKY, T. M. Between Science and Religion. Journal of Religion
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The Modern Theologians: An Introduction to Christian Theology in
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PINNOCK, C. H. Climbing out of a Swamp: The Evangelical Struggle
to Understand the Creation Texts. Interpretation 46 (1989) 143-155.
ROBBINS, J. W. Science and Religion: Critical Realism or Pragmatism?
International Journal for Philosophy of Religion 21 (1987) 83-94.
ROLSTON, H. Science and Religion: A Critical Survey. Philadelphia,
Temple University Press, 1987.
RUDWICK, M. J. S. Senses of the Natural World and Senses of God:
Another Look at the Historical Relation of Science and Religion. In:
PEACOCKE, A. R. (org.). The Sciences and Theology in the Twentieth
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Religião: aliada ou inimiga da ciência? I 75

SCHILLING, H. K. Science and Religion. New York, Charles Scribner's


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. The Victorian Conflict between Science and Religion: A
Professional Dimension. Isis 69 (1978) 356-376.
WATTS, F. Are Science and Religion in Conflict? Zygon 32 (1997) 125-
138.
WESTFALL, R. S. Science and Religion in Seventeenth-Century England.
Ann Arbor, University of Michigan Press, 1973.
Religião e filosofia da ciência

A DISCIPLINA FILOSOFIA da ciência, em termos gerais, trata


de temas filosóficos relacionados com as ciências naturais. Alguns
desses temas coincidem com os temas tradicionais da filosofia. Por
exemplo, temos o tema das "leis da natureza" que procuram repre-
sentar a regularidade ou ordem aparentemente existente no mun-
do. Mas existirá mesmo essa "regularidade"? Não seria ela imposta
à natureza pela mente humana? Esse debate, estimulado no século
XVIII pelo filósofo escocês David Hume, interessa à filosofia, mas
tem significado particular para o estudo das ciências naturais.
Há temas mais especificamente relacionados com a ciência. Por
exemplo, pensemos na possibilidade da existência de partículas até
agora desconhecidas, como resultado de novas experiências. Tais
partículas não podem ser observadas mas sua existência parece es-
tar implícita no comportamento de outros aspectos do sistema.
Competirá à filosofia da ciência determinar o status dessas partícu-
las hipotéticas e não-observáveis. Seria correto afirmar sua "exis-
tência"? Segundo alguns pensadores, só se pode dizer que alguma
coisa "realmente existe" se ela pode ser observada. Para eles, a par-
tícula teórica não passa de uma "função útil" ou maneira auxiliar
para a explicação de fenômenos.
Este capítulo destina-se a tratar de temas importantes para a
filosofia da ciência a fim de explorar sua importância no campo re-
ligioso. Por outro lado, procurará verificar de que maneira a filosofia
78 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

da religião poderá se valer desses resultados para seus própios fins.


Começaremos nossa discussão com a consideração das diferenças
entre "racionalismo" e "empirismo".

Racionalismo e empirismo

As diferenças filosóficas entre "racionalismo" e "empirismo" são


importantes para a compreensão do desenvolvimento das ciências
naturais. Esses termos têm sido tratados de maneiras diferentes por
diferentes autores. Convém admitir, de início, a necessidade de cer-
to grau de simplificação para os propósitos deste estudo. Tais distin-
ções podem nos ajudar a entender um dos mais importantes aspec-
tos do surgimento das ciências naturais — o apelo à experiência do
mundo como fundamento de nosso conhecimento.
O termo "racionalismo" vem do latim ratio ("razão"), emprega-
do para dizer que toda verdade se origina no pensamento humano,
sem nenhuma ajuda de intervenção sobrenatural nem do recurso à
experiência dos sentidos. A frase "autonomia do pensamento hu-
mano" refere-se, quase sempre, a essa posição. Segundo esse ponto
de vista, os seres humanos podem desenvolver verdades universais
e necessárias por meio do uso adequado e próprio das capacidades
naturais da razão. O racionalismo apela, em geral, ao conceito de
"idéias inatas" para afirmar a existência de idéias naturalmente im-
plantadas na mente humana.
As origens do racionalismo ligam-se em especial aos debates
desenvolvidos no século XVII na Europa ocidental sobre a natureza
e a autoridade da revelação divina. Os escritores religiosos tradicio-
nais argumentavam que a teologia era uma disciplina racional, ca-
paz de ser justificada por meio do apelo à razão. Não queriam dizer
que a razão fosse a única responsável pelas idéias alcançadas. Acre-
ditavam que certas verdades só poderiam ser adquiridas por meio
da revelação divina, mas que tais verdades, uma vez reveladas, po-
deriam ser consideradas racionais. Essa posição, associada com teó-
logos como Tomás de Aquino, havia sido elaborada a partir do pres-
Religião e filosofia da ciência 1 79

suposto de que a fé cristã era fundamentalmente racional e que


poderia, portanto, ser apoiada e examinada pela razão. As "Cinco
Vias", de Aquino (isto é, argumentos para provar a existência de
Deus), ilustram a crença de que a razão é capaz de fundamentar as
idéias da fé.
Como já observamos, Aquino não acreditava que o cristianismo
se limitasse apenas às afirmações da razão. A fé transcendia a razão
pelo acesso que tinha às verdades e aos esclarecimentos da revela-
ção, inatingíveis sem esse auxilio. A razão desempenhava o papel de
construir a partir do conhecimento recebido pela revelação, explo-
rando as implicações daí decorrentes. Nesse sentido, a teologia é
uma disciplina racional, que usa métodos racionais na sua elabora-
ção a partir do que é conhecido pela revelação.
Essa posição foi contrariada durante o século XVII, muito em-
bora traços das críticas empregadas já tivessem aparecido anterior-
mente. Por volita da metade do século XVII, especialmente na In-
glaterra e na Alemanha, acreditava-se que a fé podia ser perfeita-
mente deduzida a partir da razão. Assim, todos os aspectos da fé,
todos os itens da doutrina cristã seriam derivados da razão humana
sem nenhuma dependência da revelação sobrenatural. A idéia da
revelação sobrenatural contrariava a autonomia da razão humana.
Essas atitudes encontram-se nos escritos de Lord Herbert of
Cherbury (1581-1648), particularmente em De veritate (Sobre a ver-
dade, 1624) e De religione gentilium (Da religião dos gentios, 1645).
Cherbury argumentava em favor de um cristianismo racional
baseado no senso inato de Deus e na obrigação moral. Decorrem
daí duas conseqüências. Em primeiro lugar, o cristianismo acabava,
de fato, reduzido às idéias que pudessem ser provadas pela razão.
Se o cristianismo era realmente racional, as partes do sistema que
escapassem do escrutínio da razão não poderiam ser consideradas
"racionais" e deveriam, portanto, ser abandonadas como "irracio-
nais". Tinham de ser descartadas. Em segundo lugar, a razão tinha
prioridade sobre a revelação. A razão era considerada suficiente para
estabelecer a verdade sem nenhum auxilio da revelação. O cristia-
nismo, então, seria seguido sempre que se pudesse endossar suas
80 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

afirmações por meio da razão e abandonado em caso contrário.


Sendo assim, por que deveríamos nos preocupar com a idéia da
revelação? A razão seria capaz de nos demonstrar tudo o que pos-
sivelmente pudéssemos desejar saber a respeito de Deus, do mun-
do e de nós mesmos.
As origens de tão exclusivo apelo à razão vinham do desejo de
libertação de qualquer dependência da revelação divina para o co-
nhecimento humano da verdade. Diversos escritores simpáticos à
religião argumentavam que a existência de Deus poderia ser defendi-
da a partir de fundamentos puramente racionais. Talvez os mais im-
portantes entre eles tenham sido Descartes e Leibniz, geralmente
considerados importantes filósofos racionalistas. Os argumentos de
Descartes em favor da existência de Deus, que datam de 1642, toma-
ram a seguinte forma. Deus é "o ser supremamente perfeito". Como
a existência é perfeição, segue-se que Deus deve possuir a perfeição
da existência, pois se não a possuísse não seria perfeito. Descartes
suplementou esse argumento com dois exemplos (triângulos e mon-
tanhas). Pensar em Deus é pensar em sua existência da mesma ma-
neira como quando pensamos num triângulo pensamos que seus três
ângulos são iguais a dois ângulos retos, ou, igualmente, como quando
pensamos nas montanhas pensamos também nos vales.
Depois de ter considerado este assunto com cuidadosa atenção, estou
convencido de que a existência não pode estar mais separada da es-
sência de Deus do que pode separar-se da essência de um triângulo o
fato de a soma de seus três ângulos ser igual à de dois ângulos retos,
ou de que a idéia do vale possa ser separada da idéia da montanha.
Assim não será menos absurdo pensar em Deus (ser todo perfeito)
desprovido de existência (isto é, desprovido de perfeição) do que pen-
sar numa montanha sem vale. [...] Não sou livre para pensar em Deus
sem sua existência (isto é, em um ser supremamente perfeito sem a
suprema perfeição) da mesma maneira como me sinto livre para pen-
sar num cavalo com asas ou sem asas. [...] Sempre que eu escolher
pensar no Ser Primeiro e Supremo, vindo esta idéia do tesouro da
minha mente, será necessário que eu atribua toda a perfeição a ele. [...]
Religião e filosofia da ciência I 81

Tal necessidade claramente assegura que, quando subseqüentemente


eu considere essa existência como perfeição, estarei correto ao concluir
que o Ser Primeiro e Supremo existe.

Não é fácil entender o arrazoado de Descartes. Importa, no en-


tanto, observar que Descartes constrói seu argumento em favor da
existência de Deus sem nenhuma referência a estes dois pontos:

(1) a experiência dos sentidos humanos


(2) verdades derivadas da revelação sobrenatural

Entendemos que a posição resumida por Descartes traz impor-


tantes conseqüências tanto para o estudo da ciência como para o da
religião. Em primeiro lugar, a forte recusa de Descartes de permitir
que a experiência humana ou a percepção sensorial pudessem de-
sempenhar qualquer papel decisivo na formação do conhecimento
humano significava que qualquer apelo à investigação do mundo
(como, por exemplo, por meio da física ou da biologia) não tinha a
mínima importância. Em certo sentido, pode-se dizer que o
racionalismo atrapalhou o desenvolvimento dos métodos empíricos
do conhecimento ao declarar de antemão que tal tipo de conheci-
mento não era genuinamente valioso. Essa maneira de pensar tam-
bém teve seus reflexos no estudo e na prática da religião, uma vez
que a compreensão religiosa tradicional dependente do conheci-
mento de Deus (por meio da revelação) também fora descartada.
Segundo Descartes e Leibniz, a matemática era a ciência que
mais tinha a nos oferecer. Como na geometria, todo o conhecimen-
to podia ser encerrado em axiomas e princípios, uma vez que era
possível construir-se um sistema inteiramente geométrico. Os prin-
cípios básicos não podiam ser derivados da experiência nem da
percepção sensorial, nem mesmo da revelação divina, mas dos pro-
cessos da razão apenas. Descartes ensinava que "diversos conceitos
universais da razão" podiam ser igualmente deduzidos e estabeleci-
dos em termos de certas relações matemáticas e lógicas. Uma vez
estabelecidos, poderiam ser aplicados à percepção sensorial e à expe-
82 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

riência. Convém notar que Descartes negava não a possibilidade, mas


a prioridade dos dados empíricos (isto é, dos dados derivados da
experiência). Tais dados deveriam ser interpretados em termos dos
modelos e idéias gerados pela mente humana, independentemente
da experiência.
O racionalismo tornou-se particularmente importante durante
a época do Iluminismo, período da cultura ocidental dominado pela
aceitação geral da prioridade e da universalidade da razão humana.
Contudo, o crescente sucesso das ciências naturais criou inúmeras
dificuldades para o racionalismo. Antes de examinarmos o empirismo
com mais detalhes, vamos examinar um único exemplo para ilustrar
o que estamos dizendo.
Em sua Dissertatio philosophica de orbitis planetarum (Disserta-
ção filosófica sobre a órbita dos planetas), publicada em 1801, o fi-
lósofo alemão Friedrich Hegel tinha argumentado a partir de seus
pressupostos filosóficos que o número de planetas existentes entre
Marte e Júpiter restringia-se necessariamente a sete e que não havia
planeta algum entre eles. Essa ousada afirmação de competência
astronômica sem o auxílio da razão humana foi rudemente desacre-
ditada, até mesmo enquanto o livro de Hegel estava em processo de
publicação. No dia 1° de janeiro de 1801, no início do novo século,
o astrônomo J. E. Bode (1746-1826) descobria o planetóide Ceres e
demonstrava que sua órbita situava-se entre Marte e Júpiter. O es-
quema idealista de Hegel caía por terra.
O apelo à experiência, conhecido em geral como "empirismo",
surgiu como alternativa ao racionalismo. Pode-se estabelecer as
origens do empirismo no século XVI ou até mesmo antes. Contudo,
sua aceitação e sua credibilidade datam do final do século XVII. Um
dos maiores fomentadores do empirismo foi John Locke (1632-1704),
cujo Essay concerning Human Understanding (Ensaio sobre o enten-
dimento humano), de 1690 combatia a noção de princípios e de
"idéias inatas" tão apreciada por Descartes. Deus não implanta idéi-
as em nossas mentes quando nascemos, mas nos dota das faculda-
des necessárias para adquiri-las. Para Locke, a experiência humana
Religião e filosofia da ciência 83

e as percepções sensoriais são a fonte primeira de conhecimento; a


razão é chamada a refletir sobre essas percepções. Não pode ser
vista como fonte primeira de conhecimento.
Locke criticava os que apelavam à matemática para interpretar
os dados da experiência. Para Locke, "o matemático considera a
verdade e as propriedades do retângulo ou do círculo apenas en-
quanto idéias em sua mente". Segundo Locke, os "princípios gerais"
do racionalismo eram conclusões da ciência, não seu fundamento.
Locke tinha consciência de que sua abordagem empírica carre-
gava implicações religiosas. Afirmava que a idéia de Deus não era
inata. Todo o conhecimento de Deus, incluindo sua existência e sua
natureza, derivava da experiência. A idéia de "Deus" era construída
pela mente humana a partir da experiência:
Se examinarmos a idéia que temos do Ser supremo incompreensível,
veremos que chegamos a ela da mesma maneira; e que as idéias com-
plexas que temos tanto de Deus como dos espíritos separados são feitas
de idéias simples que recebemos da reflexão [...] alcançadas daquilo
que experimentamos em nós mesmos com as idéias de existência e
duração, conhecimento e poder, prazer e felicidade. [...] aumentamos
cada uma dessas idéias por meio da idéia do infinito, e assim, reunin-
do-as, chegamos à complexa idéia de Deus.

A partir do debate entre racionalismo e empirismo, perguntava-


se se certas verdades seriam alcançadas a priori ou a posteriori. O pri-
meiro termo (literalmente, "antes") era típico do racionalismo, para o
qual a verdade surgia da mente humana. O outro termo (literalmen-
te, "depois") queria dizer que a verdade vinha da reflexão na mente
das experiências das faculdades humanas por meio da percepção
sensorial. O mesmo debate surgiu também no âmbito da religião.
Perguntava-se se o conhecimento de Deus seria a priori (gerado na
mente humana ou implantado nela por Deus) ou a posteriori (gerado
pela reflexão sobre a experiência ou sobre a revelação divina).
Outro debate também importante para as relações entre ciência
e religião é o travado entre realismo e idealismo, que examinaremos
a seguir.
84 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Realismo e idealismo

O idealismo não nega que coisas como, por exemplo, os objetos


existam no mundo. Contudo, afirma que só podemos conhecer a
maneira como as coisas aparecem para nós, ou como são experimenta-
das por nós, mas nunca como elas são nelas mesmas. Este tipo de
idealismo é conhecido, às vezes, como "fenomenalismo". Vamos
examiná-lo a seguir. A versão mais conhecida dessa abordagem está
associada ao grande filósofo alemão idealista Immanuel Kant. Ele
ensinava que sempre tratamos com aparências ou representações e
não com as coisas em si mesmas. Kant, assim, traçava uma linha
divisória entre o mundo dos fenômenos e "as coisas em si mesmas".
Essas "coisas" jamais poderiam ser conhecidas diretamente. Os idea-
listas afirmam, então, que só conhecemos a maneira como as coisas
aparecem para nós por meio da atividade ordenadora da mente
humana. Não podemos, portanto, conhecer realidades que por-
ventura sejam independentes da mente.
Esse ponto de vista expressa-se de maneira particularmente
especial por meio do que se chama "fenomenalismo", segundo o
qual não podemos conhecer realidades extramentais diretamente,
mas apenas por meio de suas "aparências" ou "representações".
Embora tal posição não seja comum no campo das ciências natu-
rais, tem sido defendida por um significativo número de estudiosos,
incluindo Ernst Mach (1838-1916). Para Mach, as ciências naturais
preocupam-se com os dados imediatos dos sentidos. Não se inte-
ressam por nada mais além da investigação da "dependência dos
fenômenos entre si". O mundo consiste apenas de nossas sensa-
ções. Com esta idéia Mach mostrou-se extremamente negativo a
respeito da hipótese atômica, uma vez que os átomos não passavam
de construções meramente teóricas totalmente imperceptíveis. Os
átomos não eram "reais", não passavam de noções fictícias, mesmo
se úteis, criadas para ajudar os observadores a entender as relações
entre os vários fenômenos observados.
A partir da filosofia kantiana que parecia orientar as afirmações
de Mach, seria impossível transferir-se do mundo dos fenômenos
Religião e filosofia da ciência 1 85

para o mundo das "coisas em si". Não seria possível ir além do mundo
da experiência. Contudo, Mach admitia o uso de "conceitos auxilia-
res" para ligar as observações entre si, desde que se entendesse que
não tinham existência real e que não fossem considerados entida-
des existentes. Seriam, assim, "produtos do pensamento" que "exis-
tem apenas em nossa imaginação e nosso entendimento".
Para entender a importância dessa afirmação, vamos retornar à
insistência de Mach de que os átomos seriam construções simples-
mente teóricas destinadas a nos ajudar a entender as relações entre
os fenômenos. Com base nessa idéia, Mach argumentava que os
átomos não existiam. Convém relembrar que Mach estava escre-
vendo essas coisas na década de 1870, quando a evidência experi-
mental da hipótese atômica era ainda relativamente incipiente.
Embora tanto Ludwig Boltzmann como Max Planck tivessem afir-
mado que os átomos não eram apenas "ficções úteis", mas entida-
des com independência própria, Mach contrariava seus argumentos
com a sugestão de que os átomos eram "coisas que não podiam ser
vistas nem tocadas". Na verdade, esta era uma das afirmações que
ele sempre fazia quando debatia o assunto. Quando as pessoas fa-
lavam a respeito de "átomos", Mach costumava lhes perguntar se já
haviam visto algum . Essa posição se parece, de certa forma, com a
do filósofo George Berkeley em sua obra Principies (Princípios) 1701,
onde afirmava que a existência dependia da percepção. Esta cadeira
existe nesta sala onde eu também estou — mas será que continuará
a existir depois de eu ter saído da sala e ter deixado de percebê-la?
O que estava em jogo na discussão de Mach é de considerável
importância e tem sido debatido com a utilização de frases técnicas
como "entidades hipotéticas", "termos teóricos" ou "não-obser-
váveis". O que se quer saber, na verdade, é se alguma coisa precisa
ser vista para existir. Mach achava que as ciências naturais estavam
preocupadas apenas em relatar observações experimentadas e que,
portanto, não pretendiam defender a existência de entidades "não-
observáveis" ou meramente "teóricas".
Mais recentemente, o filósofo da ciência Bas van Fraassen adota
posição semelhante. Se por um lado Mach negava a existência real
86 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

e independente de átomos,Van Fraassen admite-a mas acha que os


elétrons não existem. Estabelece, também, uma distinção entre o
cientista realista que busca oferecer descrições literalmente verda-
deiras do mundo e os "empíricos construtivos". Estes argumentam
que a aceitação de uma teoria não envolve compromisso com a ver-
dade dessa teoria, mas com a crença de que ela preserva adequada-
mente o fenômeno com o qual se relaciona:
O empirista não acredita em nada que ultrapasse o fenômeno real,
observável, e não reconhece nenhuma modalidade objetiva na nature-
za. As descrições empíricas da ciência buscam a verdade apenas no
mundo empírico, relacionadas com o real e observável. [...] devem re-
jeitar resolutamente qualquer exigência de explicação das regularida-
des no curso observável da natureza, por meio de verdades sobre re-
alidades além do real e observável. Tal exigência não representa papel
algum na empresa científica.

Quando se fala de "leis da natureza" ou de entidades teóricas


como, por exemplo, os elétrons, começa-se a introduzir no discurso
científico elementos metafísicos desnecessários e injustificados.
Veremos que um dos problemas enfrentados por essa posição é
o constante avanço do conhecimento científico e tecnológico. Mach
negava a existência de átomos porque não os podia ver, mas com o
advento do microscópio eletrônico os átomos puderam ser "vistos".
Van Fraassen afirma que os elétrons, que não podem ser "vistos",
também não são reais. Mas o que acontecerá se a tecnologia se
desenvolver a ponto de vê-los? Diversas entidades podem ser con-
sideradas explicitamente "teóricas" por serem postuladas como meios
para explicar certas observações, embora não possam ser observa-
das. Com o avanço da tecnologia, pelo menos algumas dessas enti-
dades já podem ser observadas. Como Newton-Smith comenta:
Consideremos o seguinte desenvolvimento típico na história da ciên-
cia. Em determinado estágio os genes eram afirmados para explicar
fenômenos observáveis. Naquela época ninguém havia observado ou
detectado a existência de genes. Contudo, com o desenvolvimento de
Religião e filosofia da ciência 1 87

microscópios sofisticados os cientistas começaram a afirmar a possibi-


lidade de ver os genes.

Contra essa posição, examinaremos o "realismo". Como não


existe só um "realismo" mas diversos deles nas comunidades filosó-
ficas e científicas, vamos procurar identificar alguns de seus aspec-
tos. O realismo, segundo W. H. Newton- Smith, afirma que "pelo
menos alguns dos termos teóricos de dada teoria denotam entida-
des teóricas reais, casualmente responsáveis por fenômenos
observáveis que nos induzem a postular sua existência".
Examinaremos três maneiras de expressar a crença realista cen-
tral, cada qual diferindo no modo como define o realismo.

(1) As entidades existem no mundo independentemente da


mente humana (contra o ponto de vista de Berkeley de que
tal existência depende da percepção).
(2) As únicas entidades que realmente existem são
"extramentais", isto é, as que possuem existência real e in-
dependente.
(3) Existem entidades tanto mentais como não-mentais.

Cada uma dessas posturas representa uma diferente tese rea-


lista, embora diferentes compromissos e maneiras de formulação
unam essas formulações: as entidades existem no mundo inde-
pendentemente da percepção humana ou de qualquer processo
mental humano.
Essa maneira de pensar é típica das ciências naturais. As entida-
des "teóricas" ou "não-observáveis" são consideradas genuinamen-
te existentes apesar das dificuldades para representá-las ou detectá-
las. Não podem ser consideradas não-existentes pelo simples fato
de escaparem à observação. Há excelentes razões para se supor que
elétrons, quarks e nêutrons existam mesmo não podendo ser obser-
vados nem "percebidos" diretamente. John Polkinghorne entende
que essas dificuldades não devem ser motivo para se afirmar que
alguma coisa não exista:
88 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Temos capacidade para entender o mundo físico capaz de nos conven-


cer de sua realidade mesmo quando, no escorregadio domínio da teoria
quântica, essa realidade não seja retratável. Esse fato aproxima a física
da teologia, que, como ela, busca a compreensão do irrepresentável.

A pesquisa em busca do "quark top", que alcançou seu clímax


no Laboratório Nacional do Acelerador Fermi (Fermilab, Illinois,
EUA) em março de 1995, ilustra bem o que estamos dizendo. A
existência dessa partícula tinha sido inferida das descobertas de 1977
do "quark bottom", com massa de 4.5 GeV. Embora não sujeito à
observação, concordava-se, em geral, que ele existia. Faltava apenas
detectar sua existência por meio da criação de condições experi-
mentais apropriadas. Nesse evento, a massa do quark que estava
faltando acabou por se mostrar muito maior do que se esperava
(175 GeV), necessitando da concentração de uma imensa quantida-
de de energia para produzi-la por meio de colisão. Entretanto, o
quark top nunca foi "visto" nem "observado". Percebeu-se apenas
uma série de eventos, alguns deles interpretados (com boas razões)
como a criação de um par top–antitop (superior–anti-superior), ca-
paz de permitir o cálculo da massa do quark top. Não obstante, a
existência do quark top é amplamente aceita apesar da falta de ob-
servação direta — e de não haver nenhuma expectativa de que po-
derá um dia ser "visto".
O "realismo crítico" é forma de realismo particularmente impor-
tante para o tema das relações entre ciência e religião. O que muitas
vezes se chama de "realismo ingênuo" entende que existe relação
direta entre o mundo exterior e a percepção humana, de tal maneira
que a "realidade" sempre vem a ser percebida diretamente. O realis-
mo crítico afirma que essa percepção, embora real, é indireta e
mediada por modelos e analogias. Por exemplo, nunca saberemos
exatamente que aparência têm os elétrons nem esperamos vê-los
um dia, mas nada disso nos impede de crer que eles realmente exis-
tam nem de desenvolver modelos de elétrons para nos ajudar a
entender como eles se comportam.
Religião e filosofia da ciência 1 89

A relevância desse debate para a religião é óbvia. Uma das mais


cruciantes questões no âmbito da filosofia da religião é se Deus foi
construído pela mente humana ou se existe independentemente dela.
Em muitas áreas do pensamento religioso cresce o interesse pelo
"realismo crítico", que pode ser resumido nestas duas proposições:

(1) Deus existe independentemente do pensamento humano.


(2) Os seres humanos são obrigados a usar modelos ou analo-
gias para representar Deus, que não pode ser conhecido
diretamente.

Por causa disso, o uso de modelos e analogias tanto na ciência


como na religião despertam grande interesse hoje em dia , coisa que
nos levou a dedicar um capítulo inteiro ao tema (ver pp. 181-217).
Vamos examinar agora um tema específico surgido no âmbito
da filosofia da ciência que acabou sendo amplamente discutido na
filosofia em geral. Trata-se do que costuma ser chamado de "tese de
Duhem- Quine".

Tese de Duhem-Quine

Como sabemos que determinada teoria está errada? A resposta


mais simples oferecida pelos cientistas seria testá-la por meio de
experiências. É possível imaginar uma "experiência decisiva" para
aprovar ou reprovar qualquer teoria. A experiência, desde que ade-
quadamente conduzida, pode estabelecer se a teoria está certa ou
errada.
Poderá mesmo? Vamos examinar a seguir as críticas à idéia de
"experiência decisiva" feitas pelo físico e filósofo francês Pierre Duhem
(1861-1916). Duhem acredita que as teorias consistem em uma rede
complexa de hipóteses decisivas e auxiliares. Assim, se qualquer
elemento predicado pela teoria não corresponder à experiência, de
quem será a falta? Qual das afirmações estará errada? Será a hipó-
tese decisiva? Se for assim, a teoria deveria ser abandonada. Ou
90 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

quem sabe o erro estará numa das afirmações auxiliares? Se for esse
o caso, a teoria precisaria ser modificada.
Segundo Duhem, o físico não está na posição de submeter hi-
póteses isoladas a testes experimentais. "Uma experiência na física
jamais é usada para condenar hipóteses isoladas mas somente gru-
pos teóricos." A razão disso é que cada experiência particular rejei-
tada indica apenas que uma entre muitas outras hipóteses precisa
ser revisada. A experiência em si não é suficiente para indicar qual
das hipóteses exige modificação. Mesmo quando conseqüências
estritamente dedutivas de determinada teoria mostram-se falsas
(pressupondo-se, naturalmente, que "experiências decisivas" podem
ser contempladas para permitir conclusões inequívocas), não se pode
dizer que o erro tenha resultado de certos elementos específicos da
teoria ou das suposições auxiliares.
Mas será possível imaginar tal "experiência decisiva"? Os argu-
mentos de Duhem precisam ser examinados mais atentamente. Na
seção de seu livro Aim and Structure of Physical Theory (Objetivo e
estrutura da teoria física) intitulada "Uma 'experiência decisiva' é
impossível em física", Duhem argumenta que não temos acesso à
lista completa das hipóteses que estão por trás de nosso pensamen-
to. À primeira vista, poderia parecer possível enumerar todas as hi-
póteses relacionadas com determinado fenômeno para, em seguida,
eliminá-las por meio de contradições experimentais. Entretanto,
segundo o mesmo Duhem, os físicos nunca poderão ter certeza se
todas as hipóteses estão sendo identificadas e checadas.
Em seu ensaio seminal "Dois dogmas do empirismo", Willard
Van Orman Quine, professor de Harvard, desenvolveu os argumen-
tos de Duhem, e o resultado de seu estudo veio a ser conhecido
como "tese Duhem-Quine". A tese afirma que se dados e teorias
incompatíveis mostram-se em conflito não se pode concluir que de-
terminada afirmação teórica seja a responsável por isso e que, por-
tanto, deva ser rejeitada. Quine desenvolve esta idéia observando o
modo complexo como se relacionam sistemas de crenças ou visões
de mundo com a experiência e com a experimentação:
Religião e filosofia da ciência I 91

A totalidade de nosso assim chamado conhecimento, ou crenças, des-


de as mais rudimentares questões de geografia e história até as mais
profundas leis da física atômica [...] não passa de construção humana
a partir apenas dos limites da experiência [...] Qualquer conflito com
a experiência na periferia de qualquer campo provoca ajustamentos no
interior desse mesmo campo. [...] Mas o campo total é tão indeter-
minado por seus limites que são inúmeras as possibilidades de escolha
a respeito de quais declarações podem ser reavaliadas à luz de experiên-
cias contrárias.

Em outras palavras, muitas vezes a experiência produz impacto


relativamente pequeno sobre nossas visões de mundo. Quando a
experiência ou os experimentos parecem contradizer o sistema de
crenças ou nossas cosmovisões, é mais provável que aconteçam certos
reajustes no sistema do que a sua rejeição. Quine assim mostra al-
gumas dificuldades existentes para a refutação de qualquer teoria a
partir de experiências que sempre dependam de métodos empíricos.
Convém observar que Duhem sempre deixou claro que suas preo-
cupações relacionavam-se especificamente com as ciências naturais,
particularmente com a física. Quine estendeu o método de Duhem
muito além de sua aplicação original. Duhem limitava suas observa-
ções ao campo da física. Quine estendeu suas descobertas a questões
que envolviam o relacionamento entre teoria e experiência.
As análises de Quine são responsáveis pelo que se chama de
"tese da indeterminação". Trata-se de um ponto de vista particular-
mente associado com a aplicação de perspectivas sociológicas às
ciências naturais. Segundo essa tese, existiriam, em princípio, inú-
meras teorias que poderiam ser aplicadas mais ou menos adequa-
damente a fatos observados. A escolha de determinada teoria pode-
ria, assim, ser explicada com base em fatores sociológicos como, por
exemplo, nossos interesses. Segundo esse ponto de vista, a evidên-
cia experimental representa papel consideravelmente menor do que
se poderia imaginar na geração e para a confirmação de teorias. A
forma mais convincente desse modelo (em geral conhecido por
"indeterminação máxima") teria a seguinte forma:
92 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Para cada formulação S e para cada teoria aceitável T essencialmente


contendo S corresponde uma teoria aceitável T' com as mesmas con-
seqüências testáveis mas contendo, essencialmente, a negação de S.

Devemos considerar agora duas implicações da indeterminação:


(1) Existem diversas teorias possíveis consistentes com certos
resultados experimentais. Todas são consideradas igualmente
válidas.
(2) As teorias não podem ser explicadas puramente com base
na evidência experimental. É necessário levar em conside-
ração fatores adicionais, em geral de natureza sociológica.

Veremos que a tese da indeterminação tem atraído a atenção


dos sociólogos do conhecimento, desejosos de acentuar a importân-
cia dos condicionamentos sociais na teoria científica.
Entretanto, precisamos reconhecer que a indeterminação é ain-
da uma noção controvertida. O próprio Duhem tem consciência de
que os físicos sabem muito bem quais teorias são operacionais e
quais não são. Ele utiliza a idéia de "bom senso", que seria uma
espécie de percepção intuitiva, baseada na experiência de uma cul-
tura científica baseada no laboratório, para determinar como se cons-
tituem as teorias viáveis.
Qual seria a relevância religiosa da tese de Duhem-Quine? Tal-
vez para o que concerne ao sofrimento humano, tradicionalmente
um dos aspectos mais difíceis em relação à fé em Deus. As pessoas
perguntam, em geral, de que maneira a fé em Deus pode ser
justificada em face do sofrimento. Se Deus é realmente bom e amo-
roso, como é possível entender a existência do sofrimento? Parece
que neste caso existe radical contradição entre teoria religiosa e
experiência. Quais serão as implicações desta aparente contradição?
Será que a existência do sofrimento no mundo nos levaria a aban-
donar a fé em Deus? Ou quem sabe nos obrigaria a modificar certos
aspectos dessa fé? Quem sabe não se trataria apenas de mera supo-
sição auxiliar que, em última análise, nem faria parte da fé cristã?
Religião e filosofia da ciência 1 93

Vamos examinar essas questões religiosas em linguagem mais


aproximada das ciências naturais para entender a importância da
tese de Duhem-Quine. Procuremos estabelecer os elementos bási-
cos de uma teoria teísta composta por diversas hipóteses, das quais
destacamos duas:

Teoria: Deus existe.

Hipóteses principais

(1) Deus é bom e amoroso.


(2) Deus é todo-poderoso.

Hipóteses auxiliares

(1) O Deus todo-poderoso pode fazer qualquer coisa (com ex-


ceção, logicamente, de coisas inconsistentes como, por
exemplo, um quadrado triangular).
(2) Temos a possibilidade de conhecer suficientemente a res-
peito de Deus para fazer declarações a seu respeito.

Introduzamos agora a observação paralela aos resultados de uma


experiência — por exemplo, a observação de Michelson-Morley de
que não é possível discernir correntezas de éter.
Observação: existe sofrimento no mundo.
A questão crítica é se essa observação pode nos levar a abando-
nar a teoria como um todo ou apenas uma ou mais de suas hipóte-
ses, ou talvez as hipóteses auxiliares (que talvez nem sejam especi-
ficamente Cristãs em sua natureza). Duhem e Quine afirmam que
não é teoricamente possível identificar onde reside a tensão entre
teoria e experiência.
Vê-se bem que se trata de questão bastante importante, especial-
mente em face dos argumentos simplistas em geral utilizados em
seu favor. Muitas pessoas acham que a mera existência de sofrimen-
to no mundo é causa suficiente para se abandonar a fé em Deus.
94 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Duhem e Quine nos mostram que não é esse o caso. O que está em
jogo é consideravelmente mais complexo, como demonstram as
atuais discussões no âmbito da filosofia da religião.

Positivismo lógico: Círculo de Viena

Em Viena, capital da Áustria, surgiu no século XX um dos mais


importantes movimentos intelectuais de que se tem notícia. Um grupo
de filósofos, físicos, matemáticos, sociólogos e economistas reunia-se
ao redor de Moritz Schlick entre 1924 e 1936. Esse grupo de pensado-
res veio a ser conhecido como o "Círculo deViena". O grupo se disper-
sou quando Schlick foi assassinado por um estudante, com um tiro, em
1936. O surgimento do nacional-socialismo na Áustria, antes da Se-
gunda Guerra Mundial, também contribuiu para a sua extinção. Como
resultado disso, as idéias do "Círculo deViena" propagaram-se princi-
palmente nos Estados Unidos. Que idéias eram essas?
Convém observar que havia entre eles grande divergência de
posições e que algumas de suas idéias foram mudando à medida
que o tempo passava. É por isso que qualquer generalização a res-
peito dos temas tratados por eles será sempre perigosa. Contudo,
em termos bastante gerais, pode-se dizer que o tema fundamental
do grupo era de que as crenças deveriam ser justificadas a partir da expe-
riência. Essa posição parece estar baseada nos escritos de David
Hume, de tendência claramente empírica. Por essa razão, os mem-
bros do grupo tinham em alta estima os métodos e normas das ciên-
cias naturais (vistas por eles como as mais empíricas das disciplinas
humanas) e, em contraposição, menosprezavam a metafísica (vista
como tentativa de abandono da experiência). Essa posição do Cír-
culo de Viena muito contribuiu para a difusão de conotações forte-
mente negativas contra a "metafísica".
Segundo os pensadores do Círculo de Viena, as afirmações di-
vorciadas do mundo real não tinham valor e serviam apenas para
perpetuar conflitos estéreis do passado. Os termos utilizados em
afirmações e proposições deveriam estar diretamente relacionados
Religião e filosofia da ciência 195

com a experiência. Nossas proposições, ser capazes de se relacionar


diretamente com o mundo real da experiência.
O Círculo de Viena desenvolveu essa perspectiva seguindo as tri-
lhas da lógica simbólica que começara a aparecer no final do século
XIX e fora usada com bons resultados por Bertrand Russell no come-
ço do século XX. O uso adequado da lógica tem a capacidade de es-
clarecer a maneira como termos e sentenças relacionam-se entre si.
Como o próprio Schlick acreditava, o uso rigoroso dos princípios da
lógica conseguiam prevenir o aparecimento de lapsos absurdos no
rigor filosófico. Ele mesmo nos deixou os seguintes exemplos ele-
mentares de tais lapsos que poderiam ser superados pelo rigor lógico:

(1) O meu amigo morreu depois de amanhã.


(2) A torre tem ao mesmo tempo 100 e 150 metros de altura.

O programa geral proposto pode ser estudado em duas partes:

(1) Todas as afirmações significativas podem ser reduzidas a


declarações que contenham apenas termos relacionados
com a observação, ou que se definam explicitamente por
eles.
(2) Deve ser possível declarar todas essas afirmações redutivas
em termos lógicos.

A tentativa mais importante de desenvolvimento desse progra-


ma encontra-se na obra de Rudolph Carnap, especialmente em The
Logical Construction of the World (A construção lógica do mundo),
livro publicado em 1928. Nessa obra, Carnap demonstra de que
maneira o mundo pode derivar da experiência por meio da constru-
ção lógica. Trata-se, como ele mesmo diz, da tentativa de "reduzir a
`realidade' ao 'dado — por meio dos métodos da lógica no emprego
de afirmações derivadas da experiência. As duas únicas fontes do
conhecimento seriam, assim, a percepção sensorial e os princípios
analíticos da lógica. As afirmações procedem da referência à per-
cepção sensorial e são justificadas por ela, e se relacionam entre si
e com os termos que as constituem por meio da lógica.
96 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Previa-se, desde o começo, que as afirmações matemáticas e


lógicas criariam problemas para o Círculo deViena. De que maneira,
por exemplo, a afirmação "2 + 2 = 4" poderia se relacionar com a
experiência? Alguns retrucariam que tal afirmação seria sem senti-
do; outros (talvez a maioria) optariam por chamar esse exemplo de
"afirmação analítica", cuja verdade seria estabelecida por meio de defi-
nição ou de convenção, de tal maneira que sua validade dispensaria
qualquer evidência empírica. A seguir, limitaremos nossos comen-
tários a afirmações não-analíticas para evitar esse tipo de dificulda-
de nas generalizações.
Segundo os pensadores do Círculo de Viena, qualquer afirma-
ção será sem sentido a não ser que possa ser relacionada direta-
mente com fenômenos observáveis. As que não possam ser reduzi-
das dessa maneira poderão conter sentido gramatical, mas não te-
rão sentido em relação com a realidade porque nada expressam.
Qualquer afirmação pode dar a impressão de dizer alguma coisa,
mas o exame mais atento mostrará se expressa ou não apenas "con-
fusão verbal" (Otto Neurath). O próprio Carnap ilustrou este caso
inventando a palavra "teavy" e se dedicando a esta engraçada aná-
lise filosófica:
Suponhamos, com a finalidade de formular uma ilustração, que al-
guém tenha inventado a palavra nova "teavy" e afirme que existem
coisas teavy e outras que não são teavy. [...] De que maneira alguém
poderia discernir num caso concreto se determinada coisa é teavy ou
não? Suponhamos que o autor dessa palavra não nos dê uma resposta
convincente: não existe sinal empírico algum da existência da teavidade
[teaviness], diz ele. Nesse caso, negaríamos-lhe o direito de usar essa
palavra. Mas se a pessoa que emprega essa palavra disser que assim
mesmo há coisas teavy e outras que não são teavy e que o problema
está em nosso intelecto finito e frágil em face de segredos eternos por
meio dos quais saberíamos quais coisas seriam teavy e quais não o
seriam, consideraríamos tais afirmações puro palavreado vazio.

Em outras palavras, diríamos que não existe coisa alguma que


possa nos levar a experimentar aquilo que determina o significado
da palavra teavy.
Religião e filosofia da ciência I 97

Carnap estava estabelecendo o que se conhece geralmente pelo


nome de "princípio da verificação". Em sua forma comumente acei-
ta, esse princípio afirma que apenas as afirmações passíveis de ve-
rificação teriam sentido. Com isso, as ciências naturais assumem
posição de prioridade em termos de teoria do conhecimento. A fi-
losofia passa a ser relegada a apenas instrumento de esclarecimento
do que vai sendo estabelecido pela análise empírica. A filosofia,
segundo Carnap, "consiste na análise lógica das afirmações e dos
conceitos da ciência empírica".
Esses pontos de vista foram popularizados no mundo de língua
inglesa com a publicação, em 1936, do livro Language, Truth and Logic
(Linguagem, verdade e lógica) de A. J. Ayer. Embora a Segunda Guer-
ra Mundial tenha interferido com o processo da recepção e avalia-
ção dessa obra, ela foi considerada a agenda filosófica das duas
décadas posteriores à guerra. A aplicação decidida e radical do prin-
cípio da verificação considerou "sem sentido" virtualmente tudo o
que se enquadrasse na metafísica ou na religião.
O positivismo lógico é uma corrente filosófica decorrente dos
métodos das ciências naturais, muito importante para o nosso estu-
do. Vale a pena, pois, considerar as conseqüências desse tipo de
pensamento para a religião. Como se pode deduzir do que já vimos
até aqui, o positivismo lógico não se ocupa muito com religião por-
que lhe parece coisa sem sentido, uma vez que escapa do escrutínio
da verificação empírica. Carnap afirmou que as afirmações religio-
sas são não-científicas:
A teologia sistemática afirma ser portadora de conhecimento a respei-
to de seres supostamente pertencentes à ordem sobrenatural. Uma
declaração desse tipo precisa ser examinada segundo os padrões rigo-
rosos aplicados em geral a qualquer outro tipo de conhecimento. Ora,
em minha ponderada opinião, tal exame mostra claramente que a teo-
logia tradicional é mero remanescente dos tempos antigos, completa-
mente alheia à maneira de pensar do nosso século.

As sentenças que empregam palavras como "Deus", o "trans-


cendente" ou o "absoluto" não têm sentido algum, pois não existe
98 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

nada na experiência capaz de verificá-las. Ayer concedia que as afir-


mações religiosas poderiam fornecer alguma informação indireta
sobre o estado mental das pessoas envolvidas nelas, mas não pode-
riam conter nenhuma significação a respeito do mundo externo.
O tema da "verificação escatológica" gozou de certo grau de popu-
laridade entre 1955 e 1965 e foi considerado uma espécie de respos-
ta aos temas levantados pela exigência de verificação como condi-
ção de sentido. (O termo "escatológica" deriva da frase grega ta
eschata, "as últimas coisas".) Essa idéia aparece na contribuição de I.
M. Crombie ao debate realizado no Clube Socrático da Universida-
de de Oxford sobre as indagações provocadas pelo problema do
sofrimento. Crombie argumentava que a experiência fundante das
afirmações religiosas simplesmente não eram acessíveis no presente
mas que estariam disponíveis depois da morte.
Uma vez que nossa experiência é limitada pelo jeito como ela é, não
estamos em posição de decidir a respeito [...] Para os cristãos, a possi-
bilidade de tomar essa decisão encontra-se na morte; e, embora todos
nós possamos passar por isso, nenhum de nós pode retomar para re-
latar o que teria descoberto.

Essa maneira de argumentar foi mais plenamente desenvolvida


por John Hick, ao criar a analogia de duas pessoas que viajam pelo
mesmo caminho e têm as mesmas experiências. Uma acredita que
o caminho vai levá-la à Cidade Celestial; a outra não acredita nisso.
Durante a caminhada a questão não é a experiência. Essas duas pes-
soas têm expectativas diferentes não a respeito da estrada mas apenas
em relação ao destino último da jornada. Mas quando chegarem no
final da viagem uma delas se dará conta de que esteve certa todo o
tempo e a outra não. Embora as expectativas delas nada tenham de
experimental, estiveram com elas, não obstante, desde o começo e eram
questões reais. Não só se sentiram diferentes no caminho, pois uma
delas achava que o caminho servia para chegar ao final esperado e a
outra não. Suas interpretações opostas da caminhada contituíram-se
em afirmações rivais, embora tivessem o status de asserções que só
poderiam ser verificadas retrospetivamente num acontecimento futuro.
Religião e filosofia da ciência 1 99

Esse tema perdeu importância em face de severas limitações mais


tarde apresentadas contra o princípio da verificação do positivismo
lógico. Para ilustrar algumas dessas dificuldades, consideremos a
seguinte afirmação: "Havia seis gansos na frente do gramado do
Palácio de Buckingham às 5h15min da tarde no dia 18 de junho de
1865". Trata-se de uma afirmação plena de sentido mas impossível
de ser verificada. Não temos condições de confirmá-la. Existem di-
ficuldades semelhantes em relação a outros acontecimentos do pas-
sado. Para pensadores como Ayer, declarações desse tipo não são
verdadeiras nem falsas, uma vez que não se relacionam com o mundo
externo. Por outro lado contrariaria nossas intuições básicas afirmar
que tais declarações nada significam.
O que dizer, além disso, a respeito de entidades teóricas não-
observáveis, como as partículas subatômicas? Como já vimos, elas
não podem ser estritamente "observadas". As dificuldades levanta-
das levaram muitos defensores do positivismo lógico a rever algu-
mas de suas posições a respeito. Assim, num ensaio publicado em
1938, intitulado Procedures of Empirical Science (Procedimentos da
ciência empírica), V. F. Lenzen afirmava que a existência de certas
entidades tinha de ser inferida a partir da observação experimental.
Por exemplo, o comportamento de gotículas de óleo num determina-
do campo elétrico nos faz inferir a existência de elétrons negativa-
mente carregados de partículas contendo certa massa. Esses elétrons
não podem ser vistos (e, portanto, não são "verificáveis"), mas sua
existência pode ser razoavelmente inferida a partir da evidência dei-
xada pela observação. Tal fato representa importante diluição do prin-
cípio original da verificação. O fator mais importante é que essa dilui-
ção se deve, em parte, aos desenvolvimentos teóricos no âmbito das
ciências naturais, tão altamente estimadas pelo positivismo lógico.
Assim, os processos de verificação enfrentam sérios limites.
Será pois instrutivo observar outra posição, rival desta, desenvol-
vida em resposta a algumas das dificuldades percebidas. Esse pro-
cesso rival chama-se em geral de "falsificacionismo". É o que va-
mos examinar agora.
100 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Falsificação: Karl Popper

Karl Popper percebeu que o princípio da verificação relacionado


com o Círculo de Viena era demasiadamente rígido, a ponto de ex-
cluir inúmeras afirmações científicas.
Minha crítica ao critério da verificação sempre tem sido esta: contra a
intenção de seus defensores, não conseguiu excluir declarações obvia-
mente metafísicas; mas excluiu a mais importante e valiosa de todas as
afirmações científicas, isto é, as teorias científicas relacionadas com as
leis universais da natureza.

Além disso, estava convencido de que a ênfase na verificação


também estava equivocada por outra razão. Permitia, afinal de con-
tas, que diversas "pseudociências", como o freudianismo e o mar-
xismo, passassem por verdadeiras "ciências", quando, na verdade,
nada tinham de científico.
Embora as preocupações originais de Popper parecessem que-
rer eliminar a metafísica das afirmações "significativas", sua atenção
concentrou-se na crítica às "pseudociências". Para Popper, os
pseudocientistas, como, por exemplo, os marxistas e os freudistas,
eram capazes de interpretar virtualmente qualquer coisa em favor
de suas teorias:
O que me parecia chocante nessas teorias e, portanto, perigoso era a
reivindicação de que podiam ser "verificadas" ou "confirmadas" pela
incessante correnteza da evidência observacional. E, na verdade, desde
que se abrissem os olhos seria possível verificar suas afirmações em
toda a parte. Quando os marxistas abriam os jornais achavam evidên-
cias da luta de classes em todas as páginas [...] O psicanalista, fosse
freudiano ou adleriano, afirmaria com segurança que suas teorias eram
constantemente verificadas por meio das observações que fazia em sua
clínica [.1 Era precisamente esse fato — de que sempre suas teorias
eram "verificadas" — que mais impressionava seus seguidores. Comecei
a me dar conta de que essa aparente segurança era uma fraqueza e de
que todas as alegadas "verificações" eram demasiadamente fracas para
servir de argumento.
Religião e filosofia da ciência 1 101

Na segunda década do século )0C, Popper relembrava a leitura que


fizera de uma descrição popular da teoria da relatividade de Einstein.
O que mais lhe impressionara fora a afirmação precisa de Einstein a
respeito do que seria requerido para demonstrar que sua teoria estava
errada. Einstein declarava que "se a mudança para o vermelho nas
linhas do espectro não fosse possível por causa do potencial gravitacional
a teoria geral da relatividade não poderia se manter".
Para Popper, essa atitude era bem diferente da dos marxistas e
freudianos, que buscavam apenas evidências para confirmar suas
teorias. Einstein buscava algo que pudesse falsear a sua teoria! Se tal
evidência fosse encontrada, ele abandonaria essa teoria.
Na prática, era uma espécie de exagero. O que aconteceria se a
mudança para o vermelho tivesse sido tão pequena a ponto de não
poder ser observada pela teconologia existente? Ou se tivesse sido
obscurecida por interferências fora de nosso alcance provocadas por
outros efeitos? No caso da luz emitida pelo sol, a relatividade geral
previa que deveria haver uma mudança gravitacional para o verme-
lho por causa da redução da velocidade da luz numa proporção bem
pequena — 2,12 partes em um milhão. Nenhuma mudança para o
vermelho foi, de fato, observada na época — fato que muito pesou
nas deliberações das comissões encarregadas do Prêmio Nobel em
1917 e 1919. Contudo, sabe-se agora que as técnicas existentes nos
anos 1920 não estavam suficientemente desenvolvidas para permi-
tir que o efeito esperado fosse observado; a confirmação desse fato
só veio acontecer na década de 1960. Pelos critérios estabelecidos
pelo próprio Einstein, sua teoria não teria sido confirmada.
Contudo, Popper sentia que o princípio envolvido era impor-
tante. As teorias precisavam ser testadas contra a experiência. Por
causa disso poderiam ser verificadas ou falseadas.
Admito, certamente, que qualquer sistema será empírico ou científico
se for capaz de ser testado pela experiência. Minhas considerações
sugerem que o critério da demarcação dever ser a falseabilidade e não
a verificabilidade [...] Deve ser possível refutar qualquer sistema cien-
tífico empírico pela experiência.
102 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Tendo em vista o que estamos estudando, entendemos que


Popper aceitou alguns dos mais importantes temas do positivismo
lógico, especialmente o papel da experiência no mundo real. Qual-
quer sistema teórico deveria ser capaz de se deixar testar pela obser-
vação do mundo. Mas, se, por um lado, o positivismo lógico acen-
tuava a necessidade de estabelecer as condições sob as quais as afir-
mações teóricas deveriam ser verificadas, Popper, por outro, achava
que a ênfase deveria recair no estabelecimento de condições para
falsear o sistema.
Popper, assim, ressaltou a importância de experiências que pu-
dessem falsear qualquer teoria. Contudo, como já vimos, Duhem
havia argumentado que, naturalmente, era impossível imaginar "ex-
periências decisivas" porque sempre carregariam em si alto grau de
incerteza em face de teorias que deveriam ser abandonadas em sua
totalidade, a partir de certas experiências, ou se as dificuldades
porventura residiriam em alguma das hipóteses ou mesmo em hi-
póteses auxiliares. Nesse último caso, a teoria não seria fundamen-
talmente afetada. Parece que Popper teria ignorado a natureza for-
temente teórica da observação experimental, coisa que teria enfra-
quecido consideravelmente sua crítica em grau muito maior do que
ele esperara.
As idéias de Popper influenciaram consideravelmente a filosofia
da religião entre 1950 e 1960, principalmente por causa do debate a
respeito da "falsificação". Em seu estudo "Teologia e falsificação",
Anthony Flew argumentava que as afirmações religiosas não podiam
conter sentido uma vez que não podiam se submeter a experiências
capazes de falseá-las. De fato, Flew seguia as críticas de Popper ao
marxismo e ao freudianismo, por serem capazes de interpretar a
evidência observável ou experimentável segundo os interesses e
conveniências do intérprete.
Flew mostrou suas preocupações por meio do que chamou de
parábola. Dois exploradores encontram uma clareira na floresta. Um
deles manifesta a crença de que existe um jardineiro invisível que
cuida das plantas na clareira. O outro não acredita nisso e sugere
que procurem confirmar se ele existe ou não por meio de diversos
Religião e filosofia da ciência 1 103

testes sensoriais — como, por exemplo, vigiar para ver se o jardinei-


ro vai aparecer, utilizar um cão que possa farejá-lo ou levantar cer-
cas eletrificadas para detectar sua presença. Mas nenhum desses
testes detecta a existência do jardineiro. O amigo cético acha que
ficou demonstrado que o jardineiro não existe. O outro, porém, ar-
gumenta por meio de qualificações. "Existe um jardineiro", diz ele,
"que não tem cheiro e não faz barulho". No fim, Flew argumentou
que a idéia do jardineiro enfrentava a "morte de milhares de quali-
ficações". O jardineiro não pode ser visto nem ouvido, não tem cheiro
e não pode ser tocado. Assim, bem que se poderia perdoar o explo-
rador que concluiu não haver jardineiro algum. Esta, certamente,
seria a conclusão de Flew. Para ele as afirmações religiosas não po-
dem ser formuladas para ser falseadas.
Entretanto, a exigência da falsificação — como a antiga exigên-
cia da verificação — mostra-se muito mais complexa do que se
poderia inicialmente imaginar. Por exemplo, a absoluta exigência de
Flew não pode ser realizada pelas ciências naturais, que introduzem
precisamente modificações e "qualificações" rejeitadas por Flew no
processo do desenvolvimento das teorias. Dados anômalos são ge-
ralmente acomodados nas teorias por meio de processos sutis e
complexos de ajustamento, modificação e qualificação. A exigência
absoluta de alguma coisa que incontestavelmente possa falsear
qualquer teoria — em geral formulada em termos de "experiência
decisiva" — não é realista no âmbito das ciências naturais, por causa
dos casos explorados por Duhem, já examinados (p. 89-94).
A preocupação particular de Popper era livrar a ciência da
metafísica. Ele achava que havia descoberto a maneira de acabar
com as afirmações metafísicas exigindo que elas se submetessem ao
teste da falseabilidade. Contudo, o esforço de Popper para estabele-
cer critérios inteligentes de falsificação acabou sendo mais difícil do
que imaginara. Excelente exemplo disso nos vem do que se chama
"paradoxo da emenda". Definamos T como uma teoria falseável —
por exemplo, "todos os cisnes são brancos". Como T é falseável,
deve haver uma afirmação derivada da observação que vamos cha-
mar de O. Com base no exemplo dado, tal afirmação poderia tomar
104 ¡ Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

a forma seguinte: "todos os cisnes observados são brancos". Se achar-


mos que essa observação não corresponde à maneira como as coi-
sas realmente são, então poderemos concluir que T é falsa.
Até aqui tudo bem. Mas o "paradoxo da emenda" faz com que
esse esquema rudimentar se torne complicado. Dizendo isso de
forma mais simples, o paradoxo envolverá a "emenda" ou "acrésci-
mo" de uma afirmação adicional metafísica que vamos chamar de M
— por exemplo, "Zeus está com fome" ou "O Absoluto é azul". Ago-
ra a teoria T' fica assim:
T'= T & M
Em outras palavras, a nova teoria será o amálgama da original e
trará consigo nova formulação metafísica. Uma vez que T seja
falseável, segue-se que T' também será falseável e que o apareci-
mento de um cisne negro tornaria a teoria falsa. O fato de que uma
afirmação metafísica totalmente arbitrária (pressupondo falta de
verificação e de falsificação) tenha sido acrescentada à teoria não faz
a mínima diferença neste ponto.
Vamos tentar explicar este processo com mais clareza. Supo-
nhamos a existência de uma teoria consistente de duas partes:

(1) Todos os cisnes são brancos.


(2) O Absoluto é azul.

Se alguém observar um cisne negro, a teoria que consiste dessas


duas partes estará incorreta porque uma de suas partes também
estará incorreta. O "paradoxo da emenda" refere-se ao fato
desconcertante de que se pode anexar a qualquer teoria falseável
hipóteses metafísicas arbitrárias — coisa que enfraquece seriamen-
te o apelo do método de Popper.
Então, como se desenvolvem as teorias científicas? Na seção
seguinte vamos examinar a contribuição de Thomas S. Kuhn conhe-
cida muitas vezes como "mudanças de paradigma".
Religião e filosofia da ciência 1 105

Mudanças de paradigma: Thomas S. Kuhn

Um dos estudos mais difundidos sobre o desenvolvimento do


método científico parte da idéia de "revoluções científicas". Em sua
obra Estrutura das revoluções científicas (Structure of Scientific Revo-
lutions), Thomas S. Kuhn mostra que o ponto de vista prevalecente
sobre a natureza do progresso científico relaciona-se com as novas
teorias surgidas gradualmente dos processos de verificação e falsi-
ficação. A transição de determinado paradigma para outro não é
gradual, tomando a forma de transição rápida seguida de grandes
mudanças de compreensão. Kuhn, no entanto, fica do lado do mo-
delo do "progresso gradual", já encontrado na obra Logic of Scientific
Discovery (Lógica da pesquisa científica), de Karl Popper.
O emprego do termo "paradigma" por Kuhn é confuso e tem
gerado inúmeros mal-entendidos. De modo geral, ele dá a esse ter-
mo dois sentidos:

(1) A palavra é usada em sentido geral para se referir ao gran-


de número de pressupostos comuns defendidos por certos
cientistas. Trata-se de um aglomerado de generalizações,
métodos e modelos.
(2) O termo é também usado em sentido mais específico e
restrito para se referir a sucessos científicos explanatórios
que ofereceram estruturas capazes de ser tratadas como
normativas, consideradas exemplares desde então — até o
aparecimento de algo novo que leve os cientistas a aban-
donar esse paradigma.

Para nossos propósitos aqui, empregaremos o termo em refe-


rência a "fortes redes de compromisso — conceituais, teóricos, ins-
trumentais e metodológicos".
Com base em seus estudos sobre o desenvolvimento das ciên-
cias naturais, Kuhn afirmou que certos paradigmas são aceitos como
normativos por causa do sucesso explanatório obtido no passado.
Quando algum paradigma é aceito, segue-se um período denomi-
106 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

nado por Kuhn de "ciência normal". Durante esse tempo, aceita-se


o paradigma resultante desse sucesso. As evidências experimentais
que o contradizem são consideradas anômalas — isto é, na qualida-
de de itens que oferecem dificuldades para o paradigma mas não
exigem que ele seja abandonado. De fato, as anomalias são consi-
deradas buscas de solução antecipada no contexto do paradigma,
mesmo se no momento presente a natureza precisa dessa solução
permaneça obscura. Surgem propostas de modificações ad hoc para
o paradigma existente — como no caso da astronomia de Ptolomeu,
quando a disparidade entre teoria e observação forçou a adição de
novos epiciclos ao sistema.
Mas o que aconteceria se aparecesse uma série de anomalias
com força cumulativa para questionar o paradigma? Ou se apenas
uma anomalia adquirisse tal importância que seu desafio não pu-
desse passar despercebido? Kuhn argumenta que, em tais situações,
surge uma crise no interior do paradigma capaz de servir de prelú-
dio à "revolução científica". Kuhn contrasta essa maneira revolucio-
nária com o modelo essencialmente evolucionário que se contenta
com o constante progresso na compreensão científica por meio de
acúmulo gradual de dados e conhecimentos. Enquanto outros his-
toriadores da ciência falavam de "progresso cientifico", Kuhn prefe-
ria a imagem da revolução, na qual aconteciam importantes mu-
danças de perspectiva em curto espaço de tempo.
A transição entre paradigmas competitivos não pode ser feita passo a
passo, forçada pela lógica e pela experiência neutra. E...] Ocorre, isso
sim, de uma só vez (embora não necessariamente num mesmo instan-
te) ou nunca acontecerá [...] Não estão em jogo nessas questões prova
ou erro. A transferência de lealdade de um paradigma para outro é
uma experiência de conversão que não pode ser forçada.

Outro elemento essencial na argumentação de Kuhn é que os


paradigmas estabelecidos e futuros são incomensuráveis, de tal
maneira que o antigo paradigma dá lugar ao novo. Não existe pos-
sibilidade de se aproveitar partes do antigo paradigma. Ele é total-
Religião e filosofia da ciência I 107

mente substituído pelo novo. Esse novo paradigma faz com que os
cientistas vejam, entendam e investiguem a realidade de maneira
também nova.
Orientados por novos paradigmas, os cientistas adotam novos ins-
trumentos e olham para novos lugares. Mais importante ainda é que
durante as revoluções os cientistas vêem coisas novas e diferentes
mesmo utilizando instrumentos familiares em lugares onde já havi-
am estado antes. É como se a comunidade profissional tivesse se
transportado de repente para outro planeta onde objetos familiares
passam a ser vistos sob nova luz ao lado de outros até então desco-
nhecidos. Naturalmente, nada acontece desse jeito; não há mudança
geográfica; os afazeres do dia-a-dia continuam os mesmos fora do
laboratório. Contudo, as mudanças de paradigma fazem com que os
cientistas vejam o mundo de suas pesquisas de maneira diferente.
Enquanto seu único recurso nesse mundo é o que vêem e fazem,
queremos dizer que depois de uma revolução começam a se relacio-
nar com um mundo diferente.

Os fatores que precipitam essa revolução não são necessaria-


mente racionais. Kuhn entende que por trás do abandono do antigo
paradigma e da aceitação do novo situa-se uma rede complexa de
questões que não podem ser explicadas apenas por meio de consi-
derações científicas. Estão também envolvidas no processo ques-
tões altamente subjetivas. Kuhn compara a "mudança de paradigma"
à "conversão". Sua ênfase nas razões subjetivas nas mudanças de
paradigma tem levado alguns de seus críticos a sugerir que seu pro-
grama depende demasiadamente do que poderia ser chamado de
"psicologia popular".
Suas análises da compreensão do desenvolvimento científico
também têm sofrido críticas de outra natureza. Em parte, por causa
da noção de que sucessivos paradigmas seriam "incomensuráveis".
Alguns desses críticos acham que tal idéia é inacurada. Stephen
Toulmin acredita que nas revoluções científicas há muito mais con-
tinuidade do que pensa Kuhn. Além disso, acha que pequenas mu-
108 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

danças freqüentes são mais típicas do progresso científico do que


"revoluções" mais radicais. Assim, não seria necessário considerar as
mudanças da física newtoniana para a de Einstein como "mudança
de paradigma".
A obra de Kuhn é importante também para a fé religiosa. Dois
de seus temas centrais ilustram o que estamos afirmando. Em pri-
meiro lugar, o conceito de Kuhn das "mudanças de paradigma" aju-
da na compreensão das principais mudanças intelectuais ocorridas
na história do pensamento religioso. Como já notamos, o pensa-
mento religioso tem sido influenciado, pelo menos até certo ponto,
pelos pressupostos filosóficos e culturais de cada época. O desen-
volvimento da teologia cristã tem demonstrado que mudanças radi-
cais desses pressupostos têm sido importantes também para a sua
tarefa. Por exemplo, consideremos as seguintes épocas do pensa-
mento ocidental cristão: Reforma, Iluminismo e Pós-modernidade.
Cada uma dessas épocas representaria uma "mudança de para-
digma", com radicais transformações que afetaram o desenvolvi-
mento da teologia. Na transição de um paradigma para outro alte-
ram-se normas, métodos e antigas maneiras de se entender os pres-
supostos vigentes. Alguns são até mesmo abandonados.
Em segundo lugar, vejamos a questão do realismo. Kuhn rejeita
o realismo como explicação dos sucessos da pesquisa científica. Não
vê crescente convergência entre "teoria" e "realidade" na explicação
do progresso científico. Afirma que nada se perde na rejeição da
descrição realista do desenvolvimento científico. Contudo, como se
poderia falar inteligentemente de "progresso" a não ser que existisse
algum meio para se saber se a ciência está caminhando na direção
certa e não numa via falsa que precisaria ser corrigida no futuro?
O trabalho de Kuhn tem inspirado inúmeros escritos no campo
da sociologia do conhecimento. Argumenta-se que se as teorias
fossem sempre indeterminadas pela evidência, a escolha delas de-
penderia de considerações sociológicas. Em outras palavras, a deci-
são em favor de uma teoria ou de outra dependeria muito mais de
variados valores sociais, interesses e preocupações institucionais do
que da evidência experimental em si. Essa argumentação suscita esta
I

Religião e filosofia da ciência 1 109

importante questão: corresponderão as doutrinas religiosas a algo


"real" ou serão simples determinação de fatores sociais? Por exem-
plo, poder-se-ia argumentar que a doutrina cristã das "duas nature-
zas" de Cristo não foi determinada pelo fenômeno que ela tenta
expressar, mas por certos aspectos da agenda política do Império
Romano.
Apesar da importância desse debate, não podemos entrar agora
em seus pormenores. Contudo, convém levar em consideração que
a maneira como Kuhn entende as mudanças de paradigma baseia-
se consideravelmente em fatores não-científicos, e que seu entendi-
mento do modo como os paradigmas são adotados e abandonados
têm amplas implicações para a fé religiosa.

Conhecimento e compromisso: Michael Polanyi

Um dos mais intrigantes estudiosos no campo da filosofia da


ciência é o químico húngaro Michael Polanyi (1891-1976). Sua obra
tem sido muito citada por escritores religiosos e se indaga se não tem
exercido muito mais impacto entre eles do que entre seus colegas
cientistas. Polanyi nasceu numa família judaica em Budapeste. Em
seus primeiros anos de estudo, pertenceu ao "Círculo de Galileu",
formado por um pequeno grupo de estudantes interessados em
provar que a ciência era a solução para todos os problemas humanos.
Essa atitude de certa maneira ambiciosa e otimista, denominada por
Mary Midgely "ciência como salvação", pouco a pouco foi dando lu-
gar a um crescente interesse pelo lado espiritual da vida, inspirado e
nutrido por escritores russos do século XIX, como Tolstói e Dostoiévski.
Aos 28 anos, Polanyi foi recebido na Igreja católica romana.
No ano seguinte, começou a lecionar no Instituto de Química
Física Kaiser Wilhelm. Com o surgimento do nazismo em 1930 essa
posição começou a ser ameaçada. Os nazistas não gostavam que
descendentes de judeus ocupassem cargos acadêmicos importan-
tes. Polanyi achou melhor deixar a Alemanha. Foi contratado como
professor de físico-química em Manchester, no norte da Inglaterra,
110 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

em 1933. Com a mudança de seus interesses de pesquisa, mudaram


também suas responsabilidades de ensino: em 1948 foi escolhido
para a cadeira de Ciências Sociais.
A obra mais importante de Polanyi trata de filosofia da ciência
e é muito conhecida: Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philo-
sophy (Conhecimento pessoal — Rumo a uma filosofia pós-crítica),
de 1958. Essa obra tem exercido grande influência em inúmeros pen-
sadores religiosos, principalmente cristãos. Thomas F. Torrance (ver
pp. 277-281) é luminoso exemplo de um importante escritor cristão
cujas idéias se desenvolveram em diálogo com Polanyi. Esse grande
interesse pelas idéias de Polanyi da parte de escritores religiosos não
significa nenhuma distorção de suas intenções e seus interesses. Ele
era reconhecidamente religioso (embora não se conheça com preci-
são suas idéias religiosas) e freqüentemente tratou de temas religio-
sos em seus escritos.
Em que áreas Polanyi seria importante para o debate entre ciên-
cia e religião? Concorda-se em geral que as idéias de Polanyi mais
extensivamente citadas por escritores religiosos relacionam-se com
a natureza do conhecimento. É o tema principal de Personal Know-
ledge, embora também possa ser encontrado em sua obra anterior,
Science, Faith and Society (Ciência, fé e sociedade). Su a afirmação fun-
damental é que todo o conhecimento — relacione-se com as ciências
naturais, com a religião ou com a filosofia — será sempre de natureza
pessoal. Essa postura pós-crítica sobre a natureza do conhecimento
pressupõe nele a existência de um compromisso pessoal. Embora o
conhecimento envolva conceitos e idéias, envolve também algo mais
profundo — o envolvimento pessoal com seu objeto, que Polanyi cha-
ma de "raiz fiduciária de todo o conhecimento".
O tema em questão não é fácil de ser apreciado e precisa, natu-
ralmente, de maior explicação e ilustração. Polanyi emprega a ima-
gem de um cego tateando no escuro com sua bengala branca. Na-
turalmente, não "vê" coisa alguma, mas se torna consciente dos obs-
táculos do caminho ao interpretar as sensações recebidas dessa
bengala que lhe permitem perceber o que está sendo tocado por ela.
O cego depende dessa bengala para conhecer as coisas ao seu redor.
Religião e filosofia da ciência I 111

Contudo, não pode discernir essas informações diretamente. Ape-


nas experimenta ou observa o mundo por esse meio. Depois de ter
se acostumado com o uso da bengala, ela se torna transparente para
ele, de maneira que não mais a usa conscientemente. Ele acaba por
tornar-se tão familiarizado com ela que passa a agir, por assim dizer,
como se a bengala fosse uma extensão dele próprio. Polanyi fala,
assim, do cego como se estivesse habitando a sua bengala.
A importância da analogia não é facilmente compreendida. Tal-
vez possa ser mais bem apreciada quando comparada com teorias
da percepção relacionadas com o Iluminismo e particularmente com
a tradição cartesiana. É que esse ponto de vista tende a se apoiar no
dualismo de sentido passivo e razão ativa. Em outras palavras, os sen-
tidos (como a visão) provêem passivamente os dados que a mente
interpreta ativamente. Para Polanyi, os sentidos são ativos no pro-
cesso da percepção. Assim como o cego aprende a confiar em sua
bengala branca e depende dela, assim somos também obrigados a
confiar em nossas percepções. Ocasionalmente, podemos nos en-
ganar. O conhecimento não se reduz, assim, a idéias desencarnadas,
como sugeria o Iluminismo, mas envolve o elemento pessoal de
compromisso tanto com o que está sendo conhecido como com os
meios usados para conhecê-lo. As ciências naturais podem, portan-
to, ser entendidas em termos de conhecimento pessoal, compro-
misso intelectual e busca apaixonada e envolvente de modelos na
natureza. Embora para o Iluminismo o comprometimento pessoal
fosse incompatível com a objetividade, Polanyi acha que ele é parte
integrante do processo do conhecimento.
A importância religiosa dessa linha de pensamento parece cla-
ra. Polanyi liberta a teologia de diversas camisas-de-força impostas
pelo racionalismo iluminista, principalmente da exigência de se li-
vrar de qualquer compromisso com seu objeto ou seus métodos. Para
o Iluminismo, o comprometimento pessoal deformava a objetividade.
Essa postura criava problemas para os escritores religiosos, que quase
sempre se envolviam profundamente com as idéias que examinavam.
A afirmação de Polanyi da "raiz fiduciária de todo o conhecimento"
elimina essa dificuldade asseverando que todo o conhecimento váli-
do envolve compromisso da parte do conhecedor.
112 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Este capítulo procurou mostrar o impacto produzido pela filo-


sofia da ciência sobre o pensamento religioso. Mas de que maneira
a filosofia da religião tem influenciado o pensamento científico? É o
que pretendemos examinar no próximo capítulo.

Leituras recomendadas

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Ciência e filosofia da religião

NO CAPÍTULO ANTERIOR examinamos como alguns temas


da filosofia da ciência tornaram-se potencialmente importantes para
o estudo da religião. Este capítulo avança um pouco mais para ex-
plorar os modos como os resultados alcançados pelas ciências natu-
rais têm implicações para a filosofia da religião. A filosofia da reli-
gião é bastante abrangente, mas para nossos propósitos vamos nos
concentrar em apenas um de seus temas: os argumentos filosóficos
em favor da existência de Deus. De que maneira as descobertas das
ciências naturais afetam esses argumentos?
Não pretendemos esgotar o assunto, mas apenas indicar como
se desenrolou o diálogo entre as ciências naturais e a filosofia da
religião em torno desse tema. Veremos que a discussão moderna
dos argumentos em favor da existência de Deus refere-se à compreen-
são científica do mundo (especialmente a astronômica).
Examinaremos a questão partindo de alguns tipos de argumento
desenvolvidos pela filosofia da religião para depois examinar os ar-
gumentos que foram particularmente afetados pelas ciências na-
turais. Começaremos nossa análise pelos argumentos clássicos, com
a finalidade de oferecer aos leitores informações que ajudem a en-
tender tipos de abordagem mais comuns e mais utilizados.
116 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Argumentos filosóficos em favor da existência de Deus

Os argumentos filosóficos mais amplamente discutidos em fa-


vor da existência de Deus foram desenvolvidos por Anselmo de
Cantuária e Tomás de Aquino na Idade Média. Consideraremos a
seguir o "argumento ontológico" e em seguida as "Cinco Vias".

Argumento ontológico de Anselmo de Cantuária

Anselmo de Cantuária (c. 1003-1109) nasceu na Itália. Mudou-


se para a Normandia em 1059, onde entrou para o famoso mosteiro
de Bec. Tornou-se prior em 1063 e abade em 1078. Em 1093 tornou-
se arcebispo de Cantuária. Tomou-se conhecido principalmente pela deci-
dida defesa dos fundamentos intelectuais do cristianismo e pela for-
mulação do "argumento ontológico" em favor da existência de Deus.
Esse argumento aparece pela primeira vez em sua obra Proslogion,
de 1079. (O termo "ontologia" refere-se ao ramo da filosofia que
trata do "ser".) Anselmo, contudo, não considera sua discussão um
argumento "ontológico". Essa obra é, na verdade, mais uma peça de
meditação do que uma argumentação lógica. Ao longo de seu livro,
Anselmo reflete sobre quão auto-evidente era para ele a idéia de
Deus e mostra as possíveis implicações dessa experiência.
Ele oferece esta definição de Deus: "aquilo além do qual nada
maior pode ser pensado" (aliquid quo maius cogitari non potest). Ar-
gumenta que se essa definição de Deus for correta, decorrerá dela
necessariamente a afirmação da existência de Deus. Suas razões são
as seguintes. Se Deus não existe, a idéia de Deus, contudo, perma-
nece, embora sua realidade esteja ausente. Mas a realidade de Deus
é maior do que a idéia de Deus. Portanto, se Deus é "aquilo além do
qual nada maior pode ser pensado", a idéia de Deus deve nos levar
a aceitar a realidade de Deus, uma vez que essa idéia é a maior coisa
possível de ser pensada. E isso contradiz a definição de Deus sobre
a qual o argumento se baseia. Portanto, dada a existência da idéia de
Deus, e aceitando-se a definição de Deus como "aquilo além do
Ciência e filosofia da religião 1 117

qual nada maior pode ser pensado", segue-se a sua realidade ne-
cessariamente. Observemos que o verbo latino cogitare também
pode ser traduzido por "conceber", mudando um pouco a tradu-
ção da famosa frase para "aquilo além do qual nada maior pode
ser concebido". As duas traduções são aceitáveis.
Deus é assim definido como "aquilo além do qual nada maior
pode ser concebido". Ora, a idéia de tal ser é uma coisa: a realida-
de dele é outra. Pensar numa cédula de cem dólares é bem dife-
rente do que ter essa cédula nas mãos — e menos satisfatório,
naturalmente. O argumento de Anselmo é o seguinte: a idéia de
alguma coisa é inferior à sua realidade. Assim, a idéia de Deus
como "aquilo além do qual nada maior pode ser concebido" contém
uma contradição — porque a realidade de Deus teria de ser supe-
rior a essa idéia. Em outras palavras, se essa definição de Deus for
correta, e existir na mente humana, a realidade correspondente
também deverá existir. Anselmo expressa-se da seguinte maneira:
Esta [definição de Deus] é tão verdadeira que não se pode pensá-la de
outra maneira. Pois é perfeitamente possível pensar em algo cuja não-
existência não pudesse ser pensada. Precisaria ser maior do que aquilo
cuja existência não pudesse ser pensada. Assim, se esta coisa (além da
qual nada maior pode ser pensado) pudesse ser pensada como não
existindo, então ela não seria "aquilo além do qual nada maior pode
ser pensado". Trata-se de uma contradição. Assim, é verdade que exis-
te algo além do qual nada maior pode ser pensado e que, portanto,
não possa ser pensado como não existindo. E tu és, Senhor nosso Deus,
essa coisa! Assim, tu existes de maneira tão verdadeira, ó Senhor meu
Deus, que não se pode pensar que tu não existas, e com boas razões;
pois, se a mente humana pudesse pensar em algo maior do que tu, a
criatura subiria acima do Criador e te julgaria; mas isso, obviamente, é
absurdo. Além disso, qualquer coisa fora de ti pode ser pensada como
não existindo. Portanto, somente tu, mais verdadeiro do que todas as
coisas, e maior do que todas elas, tens existência; porque qualquer
outra coisa que exista não existe tão verdadeiramente como tu e, por-
tanto, existe em grau menor.
118 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Embora esse argumento seja importante, não conseguiu persua-


dir um de seus primeiros críticos, o monge beneditino Gaunilo, que
escreveu uma réplica conhecida como "Resposta em favor do tolo"
(referindo-se ao Salmo 14,1, citado por Anselmo, "Disse o tolo no
seu coração, não há Deus"). Segundo esse monge haveria no "argu-
mento" de Anselmo óbvia fraqueza lógica (embora, em primeiro lugar,
saibamos que Anselmo não pretendia ter elaborado um "argumen-
to"). Imaginemos, dizia Gaunilo, uma ilha tão bela que não se pu-
desse conceber outra mais perfeita do que ela. Usando o mesmo
argumento de Anselmo, sugeria Gaunilo, essa ilha deveria existir,
uma vez que a realidade dessa ilha seria necessariamente mais per-
feita do que a mera idéia dela. Do mesmo modo, poderíamos dizer
que uma nota de cem dólares implicaria, segundo Anselmo, que
teríamos essa nota em nossas mãos. A simples idéia de alguma coisa
— seja uma ilha perfeita ou Deus — não garante a sua existência.
Gaunilo expôs suas objeções da seguinte forma:
Certas pessoas dizem que em algum lugar do oceano existe uma ilha
que, por causa da dificuldade (ou, melhor, da impossibilidade) de se
encontrar o que não existe, é chamada de "Ilha Perdida". Também nos
dizem que ela foi abençoada com toda a sorte de bens preciosos e
deleites em abundância, muito mais do que as Ilhas Felizes e, não tendo
donos nem habitantes, mostra-se superior em todos os aspectos da
fartura a todas as demais terras habitadas. Ora, se alguém me viesse
contar essa história, certamente entenderia o que me estava sendo dito,
pois não há nenhuma dificuldade nisso. Mas se me dissessem, como
se fosse decorrência natural disso: "Você não pode duvidar de que essa
ilha mais excelente do que todas as outras terras verdadeiramente exista
em algum lugar real da mesma forma como não duvida de que ela
esteja em sua mente, posto que é muito mais excelente que ela exista
não apenas na sua mente mas na realidade, segue-se que ela deve
existir. Pois, se não existir, alguma outra terra que exista na realidade
seria melhor do que ela, e assim a ilha, já concebida por você como
mais excelente do que as outras, não seria mais excelente". Se alguém,
sem nenhuma dúvida, quisesse me persuadir dessa forma a respeito
Ciência e filosofia da religião 119

da existência daquela ilha, eu pensaria que essa pessoa estava brincan-


do, ou me seria difícil decidir qual de nós seria o maior tolo: eu, se
concordasse com ela, ou ela, se pensasse ter provado a existência de tal
ilha com toda a certeza. Seria preciso que primeiramente me persua-
disse de que essa coisa que existe na minha mente com toda essa ex-
celência existisse verdadeira e indubitavelmente na realidade e não
apenas como algo irreal e duvidoso.

Considerou-se em geral que a resposta de Gaunilo serviu para


mostrar a séria fraqueza do argumento de Anselmo. O texto dele é
tão claro que não precisa ser comentado. Mas se poderia alegar que
a idéia de Anselmo não pode ser assim rejeitada tão facilmente. Parte
de seu argumento afirma que quando se define Deus diz-se que ele
é "aquilo além do qual nada maior pode ser concebido". Deus per-
tenceria, então, a uma categoria totalmente diferente das ilhas ou
das notas de dólares. Faz parte da natureza de Deus transcender
todas as coisas. Uma vez que o crente tenha entendido o significado
da palavra "Deus", ele não terá mais dúvida de sua existência. Essa
era a intenção da meditação de Anselmo no Proslogion: refletir como
a compreensão cristã da natureza de Deus reforça a fé em sua rea-
lidade. O "argumento" realmente não tem força fora do contexto da
fé. Anselmo nunca pretendeu usá-lo de maneira filosófica geral.
Além disso, Anselmo sentia que Gaunilo não o havia entendido
inteiramente. O argumento exposto no Proslogion não envolve a idéia
da existência de um ser que, realmente, seja maior do que qualquer
outro ser; o que ele queria dizer é que existe um ser tão grande que
nenhum maior do que ele pode ser concebido. O argumento per-
manece e até hoje se discute se Anselmo partiu de fundamentação
genuína.

As cinco vias de Tomás de Aquino

Tomás de Aquino (c. 1225-1274) talvez seja o mais famoso e


influente teólogo da Idade Média. Nascido na Itália, tornou-se fa-
120 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

moso por causa de seu ensino e seus escritos na Universidade de


Paris e em outras universidades do norte da Europa. Sua obra prin-
cipal chama-se Suma teológica, escrita nos últimos anos de sua vida.
Quando morreu não a tinha totalmente concluída. Escreveu tam-
bém muitas outras obras importantes, especialmente a Suma contra
os gentios, onde demonstra a racionalidade da fé cristã e trata espe-
cificamente da existência de Deus. Acreditava ser possível identifi-
car sinais da existência de Deus a partir da experiência humana do
mundo. Suas "cinco vias" representam cinco linhas de argumentos
destinados a provar a existência de Deus, cada qual baseando-se em
algum aspecto do mundo sinalizador da existência de seu criador.
Quais seriam esses sinais? Aquino partia da idéia orientadora
de que o mundo espelhava Deus, seu criador — idéia formalmente
expressa na sua doutrina da "analogia do ser". Assim como os artis-
tas assinam seus quadros para identificar a autoria deles, Deus tam-
bém estampa sua "assinatura" divina na criação. Os sinais da ordem
do mundo que observamos podem ser explicados com base na exis-
tência de Deus, seu criador. Deus é a primeira causa e o planejador
do mundo. Ele trouxe o mundo à existência e imprimiu nele sua
imagem e semelhança.
Sendo assim, onde deveríamos procurar essas marcas da exis-
tência de Deus? Aquino pensa que a ordem do mundo é a evidên-
cia mais convincente da existência e da sabedoria de Deus. Esse
pressuposto básico subjaz a cada uma das "cinco vias", embora
seja de particular importância para o argumento conhecido como
"do desígnio", ou "teleológico". Vamos considerar cada uma des-
sas "vias" individualmente, antes de nos concentrarmos em duas
delas, mais adiante.
A primeira via começa com a observação de que as coisas estão
em movimento e mudança no mundo. O mundo não é estático,
mas dinâmico. É fácil enumerar exemplos desse fato. A chuva cai do
céu. As pedras rolam das montanhas para os vales. A terra gira ao
redor do sol (fato, diga-se de passagem, conhecido por Aquino).
Este primeiro argumento chama-se "do movimento". Mas é claro
que o "movimento" em questão deve ser entendido em termos mais
Ciência e filosofia da religião 1 121

gerais. Por isso, a palavra "mudança" corresponde melhor às inten-


ções de Aquino.
Pergunta-se então: de que maneira a natureza começou a se
movimentar? O que significa mudança? Por que as coisas não são está-
ticas? Aquino argumenta que todas as coisas que se movem são movi-
das por outras. Para cada mudança existe uma causa. As coisas não
se movem ao acaso — são movidas por alguma causa. E essa causa
deve ser causada. Assim, pode-se pensar numa cadeia de causas por
trás do mundo como o conhecemos. A não ser que o número das
causas seja infinito, deve haver uma causa original antes de todas as
outras. A partir dela, todos os demais movimentos ou mudanças se
teriam originado. Assim seria possível entendermos a grande cadeia
de causas refletidas no comportamento do mundo. A partir da
constatação de uma causa original que seria a causa de todas as
mudanças, Aquino conclui que Deus seria essa primeira causa.
A segunda via parte da idéia de causa. Em outras palavras, Aquino
observa no mundo a existência de causas e efeitos. Os eventos (que
são efeitos) explicam-se pela influência de outros (causas). A idéia
de movimento, que vimos acima, exemplifica a seqüência de causa
e efeito. Utilizando raciocínio semelhante ao anterior, Aquino argu-
menta que todos os efeitos podem ser remetidos à mesma causa
original: Deus.
A terceira via parte da constatação da existência de seres contin-
gentes. Em outras palavras, o mundo está cheio de seres (como os
humanos) que não são necessários. Em contraste com esse tipo de ser
existe outro que seria necessário. Enquanto Deus seria necessário os
humanos não passariam de seres contingentes. O fato de estarmos
aqui exige explicação. Por que estamos aqui? O que aconteceu para
que chegássemos à existência? Segundo essa via, qualquer ser exis-
tente passa a existir porque um outro ser anterior fez com que ele
existisse. Em outras palavras, nossa existência é causada por outro ser.
Somos o efeito de uma série de causas. Ao traçarmos essa série até
sua origem, chegaremos à conclusão de que a causa original só poder
ser o único ser cuja existência é necessária, isto é, Deus.
122 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

A quarta via começa com valores humanos como verdade, bon-


dade e nobreza. De onde vêm esses valores? Qual é sua causa?
Aquino argumenta que deve haver algo que seja a verdade, a bon-
dade e a nobreza em si mesmo. Nossas idéias de verdade, bondade
e nobreza teriam se originado aí. Para ele, a origem dessas idéias é
Deus, sua causa original.
A quinta via pode ser chamada de argumento teleológico. Aquino
acredita que o mundo mostra traços óbvios de desígnio inteligente.
Os processos naturais e os objetos parecem adaptar-se tendo em
vista certos objetivos em mente. Parece que têm propósitos defini-
dos. Tudo indica que foram destinados a algum fim. Por outro lado,
as coisas não determinam suas finalidades: são causadas e designa-
das para seus fins por alguém ou por alguma outra coisa. Argumen-
tando a partir desses raciocínios, Aquino conclui que a fonte de toda
essa ordenação deve ser Deus.
Percebe-se que quase todos os argumentos de Aquino asseme-
lham-se entre si em termos de estrutura. Cada um deles depende
do estabelecimento de certa seqüência causal voltada para sua ori-
gem, sempre identificada com Deus. Inúmeras críticas foram levan-
tadas contra essas "cinco vias" na Idade Média, como as de Duns
Escoto e Guilherme de Ockham. As seguintes são especialmente
importantes.

(1) Por que seria impossível a idéia da regressão infinita de cau-


sas? Por exemplo, o argumento do movimento somente seria
efetivo se demonstrasse que a seqüência de causas e efeitos
pára num determinado ponto. Aquino acha que deve exis-
tir um Primeiro Motor Imóvel. Mas não conseguiu demons-
trar essa proposta.
(2) Por que esses argumentos levam à crença num único Deus?
O argumento do movimento, por exemplo, poderia levar à
crença em diversos primeiros motores imóveis. Não existe
razão alguma convincente para a existência de apenas uma
primeira causa, a não ser a insistência cristã de que, na
verdade, só existiria um único Deus.
Ciência e filosofia da religião 1 123

(3) Esses argumentos não demonstram que Deus continuaria


a existir depois de ter sido a causa original de todas as coi-
sas. Pode-se pensar que Deus, depois de ter causado o
mundo, teria deixado de existir. A existência contínua de
eventos não implica necessariamente a existência contínua
de seu originador. Os argumentos de Tomás de Aquino,
segundo Ockham, correm o risco de nos fazer crer que Deus
existiu no passado — mas não necessariamente hoje.
Ockham desenvolveu um argumento bastante complexo,
baseado na idéia de que Deus continua a sustentar o uni-
verso, para tentar resolver as dificuldades encontradas nos
argumentos de Aquino.

Estes, pois, são alguns dos argumentos tradicionais usados e


desenvolvidos pela filosofia da religião. Mas como foram afetados
pelas reflexões oriundas das ciências naturais? Consideraremos esta
questão a seguir.

Ciência e argumentos em favor da existência de Deus

Concorda-se, em geral, que há três categorias de argumentos


em favor da existência de Deus importantes para a relação da reli-
gião com a ciência. São conhecidos como argumentos "cosmológico",
"teleológico" e "kalam", embora haja discordâncias se o terceiro
deveria ser considerado uma categoria distinta ou um argumento
em si. Para muitos críticos, ele seria apenas um mero desdobramen-
to do argumento cosmológico. Mas vamos assumir, para nossos
propósitos, que ele requer discussão em separado como se fosse um
verdadeiro argumento como os demais.

Argumento cosmológico

Ao considerar as "cinco vias" de Aquino notamos a importância


do argumento do movimento (conhecido às vezes pela expressão
124 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

latina ex motu), que parte da observação da mudança ou do movi-


mento no mundo para afirmar a existência de uma primeira causa
responsável por todos os demais efeitos. O argumento da "primeira
causa" é também conhecido como "argumento cosmológico", em-
bora deva-se levar em conta que seria apenas um entre muitos ar-
gumentos desse tipo (incluindo o argumento "kalam", que exami-
naremos depois). Talvez nos ajude ler a própria apresentação de
Aquino dessa que é a primeira de suas "cinco vias":
A existência de Deus pode ser provada de cinco maneiras. A primeira
e mais óbvia prova é o argumento da mudança (ex parte motus). É claro
que algumas coisas no mundo estão em processo constante de mu-
dança. Ora, todas as coisas em processo de mudança são mudadas por
alguma outra coisa, uma vez que nada muda a não ser na direção
daquilo para o que vai mudar desde que a mudança realmente ocorra.
Assim, o fogo, que na verdade é quente, faz com que a madeira, que é
potencialmente quente, esquente-se de fato, modificando-a e alteran-
do-a. Ora, é impossível que a mesma coisa seja ao mesmo tempo rea-
lização e potencialidade da mesma maneira, embora o possa ser em
circunstâncias diferentes. O que já é realmente quente não pode ser ao
mesmo tempo potencialmente quente, embora continue a ser poten-
cialmente frio. É, portanto, impossível que nas mesmas circunstâncias
e do mesmo modo alguma coisa seja ao mesmo tempo a que efetue e
mude e a coisa mudada, como se ela pudesse mudar-se a si mesma.
Tudo o que muda é mudado por alguma outra coisa, e assim sucessiva-
mente. Mas esse processo não pode durar para sempre, porque se assim
fosse não haveria a primeira causa do processo nem qualquer outro agente
de mudança, porque as coisas secundárias mudadas não podem ser
modificadas a não ser por uma primeira causa, do mesmo modo como
o bastão não pode se movimentar a não ser pela mão. Somos então
obrigados a chegar à primeira causa do movimento não movida por
nenhuma outra causa. Todos entendem que essa causa é Deus.

Aquino exclui a possibilidade da existência de séries infinitas de


causas para determinado evento. Num certo ponto, a cadeia da cau-
salidade termina na primeira causa. E, segundo ele, essa causa é,
sem dúvida, Deus.
Ciência e filosofia da religião 1 125

Mais recentemente, este argumento tem sido reelaborado em


termos mais explicitamente cosmológicos (daí o título usado agora
para falar dele). A formulação mais comumente encontrada deste
argumento é a seguinte:

(1) Todas as coisas no universo dependem de outras para existir.


(2) O que é verdade em relação às partes individuais é também
verdadeiro para o universo todo.
(3) Assim, o universo depende de alguma outra coisa para existir
desde seu começo e no futuro.
(4) O universo, portanto, depende de Deus para existir.

O argumento pressupõe basicamente que a existência do uni-


verso precisa ser explicada. Este tipo de raciocínio relaciona-se dire-
tamente com pesquisas cosmológicas modernas, particularmente a
que trata da teoria do big bang sobre as origens do cosmo. O mesmo
se vê na versão "kalam" do argumento cosmológico, que vamos exa-
minar a seguir.

O argumento kalam

Este argumento deriva seu nome de uma escola árabe de filoso-


fia surgida na Idade Média. A. E. Sabra definiu kalam como "inves-
tigação a respeito de Deus, da criação divina e do homem, criatura
especial posta por Deus no mundo pelo favor de Deus". Os
mutakallimun (como eram chamados os praticantes do kalam) eram
considerados reconciliadores da verdade revelada com a sabedoria
humana.
Como parte de sua tarefa, eles desenvolveram um argumento
em favor da existência de Deus baseado na idéia de causalidade.
Alguns estudiosos acham que se trata de variante do argumento
cosmológico. Entretanto, outros vêem nele feições próprias, que
justificam estudos especiais. A estrutura básica desse argumento pode
ser desmembrada em quatro proposições:
126 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

(1) Tudo o que começa deve ter alguma causa.


(2) O universo começou a existir.
(3) Portanto, o começo da existência do universo deve ter sido
causado por alguma coisa.
(4) Sua única causa só poderia ser Deus.

Vê-se claramente que os contornos básicos do argumento po-


dem ser discernidos nas "cinco vias", de Aquino.
A estrutura do argumento é clara, e suas implicações quase não
precisam ser comentadas. Se a existência de algo teve começo, se-
gue-se, então, que também precisou de alguma causa. Se este tipo
de argumentação puder se ligar à idéia do big bang (ver pp. 223-225),
também poderá ser importante para a nossa discussão. A cosmologia
moderna fortemente sugere que o universo teve começo. Se ele
realmente começou a existir num determinado momento, deveria
ter alguma causa. Poderia essa causa ser outra senão Deus?
Esta forma do argumento "kalam" tem sido amplamente deba-
tida recentemente. Um de seus mais fervorosos defensores tem sido
William Lane Craig, que expõe os principais elementos do argu-
mento da seguinte forma:
Uma vez que todas as coisas que começam a existir têm uma causa
para sua existência, e uma vez que o universo começou a existir, con-
cluímos, portanto, que o universo tem uma causa para existir [...] Pode-
se afirmar, transcendendo o universo todo, a atuação de alguma causa
capaz de fazer que o universo viesse a existir.

O debate em torno deste argumento concentra-se em três ques-


tões, uma das quais poderia ser descrita como "científica" e as outras
duas, "filosóficas".

(1) Pode alguma coisa começar sem ter sido causada? Em um


de seus diálogos, David Hume argumenta que seria possí-
vel a existência de alguma coisa sem necessariamente pre-
cisar de uma causa. Contudo, tal suposição suscita enor-
mes dificuldades.
Ciência e filosofia da religião 1 127

(2) Pode-se dizer que o universo teve começo? Esta pergunta


é, de certa forma, profundamente filosófica. Mas também
poderia ser científica se a considerássemos a partir de co-
nhecidas observações sobre o índice de expansão do uni-
verso e das evidências radioativas em favor do big bang.
(3) Se pudéssemos afirmar que o universo foi "causado", po-
deria essa causa ser diretamente identificada com Deus?
Pode-se argumentar da seguinte forma. Qualquer causa
sempre antecipa o evento causado. Admitir uma causa do
começo da existência do universo significa reconhecer que
algo existia antes do universo. E se esse algo não fosse Deus
então o que seria?

O surgimento da teoria do big bang sobre as origens do universo


deu novo alento ao argumento "kalam". Provavelmente as decor-
rências filosóficas desse debate não serão resolvidas facilmente. Por
exemplo, consideremos a crítica de Elizabeth Anscombe sobre a
afirmação de que as coisas não são causadas mas simplesmente
acontecem:
Se eu disser que posso imaginar um coelho nascido sem pai nem mãe,
tudo bem: imagino esse coelho existindo sem pais. O que estou ima-
ginando quando imagino esse coelho nascendo sem ser causado? Ora,
apenas imagino um coelho existindo. Mas imaginar esse coelho sem
causa não é nada mais do que mero título dessa figura que imagino. Eu
posso criar qualquer imagem e dar um nome a ela. Mas o simples fato
de eu poder fazer isso nada prova "sem contradição nem absurdidade"
que minha imagem seja real.

Anscombe está mostrando que uma coisa é criar imagens men-


tais de alguma realidade (no caso, do coelho) criada sem causa. Outra
coisa é afirmar que essa imagem corresponda a um fato real.
Um outro debate concentra-se na questão da "finalidade" do
universo. É o que vamos examinar agora.
128 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Argumento teleológico

O argumento "teleológico" é mais geralmente conhecido como


o "argumento dos fins", e é um dos mais discutidos entre os argu-
mentos filosóficos sobre a existência de Deus. Tomás de Aquino deu
a este argumento (que é a quinta das suas "cinco vias") a seguinte
forma:
A quinta via baseia-se no governo das coisas. Percebemos como algu-
mas coisas, como os corpos naturais, operam para determinado fim
mesmo sem tomar conhecimento disso. O fato de que quase sempre
operem do mesmo modo, para alcançar o máximo bem, toma óbvio o
fato de que alcançam seu objetivo por desígnio e não por acaso. Ora,
as coisas que não têm conhecimento tendem para seu fim somente
pela agência de alguma outra que conhece e entende, como no caso
do arco que precisa do arqueiro para ser lançado. Existe, portanto, um ser
inteligente que dirige todas as coisas naturais para seu fim. E esse ser
nós chamamos de "Deus".

Aquino afirma que existem claros sinais de intencionalidade na


ordem natural. As coisas não existem simplesmente; elas parecem ter
sido planejadas com certos propósitos. O termo "teleológico" (com o
significado de "na direção de um alvo") tem sido muito usado para
indicar este aspecto de orientação para um fim presente na natureza.

Este aspecto da natureza tem sido discutido em relação com as


ciências naturais. A ordem da natureza — evidente, por exemplo,
em suas leis — é como um sinal de que a natureza foi criada com
algum propósito.
Concorda-se em geral que a melhor contribuição ao "argumen-
to teleológico" deve-se a William Paley. Sua obra Natural Theology; or
Evidences of the Existence and Attributes of the Deity, Collected from the
Appearances of Nature (Teologia natural; ou evidências da existência
e atributos da divindade, reunidas das aparências da natureza), de
1802, exerceu enorme influência na religião popular da Inglaterra
Ciência e filosofia da religião 1 129

na primeira metade do século XIX, e se tem notícia de que até mesmo


Charles Darwin a teria lido. Paley ficou profundamente impressio-
nado com as descobertas de Newton sobre a regularidade da natu-
reza, especialmente em relação com a área conhecida como "mecâ-
nica celeste". O universo podia ser pensado como um mecanismo
complexo, operando segundo princípios regulares e compreensíveis.
Para alguns estudiosos deístas, essas idéias sugeriam que Deus
não era mais necessário. Qualquer mecanismo seria capaz de ope-
rar perfeitamente bem sem a necessidade da presença de seu cria-
dor o tempo todo. Uma das conquistas de Paley, nem sempre plena-
mente reconhecida na literatura, foi a reabilitação da idéia do "mundo
como mecanismo" na perspectiva cristã. Paley conseguiu transfor-
mar a metáfora do "relógio", relacionada com ceticismo e ateísmo,
numa clara afirmação da existência de Deus.
Segundo Paley, a imagem newtoniana do mundo como meca-
nismo imediatamente sugeria a metáfora do relógio, levantando a
questão acerca do construtor de tão intricado mecanismo visível de
modo muito evidente no funcionamento do mundo. Paley entendia
que qualquer mecanismo implica "invenção". Escrevendo no am-
biente da emergente Revolução Industrial, Paley procurou explorar
o potencial apologético do crescente interesse pelas máquinas —
como "relógios, telescópios, moinhos e motores a vapor" — entre as
classes letradas da Inglaterra.
Os argumentos de Paley são bastante conhecidos. Em sua épo-
ca, a Inglaterra passava pela Revolução Industrial, em que as máqui-
nas representavam importante papel. Paley argumentava que so-
mente os loucos imaginariam que a tecnologia mecânica tivesse sido
criada pelo acaso sem propósito algum. O mecanismo pressupunha
invenção — isto é, sentido de propósito e capacidade para criar e
fabricar. Tanto o corpo humano, em particular, como o mundo, em
geral, podiam ser considerados mecanismos concebidos e construídos
para alcançar harmonia de meios e fins. Notemos que Paley não
estava sugerindo a existência de analogia entre os artefatos mecâni-
cos humanos e a natureza. A força de seu argumento vinha da idéia
130 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

de identidade: a natureza era mecânica e, portanto, inteligentemente


planejada.
Os parágrafos iniciais da Natural Theology . . . de Paley tornaram-
se amplamente conhecidos. Vale a pena citá-los e comentá-los.
Suponhamos que ao atravessar um campo cheio de espinhos eu tro-
pece numa pedra e que alguém me pergunte de que maneira aquela
pedra teria ido parar ali. Eu poderia responder que sem dúvida ela
teria estado ali todo o tempo. É provável que esta resposta parecesse
plausível. Mas suponhamos que eu tenha encontrado um relógio no
chão e que me perguntassem como aquele relógio teria aparecido. Não
me seria possível responder da mesma maneira como o fizera ante-
riormente dizendo que o relógio teria estado sempre ali. Por que, en-
tão, minha resposta não poderia servir igualmente para explicar a pre-
sença da pedra e a do relógio? Somente por esta razão e nenhuma outra:
quando nos detemos a examinar o relógio, percebemos — o que não
acharíamos na pedra — que suas diferentes partes foram criadas e
reunidas com certo propósito, como por exemplo, para se mover, e que
esse movimento fora regulado para indicar as horas do dia; e que se
essas partes tivessem sido feitas de outro modo, ou colocadas noutra
ordem diferente da verificada, talvez elas nem se movessem nem ser-
vissem para o propósito original.

Paley passa, então, a descrever minuciosamente o relógio, no-


tando em particular as diferentes peças em seu interior, suas molas
cilíndricas, as engrenagens e o mostrador de vidro. Tendo conduzido
seus leitores por essa cuidadosa análise, Paley chega à importante
conclusão:
Para se examinar esse mecanismo é necessário algum conhecimento
prévio do objeto a fim de percebê-lo e entendê-lo. Depois disso, a infe-
rência será inevitável. O relógio deve ter sido feito por alguém. Deve
ter existido em algum momento e tempo o seu ou os seus artífices que
o criaram com o propósito que conhecemos, e que compreenderam
sua construção e sua finalidade.
Ciência e filosofia da religião 1 131

A prosa inglesa de Paley é um pouco florida, refletindo o gosto


da época. Contudo, o que ele pretende dizer é claro.
Ele deseja acentuar que a natureza dá testemunho de inúmeras
estruturas biológicas que foram "inventadas" — isto é, construídas
com claros propósitos em mente. "As indicações de invenção e de
finalidade observáveis no relógio também existem no mundo da
natureza." Na verdade, a diferença para Paley é que a natureza mos-
tra um grau muito mais alto de invenção do que o relógio. Fazemos
justiça a Paley quando reconhecemos que ele é excelente quando
descreve os sistemas mecânicos da natureza como, por exemplo, as
estruturas imensamente complexas do olho ou do coração huma-
nos. Considera o coração uma máquina com válvulas e conclui que
ele foi "inventado"com propósito determinado:
É evidente que o sucesso do funcionamento do coração depende da
instalação de válvulas. Pois, quando qualquer uma de suas cavidades
se contrai, a tendência necessária da força destina-se a enviar o sangue
não apenas para a entrada da artéria para onde deve ir, mas também
a devolvê-lo à veia de onde saíra.

Foi imensa a influência de Paley sobre as atitudes inglesas relacio-


nadas com teologia natural. Os célebres Bridgewater Treatises (Tratados
de Bridgewater) mostram sua influência em muitos pontos, mesmo
desenvolvendo idéias independentes em outros. Richard Dawkins faz-
lhe um elogio indireto no título de uma de suas mais conhecidas obras
antiteológicas: The Blind Watchmaker (O relojoeiro cego). Segundo
Dawkins, o "relojoeiro" que Paley identifica com Deus nada mais era do
que o processo cego e sem propósito algum da seleção natural.
O "argumento dos fins" foi criticado de diversas maneiras pelo
filósofo escocês David Hume. Suas críticas mais importantes po-
dem ser resumidas da seguinte maneira.

(1) Não é possível saltar-se da observação de certa finalidade


no mundo para a idéia de um Deus que o teria criado. Uma
coisa é sugerir que a observação da finalidade leva à
inferência do ser que a produz; outra coisa bem diferente é
132 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

insistir que esse ser seja Deus. Vê-se pois que a ligação ló-
gica nessa cadeia de argumentação é muito fraca.
(2) A afirmação da existência de um criador do universo nos
levaria à regressão infinita. Quem teria criado o criador? Já
observamos que Aquino rejeitava explicitamente a idéia da
regressão infinita das causas; contudo, ele falhou em ofere-
cer justificações rigorosas para essa teoria, assumindo apa-
rentemente que seus leitores considerariam a rejeição das
séries auto-evidentemente correta. Hume argumenta que
não se trata disso.
(3) argumento da finalidade utiliza a analogia das máqui-
O
nas. Alcança plausibilidade fazendo comparações com ob-
jetos projetados ou construídos — como o relógio. Mas será
válida essa analogia? Por que o universo não poderia ser
comparado a uma planta ou a algum outro organismo vivo?
As plantas não foram fabricadas, apenas crescem. Esses
arrazoados são obviamente importantes em face do argu-
mento de Paley.

Ação de Deus no mundo

Uma das interfaces entre o pensamento científico e religioso mos-


tra-se na maneira como se concebe a ação de Deus no mundo.Va-
mos examinar essa importante questão nos próximos parágrafos.

Deísmo: Deus age por meio das leis da natureza

Já vimos como a ênfase newtoniana na regularidade mecânica


do universo ligava-se intimamente com o surgimento do movimento
chamado "deísmo". A posição deísta pode ser resumida sucinta-
mente da seguinte maneira: Deus criou o mundo de maneira racio-
nal e ordenada como reflexo de sua natureza racional. A ordem do
mundo está aberta à investigação humana. Quando ela é descoberta,
demonstra a sabedoria de Deus. As leis da natureza foram estabe-
Ciência e filosofia da religião 1 133

lecidas por Deus. Ficaram à disposição de mentes humanas brilhantes


para que fossem descobertas.
O deísmo defende a idéia de que Deus criou o mundo e o dotou
com a capacidade de funcionar e se desenvolver sem necessidade
de sua presença constante nem de sua interferência. Tal ponto de
vista, que se tornou particularmente influente no século XVIII, com-
parava o mundo com um relógio e Deus com o relojoeiro. Deus teria
dotado o mundo de certa finalidade autônoma de tal maneira que
poderia funcionar sem sua constante intervenção. Não foi por aci-
dente que William Paley escolheu as imagens do relógio e do relo-
joeiro para defender a existência do Deus criador.
Então, como Deus agiria no mundo segundo o deísmo? A res-
posta mais simples a esta pergunta é que Deus, na verdade, não age
no mundo. Como o relojoeiro, Deus dotara o mundo de regularida-
de (visível nas "leis da natureza") e colocara o seu mecanismo em
funcionamento. Depois de ter feito essas coisas, não tinha nada mais
a fazer. O mundo deveria ser compreendido como um enorme re-
lógio, completamente autônomo e auto-suficiente. Depois disso, a
ação de Deus deixava de ser necessária.
Perguntava-se, inevitavelmente, se Deus poderia, de fato, ser com-
pletamente eliminado do ponto de vista newtoniano do mundo. Se
nada havia sido deixado para Deus fazer, que outra necessidade se
poderia conceber para ainda afirmar sua existência? Se se pudesse
provar que havia princípios auto-sustentáveis no mundo, para que
serviria a idéia da "providência divina"? A doutrina da providência
baseava-se na necessidade da presença da mão sustentadora e regu-
ladora de Deus no mundo agindo em favor de sua continuada exis-
tência. A cosmovisão newtoniana incentivava a idéia de que, embora
tendo criado o mundo, Deus não mais se envolvia com ele. A desco-
berta das leis da conservação (por exemplo, as leis da conservação do
movimento) parecia implicar que Deus dotara a criação de todos os
mecanismos requeridos para continuar a existir. Laplace expressou
este ponto de vista em relação com a idéia da sustentação divina das
rotações dos planetas quando disse: "Eu não preciso dessa hipótese".
Uma compreensão mais ativista da maneira como Deus age no
mundo é a de Tomás de Aquino e de estudiosos modernos influen-
ciados por ele. Vamos tratar disso a seguir.
134 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Tomismo: Deus age por meio de agentes secundários

As obras do mais importante escritor medieval, Tomás de Aquino,


fornecem pontos de vista diferentes sobre a ação de Deus no mundo.
Ele afirmava que a ação divina podia ser entendida a partir da distin-
ção entre causas primeiras e secundárias. Achava que Deus não agia
diretamente no mundo, mas por meio de causas secundárias.
Essa doutrina foi explicada por meio do conceito de analogia.
Suponhamos a existência de uma pianista superdotada que toca o
piano de maneira belíssima. Contudo, a qualidade de sua perfor-
mance depende da qualidade do piano à sua disposição. Se o piano
estiver desafinado, o resultado de sua apresentação será, natural-
mente, desastroso, independentemente de sua maravilhosa capaci-
dade. Em nossa analogia, a pianista seria a primeira causa e o piano
a secundária na apresentação, digamos, de um noturno de Chopin.
Mas as duas condições são necessárias. Cada uma delas desempe-
nhará seu próprio papel no concerto. A habilidade da primeira cau-
sa para alcançar o efeito desejado dependerá da causa secundário
em uso.
Aquino apela às causas secundárias para tratar de algumas di-
ficuldades relacionadas com a presença do mal no mundo. O sofri-
mento e a dor não devem ser atribuídos à ação direta de Deus, mas
à fragilidade e à fraqueza das causas secundárias por meio das quais
ele age. Deus, em outras palavras, deve ser considerado a primeira
causa. As demais agências no mundo estariam diretamente associa-
das a causas secundárias.
Para Aristóteles (de quem Aquino toma emprestadas muitas
idéias), as causas secundárias são capazes de atuar independente-
mente das primeiras. Assim, os objetos naturais seriam capazes de
agir como causas secundárias em virtude de sua própria natureza.
Este ponto de vista não era aceito pelos filósofos teístas da Idade
Média, tanto cristãos como islâmicos. Por exemplo, o notável pen-
sador islâmico al-Ghazali (1058-1111) afirmava que a natureza está
completamente sujeita a Deus e que seria impróprio falar-se de
causas secundárias autônomas. Deus era considerado a causa pri-
Ciência e filosofia da religião I 135

meira, única responsável pelo movimento das outras causas. Neste


ponto, Aquino parece-se com ele ao afirmar que Deus seria o "mo-
tor imóvel", primeira causa de todos os movimentos, sem o qual
nada teria acontecido. (Já observamos a importância desta posição
quando tratamos do argumento ex motu: ver pp. 123-124).
A interpretação teísta das causas secundárias oferece-nos a se-
guinte explicação da ação de Deus no mundo. Deus age indireta-
mente no mundo por meio de causas secundárias. Pode-se discernir
a existência de uma enorme cadeia de causalidade que remonta até
Deus como seu originante e primeiro motor de tudo o que acontece
no mundo. Contudo, Deus não age diretamente no mundo, mas
apenas por meio dessa seqüência de eventos que ele iniciou e agora
mantém.
Segundo Aquino, Deus inicia o processo que vai se desenvolver
sob sua direção. Deus, por assim dizer, delega a ação divina a agen-
tes secundários na ordem natural. Por exemplo, Deus poderá mover
a vontade humana a partir de seu interior para que pessoas enfer-
mas recebam sua assistência. Nesse caso, a ação divina é realizada
indiretamente por Deus — contudo, segundo Aquino, poderíamos
ainda falar que mesmo essa atividade foi "causada" por Deus de
maneira significativa.
O movimento conhecido pelo nome de "teologia do processo"
relaciona-se com o que estudamos, muito embora com feições radi-
calmente diferentes. Vamos estudar esse movimento a seguir.

Teologia do processo: Deus age por meio de persuasão

O pensamento centralizado na idéia de processo originou-se


nos escritos do filósofo anglo-americano Alfred North Whitehead
(1861-1947), especialmente em seu importante livro Process and
Reality (Processo e realidade), publicado em 1929. Reagindo contra
o ponto de vista mais estático do mundo assumido pela metafísica
tradicional (expresso em conceitos como "substância" e "essência"),
Whitehead concebeu a realidade como processo. O mundo, perce-
136 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

bido como um todo orgânico, mostra-se dinâmico e não estático.


Trata-se de algo que acontece. A realidade constitui-se de blocos de
construção que são "entidades reais"ou "verdadeiras ocasiões", ca-
racterizando-se por transformação, mudança e evento.
Essas "entidades" ou "ocasiões" (para empregar termos originais
de Whitehead) possuem certo grau de liberdade para se desenvol-
ver sob a influência do ambiente. É provável que possamos discernir
aqui a influência da teoria da evolução. Como o escritor Pierre
Teilhard de Chardin (ver p. 273-276), Whitehead mostra-se preocu-
pado com a idéia de desenvolvimento na criação, sujeito a certo tipo
de direção e orientação. Esse processo de desenvolvimento contras-
ta com a idéia de ordem permanente, considerado princípio essen-
cial e organizador do crescimento. Whitehead argumenta que Deus
pode ser identificado com o fundamento da ordem no interior desse
processo. Trata Deus como "entidade", mas o distingue de outras
entidades por ser ele imperecível. As demais entidades existem
por tempo determinado; Deus existe permanentemente. As enti-
dades recebem influência de duas fontes principais: entidades
anteriores e Deus.
A causalidade não faz com que as entidades sejam coagidas a
agir de modos preestabelecidos. O que está em jogo é uma questão
de influência e persuasão. As entidades influenciam-se entre si de
maneira "bipolar" — mental e fisicamente. A mesma coisa acontece
com Deus. Deus só pode agir de maneira persuasiva nos limites
do processo. Ele "observa as regras" do processo. Assim como Deus
influencia as demais entidades, ele é também influenciado por elas.
Na famosa frase de Whitehead, "Deus é um companheiro sofredor
que entende". Ele é, então, afetado pelo mundo ao mesmo tempo que
o afeta. Este aspecto do pensamento de Whitehead tem sido de-
senvolvido no contexto do debate entre ciência e religião princi-
palmente por Ian G. Barbour, cujo pensamento estudaremos mais
adiante (p. 258-260).
O pensamento do processo redefine, assim, a onipotência de
Deus em termos de persuasão ou influência no âmbito geral do
processo do mundo. Trata-se de importante desenvolvimento para
Ciência e filosofia da religião 137

explicar o relacionamento desta compreensão de Deus com o pro-


blema do mal. Enquanto o pensamento tradicional moral procura
entender o mal moral por meio da noção de livre-arbítrio, argu-
mentando que os seres humanos são livres para desobedecer a
Deus ou ignorá-lo, a teologia do processo também ensina que os
componentes individuais do mundo são livres, mas para ignorar
as iniciativas divinas para influenciá-los ou persuadi-los. Entre-
tanto, não são obrigados a responder aos apelos divinos. Deus,
dessa maneira, é absolvido da responsabilidade tanto do mal moral
como do mal natural.
A tradicional alegação do livre-arbítrio para defender Deus em
face do mal é persuasiva (embora se conteste o alcance dessa persua-
são) em relação ao mal moral — em outras palavras, ao mal resul-
tante de atos e decisões humanas. Mas o que dizer a respeito do mal
natural? Como entender nessa perspectiva terremotos, fomes e
outros desastres naturais? Os seguidores da teologia do processo
dizem que Deus não pode forçar a natureza a obedecer a sua von-
tade ou a seguir os propósitos que ele estabeleceu para ela. Ele pode
apenas procurar influenciar o desenvolvimento do processo a partir
de seu interior por meio de persuasão ou atração. Todas as entida-
des gozam de certo grau de liberdade e criatividade que Deus não
pode ignorar.
Se por um lado a compreensão da natureza persuasiva da ativi-
dade de Deus tem méritos óbvios, especialmente na maneira como
responde ao problema do mal (afirmando que Deus não o controla
e que, portanto, não pode ser culpado por ele), por outro os críticos
da teologia do processo acham que se paga um preço demasiada-
mente alto para isso. Parece-lhes que se abandona aí a idéia tradi-
cional da transcendência de Deus, reinterpretada radicalmente em
termos do primado e da permanência de Deus na qualidade de
entidade dentro do processo. Em outras palavras, a transcendência
divina passa a ser entendida não mais do que a superação de Deus
em relação às demais entidades.
As idéias básicas de Whitehead foram desenvolvidas por diver-
sos pensadores, como Charles Hartshorne (1897-2000), Schubert
138 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Ogden (1928-) e John B. Cobb (1925-). Hartshorne modificou a noção


de Deus defendida por Whitehead de diversas maneiras, talvez mais
significativamente ao sugerir que o Deus do processo poderia ser
pensado mais como pessoa do que entidade. Com isso tentava su-
perar uma das mais veementes críticas ao pensamento do processo:
que ele comprometia a idéia da perfeição divina. Se Deus é perfeito,
como poderia mudar? Não significava a mudança a admissão da imper-
feição? Hartshorne redefine a perfeição em termos da receptividade
à mudança sem comprometimento da superioridade de Deus. Em
outras palavras, a capacidade de Deus de se deixar influenciar por
outras entidades não significa que Deus se reduza a seu nível. Deus
ultrapassa todas as demais entidades mesmo quando se deixa afetar
por elas.
A obra de Charles Hartshorne Man 's Vision of God (A visão hu-
mana de Deus), de 1941, inclui pormenorizada comparação da vi-
são "clássica" de Deus com a "neoclássica". Chama-se de "clássica"
a maneira de pensar sobre Deus encontrada nos escritos de Tomás
de Aquino e de "neoclássica" a desenvolvida por Hartshorne. Por
causa da importância de Hartshorne para a formulação das idéias
da teologia do processo, mostraremos num quadro comparativo suas
posições em contraste com as de Aquino.
Embora Hartshorne não empregue um vocabulário plenamente
desenvolvido comum ao pensamento do processo, coisa que só acon-
teceu depois da Segunda Guerra Mundial, pode-se perceber que suas
idéias estão firmemente estabelecidas em sua obra mais antiga.
Veremos que a teologia do processo não tem dificuldade algu-
ma para falar da "ação de Deus no mundo", oferecendo a moldura
dentro da qual essa atividade pode ser descrita em termos de "influ-
ência no interior do processo". Contudo, o método específico ado-
tado provoca uma certa ansiedade nos seguidores do teísmo tradi-
cional, que critica a noção de Deus associada à teologia do processo.
Para os teístas tradicionais o Deus da teologia do processo parece
ter muito pouca relação com o Deus descrito no Antigo e no Novo
Testamentos.
Ciência e filosofia da religião 139

Teologia Clássica Teologia do Processo

Ponto de vista clássico


Charles Hartshorne
(p. ex.: Tomás de Aquino).

A criação se dá ex niklo por um ato Tanto Deus como a criação existem


livre. Não há razão necessária para necessariamente. O mundo não
nada a não ser para a existência de depende de nenhuma ação de Deus
Deus. A criação depende da decisão para a sua existência; embora os
divina de criar; Deus poderia ter detalhes mais finos da natureza da
decidido não criar nada. sua existência sejam questão de
contingência.

Deus tem poder para fazer tudo o


Deus é um agente entre outros no
que quer, desde que uma
mundo e tem muito mais poder do
contradição lógica não esteja
que qualquer outro. Esse poder não é
envolvida (p. ex. Deus não pode criar
absoluto, mas limitado.
um triângulo quadrado).

Deus é incorpóreo e radicalmente O mundo deve ser visto como o


distinto da ordem criada. corpo de Deus.

Deus está fora do tempo e não está Deus está envolvido na ordem
envolvido com a ordem temporal. temporal. Deus está continuamente
Ademais, é impróprio pensar que realizando sínteses mais ricas de
Deus possa "mudar" ou ser afetado experiência nesse envolvimento.
por algum envolvimento na nossa
experiência do mundo.

Deus existe num estado de absoluta Em qualquer tempo, Deus é mais


perfeição, e não pode ser pensado perfeito que qualquer outro agente
como existindo num estado de maior no mundo. No entanto, Deus é capaz
perfeição. de alcançar níveis mais altos de
perfeição num estágio posterior de
desenvolvimento por causa do
envolvimento de Deus no mundo.

Leituras recomendadas

BEHRENS, G. Peirce's "Third Argument" for the Reality of God and Its
Relation to Scientific Inquiry. Journal of Religion 75 (1995) 200-218.
BOWLER, E J. Darwinism and the Argument from Design: Suggestions
for a Reevaluation. Journal of the History of Biology 10 (1977) 29-43.
140 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

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1979.
. The Kalam Cosmological Argument and the Hypothesis
of a Quiescent Universe. Faith and Philosophy 8 (1991) 104-108.
DONNELL, J. J. O. Trinity and Temporality: The Christian Doctrine of
God in the Light of Process Thought and the Theology of Hope.
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DOORE, G. The Argument from Design: Some Better Reasons for
Agreeing with Hume. Religious Studies 16 (1980) 145-161.
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PRIGOGINE, I., SIENGERS, I. Order out of Chaos: Man's New Dialo-
gue with Nature. New York, Bantam Books, 1984.
ROWE, W. L. The Cosmological Argument. Princeton, NJ, Princeton
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Ciência e filosofia da religião 1 141

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In: LESLIE, J. (org.). Physical Cosmology and Philosophy. New York,
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WYKSTRA, S. J. The Humean Objection to Evidential Arguments from
Suffering: On Avoiding the Evils of "Appearance". International Journal
for Teologia do Processo
Philosophy of Religion 16 (1984) 73-93.
WYNN, M. Some Reflections on Richard Swinburne's Argument from
Design. Religious Studies 29 (1993) 325-335.
Criação e ciências

A IDÉIA DE QUE o mundo teria sido criado é de fundamental


importância para muitas religiões, especialmente para o cristianismo
e o judaísmo. Já examinamos a relevância desse tema em relação com
os argumentos em favor da existência de Deus (ver pp. 123-132). As-
sim, valerá a pena explorar um pouco mais o conceito de criação e sua
potencial significação para o tema. Este capítulo destina-se a exami-
nar os contornos básicos da idéia religiosa de "criação" a partir, espe-
cialmente, das afirmações cristãs, que muito influenciaram no desen-
volvimento das ciências naturais na cultura ocidental.
A idéia de que o mundo foi criado é muito difundida, e até
mesmo fundamental, por meio de diferentes expressões nas várias
religiões do mundo. Entre as religiões do antigo Oriente Próximo
esse tema relacionou-se com o conflito entre a divindade criadora
e as forças do caos. A forma predominante da doutrina da criação
relaciona-se com o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Nas se-
ções seguintes vamos demonstrar as feições básicas dessa doutri-
na a partir da perspectiva cristã e explorar suas implicações para o
tema "ciência e religião".

Alguns temas relacionados com o conceito de criação

O tema do "Deus criador" é extremamente importante no Anti-


go Testamento. Talvez uma de suas mais significativas afirmações seja
144 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

que a natureza não é divina. A narrativa da criação no Gênesis acentua


a idéia de que Deus criou a lua, o sol e as estrelas. Nem sempre se tem
dado atenção a essa afirmação. No mundo antigo essas entidades
celestes eram adoradas como se fossem deuses. Ao asseverar que foram
criadas por Deus, o Antigo Testamento insistia em que eram subordi-
nadas ao único Deus e em que nada tinham de divino.
Em geral, a atenção é dirigida às narrativas da criação encontra-
das nos dois primeiros capítulos do Gênesis, com os quais se abre o
cânon do Antigo Testamento. Contudo, não devemos ignorar que o
tema está profundamente presente na literatura sapiencial e profé-
tica do Antigo Testamento. Por exemplo, Jó 38,1-42,6 registra a com-
preensão inquestionavelmente mais abrangente do Deus criador e
sustentador do mundo. É possível discernir dois contextos distintos,
embora relacionados entre si, nos quais se encontra a noção do "Deus
criador". O primeiro aparece nos contextos que refletem o louvor a
Deus no culto israelita, tanto individual como comunitário. O se-
gundo mostra que o Deus que criou o mundo é também o mesmo
que libertou o seu povo do cativeiro e que continua a sustentá-lo até
o presente.
A idéia de "criação ordenada" no Antigo Testamento e a manei-
ra como o tema da "ordem" é tratado em relação com os fundamen-
tos cosmológicos e neles justificado é de importância particular para
nosso estudo. Muitos estudiosos têm acentuado a maneira como o
Antigo Testamento retrata a criação em termos de compromisso com
a luta contra as forças do caos e a vitória sobre elas. Esse "estabele-
cimento da ordem" é geralmente representado de duas formas:

(1) A criação é a imposição da ordem sobre o caos sem forma.


Esse modelo relaciona-se especialmente com a imagem do
oleiro moldando o barro para fazer estruturas ordenadas e
reconhecíveis (por exemplo, Gênesis 2,7; Isaías 29,16; 45,9;
Jeremias 18,1-6).
(2) A criação entra em conflito com diversas forças caóticas,
descritas em geral como dragão ou outro monstro (diversa-
mente nomeados "Behemoth", "Leviatã", "Nahar", "Raab",
i

Criação e ciências 1 145

"Tanim"ou "Iam"), que precisam ser vencidos Gó 3,8; 7,12;


9,13; 40,14-32; Salmo 74,13-14; 148,7; Isaías 27,1; 51,9-10;
Zacarias 10,11).

Reconhecemos certos paralelos entre as narrativas do Antigo


Testamento sobre o envolvimento de Deus contra as forças do caos
e a mitologia ugarítica e canaanita. Contudo, há também sérias di-
ferenças em pontos importantes, principalmente quando o Antigo
Testamento insiste na afirmação de que as forças do caos não são
divinas. A criação não deve ser entendida como guerra entre diver-
sos deuses que disputaram o governo do universo (futuro), mas como
o domínio divino do caos para a ordenação do mundo.
O conceito de "ordem do mundo" liga-se intimamente aos concei-
tos de "retidão" e "verdade", tão caros aos escritores do Antigo Testa-
mento e ao pensamento do antigo Oriente Próximo. Apesar do perigo
das generalizações, diremos que o conceito de "retidão" relaciona-se
com a conformidade ética à ordem do mundo estabelecida por Deus,
e o de "verdade" com o seu equivalente metafísico. O tema da "confor-
midade com a ordem do mundo" está na base dos dois conceitos.
O tema vai ser desenvolvido depois na tradição teológica do
Antigo Testamento e pode ser visto claramente nos escritos do teó-
logo do século XII Anselmo de Cantuária. Para Anselmo, o conceito
de "retidão" corresponde à ordenação do mundo conforme os desígnios
de Deus. O conceito de "verdade" seria considerado metafísico, en-
quanto o de retidão, moral. O tema da "ordem natural" também apa-
rece nos escritos do teólogo reformador João Calvino. Foi muito impor-
tante para a formação de sua atitude positiva para o estudo atento da
natureza como meio eficaz de aprendizado a respeito de Deus.
Agora que já expusemos rapidamente alguns aspectos do conceito
de criação, particularmente na tradição judaica e na cristã, passaremos
à consideração de alguns aspectos mais teológicos do tema.

Criação: breve análise teológica

Como vimos, a doutrina do Deus criador fundamenta-se firme-


mente no Antigo Testamento (por exemplo, Gênesis 1 e 2). Na história
146 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

da teologia, a doutrina do Deus criador depende quase sempre da


autoridade do Antigo Testamento. Sua constante importância para o
cristianismo baseia-se no fato de que o Deus sobre o qual fala é o
mesmo que se revela no Novo Testamento. O Deus criador e o reden-
tor são o mesmo único Deus. O gnosticismo, que tanta influência
exerceu no século II de nossa era, montou um vigoroso ataque contra
a autoridade do Antigo Testamento e contra a idéia do Deus criador
do mundo. Examinaremos o significado dessa disputa.
O gnosticismo, na maioria de suas manifestações, fazia clara
distinção entre o Deus redentor da humanidade e a divindade até
certo ponto inferior (denominada em geral "demiurgo") que criara
o mundo no princípio. Para os gnósticos, o Antigo Testamento ocu -
pava-se de uma divindade menor enquanto o Novo estava preocu-
pado apenas com o Deus redentor. Para os cristãos a fé no Deus
criador ligava-se diretamente à noção de autoridade do Antigo Tes-
tamento, desde o começo. Ireneu de Lião foi um dos primeiros e
mais importantes teólogos a tratar do assunto.
O debate centralizava-se na relação entre a criação e o nada:
deveria ela ser considerada ex nihilo, isto é, originada a partir do
nada? Em um de seus diálogos, o Timeu, Platão desenvolveu a idéia
de que o mundo fora formado de matéria preexistente. Os gnósticos
adotaram essa explicação, mais tarde também adotada por alguns
pensadores cristãos, como, por exemplo, Teófilo de Antioquia e
Justino Mártir, que professavam a creça na matéria preexistente ao
ato da criação do mundo. Em outras palavras, a criação não teria se
dado ex nihilo, pois teria sido ato de construção a partir de material
disponível, como, por exemplo, se constrói um iglu com gelo ou
uma casa com pedras. O mal teria entrado no mundo por meio dessa
matéria preexistente, intratável e disforme. As opções deixadas para
a obra divina da criação teriam sido, assim, limitadas pela qualidade
pobre da matéria disponível. Por isso se deveria atribuir a presença
do mal e dos defeitos no mundo não a Deus, mas às deficiências do
material com o qual ele o construiu.
O conflito com o gnosticismo forçou os cristãos a reconsiderar
essa questão. Em primeiro lugar, a idéia da criação a partir de ma-
I

Criação e ciências 1 147

terial preexistente era desacreditada por causa das associações que


tinha com o gnosticismo; além disso, era questionada pelas inter-
pretações cada vez mais sofisticadas da leitura das narrativas da
criação no Antigo Testamento. Estudiosos como Teófilo de Antioquia
insistiam na afirmação da doutrina da criação ex nihilo, fazendo que
ela ganhasse ascendência a partir do final do século II. Esta acabou
por tornar-se doutrina oficial da Igreja.
Thomas F. Torrance examinou o impacto da rejeição do gnos-
ticismo pela Igreja primitiva sobre o desenvolvimento das ciências
naturais e ressaltou a importância da afirmação da bondade da cria-
ção, que "estabelece a realidade do mundo contingente e empírico e
rejeita as antigas concepções helênica e oriental segundo as quais a
realidade só era alcançada mediante a transcendência do contingen-
te". A tradição cristã primitiva afirmava que a ordem natural, derivada
diretamente de Deus, era boa, racional e ordenada, contra o ponto de
vista de que seria caótica, irracional e inerentemente má (conceitos
geralmente inter-relacionados).
Eliminava-se assim o dualismo radical entre Deus e criação em
favor da afirmação de que a verdade, a bondade e a beleza de Deus
(a tríade platônica que tanto influenciou os escritores da época)
podiam ser discernidas na ordem natural porque essa ordem fora
estabelecida pelo próprio Deus. Por exemplo, Orígenes afirmava que
a criação do mundo por Deus estruturara a ordem natural de tal
maneira que podia ser compreendida pela mente humana ao lhe
conferir racionalidade e ordem intrínsecas ao mesmo tempo deriva-
das da natureza divina e a refletindo.

Três modelos de criação

Por volta do século V de nossa era os pensadores cristãos con-


cebiam três modelos da ação criadora de Deus. Vamos examiná-los
a seguir para identificar sua relevância para o nosso tema.
148 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Emanação

Este termo foi amplamente utilizado pelos escritores cristãos


primitivos para esclarecer a relação de Deus com o mundo. Embora
a expressão não tenha sido empregada por Platão nem por Plotino,
diversos escritores patrísticos simpatizantes do pensamento platô-
nico acharam que era um meio apropriado e conveniente para arti-
cular suas posições. A imagem que domina essa forma de pensar é
a da luz ou do calor irradiados pelo sol, ou do fogo produzido por
nós. Tal imagem da criação (indicada no Credo Niceno pela frase
"luz de luz") sugere que a criação do mundo pode ser vista como
emanação da energia criativa de Deus. Assim como a luz se origina
no sol e reflete sua natureza, a ordem criada vem de Deus e expressa
a sua natureza divina. A partir desse modelo, pode-se pensar na
conexão natural ou orgânica entre Deus e criação.
Contudo, o modelo tem suas falhas. Observemos duas delas. Em
primeiro lugar, a imagem da luz que vem do sol ou do calor do fogo
pressupõe certa forma de emanação involuntária sem nenhuma de-
cisão consciente de criar. A tradição cristã tem consistentemente afir-
mado que o ato da criação depende da decisão prévia de Deus de
criar, coisa que esse modelo não consegue expressar adequadamen-
te. Daí se percebe logo a segunda fraqueza relacionada com a natu-
reza impessoal do modelo. Ele dificilmente carregaria a idéia do Deus
pessoal que expressa sua personalidade tanto no ato da criação como
no que veio depois. Contudo, o modelo articula a íntima conexão
entre criador e criatura, sugerindo que algo da identidade e da na-
tureza do criador pode ser encontrado na criação. Assim, a beleza de
Deus — tema extremamente importante na teologia medieval e
retomado mais tarde pela teologia de Hans Urs von Balthasar — se
refletiria na natureza criada.

Construção

Muitas passagens bíblicas retratam Deus como construtor que


deliberadamente edificou o mundo (por exemplo, Salmo 127,1). Essa
Criação e ciências 1 149

poderosa imagem transmite propósito, planejamento e intenção


deliberada de criar. Ela é importante porque chama a atenção tanto
para o criador como para a criação. Além de acentuar a habilidade
do criador, também dá lugar à apreciação da beleza e da ordem pre-
sentes na criação, tanto em si como em testemunho da criatividade
e cuidado do criador.
Contudo, a imagem carrega consigo certa deficiência já exami-
nada quando citamos o Timeu, de Platão. Ela pressupõe a matéria
preexistente. Sugere que se está moldando e formando a partir de
algo que já existe — idéia que, como já vimos, cria certa tensão com
a doutrina da criação ex nihilo. A imagem do Deus construtor pres-
supõe a confecção do mundo a partir de material já existente. É,
naturalmente, defeituosa. Contudo, apesar dessa pequena dificul-
dade, o modelo expressa a idéia de que o caráter do criador mostra-se
de certa maneira no mundo natural assim como o caráter do artista se
comunica em sua obra ou nela se encarna. Em particular, esse modelo
afirma a noção de "organização" — isto é, a imposição ou concessão
de coerência ou de estrutura à matéria em questão. A complexa noção
de "criação" inclui, certamente, o tema fundamental da ordem —
noção especialmente presente nas narrativas da criação do Antigo
Testamento.

Expressão artística

Muitos escritores cristãos de vários períodos da história da Igre-


ja falaram a respeito da criação como se fosse uma "artesania de
Deus", comparando-a a uma obra de arte, bela em si mesma e, ao
mesmo tempo, expressando a personalidade de seu criador. O mo-
delo da criação como "expressão artística" do Deus criador foi muito
bem tratado nos escritos do teólogo norte-americano do século XVIII
Jonathan Edwards, como veremos a seguir.
Trata-se de imagem profundamente útil porque suplementa as
deficiências dos dois modelos estudados anteriormente representa-
das por seu caráter impessoal. A imagem do Deus artista transmite
150 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

a idéia de que na criação o criador expressa pessoalmente alguma


coisa bela. Não obstante, podemos notar nesse modelo algumas
fraquezas potenciais: por exemplo, ele pode facilmente retomar a
idéia da criação a partir de matéria preexistente, como no caso do
escultor que faz sua estátua a partir de um bloco de pedra já existen-
te. Por outro lado, o modelo oferece-nos ao menos a possibilidade
de se pensar na criação a partir do nada, como no caso do escritor
que cria seu romance ou do compositor que inventa melodias e
harmonias. Além disso, incentiva-nos a procurar ver a auto-expres-
são de Deus na criação, reforçando a credibilidade da teologia natu-
ral (ver pp. 171-179). Por fim, existe clara relação entre o conceito da
criação como "expressão artística" e o conceito altamente significa-
tivo de "beleza".

Criação e tempo

Um dos mais relevantes debates na teologia cristã relacionado


com o nosso estudo acha-se no complexo tema da relação da cria-
ção com o tempo. Já examinamos o uso da imagem de "emanação"
no pensamento cristão primitivo a respeito da natureza da criação,
e sua origem platônica. Agostinho de Hipona foi um dos mais im-
portantes críticos desse ponto de vista. Ele achava que essa posição
pressupunha ou envolvia a idéia de mudança na substância divina.
Para defender o que lhe parecia parte integral da doutrina da cria-
ção, Agostinho acreditava que Deus não poderia ter realizado a criação
num determinado momento do tempo, como se existisse algum
"tempo" antes da criação. Para ele, o "tempo" deveria ser considera-
do um dos aspectos da ordem criada, contrastando-o com a ausên-
cia de tempo, que seria a feição essencial da "eternidade". Esta dou-
trina tem enormes conseqüências para a compreensão da natureza
da história e especialmente da "memória".
A noção de "tempo criado" pode ser vista de maneira talvez mais
clara nas reflexões de Agostinho em suas Confissões, que são um
longo solilóquio em forma de oração a Deus:
1

Criação e ciências 1 151

Tu fizeste o tempo. O tempo não poderia correr antes de ter sido feito
por ti. Mas, se o tempo não existia antes dos céus e da terra, por que
as pessoas perguntam o que estavas, então, fazendo? Mas não se pode
falar de "então" quando não havia tempo [...] Não é no tempo que tu
precedes os tempos. De outra forma tu não precederias todos os tem-
pos. Na sublimidade da eternidade que está sempre no presente, tu
estás antes de todas as coisas passadas e transcendes todas as coisas
futuras, porque elas ainda terão de acontecer, e quando isso se dá elas
se tornam passado l...1 Tu criaste todos os tempos e tu existes antes de
todos os tempos. Nem se pode falar de algum tempo quando o tempo
não existia. Portanto, não havia tempo quando tu nada fazias, porque
tu fizeste o próprio tempo.

Agostinho fala assim da criação do tempo (ou "criação com o


tempo"), e não de criação no tempo. Não existe nenhum conceito
de um período de tempo antes da criação, nem de um período in-
finitamente estendido de tempo que corresponderia à "eternidade".
A eternidade está fora do tempo. O tempo é um aspecto da ordem
criada. Quando se diz que t = O está se falando da origem não ape-
nas da criação mas também do tempo.
As idéias de Agostinho têm se tornado populares e plausíveis à
luz das novas descobertas da cosmologia moderna. Por exemplo, con-
sideremos o seguinte comentário de Paul Davies sobre o assunto:
Muitos perguntam: quando ocorreu o big bang? O big bang não ocorreu
em algum ponto do espaço. O espaço passou a existir depois do big
bang. A mesma dificuldade aparece com esta outra pergunta: o que
aconteceu antes do big bang? A resposta é: não havia "antes". O tempo
também começou com o big bang. Como vimos, Santo Agostinho há
muito tempo proclamou que o mundo foi feito com o tempo e não no
tempo, e esta é precisamente a posição científica moderna.

Não pretendo entrar no mérito de questões específicas desse


debate cosmológico. Em vez disso, quero observar que as novas
orientações do pensamento cosmológico podem estimular releituras
152 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

positivas e críticas do pensamento cristão, capazes de nos levar à


descoberta de que já existem recursos relevantes e apropriados para
novos debates científicos.

Criação e ecologia

Vamos considerar agora um tema muito importante: a questão


do relacionamento da doutrina da criação com a exploração da na-
tureza. Em 1967, Lynn White publicou um influente artigo no qual
afirmava que o cristianismo era culpado pelo surgimento da crise
ecológica por causa do uso que fazia do conceito de "imagem de
Deus", encontrado na narrativa da criação no livro do Gênesis (Gn
1,26-27). Segundo White, essa "imagem" estava sendo usada como
pretexto para justificar a exploração humana dos recursos do mun-
do. O livro do Gênesis, dizia o autor, legitimava a noção de domina-
ção humana sobre a natureza e incentivava a sua exploração. Apesar
de sua superficialidade histórica e teológica (ou talvez por causa
disso), o escrito produziu profundo impacto na formação de atitu-
des científicas em relação ao cristianismo em particular e à religião
em geral.
Com o passar do tempo, o artigo de White começou a ser ava-
liado de maneira mais crítica. Percebe-se agora que seu argumento
era falso. A leitura atenta do Gênesis nos faz ver que em vez de
considerar o ser humano "senhor da criação" ele admite ao contrá-
rio que "a humanidade é guardiã da criação e parceira de Deus nessa
obra". Longe de ser inimiga da ecologia, a doutrina da criação afir-
ma a importância da responsabilidade humana em relação ao meio
ambiente. Num ensaio amplamente difundido, o conhecido estudio-
so canadense Douglas John Hall mostra que o conceito bíblico da
"dominação" deve ser entendido especificamente em termos de "in-
tendência", não importando o peso que essa palavra possa ter nos
contextos seculares. Para dizer a mesma coisa de maneira mais sim-
ples: o Antigo Testamento vê a criação como posse da humanidade;
essa afirmação, no entanto, quer dizer que a criação foi confiada aos
Criação e ciências 1 153

nossos cuidados. Tornamo-nos, pois, responsáveis por seu cuidado


e sua manutenção. Estudiosos pertencentes a outras religiões assu-
mem posições semelhantes, com pequenas variantes. A Declaração
de Assis (1986) sobre a importância ecológica da religião pode ser
considerada marco do reconhecimento desse importante ponto.
A doutrina da criação pode, assim, funcionar como fundamento
de uma ética sensivelmente ecológica. Em recente estudo, Calvin B.
DeWitt mostrou a presença de quatro princípios ecológicos funda-
mentais nas narrativas bíblicas.

(1) O "princípio da conservação da terra": assim como o cria-


dor cuida da humanidade e a mantém, a humanidade, por
sua vez, deve cuidar da criação do criador e mantê-la.
(2) O "princípio do sábado": deve-se permitir que a criação
goze de períodos de recuperação em relação ao uso huma-
no de seus recursos.
(3) O princípio "frutífero": a fecundidade da criação deve ser
aproveitada e não destruída.
(4) O "princípio da realização e dos limites": a humanidade
precisa reconhecer seus limites na relação com a criação,
respeitando-os.

A contribuição do teólogo alemão Jürgen Moltmann (nascido


em 1926) transparece na sua preocupação com a aplicação rigorosa
da teologia cristã a questões sociais, políticas e ambientais. Por exem-
plo, em seu livro de 1985 God in Creation (Deus na criação), Moltmann
argumenta que a exploração do mundo reflete a ascensão da
tecnologia, e parece ter muito pouco a ver com os ensinos especifi-
camente cristãos. Além disso, mostra como Deus habita em sua cria-
ção por meio do Espírito Santo e como os vandalismos praticados
no mundo representam uma agressão a Deus. A partir dessa análi-
se, Moltmann desenvolve uma rigorosa defesa trinitária da ética
ecológica caracteristicamente cristã. Sua contribuição é tão impor-
tante que deve ser considerada com mais atenção.
154 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

O desejo de controle, talvez percebido com mais clareza no tema


da "vontade de poder" de Nietzsche, tem sido tema fundamental da
modernidade (esse termo refere-se em geral ao espírito dominante
no início do século XX). A humanidade, assim, precisaria apenas ter
vontade para alcançar sua autodefinição autônoma; não deveria, pois,
aceitar o que lhe havia sido transmitido da natureza ou da tradição.
Em princípio, todas as coisas poderiam ser manipuladas e controla-
das. O surgimento da tecnologia foi recebido como instrumento
capaz de dar à humanidade o controle do meio ambiente, sem ne-
cessidade de respeitar os limites naturais.
Esse desejo de dominação gerou reações às crenças religiosas
tradicionais quase sempre voltadas para a necessidade de respeito
aos "dados" da ordem criada. Os escritos de Ludwig Feuerbach e
Karl Marx , entre 1830 e 1840 aproximadamente, foram diretamente
relevantes para o tema da deificação da humanidade. Para Feuerbach,
a noção de "Deus" procede de erros na análise humana da experi-
ência. Segundo esse autor, tal experiência tem sido erroneamente
considerada "experiência de Deus". Ele acreditava que, em última
análise, a humanidade é que seria "Deus" e não certa realidade ex-
terna objetiva. Marx desenvolveu o tema de Feuerbach. Considera-
va que as origens da experiência religiosa interpretada como "expe-
riência de Deus" encontram-se na alienação socioeconômica.
Quando o mundo for transformado, a experiência humana que
chamamos de "Deus" desaparecerá. A transformação socioeconômica
da sociedade permitirá que a religião seja eliminada juntamente com
a eliminação de suas causas. O desaparecimento da religião, por-
tanto, está ao alcance da humanidade. Com isso o sonho de Prome-
teu será enfim realizado, por meio da atividade revolucionária.
O tema vital "do direito humano ao exercício de sua superiori-
dade" relaciona-se intimamente com o surgimento da tecnologia no
período moderno. Numa análise profundamente inteligente do papel
social da tecnologia, o teólogo e filósofo católico italiano Romano
Guardini (1885-1968) mostra que a ligação fundamental entre na-
tureza e cultura foi cortada como resultado do surgimento das
"máquinas". A humanidade preparou-se, no passado, para ver na
Criação e ciências 155

natureza a expressão da vontade, inteligência e propósito "vinda de


fora de nós". Contudo, a tecnologia criou possibilidades para se mudar
a natureza, transformando-a no que não era sua intenção original.
A tecnologia oferece à humanidade a capacidade de impor sua pró-
pria autoridade sobre a natureza, redirecionando-a para seus pró-
prios fins. Se no passado a humanidade se contentava em contem-
plar a natureza, hoje em dia ela deseja "adquirir poder para interfe-
rir nas coisas, por meio de leis formuladas racionalmente. A base e
o caráter desse domínio revelam-se em compulsão arbitrária e em
falta de respeito". A humanidade não quer mais respeitar a nature-
za; pode agora dominá-la e dirigi-la com os instrumentos da
tecnologia.
Os materiais e as forças são dominados, libertados, explodidos, altera-
dos e dirigidos à vontade. Não existe sentimento pelo que é organica-
mente possível ou tolerado em sentido algum. Nenhuma compreen-
são das proporções naturais determina o que se pode fazer. O alvo da
racionalidade construída e arbitrariamente fixada reina supremo. Na
base de fórmulas conhecidas, as forças e os materiais são acondiciona-
dos em máquinas. As máquinas são fórmulas de ferro destinadas a
transformar a matéria segundo fins desejados.

Essa capacidade de dominar e controlar a natureza acabará ine-


vitavelmente, pelo menos segundo alguns analistas culturais, na
deificação da tecnologia, resultando daí uma cultura que "buscará
sua autorização na tecnologia, encontrará satisfação nela e receberá
ordens dela" (Postman). Como Moltmann corretamente observou,
dificilmente se poderia culpar o cristianismo ou qualquer outra re-
ligião por esse estado de coisas.
O debate ecológico exemplifica claramente a discussão moder-
na na qual a ciência e a religião interagem exigindo compreensão
adequada da história das tradições religiosas e de suas implicações.
O artigo de Lynn White exerceu influência desproporcional a seu
valor e sua confiabilidade; este debate precisa de contribuições que
evitem mera retórica, generalizações e afirmações simplistas, tão
freqüentes no passado.
156 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Depois do exame de alguns modelos clássicos da doutrina da


criação na tradição cristã, estamos agora preparados para avaliar seu
potencial para o tema das relações entre religião e ciência. É o que
faremos a seguir sob a égide de dois temas gerais: criação e ordem,
criação e beleza.

Criação e leis da natureza

O tema da "regularidade na natureza" é considerado essencial


para o estudo das ciências naturais. Lembremos o que disse o físico
moderno Heinz R. Pagels: "o Deus dos físicos é a ordem cósmica".
Acredita-se que as ciências naturais se fundamentam na percepção
da regularidade explicável do mundo. Em outras palavras, existe algo a
respeito do mundo — e da natureza da mente humana — que nos
leva a discernir a presença de modelos na natureza que podem ser
explicados, desenvolvidos e avaliados. Um dos mais importantes
paralelos entre as ciências naturais e a religião é a convicção funda-
mental de que o mundo se caracteriza por regularidade e inteligi-
bilidade. A percepção disso é de enorme interesse tanto para os
estudos científicos como para os religiosos. Paul Davies afirma que,
"na Europa renascentista, a justificação para o que hoje se chama de
metodologia científica era a crença no Deus racional cuja ordem
criada podia ser discernida a partir de cuidadoso estudo da natureza".
Tal enunciado deriva diretamente da doutrina cristã da criação
e reflete profundamente a cosmovisão religiosa dos períodos medie-
val e renascentista, quando se acreditava que as mais "seculariza-
das" das atividades — fossem econômicas, políticas ou científicas —
achavam-se saturadas de temas teológicos cristãos. A afirmação
básica das ciências naturais de que Deus criara o mundo ordenado
à sua "imagem e semelhança", discernível pela humanidade,
permeava os escritos do período, implícita ou explicitamente.
Já vimos como o tema da "ordem" era importante para o Antigo
Testamento, e observamos de passagem como ele se incorporou
depois na reflexão teológica. Em vista de sua importância para o
Criação e ciências 1 157

nosso tema, vamos considerá-lo pormenorizadamente. Encontra-


se na obra de Oliver O'Donovan Resurrection and Moral Order (Res-
surreição e ordem moral), de 1986, um dos mais sofisticados trata-
mentos da centralidade do conceito de ordem na teologia cristã e do
raciocínio sobre moral. Essa obra é considerada atualmente um belo
exemplo clássico dos estudos sobre esse tema. Nela, O'Donovan,
professor de Teologia Moral e Pastoral na Universidade de Oxford,
estabelece uma íntima conexão entre as noções teológicas de "cri-
ação" e "ordem":
Devemos entender a "criação" não apenas no que se refere à matéria-
prima a partir da qual o mundo, como o conhecemos, foi composto,
mas como a ordem e coerência na qual foi composto [...] Quando di-
zemos que este mundo foi "criado", já estamos falando de ordem. Nas
primeiras palavras do Credo, antes de traçarmos um resumo da ordem
criada com a frase "céus e terra", declaramos simplesmente: "Creio em
Deus... criador". Ao assim proceder estamos afirmando que o mundo
é uma totalidade organizada. Em virtude de haver um criador, há tam-
bém uma criação ordenada em relação a ele. Trata-se de um mundo
que existe apenas como sua criação, de tal maneira que sua existência
indica a existência de Deus.

Dessa análise decorrem três importantes temas para o nosso


estudo:

(1) O conceito de criação centraliza-se no estabelecimento de


ordem e coerência no mundo.
(2) Essa ordem e essa coerência no mundo podem ser consi-
deradas expressões ou reflexos da natureza do próprio Deus.
(3) A criação, então, pode ser considerada indicação da exis-
tência de Deus, uma vez que a percepção dessa ordem e
dessa coerência nos leva a entender aquele que as criou
dessa maneira.

O'Donovan rejeita a idéia, em geral associada ao filósofo esco-


cês David Hume, de que essa "organização" pode ser considerada,
158 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

de fato, criação da mente humana e não alguma realidade objetiva.


Para Hume, a "ordem" da criação não passou da invenção de algu-
ma mente humana que gostava de ordem. Na verdade, essa ordem
não existiria na natureza. Tratar-se-ia de construção humana e não
de feição intrínseca do mundo natural.
Quando falamos da ordem que Deus criador e redentor estabeleceu no
universo, não estamos pensando apenas em nossa capacidade de orga-
nizar o que vemos. Naturalmente, podemos ordenar o que vemos, pois
somos agentes livres e capazes de interpretação criativa do mundo ao
nosso redor. Mas a ordem que estabelecemos depende de Deus, que
estabelece as condições para tal liberdade. Trata-se de um processo livre
porque podemos responder a essa ordem dada ou ignorá-la, agir em
conformidade com ela ou contra ela, em obediência ou em rebelião.

A compreensão do conceito cristão da criação liga-se, como já


vimos, ao conceito de ordem. Já examinamos a noção de regularida-
de no mundo quando a relacionamos com o conceito de "criação
como ordem" (pp. 144-145). Stephen Hawking, entre muitos outros,
mostrou que a existência de Deus é fácil e naturalmente
correlacionada com a organização e a regularidade do mundo. "Se-
ria completamente consistente com tudo o que sabemos dizer que
existe um ser responsável pelas leis da física." O conhecido físico
teórico Charles A. Coulson demonstrou a importância da "convic-
ção religiosa" para explicar "a afirmação improvável da existência de
ordem e constância na natureza". Estudaremos a seguir o significa-
do das "leis da natureza", uma vez que representam maneira alta-
mente significativa de retratar (e interpretar) a ordem encontrada
no mundo.
O tema da ordem cósmica é da maior importância nos escritos
de Isaac Newton, para quem a regularidade e a previsibilidade do
mundo resultavam de sua origem criada.
O universo não apareceu "por acaso" mas se comporta de ma-
neira regular, passível de ser observada e explicada. Passou-se daí à
crença de que os sistemas correspondentes às leis do movimento de
Criação e ciências 1 159

Newton agiam de maneira predeterminada, possibilitando previ-


sões consideravelmente acuradas — ponto de vista representado
popularmente, muitas vezes, em termos da imagem do "relógio do
universo".
A expressão "leis da natureza" começou a ser empregada siste-
maticamente a partir do início do século XVIII. Concorda-se em geral
que a frase reflete a noção bastante aceita, tanto no cristianismo
ortodoxo como no deísmo, de que o mundo fora organizado por um
legislador que teria estabelecido a maneira como a criação deveria
se comportar. As "leis da natureza" eram mais do que descrição ou
sumário de feições observáveis do mundo: elas refletiam a decisão
divina a respeito do funcionamento do mundo. Com a geral secula-
rização da cultura ocidental, essa crença começou a ser abandona-
da, tanto nas comunidades científicas como fora delas. A frase "leis
da natureza" no entanto permaneceu, embora às vezes com
conotações de mera metáfora morta. No entanto, continuou a ter
profundas implicações religiosas.
Mas o que poderia significar a expressão "leis da natureza"? O
consenso geral sobre a natureza e o alcance do termo na comunidade
científica deve muito a Paul Davies. O conceito tem diversas feições:

(1) Universais. As leis da física pretendem ser válidas em todos


os lugares e épocas. Podem ser "aplicadas infalivelmente
em todos os cantos do universo e em qualquer período da
história cósmica".
(2) Absolutas. Isto é, não dependem da natureza do observador
(por exemplo, de seu nível social, gênero ou orientação se-
xual). O estado de determinado sistema pode mudar com o
tempo e se relacionar com elementos contingentes e cir-
cunstanciais, mas as leis que estabelecem correlações entre
esses estados em diferentes momentos não mudam jamais.
(3) Eternas. Fundamentam-se em estruturas matemáticas usa-
das para representar o mundo físico. A extraordinária cor-
relação entre o que chamaremos sem muito rigor de "rea-
lidade matemática" e o mundo físico observado é muito
160 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

importante (vamos retornar a este tema mais adiante).


Convém observar a esta altura de nosso estudo que todas
as leis fundamentais conhecidas têm forma matemática.
(4) Onipotentes. Nada escapa de seu alcance.

Vemos claramente que essas definições mostram enorme afini-


dade com os atributos tradicionalmente aplicados a Deus nos siste-
mas religiosos teístas, como o cristianismo por exemplo.
Por outro lado, a afirmação de Hume de que as "leis da nature-
za" são impostas sobre a natureza não tem sido considerada plausí-
vel pela comunidade científica. A regularidade, sob este ponto de
vista, não faria parte do "mundo real". Seria apenas uma construção
da mente humana. A comunidade científica é quase unânime ao
afirmar que a regularidade (incluindo a estatística) é parte intrínseca
do mundo, não, portanto, uma imposição da mente humana. Por
exemplo, consideremos os comentários de Paul Davies, aceitos
amplamente pelos cientistas naturais:
É importante entender que as regularidades da natureza são reais. [...]
Considero absurdas as sugestões de que as leis da natureza sejam pro-
jeções similares da mente humana. A existência dessas leis é fato mate-
mático objetivo. Por outro lado, as formulações chamadas "leis" encon-
tradas em livros são, naturalmente, invenções humanas destinadas a
refletir, embora imperfeitamente, propriedades realmente existentes na
natureza. Sem esta afirmação de que as regularidades são reais, a ciência
seria reduzida ao absurdo. A outra razão que me leva a afirmar que as
leis da natureza não são feitas por nós é que elas nos ajudam a descobrir
inúmeras coisas novas no mundo das quais jamais suspeitáramos. A
marca da lei verdadeira é que ela ultrapassa qualquer descrição fiel do
fenômeno original que quer explicar e se liga a outros fenômenos. [...] A
história da ciência mostra que, quando uma nova lei é aceita, logo per-
cebemos suas conseqüências e ela passa a ser testada em muitos novos
contextos, em geral nos conduzindo à descoberta de novos fenômenos,
inesperados e importantes. Estou inclinado a acreditar que ao fazer ciência
nos aventuramos a descobrir novas regularidades e relações na natureza
em vez de pensar que as impomos sobre a natureza.
Criação e ciências 1 161

Assim, fica claro que numa aproximação religiosa (especialmente


cristã) a esse debate, temos de partir da idéia de que a ordem do
mundo existe primeiramente no mundo, independentemente de
nosso reconhecimento, e que essa ordem relaciona-se com a dou-
trina da criação. Embora inúmeros cientistas naturais rejeitem a
estrutura teológica original responsável pelo surgimento da expres-
são "leis da natureza" nos séculos XVII e XVIII, não há razão para
que os cientistas naturais sensíveis aos aspectos religiosos de seu
trabalho não possam se reapropriar do conceito.
O breve resumo que acabamos de fazer sobre a relação da dou-
trina da criação com as "leis da natureza" mostra a maneira notável
como as ciências e a religião têm convergido a respeito da regulari-
dade e da ordem na natureza. Assim, o que as ciências não conse-
guem abarcar torna-se tarefa da religião. Esse fato nos leva a consi-
derar até que ponto se pode conhecer alguma coisa a respeito de
Deus a partir da ordem natural. Esse aspecto do pensamento religioso
é conhecido pelo nome de "teologia natural".

Leituras recomendadas

ARMSIRONG, D. M. What is a Law of Nature? Cambridge, Cambridge


University Press, 1983.
Al I HELD, R. Science and Creation. Journal of Religion 58 (1978) 37-47.
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BRUN, R. B. Integrating Evolution: A Contribution to the Christian
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162 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

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Pittsburg, PA, University of Pittsburg Press, 1993, p. 589-612.
Teologia natural:
Deus na natureza

PODE-SE CONHECER Deus por meio da natureza? Se isso é


possível, então as religiões e as ciências naturais têm, afinal, signi-
ficativos aspectos em comum. Um dos temas mais importantes re-
lacionados com essa questão é, sem dúvida, a "natureza", bem como
a indagação se, de certa forma, teria sido feita por Deus (e se, por-
tanto, refletiria a natureza de Deus, mesmo indiretamente). Esse tema
já foi examinado nos capítulos anteriores quando observamos, em
especial, a maneira como a doutrina da criação podia estabelecer
certa relação entre Deus e natureza.
Neste capítulo, estudaremos alguns aspectos do que se chama
de "teologia natural" — isto é, a crença religiosa, fundamentada na
doutrina da criação, que afirma a possibilidade do conhecimento de
Deus a partir do estudo da natureza. Começaremos, no entanto,
pelo exame de duas importantes objeções à teologia natural muito
influentes no século XX.

Objeções à teologia natural

Mesmo se o reconhecimento do conhecimento natural de Deus


representa a maioria das atitudes na tradição cristã, é importante
notar a existência de outros pontos de vista a respeito. Nas páginas
seguintes exploraremos duas importantes objeções (embora não
164 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

totalmente decisivas) à teologia natural que refletem preocupações


teológicas e filosóficas.

Objeções teológicas

Talvez a atitude mais negativa adotada recentemente na teolo-


gia cristã a respeito da teologia natural seja a do teólogo suíço refor-
mado Karl Barth, cuja controvérsia com Emil Brunner sobre o tema
ilustra algumas das preocupações a respeito na comunidade teoló-
gica protestante. As críticas severas e estridentes de Barth à teologia
natural podem, naturalmente, ser respondidas. São consideradas as
mais extremas no espectro teológico. Não obstante, merecem con-
sideração, pelo menos porque se tornaram "marcos" na discussão
desta matéria.
Em 1934, o teólogo suíço Emil Brunner publicou um livro inti-
tulado Nature and Grace (Natureza e graça), no qual argumentava
que "a tarefa de nossa geração teológica consiste em descobrir um
caminho de volta para a legítima teologia natural". Brunner inseria
essa possibilidade na doutrina da criação, especialmente na afirma-
ção de que os seres humanos haviam sido criados à "imagem de Deus"
(imago Dei). Achava que a humanidade havia sido constituída de tal
maneira que se tornara análoga ao ser de Deus. Apesar da
pecaminosidade da natureza humana, a capacidade de discernir Deus
na natureza ainda existia. Os seres humanos pecadores continuavam
capazes de reconhecer Deus na natureza e nos eventos da história, ao
mesmo tempo em que mantinham a consciência de sua culpa diante
de Deus. Havia, pois, o que Brunner chamava de "ponto de contato"
(Anknüpfungspunkt) entre revelação divina e natureza humana.
Brunner argumentava que a natureza humana, de fato, fora
constituída de tal maneira que conservava esse ponto de contato
natural com a revelação divina. A revelação comunica-se com a
natureza humana porque já existe nela alguma idéia que lhe ajuda
a discernir do que se trata. Por exemplo, tomemos a exigência do
Novo Testamento para o "arrependimento dos pecados". Brunner
Teologia natural: Deus na natureza 1 165

argumenta que tal demanda pouco significaria se os seres humanos


não tivessem já alguma noção de "pecado". A exigência do evange-
lho para que as pessoas se arrependam dirigia-se a uma audiência
que possuía já alguma idéia do que era "pecado" e "arrependimen-
to". É certo que a revelação traz a compreensão mais completa do
significado de pecado — mas, ao assim fazer, parte da consciência já
existente a aumenta.
Barth reagiu irritado a essa sugestão. Sua resposta a Brunner —
que provocou o rompimento da longa amizade que os unia — foi
publicada com o menor título de que se tem notícia na história
editorial religiosa: Nein! Barth estava determinado a dizer "não" à
avaliação positiva de Brunner da teologia natural. Parecia-lhe suge-
rir que Deus precisava de ajuda para se dar a conhecer, ou que os
seres humanos pudessem de alguma forma cooperar com Deus no
ato da revelação. "O Espírito Santo [...] não precisa de nenhum ponto
de contato além daquele que ele mesmo estabelece", replicava Barth
impacientemente. Ele não admitia nenhum "ponto de contato" ine-
rente à natureza humana. Qualquer possibilidade de ligação natural
entre os seres humanos e Deus só podia resultar da revelação divi-
na. Trata-se de algo procedente da Palavra de Deus e não das feições
permanentes da natureza humana.
Por trás dessa controvérsia havia outra questão, facilmente es-
quecida. O debate entre Barth e Brunner ocorreu em 1934, ano em
que Hitler subia ao poder na Alemanha. Na base do apelo de Brunner
à natureza situava-se uma idéia, que pode ser remetida a Lutero,
conhecida como "as ordens da criação". Segundo Lutero, Deus pro-
videncialmente estabelecera certas "ordens" na criação, com a finali-
dade de prevenir a sua destruição pelo caos. Tais ordens incluíam a
famffia, a Igreja e o Estado. (Era o que refletia a aliança entre Igreja e
Estado no pensamento alemão liberal protestante.) Esse mesmo pro-
testantismo absorvera no século XIX esse ponto de vista e desenvol-
vera uma teologia que atribuía à cultura germânica grande importân-
cia teológica. Essa teologia mostrava-se bastante simpática ao Estado.
Barth desconfiava de que Brunner, talvez inadvertidamente, fornecia
bases teológicas para transformar o Estado em modelo de Deus. Quem
desejaria ter Adolf Hitler como modelo de Deus?
166 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

O conhecido teólogo escocês Thomas F. Torrance também de-


senvolveu semelhante crítica à teologia natural. Há visíveis paralelos
entre as posições de Torrance e Barth. Torrance expõe o que lhe parece
ser a objeção fundamental de Barth à teologia natural: a separação
radical entre "teologia revelada" e "teologia natural" completamente
autônoma e livre:
Epistemologicamente, então, o que Barth rejeita na teologia natural tra-
dicional não é a invalidade de seus argumentos nem mesmo sua es-
trutura racional, como tais, mas seu caráter independente — isto é, sua
estrutura autônoma desenvolvida com base na "natureza apenas", abs-
traída da auto-revelação ativa do Deus vivo e trino —, coisa que separa
o conhecimento de Deus em duas metades, conhecimento natural do
Deus uno, de um lado, e conhecimento do Deus trino, de outro, coisa
científica e teologicamente intolerável. Com isso ele não rejeita o lugar
adequado da estrutura racional no conhecimento de Deus, como esse
que a teologia natural tanto busca, mas insistir que essa estrutura ra-
cional pode se ligar intrinsecamente ao conteúdo do conhecimento de
Deus não passa de distorção e abstração. Por causa disso Barth, ade-
quadamente, entende que a teologia natural está incluída dentro da
teologia revelada.

Torrance também entende que a crítica de Barth à teologia na-


tural não é inspirada em nenhum dualismo — por exemplo, entre
Deus e mundo, implicando a total ausência de Deus do mundo, ou
entre redenção e criação, como numa espécie de dualismo marcionita,
com a conseqüente depreciação da criatura.Vê-se bem que Torrance
simpatiza com Barth nessas posições.
Torrance, além disso, mostra certas dificuldades filosóficas fun-
damentais presentes nas formas da teologia natural rejeitada por
Barth. Esse tipo de teologia natural autônoma parece-lhe uma "deses-
perada tentativa de encontrar uma ponte lógica entre conceitos e ex-
periência para fazer desaparecer a separação fatal entre Deus e
mundo, estabelecida no início da argumentação, mas que devesse
cair diante da noção de que a ciência progride fazendo abstração
Teologia natural. Deus na natureza 167

dos dados da observação". A teologia natural procura, ao estabele-


cer essa ponte lógica entre idéias e ser, inferir a existência de Deus,
e assim produzir a formalização lógica dos componentes empíricos e
teóricos do conhecimento de Deus. Para Torrance, esse desenvolvi-
mento foi incentivado consideravelmente pela afirmação medieval de
que "pensar cientificamente era pensar segundo a geometria, isto é,
segundo os moldes da geometria euclidiana. Esse pensamento foi
reforçado mais tarde ao se restringir às conexões lógicas de um uni-
verso mecânico".Torrance percebe claramente que as "formas abstra-
tas tradicionais" da teologia natural dependem da "disjunção deísta
entre Deus e mundo" — à qual retornaremos em seguida.
Para nós, é de especial interesse examinar a maneira como
Torrance traça um paralelo entre, de um lado, o status teológico e a
importância da teologia natural e, de outro, os desafios empíricos
para o status único da geometria euclidiana, que foi depois criticado
pela geometria não-euclidiana no século XIX e pelo argumento de
Einstein em favor da geometria do espaço e do tempo de Riemann.
Se na relação da geometria com a física, como demonstrou Einstein, o
esquecimento de que a construção axiomática da geometria euclidiana
tinha fundamentação empírica tornou-se responsável pelo erro fatal
expresso na afirmação de que a geometria euclidiana era uma neces-
sidade do pensamento, anterior a qualquer experiência, a ciência teo-
lógica, por sua vez, deve ser advertida contra a possibilidade de con-
siderar a teologia natural um sistema formal no interior da teologia
dogmática, com validade própria, pois tal afirmação serviria apenas
para nos levar de volta ao sistema anterior que não passava de mero
esquema vazio do pensamento.

Percebemos que Torrance concede à teologia natural certo lugar


de importância na teologia cristã, à luz da compreensão da natureza de
Deus e do mundo que brota da revelação, embora essa revelação
divina não possa ser afirmada apenas pelo esforço humano.
É por isso que muitos pensadores descobrem em Torrance in-
tenções de levar a teologia natural para o âmbito da teologia siste-
mática, da mesma forma como Einstein levou a geometria para o
168 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

domínio dos conteúdos formais da física. Assim, o lugar adequado


para a discussão da teologia natural não seria o debate acerca da
possibilidade do conhecimento hipotético de Deus, mas o contexto
positivo do conhecimento revelado do Deus criador. Somente a
perspectiva teológica adequada em face da natureza poderia nos
ajudar a perceber o cerne dessa questão:
Assim acontece com a teologia natural: tendo surgido da aceitação da
teologia positiva e desenvolvida como um complexo de estruturas ra-
cionais resultantes de nosso conhecimento real de Deus, acabou por
tomar-se "natural" numa nova maneira. Tornou-se "natural" para seu
objeto próprio que é Deus na interação auto-reveladora conosco no
espaço e no tempo. A teologia natural, assim, constitui-se em geome-
tria epistemológica, por assim dizer, na construção da teologia revelada.

O desafio barthiano poderia, assim, ser enfrentado de uma


maneira que, segundo Torrance, Barth aceitaria.
No entanto, surgiram no protestantismo outras objeções à idéia
da "teologia natural", particularmente nos escritos do conhecido fi-
lósofo reformado da religião Alvin Plantinga.Vamos examinar a seguir
a sua contribuição.

Objeções filosóficas

Mais recentemente, certos filósofos da religião, refletindo a par-


tir da perspectiva teológica reformada, começaram a chamar a aten-
ção do mundo intelectual. Alvin Plantinga e Nicolau Wolterstorff
são exemplos dessa categoria de pensadores que têm feito contri-
buições altamente significativas à filosofia da religião em nossa época.
Plantinga entende que a "teologia natural" procura provar ou de-
monstrar a existência de Deus e rejeita essa pretensão veemente-
mente com base em sua crença de que ela depende da compreen-
são falaciosa da natureza da própria fé. As raízes de sua objeção são
complexas, mas podem ser resumidas em duas considerações básicas:
Teologia natural: Deus na natureza 169

(1) A teologia natural supõe que a crença em Deus depende de


bases evidentes. Mas a crença em Deus não é, estritamente
falando, uma crença básica — isto é, não se trata de algo
auto-evidente, exato ou evidente aos sentidos. Trata-se de
algo fundamentado na fé. Contudo, fundamentar a crença
na fé significa que aquilo que a baseia deva ter status
epistemológico maior do que a crença inicial. Para Plantinga,
a atitude corretamente cristã consiste em afirmar que a base
da fé é ela mesma, uma vez que ela não precisa de justifi-
cações que a referendem.
(2) A teologia natural não faz parte da tradição reformada, in-
cluindo Calvino e seus seguidores.

O segundo arrazoado é impreciso historicamente, e não vamos


nos deter nele. Entretanto, a primeira linha da primeira considera-
ção tem sido bastante discutida.
Plantinga considera Aquino o "teólogo natural par excellence" e
se ocupa bastante com seus métodos. Segundo Plantinga, Tomás de
Aquino é um fundacionista em questões de teologia e filosofia. Para
ele a "scientia, propriamente dita, consiste num corpo de proposi-
ções silogisticamente deduzidas de primeiros princípios auto-evi-
dentes". A Suma contra os gentios demonstra que Aquino parte de
fundamentos evidentes para afirmar a crença em Deus, fazendo que
essa fé dependa dessas bases. (Observemos neste ponto a impor-
tância da crescente crítica ao fundacionalismo clássico na filosofia e
na teologia modernas.) Queremos ressaltar que a concepção de
Plantinga a respeito da teologia natural pressupõe a crença de que
ela pretende provar a existência de Deus.
No entanto, não é necessário que a teologia natural trabalhe
nessa linha. Na verdade, há excelentes razões para se pensar que, de
fato, a teologia natural possa ser entendida como demonstração, a
partir da fé, da consonância entre a fé e as estruturas do mundo. Em
outras palavras, a teologia natural não pretende provar a existência
de Deus, embora pressuponha a sua existência. Pergunta, então:
"como poderíamos imaginar o mundo natural se ele fosse realmen-
170 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

te criado por Deus?". A busca de ordem na natureza não pretende


demonstrar que Deus existe, mas apenas quer reforçar a plausibi-
lidade de uma crença já existente. Esse tipo de argumentação pode
ser encontrado nos escritos de William E Alston, que concorda com
algumas das posições de Plantinga a respeito da epistemologia re-
formada, enquanto toma atitudes consideravelmente mais positivas
a respeito da teologia natural.
Em seu estudo Perceiving God (A percepção de Deus), Alston
expõe o que lhe parece ser um método realista. Ele define a teologia
natural como "empresa para dar apoio às crenças religiosas por meio
de premissas que não são nem pressupõem crenças religiosas". Ad-
mitindo a impossibilidade de se construir provas demonstrativas da
existência de Deus a partir de premissas extra-religiosas, Alston
mostra-se convencido de que não existe, em hipótese alguma, ne-
nhuma possibilidade metodológica para a teologia natural.
A teologia natural, na verdade, começa com a afirmação da exis-
tência de Deus ou com a ordem do mundo, e procura mostrar que
esse ponto de partida nos leva ao reconhecimento da existência de
um ser que poderia ser aceito como Deus. Segundo Alston, perce-
be-se um alto grau de convergência entre a teologia natural e os
argumentos tradicionais em favor da existência de Deus, particu-
larmente os de Tomás de Aquino. Contudo, sua concepção da teo-
logia natural vai além dessas provas limitadas e incentiva o
engajamento em outras áreas da vida e das preocupações humanas,
entre as quais explicitamente a ciência. A teologia natural, então,
nos ofereceria "razões metafísicas em favor da verdade do teísmo
como cosmovisão geral", permitindo a construção de pontes na di-
reção de outras disciplinas.
Podemos perceber que com tal discussão tanto Plantinga como
Barth levantaram importantes questões sobre a natureza e o alcance
da teologia natural. Igualmente, muitos teólogos cristãos ortodoxos
ficariam preocupados em face da possível revitalização da cosmovisão
deísta, por causa da ênfase na regularidade da natureza. Por outro
lado, essas criticas dirigem-se principalmente a abusos da teologia
natural, e não ao seu uso responsável no pensamento cristão, protes-
Teologia natural: Deus na natureza I 171

tante ou católico romano. A seguir, vamos examinar três atitudes


positivas relacionadas com este tema, típicas da tradição teológica cristã.

Três abordagens da teologia natural

Há três abordagens gerais no cristianismo da questão da possi-


bilidade e da extensão do conhecimento de Deus por meio da na-
tureza. Examinaremos, em seguida, resumidamente, sua importân-
cia para nosso estudo. Duas delas mostram-se particularmente re-
levantes para o debate entre ciência e religião.

Apelo à razão

Uma das mais comuns abordagens do conhecimento natural de


Deus é o apelo à razão humana. Excelente exemplo desse procedi-
mento encontra-se nos escritos de Agostinho de Hipona, particu-
larmente em sua obra De Trinitate (Da Trindade). A linha geral do
argumento por ele desenvolvido pode ser resumida como segue. Se
Deus realmente pode ser discernido em sua criação, devemos
procurá-lo no ponto mais excelente dela. Ora, o clímax da criação
divina, segundo Agostinho (baseado em Gênesis 1 e 2), é a natureza
humana. Com base nos pressupostos neoplatônicos, herdados por
ele de sua cultura, chegou à conclusão de que o ponto mais alto da
natureza humana era a capacidade humana da razão. Portanto, con-
cluiu, podemos esperar encontrar traços de Deus (ou, mais precisa-
mente, "vestígios da Trindade") no processo humano do raciocínio.
Fundamentando-se nessa crença, Agostinho desenvolveu o que cha-
mamos hoje de "analogias psicológicas da Trindade".

Apelo à ordem do mundo

Trata-se de um dos mais importantes temas de nosso estudo, à


luz de sua íntima relação com os resultados das ciências naturais.
172 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Os argumentos de Tomás de Aquino em favor da existência de Deus


baseiam-se na percepção da ordem na natureza aberta à explicação.
Da mesma forma, o fato de a mente humana discernir e investigar
essa ordem torna-se extremamente importante. Parece haver na
natureza humana algo que a força a fazer perguntas a respeito do
mundo, assim como também se nota algo no mundo capaz de dar
respostas a essas perguntas. O conhecido físico teórico e apologista
cristão John Polkinghorne, comentando este fato, assim escreveu
em Science and Creation (Ciência e criação):
Estamos tão acostumados a entender o mundo que nem paramos para
refletir a respeito. É o que torna a ciência possível. Contudo, poderia
não ser assim. O universo poderia ter sido um mero caos desordenado
em vez do cosmo harmônico que temos. Ou poderia ter possuído um
tipo de racionalidade inacessível a nós. [...] Existe congruência entre
nossas mentes e o universo, entre a racionalidade experimentada no
mundo e a nossa racionalidade.

Observa-se uma nítida congruência entre a racionalidade de


nossas mentes e a ordem observada no mundo. Um dos mais notá-
veis aspectos disso relaciona-se com as estruturas abstratas da ma-
temática pura — criação livre da mente humana —, que, como acen-
tua Polkinghorne, fornecem pistas para a nossa compreensão do
mundo.
A equação criada por Paul Dirac em 1931 para explicar o com-
portamento de um elétron, com seus aspectos intrigantes, exemplifica
a congruência entre a racionalidade humana e a ordem natural. Dirac
antevia dois tipos de solução, o primeiro por meio de energia posi-
tiva, o outro, de energia negativa. O segundo tipo poderia ser inter-
pretado a partir do reconhecimento da existência de uma partícula
idêntica ao elétron em todos os aspectos, mas que não era positiva-
mente carregada. Hermann Weyl demonstrou claramente que essas
"soluções de energia negativa" possuíam elétrons com massa. Em
1932, Carl Anderson observou efeitos na vida real que o levaram a
postular a existência de elétrons positivos, correspondentes à parti-
Teologia natural: Deus na natureza 173

cula postulada por Dirac. A nova partícula só era observada em ex-


perimentos fechados. Este fato levou Blackett a observar que a teo-
ria de Dirac indicava o desaparecimento dessa partícula quando em
colisão com um elétron, negativamente carregado, e que ela, portan-
to, não seria um elemento constituinte da matéria estável, como se
havia pensado. Em certo sentido, pode-se dizer que esse fato já era
conhecido pelos matemáticos antes que os físicos o descobrissem.
É tão importante este apelo à ordem da natureza que precisare-
mos voltar a ele no próximo capítulo ao considerar o conceito de
"lei da natureza" em relação com a doutrina da criação. O apelo à
beleza da natureza é também importante para nosso estudo. É o
que veremos a seguir.

Apelo à beleza da criação

Inúmeros teólogos cristãos têm produzido teologias naturais


baseadas no senso de beleza suscitado pela contemplação do mun-
do. Hans Urs von Balthasar e Jonathan Edwards criaram teologias
nessa linha, nos séculos XX e XVIII, respectivamente. O primeiro, na
perspectiva católica romana e o segundo, na reformada. Robert Boyle
desenvolveu a imagem da natureza como se fosse um templo e do
cientista como seu sacerdote. Chamava a atenção, assim, para o
sentimento de deslumbramento evocado pelo estudo da natureza
em sua beleza plena.
Agostinho de Hipona afirmava que existia certa progressão na-
tural da admiração das coisas belas do mundo ao culto daquele que
as criara porque sua beleza se refletia nelas. O grande teólogo me-
dieval Tomás de Aquino elaborou "cinco vias" por meio das quais se
podia inferir a partir da ordem do mundo a realidade de Deus; a
quarta dessas "vias" baseia-se na observação da perfeição no mun-
do. Embora Aquino não tenha identificado essa perfeição com a
"beleza", é claro que tal comparação pode ser feita sem dificuldade,
coisa que pode ser encontrada em outros momentos de sua obra.
Essa linha de argumentação foi desenvolvida no século XX pelo
174 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

conhecido teólogo e filósofo R. R. Tennant, ao ensinar que parte dos


argumentos cumulativos em favor da existência de Deus incluía a
observação da beleza no mundo.
Na tradição reformada, o reconhecimento da importância da
"beleza" como tema teológico encontra-se nos escritos de Calvino.
Contudo, a mais completa exposição desse ponto de vista na tradi-
ção reformada acha-se nos escritos do conhecido teólogo norte-
americano do século XVIII Jonathan Edwards. Ele acreditava que a
beleza de Deus manifestava-se — e era encontrada — na beleza da
ordem criada.
É adequado e justo que Deus em sua infinita sabedoria tivesse orde-
nado as coisas de tal maneira que Sua voz pudesse ser escutada em
Suas obras, instruindo os que contemplassem, retratassem e percebes-
sem seus divinos mistérios de maneira imediata como pertencentes a
Ele mesmo e a Seu reino espiritual. As obras de Deus são, na verdade,
tipos de Sua voz ou linguagem destinados a instruir os seres inteligen-
tes nas coisas que lhes pertencem. Por que não haveríamos de pensar
que Ele deixaria de nos ensinar e instruir por meio de Suas obras dessa
maneira bem como de outras como, por exemplo, representando as
coisas divinas em Suas obras e as mostrando para nós, especialmente
porque sabemos que Ele se compraz nesse modo de instrução. [...] Se
contemplarmos essas sombras das coisas divinas como se fossem vo-
zes de Deus ensinando-nos propositadamente essas coisas divinas e
espirituais, com a finalidade de nos mostrar quão excelentes e vanta-
josas elas são, quão agradavelmente e claramente afetam nossas men-
tes, imprimindo-as aí, ouviremos, então, Deus falando a nós. Onde
quer que estejamos, e sem importar o que façamos, poderemos ver as
coisas divinas excelentemente representadas e mostradas.

Os escritos mais sofisticados e teologicamente fundamentados


a respeito do significado da "beleza" em nosso século pertencem ao
teólogo suíço católico romano Hans Urs von Balthasar (1905-1988).
"O princípio fundamental da estética teológica [...1 é o fato de que,
assim como a revelação cristã é verdadeira e boa, também é beleza
Teologia natural. Deus na natureza 1 175

absoluta".Von Bathasar descreve sua obra como "tentativa de desen-


volver a teologia cristã à luz do terceiro elemento transcendental, isto
é, da complementação da visão da verdade e do bem com a beleza".
Logo veremos que o conceito de beleza é da maior importância
para a compreensão religiosa da natureza do mundo. Seu valor tem
sido desde muito tempo apreciado pelos matemáticos, embora o novo
interesse pelos fractais tenha expandido o tema de maneira nova e
altamente provocativa. No século XX, o interesse pela beleza tam-
bém surgiu nas ciências naturais. Se por um lado o conceito de
"beleza" refere-se ao mundo natural, por outro pode ser visto na
maneira como se interpreta o mundo, especialmente no nível teórico.
A beleza das teorias é, em geral, associada com sua simetria como,
por exemplo, vimos quando tratamos da elegância das equações de
Maxwell. Steven Weinberg, que recebeu o Nobel de Física em 1979,
comenta a beleza das teorias científicas da seguinte maneira:
O tipo de beleza encontrado nas teorias físicas é bastante limitado.
Trata-se, à medida que consigo me expressar, da beleza da simplicida-
de e da inevitabilidade — beleza da estrutura perfeita, das coisas que
se encaixam, de sua permanência e de seu rigor lógico. Ela é modesta
e clássica, como a encontramos nas tragédias gregas.

É o que também se vê nos escritos de Paul Dirac, que conseguiu


estabelecer conexões entre a teoria quântica e a relatividade geral
numa época em que ninguém as havia ainda percebido. Seus pon-
tos de vista parecem basear-se no conceito de "beleza", ao estabe-
lecer critérios explicitamente estéticos como meios possíveis de ava-
liar teorias científicas:
É mais importante manter a beleza em nossas equações do que enxergá-
las de acordo com as experiências. [...] Trabalhamos a partir do desejo
de alcançar a beleza em nossas equações, e se nossa intuição for real-
mente boa estaremos no caminho do progresso.

Percebe-se claramente que essa atitude representa importante


interface entre religião e ciências naturais, indicando o valor da teolo-
gia natural nesse diálogo.
176 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Estes são, pois, alguns dos modos como os teólogos cristãos têm
procurado descrever, embora precariamente, o modo como Deus
pode ser conhecido por meio da natureza. Particularmente na pers-
pectiva cristã, significam indicadores da realidade maior da auto-
revelação de Deus, sempre relativos e incompletos. Vamos prosse-
guir agora com o exame da relação entre teologia natural e revelada.

Teologia natural e teologia revelada

Tanto nos escritos de Tomás de Aquino como nos de João Calvino


transparecem distinções entre o conhecimento parcial de Deus ob-
tido por meio da observação do mundo e seu pleno conhecimento
resultante da decisão divina de se revelar. Como já estudamos Aquino
com relativa extensão a respeito da ordem do mundo, valerá a pena,
agora, ilustrar o que estamos dizendo com a obra de Calvino.
Calvino estabelece uma clara distinção entre o "conhecimento
geral do Deus criador", obtido por meio de nossa reflexão a respeito
do mundo criado, e o mais especificamente cristão "conhecimento
do Deus redentor", alcançado apenas mediante a revelação cristã.
Calvino está convencido de que a revelação cristã é consistente com
o conhecimento natural, embora o amplie.
O primeiro livro de Calvino, Institutes of the Christian Religion
(Instituições da religião cristã), de 1559, começa discutindo este pro-
blema fundamental da teologia cristã: como podemos saber algo a
respeito de Deus? Ele afirma que certo conhecimento geral de Deus
pode ser alcançado por meio da criação — na humanidade, na or-
dem natural e no próprio processo histórico. Identifica duas bases
para esse conhecimento: a primeira, subjetiva; a segunda, objetiva.
O primeiro fundamento é o "senso da divindade" (sensus divinitatis),
ou a "semente da religião" (semen religionis), implantado em cada ser
humano por Deus. Deus implantou nos seres humanos o sentido
ou pressentimento de sua existência divina. Seria assim como se
Deus tivesse gravado no coração humano alguma coisa de si mes-
mo. O segundo fundamento reside na experiência da ordem do
Teologia natural: Deus na natureza 1 177

mundo e na reflexão dessa ordem. Por meio do exame da ordem


criada e de seu ponto mais alto, a humanidade, podemos reconhe-
cer o Deus criador, bem como sua sabedoria e sua justiça.
Observemos que Calvino jamais sugere que esse conhecimento de
Deus obtido por meio da ordem natural restrinja-se aos cristãos ou
lhes seja peculiar. Apenas entende que qualquer pessoa, ao refletir in-
teligente e racionalmente sobre a ordem criada, seria capaz de chegar
à idéia de Deus. A ordem criada seria, assim, um "teatro" ou "espelho"
para representar a presença divina, sua natureza e seus atributos. Embora
Deus seja invisível e incompreensível, ele deseja ser conhecido sob as
formas das coisas visíveis e criadas, ao nos conceder as vestes da cria-
ção. Em decorrência disso, importa observar que Calvino tem em alta
estima as ciências naturais (especialmente a astronomia), por causa de
sua capacidade de ilustrar a maravilhosa ordem da criação e a sabedo-
ria divina que essa ordem indica. Significativamente, contudo, Calvino
não apela a fontes especificamente cristãs neste estágio de sua argu-
mentação. Até aqui, contenta-se com a observação empírica e com o
raciocínio. Quando introduz em seu discurso citações espirituais, quer
apenas consolidar a idéia de conhecimento natural de Deus sem se
preocupar em definir esse conhecimento. Afirma a possibilidade do
discernimento de Deus tanto entre os membros da comunidade cristã
como entre os demais seres humanos.
Depois de ter estabelecido os fundamentos do conhecimento geral
de Deus, passa a considerar seus problemas; seu interlocutor neste
debate será o escritor romano clássico Cícero, que na obra Nature of
the Gods (Sobre a natureza dos deuses) talvez se tenha mostrado um
dos mais influentes expositores clássicos do conhecimento natural de
Deus. Calvino passa a argumentar que a distância entre Deus e a
humanidade, já enorme desde o começo, tornou-se ainda maior por
causa do pecado. Assim, nosso conhecimento natural de Deus se tor-
nou imperfeito e confuso e até mesmo às vezes contraditório. Se, por
um lado, o conhecimento natural de Deus não pode servir de descul-
pa para ignorarmos a vontade divina, por outro, é inadequado para
retratar plenamente a natureza, o caráter e os propósitos de Deus.
Depois de asseverar esse ponto, Calvino introduz a noção de
revelação; as Escrituras reiteram o que se pode conhecer de Deus •
178 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

por meio da natureza ao mesmo tempo em que esclarecem a reve-


lação geral e a exaltam. "O conhecimento de Deus, claramente vi-
sível na ordem do mundo e em suas criaturas, é ainda mais clara e
imediatamente explicado na Palavra." Será somente por meio das
Escrituras que os crentes obterão acesso ao conhecimento dos atos
redentores de Deus na história, que culminaram na vida, morte e
ressurreição de Jesus Cristo. Para Calvino, o foco da revelação é a
pessoa de Jesus Cristo. Nosso conhecimento de Deus passa por ele.
Assim, Deus só poderá ser plenamente conhecido mediante Jesus
Cristo, que, por sua vez, só poderá ser conhecido por meio das Es-
crituras. A ordem criada, contudo, oferece importantes pontos de
contato com determinadas ressonâncias parciais dessa revelação. A
idéia básica é que o conhecimento do Deus criador pode ser alcan-
çado ao mesmo tempo pela natureza e pela revelação. Esta, no en-
tanto, esclarece, confirma e expande o conhecimento obtido pela
natureza. O conhecimento do Deus redentor — que, segundo
Calvino, é o conhecimento especificamente cristão de Deus — só
vem a nós pela revelação cristã, em Cristo e por meio das Escrituras.
Esta posição foi acatada e desenvolvida com especial rigor pela
tradição reformada. A importância dela aparece nos escritos do co-
nhecido teólogo de Genebra do século XVIII Jean-Alphonse Turrettini
(1617-1737). O conhecido teólogo presbiteriano escocês do século
XIX Thomas Chalmers também adotou uma atitude positiva em
relação a essa posição.
Vamos nos concentrar, agora, na tradição dos "dois livros", mui-
to importante na teologia natural inglesa no século XVII e início do
século XVIII. Tudo indica que essa tradição fundamentou-se na teo-
logia de Calvino. Também teria exercido influência nos círculos pro-
testantes depois de Calvino. Por exemplo, a "Belgic Confession" (Con-
fissão Belga), de 1561, confissão de fé originada nos Países Baixos,
descrevia a natureza "perante nossos olhos como um belíssimo li-
vro no qual as coisas criadas, grandes e pequenas, eram como letras
que nos levavam a contemplar as coisas invisíveis de Deus". A idéia
do "livro da natureza" que complementava o "livro das Escrituras"
tornou-se logo muito popular. Francis Bacon recomendava o estudo
Teologia natural: Deus na natureza 1 179

do "livro da palavra de Deus", bem como do livro de "suas obras",


em seu Advancment of Learning (Progresso do conhecimento), de
1605, produzindo enorme impacto no pensamento inglês a res-
peito das relações entre ciência e religião. Assim, em seu tratado
de 1674 The Excellency ofTheology compared with Natural Theology (A
excelência da teologia comparada com a teologia natural), Robert
Boyle observou que, "como os dois grandes livros, o da natureza e
o das Escrituras, são do mesmo autor, assim o estudo do segundo
não impede de maneira nenhuma o prazer da pesquisa humana
no estudo do primeiro". Pensamentos semelhantes encontram-se na
obra clássica de Sir Thomas Browne, de 1634, Religio Mediei:
Escrevo minha teologia a partir de dois livros. Além do que foi escrito
por Deus, uso também o de sua serva, a natureza, manuscrito univer-
sal e público, aberto perante os olhos de todos. Os que nunca conse-
guiram vê-lo num deles descobrem-no no outro.

Notemos especialmente a idéia do mundo como "a epístola de


Deus escrita para a humanidade" (Boyle). A metáfora dos "dois li-
vros" do mesmo autor representou importante papel para o relacio-
namento da teologia com a piedade, bem como para o interesse e o
conhecimento do mundo natural na época.
A partir das considerações oferecidas neste capítulo, vê-se que
a teologia natural foi uma das mais importantes áreas no diálogo
entre as ciências naturais e a religião. Se, por um lado, os escritos de
William Paley (ver pp. 128-131) são considerados hoje em dia com
muita suspeita, por outro representam um enorme esforço para re-
lacionar a observação científica com a crença religiosa. As intuições
de Paley podem ter sido abandonadas. Contudo, como a obra de
John Polkinghorne (ver pp. 270-272) e de outros tem demonstrado,
o apelo à ordem do mundo natural continua a ser relevante para os
escritores religiosos.
Voltaremos agora nossa atenção para questões relacionadas com
a linguagem e a imaginação empregadas para descrever o mundo,
tanto no âmbito das ciências como no da religião.
180 l Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Leituras recomendadas

BARR, J. Biblical Faith and Natural Theology. Oxford, Clarendon Press,


1993.
BROOKE, J. H. Science and the Fortunes of Natural Theology: Some
Historical Perspectives. Zygon 24 (1989) 3-22.
BROWN, H. Alvin Plantinga and Natural Theology. International Journal
for Philosophy of Religion 30 (1991) 1-19.
CAIRNS, C. Thomas Chalmer' s Astronomical Discourses: A Study in
Natural Theology. Scottish Journal of Theology 9 (1956) 410-421.
CLARKE, M. L. Paley: Evidences for the Man. London, SPCK, 1974.
FISCH, H. The Scientist as Priest: A Note on Robert Boyle's Natural
Theology. Isis 44 (1953) 252-265.
GARCIA, L. L. Natural Theology and the Reformed Objection. In:
EVANS, C. S., WESTPHAL, M. (orgs.). Christian Perspectives on
Religious Knowledge. Grand Rapids, MI, Eerdmans, 1993, p. 112-133.
GASCOIGNE, J. From Bentley to theVictorians: The Rise and Fall of British
Newtonian Natural Theology. Science in Context 2 (1988) 219-256.
GILLESPIE, N. C. Divine Design and the Industrial Revolution: William
Paley' s Abortive Reform of Natural Theology. Isis 81 (1990) 215-229.
GILLESPIE, C. C. Genesis and Geology: A Study in the Relations of
Scientific Thought, Natural Theology and Social Opinion in Great
Britain, 1790-1850. Cambridge, MA, Harvard University Press, 1996.
(Harvard Historical Studies 58)
GINGERICH, O. Is there a Role for Natural Theology Today? In: RAE,
M., REGAN, H., STENHOUSE, J. (orgs.). Science and Theology:
Questions at the Interface. Edinburgh, T. & T. Clark, 1994, p. 29-48.
KRETZMANN, N. The Metaphysics ofTheism: Aquina' s Natural Theology
in Summa contra Gentiles I. Oxford, Clarendon Press, 1997.
LeMAHIEU, D. L. The Mind of William Paley: A Philosopher and his
Age. Lincoln, University of Nebraska Press, 1976.
LONG, E. T. Experience and Natural Theology. Philosophy of Religion 31
(1992) 119-132.
ROBINSON, N. H. G. The Problem of Natural Theology. Religious Studies
8 (1972) 319-333.
WILKINSON, D. A. The Revival of Natural Theology in Contemporary
Cosmology. Science and Christian Belief 2 (1990) 95-115.
Modelos e analogias
em ciência e religião

UM DOS ASPECTOS mais intrigantes da relação entre ciência


e religião é o uso de "modelos" ou "analogias" para tratar de entida-
des complexas — sejam elas núcleos atômicos ou Deus. Neste ca-
pítulo, vamos examinar diferentes modos do emprego desses "au-
xílios visuais" desenvolvidos na ciência e na religião. O físico teórico
John Polkinghorne estabelece um importante paralelo entre as duas
disciplinas, mostrando especificamente a necessidade de represen-
tar por meios visuais entidades que não podem, de fato, ser vistas:
Falamos constantemente de entidades que não podem ser observadas
diretamente. Ninguém até hoje viu genes (embora existam fotografias
de raio X que, corretamente interpretadas, levaram Crick e Watson à
estrutura de dupla hélice do DNA) nem elétrons (embora haja pistas
nas câmaras do Bubble que, conforme a interpretação, indicam a exis-
tência de partículas de carga elétrica negativa de cerca de 4,8 x 10-"
esu [electrostatic unit] e massa de cerca de 10' gm). Ninguém jamais
viu Deus (embora exista a surpreendente afirmação cristã de que "o
Filho unigênito, que está no seio do Pai, o revelou" [Jo 1,18]).

As religiões, em geral, fazem afirmações a respeito de entidades


(como "Deus", "perdão" ou "vida eterna") que não são observáveis.
A questão de como tais entidades não-observáveis ou teóricas de-
vem ser descritas, incluindo seu preciso status ontológico, interessa
182 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

tanto à ciência como à religião. Esse será o tema deste capítulo.


Começaremos pelo exame do uso de modelos nas ciências naturais.

Modelos nas ciências naturais

Uma das características mais distintivas das ciências naturais é a


tendência a empregar "modelos" para descrever pelo menos certos
aspectos dos sistemas complexos. Entende-se por modelo qualquer
modo simplificado de representar esses sistemas a fim de dar a seus
usuários maior compreensão de ao menos um de seus aspectos. Depois
da construção e do teste do modelo, ele começa a ser desenvolvido
para incluir em seu arcabouço detalhes mais complicados do sistema
que não haviam sido considerados na construção do modelo. Para
ilustrar alguns aspectos do uso de tais modelos, podemos considerar
um dos mais conhecidos deles: a teoria cinética dos gases.
O comportamento dos gases foi estudado pormenorizadamente
a partir do século XVII, particularmente por Robert Boyle e Jacques
Charles. Diversas experiências foram feitas para examinar a manei-
ra como os gases se comportavam quando eram mudados a pres-
são, o volume e a temperatura. Descobriu-se que eles obedeciam a
diversas leis que sempre se aplicavam aos gases submetidos a pres-
sões baixas, não importando sua identidade química. As duas leis
mais famosas são conhecidas como "Lei de Boyle" e "Lei de Charles",
formuladas da seguinte maneira
Lei de Boyle: pV = constante
Lei de Charles: V = constante x T
sendo p a pressão do gás, V seu volume e T a temperatura, ex-
pressa nos termos da escala de temperatura criada por Lord Kelvin
segundo a qual 0° centígrado corresponde a 273,15° kelvin. (Esta
escala estabelece que a temperatura de "zero absoluto" é — 273,15°
centígrados.) A "equação perfeita do gás", capaz de combinar as
duas leis além de outras observações, seria a seguinte:
pV .= nRT
Modelos e analogias em ciência e religião 183

onde R é a constante do gás (8,31451 JK-Imo1-1) e n o número de


mols do gás presente. Esta equação tem validade universal, não
importando a identidade do gás em questão.
Então, como se explica tal comportamento? A teoria cinética dos
gases oferece este modelo de um gás ideal baseada em três pressupostos:

(1) Qualquer gás consiste de moléculas que se movimentam


incessantemente ao acaso, sem interagir entre elas.
(2) O tamanho das moléculas não é importante, pois seu diâ-
metro é insignificante em comparação com a distância média
percorrida pela molécula entre seus choques.
(3) Ao se chocar com as paredes de seu recipiente, as moléculas
de gás produzem colisões elásticas perfeitas, nas quais a ener-
gia cinética translacional da molécula permanece imutável.

Na verdade, o modelo sugere que pensemos nas moléculas de


gás como se fossem bolas de bilhar, em constante colisão com as
paredes de seus recipientes. É fácil utilizarmos este modelo para
prever de que maneira se relacionam pressão, volume e temperatu-
ra. Por exemplo, a pressão sobre o recipiente pode ser calculada em
termos da medida do movimento das moléculas de gás. As leis dos
gases, consideradas acima, podem ser definidas teoricamente a par-
tir deste modelo de gases, sugerindo que a teoria cinética seja um
bom modelo básico para esses sistemas.
Naturalmente, o modelo é muito simples, e não leva em consi-
deração características mais complexas do comportamento dos ga-
ses. Por exemplo, ele assume que o volume ocupado pelas molécu-
las gasosas seja irrelevante, de tal maneira que a quantidade total do
volume do gás ocupado por suas moléculas pode ser desprezado
nos cálculos. Embora esse procedimento funcione quando o gás está
submetido a pressões baixas, já não se dará o mesmo quando as
pressões forem mais altas. Aparecerão então sérias complicações. O
modelo também ignora as colisões intermoleculares e suas forças
(que seriam insignificantes sob pressões baixas), concentrando-se
na interação dessas moléculas com as paredes dos recipientes.
184 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Contudo, vale a pena apreciar que os modelos podem se tornar


mais sofisticados para incluir aspectos mais complicados do sistema
a ser modelado. A idéia básica consiste em estabelecer um modelo
capaz de explicar as configurações mais importantes do sistema para
torná-lo apto a abranger aspectos mais complexos do comporta-
mento do sistema. Por exemplo, o modelo mostrado acima não le-
vava em consideração o fato de que as moléculas gasosas tinham
volume definido. Este fato pode ser ignorado quando em baixas
pressões; mas em altas pressões o volume ocupado pelas moléculas
gasosas não pode ser ignorado. Esta conclusão pode ser incorpora-
da a um modelo matemático do sistema da seguinte maneira.Vimos
anteriormente como se podia predizer o comportamento dos gases
por meio da seguinte fórmula:
pV = nRT
Esta fórmula assumia que o tamanho das moléculas gasosas não
era importante. Ajustando-se a fórmula um pouco, tornava-se pos-
sível o reconhecimento do tamanho finito das moléculas. Conside-
rando-se b o volume ocupado por um mol das moléculas de gás,
segue-se que o comportamento do gás é dado pela fórmula:
P(V — nb) = nRT
Neste caso, o valor de b dependerá do gás em questão, pois o
volume ocupado pelas moléculas gasosas dependerá da identidade
do gás.
Este mesmo modelo funciona no desenvolvimento de diversos
modelos científicos. Vamos resumir as configurações básicas do
modelo.

(1) Estabelece-se o comportamento de determinado sistema e


observam-se nele certos padrões.
(2) O modelo passa a ser desenvolvido com a finalidade de
explicar os aspectos mais importantes do sistema.
(3) Percebe-se que o modelo demonstra fraquezas em inúme-
ros pontos por causa de sua simplicidade.
(4) O modelo, então, pode se tornar mais complexo para supe-
rar tais fraquezas.
Modelos e analogias em ciência e religião 1 185

Poderíamos mencionar inúmeros outros modelos. Por exemplo,


em dezembro de 1910 Ernest Rutherford desenvolveu um modelo
simples de átomo baseado no sistema solar. O átomo consistia de um
corpo central (chamado núcleo) em que a massa do átomo pratica-
mente se concentrava. Elétrons orbitavam em volta desse núcleo mais
ou menos como os planetas giram em torno do sol. Enquanto a órbita
dos planetas era determinada pela força de atração gravitacional do
sol, Rutherford percebia que as órbitas dos elétrons eram determina-
das pela atração eletrostática entre elétrons negativamente carrega-
dos e o núcleo positivamente carregado. Curiosamente, Rutherford
argumentou que a maneira como as partículas alfa eram espalhadas
pelos átomos poderia ser explicada se essas partículas se comportas-
sem como certos tipos de cometa, cujas órbitas ao redor do sol to-
mam a forma de hipérbole. O comportamento dessas partículas (alfa)
recentemente observado por Hans Wilhelm Geiger mostrou-se aná-
logo ao de outros membros do sistema solar (como os cometas não-
periódicos). O modelo era visualmente simples e fácil de ser entendi-
do, oferecendo um arcabouço teórico capaz de explicar pelo menos
alguns dos comportamentos conhecidos dos átomos na época.
Mas podem surgir dois erros no uso de modelos nas ciências
naturais. Em primeiro lugar, cone-se o risco de identificar os mode-
los com os sistemas aos quais se referem, e não é assim. As molécu-
las gasosas não são minúsculas esferas inelásticas; a teoria cinética
contenta-se em assinalar que podemos entender pelo menos al-
guns aspectos do comportamento dos gases sob certas condições se
os descrevemos dessa determinada maneira. O cientista natural afir-
mará que existem essas coisas chamadas "moléculas gasosas" e que
alguns aspectos de seu comportamento assemelham-se ao das bo-
las de bilhar. Da mesma forma, o átomo nunca será uma mera mi-
niatura do sistema solar; o modelo de Rutherford apenas indica que
podemos entender algumas de suas características se pensamos
nessa linha. Em cada um desses casos, visualizamos o sistema para
explicá-lo e interpretá-lo. É claro que tais procedimentos devem ser
levados a sério (na medida em que claramente se relacionam com o
sistema que modelam), mas não tomados ao pé da letra.
186 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

O segundo erro consiste em pressupor que certos aspectos do


modelo estariam necessariamente presentes no sistema em ques-
tão. Como já assinalamos, modelos são como analogias: o modelo
e o sistema assemelham-se entre si em alguns aspectos, mas não
em todos. O fato de existir um certo paralelo numa área não signi-
fica que o mesmo paralelo vai aparecer em todas as demais áreas.
Bom exemplo deste problema pode ser encontrado na física da se-
gunda metade do século XIX. Aceitava-se, na época, que a luz era
constituída de ondas. Chegara-se a essa conclusão por meio de uma
série de experiências começadas no início do século, particularmen-
te pelo estudo do fenômeno da difração. Assim, a luz foi considera-
da um fenômeno de ondas, mostrando comportamento semelhante
a outros fenômenos da mesma espécie como, por exemplo, o som.
Um dos mais intrigantes aspectos do som é a exigência de um
meio por onde ele viaja. Quando qualquer fonte de som é colocada
num vaso de vidro, onde se produz certo vácuo, a intensidade do
som vai diminuindo. O som tem de se transmitir por algum meio.
Jamais se propaga no vácuo. Observando as muitas semelhanças
entre o som e a luz, diversos físicos concluíram pela existência de
uma analogia entre esses fenômenos. Se o som precisava de um
meio para se propagar, a luz também precisava da mesma coisa.
Empregou-se, então, o termo "éter luminífero" para designar esse
meio (o termo "luminífero" significa "portador de luz").
O experimento de Michelson-Morley procurou detectar a "cor-
renteza de éter" — isto é, o movimento do éter em relação à terra.
Mas ele falhou, muito embora as implicações desse resultado nega-
tivo demorassem para ser entendidas. Pensava-se então que ou o
éter permaneceria em completo repouso enquanto a terra se movia,
ou, caso contrário, não existiria. No final dessas experiências, desco-
briu-se que não havia suporte empírico para afirmar a existência do
"éter luminífero". Pelo menos nesse aspecto, percebeu-se uma fun-
damental diferença entre a luz e o som.
Estamos preparados agora para perceber que os modelos repre-
sentam importante papel nas ciências naturais. Os aspectos mais
importantes a anotar são os seguintes:
Modelos e analogias em ciência e religião 187

(1) Os modelos servem para visualizar conceitos abstratos e


complexos. Principalmente em relação com aspectos da
teoria quântica, à qual voltaremos em seguida.
(2) Os modelos podem ser considerados "intermediários" en-
tre a mente humana e entidades complexas.
(3) Os modelos não precisam necessariamente "existir", em-
bora o que procuram representar tenha existência real e
independente.
(4) Os modelos são selecionados ou construídos a partir da
crença de que existem importantes semelhanças entre
modelos e aquilo que representam.
(5) Os modelos, portanto, não são idênticos ao que represen-
tam e, portanto, não devem ser tratados dessa maneira.
(6) Em particular, deve-se pressupor que todos os aspectos de
determinado modelo correspondem às entidades represen-
tadas nos modelos.

O que tudo isso tem a ver com religião? À primeira vista, poderiam
ser esperadas semelhanças relevantes entre as ciências e a religião. Esses
dois campos do conhecimento falam a respeito de entidades comple-
xas que ultrapassam os termos da linguagem e das imagens familiares.
A seguir, examinaremos o papel da analogia na religião.

Analogia, metáfora e religião

A teologia poderia ser convenientemente definida como "dis-


curso sobre Deus". Mas de que maneira Deus poderia ser descrito
ou discutido pela linguagem humana? O filósofo austríaco Ludwig
Wittgenstein foi bastante incisivo: se as palavras humanas não são
capazes de descrever o aroma do café, como poderiam ter sucesso a
respeito de algo tão sutil quanto Deus? Uma das possíveis respostas
a esta difícil questão encontra-se na idéia de analogia e de metáfora
— modos de pensar e de falar a respeito de Deus baseados em
imagens, como as imagens bíblicas do "Deus pastor" ou do "Deus
188 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

rei". Vamos examinar agora como analogias e metáforas têm sido


usadas pela teologia.
Talvez a idéia mais básica encontrada nas respostas teológicas a
essa questão seja o que se conhece em geral por "princípio da ana-
logia", associado especialmente com o grande teólogo escolástico
Tomás de Aquino. Segundo ele, o simples fato de Deus ter criado o
mundo indica uma analogia fundamental, a "analogia do ser" entre
ele e o mundo. Pressupõe continuidade entre Deus e mundo em
virtude da expressão do ser de Deus no ser do mundo. Por causa
disso, torna-se legítimo o uso de entidades da ordem criada como
analogias para Deus. Ao assim proceder, a teologia não reduz Deus
ao nível dos objetos ou seres criados, mas apenas afirma a existência
de certa semelhança de correspondência entre Deus e o ser do mundo
que permite a este agir como sinal de Deus. Entidades criadas po-
deriam, assim, ser como Deus sem se tornarem idênticas a ele.
O argumento exposto por Aquino pode ser assim resumido:
poder-se-ia esperar alguma correspondência entre a ordem criada e
seu criador uma vez que o próprio Deus a teria criado. Com isso não
se quer dizer que Deus seria idêntico à natureza; há áreas de seme-
lhança e de diferenças. Ao estabelecer essa semelhança entre Deus
e as criaturas, Aquino rejeita qualquer possibilidade de considerá-lo
"igual às criaturas". Bem ao contrário, pode-se dizer que "as criatu-
ras assemelham-se a Deus", uma vez que o ato da criação estabe-
leceu esse relacionamento a partir de Deus. Tomás de Aquino deixa
seu pensamento claro na seção da Suma contra os gentios quando
trata do tema "a semelhança das criaturas com Deus":
Os efeitos que não correspondem às suas causas não concordam com
elas em nome e natureza. Contudo, ainda persiste certa semelhança
entre eles, posto que pertence à natureza da ação que seu agente pro-
duza seu semelhante, uma vez que cada coisa age segundo a maneira
como está em ato. A forma de um efeito, portanto, encontra-se certa-
mente, em certa medida, na causa transcendente. [...] Deus doou a
todas as coisas a sua perfeição, fazendo-se, portanto, semelhante e
diferente delas. Daí o dito das Escrituras Sagradas quando se refere à
Modelos e analogias em ciência e religião 1 189

semelhança entre Deus e as criaturas, conforme Gênesis 1,26: "Faça-


mos o homem à nossa imagem e semelhança" [...] As criaturas rece-
bem de Deus aquilo que as torna semelhantes a ele. Mas o inverso não
é verdadeiro. Deus, então, não se assemelha à criatura; o contrário é
que é verdadeiro.

Para Aquino, o uso de analogias, baseado nas referências das


criaturas a Deus, não é arbitrário, pois se fundamenta, em última
análise, na própria criação.
No entanto, há uma severa dificuldade nos argumentos a partir
do uso da analogia: o caráter potencialmente arbitrário de seu em-
prego. A afirmação de que "A seja uma analogia para B" requer jus-
tificação. Em que base se postularia tal analogia? Será a existên-
cia de certas similaridades feliz coincidência? Ou sua validade de-
penderia, quem sabe, de algo mais fundamental, que refletisse, tal-
vez, elementos profundamente embutidos na estrutura do univer-
so? Convém pararmos um pouco aqui para observar a importância
do modo como o desenvolvimento de teorias "supersimétricas" tem
postulado relacionamentos fundamentais entre vários aspectos da
física moderna. A doutrina da criação situa tais relações em funda-
mentos intelectuais seguros, sugerindo que existe correlação na or-
dem criada antes mesmo de ser discernida pela investigação humana.
Consideremos a afirmação "Deus é nosso pai". Aquino entende
que tal expressão deveria ser entendida como querendo dizer que
Deus é semelhante a um pai humano. Em outras palavras, Deus
seria análogo ao pai, parecido com os pais humanos em alguns as-
pectos embora. diferente em outros. Mas haveria pontos genuínos
de semelhança. Por exemplo, Deus cuida de nós como os pais cui-
dam de seus filhos (cf. Mt 7,9-11). Deus é a fonte suprema de nossa
existência, assim como nossos pais são responsáveis por nossa vin-
da ao mundo. Deus exerce autoridade sobre nós, como nossos pais
humanos. Igualmente, há genuínos pontos de diferença. Deus, por
exemplo, não é um ser humano. Tampouco a necessidade de mãe
humana requer a necessidade de mãe divina.
190 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Tomás de Aquino está querendo dizer que Deus se revela por


meio de imagens e idéias relacionadas com o mundo de nossa ex-
periência cotidiana — sem reduzir Deus a essa experiência. Dizer
que "Deus é nosso pai" não é a mesma coisa que dizer que ele é um
outro pai humano. Nem, como veremos, significa que Deus seja
pensado como ser masculino (ver pp. 200-203). O que ele quer dizer
é que quando pensamos a respeito de nossos pais humanos somos
ajudados a pensar em Deus. São meras analogias. Como todas as
analogias, nem sempre se aplicam perfeitamente em todos os sen-
tidos. Contudo, continuam a ser extremamente úteis e nos ajudam
a pensar em Deus. Elas permitem o uso de vocabulário e de ima-
gens de nosso mundo para descrever realidades de fora deste mundo.
Por outro lado, analogias e metáforas requerem interpretação.
Que aspectos de determinada imagem devem ser utilizados? Que
aspectos da imagem podem propriamente ser conservados e com
base em quais critérios essas decisões deveriam ser tomadas? Como
se fica sabendo se alguma analogia foi utilizada impropriamente?
As analogias também se esgotam. Chega o momento em que não
podem mais ser levadas adiante. Como sabemos quando isso acon-
tece? Para ilustrar o que estamos dizendo, examinemos este exem-
plo tomado de outra área da teologia, antes de chegarmos à conclu-
são. O Novo Testamento ensina que Jesus deu sua vida em "resgate"
pelos pecadores (Mc 10,45; 1Tm 2,6). O que significa essa analogia?
O uso comum da palavra "resgate" sugere três idéias.

(1) Libertação. Paga-se um resgate pela libertação de alguém


que estava preso. Quando uma pessoa é raptada e os auto-
res desse crime exigem certo pagamento em troca, esse
pagamento "resgata" a pessoa e ela é solta.
(2) Pagamento. O resgate é a soma do dinheiro paga em troca
da liberdade da pessoa raptada.
(3) O resgate é pago a alguém. Trata-se em geral do raptor ou
seu intermediário.

Essas três idéias estão implícitas nessa passagem do Novo Tes-


tamento quando interpreta a morte de Jesus como "resgate" pelos
pecadores.
Modelos e analogias em ciência e religião 1 191

Mas seria essa a intenção da passagem? Não há dúvida alguma


de que o Novo Testamento proclama que fomos libertados do cati-
veiro mediante a morte e ressurreição de Jesus. Fomos libertados do
cativeiro do pecado e do medo da morte (Rm 8,21; Hb 2,15). Não há
dúvida também de que o Novo Testamento entende a morte de Je-
sus como um preço que teve de ser pago para que pudéssemos ser
salvos (1Cor 6,20; 7,23). Nossa libertação foi, assim, custosa e pre-
ciosa. Nesses dois casos, o uso escriturístico da palavra "redenção"
correspondia ao uso comum do termo. Mas o que dizer a respeito
do terceiro aspecto?
O Novo Testamento não sugere que a morte de Jesus era o pre-
ço que tinha de ser pago a alguém (como, por exemplo, o diabo)
pela obtenção de nossa salvação. Alguns dos escritores dos primei-
ros quatro séculos, contudo, acharam que podiam levar essa analo-
gia às suas últimas conseqüências, e declararam que Deus nos havia
libertado do poder do diabo oferecendo a morte de Jesus a ele em
pagamento pela nossa salvação. Orígenes, talvez o mais especulativo
dos escritores patrísticos, desenvolveu essa idéia pormenoriza-
damente. Se a morte de Cristo fora um resgate, argumentava, o
pagamento deveria ter sido feito a alguém. Mas a quem? Não pode-
ria ser pago a Deus, porque Deus não retinha pecadores esperando
por seus resgates. Orígenes concluiu que esse resgate fora pago ao
diabo, numa sinistra atitude teológica.
Rufino de Aquiléia e Gregório Magno desenvolveram um pou-
co mais essa idéia. O diabo havia adquirido direitos sobre a huma-
nidade caída que Deus se sentia obrigado a respeitar. O único meio
pelo qual a humanidade poderia se libertar da opressão e do domí-
nio satânicos seria fazendo que o diabo excedesse os limites de sua
autoridade e fosse obrigado a abandonar seus direitos. Então, como
fazer essa transação? Gregório sugeriu que ela seria possível se uma
pessoa sem pecado entrasse no mundo na forma de um pecador. O
diabo não se daria conta disso até que fosse tarde demais: ao reivin-
dicar sua autoridade sobre essa pessoa sem pecado, teria extrapolado
os limites de sua autoridade e, assim, se sentiria obrigado a abando-
nar seus direitos.
192 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Rufino sugeriu a imagem de um anzol com sua isca: a humani-


dade de Cristo seria a isca e a sua divindade, o anzol. O demônio,
como um grande monstro marinho, teria se lançado para abocanhar
a isca e, então, descoberto que fora fisgado pelo anzol:
[O propósito da encarnação] consistiu em que a divina virtude do Fi-
lho de Deus pudesse ser como um anzol escondido sob a forma da
carne humana [...] para enganar o príncipe deste mundo num desafio;
que o Filho pudesse oferecer-lhe sua carne como isca e que a divinda-
de sob ela pudesse abocanhá-lo prendendo-o no seu anzol. [...] Então,
assim como o peixe quando morde a isca não apenas deixa de comê-
la mas é tirado da água para servir de comida a outros; assim, aquele
que possuía o poder da morte tomou o corpo de Jesus na morte, in-
consciente do anzol da divindade que se escondia dentro dele. Tendo-o
engolido, ele foi imediatamente vencido. As portas do inferno foram
quebradas e Jesus foi, por assim dizer, resgatado do abismo para se
tomar alimento para muitos.

O aspecto desta explicação que mais causou inquietação poste-


riormente foi a implicação aparente de que Deus se tornara culpado
de um engano.
Pode-se, naturalmente, argumentar que esta teoria altamente
insatisfatória de interpretar o sacrifício de Cristo resultou de uma
analogia levada além de seus limites. Mas como podemos saber
quando alguma analogia vai longe demais? Como se pode testar
esses limites? Questões como estas foram debatidas ao longo da
história cristã. lan T. Ramsey, filósofo da religião inglês, discute essa
questão em sua obra Christian Discourse: Some Logical Explorations
(Discurso cristão: algumas explorações lógicas), de 1965, na qual
desenvolve a idéia de que modelos e analogias não são indepen-
dentes mas interagem entre si e se qualificam.
Ramsey entende que as Escrituras não nos dão só uma única
analogia (ou "modelo") para falarmos de Deus ou da salvação, mas
utiliza diversas. Cada uma delas ilumina certos aspectos de nossa
compreensão de Deus ou da natureza da salvação. Contudo, tais
analogias também interagem umas com as outras. E assim vão se
Modelos e analogias em ciência e religião 193

modificando. Ajudam-nos a entender os limites existentes nelas.


Nenhuma analogia ou parábola se exaure em si mesma. Tomadas
em conjunto, contudo, constroem modos abrangentes e consisten-
tes de compreensão de Deus e da salvação.
Para tornar este ponto mais claro vamos dar alguns exemplos.
Tomemos as analogias de rei, pai e pastor. Cada uma delas transmi-
te idéias de autoridade que nos ajudam a entender o ser divino. Os
reis, no entanto, agem muitas vezes de maneira arbitrária e nem sem-
pre segundo os interesses de seus súditos. A analogia de Deus como
rei pode dar a idéia errônea de que Deus seja mais ou menos como um
tirano. Contudo, a terna compaixão de um pai manifesta em seu
amor pelos filhos, recomendada pelas Escrituras (S1 103,13-18), e
a dedicação total do bom pastor pelo rebanho (Jo 10,11) mostram
que a idéia de um rei tirano não corresponde ao que se queria
significar com a palavra rei. A autoridade deve ser exercida com
sabedoria e amor.
A doutrina da analogia de Aquino é, pois, de fundamental im-
portância para expressarmos o pensamento a respeito de Deus. Ela
ilumina a maneira como Deus se revelou nas Escrituras por meio de
imagens e analogias, ajudando-nos a entender como Deus situa-se
acima do mundo ao mesmo tempo em que se revela no mundo e por
meio dele. Deus não é um objeto nem uma pessoa no espaço e no
tempo; contudo, pessoas e objetos podem nos auxiliar a perceber
com mais profundidade o caráter e a natureza de Deus. Deus, que
é infinito, pode ser revelado por meio de palavras humanas e ima-
gens finitas.
Agora que examinamos a idéia de analogia com certo cuidado,
voltemos a atenção para o conceito de metáfora. A precisa natureza
das diferenças entre analogia e metáfora continua ainda a ser discu-
tida. Aristóteles definiu metáfora como "a transferência de uso de
um termo que pertence propriamente a alguma outra coisa". Essa
definição, no entanto, é tão abrangente que pode ser relacionada
com qualquer tipo de figura de linguagem, incluindo a analogia.
Atualmente, a palavra "metáfora" tem sido definida de maneira di-
ferente como, por exemplo: metáfora é a maneira de falar sobre uma
194 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

coisa em termos que sugerem outra. Para usar a conhecida frase de


Nelson Goodman, "trata-se de dar novo sentido a velhos artifícios".
Esta definição, naturalmente, inclui a analogia; mas qual seria a di-
ferença entre elas?
Convém, novamente, observar que não há unanimidade a res-
peito disso. Talvez a melhor solução para o problema fosse esta: as
analogias parecem ser adequadas ao que buscam enquanto as me-
táforas envolveriam certa surpresa ou até mesmo incredulidade ini-
cial. Por exemplo, consideremos estas duas afirmações:

(1) Deus é sábio.


(2) Deus é um leão.

No primeiro caso, afirma-se certa conexão analógica entre a


natureza de Deus e a noção humana de "sabedoria". Sugere-se, tanto
do ponto de vista lingüístico como do ontológico, a existência de
um paralelo direto entre as noções de sabedoria humana e divina. A
sabedoria humana serve de analogia da sabedoria divina. A compa-
ração não nos causa surpresa alguma.
No segundo caso, a comparação pode produzir certo grau de
consternação. Não nos parece apropriado comparar Deus a um leão.
Entretanto, pensando bem, pode haver certa semelhança entre Deus
e o leão na medida em que as diferenças nos parecem óbvias. Para
alguns estudiosos modernos, as metáforas misturam semelhanças
com discrepâncias, carregando em si tanto paralelos como diver-
gências entre os objetos comparados.
Com esses dois argumentos em mente, vamos examinar três
aspectos das metáforas que têm atraído atualmente a atenção de
alguns teólogos.
1. As metáforas implicam similaridade e diferença entre dois
objetos comparados. Talvez, por isso, alguns escritores recentes têm
acentuado a natureza metafórica e não a alegórica da linguagem
teológica, como observa particularmente Sallie McFague:
A metáfora vê uma coisa como se fosse outra, pretendendo "isto" ou
"aquilo" porque não sabemos como pensar ou falar a respeito "disto".
Modelos e analogias em ciência e religião 1 195

Assim, usamos "aquilo" para dizer alguma coisa a respeito. Pensar


metaforicamente significa traçai linhas de semelhança entre dois ob-
jetos, eventos ou seja lá o que for discrepantes, utilizando o que me-
lhor se sabe para falar a respeito do que quase não se sabe.

Falar a respeito de Deus como "pai" deveria, então, ser conside-


rado um uso metafórico e não analógico da linguagem, implicando
diferenças básicas entre Deus e pai, e não (como no caso da analo-
gia) uma linha direta de similaridades.
2. As metáforas não podem ser reduzidas a declarações defini-
tivas. Talvez a forma mais aceitável das metáforas para a teologia
cristã seja o seu caráter de obra aberta. Embora alguns críticos lite-
rários tenham sugerido que as metáforas podem ser reduzidas a
outras expressões literárias equivalentes, outros entendem que não
há limites para suas comparações. Assim, a metáfora do "Deus pai"
não pode ser reduzida a determinada afirmação a respeito de Deus,
válida para todos os tempos e lugares. Tem a intenção apenas de
sugerir, deixando os leitores livres para interpretá-la e descobrir novos
sentidos nela. A metáfora não é mera descrição elegante nem
fraseado rebuscado a respeito de coisas que já conhecemos. Antes,
trata-se de um convite para a descoberta de novos níveis de sentido
que, às vezes, esquecemos ou deixamos passar despercebidos.
3. Em geral, as metáforas carregam cores fortemente emocio-
nais. As metáforas teológicas destinam-se a expressar dimensões
emocionais da fé cristã apropriadas para o culto. Por exemplo, a
metáfora "Deus é luz" carrega muita força emocional, incluindo idéias
como iluminação, pureza e glorificação. Ian G. Barbour resume este
aspecto da linguagem metafórica da seguinte maneira:
Se, de um lado, metáforas poéticas são usadas transitoriamente em
determinado contexto, para transmitir alguma idéia ou experiência
imediatas, de outro, os símbolos religiosos tornam -se parte da lingua-
gem da comunidade religiosa nas Escrituras e na liturgia e na conti-
nuidade de sua vida e de seu pensamento. Os símbolos religiosos
expressam emoções e sentimentos humanos, provocando resposta e
compromisso.
196 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Ambivalência da analogia: estudos de caso em ciência e religião

Vimos que o uso de modelos ou analogias tanto pela ciência


como pela religião tem potencialidade para iluminar ou para con-
fundir. Do lado positivo, as analogias e os modelos podem nos aju-
dar a entender o que nos parecia antes velado e enigmático. Do
outro lado, pode nos levar a afirmações imprecisas ou falsas, resul-
tando em nuanças, desvios e ênfases — e até mesmo por vezes em
distorções indesejáveis. Para ilustrar essas possibilidades, vamos
considerar dois estudos de caso tirados das ciências naturais e da
teologia cristã.

Analogia da "seleção natural"

Interessa-nos particularmente a maneira como Darwin desen-


volveu a noção de "seleção natural" para ilustrar alguns dos temas
surgidos no uso de analogias ou metáforas no desenvolvimento de
teorias científicas. Darwin entregou-se à tarefa de explicar a
desconcertante diversidade encontrada nas plantas e nos animais,
vivos e extintos, que havia sido fonte de mistério para seus
antecessores. O primeiro capítulo de seu A origem das espécies trata
da maneira como plantas e animais domésticos eram reproduzidos,
como apareciam variantes em sucessivas gerações nesse mesmo
processo de reprodução e de que modo poderiam ser entendidas
certas características herdadas consideradas importantes pelos que
trabalhavam nessa área.
Darwin entendeu que nesse processo a expressão "seleção artifi-
cial" poderia ser considerada uma analogia para nos ajudar a enten-
der o processo de seleção existente na natureza. Tal processo, já co-
nhecido pelos criadores de gado ingleses e pelos horticultores, pas-
sou a ser considerado análogo aos processos similares encontrados
na natureza. "Assim como o homem pode produzir e certamente tem
alcançado excelentes resultados por meio de seleção metódica e in-
consciente, que não fará a natureza?" Para acentuar a analogia, Darwin
Modelos e analogias em ciência e religião 197

desenvolveu o termo "seleção natural" como meio metafórico e não-


literal de se referir ao processo que lhe parecia o meio mais convin-
cente de explicar os modelos de diversidade observados na natureza.
Darwin dizia que o conceito e o termo tinham sido sugeridos
pelos métodos de criadores de gado e aves que utilizavam métodos
de seleção artificial para gerar e preservar características desejáveis
no mundo animal. O conceito de "seleção natural" baseou-se, en-
tão, na percepção de uma analogia entre a noção existente e conhe-
cida de "seleção artificial". O termo apareceu pela primeira vez nos
escritos de Darwin a partir de março de 1840, quando teria termina-
do de ler um manual normativo para a criação de gado e gerencia-
mento desse tipo de atividade intitulado Cattle: Their Breeds, Mana-
gement and Diseases (Gado: criação, gerenciamento e doenças), que
explicava os métodos e resultados da seleção artificial.
Darwin tinha certeza de que os métodos dos criadores de ani-
mais domésticos eram da maior importância para o seu pensamento
e de que sua idéia da "seleção natural" vinha dessa analogia.
Todas as minhas noções a respeito da maneira como as espécies mu-
dam derivam do estudo prolongado de obras de agricultores e
horticultores; e acredito que consigo agora ver claramente os meios
usados pela natureza para mudar e adaptar suas espécies de acordo
com as contingências extremamente belas às quais todos os seres vi-
vos estão expostos.

Esta passagem é importante por duas razões. Em primeiro lu-


gar, Darwin claramente percebeu uma analogia entre o processo
familiar de "seleção artificial" e aquele inferido da "seleção natural".
Em segundo lugar, a analogia implicava a noção de processo consciente
de seleção. Darwin fala explicitamente das mudanças de espécies
provocadas pela natureza e de sua adaptação a esse processo. A ana-
logia parece implicar que a seleção ativa levada a efeito pelos cria-
dores de animais ou pelos cultivadores de plantas era, de certa for-
ma, semelhante à que se produzia na natureza. Essa convicção apa-
rece nos escritos em que freqüentemente se refere à "natureza" como
agente que ativamente "seleciona" variantes que ela aprova.
198 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Essa analogia não foi levada longe demais? Pode-se, realmente,


falar da natureza "selecionando" algo, uma vez que qualquer "sele-
ção" implica sempre propósito, escolha e inteligência? Alfred Russell
Wallace, colega de Darwin, foi apenas um dos que se mostraram
alarmados com a implicação de escolha ativa e de propósito da parte
da natureza. O termo "seleção natural" não conota certo processo
ativo de seleção da parte de uma natureza personalizada, com po-
deres de análise racional e objetivos definidos?
Eu acho que o problema surge quase completamente da sua escolha
do termo "seleção natural" e de tantas vezes compará-lo com os efei-
tos da seleção levada a cabo por seres humanos, bem como por você
ter tão freqüentemente personificado a natureza como aquela que
"seleciona", "prefere" ou "busca apenas o bem das espécies" etc. etc.
Para alguns poucos, essa idéia é tão clara quanto a luz do dia e bela-
mente sugestiva, mas para a maioria evidentemente é uma pedra de
tropeço.

A analogia da seleção natural desenvolvida por Darwin parece


transferir as noções desenvolvidas de intenção, seleção ativa e pro-
pósito final do modelo (procedimentos estabelecidos de seleção
artificial) para aquilo que o modelo quer explicar ou esclarecer (a
ordem natural). Tanto no nível verbal como no conceptual, o concei-
to antropomórfico de "propósito" se mantém, apesar da intenção
aparente de Darwin de eliminá-lo (bem como os pontos de vista
mais explícitos de Wallace). O próprio Darwin dava-se conta dos
perigos dessa forma antropomórfica de falar a respeito da "nature-
za". No prefácio acrescentado à terceira edição de A origem das espé-
cies, de 1861, ele procurou corrigir possíveis mal-entendidos:
Alguns têm levantado objeções ao termo seleção porque implicaria
uma escolha consciente nos animais que passam por modificações; e
até mesmo tem sido dito que, como as plantas não têm volição, não se
poderia aplicar a elas o conceito de seleção natural! Tomada em sen-
tido literal, a expressão seleção natural seria, sem dúvida, falsa. Mas
quem faz objeções ao uso que os químicos fazem a respeito de afini-
Modelos e analogias em ciência e religião 199

dades eletivas entre vários elementos? Entretanto, nenhum ácido pode,


estritamente falando, escolher a base com a qual preferencialmente
combina. Estão dizendo que eu falo de seleção natural como se ela
fosse algum poder ativo ou divindade. Mas quem se opõe aos autores
que falam da atração da gravidade que governa o movimento dos pla-
netas? Todos, na verdade, sabem o que se quer dizer e o que está im-
plícito nessas expressões metafóricas que, na verdade, são necessárias
por causa da necessidade de brevidade. Assim, é difícil evitar personi-
ficações da natureza. Quando falo em natureza refiro-me apenas ao
agregado de ação e produto de muitas leis naturais, e por leis [enten-
do] a seqüência de eventos observáveis.

Este trecho é de considerável importância por causa da afirma-


ção explícita de que o termo "seleção natural" é, de fato, de natureza
analógica ou metafórica. Trata-se, pois, de um "termo falso" — isto
é, de um termo que não deve ser medido por seu sentido literal. De
fato, as idéias de "escolha ativa" e de personificação do agente seletor
(que podem ser consideradas essenciais para a noção de "seleção")
não aparecem na analogia.
Vê-se claramente que o uso feito por Darwin da analogia da
"seleção natural" ilustra vividamente aspectos positivos e negativos
desse argumento. Positivamente, a analogia permite que determi-
nada situação complexa seja esclarecida ou parcialmente entendida
por meio de apelos a eventos, processos ou atos conhecidos ou
entendidos. Contudo, negativamente, pode desembocar na transfe-
rência de aspectos inadequados do modelo para aquilo que o mo-
delo pretende explicar. Certamente, Darwin não tinha a intenção de
levar seus leitores a entender que a natureza agia na "seleção" de varian-
tes de maneira propositada e racional. Mas era isso precisamente
que a analogia sugeria a inúmeros de seus leitores.
Precisamente o mesmo problema pode surgir em relação ao uso
religioso de analogias. É o que veremos a seguir com o exame da
analogia do "Deus pai".
200 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Analogia do "Deus pai"

Um dos aspectos curiosos da natureza analógica da linguagem


teológica é a maneira como pessoas ou papéis sociais, oriundos em
geral do mundo rural do antigo Oriente Próximo, tornaram-se mo-
delos considerados adequados para descrever a atividade ou a per-
sonalidade da atividade divina. Entre essas analogias ressalta a do
"pai". Já observamos como essa imagem se tornou valiosa no dis-
curso religioso (ver p. 192-193). Por outro lado, ela não tem sido
bem recebida por algumas pessoas, particularmente mulheres, que
a interpretam como se se quisesse afirmar a masculinidade de Deus
ou o fato de ser ele macho. Mas a imagem não tem essa intenção.
No entanto, vale a pena examinarmos a questão com mais cuidado
para deixar claro como teria surgido esse mal-entendido e como
poderia agora ser reparado.
Deve-se observar que a expressão "o pai na antiga sociedade de
Israel é um modelo adequado para Deus" não equivale a dizer que
"Deus é masculino".
Quando afirmamos que a imagem de "pai" é adequada como
modelo de Deus, estamos querendo dizer que em certos aspectos
Deus pode ser pensado como se fosse pai — por exemplo, ao dis-
ciplinar seus filhos. Naturalmente, também, em outros aspectos,
poderia ser considerado como se fosse mãe — por exemplo, ao se
mostrar compassivo e cuidadoso com seus filhos. Mas Deus não é
macho nem fêmea. Devemos nos lembrar que os modelos são ao
mesmo tempo semelhantes e diferentes do que pretendem represen-
tar. A questão criticamente importante é a determinação das seme-
lhanças. Estabelecer um modelo de Deus graças à figura humana do
pai não significa afirmar que ele seja masculino ou que a masculini-
dade seja superior à feminilidade. O masculinismo desta linguagem
precisa ser recebido como acomodação ao discurso e ao modo de
pensar humanos. Jamais seria a representação literal de Deus.
Mary Hayter, numa meditação acerca desse tema em sua obra
New Eve in Christ (Nova Eva em Cristo), escreveu:
Modelos e analogias em ciência e religião 1 201

Parece que certas "prerrogativas maternais" na antiga sociedade hebraica


— como o cuidado dos filhos pequenos, bem como a necessidade de
confortá-los — tomaram-se metáforas para descrever a atividade de
Yahweh para com os filhos de Israel. Da mesma maneira, diversas
"prerrogativas paternais" — como, por exemplo, disciplinar os filhos
— tornaram-se veículos do imaginário divino. Diferentes culturas e
épocas têm diferentes idéias a respeito dos papéis mais apropriados
para mães e pais.

Falar de Deus pai é dizer que o papel do pai no antigo Israel


podia representar algumas características da natureza de Deus. Mas
não queria dizer que Deus era masculino. Não se queria atribuir a
Deus nenhuma sexualidade, fosse ela masculina ou feminina. A
sexualidade é atributo da ordem criada e não poderia corresponder
diretamente a nada semelhante ao Deus criador.
Na verdade, o Antigo Testamento evita a atribuição de funções
sexuais a Deus por causa das fortes ressonâncias pagãs existentes.
Os cultos de fertilidade canaanitas acentuavam as funções sexuais
tanto de deuses como de deusas. O Antigo Testamento recusou ter-
minantemente a idéia de que gênero ou sexualidade fossem maté-
rias relevantes para a descrição de Deus. Como assevera Mary Hayter:
Cresce hoje em dia o número de feministas que ensinam que Deus/a
combina características masculinas e femininas. Elas, como todos os
que pensam que Deus seja exclusivamente masculino, deveriam
relembrar que qualquer atribuição de sexualidade a Deus é uma volta
ao paganismo.

Não é necessário retomarmos às idéias pagãs sobre deus e deusas


para recuperar a idéia de que Deus não é nem masculino nem femini-
no. Idéias como essas já estão potencialmente presentes, embora ne-
gligenciadas, na teologia cristã. Wolfhart Pannenberg desenvolve este
ponto em sua Systematic Theology (Teologia sistemática):
O aspecto do cuidado paternal é recebido segundo o entendimento do
Antigo Testamento a partir do que se lê aí a respeito do amor de Deus
202 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

por Israel. A definição sexual do papel do pai nada representa. [...]


Qualquer alusão à diferenciação sexual de Deus cairia no politeísmo;
assim, essa idéia tornou-se estranha ao Deus de Israel. l...1 O cuidado
de Deus por Israel pode também ser expresso em termos do amor de
mãe. Esse fato mostra claramente que não havia nenhum sentido de distin-
ção sexual na compreensão do Deus Pai.

Procurando ressaltar o fato de que Deus não é masculino, diver-


sos estudiosos atuais têm explorado a idéia da "maternidade" de
Deus (mostrando a existência de aspectos femininos na divindade),
ou de sua "amizade" (ressaltando aspectos sexuais neutros em Deus).
Sallie McFague fornece um excelente exemplo dessa abordagem em
seu livro Models of God (Modelos de Deus). Reconhecendo que quan-
do se fala de "Deus pai" não se quer dizer que ele seja masculino,
escreve:
Quando chamamos Deus de mãe, não queremos dizer que ele seja
mãe (ou pai). Imaginamos Deus tanto mãe como pai, mas nos damos
conta de quão inadequadas são essas ou quaisquer outras metáforas
destinadas a expressar o amor de Deus [...] Contudo, falamos desse
amor em linguagem familiar e querida a nós que é a linguagem das
mães e dos pais que nos trouxeram à vida, de cujos corpos nascemos
e de cujo cuidado dependemos.

Naturalmente, como afirmam certas feministas, muitos teólogos


homens pensam, de fato, que Deus é um ser de seu sexo, mas estão
expressando apenas sua interpretação das Escrituras, e não as Escri-
turas. Como observou George Caird, conhecido estudioso da Bíblia:
Precisamente quando os teólogos reivindicam a autoridade bíblica para
suas crenças e práticas mais se expõem a essa tentação universal [...] de
saltar para a conclusão de que os escritores bíblicos referem-se às mesmas
coisas que eles querem dizer, como se falassem suas próprias palavras.

As objeções apresentadas pelas estudiosas feministas só teriam


força decisiva se Deus fosse entendido como mera projeção ou resul-
Modelos e analogias em ciência e religião 1 203

tado da cultura humana. É verdade, porém, que muitas escritoras


feministas radicais esposam essa teoria das origens da religião (na
mesma linha de pensadores como Feuerbach, Marx e Freud — ver
pp. 242-246; 249-255). Trata-se porém de hipóteses, não de fatos. A
teologia tradicional cristã fala de um Deus que se revela por meio da
cultura humana embora não se submeta a suas categorias. Deus é
supracultural, bem como suprassexual. É enorme a diferença entre
dizer que Deus é produto da cultura e dizer que ele se revela na
cultura e por meio dela.
Curiosamente, o novo interesse pela questão da "masculini-
dade" de Deus levou muitos a ler com cuidado a literatura espi-
ritual dos períodos mais primitivos da história cristã, para redes-
cobrir até que ponto o imaginário feminino também teria sido
usado para descrever Deus no passado. Os escritos de Julian de
Norwich, mística do século XIV, são um bom exemplo de refe-
rências a Deus em termos de modelo e analogia tanto masculi-
nos como femininos:
Percebo que Deus se alegra em ser nosso pai e também nossa mãe.
Mas também que sente satisfação em ser nosso marido tendo nossa
alma como sua amada noiva. E Cristo se regozija de ser tanto nosso
irmão como nosso salvador. [...] O amor de Deus nunca nos abando-
na. Tudo isso se dá por causa da bondade inata de Deus, e vem a nós
pela operação de sua graça. Deus é bom por causa de sua natureza. A
bondade natural implica a existência de Deus. Ele é o fundamento, a
substância e a própria coisa, em virtude de sua natureza. Ele é o ver-
dadeiro pai e mãe de todas as coisas naturais.

Modelos, analogias e metáforas: ciência e religião comparadas

Estudando a interação entre ciência e religião, Ian G. Barbour


identificou três semelhanças e um número correspondente de dife-
renças entre modelos religiosos e modelos teóricos na ciência. As
semelhanças seriam as seguintes:
204 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

(1) Tanto na ciência como na religião, os modelos são analógicos


em suas origens, podem ser estendidos para enfrentar novas
situações e são compreensíveis como unidades individuais.
(2) Os modelos, sejam científicos ou religiosos, não devem ser
tomados como retratos literais da realidade, nem simples-
mente como "funções úteis". "São representações simbóli-
cas, com propósitos específicos, de aspectos da realidade
inacessíveis diretamente a nós."
(3) Os modelos funcionam como imagens reguladoras, tornan-
do possível estruturar e interpretar eventos em nossa vida
pessoal e no mundo. Nas ciências, os modelos relacionam-
se a dados observáveis. Nas religiões, à experiência de indi-
víduos e comunidades.

Barbour também identifica três áreas de diferença no uso de mo-


delos tanto em contextos científicos como religiosos. Neste momento,
certo grau de generalização sobre a natureza da religião talvez nos
leve a conclusões apressadas, embora não haja dúvida de que, pelo
menos em certos casos, as conclusões de Barbour sejam válidas.

(1) Os modelos religiosos prestam-se a funções não-cognitivas,


portanto sem paralelo nas ciências.
(2) Esses modelos exigem muito mais envolvimento pessoal
do que se espera dos modelos científicos.
(3) Os modelos religiosos mostram-se mais influentes do que
as doutrinas e crenças formais deles derivadas, enquanto
os modelos científicos sempre se submetem às teorias.

Ao compararmos essas observações é importante enxergar a


maneira como analogias e modelos são escolhidos. Nas ciências,
são escolhidos e validados em parte quando oferecem bom suporte
empírico. Estes dois temas — seleção e validação — são de conside-
rável importância especialmente porque mostram significativas di-
ferenças entre as ciências naturais e a religião. As analogias são
geradas em comunidades científicas; se não forem satisfatórias, se-
rão abandonadas e substituídas por outras.
Modelos e analogias em ciência e religião 205

Consideremos, por exemplo, o modelo de Bohr (1913) do áto-


mo de hidrogênio, quando postula que um único elétron gira em
torno de um núcleo central (experiência derivada do modelo de
Rutherford de 1910), num movimento angular confinado a certos
valores limitados. Baseado nesse modelo, Bohr conseguiu explicar
a fórmula espectral proposta por Johann Balmer e postular certos
"números quânticos" correspondentes ao estado e à energia do
sistema. Contudo, o modelo comportava sérios problemas (por exem-
plo, a pressuposição de que o elétron girava em torno do núcleo
em círculos) que precisavam ser solucionados conforme se faziam
novas experiências.
O importante é que o modelo era imaginado, análogo em parte
a um oscilador harmônico simples e, em parte, ao sistema solar,
porque parecia ter grande potencial explanatório. O gênio de Bohr
mostrava-se na imaginação do modelo. Não era auto-evidente, mas
dependia da crença de Bohr de que a aplicação de conceitos da fí-
sica quântica à mecânica estatística por Einstein e Planck podia ser
semelhante no campo da dinâmica. Logo depois de ter sido formu-
lado, o modelo precisava ser validado tanto em sua capacidade para
explicar o que já se sabia como na de predizer novos fenômenos.
Entende-se que os modelos científicos podem ser dispensados
quando surgem modelos superiores. O modelo de Rutherford do
átomo de hidrogênio, embora regularmente usado no nível popular,
acabou por ser descartado nos círculos profissionais por causa de
deficiências óbvias. Não existe na comunidade científica nenhum
comprometimento com modelos; em princípio, o progresso do co-
nhecimento pode levar ao abandono de modelos anteriores, embo-
ra nem sempre o faça.
Os temas-chave formulação e validação não têm paralelos dire-
tos no pensamento cristão clássico. Numa religião como o cristia-
nismo, entende-se tradicionalmente que analogias e modelos são
"dados", não escolhidos; o teólogo tem duas tarefas a realizar: esta-
belecer os limites da analogia e correlacioná-la com outras analogi-
as dadas. Convém observar que nem todos os teólogos cristãos
pensam assim: alguns diriam que somos livres para desenvolver
206 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

novos modelos sem as configurações dos modelos antigos por se-


rem insatisfatórios. Contudo, o ponto de vista ainda exerce certa
influência como, por exemplo, a idéia de "ciência teológica" de
Thomas F. Torrance.
Nos círculos cristãos ortodoxos não se pensa em abandonar o
modelo cristão tradicional de Deus — por exemplo, o modelo do
"Deus pastor". São modelos profundamente enraizados em materi-
al bíblico, na reflexão teológica e na prática litúrgica. Dificilmente
seriam ignorados. Adquiriram a condição de "metáforas fundamen-
tais", consideradas permanentes e essenciais à verdade da tradição
cristã. Embora permaneçam fundamentais para a reflexão teológica,
podem requerer interpretação ou sugerir estudo de aspectos que até
o momento permanecem ignorados.
Nossa atenção volta-se agora para o tema complexo da "comple-
mentaridade" na ciência e na religião. Trata-se da maneira como cer-
tos sistemas complexos exigem dois modelos ou analogias aparente-
mente contraditórios para representar seu comportamento.

Conceito de complementaridade

Nos parágrafos anteriores, vimos como modelos e analogias


representam importante papel tanto na ciência como na religião.
Vamos agora examinar situações particulares surgidas a partir do
uso de modelos. O que acontece no comportamento de determina-
do sistema precisará de mais de um modelo para representá-lo?
Essa situação é bem conhecida na religião. O Antigo e o Novo Tes-
tamentos empregam, por exemplo, grande variedade de modelos
ou analogias para se referir a Deus como "pai", "rei", "pastor" e "ro-
cha". Cada uma dessas expressões serve para ilustrar diferentes as-
pectos da divindade. Tomados em conjunto, dão-nos um quadro
mais cumulativo e mais compreensivo da natureza divina e de seu
caráter do que quando tomados isoladamente.
Mas o que aconteceria se precisássemos de duas analogias apa-
rentemente contraditórias como base da evidência disponível? Por
Modelos e analogias em ciência e religião I 207

exemplo, tomemos dois modelos, A e A', que, pelos princípios da


lógica, seriam mutuamente exclusivos. Imediatamente surgiria a
questão a respeito do status ontológico da coisa a ser representada
pelo modelo. Poderíamos afirmar que essa coisa "seja" A quando ao
mesmo tempo se associa com A'? Não estaríamos diante de uma
insolúvel contradição lógica?
Nesta seção estudaremos o tema da complementaridade na ciên-
cia e na religião a partir das obras de Niels Bohr (1885-1962) sobre
a teoria quântica e da identidade de Jesus Cristo na teologia. Come-
çaremos pelo exame da maneira como o tema da complementaridade
surgiu na teoria quântica.

Complementaridade na teoria quântica

As origens da teoria da complementaridade de Bohr encontram-


se na teoria quântica. Para entender essa questão precisamos consi-
derar a seguinte pergunta: a luz compõe-se de ondas ou de partícu-
las? Segundo a física clássica, ondas e partículas são entidades com-
pletamente diferentes e mutuamente incompatíveis. Ondas não
podem ser partículas nem partículas, ondas. No início da última
década do século XIX, aceitava-se, em geral, que a luz constituía-se
de ondas.
Como já vimos, começou-se a indagar se as ondas de luz pre-
cisavam de algum meio material para se propagar. A analogia mais
próxima parecia ser o som, também constituído de ondas que pre-
cisavam de determinado meio para se propagar. A analogia parecia
sugerir que a luz, conseqüentemente, também exigiria semelhante
meio para existir. Por causa disso, alguns cientistas sugeriram a exis-
tência do "éter luminífero" — que resolveria a necessidade de tal
meio. A busca desse éter tornou-se extremamente importante na
última década daquele século. Por outro lado, sabia-se que as partí-
culas não precisam de nenhum meio para se expandir.
Pouco a pouco, porém, por causa do acúmulo de evidências, o
modelo das ondas de luz começou a ser questionado. Entre essas
208 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

evidências, uma das mais importantes foi a da radiação de corpos


negros — isto é, a maneira como corpos perfeitos irradiam energia.
A física clássica achava impossível explicar por que o que se chama-
va de "catástrofe ultravioleta" não ocorria — isto é, por que corpos
negros não emitiam radiação em densidade infinita e em freqüên-
cias muito altas. Este fenômeno foi explicado por Max Planck em
publicação de 1900 com base na hipótese da "quantização" da ener-
gia. Tal hipótese declarava que a energia de um oscilador não é in-
finitamente contínua, mas se constitui de "pacotes" de tamanho fixo.
Planck introduziu uma constante fundamental h (conhecida univer-
salmente hoje em dia por "constante de Planck") para se referir a
essa unidade básica de energia. Num oscilador de freqüência v, a
energia do oscilador pode ser definida como hv.
Essa idéia bastante difícil pode ser explicada por meio de uma
analogia. A idéia básica é que a energia não é contínua mas, ao
contrário, descontínua. É mais ou menos como se olhar para uma
grande duna no deserto africano. De longe, ela parece suave; quan-
do chegamos mais perto, percebemos que se compõe de milhões de
pequenos grãos de areia. A energia pode parecer contínua para nós,
mas, quando examinada atentamente, não passa de um agregado
de pequeninos grãos. Em níveis de energia muito altos, esses paco-
tes tornam-se tão pequenos que deixam de produzir impacto
discernível nas coisas. Mas em níveis muito baixos o efeito é notado.
Outro importante desenvolvimento foi a explicação do efeito
fotelétrico dada por Albert Einstein em 1905. Einstein percebeu que
o efeito fotelétrico podia ser concebido como um choque entre uma
partícula de energia e um elétron próximos à superfície de um me-
tal. Esse elétron só poderia ser ejetado do metal se o pacote de luz
(ou feixes de energia semelhante a partículas) possuísse suficiente
energia para realizar essa façanha. A teoria de Einstein (que não
precisa ser explicada muito a fundo para nossos propósitos) permi-
tiu a explicação dos seguintes fatos.

(1) O fator crítico que determina se um elétron vai ser ejetado


não é a intensidade da luz, mas a sua freqüência. Observe-
Modelos e analogias em ciência e religião 1 209

mos que Planck havia dito que a energia de um oscilador


era diretamente proporcional à sua freqüência.
(2) Os aspectos observados do efeito fotelétrico pressupõem
que o choque entre o fóton que chega e o elétron metálico
obedece ao princípio da conservação da energia. Se a ener-
gia desse fóton for menor do que determinada quantidade
(isto é, a "função operacional" do metal em questão), não
haverá emissão de elétrons, independentemente da inten-
sidade do bombardeio de fOtons. Acima deste limiar, a ener-
gia cinética dos fótons emitidos será diretamente proporcio-
nal à freqüência da radiação.

A luz emitida pode ser tratada como se fosse constituída de


partículas (aqui referidas como "fótons") com energia ou movimen-
to definidos.
A brilhante teoria de Einstein sobre o efeito fotelétrico sugeria
que a radiação eletromagnética devia ser considerada como se esti-
vesse se comportando como partículas sob certas condições. Essa
teoria enfrentou grande oposição, principalmente porque parecia
envolver o abandono da posição clássica dominante da total exclu-
sividade de ondas e de partículas — mas nunca das duas. Mesmo os
que depois verificaram a análise de Einstein dos efeitos fotelétricos
suspeitaram de sua postulação dos "fótons". O próprio Einstein
mostrou-se cuidadoso ao se referir a essa hipótese quântica da luz,
chamando-a apenas de "ponto de vista heurístico" — isto é, algo
que poderia ser útil como modelo de compreensão, mas que não
precisaria de fato existir.
Por volta de 1920 sabia-se que o complexo comportamento da
luz precisava ser explicado, em alguns de seus aspectos, por meio do
modelo das ondas, mas, em outros, pelo modelo das partículas. A
obra de Louis de Broglie sugeria que até mesmo o comportamento
da matéria precisava ser considerado segundo o modelo das ondas
em alguns de seus aspectos. Essas teorias levaram Niels Bohr a criar
seu conceito de "complementaridade". Para ele, os modelos clássi-
cos de "ondas" e "partículas" eram necessários para explicar o compor-
210 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

tamento da luz e da matéria. Com isso não queria dizer que elétrons
"fossem" partículas ou "fossem" ondas. Queria dizer, isso sim, que
seu comportamento poderia ser descrito mediante qualquer um
desses dois modelos, e que sua completa descrição dependeria da
reunião dos modos mutuamente exclusivos de representá-lo.
Não se tratava de um expediente intelectualmente superficial e
apressado para afirmar a mutualidade de duas opções exclusivas,
mas de procurar determinar qual delas seria superior. Como já as-
sinalamos, para Bohr tratava-se do resultado de inúmeras teorias e
experiências críticas que demonstravam a impossibilidade de achar
outra forma de representar essa situação. Em outras palavras, Bohr
acreditava que os dados experimentais que ele tinha à sua disposi-
ção forçavam-no à conclusão de que essa situação complexa (o com-
portamento da luz e da matéria) precisava ser representada por meio
de dois modelos aparentemente contraditórios e incompatíveis.
Assim, chama-se agora de "princípio da complementaridade" a
tentativa de manter juntos dois modelos aparentemente irreconcili-
áveis de fenômenos complexos com a finalidade de explicar seu com-
portamento. Mas qual seria a relevância religiosa desse princípio?
Propomo-nos, em seguida, a examinar esse desafio a partir da
cristologia, área da teologia cristã que talvez melhor ilustre essa tare-
fa. Antes, porém, observaremos algumas importantes convergências
nessa área, principalmente entre as idéias de Niels Bohr, do lado da
ciência, e as de Karl Barth e Thomas F. Torrance, do lado teológico.

Complementaridade em teologia

Alguns estudiosos perceberam certa semelhança entre o "prin-


cípio da complementaridade", de Bohr, e a "teologia dialética", de
Barth. Por exemplo, James Loder e Jim Neidhardt acham que há
muita convergência entre os dois autores. No caso de Bohr, o "fenô-
meno" a ser explicado é o comportamento de eventos quânticos;
para Barth, é a relação entre tempo e eternidade, de um lado, e a
humanidade e a divindade da pessoa de Cristo, de outro:
Modelos e analogias em ciência e religião I 211

(1) Tanto para Bohr como para Barth, as formas clássicas da


razão são levadas a seus limites extremos para explicar o
fenômeno em questão.
(2) Os dois pensadores partem firmemente do princípio de que
compete ao fenômeno determinar a maneira de se deixar
conhecer, evitando reduzi-lo a formas já conhecidas.
(3) Nos dois casos, o fenômeno mostra-se numa relação bipolar
irredutível, que se impõe ao observador, exigindo, assim,
uma representação em termos de complementaridade ou
de dialética. A relação entre essas polaridades é assimétrica.
(4) As duas situações exigem o reconhecimento da influência
do observador e a incorporam no que vai ser conhecido.
(5) A observação desses fenômenos exige de quem procura
conhecê-los a capacidade de comunicar o que aprendeu
por meio da linguagem.

As convergências encontradas entre Barth e Bohr podem tam-


bém ser discernidas na obra de Thomas F. Torrance, muito respeita-
do como intérprete de Barth e como defensor do diálogo entre ciên-
cias naturais e religião. A insistência de Torrance na auto-revelação
divina para determinar nossa compreensão aproxima-se bastante
do pensamento de Barth:
A teologia cristã desenvolve-se a partir do conhecimento real de Deus
dado em acontecimentos concretos no tempo e no espaço. Trata-se do
conhecimento do Deus que nos encontra e se dá a nós em Jesus Cristo
— em Israel, na história, na terra. Esse conhecimento é essencialmente
positivo, com conteúdos articulados e mediados pela experiência con-
creta. Ela se preocupa com fatos, principalmente com o fato da revela-
ção de Deus; preocupa-se, também, com o próprio Deus, que precisa-
mente por ser Deus sempre vem em primeiro lugar. Não começamos,
portanto, conosco ou com nossas questões nem mesmo pretendemos
escolher por onde começar; só podemos começar com os fatos trazi-
dos a nós pela realidade do que nos foi positivamente conhecido.
212 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Torrance afirma insistentemente a necessidade de interpretar o


"fenômeno" da revelação em seus próprios termos.
Como já observamos, quase todos concordam que a área teoló-
gica mais óbvia para ser tratada por esse método complementarista
é a cristologia. Torrance ilustra muito bem este ponto quando esta-
belece uma ponte entre o conhecimento de Deus e a cristologia para
concluir com a afirmação da bipolaridade da revelação. Inúmeros
estudos da doutrina de Torrance sobre o conhecimento de Deus
destacam o papel central representado pela cristologia para a com-
preensão dos modos do conhecimento de Deus e da substância desse
conhecimento. Não nos surpreende, portanto, o uso que ele faz do
termo "bipolar" no contexto cristológico: "Somos confrontados aqui
com outra característica fundamental da verdade de Deus em Jesus:
ele é divino e humano. O conhecimento de Jesus terá de ser, conse-
qüentemente, bipolar".
Recentes estudos confirmam os resultados positivos de tal mé-
todo. A ortodoxia cristã sempre afirmou que Jesus era verdadeira-
mente divino e verdadeiramente humano. O reconhecimento si-
multâneo das "duas naturezas numa única pessoa" assemelha-se
claramente aos pontos de vista de Bohr sobre a complementaridade
dos modelos de ondas e partículas aplicados à luz e à matéria. Con-
tudo, não são apenas as definições cristológicas clássicas que ilus-
tram a importância da complementaridade na teologia, mas tam-
bém a maneira como surgiram no período patrístico. A seguir, va-
mos examinar o desenvolvimento da cristologia nesse período e
mostrar como as preocupações de Bohr são altamente significativas
em tal contexto.
Estudaremos também dois paralelos notados por Loder e
Neidhardt entre Bohr e Barth, com o intuito de demonstrar de que
modo a evolução da cristologia clássica se conforma com o modelo
da complementaridade.
Em primeiro lugar, Loder e Neidhardt determinam que o fenô-
meno a ser explicado deve estabelecer a maneira como deve ser
conhecido para evitar que venha a ser reduzido a formas já conhe-
cidas. Como já vimos, as reflexões de Bohr sobre a complemen-
!

Modelos e analogias em ciência e religião 1 213

taridade foram impostas a ele pela evidência experimental acumu-


lada entre 1905 e 1925. Maneiras mais simples de visualizar a situa-
ção poderiam ser encontradas (como, de fato, aconteceu mais tarde
com o desenvolvimento da teoria quântica). A evidência deixada
por experiências, no entanto, mostrou que a simplicidade de alguns
modelos caía por terra, coisa que levou Bohr à conclusão de que
dois modos aparentemente excludentes entre si eram exigidos para
a concepção do fenômeno quântico.
O desenvolvimento da cristologia entre os anos 100 e 451 mos-
tra que essa preocupação era da mais alta importância. O mesmo
procedimento de permitir ao fenômeno (se pudermos empregar esse
termo para falar do complexo amálgama de "testemunho histórico
e experiência religiosa") ditar sua própria interpretação aparece ao
longo do desenvolvimento da cristologia patrística. Modelos sim-
plistas e reducionistas de representar a identidade e o significado de
Jesus de Nazaré fracassavam diante do fenômeno que pretendiam
compreender. Em particular, o modelo de Jesus de Nazaré como
figura puramente humana (encontrado, por exemplo, na heresia ebio-
nita), ou como figura puramente divina (como queria a heresia
docética) eram considerados inadequados. Tanto a representação de
Jesus no Novo Testamento como a maneira pela qual a Igreja cristã
incorporou-o à sua vida de oração e adoração exigiam uma
compreensão mais complexa de sua identidade e seu significado do
que a que aqueles modelos mais simples podiam oferecer.
Também se rejeitou a proposta de um terceiro modelo para ex-
plicar o fenômeno de Jesus de Nazaré. O debate sobre os ensina-
mentos de Apolinário de Laodicéia resultou na rejeição do que se
chamava "estado intermediário", ou tertium quid, entre as duas na-
turezas. O período patrístico testemunhou a rejeição final de qual-
quer tentativa de explicar Jesus em termos que pudessem envolver
a construção de conceitos mediadores ou híbridos entre a divindade
e a humanidade. Vê-se, pois, direto paralelo entre a insistência de
Bohr na plenitude do princípio da complementaridade e a cristologia.
Assim como na aplicação desse princípio às ondas e partículas, a
definição cristológica de Calcedônia afirmava que a doutrina das
214 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

"duas naturezas" era completa (porque não eram necessários mais


do que dois modelos ou naturezas) e complementar (porque somen-
te um desses modelos ou naturezas mutuamente exclusivos podia
ser aplicado de cada vez).
Os escritores patrísticos (como o papa Leão I) muitas vezes
procuraram atribuir aspectos do ministério de Jesus de Nazaré à sua
natureza humana e outros à sua divindade. Esse tipo de procedi-
mento era muitas vezes mal entendido principalmente quando se
pensava que Jesus seria divino apenas quando agia de certa maneira
e humano quando agia de outra. A busca de meios mais ontológicos
para afirmar tanto sua humanidade como sua divindade destinava-
se a evitar esse tipo de vulnerabilidade no trato de sua identidade.
Nossa intenção neste parágrafo limita-se a verificar alguns desdo-
bramentos da teologia patrística e não sua forma final.
Em segundo lugar, Loder e Neidhardt perceberam que tanto
Bohr como Barth afirmavam que o fenômeno (fosse revelatório ou
quântico) mostrava-se em relação bipolar irredutível, impondo-se
assim ao observador e requerendo representações em termos de
complementaridade ou das formas clássicas da dialética. A questão
cristológica de importância crítica era a figura bíblica de Jesus de
Nazaré, que às vezes se comportava ou atuava como Deus e outras
como ser humano. É o que se vê claramente na famosa carta do
papa Leão I a Flaviano, patriarca de Constantinopla, em 13 de junho
de 449, mais conhecida como o "Tomo de Leão". Nessa carta, Leão
deixou claro o consenso cristológico na Igreja latina ocidental. Mais
tarde, essa carta foi elevada à posição de autoridade pelo Concilio
de Calcedônia (451), que a reconheceu como declaração clássica da
ortodoxia cristológica.
Escritores patrísticos como Atanásio argumentavam que a in-
tenção do testemunho bíblico sobre a experiência cristã de Jesus de
Nazaré exigia que ele fosse compreendido como divino e humano.
Por exemplo, Atanásio afirmava que somente Deus pode salvar.
Somente Deus pode vencer o poder do pecado e nos conduzir à
vida eterna. Ele considerava a necessidade de redenção uma marca
essencial da criatura. Nenhuma criatura poderia salvar criaturas se-
I

Modelos e analogias em ciência e religião 1 215

melhantes. Somente o criador poderia redimir a criação. Depois de


ter acentuado que apenas Deus pode salvar, Atanásio empreendeu
o salto lógico que os arianos acharam difícil de refutar. O Novo Tes-
tamento e a tradição litúrgica cristã consideravam Jesus o salvador.
Contudo, como dizia Atanásio, somente Deus poderia salvar. Como
poderíamos entender essa argumentação?
Segundo Atanásio, a única solução possível seria acreditar que
Jesus era Deus encarnado. A lógica do argumento segue mais ou
menos estas linhas:

(1) Nenhuma criatura pode redimir outras criaturas.


(2) Segundo Ário, Jesus era uma criatura.
(3) Portanto, segundo Ário, Jesus não poderia redimir a huma-
nidade.

Com o passar do tempo, um novo estilo de argumentação foi de-


senvolvido, fundamentado nas Escrituras e na tradição litúrgica cristã.

(1) Somente Deus pode salvar.


(2) Jesus Cristo salva.
(3) Logo, Jesus Cristo é Deus.

A salvação, para Atanásio, requeria intervenção divina. Ele bus-


cava, então, apoio para sua tese em João 1,14, "o verbo se tornou
carne", interpretando a passagem da seguinte maneira: Deus en-
trou em nossa situação humana para transformá-la.
Seu segundo argumento parte da constatação de que os cristãos
adoram Jesus Cristo e dirigem a ele suas preces. Este tipo de racio-
cínio representa um excelente caso acerca da importância das prá-
ticas cristãs de culto e de oração para o desenvolvimento da teolo-
gia. Por volta do século IV, o culto cristão centralizava-se na adora-
ção de Cristo. Atanásio ponderava que se Cristo fosse mera criatura
os cristãos deveriam se sentir culpados por adorar uma criatura em
lugar de Deus — em outras palavras, estariam praticando idolatria.
Os cristãos, acentuava ele, estão proibidos de prestar culto a quem
216 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

quer que seja a não ser a Deus. Segundo Atanásio, Afio seria culpa-
do de transformar o culto e as orações cristãs em algo sem sentido,
mas acreditava que as práticas cristãs de culto estavam certas por-
que quando adoravam Jesus Cristo estavam reconhecendo nele o
Deus encarnado.
A consciência de que Jesus de Nazaré tinha de ser entendido
como divino e humano preparou o caminho para o que se conhece como
"confissão de fé de Calcedônia" — a conhecida afirmação de que
Jesus é verdadeiramente divino e verdadeiramente humano. Maurice
Wiles resume as razões que levaram a essa declaração:
Havia, de um lado, a convicção de que o salvador deveria ser comple-
tamente divino; de outro lado, a convicção de que o que não era assu-
mido não poderia ser curado. Ou, em outras palavras, a fonte da sal-
vação deveria ser Deus, enquanto o lugar da salvação seria a humani-
dade. Era também claro que esses dois princípios se opunham. O
Concílio de Calcedônia representou o esforço da Igreja para resolver o
impasse ou, talvez, para decidir conviver com ele em tensão. Na verda-
de, a aceitação dos dois princípios pela Igreja primitiva equivaleu à
aceitação da fé de Calcedônia.

A falta de espaço limita nossa confirmação da convergência entre


outros fatores notados por Loder e Neidhardt, bem como os que
podem ser vistos na formação do desenvolvimento doutrinário da
Igreja primitiva, mas vale a pena assinalar que muitos dos argumen-
tos da era patrística em favor da "dupla natureza" de Cristo foram
apenas funcionais. Em outras palavras, o foco da argumentação re-
sidia na necessidade de esclarecer a condição da pessoa de Jesus
Cristo. Não há dúvida de que os escritores patrísticos chegaram a
conclusões ontológicas a partir dessa análise funcional. Em outras
palavras, se Jesus realmente se comportava como Deus, então se
poderia dizer que ele era Deus. Inúmeros pensadores atuais não
acham que essas conclusões ontológicas sejam necessárias (posto
que refletem interesses ontológicos particulares próprios do perío-
do patrístico); bastaria, para eles, afirmar que Jesus se comportava
de modo divino e humano.
Modelos e analogias em ciência e religião 1 217

Talvez nos ajude perguntar por que o método da comple-


mentaridade teria sido adotado, primeiramente em relação ao fenô-
meno quântico e, depois, em relação à cristologia. A pressão para
esclarecer a natureza do fenômeno quântico veio de observações da
experiência. Daí surgiram crises teóricas demonstrando que os con-
ceitos até então existentes não eram suficientes para explicar o fe-
nômeno. O desejo de entender a natureza de Jesus de Nazaré levou
os seus seguidores, depois de intenso debate e muita controvérsia,
à consciência cada vez maior de que ele não poderia ser descrito a
partir das idéias já existentes. Nesse caso, eles recusaram a tentação
de reduzir o fenômeno a noções conhecidas porque elas carrega-
vam sérias distorções. Para explicar o fenômeno, perceberam duas
opções: utilizar de maneira nova as antigas categorias ou criar cate-
gorias radicalmente novas. Bohr conservara categorias já existentes
("modelos clássicos"), embora reconhecendo que essa linguagem
ordinária podia permitir extensões especializadas capazes de ilumi-
nar outros domínios do saber.
Este capítulo explorou alguns aspectos da maneira como as ciên-
cias naturais e a religião usaram analogias e modelos para represen-
tar a realidade. Naturalmente, limitamo-nos a considerar aspectos
gerais das ciências naturais na sua relação com a religião. Estamos
agora preparados para considerar alguns aspectos mais específicos
dessas ciências. O capítulo seguinte introduzirá alguns temas religio-
sos suscitados por desenvolvimentos no campo da física, da biolo-
gia e da psicologia.

Leituras recomendadas

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218 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

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E

1
Questões em ciência e religião

O 'l'EMA DE NOSSO estudo é complexo porque cada um de


seus termos refere-se a inúmeras possibilidades. Como já vimos, o
conceito de "religião" pode ser aplicado a diferentes sistemas de cren-
ça. Na prática, nossa atenção tem se concentrado no cristianismo
por causa de sua íntima relação com o desenvolvimento das ciências
naturais no mundo ocidental e por causa do impacto aí produzido.
Embora em menor grau, o judaísmo e o islamismo também se en-
volveram nessa tarefa. Convém indagar qual a relação entre a im-
portância do envolvimento dessas três religiões com o desenvolvi-
mento científico e o fato de serem elas monoteístas (isto é, crentes
num só Deus).
A importância da consciência dessas diferenças entre as religiões
no contexto deste estudo vai se tomar mais clara depois de examinar-
mos as teorias de Sigmund Freud sobre as origens da religião nos
povos primitivos. O argumento de Freud (que será estudado mais
adiante, pp. 249-255) retrata Deus como uma figura idealizada de pai.
É verdade que tanto o cristianismo como o judaísmo referem-se a
Deus em termos de "pai celestial". Por exemplo, a Oração do Senhor,
universalmente usada pelos cristãos no culto público e nas devoções
privadas, começa com as palavras: "Pai nosso, que estás nos céus". As
religiões orientais, particularmente certas formas de budismo, não
pensam em Deus dessa maneira. A teoria de Freud baseia-se em uma
generalização imprecisa e simplista sobre a "religião".
222 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Valerá a pena apreciar as importantes diferenças entre as ciên-


cias naturais, coisa muitas vezes obscurecida pelo uso do termo
genérico "ciência". Cada uma das ciências particulares possui seu
método distinto para chegar a seus objetivos, avaliando as evidên-
cias e formulando as estratégias de pesquisa. Assim, a física, a bio-
logia e a psicologia são consideradas ciências naturais apesar de suas
claras diferenças. Mesmo no interior da mesma disciplina científica
existem diferenças significativas sobre inúmeras matérias igualmente
importantes. Por exemplo, a maioria dos cientistas naturais está
preocupada com o reconhecimento do que chama de "realismo" —
isto é, a existência de um mundo independente de nosso pensa-
mento. Entretanto, não é difícil demonstrar diferenças de interpre-
tação do conceito de realismo em uso por diferentes cientistas. O
termo pode significar coisas diferentes em contextos diferentes.
Considerando essa diversidade no âmbito das ciências naturais,
parece-nos correto gastar algum tempo para examinar três delas para
discernir de que maneira relacionam-se com o nosso tema. Escolhe-
mos três áreas bem diferentes de pesquisa científica, cada qual com
sua própria importância religiosa: física e cosmologia, focalizando
alguns aspectos do pensamento cosmológico contemporâneo; biolo-
gia, considerando o impacto das várias formas de darwinismo sobre
o pensamento religioso; e psicologia, examinando as várias maneiras
de entender as origens e o significado da religião.

Física e cosmologia

Pensa-se, em geral, que a física e a cosmologia modernas ofere-


cem as melhores e mais importantes possibilidades para o diálogo
entre as ciências e a religião. O tema da "ordenação do universo"
tem, como já vimos (pp. 156-159) enorme significado quando visto
à luz da doutrina da criação segundo a qual o mundo possui ordem
e racionalidade por causa de sua origem na mente de Deus. As prin-
cipais contribuições para a compreensão da maneira como a moder-
na física teórica se relaciona positivamente com o cristianismo vêm
Questões em ciência e religião 1 223
I

de John Polkinghorne e Charles A. Coulson, que estudaremos mais


adiante (ver pp. 260-263; 270-272). Entretanto, vamos começar este
estudo com a contribuição de outros dois cientistas a partir de dife-
rentes perspectivas.

(1) Paul Davies, professor de física matemática da Universidade


de Adelaide, Austrália, tem explorado a complexidade dos
temas levantados pela cosmologia moderna. Em seus livros
God and the New Physics (Deus e a nova física), de 1984, e
The Mind of God (A mente de Deus), de 1992, Davies expli-
citamente identifica a dimensão religiosa de sua pesquisa.
Embora não contemple seu tema a partir do que se poderia
chamar de "perspectiva teísta convencional", ele não escon-
de sua simpatia pela compreensão religiosa do universo.
(2) Fritjof Capra fazia pesquisas no campo da física de alta
energia, antes de se interessar pelos paralelos entre a física
moderna e o misticismo oriental. A descrição dessas seme-
lhanças, publicada em seu livro O Tao da fi'sica, em 1976,
tornou-se best-seller. Para os críticos, os paralelos identifica-
dos aí talvez sejam menos convincentes do que Capra ad-
mite, acusado de baseá-los em semelhanças mais verbais
do que conceituais.

Aceita-se, em geral, que os dois temas mais importantes surgi-


dos da moderna pesquisa cosmológica concentram-se no big bang e
no que se conhece por "princípio antrópico". É o que vamos consi-
derar a seguir.

Big bang

A questão da origem do universo é sem dúvida uma das áreas


mais fascinantes da análise e do debate científicos modernos.Vamos
procurar demonstrar que há dimensões religiosas nesse debate. Sir
Bernard Lovell, conhecido pioneiro britânico nos estudos de
224 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

radioastronomia, observa, entre muitos outros, que a discussão a


respeito da origem do universo desperta inevitavelmente questões
religiosas. Mais recentemente, Paul Davies, da Austrália, mostrou as
implicações da "nova física" para o pensamento a respeito de Deus,
especialmente em seu citado livro God and the new Physics.
As origens da teoria do big bang parecem depender da teoria
geral da relatividade de Albert Einstein. Essa teoria foi proposta
quando o consenso científico favorecia a noção de um universo es-
tático. As equações criadas por Einstein para descrever os efeitos da
relatividade foram interpretadas por ele em termos do equilíbrio
gravitacional e levitacional. Contudo, o meteorologista russo
Alexander Friedman percebeu que as soluções das equações que ele
mesmo resolvera indicavam modelos diferentes. Se o universo for
perfeitamente homogêneo e em expansão, então deverá ter come-
çado a se expandir a partir de certo estado inicial e em algum mo-
mento do passado que poderia ser caracterizado como área zero
com densidade, temperatura e curvatura infinitas. Outras soluções a
essas equações sugeriam um ciclo de expansão e contração. Essa
análise foi abandonada provavelmente porque não se conformava
com o ponto de vista consensual da comunidade científica. Essa
situação começou a mudar a partir das observações do astrônomo
Edwin Hubble (1889-1953), que interpretou as nuanças vermelhas
do espectro galáctico em termos de um universo em expansão.
Outra notável descoberta ocorreu em 1964 (quase por acidente,
deve-se dizer). Arno Penzias e Robert Wilson trabalhavam com uma
antena experimental de ondas curtas nos laboratórios Bell em New
Jersey. Passavam por algumas dificuldades: qualquer que fosse a
direção para a qual dirigiam a antena, ouviam sempre um ruído
impossível de ser eliminado. Pensaram inicialmente que se tratava
de pombos que produziam interferência ao passar por ali. Mas
mesmo depois de afastar os inconvenientes pássaros o ruído conti-
nuava. Demorou algum tempo para que o mistério fosse desvenda-
do. O ruído foi interpretado como "resíduo" de um brilho de certa
explosão primeva — um big bang —, coisa que já havia sido imagi-
nada em 1948 por George Gamow, Ralph Alpher e Robert Herman.
Questões em ciência e religião 1 225

Essa radiação térmica correspondia a certos fótons movimentando-


se ao acaso no espaço, sem nenhuma fonte discernível, na tem-
peratura de 2,7 K. Ao lado de outras evidências, essa mesma radiação
meio escondida mostrava que o universo tivera começo (o que veio
causar severas dificuldades para a teoria rival do "estado estático" de-
fendida por Thomas Gold e Hermann Bondi, apoiada por Fred Hoyle).
Concorda-se, em geral, que o universo teve começo. Essa idéia
imediatamente nos faz pensar que existe um certo nível de afinida-
de com a idéia cristã do universo criado. É importante relembrar
que a cosmologia moderna suscita questões profundamente religi-
osas. Podemos tomar conhecimento dessas preocupações examinan-
do a obra Uma breve história do tempo, de Stephen Hawking, atenta
aos temas filosóficos e teológicos suscitados pela cosmologia moder-
na. Precisamos notar, contudo, que a postura geral dos pontos de
vista de Hawking tem sido um pouco deformada pela introdução
escrita por Carl Sagan, que sugere não haver lugar para Deus nessa
obra. Considerando que muitos leitores desse livro parecem ter lido
apenas seu prefácio, vale a pena ressaltar o tom geral de suas páginas:
Este é também um livro sobre Deus [...] ou, talvez, sobre a ausência de
Deus. A palavra Deus está em todas essas páginas. Hawking procura
responder à famosa questão de Einstein se Deus tinha alguma escolha
na criação do universo. Hawking esforça-se, como explicitamente es-
creve, para entender a mente de Deus. A constatação dessa intenção
torna mais inesperada a conclusão do livro, pelo menos até agora: o
universo não tem fronteiras no espaço, não há começo nem fim do
tempo e não há nada para um criador fazer.

Pode-se retrucar, com justiça, que esse não é um sumário preci-


so das conclusões de Hawking nem do tom geral da obra. Quando
um dos leitores do rascunho desse livro perguntou a ele se não havia
deixado lugar para Deus, ele respondeu que "tinha deixado comple-
tamente aberta a questão da existência de um Ser Supremo".
Como já observamos, a crença no "começo" do universo não im-
plica necessariamente a idéia da "criação". Contudo, tal implicação tem
sido acentuada por inúmeros escritores, como, por exemplo, Stanley L.
226 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Jaki. Um dos fatores particularmente importantes nesse debate tem


sido o "princípio antrópico", para o qual nos voltamos a seguir.

Princípio antrópico

O termo "princípio antrópico" tem sido empregado de diferen-


tes maneiras por alguns escritores; contudo, refere-se, em geral, ao
alto grau de "afinação" encontrado na ordem natural. O físico aus-
traliano Paul Davies acredita que as notáveis convergências de certas
constantes fundamentais possuem certo impacto sobre a religião.
"A concorrência aparentemente milagrosa de valores numéricos
atribuídos pela natureza a suas constantes fundamentais continua
sendo forte sinal da existência de um planejamento cósmico." A obra
de John D. Barrow e Frank J.Tipler The Anthropic Cosmological Principie
(Princípio cosmológico antrópico), de 1986, é considerada a mais
acessível introdução ao estudo desse princípio.Vamos tentar entendê-
lo por meio da seguinte explicação:
Um dos mais importantes resultados da física do século XX é a compreen-
são gradual de que existem propriedades invariáveis do mundo natural
e de seus componentes elementares que tomam inevitáveis o tamanho e
a estrutura totais de virtualmente todos os seus constituintes. O tama-
nho das estrelas e dos planetas, e mesmo das pessoas, não vem do acaso
nem de nenhum processo de seleção darwinista, entre miríades de pos-
sibilidades. Esses e outros aspectos gerais do universo resultam de neces-
sidade. São manifestações de estados possíveis de equilíbrio entre forças
competitivas de atração e de repulsão. O poder intrínseco dessas for-
ças controladoras da natureza é determinado pelo conjunto misterioso
de números que chamamos de constantes da natureza.

A importância deste tópico é ressaltada em importante artigo


publicado em 1979 na revista Nature por B. J. Carr e M. J.-Rees. Esses
dois autores mostram como a maioria das escalas naturais — em
particular, escalas de massa e de extensão — é determinada por
Questões em ciência e religião 1 227

poucas constantes físicas. Concluíram que "a possibilidade da vida


como a conhecemos no universo depende dos valores dessas pou-
cas constantes físicas — e, de certa forma, mostra-se extremamente
sensível a seus valores numéricos". As constantes que assumiram
papéis particularmente importantes nesse processo são as delicadas
estruturas de constantes eletromagnéticas, gravitacionais e da pro-
porção de massa entre elétrons e prótons.
Exemplos da "afinação" das constantes cosmológicas fundamen-
tais incluem o seguinte:

(1) Se junções de constantes fossem um pouco menores do


que são, o hidrogênio seria o único elemento no universo.
Uma vez que a evolução da vida que conhecemos depende
fundamentalmente das propriedades químicas do carbono,
a vida não teria existido se um pouco de hidrogênio não se
tivesse convertido em carbono por meio de fusão. Por outro
lado, se fossem um pouco maiores (mesmo se apenas 2%),
o hidrogênio teria se convertido em hélio, impedindo a
formação das antigas estrelas. Como essas estrelas são con-
sideradas essenciais para o surgimento da vida, sem elas a
vida não existiria.
(2) Se as constantes frágeis fossem menores, nenhum hidrogênio
teria se formado na história primeva do universo. Conseqüen-
temente, não haveria estrelas. Por outro lado, se fossem um
pouco maiores, as supernovas não seriam capazes de ejetar
elementos mais pesados necessários à vida. Em qualquer dos
casos, não teríamos a vida como a conhecemos hoje.
(3) Se as delicadas estruturas das constantes eletromagnéticas
fossem um pouco maiores, as estrelas não teriam sido su-
ficientemente quentes para dar aos planetas a temperatura
suficiente para os manter vivos na forma que os conhece-
mos. Se menores, as estrelas teriam se incendiado e impe-
dido qualquer vida nos planetas.
(4) Se essas estruturas gravitacionais fossem menores, as es-
trelas e os planetas não poderiam se formar por causa das
228 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

deficiências gravitacionais necessárias para a moldagem de


seu material constituinte. Se maiores, as estrelas assim for-
madas teriam se queimado demasiadamente depressa,
impedindo a evolução da vida (como teria acontecido no
caso das constantes eletromagnéticas).

A evidência dessa "afinação" tem sido discutida entre cientistas,


filósofos e teólogos. Esse debate adquiriu feições antropomórficas.
Os argumentos partiam da premissa de que a vida fundamentava-
se no carbono.
Qual seria, então, o sentido religioso de tudo isso? Não há dúvida
de que as coincidências encontradas eram desafiadoras e provocavam
o pensamento, levando pelo menos alguns cientistas a admitir possí-
veis explicações religiosas para esses achados da ciência. "Quando
contemplamos o universo e identificamos os inúmeros incidentes da
física e da astronomia funcionando em nosso benefício, parece que o
universo estava, de certa forma, esperando pela nossa chegada"
(Freeman Dyson, citado no livro de J. Barrow e F. J.Tipler The Anthropic
Cosmological Principie (O princípio cosmológico antrópico), Oxford,
Oxford University Press, 1986, p. 318). Compreendamos, no entanto,
que nem toda a comunidade científica pensava dessa maneira, apesar
da existência de inúmeros estudiosos obviamente atraídos por essas
conclusões que endossam a noção do Deus criador.
O princípio antrópico, afirmado com ênfase ou não, é consis-
tente com a perspectiva teísta. Qualquer teísta (por exemplo, cris-
tão) que creia firmemente na doutrina da criação encontrará na idéia
da "afinação" do universo a confirmação de suas crenças religiosas
que tanto deseja e tanto lhe agrada. Mas tal princípio não constitui-
ria uma "prova" da existência de Deus, mas seria apenas mais um
elemento na série cumulativa de observações que, pelo menos, são
consistentes com a idéia do Deus criador. Esse é o tipo de argumen-
to usado por F. R. Tennant em seu importante estudo Philosophical
Theology (Teologia filosófica), de 1930, quando o termo "antrópico"
foi empregado pela primeira vez para designar esse tipo específico
de argumento teológico:
Questões em ciência e religião I 229

O valor da sugestão de que a natureza é resultado de um desígnio


inteligente não reside em casos particulares de adaptação no mundo
nem mesmo de sua multiplicidade [...] [mas] da conspiração de inú-
meras causas destinadas a produzir por meio de ações recíprocas e
conjuntas a ordem geral da natureza e a mantê-la. Tipos mais limita-
dos de argumentos teleológicos baseados em pesquisas de fatos de-
senvolvidos em esferas restritas mostram-se bem mais precários do
que o que se espera de uma "teleologia mais abrangente" capaz de
perceber o alcance do argumento dos fins em conseqüência da com-
preensão geral do mundo conhecido.

Mesmo assim, nada disso significa que estejamos diante de


evidências irrefutáveis em favor da existência e do caráter do Deus
criador; poucos pensadores religiosos achariam ser esse o caso. O
que se pode afirmar, no entanto, é que são consistentes com a
cosmovisão teísta, e que podem ser facilmente encaixados nessa
visão. Aos que já aceitam a doutrina da criação, o princípio antrópico,
reforça seus pontos de vista; aos que duvidam dela, pelo menos
podem perceber aí certas possibilidades apologéticas.
Mas como de fato reagem os que não aderem a nenhum ponto
de vista religioso? Que status poderia ter entre eles o "princípio
antrópico" no contexto do longo debate sobre a existência e nature-
za de Deus ou acerca da finalidade divina do universo? Peter Atkins,
físico-químico com pontos de vista visivelmente anti-religiosos,
observa que a "afinação" do mundo pode parecer milagrosa, mas
que, depois de ser estudada com profundidade, não passa de mera
explicação naturalista.
Talvez a discussão mais valiosa deste tópico encontre-se na prin-
cipal obra de Barrow e Tipler que examinaremos a seguir. O argumento
básico de Barrow e Tipler é de que não precisamos procurar nenhuma
outra explicação para a existência do universo como existe atualmente,
pois se não existisse como é não seríamos capazes de observá-lo:
A enorme improbabilidade da evolução da vida inteligente em geral e
do homo sapiens em particular em qualquer ponto do espaço e do tem-
230 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

po escolhido ao acaso não significa que deveríamos ficar maravilhados


de que existamos aqui. Seria mais ou menos como se a rainha Elizabeth
II se maravilhasse de ser rainha da Elisabeth. Mesmo se a possibilida-
de de qualquer britânico se tornar monarca seja de cerca 10-8, alguém
deve ser o monarca. Somente a pessoa nessa posição (de monarca)
pode perguntar: "quão improvável é que eu seja um monarca?".
Semelhantemente, somente se uma espécie inteligente de um tipo
particular evolui num determinado lugar do espaço e do tempo é que
se torna possível que alguém pergunte de que maneira se tomou pro-
vável a vida inteligente nessa forma.

Barrow e Tipler afirmam (sem se justificar explicitamente) que


nossa existência de observadores humanos já é em si mesma uma
base adequada para explicar os aspectos fundamentais do universo.
O argumento toma a seguinte forma:

(1) Existem aproximadamente 108 pessoas na Inglaterra.


(2) Uma dessas pessoas é o monarca.
(3) A probabilidade de uma delas vir a ser monarca na Ingla-
terra seria de 10-8.
(4) Portanto, não deveria causar nenhuma surpresa que uma
pessoa se ache nessa condição. Alguém deve ser monarca.

O argumento não é particularmente persuasivo. Baseia-se na


plausibilidade concedida de dada situação para tornar plausível outra
situação mais complexa e mais contestada. De fato, o argumento
pressupõe a analogia entre a necessidade de alguém na Inglaterra
ser monarca, dada a atual constituição desse país (questão de con-
tingência, não de necessidade) e o surgimento da humanidade no
universo. A analogia é vulnerável em diversos pontos. Para avançar
nesse exame, consideremos o aspecto central do argumento: o pa-
pel do observador.
Ao abrir sua extensa apresentação do princípio antrópico, Barrow
e Tipler ressaltam a importância do observador na análise do universo:
Questões em ciência e religião 1 231

Os aspectos básicos do universo, incluindo propriedades como forma,


tamanho, idade e leis de mudança, devem ser observados como um
tipo que permita a evolução dos observadores, porque, se vida inteli-
gente não evoluísse num outro universo possível, é óbvio que nin-
guém perguntaria sobre a forma, o tamanho, a idade e assim por diante
do universo. À primeira vista, tal observação pode parecer verdadeira
mas trivial. No entanto, tem implicações de longo alcance para a física.
É uma redefinição do fato de que quaisquer propriedades observadas
do universo que podem inicialmente parecer surpreendentemente
improváveis só podem ser vistas em sua verdadeira perspectiva após
termos considerado o fato de que certas propriedades do universo são
pré-requisitos necessários para a evolução e a existênca de quaisquer
observadores.

É claro que a linha básica do argumento aqui é que o fato de que


alguém está fazendo qualquer observação reflete o fato de que o
universo possui certos aspectos que permitem a evolução de formas
de vida nas quais é possível observar pelo menos alguns desses as-
pectos.
Esse argumento tem sido desafiado por muitos escritores religio-
sos, talvez mais notavelmente por Richard Swinburne. Ele apresen-
ta a seguinte analogia que tem um ponto importante com respeito
à existência de um observador:
Suponhamos que um louco rapte sua vítima e a encarcere num quarto
com uma máquina de embaralhar cartas. A máquina embaralha dez
montes de cartas simultaneamente e retira, a seguir, uma carta de cada
monte e exibe simultaneamente essas dez cartas. O raptor ordena à
vítima que faça a máquina funcionar para ver quais cartas ela vai
mostrar, e que se não sair da máquina um ás de copas de cada monte
a máquina explodirá e a vítima morrerá em conseqüência. Mas porque
a máquina explodiria antes que ele visse que cartas teriam saído, ele
não teria tido chance de saber que tipo de cartas a máquina teria tira-
do. A vítima, então, põe a máquina em movimento e para seu espanto
e alívio a máquina lhe dá um ás de copas de cada monte. A vítima fica
232 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

pensando que esse fato extraordinário precisa ser explicado, suspei-


tando que a máquina teria sido, de certa forma, fraudada. O raptor
volta ao quarto e duvida de que a máquina tivesse sido manipulada. E
diz: "Não me surpreendo que a máquina tenha tirado apenas ases de
copas. Você, na verdade, não poderia ter visto nada diferente disso.
Pois, se o resultado tivesse sido diferente, você não estaria mais aqui
para saber". Naturalmente, a vítima estava certa e o raptor, errado.
Existe, de fato, algo extraordinário que precisaria ser explicado no caso
dos dez ases de copa. O fato de que essa ordem particular tenha sido
condição necessária para que as cartas tiradas fossem percebidas faz
que o que veio a ser percebido seja igualmente extraordinário e que
precise de explicação.

Swinburne acredita que a existência de observadores nada tem


a ver com a probabilidade dos eventos observados. Se uma série de eventos
altamente improváveis gerarem um observador capaz de notar a
improbabilidade de tais eventos, mesmo assim os eventos continua-
riam improváveis.
Então, que relação existe entre o princípio antrópico e a teologia
natural? O filósofo teísta William Lane Craig argumenta que, se eli-
minássemos a falácia filosófica básica da obra de Barrow e Tipler, ela
"tornar-se-ia para o argumento dos fins no século XX o que a teolo-
gia natural de Paley representou no século XIX" — isto é, "um com-
pêndio de dados de ciência contemporânea indicando a existência
de certo desígnio inexplicável na natureza, em termos ordinários e,
portanto, voltado para o Planejador Divino". Talvez haja um pouco
de exagero nesta posição. Contudo, é assim que os teístas leriam as
evidências reunidas nessa importante obra. Nada se prova, na ver-
dade, estritamente falando. Mas são idéias claramente consistentes
com a interpretação teísta do mundo.

Biologia

Nesta discussão a respeito dos aspectos religiosos da cosmologia


moderna, veremos que as ciências físicas fornecem uma importante
Questões em ciência e religião 233

base positiva para o diálogo entre ciência e religião. A situação muda


um pouco em relação às ciências biológicas, que examinaremos agora.
Uma das questões mais fundamentais é a da origem da humanidade
e as implicações, por exemplo, da resposta darwinista à compreen-
são cristã da natureza humana.

Charles Darwin (1809-1882)

Por volta do século XVIII sabia-se que pelo menos certo grau de
regularidade ou de ordem podia ser observado no mundo das plan-
tas e na vida animal. Uma das mais importantes interpretações des-
se tipo de observação deve-se ao naturalista sueco do século XVIII
Carl von Linné (1707-1778), mais conhecido pela forma latinizada
de seu nome, Linnaeus, ou Lineu.
Lineu entendia que a diversidade nos reinos animal e vegetal
poderia ser organizada em diversos grupos ou "espécies" distintas.
O sistema taxonômico de Lineu baseava-se no pressuposto de que
a criação é fixa e racional. A base disso (com ressonâncias tanto do
pressuposto da ordem do mundo aberta à investigação por meio de
observação rigorosa como da categorização lógica) sustenta a dou-
trina cristã da criação e a crença iluminista na harmonia e na
racionalidade do mundo.
Uma das mais fundamentais afirmações de Lineu é a "fixação
das espécies". Em outras palavras, não teria havido modificações
substanciais nas espécies. Embora Lineu não acreditasse que o
mundo fora criado segundo a periodicidade sugerida por certas
passagens do Gênesis (1 e 2), achava certamente que o fora mais ou
menos como era então. Essa concepção da origem do mundo seria
desafiada por Darwin, muito embora antes dele outros pesquisadores
já houvessem percebido que certas espécies tinham desaparecido.
Já examinamos em capítulo anterior alguns aspectos centrais da
controvérsia darwinista (ver pp. 35-41) e não pretendemos repetir o
que já foi mostrado. Interessa-nos agora entender os temas especiais
suscitados pela teoria de Darwin a respeito da seleção natural que
tenham alguma relação direta com a religião. Os quatro temas mais
234 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

importantes dás teorias de Darwin encontrados em suas obras A


origem das espécies, de 1859, e A descendência do homem, de 1871, são
os seguintes:

(1) Lineu errou ao afirmar a "fixação das espécies". A evidência


sugere que tanto as espécies animais como as vegetais su-
jeitam-se a mudanças e desenvolvimento. Como resultado
disso, certas espécies existentes hoje não existiram no pas-
sado e só chegaram à vida por meio do processo da evolu-
ção. Por outro lado, outras espécies que teriam existido no
passado estão agora extintas. Muitas delas são conhecidas
por meio de registros fósseis; outras, cuja existência pode
ser inferida da atual diversidade de espécies, não deixaram
nenhuma evidência material. Essa metodologia evolu-
cionária pôs em xeque o ponto de vista defendido em geral
pela teologia protestante tradicional de que as narrativas
bíblicas da criação só podiam ser interpretadas como atos
definitivos que estabeleceram para sempre a ordem imutá-
vel da natureza.
(2) A teoria de Darwin ensinava que o processo da evolução
havia se desenvolvido ao lado de tremendas lutas pela exis-
tência, quando inúmeras espécies teriam sido eliminadas
como resultado de competição entre elas. É provável que as
narrativas de Darwin dessas batalhas pela sobrevivência te-
nham sido matizadas pela leitura da obra de Thomas Robert
Malthus Essay on the Principies of Population (Ensaio sobre os
princípios da população), de 1798, que retratava a luta pela
existência precipitada pela escassez de recursos alimentícios.
Contudo, esse elemento de perda parecia entrar em conflito
com a noção da divina providência. Como, perguntavam
alguns, poderia um Deus sábio e bondoso permitir tal des-
perdício na natureza? De fato, a teoria de Darwin da sele-
ção natural parecia acentuar muitas das dificuldades asso-
ciadas ao problema tradicional do mal. Se Deus é realmen-
te onipotente e bom, por que deve haver sofrimento no
!

Questões em ciência e religião ! 235

mundo? Os novos rumos dados a este problema por Darwin


vinham do reconhecimento da extensão do sofrimento no
mundo nesse longo processo responsável pela atual ordem
do mundo.
(3) A função do acaso no processo evolutivo constituiu-se num
outro problema em decorrência dessas questões. A teoria
de Darwin parecia a diversos de seus críticos — principal-
mente para Charles Hodge (1797-1878), teólogo de Prin-
ceton — afirmar que plantas e animais (e a humanidade)
teriam aparecido na terra por acidente. A descrição de
Darwin da seleção natural, ao lado da noção da "sobrevi-
vência do mais apto", parecia dizer que o desenvolvimento
havia se dado por meio de inúmeros eventos acidentais e
por acaso, sem nenhuma interferência da mão orientadora
de Deus. Como, perguntava Hodge, se poderia reconciliar
essa teoria com a idéia de um Deus planejador do mundo,
quando importantes partes dessa ordem natural poderiam
ter surgido sem sua interferência?
(4) É provável que a maior dificuldade religiosa dessa teoria
relacione-se com o lugar da humanidade no processo.
Darwin já havia sugerido com certo cuidado em suas obras
há pouco mencionadas que a humanidade se originara
exatamente do mesmo jeito que as plantas e as outras es-
pécies animais e herdara suas características também da
mesma maneira. A humanidade não era exceção, mas ape-
nas o mais excelente produto da evolução. Os seres huma-
nos teriam descendido de outras formas de vida e logrado
exercer domínio sobre a natureza por causa de sua capaci-
dade superior de sobrevivência. Tais pontos de vista con-
trastavam com as idéias cristãs tradicionais sobre a criação
especial da humanidade (Gênesis 1 e 2) e especialmente
com a noção de que, de certa forma (tradicionalmente visí-
vel no conceito da "imagem de Deus na humanidade"), a
natureza humana era distinta das demais ordens naturais e
superior a elas. Darwin não discordava da idéia de que a
236 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

humanidade fosse superior ao resto da ordem natural, mas


a maneira como explicava essa superioridade mostrava-se
totalmente incompatível com o pensamento religioso tra-
dicional a respeito.

Charles Darwin (1809-1882)

Obras fundamentais
A origem das espécies (1859)
A descendência do homem (1871)

Idéias básicas
Animais e plantas evoluíram e são mutáveis.
As espécies conhecidas hoje descenderam de outras espécies. Algumas delas
estão extintas.
A "luta pela existência" significa que as espécies mais bem adaptadas sobrevi-
vem na competição pela vida.
A humanidade não pode ser considerada diferente dos outros animais, mas evo-
luiu de formas anteriores.

Obras secundárias
DENNETT, D. C. Darwin's Dangerous Idea: Evolution and the Meaning of Life.
New York, Simon & Schuster, 1995.
DURANT, J. Darwinism and Divinity. Oxford/New York, Basil Blackwell, 1985.
HULL, D. L. Darwin and his Critics. Cambridge, MA, Harvard University Press, 1973.
MOORE, J. R. The Post-Darwinian Controversies: A Study of the Protestant
Struggle to come to terms with Darwin in Great Britain and America, 1870-1900.
Cambridge, Cambridge University Press, 1979.

Com base neste breve sumário descritivo da teoria da seleção


natural de Darwin, vê-se quão importante foi seu desafio para o
pensamento religioso tradicional. Perguntamos então: quais são as
conseqüências disso para o nosso estudo? A seguir, estudaremos
duas diferentes linhas de pensamento. Segundo a primeira, a teoria
darwinista da evolução (modificada pelas descobertas posteriores
da biologia molecular) elimina a crença em Deus. Esse ponto de
Questões em ciência e religião 237

vista foi defendido por Richard Dawkins, biólogo molecular de


Oxford. A segunda linha de pensamento, defendida por diversos
autores, reconhece que o darwinismo obriga a teologia cristã a re-
pensar a maneira como entende o governo de Deus na ordem na-
tural — mas não a crença fundamental de que Deus tenha criado o
mundo. Esse ponto de vista é geralmente conhecido como "evolu-
cionismo teísta". Será considerado no final desta seção. Mas agora
vamos nos demorar um pouco no pensamento de Richard Dawkins,
abertamente anti-religioso.

Neodarwinismo: Richard Dawkins

No livro muito discutido The Blind Watchmaker (O relojoeiro


cego), Dawkins trata do surgimento da intencionalidade no mundo,
responsável por muitas conclusões religiosas. Para ele, mesmo as
entendendo, considera-as errôneas e sem fundamento.
O [surgimento da intencionalidade] no mundo talvez seja a razão mais
importante para a fé em algum tipo de divindade sobrenatural, assu-
mida por uma grande maioria de pessoas até agora. Foi preciso um
grande salto da imaginação para Darwin e Wallace perceberem, con-
trariando toda intuição, que havia outra maneira muito mais plausível
para se entender o complexo "desígnio" surgido a partir da simplicida-
de primeva.

O título da obra de Dawkins inspirou-se numa analogia empre-


gada por William Paley, que havia sido um dos mais ferrenhos de-
fensores do "argumento dos fins". Paley acreditava que o mundo
era como um relógio construído por alguém e capaz de demonstrar
finalidade (ver pp. 128-129). Assim como a existência do relógio
pressupunha o relojoeiro, assim a presença de intencionalidade na
natureza (evidente, por exemplo, no olho humano) exigia um
planejador. Embora Dawkins aprecie esse imaginário, considera-o
fatalmente defeituoso. A própria idéia de "desígnio" ou "propósito"
estaria fora de lugar.
238 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Paley procurou construir seu argumento por meio de descrições boni-


tas e reverentes, dissecando o maquinário da vida, a começar pelo olho
humano. [...] Seu argumento é exposto com apaixonada sinceridade e
vem informado pela melhor erudição de seu tempo, mas está errado,
gloriosa e absolutamente errado. [...] O processo da seleção natural,
cego, inconsciente e automático, descoberto por Darwin, que agora co-
nhecemos, explica que a existência e as formas aparentemente planeja-
das da vida não têm propósito algum. O processo não tem inteligência
nem olhar. Nada planeja para o futuro. Não possui visão nem previ-
são, nem mesmo qualquer percepção. Se quiséssemos dizer que o pro-
cesso da natureza representa o papel de um relojoeiro, este seria cego.

O processo da seleção natural é visto, assim, sem nenhuma orien-


tação ou finalidade, "selecionando" no sentido em que certas forças
naturais tendem a impedir que algumas espécies se estabeleçam no
meio de acirrada competição com outras espécies, lutando para so-
breviver no mesmo ambiente.
Esse tom francamente antiteleológico pode também ser encon-
trado em diversas outras obras anteriores escritas por biólogos
moleculares.Talvez a mais importante delas seja a de Jacques Monod,
Chance and Necessity (Mudança e necessidade), na qual afirma que
as mudanças evolucionárias acontecem por acaso e se perpetuam
por necessidade. Contudo, convém relembrar que Dawkins desen-
volve o aspecto religioso dessa afirmação muito mais do que Monod.
São estas as duas principais conclusões religiosas alcançadas por
Dawkins em suas análises:

(1) Uma das principais funções da religião é a explanatória. A re-


ligião oferece explicações sobre a maneira como o mundo é,
considerando essas afirmações "teorias científicas" de certo tipo.
Escreve em seu The Extended Phenotype (O fenótipo estendi-
do), de 1982: "Deus e a seleção natural [...] são as duas únicas
teorias operacionáveis para explicar por que existimos". A ex-
plicação dada pela "hipótese de Deus" deve, segundo Dawkins,
ser rejeitada por ser inferior à outra oferecida pela seleção
Questões em ciência e religião 239

natural. As explicações religiosas eram aceitas pela fé no pas-


sado. Contudo, não são mais necessárias e devem ser aban-
donadas por serem anacrônicas e injustificadas.
(2) Se, por um lado, as ciências naturais oferecem teorias
justificadas pela evidência, as religiões nos dão teorias contrá-
rias à evidência. A fé passa a ser assim crença sem nenhuma
substância nem idoneidade. Dawkins desenvolveu este tema
com ênfase especial numa conferência pronunciada em 15 de
abril de 1992 no Festival Internacional de Ciência, em Edim-
burgo. Afirmou, então, que, "a fé é a grande negação, a grande
desculpa para fugirmos da necessidade de pensar e de avaliar
a evidência. Fé é crença apesar da falta de evidências, talvez
até mesmo por causa da falta de evidências". Às vezes, ele
chega mesmo a ser pouco cauteloso em sua linguagem, suge-
rindo que a fé "seria uma espécie de doença mental" ou até
mesmo "um dos maiores males do mundo, comparável ao
vírus da varíola, embora mais difícil de ser erradicado".

Não é fácil responder a todas essas objeções no pequeno espaço


que temos, mas diversos estudiosos cristãos têm enfrentado essas
duas afirmações procurando demonstrar que não fazem justiça ao
que se conhece do pensamento cristão. Por exemplo, a filosofia da
religião trata profundamente dos fundamentos da fé. A contribui-
ção de escritores como Alvin Plantinga e Richard Swinburne sobre
a questão das justificações e bases da fé mostra que as afirmações
de Dawkins que acabamos de examinar são completamente inacei-
táveis. Os escritos mais polêmicos de Dawkins talvez se dirijam a
audiências pouco familiarizadas com a tradição intelectual cristã e
que, portanto, estariam preparadas para aceitar suas idéias sem
nenhum questionamento.

Teísmo evolucionário

As controvérsias darwinistas mostraram que inúmeros teólogos


cristãos consideravam as idéias de Darwin hostis à fé cristã. Não
240 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

teria a A origem das espécies posto em xeque aspectos do relato da


criação no Gênesis? E não teria A descendência do homem levado mais
adiante esse desafio e questionado a idéia cristã da humanidade
como o coroamento da criação divina?
Não há dúvida de que muita gente aceitou essas críticas. Outros,
contudo, viram no processo da evolução nada menos do que a mão
providencial de Deus guiando a criação a estados mais altos de cons-
ciência e desenvolvimento — ponto de vista geralmente conhecido
como "evolução teísta". Henri Bergson e Pierre Teilhard de Chardin
são excelentes exemplos de um filósofo e um teólogo que se sentiram
atraídos pela idéia da evolução biológica. Vamos discutir as idéias de
Teilhard de Chardin no próximo capítulo; agora estudaremos apenas
algumas respostas protestantes conservadoras, do século XIX, a
Darwin, conscientes da possibilidade de integrar a teologia cristã da
providência ao conceito darwinista da evolução do mundo.
Henry Ward Beecher (1818-1887) é um excelente exemplo de
um escritor originalmente simpático ao calvinismo que acabou por
adotar certa forma de evolução teísta. Em sua obra de 1885 Evolution
and Religion (Evolução e religião), Beecher expõe sua visão do com-
plexo processo evolucionário guiado por Deus. Não seria isso mais
impressionante e sugestivo do desígnio do que um único ato origi-
nal de criação?
Se atos isolados [de criação] podem revelar intencionalidade, quanto
mais um vasto universo, que por meio de leis inerentes gradualmente
foi se construindo a si mesmo, e então criou suas plantas e seus ani-
mais, tão ajustado a seus propósitos que abandonou no caminho as
coisas mais pobres, e continuou sem parar na direção de resultados
mais complexos, engenhosos e belos! Quem teria planejado essa po-
derosa máquina, criado a matéria, estabelecido suas leis e impresso
nela essa tendência a resultados quase infinitos no globo, fazendo dele
um sistema perfeito?

Para Beecher, Deus teria providencialmente ordenado a gradual


eliminação das origens animais da humanidade a fim de estabelecer
sua capacidade superior moral e espiritual.
Questões em ciência e religião 1 241

Se a teoria da evolução não passa de um vagaroso decreto de Deus, e


se Deus está por trás dele, então a solução não apenas se toma natural
e fácil, mas sublime, de tal maneira que a esperada experiência a se
desenrolar por muitas gerações pode ser vista como parte do plano
divino por meio do qual a raça estaria em constante ascensão enquan-
to os fracos tornavam-se mais fortes [...] até que no homem o bem se
tornasse mais forte do que o animal.

Um dos mais conhecidos pensadores protestantes conservado-


res do período era também teísta evolucionista. Benjamin B. Warfield,
professor de teologia no Seminário Teológico de Princeton, cons-
truiu uma notável reputação para a ortodoxia protestante, especial-
mente em relação com as Escrituras. Para ele, não havia "dúvida
quanto à compatibilidade da forma da hipótese darwinista da evo-
lução com o cristianismo". As intenções divinas podiam ser vistas
nas leis mediante as quais o processo natural operava. Num ensaio
de 1888 sobre Darwin, Warfield expôs o que pensava. Achava que a
doutrina da seleção natural poderia ser facilmente aceita pelos evan-
gélicos como lei natural operando sob a égide geral da providência
divina. Semelhantes atitudes foram tomadas por outros estudiosos,
incluindo alguns dos que contribuíram para a coleção intitulada The
Fundamentais (Os fundamentos), que marcou as origens do movi-
mento "fundamentalista" na América do Norte.

Psicologia

A terceira área de interesse que diz respeito ao tema das rela-


ções entre ciência e religião concentra-se na psicologia. A obra de
Sigmund Freud ilustra a relevância potencial da psicologia em rela-
ção, por exemplo, com a explicação das origens da crença religiosa.
Freud estava convencido de que a crença religiosa fundamentava-se
em certas desilusões profundamente enraizadas nos seres huma-
nos. Outros estudiosos, como William James, nos legaram avalia-
ções bem mais positivas da religião. A seguir, examinaremos algu-
242 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

mas considerações de natureza psicológica sobre a religião e indica-


remos sua importância para o nosso tema.

Ludwig Feuerbach (1804-1872)

Talvez possa parecer estranho começar este estudo sobre a com -


plexa interação da psicologia com a religião com alguém que não
era psicólogo. Contudo, a análise feita por Feuerbach da experiência
religiosa exerceu enorme influência no pensamento ocidental e até
mesmo nos trabalhos de Freud, em diversos pontos importantes.
Abriremos, pois, nossa discussão com um resumo das idéias de
Feuerbach, indicando seu valor para nosso tema.
Sua obra mais influente continua a ser The Essence of Christianity
(A essência do cristianismo), de 1841, na qual afirma que a idéia de
Deus surge, compreensivelmente, mas erradamente, da experiência
humana. A religião não passa da projeção dos desejos e aspirações
da natureza humana num plano transcendente ilusório. Os seres
humanos objetificam seus próprios sentimentos enganosamente. In-
terpretam suas experiências subjetivas como consciência ou percep-
ção de Deus, quando de fato nada disso passa de mera experiência
deles mesmos. Deus seria o desejo da alma humana personificado.
Segundo Feuerbach, nós ansiamos por um ser sobrenatural ca-
paz de satisfazer todos os nossos desejos e sonhos. É, portanto, a
coisa mais natural que, ao assim proceder, inventemos tal ser. Para
ele, a doutrina da ressurreição de Cristo nada mais é do que o eco do
profundo desejo humano de certeza imediata de imortalidade pessoal.
Deus é simplesmente a projeção da vontade humana. As Escrituras
nos dizem que Deus criou os seres humanos à sua imagem; Feuerbach
declara que nós, em compensação, criamos Deus à nossa imagem. "A
humanidade é o começo, o centro e o fim da religião." Deus é um
desejo humano realizado e mantido por uma ilusão. O cristianismo é
um mundo de fantasia habitado por pessoas que não conseguiram
perceber que quando pensam estar falando com Deus estão apenas
revelando suas esperanças e seus temores mais íntimos.
Questões em ciência e religião 243

Tenhamos em mente que Feuerbach escrevia sua obra na mes-


ma época em que a influência do grande teólogo liberal alemão
Friedrich Schleiermacher (1736-1834) estava no apogeu. O sistema
teológico de Schleiermacher partia da análise da experiência huma-
na, principalmente da experiência humana geral de ser dependente
(que ele interpretava na perspectiva cristã como "dependência de
Deus"). Seja qual for o mérito dessa metodologia, ela corre o risco
de subordinar a realidade de Deus à experiência religiosa do crente
piedoso.A teologia transforma-se, assim, em antropologia e o conhe-
cimento de Deus reduz-se ao conhecimento da natureza humana.
A análise de Feuerbach pode ser considerada uma crítica bri-
lhante a essa atitude. Para Schleiermacher, a existência de Deus fun-
damenta-se na experiência humana. Mas, como Feuerbach faz ques-
tão de assinalar, a experiência humana bem pode ser apenas de nós
mesmos, e não de Deus. Podemos simplesmente projetar ou objetificar
nossas próprias experiências dando a elas o nome de "Deus" —
quando deveríamos nos dar conta de que são apenas experiências
de nossa natureza humana. Pode-se, então, dizer que o método de
Feuerbach representa uma crítica devastadora de idéias cristãs cen-
tralizadas na humanidade. Dada a enorme influência dessas idéias
nos círculos acadêmicos da Europa ocidental no século XIX, não
surpreende que as idéias de Feuerbach tenham sido recebidas com
tanto interesse.
Contudo, convém observar que Feuerbach faz improcedentes
generalizações a respeito da religião. Ele assume (sem nenhuma ar-
gumento sério ou apelo à tradição acadêmica) que todas as religiões
do mundo partem dos mesmos componentes básicos e que podem
ser explicadas com base em sua teoria ateísta da projeção. Todos os
deuses e, portanto, todas as religiões são simples projeções de de-
sejos humanos. Mas o que dizer das religiões não-teístas — religiões
mundiais como o budismo teravada, que explicitamente nega a exis-
tência de Deus?
Talvez a objeção mais séria à hipótese de Feuerbach relacione-
se com a lógica de sua análise. No centro de seu ateísmo está a
crença de que Deus seja apenas a projeção de nossos desejos. Na
244 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

verdade, as coisas não existem porque as desejamos. Mas não segue


daí que pela simples razão de desejarmos alguma coisa ela não exis-
ta ou que não possa existir por causa disso. O conhecido lógico ale-
mão Eduard von Hartmann chamou a atenção para esse ponto há
um século em seu monumental estudo The History of Logic (A his-
tória da lógica):
É perfeitamente verdadeiro que nada existe meramente porque dese-
jemos sua existência, mas não é verdade que algo não possa existir
simplesmente porque desejemos sua existência. Contudo, a crítica de
Feuerbach contra a religião e a prova de seu ateísmo residem nesse
simples argumento — uma falácia lógica.

Os argumentos de Feuerbach dirigidos contra a crença religiosa


acabam por se voltar contra ele mesmo quando sugerem que suas
crenças anti-religiosas possam vir de dentro dele — especialmente
de seu desejo por autonomia.
Contudo, o argumento de Feuerbach de que a experiência reli-
giosa possa ser interpretada como experiência não de Deus, mas
dos desejos de quem a experiencia, tem claras implicações para a
psicologia da religião. Se a religião for entendida como criação hu-
mana, poderá então ser explicada segundo os argumentos
reducionistas estabelecidos por Feuerbach. Talvez a mais importan-
te conseqüência dessa maneira de pensar possa ser vista nos escri-
tos de Karl Marx, especialmente em seus manuscritos econômicos e
políticos de 1844, nos quais argumenta que a religião seria mero
reflexo do mundo material: "A religião é apenas o sol imaginário
que parece, aos seres humanos, circular em volta deles até que des-
cubram que eles são o centro de sua própria revolução". Com outras
palavras, Deus é apenas a projeção das aspirações humanas. Os ho-
mens "buscam um ser sobre-humano na realidade fantasiosa do
céu, e encontram apenas um reflexo deles mesmos. Marx situa a
origem da religião na alienação socioeconômica, e em seu contínuo
apelo na forma de intoxicação espiritual que tornam as massas inca-
pazes de reconhecer a própria situação e de fazer alguma coisa para
Questões em ciência e religião 245

mudá-la. A religião é um conforto, "o ópio das massas", fazendo


com que o povo tolere sua alienação econômica. Se não houvesse
tal alienação, não haveria necessidade de religião. A divisão do tra-
balho e a existência da propriedade privada introduzem a alienação
e a separação nas ordens econômica e social.
O materialismo afirma que os eventos do mundo material pro-
vocam correspondentes mudanças no mundo intelectual. A religião
resulta, assim, de certos arranjos das condições sociais e econômi-
cas. Quando essas condições forem mudadas, com a eliminação da
alienação econômica, a religião deixará de existir. Não servirá mais a
nenhum propósito útil. As condições sociais injustas produzem a re-
ligião e são, por sua vez, apoiadas pela religião. "A luta contra a
religião é, portanto, indiretamente, a luta contra o mundo do qual a re-
ligião é a fragrância espiritual."
Marx acredita que a religião continuará a existir enquanto servir
às necessidades da vida do povo alienado. É preciso que se desen-
cadeie uma revolução no mundo real para que nos livremos da re-
ligião: dos fatores que a causam, de um lado, e dos que a sustentam,
de outro. Marx diz que quando construirmos um ambiente social e
econômico não mais alienado, por meio do comunismo, desapare-
cerão todas as necessidades que agora justificam a religião. E com a
eliminação dessas necessidades materiais desaparecerá também a
fome espiritual.
Feuerbach argumentava que a religião era a projeção das neces-
sidades humanas, uma expressão da "mais profunda tristeza da
alma". Para Marx, não bastava explicar a religião como resultado de
tristeza e injustiça. Era preciso transformar o mundo e, assim, remo-
ver as causas da religião. Marx, entretanto, concordava com Feuerbach
na análise das origens da religião, mesmo quando não imaginava
que acabando com essas origens acabaria também com a religião.
Essa percepção fundamentava a tão citada frase das onze teses so-
bre Feuerbach: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo, de
diferentes maneiras; o que importa, no entanto, é transformá-lo".
Contudo, nosso interesse reside especialmente no uso feito por
Sigmund Freud desses fundamentos gerais intelectuais para a críti-
246 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Ludwig Feuerbach ( 1804-1872)

Obra principal
The Essence of Chnstianity (A essência do cristianismo), (1841)

Tema básico
A religião é projeção dos desejos humanos num plano objetivo imaginário.

Obras secundárias
HARVEY, V. A. Feuerbach and the lnterpretation ofReligion. Cambridge, Cambridge
University Press, 1995.
WARTOFSKY, M. Feuerbach. Cambridge, Cambridge University Press, 1982.

ca da religião. Talvez seja justo dizer que a "projeção" de Feuerbach


ou (para empregar sua designação popular) "teoria da doce ilusão"
seja mais bem conhecida hoje em sua variante freudiana, mais do
que na versão original de Feuerbach. Tendo em vista a importância
de Freud para nosso tema, consideraremos mais adiante suas idéias,
mas antes disso examinaremos o pensamento do notável estudioso
norte-americano William James, considerado hoje em dia o pioneiro
dos estudos científicos da religião.

William James (1842-1910)

William James estudou na Universidade de Harvard, onde sub-


seqüentemente tornou-se professor de psicologia, de 1887 a 1897 e,
então, de filosofia, de 1897 a 1907. Sua obra mais conhecida baseou-
se nas Gifford Lectures da Universidade de Edimburgo, publicadas
sob o título The Varieties of Religious Experience (Variedades da expe-
riência religiosa), em 1902. Embora outros pensadores, como F. D. E.
Schleiermacher, tivessem tratado da questão da experiência religio-
sa antes dele, James elevou essa tarefa a novos níveis de rigor
empírico e analítico. Contudo, estava consciente de que a experiên-
cia é assunto pessoal, dificilmente aberto à descrição pública:
1

Questões em ciência e religião 247

O sentimento é privado e silencioso, incapaz de falar sobre si mesmo.


Faz que seus resultados sejam mistérios e enigmas, recusando-se a
justificá-los racionalmente, e às vezes desejando que passem por pa-
radoxais e absurdos. A filosofia assume atitudes opostas. [..] A tarefa
da razão tem se constituído em redimir a religião dessa desagradável
privacidade, dando-lhe status público e direito universal de se pronun-
ciar. [...] Na qualidade de moderador entre os choques das hipóteses,
e entre divergentes críticos, a filosofia sempre terá muito a fazer. [...]
[Estas conferências] representam uma laboriosa tentativa de extrair da
privacidade da experiência religiosa alguns fatos gerais que possam
ser definidos por meio de fórmulas aceitáveis por todos.

O esforço pioneiro de James para construir um estudo empírico


do fenômeno da experiência religiosa tem sido amplamente reco-
nhecido por causa de seu equilíbrio e seu rigor de observação.
James deixa claro que a experiência religiosa pessoal é seu pri-
meiro interesse, em vez de experiências relacionadas com institui-
ções. "Ao julgar criticamente o valor do fenômeno religioso, é impor-
tante insistir na distinção entre religião como função pessoal indivi-
dual e religião como produto institucional, comunitário ou tribal."
Como, então, determinar quais "experiências" seriam religiosas
e quais não seriam? James responde a esta importante questão crí-
tica asseverando que a experiência religiosa distingue-se qualitati-
vamente de outros modos de experiência: "A essência das experiên-
cias religiosas, aquilo pelo qual devemos julgá-las, deve ser o ele-
mento ou a qualidade nelas que não podem ser encontrados em
nenhuma outra". Em termos gerais, James entende que se pode
definir dois aspectos básicos da experiência mística; um deles de
forma negativa, o outro positiva. Tal experiência não pode ser ex-
pressa em formas puramente verbais, muito embora seja "noética"
porque se relaciona com certo tipo de conhecimento. James admite
que esses relatos poderiam também se referir a experiências "mo-
rais". De que maneira se poderia definir uma experiência puramen-
te religiosa? James acredita que essa experiência oferece nova qua-
lidade para a vida. Refere-se a essas experiências como momentos
248 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

de elevação de "nosso centro de energia pessoal", capazes de de-


sencadear "efeitos regeneradores inatingíveis por outros meios".
Deus é concebido como "o mais profundo poder no universo", con-
cebido "sob a forma de uma personalidade mental". Embora lhe
falte certo rigor analítico que muitos de seus leitores esperariam dele,
James elabora seu ponto de vista a partir de duas premissas. Em
primeiro lugar, a experiência de "Deus" ou do "divino" é existencial-
mente transformadora, produzindo a renovação ou a regeneração
dos indivíduos. Em segundo lugar, qualquer tentativa de codificar
ou formular essas experiências nunca fará justiça ao que realmente
são. Embora sejam possíveis inúmeras respostas intelectuais, ne-
nhuma delas jamais será adequada.
Precisamos ter em mente que James limita-se a oferecer descrições
empíricas de experiências religiosas pessoais, sem se aventurar a ir além
desse objetivo. Contudo, entende que existe alguma ligação entre as
experiências religiosas e a existência de Deus, embora não especule a
respeito da natureza dessa relação. Bom conhecedor de filosofia, James
tinha consciência do caráter problemático das "provas" em favor da
existência de Deus. Indagava se a experiência religiosa não poderia ser
outra maneira de encarar a existência de Deus, talvez até mesmo de
forma mais convincente. Em diversos pontos de sua obra Varieties. .
insistia na diferença entre "teoria" e "experiência", considerando a pri-
meira mero resultado de reflexão sobre a segunda.
Quando pesquisamos o campo da religião, encontramos grande varie-
dade de pensamentos até aqui dominantes; mas os sentimentos, de um
lado, e a conduta, de outro, são quase sempre iguais para os santos es-
tóicos, os cristãos e os budistas. Essas coisas não se distinguem em suas
vidas. As teorias geradas pelas religiões, tão variadas, são secundárias;
quando quisermos apreender sua essência deveremos nos voltar para os
sentimentos e a conduta, porque são seus elementos mais constantes.

A teologia, segundo William James, deve sua origem e forma à


experiência. "Num mundo onde não houvesse nenhum sentimento
religioso, duvido se qualquer teologia filosófica teria sido elaborada."
Questões em ciência e religião 1 249

Qual é a importância de James para nosso estudo? A primeira


conclusão que tiramos de seu estudo é que a religião organizada
tem relativamente muito pouco a oferecer às pessoas interessadas
em experiência religiosa. Ela trabalha com experiências de "segunda
mão". O que precisaria ser praticado de maneira nova e vital acaba
quase sempre desprezado, por parecer ameaça à instituição:
Qualquer experiência religiosa de primeira mão [...] está fadada a ser
heterodoxa para os espectadores. O profeta sempre parece louco. Se
essa doutrina se torna contagiosa e se espalha entre outras pessoas,
acaba sendo considerada herética. Mas, se consegue contagiar muita
gente e triunfa sobre as perseguições, então se transforma em ortodo-
xia. E quando a religião acaba em ortodoxia sua interioridade termina,
a fonte seca: os fiéis passam a viver exclusivamente de "segunda mão"
e os profetas são apedrejados.

William James (1842-1910)

Obras principais
The Varieties of Religious Experience (As variedades da experiência religiosa)
(1902)
The Will to Believe (A vontade de crer) (1897)

Temas básicos
Distinção entre "pessoal" e "institucional"; experiência religiosa.
A genuína experiência religiosa quase sempre é considerada heterodoxa.
A validade da experiência religiosa é categoria própria.

Obras secundárias
FEINSTEIN, H. M. Becoming William James. Ithaca, NY, Comell University Press,
1984.
LASH, N. Easter in Ordinary. Reflections on Human Experience and the Knowledge
of God. Charlottesville, VA, University of Virginia Press, 1988.
VANDEN BURGT, R. J. The Religious Philosophy of William James. Chicago, Nel-
son-Hall, 1981.
250 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Essas palavras sugerem que o estudo empírico da experiência


religiosa deve ser feito fora da esfera da religião organizada. Essa
afirmação produziu enorme impacto sobre os estudos científicos do
fenômeno da experiência religiosa. Estudos empíricos subseqüentes
não corroboraram essa opinião. Contudo, vale a pena apreciar a
abordagem de James, que representou um importante estímulo aos
trabalhos desta área.
James não procurou reduzir a experiência religiosa a categorias
sociais ou psicológicas, respeitando a integridade do fenômeno. Este
é um dos aspectos mais significativos de sua obra. Esse fato acentua
os contrastes entre sua obra e a de Freud, que passamos agora a
examinar.

Sigmund Freud (1856-1939)

A discussão da religião nas obras de Freud é até hoje uma das


mais importantes contribuições para o debate entre ciência e reli-
gião. Concorda-se, em geral, que o tom de sua atitude nessa área é
hostil e muito reducionista. Nas obras Totem e tabu, de 1913, e O
futuro de uma ilusão, de 1927, Freud estuda as origens psicológicas da
religião no indivíduo (quase sempre emprega o termo "psicogênese"
neste caso). Para ele, as idéias religiosas são "ilusões, realizações do
mais antigo, mais forte e mais urgente dos desejos da humanidade".
Em sua obra posterior, Moisés e o monoteísmo, de 1939, publicada no
final de sua vida, Freud desenvolve idéias semelhantes.
A teoria do recalque nos ajuda a entender o pensamento de
Freud sobre religião. Ela aparece pela primeira vez no livro A inter-
pretação dos sonhos, de 1900, geralmente ignorado pelos críticos e
pelo grande público. Defende a tese de que sonhos são realizações
de desejos, recalcados pelo consciente (ego), disfarçados e remeti-
dos para o inconsciente. Em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana,
de 1904, Freud afirmava que esses desejos recalcados intrometiam-
se na vida diária em diferentes momentos. Certos sintomas neuró-
Questões em ciência e religião I 251

ticos, sonhos e até mesmo falhas na escrita e na fala — conhecidos


como "atos falhos freudianos" — revelariam processos inconscientes.
A tarefa do psicoterapeuta consiste em expor esses recalques cau-
sadores de tantos efeitos negativos na vida das pessoas. A psicanálise
(termo criado por Freud) propõe-se a desvendar o inconsciente e as
experiências traumáticas não tratadas ajudando os pacientes a trazê-
las para o consciente. Por meio de constante questionamento, a aná-
lise pode identificar traumas recalcados causadores de efeitos negati-
vos nos pacientes a fim de capacitá-los a lidar com eles abertamente.
Como já observamos, o pensamento de Freud a respeito da re-
ligião deve ser considerado em dois estágios: na busca, primeira-
mente, de suas origens ao longo da história humana e, depois, de
suas origens no indivíduo. Comecemos, pois, com Totem e tabu, que
trata da psicogênese da religião na espécie humana em geral.
Partindo de sua observação anterior de que os ritos religiosos
assemelhavam-se aos atos obsessivos de seus pacientes neuróticos,
Freud chegou à conclusão de que a religião era basicamente uma
forma distorcida de neurose obsessiva. Seu estudo de pacientes
neuróticos obsessivos (como o caso do "homem lobo") levou-o a
entender que essas desordens resultavam de questões de desenvol-
vimento não resolvidas, como, por exemplo, a associação de "culpa"
com "sujeira" que ele relacionava com a fase "anal" no desenvolvi-
mento infantil. Sugeriu que certos aspectos do comportamento re-
ligioso (como as cerimônias de purificação no judaísmo) poderiam
ter surgido de obsessões similares.
Ele percebeu também que elementos básicos em todas as religiões
incluíam a veneração da figura de um pai e preocupações com rituais
adequados. Remeteu , então, a origem da religião ao complexo de
Édipo. Freud afirmava (sem muito substanciar) que em determinado
momento da história da raça humana a figura do pai possuía direitos
sexuais exclusivos sobre as fêmeas da tribo. Os filhos, insatisfeitos
com esse estado de coisas, confrontaram a figura do pai e o mataram.
Desde então, sentem-se perseguidos pelo fantasma do parricídio,
associado ao sentimento de culpa. A religião, segundo Freud, origi-
nou-se nesse evento parricida pré-histórico. É por isso que o fator
252 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

motivador da religião é a culpa. Esse sentimento requer purgação ou


expiação. Para realizar essa função foram criados inúmeros rituais.
Freud resume essas idéias em sua autobiografia:
O pai da horda primitiva, porque era um déspota absoluto, tomou todas
as mulheres para si; seus filhos, considerados por ele perigosos rivais,
foram mortos ou mandados embora. Num belo dia, contudo, os filhos
remanescentes reuniram-se contra o pai, o mataram e o devoraram. O
pai havia sido seu inimigo mas também seu ideal. Depois desse fato
não conseguiram repartir a herança porque ficaram uns contra os ou-
tros. Forçados pela falha e pelo remorso resolveram entrar em acordo;
reuniram-se num clã de irmãos com a ajuda das ordenanças do
totemismo, para prevenir que o trágico acontecimento fosse repetido,
e juntos abandonaram as mulheres que haviam sido a causa da morte
do pai. Buscaram, então, mulheres estrangeiras. Essa é a causa da
exogamia tão intimamente ligada ao totemismo. A refeição totêmica
comemorava festivamente o tremendo feito originador do sentimento
de culpa (ou "pecado orignal") que se espalhava, e foi o início ao mes-
mo tempo da organização social, da religião e das restrições éticas.

Freud procura demonstrar que a religião começou com o com-


plexo de Édipo da raça humana centralizada inicialmente na agres-
são, e depois na veneração, da figura paterna.
A ênfase dada pelo cristianismo à morte de Cristo e à veneração
de sua ressurreição ilustrava claramente esse princípio geral. "O cris-
tianismo, que nasceu como religião do pai, tornou-se religião do
filho. Não escapou do destino de ter de se livrar do pai." A "refeição
totêmica" corresponde diretamente à celebração cristã da comunhão.
A compreensão de Freud acerca da origem social da religião
nunca foi levada muito a sério, quase sempre considerada mero "frag-
mento passageiro" de sua obra, refletindo teorias altamente otimis-
tas e até mesmo simplistas surgidas logo depois da aceitação geral
da teoria da evolução de Darwin. Entretanto, sua teoria das origens da
religião no indivíduo teve maior aprovação. Uma vez mais vem à tona
o tema da veneração da "figura do pai". Curiosamente, sua descrição
do desenvolvimento da religião nos indivíduos não vem de um
Questões em ciência e religião 253

cuidadoso estudo do desenvolvimento dessas idéias nas crianças,


mas parte da observação de semelhanças (bastante superficiais,
deve-se dizer) entre algumas neuroses de pessoas adultas e certas
crenças e práticas religiosas, particularmente no judaísmo e no ca-
tolicismo romano.
Num ensaio sobre as lembranças da infância de Leonardo da
Vinci, de 1910, Freud explica o que entende por religião individual:
A psicanálise nos familiarizou com a íntima conexão entre o complexo
do pai e a crença em Deus; mostrou-nos que um Deus pessoal é, psi-
cologicamente, ninguém mais que o pai exaltado. Isso nos mostra dia-
riamente como os jovens perdem a crença religiosa logo que se livram
da autoridade dos pais. Reconhecemos, assim, que a necessidade da
religião vem do complexo paternal.

A veneração da figura do pai começa na infância. A criança na


fase edipiana sente-se ansiosa diante da possibilidade de ser puni-
da pelo pai. A resposta a essa ameaça se dá na forma de veneração
do pai e de identificação com ele, e a projeção do que ela sabe ser a
vontade do pai na forma de superego.
Freud estudou as origens da projeção da figura do pai ideal em
sua obra O futuro de uma ilusão. A religião representa a perpetuação
desse comportamento infantil na vida adulta. É simplesmente a
resposta imatura à consciência do desamparo por meio de regressão
às experiências infantis do cuidado paternal: "Meu pai vai me pro-
teger; ele tem tudo sob controle". A crença num Deus pessoal é,
assim, pouco mais do que mera ilusão infantil e projeção da figura
idealizada do pai.
No entanto, a postura altamente negativa de Freud a respeito
de religião não foi o último ponto de vista sobre o assunto nos pri-
meiros círculos psicológicos. Carl Gustav Jung (1875-1961), filho de
um pastor suíço, esteve associado com Freud desde 1907. Em 1914,
renunciou ao cargo de presidente da Sociedade Psicanalítica Inter-
nacional, assinalando seu distanciamento de Freud em inúmeras
questões, particularmente na ênfase freudiana na libido. Como já
254 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Sigmund Freud (1856-1939)

Textos básicos relacionados com a psicologia da religião


Totem e tabu (1913)
O futuro de uma ilusão (1927)
Moisés e o monoteísmo (1939)

Idéias básicas
A religião como uma ilusão infantil.
Deus como projeção idealizada da figura paterna.
Os rituais religiosos como formas de distúrbios obsessivos.

Estudos secundários
KUNG, H.Freud and the Problem of God. New Haven, CT, Yale University Press,
1979.
PREUS, S. J. Explaining Religion: Criticism and Theory from Bodin to Freud. New
Haven, CT, Yale University Press, 1987.
RICOEUR, P. Freud and Philosophy. An Essay on Interpretation. New Haven, CT,
Yale University Press, 1970.

vimos anteriormente (pp. 250-251), Freud sempre foi hostil e redu-


cionista em seus estudos sobre religião. Jung é considerado, em geral,
muito mais simpático à religião do que Freud e claramente se distan-
ciou do reducionismo freudiano. Embora Jung concordasse com a
crença freudiana de que a "imagem de Deus" fosse essencialmente
projeção humana, situava a sua origem no "inconsciente coletivo".
Achava que os humanos eram naturalmente religiosos; a religião não
havia sido "inventada" por eles. Talvez mais importante ainda fosse
sua atitude positiva em relação à religião. Acreditava que ela se rela-
cionava com o progresso do indivíduo na direção da plena realização.
Tratamos neste capítulo de alguns aspectos das questões religio-
sas levantados por disciplinas científicas específicas. Mas vale a pena
notar que inúmeros especialistas têm contribuído criativamente para
a discussão das relações entre ciência e religião, de ambos os lados.
Questões em ciência e religião 1 255

No próximo capítulo consideraremos sete desses indivíduos e o


significado de suas contribuições. Tomando em consideração a rapi-
dez dos desenvolvimentos neste campo, nosso estudo vai se centra-
lizar em estudiosos que publicaram suas obras a partir de 1950.

Leituras recomendadas

BARBOUR, I. G. Issues in Science and Religion. Englewood Cliffs, Prentice


Hall, 1966.
. Religion in na Age of Science. San Francisco, Harper San
Francisco, 1990.
BARROW, J., TIPLER, F. J. The Anthropic Cosmological Principie. Oxford,
Oxford University Press, 1986.
BRADLEY, J. Across the River and Beyond the Trees: Feuerbach's
Relevance to Modern Theology. In: SYKES, S.W., HOLMES, D. (orgs.).
New Studies in Theology. London, Duckworth, 1980, p. 139-161.
CRAIG, W. L. Barrow and Tipler on the Anthropic Principie vs. Divine
Design. British Journal for Philosophy of Science 38 (1988) 389-395.
. Theism and Big Bang Cosmology. Australasian Journal of
Philosophy 69 (1991) 492-503.
. Creation and Big Bang Cosmology. Philosophia Naturalis
31 (1994) 217-224.
DENNETT, D. C. Danvin's Dangerous Idea: Evolution and the Meaning
of Life. NewYork, Simon & Schuster, 1995.
DREES, W. B. Beyond the Big Bang: Quantum Cosmologies and God. La
Salle, Open Court, 1990.
HAWKINS, S. A Brief History of Time: From the Big Bang to Black Holes.
NewYork, Bantam Books, 1988.
HULL, D. L. Darwin and his Critics. Cambridge, MA, Harvard University
Press, 1973.
KÜNG, H. Freud and the Problem of God. New Haven, CT,Yaie University
Press, 1979.
MOORE, J. R. The Post-Darwinian Controversies: A Study of the Protestant
Struggle to come to terms with Darwin in Great Britain and America
1870-1900. Cambridge, Cambridge University Press, 1979.
256 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

PREUS, S. J. Explaining Religion: Criticism and Theory from Bodin to


Freud. New Haven, CT, Yale University Press, 1987.
RICOEUR, P. Freud and Philosophy: An Essay on Interpretation. New
Haven, CT,Yale University Press, 1970.
SMITH, Q. Atheism, Theism and Big Bang Cosmology. Australasian
Journal of Philosophy 69 (1991) 48-66.
WARTOFSKY, M. Feuerbach. Cambridge, Cambridge University Press,
1982.
WATTS, F., WILLIAMS, M. The Psychology of Religious Knowing.
Cambridge, Cambridge University Press, 1988.
WITTGENS lEIN, L. Lectures and Conversations on Aesthetics, Psychology
and Religious Beliefs. Oxford, Blackwell, 1966.
Estudos de caso
em religião e ciência

O DIÁLOGO ENTRE ciência e religião tem reunido inúmeros


estudiosos de diferentes campos. Esse fato tem sido um de seus
aspectos mais fascinantes. Alguns dos pensadores que nos ajudam
a compreender esta área começaram a carreira acadêmica no campo
das ciências naturais e depois se sentiram atraídos pelas implica-
ções religiosas de seu trabalho. Outros se devotaram desde o início
aos estudos de religião, mas perceberam ao longo de suas pesquisas
e reflexões a importância das contribuições distintivas das ciências
para a religião.
Este capítulo pretende fornecer um breve apanhado do pensa-
mento de sete importantes pensadores do século XX relevantes para
a compreensão de nosso tema. Cinco deles podem ser considerados
cientistas que se tornaram teólogos: lan G. Barbour (física), Charles
A. Coulson (química teórica), Arthur Peacocke (biologia molecular),
John Polkinghorne (física teórica) e Pierre Teilhard de Chardin
(paleontologia). Os outros dois eram "teólogos que se tornaram cien-
tistas: Wolfhart Pannenberg e Thomas F. Torrance, ambos reconhe-
cidos teólogos sistemáticos. Algumas de suas idéias já foram deba-
tidas em capítulos anteriores — como, por exemplo, a teologia na-
tural, o princípio antrópico e o realismo crítico. Para a abordagem a
seguir, pressupomos que os leitores estarão já familiarizados com
esse material.
258 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

lan G. Barbour (1923-)

Ian G. Barbour é considerado um dos mais importantes e posi-


tivos pensadores no diálogo entre ciência e religião. Barbour nasceu
em 5 de outubro de 1923 em Beijing, China, dedicando-se inicial-
mente ao estudo da física. Obteve o grau de doutor em filosofia pela
Universidade de Chicago em 1950. Iniciou seu magistério no
Kalamazoo College, em Michigan, ensinando física, entretanto sen-
tia-se inclinado para a área religiosa. Obteve na Universidade de
Yale o grau de bacharel em teologia em 1956. De 1955 a 1981 exer-
ceu diversos cargos no Carleton College, em Northfield, Minnesota,
desde a presidência do Departamento de Religião até o ensino de
física. De 1981 a 1986 ocupou a cátedra Winifred and Atherton Bean
de Ciência, Tecnologia e Sociedade nessa mesma instituição. Nos
anos 1960 começou a se interessar pelo relacionamento da ciência
com a religião, publicando em 1966 Issues in Science and Religion
(Questões em ciência e religião), livro que o tornou conhecido. Essa
obra reflete sua experiência de ensino nessas duas áreas — coisa
que ele manteve ao longo de sua carreira acadêmica. Nos anos 1970,
ele orientou suas pesquisas para as áreas de ética, política pública e
tecnologia relacionadas com questões religiosas.
Issues in Science and Religion é hoje em dia um texto amplamente
respeitado, escrito com clareza e considerado fonte de referência. É
uma obra de erudição que tem introduzido muita gente às questões
fascinantes relacionadas com esse campo. Desde então, Barbour tem
publicado inúmeros livros sobre a relação da ciência com a religião,
principalmente Religion in an Age of Science (A religião na era da ciên-
cia), em 1990, baseado nas Gifford Lectures proferidas na Universi-
dade de Aberdeen em 1989. Ele é considerado o decano desse diá-
logo e foi reconhecido como tal pela Academia Americana de Reli-
gião em 1993.
Contudo, convém acrescentar que Barbour tem feito mais do
que simplesmente incentivar o diálogo entre ciência e religião: ele
tem se dedicado à formação de bases intelectuais capazes de facili-
tar e consolidar esse diálogo. Em decorrência desse esforço criou o
Estudos de caso em religião e ciência 259

que se conhece por "pensamento do processo" ou "teologia do pro-


cesso" para auxiliar esse projeto. Já examinamos anteriormente os
principais aspectos dessa proposta (ver pp. 135-139). Examinare-
mos a seguir a maneira como Barbour emprega esse tipo de pensa-
mento ao relacionamento da ciência com a religião.
Barbour rejeita a doutrina clássica da onipotência de Deus. Tal-
vez seja esse o aspecto mais importante de sua teologia do processo.
Deus seria um agente entre outros e não o senhor soberano. Acre-
dita que esse Deus seria mais de "persuasão do que de compulsão
[...] devotado a influenciar o mundo em vez de determiná-lo". A
teologia do processo, assim, situa a origem do sofrimento e do mal
no mundo nas limitações do poder de Deus. Deus teria deixado de
lado (ou, talvez, não a tivesse) a capacidade de coerção, retendo
apenas a capacidade de persuadir. O exercício do poder por meio de
persuasão resguardaria os direitos e a liberdade dos outros. Deus
seria obrigado a persuadir todos os agentes do processo para que se
desempenhassem da melhor maneira possível. Mas nada garante
que essa benevolente persuasão divina obterá sucesso, pois o pro-
cesso não está obrigado a obedecer a Deus. Barbour admite que a
teologia do processo abandona "a expectativa tradicional da vitória
absoluta sobre o mal".
Deus quer o bem para a criação e age de acordo com seus me-
lhores interesses. Contudo, fica fora de cogitação qualquer idéia de
coerção divina. Por causa disso, Deus não pode prevenir que certas
coisas aconteçam. Deus não deseja guerras, fome ou holocaustos.
Por outro lado, não pode impedir que aconteçam por causa das li-
mitações de seu poder divino. Assim, ele não seria responsável pelo
mal; tampouco se poderia dizer que ele aceita sua existência. Os
limites metafísicos de Deus não permitem que ele interfira na or-
dem natural das coisas.
Barbour acha que esta maneira de pensar (especialmente como
aparece nos escritos de A. N. Whitehead) poderia iluminar as
interações entre ciência e religião. Ela permite ver Deus presente na
natureza e agindo nela, nos limites da ordem natural. Seria talvez
justo classificar Barbour como "panenteísta" (significando que "Deus
260 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

inclui em si todas as coisas e nelas penetra", sem nenhum confusão


com o "panteísmo", segundo o qual todas as coisas "são divinas").
A maneira como Barbour usa a idéia do pensamento do processo
em relação à teoria da evolução talvez seja sua contribuição mais
criativa aos estudos de religião. Ele entende que o processo evolu-
cionário é influenciado por Deus, embora não diretamente. Por isso
considera esse processo longo, complexo e extravagante. "Não seria
possível atribuir a Deus tudo o que acontece no mundo em face de
tantos becos sem saída, espécies extintas, demasiado desperdício,
sofrimento e mal." Deus exerce influência no processo em favor do
bem, mas não podemos predizer exatamente que forma vai tomar.
Não obstante, Barbour faz algumas críticas à teologia do processo
quando ela lhe parece inadequada, particularmente quando trata do
mundo inanimado. Em seu livro Religion in an Age of Science (Religião
na era da ciência), de 1990, comenta:
A análise de Whitehead não é inconsistente com a ciência contempo-
rânea. A criatividade está totalmente ausente (no caso das pedras e de
outros objetos inanimados jogados aí sem nenhuma integração ou ex-
periência unificada) ou de tal maneira atenuada que escapa a qualquer

Resumo

lan G. Barbour (1923-)


Área de especialização: física

Obras fundamentais sobre ciência e religião


lssues in Science and Religion (Questões em ciência e religião), (1966)
Religion in an Age of Science (Religião na era da ciência), (1990)

Obras secundárias
POLKINGHORNE, J. Scientists as Theologians A Comparison of the Writings of
lan Barbour, Arthur Peacocke and John Polkinghorne. London, SPCK, 1996.

O número 1 do volume 31 da edição de março de 1996 da prestigiosa revista


Zygon traz importantes artigos sobre a contribuição de Barbour ao diálogo en-
tre ciência e religião.
Estudos de caso em religião e ciência 1261

detecção (como no caso dos átomos). Pequenas novidades quase im-


perceptíveis e a autodeterminação nos átomos só são postulados por
causa de consistência e continuidade metafísicas. Mas será que a filo-
sofia do processo consegue explicar a diversidade radical existente nos
diferentes níveis de atividade no mundo e o surgimento de verdadei-
ras novidades em todos os estágios da história evolucionária? Seria
possível dar maior ênfase ao surgimento de eventos os mais diversos
bem como aos contrastes entre eles e, ao mesmo tempo, preservar os
postulados básicos da continuidade metafísica?

Charles A. Coulson (1910-1974)

Charles Alfred Coulson nasceu em 13 de dezembro de 1910 na


cidade inglesa de Dudley, Worcestershire. Em 1928, aos 17 anos, in-
gressou no Trinity College, em Cambridge, para estudar matemática.
Enquanto esteve na Universidade de Cambridge, envolveu-se mui-
to com o movimento estudantil cristão, especialmente com um gru-
po organizado pela Igreja metodista local. Escreveu certa vez que
teria tido uma experiência pessoal com Deus pela primeira vez nas
primeiras semanas de sua permanência em Cambridge. Seu pai co-
meçou a se preocupar com sua vida acadêmica quando percebeu
seu apaixonado interesse pelo movimento cristão. Temia que essas
atividades pudessem prejudicá-lo.
Mas nada disso aconteceu. Coulston conseguiu honrosa dis-
tenção em cada uma das três seções do Cambridge tripos (exame
desta universidade): matemática (1929), matemática parte I (1930) e
física, parte II (1931). Interessou-se especialmente pela teoria quântica
e sua aplicação à química. Em 1947 foi indicado para o cargo de
professor de física teórica no Kings College, de Londres, mudando-
se em 1952 para a Universidade de Oxford, onde ocupou a cátedra
Rouse Ball de matemática. Em 1972 tornou-se o primeiro professor
de química teórica nessa mesma universidade. Entre suas obras ci-
entíficas mais importantes destacamos Valence (Valência), de 1952, e
262 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

The Shape and Structure of Molecules (A forma e a estrutura das


moléculas), de 1973.
Sabia-se que ele já estava sofrendo de câncer quando assumiu
a segunda cadeira em Oxford. Pensava-se que a operação a que se
submetera em 1970 havia eliminado o mal. Infelizmente não foi
assim. Morreu enquanto dormia no dia 7 de janeiro de 1974.
Além de muitas obras sobre física, química e matemática,
Coulson escreveu outras sobre as relações das ciências com a fé cristã.
Dessas, as duas mais importantes são Christianity in an Age of Science
(O cristianismo na era da ciência), de 1953, resultante das Riddell
Memorial Lectures, e Science and Christian Belief (Ciência e fé cristã),
de 1955, a partir das John Calvin McNair Lectures. Percebe-se cla-
ramente que as crenças religiosas de Coulson foram herdadas de
seu pai, a cuja memória dedicou este último livro.
A maior contribuição de Coulson para o debate que estamos
examinando é a insistente rejeição à noção de um "Deus tapa-bu-
racos". Os "buracos" a que se refere poderiam ser descritos como
lacunas explanatórias — em outras palavras, "buracos" em nossa
linguagem comum. Mostrava-se impaciente diante da tendência de
certos pensadores religiosos a atribuir à ação ou influência de Deus
as coisas que não podiam ser explicadas.
Tratava-se, para ele, de uma estratégia vulnerável e injustificada.
Era vulnerável em face do progresso científico. O que não se pode
explicar hoje pode muito bem vir a ser explicado amanhã. "Quando
chegamos ao que a ciência ainda não conhece, não devemos nos
regozijar pensando que encontramos Deus aí: antes, devemos nos
tornar melhores cientistas." Coulson gostava de citar Henry
Drummond sobre a inutilidade do apelo a esses "buracos": "Há
mentes reverentes que buscam sem cessar a natureza e os livros de
ciência em busca de buracos — buracos que eles preenchem com
Deus. Como se Deus vivesse em buracos!". Coulson insistia que
Deus deveria ser discernido na ordem e na beleza do mundo e não
oculto em seus esconderijos.
Um Deus que se sinta obrigado a ocultar seus atos de providência a
fim de que não nos beneficiemos deles, um Deus que esconda sua
Estudos de caso em religião e ciência 263

presença na natureza por trás da lei de números gigantescos não me


interessa. Trata-se de um Deus que deixa a natureza sem explicação,
que escapa pelas brechas, enganando-nos e à natureza com sua disfar-
çada "maneira de agir".

Ele acreditava que o relato bíblico da criação fala de um univer-


so ordenado e significativo, que se deixa escrutinar pelas ciências
naturais. Nisso ele percebia uma forte convergência entre a ciência
e o cristianismo. Em vez de perdermos tempo procurando Deus nas
coisas que não podem ser explicadas, Coulson acreditava que pode-
ríamos achá-lo na beleza e na ordem extraordinárias do mundo.
"Podemos detectar no que chamamos ordem da criação um propó-
sito extraordinário."

Resumo

Charles A. Coulson (1910-1974)


Área de especialização: química teórica

Obras fundamentais sobre ciência e religião


Science and Christian Belief(Ciência e fé cristã), (1955)
Christianity in an Age of Science (O cristianismo na era da ciência), (1953)

Obra secundária
HAWKIN, D. and E. The World of Science: The Religious and Social Thought of
C. A. Coulson. London, Epworth Press, 1989.

Wolfhart Pannenberg (1928-)

Wolfhart Pannenberg nasceu em Stettin, na Polônia (quando ain-


da fazia parte da Alemanha), e começou seus estudos teológicos
logo depois da Segunda Guerra Mundial, na Universidade de Berlim.
Estudou depois em Gõttingen e na Basiléia, onde defendeu sua tese
de doutorado sobre a doutrina da predestinação do notável teólogo
264 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

escolástico medieval João Duns Escoto (publicada em 1954). Come-


çou a ensinar na Universidade de Heidelberg, onde permaneceu até
1958, quando atendeu ao chamado da Kirchliche Hochschule, em
Wuppertal, para lecionar teologia sistemática. Lá permaneceu até
1961, como colega de Jürgen Moltmann. Depois de certo tempo na
Universidade de Mainz (1961-1968), transferiu-se para a Universi-
dade de Munique, onde ficou até se aposentar.
Pannenberg é bom exemplo de teólogo profissional voltado para
as ciências naturais. Inicialmente, seus interesses concentraram-se
no campo da filosofia da história. Desenvolveu estudos nessa área
nos anos 1960, quando o marxismo predominava na vida cultural
alemã, tornando o papel da história particularmente importante. O
marxismo ressaltava a correta interpretação da história. Pannenberg
respondia fundamentando a teologia no que chamava de "história
universal". Seus pontos de vista foram defendidos num livro publi-
cado em 1961, Offenbarung als Geschichte (Revelação como história),
editado por ele, no qual essas idéias foram examinadas. Este volume
tornou Pannenberg conhecido como um promissor jovem teólogo.
Sua reputação foi mais tarde consolidada em seu trabalho sobre
cristologia de 1968. Nesse livro ele argumenta que a ressurreição de
Jesus de Nazaré foi, na verdade, um evento histórico público.
Seu ensaio anterior, "Dogmatic Theses on the Doctrine of
Revelation" (Teses dogmáticas sobre a doutrina da revelação), abre
com forte apelo à história universal:
A história é o mais abrangente horizonte da teologia cristã. Todas as
questões e respostas teológicas só têm sentido na moldura da história
que Deus tem com a humanidade, e por meio da humanidade com
toda a criação, na direção do futuro ainda escondido para o mundo,
muito embora já revelado em Jesus Cristo.

Estas tremendamente importantes sentenças resumem distin-


tos aspectos do programa teológico de Pannenberg nesse estágio de
sua carreira. Ele entendia que a teologia cristã baseava-se na análise
da história universal publicamente acessível. Para ele, a revelação
Estudos de caso em religião e ciência 1 265

era essencialmente um evento público e universal reconhecido e


interpretado como "ato de Deus".
O argumento de Pannenberg toma a seguinte forma: a história,
em sua totalidade, só pode ser entendida a partir de seu fim. So-
mente esse ponto pode nos dar a perspectiva a partir da qual o pro-
cesso histórico passa a ser visto em sua totalidade e, assim, adequa-
damente entendido. Se, por um lado, Man( afirmava que a chave da
interpretação da história estava nas ciências sociais, segundo as quais
a hegemonia do socialismo seria o alvo da história, por outro
Pannenberg asseverava que esse alvo era dado apenas por Jesus
Cristo. O fim da história revela-se antecipadamente (ou, para usar
o jargão, prolepticamente) na história de Jesus Cristo. Em outras
palavras, o fim da história, que teria ainda de acontecer, foi revelado
antes de acontecer na pessoa e obra de Jesus Cristo.
Talvez o aspecto mais característico e, certamente, mais discuti-
do de sua obra seja a insistência de que a ressurreição de Jesus foi
um evento histórico objetivo, testemunhado por todas as pessoas
que tiveram acesso a ele. Contrariando Bultmann, que tratava a res-
surreição como evento do mundo experiencial dos discípulos,
Pannenberg afirmava que ela pertencia ao mundo da história públi-
ca universal. A revelação não se dava em segredo, "abre-se a todos
que têm olhos para ver. Seu caráter é universal". Qualquer conceito
de revelação oposto ou distinto do conhecimento natural corre o
risco de cair no gnosticismo. A compreensão cristã da revelação está
na maneira como se interpretam eventos disponíveis ao público.
Assim, a ressurreição de Jesus, diz ele, foi um evento acessível a
todos. Mas o que significava? A revelação cristã trata da maneira
cristã de entender esse evento, e de suas implicações para a nossa
compreensão de Deus.
Nos anos 1970, entretanto, Pannenberg começou a se interessar
pela maneira como a teologia se relacionava com as ciências natu-
rais. Dois ensaios escritos entre 1971 e 1972 concentravam-se em
Pierre Teilhard de Chardin, com o intuito de formular uma "teologia
da natureza". Em certo sentido, pode-se ver aí uma extensão de seu
antigo interesse pela história. Assim como apelava para a esfera
266 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

pública observável da história em suas análises teológicas dos anos


1960, então se voltava para outra esfera igualmente pública e
observável — o mundo da natureza. Tanto a história como o mundo
natural podem ser examinados por qualquer um; a questão crítica
consiste na maneira como serão entendidos. Em seu ensaio "Con-
tingency and Natural Law" (Contingência e lei natural), Pannenberg
chama a atenção dos leitores para o modo como essas duas esferas
interagem, acentuando a idéia particular de "história da natureza".
Não há dúvida para ele de que teologia e ciências naturais são
disciplinas distintas, com seus próprios métodos de conhecimento.
Contudo, ambas relacionam-se com a mesma realidade pública
observável e, portanto, têm certa complementaridade potencial. A área
das "leis da natureza" é um caso especial. Pannenberg acredita que as
explicações provisórias dessas leis dadas por cientistas naturais têm
apenas caráter provisório, até que venham a ser postas sob os firmes
fundamentos da análise teológica. Pode-se, naturalmente, começar
daí um frutífero diálogo entre essas duas áreas. Se, de fato, esse diá-
logo tivesse acontecido no passado, muita confusão teria sido evitada.

Resumo

Wolfhart Pannenberg (1928-)


Área de especialização: teologia sistemática

Obras fundamentais sobre ciência e religião


Joward a Theology of Nature: Essays on Science and Fali-h (Para uma teologia da
natureza: ensaios de ciência e fé), (1993), coletânea de sete ensaios publicados
entre 1970 e 1989.

Obras secundárias
BRAATEN, C. E., CLAYTON, P. The Theology of Wolfhart Pannenberg. Minneapolis,
MN, Augsburg Press, 1988.
HEFNER, P. The Role of Science in Pannenberg's Theological Thinking. Zygon 24
(1989) 135-151.
RUSSELL, R. i. Contingency in Physics and Cosmology: A Critique of the Theology
of Wolfhart Pannenberg. Zygon 23 (1988) 23-43.
Estudos de caso em rellgião e ciência 1 267

Teríamos ganho muito se os temas da teologia e da realidade descrita


pelas ciências naturais tivessem sempre se relacionado. É possível e
importante pensar a realidade como um todo com a inclusão da natu-
reza no processo da história de Deus com suas criaturas. [...] É claro
que a fé em Deus precisa ser alcançada em outras áreas além do co-
nhecimento científico, mas é clara a importância da idéia de Deus na
compreensão mais abrangente da natureza.

Arthur Peacocke (1924-)

Arthur Peacocke ingressou no Exeter College da Universidade


de Oxford em 1942 para estudar química. Nessa época o curso de
química durava quatro anos nessa universidade. Depois dos três pri-
meiros anos, devotava-se o último ao desenvolvimento de um pro-
jeto especializado. Peacocke escolheu Sir Cyril Hinshelwood para
orientá-lo no laboratório de físico-química e permaneceu sob sua
orientação também durante o doutorado. Embora Hinshelwood fosse
físico-químico, ganhador do Prêmio Nobel em virtude de seu traba-
lho no campo da cinética química (isto é, estudo dos índices de rea-
ções químicas), passou a se interessar também pela pesquisa das ta-
xas de crescimento dos organismos vivos. A pesquisa de doutorado
de Peacocke concentrou-se no exame do modo como o crescimento
das bactérias vivas era eliminado por certas substâncias químicas.
Depois da defesa da tese, Peacocke aceitou o convite para lecio-
nar físico-química na Universidade de Birmingham, na Inglaterra,
onde mais tarde começou a pesquisar certos aspectos da físico-quí-
mica do DNA. Nessa época, Peacocke voltou-se também para a
religião, ingressando na faculdade de teologia dessa mesma univer-
sidade para a obtenção do grau de bacharel. Tomando conhecimen-
to, então, dos principais teólogos ingleses da época (como William
Temple, Ian Ramsey e G. W. H. Lampe), entregou-se ao exame das
relações entre ciência e religião. Entre 1968 e 1973 ensinou no St.
Peter's College da Universidade de Oxford, como membro do con-
selho universitário. Em seguida, tornou-se deão do Clare College,
268 i Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

da Universidade de Cambridge, onde também teve oportunidade


para continuar seus estudos sobre a relação entre ciência e religião.
Neste momento (enquanto este livro está sendo escrito), ele ocupa
o cargo de diretor do Centro Ian Ramsey, em Oxford, onde se promo-
ve de maneira especial o estudo de temas relacionados com o diálogo
entre ciência e religião. Seu pensamento é particularmente conhecido
pela noção de "parenteísmo sacramental" — que postula que a
transcendência de Deus age no mundo, com o mundo e sob os pro-
cessos do mundo. Nesta seção, contudo, vamos nos concentrar no
estudo de sua importante contribuição para o tema do realismo.
Sua primeira publicação importante resultou das conferências
que proferiu em Oxford em 1978 na série denominada Bampton
Lectures. Elas foram publicadas no ano seguinte com o título Creation
and the World of Science (A criação e o mundo da ciência). Seguiram-
se inúmeras outras publicações sobre as relações entre ciência e re-
ligião, com ênfase especial nas ciências biológicas. Peacocke achava
que a teologia cristã precisava responder aos desafios levantados
pelas ciências naturais nos tempos modernos. É nessa perspectiva
que sua obra deve ser analisada.
Ao lado de outros pensadores interessados nesse debate, queria
partir do que chamou de "realismo crítico". Observando que alguns
escritores conhecidos diziam que as ciências naturais eram "condi-
cionadas sociológica e ideologicamente", procurou mostrar o con-
trário. Acreditava que não era assim. Estava convencido de que tan-
to as ciências como a teologia empregavam seus imaginários para
oferecer representações confiáveis e responsáveis do mundo como
ele realmente era.
Penso que tanto a ciência como a teologia procuram retratar a realidade;
que ambas utilizam metáforas e modelos existentes; e que esses meios
podem ser revisados no contexto das comunidades que os criam. A fi-
losofia da ciência ("realismo crítico") tem a virtude de ser a filosofia
implícita dos cientistas (embora nem sempre bem articulada) que pro-
curam retratar a realidade sabendo muito bem que não são infalíveis.
Estudos de caso em religião e ciência 269

A teologia, como foi dito, também emprega modelos e analogias


para representar a realidade.
A teologia, formulação intelectual de experiências e crenças religiosas,
também emprega modelos que podem ser descritos da mesma manei-
ra que os científicos. Estou certo de que o realismo crítico é também a
filosofia mais adequada para expressar a linguagem religiosa e as pro-
posições teológicas. Os conceitos e os modelos teológicos devem ser
considerados parciais, adequados mas revisáveis ao mesmo tempo que
necessários. São, na verdade, os únicos meios possíveis para expres-
sarmos a realidade que chamamos de "Deus" e seu relacionamento
com a humanidade.

Peacocke não tem dúvida de que tanto a ciência como a religião


operam com base nesse "realismo crítico", segundo o qual os mo-
delos empregados são meios "parciais, adequados, revisáveis e ne-
cessários" para a representação da realidade. Cada um desses ter-
mos merece tratamento especial:

• Parciais. Os modelos teológicos permitem acesso apenas à


parte da realidade que pretendem representar. Peacocke ad-
mite, assim, a existência de limites no conhecimento da rea-
lidade, tanto no campo científico como no religioso, por cau-
sa do modo de representação usado nesse processo.
• Adequados. Ele nos chama a atenção para o fato de que tais
modelos são suficientemente bons para nos fazer conhecer a
realidade a que se referem. O fato desse conhecimento não
derivar diretamente da realidade não significa que seja de
segunda mão ou sem fundamento.
• Revisáveis. Nas ciências naturais, os modelos são revisados à
medida que a experiência acumulada o exige. Peacocke tam-
bém sugere que os modelos religiosos possam seguir o mes-
mo caminho.Talvez este seja um dos aspectos mais controver-
tidos de sua análise, uma vez que pensadores religiosos mais
tradicionalistas acreditam que esses modelos são "dados" — e
que somente nossa interpretação poderia ser revisada.
270 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

• Necessários. Aqui há uma distinção entre "realismo ingênuo"


e "realismo crítico". No primeiro caso admite-se o conheci-
mento direto da realidade; no segundo, apenas o indireto, por
meio de modelos.

Resumo

Arthur R. Peacocke (1924-)


Área de especialização: biologia molecular

Obras fundamentais sobre ciência e religião


Creation and the World of Science (A criação e o mundo da ciência), (1979)
Theology for a Scientific Age (Teologia para uma era científica), (1993)
God and Science — A Quest for Christian Credibility (Deus e a ciência — Uma
questão para a fé cristã), (1996)

Obras secundárias
POLKINGHORNE, J. Scientists as Theologians: A Comparison of the Writings of
lan Barbour, Arthur Peacocke and John Polkinghorne. London, SPCK, 1996.
RUSSELL, R. J. The Theological-Scientific Vision of Arthur Peacocke. Zygon 26
(1991) 505-517.

John Polkinghorne (1930-)

A obra de John Polkinghorne situa-se entre as mais importantes


contribuições ao diálogo entre as ciências naturais e a religião.
Polkinghorne especializou-se na área da física teórica. Por pouco
tempo lecionou matemática física na Universidade de Cambridge.
Em 1979 desistiu do ensino para se tornar pároco rural na Igreja da
Inglaterra. Depois de algum tempo devotado ao pastorado de duas
igrejas no sul da Inglaterra, voltou para Cambridge em 1986 para se
tornar deão do Trinity Hall. Três anos depois foi convidado para o
cargo de diretor do Queen's College, onde permaneceu até a apo-
sentadoria em 1997.
Ele procurou criar espaços para a teologia natural na apologética
e na teologia. Considerava a teologia natural talvez a mais impor-
Estudos de caso em religião e ciência 271

tante ponte entre o mundo da ciência e o da religião. Interessava-se


em analisar a ordem do mundo por meio das ciências físicas. Acha-
va que uma das mais importantes conquistas da ciência moderna
tinha sido a demonstração da ordem do mundo. Essa ordem reve-
lava estruturas inteligíveis e delicadamente equilibradas, provocan-
do profunda inquietação intelectual capaz de ser apaziguada ape-
nas por meio de explicações adequadas.
Polkinghorne acreditava que essa ênfase na ordem do mundo
evitava a explicação desacreditada do "Deus tapa-buracos". Pensa-
va-se antigamente que havia certas falhas no conhecimento cientí-
fico que nunca seriam superadas. Diante disso, chamava-se Deus
para sanar o que não se conseguia resolver por meio da ciência.
Essas "falhas", contudo, começaram aos poucos a ser resolvidas pela
pesquisa científica e Deus foi, cada vez mais, sendo confinado aos
"buracos" que ainda, porventura, sobravam. Como já vimos, Charles
A. Coulson já havia tratado desta questão (ver pp. 260-263).
Polkinghorne pensava que era melhor concentrar-se no dado
científico e não no que ainda permanecia sem solução. A ciência
mostrava que a estrutura do mundo se mostrava firmemente com-
pacta, que nela seus diversos elementos se relacionavam muito bem.
Como explicar esse fato? Paradoxalmente, as ciências naturais não
se mostravam capazes de responder a esta questão, muito embora
esse esforço fizesse parte do projeto de compreensão do mundo. A
questão central a ser considerada era esta: de onde vem a ordem do
mundo? A resposta mais óbvia nos círculos secularizados era de que
possivelmente não haveria essa ordem. Haveria, isso sim, a ordem
imposta por nós ao mundo. Teria resultado de nosso amor pela or-
dem sem nenhuma base na realidade empírica.
Essa crença, por mais atraente que pareça, enfrenta inúmeras
improbabilidades históricas. Inúmeras vezes, no entanto, as teorias
humanas a respeito dessa ordem assim imposta acabam por ser
derrubadas pela evidência da observação. A ordem que a mente
humana procura impor ao mundo mostra-se incapaz de explicá-lo,
forçando nossa inteligência a novas maneiras de compreensão. Essa
272 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

ordem de nossa mente passa, então, a ser comparada com a ordem


do mundo e é emendada quando se mostra inadequada.
Entre os aspectos presentes nessa ordem do universo que tanto
atraiu o pensamento de Polkinghorne, um que aparece profusamente
em sua obra é o que se chama de princípio antrópico (ver pp. 226-
232). Para que a criação existisse, foi preciso conjugar inúmeras con-
dições. Polkinghorne chama nossa atenção para
a crescente consciência da necessidade de equilíbrio delicado e com-
plexo nas estruturas responsáveis pelo surgimento da vida. Por exem-
plo, suponhamos que as coisas tivessem sido um pouco diferentes
naqueles cruciais três primeiros minutos quando a estrutura básica
nuclear do mundo foi fixada em um quarto de hélio e três quartos de
hidrogênio. Se as coisas tivessem andado um pouco mais depressa,
tudo teria acabado em hélio; e sem hidrogênio não teria havido água,
tão vital para a vida.

Depois de apresentar outros aspectos responsáveis pela alta


afinação da matéria, Polkinghorne mostra de que modo tais consi-
derações fundamentam a fé cristã em Deus. Não que necessaria-
mente consigam produzir fé em Deus; mas, mesmo assim, são fatos
consistentes com essa fé. Suscitam, além disso, perturbadoras ques-
tões que o apologista cristão pode muito bem examinar.
Tendo exposto os fundamentos do que se poderia chamar de "apo-
logética teísta geral" (em outras palavras, argumentos em favor da
existência de algum ser divino), Polkinghorne entende que essa idéia
geral do ser divino precisa ser suplementada por referências aos
elementos específicos da revelação cristã. Depois de devotar diver-
sos capítulos em sua obra The Way the World Is (Como é o mundo)
ao estudo de alguns indicadores da existência de Deus, acrescenta:
As considerações que fiz nos capítulos anteriores me levam a adotar o
ponto de vista teísta a respeito do mundo. Tomando-as isoladamente,
é até este ponto que me conduzem. A razão, porém, que me faz adotar
a fé dentro da comunidade cristã depende de certos eventos aconteci-
dos na Palestina há mais ou menos dois mil anos.
Estudos de caso em religião e ciência 1 273

Resumo

John Polkinghorne (1930-)


Área de especialização: física teórica

Obras fundamentais sobre ciência e religião


The Way the World Is (Como é o mundo), (1983)
Science and Creation (Ciência e criação), (1988)

Obras secundárias
AVIS, P. D. L. Apologist from the World of Science: John Polkinghorne, FRS. Scottish
Journal of Theology 43 (1990) 485-502.
POLKINGHORNE, J. Scientists as Theologians-. A comparison of the Writings of
lan Barbour, Arthur Peacocke and John Polkinghorne. London, SPCK, 1996.

Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955)

Uma das mais notáveis contribuições ao diálogo entre ciência e


religião foi feita pelo paleontólogo francês Pierre Teilhard de Chardin.
Ele entrou para a Companhia de Jesus (dos "jesuítas") em 1899.
Estudou inicialmente teologia mas depois se sentiu cada vez mais
atraído para o campo das ciências naturais, especialmente geologia
e paleontologia. Fez parte de um grupo de pesquisadores que traba-
lhou na China e descobriu resíduos fósseis conhecidos hoje como
do "homem de Pequim". Depois dessa temporada na China, mu-
dou-se para os Estados Unidos, onde residiu até morrer. Ao longo
de sua vida publicou inúmeros trabalhos científicos. Apesar de ter
se interessado bastante pela relação entre ciência e religião, não
conseguiu obter permissão de seus superiores religiosos para publi-
car o que escrevera nessa área, em parte porque esses escritos eram
considerados pouco ortodoxos.
Mas sua morte em 1955 abriu possibilidades para tais publica-
ções. Poucos meses depois de ter falecido, aparecia sua obra princi-
pal, Le phénomène humaine (O fenômeno humano), escrita entre 1938
274 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

e 1940, em francês em 1955 e em inglês em 1959. Esse livro foi se-


guido, em 1957, por Le milieu divin (O ambiente divino), escrito
originalmente em 1927. Foi muito difícil traduzir o título dessa obra
em inglês por causa das conotações da palavra francesa milieu. Em
inglês a palavra mais usada para esse fim é medium, que conota
apenas parte do significado original. Por isso a obra apareceu em
inglês com dois títulos diferentes: o primeiro, em Londres, em 1960,
conservava o original francês intacto. O segundo, em Nova York, to-
mou a seguinte forma The Divine Milieu. Essas duas obras estabele-
cem impressionante fusão de biologia evolucionista, teologia filosófica
e espiritualidade, e interessou a muitos pensadores que trabalhavam
no campo da ciência e da religião.
Teilhard de Chardin percebia o universo como um processo
evolutivo em constante progressão para estados de maior comple-
xidade e para níveis mais elevados de consciência. Era possível
discernir nesse processo evolutivo inúmeras transições criticamente
importantes (em geral mencionadas como "pontos críticos"). Para
Teilhard a origem da vida na terra e o surgimento da consciência
humana são os dois acontecimentos mais importantes desse pro-
cesso. Os "pontos críticos" eram como os degraus de uma escada
levando a novos estágios no constante processo do desenvolvimen-
to. O mundo deveria ser visto como processo único e constante —
o "entrelaçamento universal" de vários níveis de organização. Cada
um desses níveis se fundamentava em níveis anteriores e seu apa-
recimento era considerado a atualização das potencialidades já aí
presentes. Ele não aceitava a divisão radical entre consciência e
matéria nem entre o ser humano e os demais animais. O mundo era
uma entidade evolutiva única, como se fora uma rede de eventos
mutuamente relacionados, nos quais se dava o progresso natural da
matéria para a vida, da vida para a existência humana e desta para
a sociedade humana.
Segundo alguns de seus críticos, seu pensamento parece sugerir
que, de certa forma, a matéria seria "racional". Sua ênfase na
potencialidade dos níveis inferiores pronta a desabrochar ou a se
atualizar em níveis superiores levou-o à conclusão de que, tendo a
Estudos de caso em religião e ciência 1 275

matéria potencialidade para se tornar "consciente", poderia, por-


tanto, já ser "consciente" de alguma forma. Haveria, então, certa
"consciência rudimentar" na matéria física do universo "precedendo
o surgimento da vida". Teilhard expressava esta idéia da seguinte
maneira: "Existe o lado de dentro das coisas". Em outras palavras,
deveria haver alguma forma de camada biológica dentro da estrutu-
ra do universo. Tal camada biológica teria sido "atenuada ao máxi-
mo" nos primeiros estágios do processo evolutivo, mas sua existên-
cia era necessária para explicar o surgimento posterior da consciên-
cia. Convém notar como sua conclusão decorre da insistência em
afirmar que não há descontinuidades ou inovações radicais no pro-
cesso evolutivo. Tudo se passa de maneira constantemente progres-
siva. Pode-se pensar no aparecimento de novas fases que cruzariam
certos limites, mas jamais numa ruptura com os estágios anteriores.
Decorre daí a questão do envolvimento de Deus na evolução.
Teilhard de Chardin acredita na consumação do mundo em Jesus
Cristo, idéia claramente presente no Novo Testamento (especialmente
nas cartas aos Colossenses (Cl 1,15-20) e aos Efésios (Ef 1,9-10.22-23)
e desenvolvida com particular entusiasmo por alguns escritores
patrísticos gregos, incluindo Orígenes. Teilhard desenvolve essas
noções empregando o termo "ômega" (última letra do alfabeto gre-
go). Em seus primeiros escritos, chamava de ômega o clímax do pro-
cesso evolutivo. O processo era ascendente. A palavra ômega define
o destino final. O processo evolucionário era, para ele, teleológico.
Com o passar do tempo, contudo, passou a integrar a compreensão
cristã de Deus com essa idéia de ômega de tal maneira que o resul-
tado final do direcionamento da evolução passava a ser a união final
com Deus.
Teilhard de Chardin nem sempre é lúcido quando explica esse
esquema, deixando-nos com algumas dificuldades para entender o
que realmente pensava. Entretanto, nos seus escritos posteriores
parece que queria dizer o seguinte: ômega seria a força que atrai o
processo evolucionário para si. É o "primeiro movente final", o prin-
cípio que "movimenta e reúne" o processo. Diferentemente da gra-
vidade, que atrai para baixo, o processo evolucionário atrai para cima,
276 I Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

na direção da união com Deus. A direção do processo não se define


por seu ponto de partida, por onde começa, mas pelo alvo, pelo
objetivo final, que é o ômega.
Teilhard acreditava ainda que a análise científica sugeria a exis-
tência desse ponto ômega, muito embora não pudesse prová-lo. "Só
se chega a esse ponto por extrapolação; trata-se, por natureza, de
pressuposto ou conjectura." Contudo, a revelação cristã lhe fornece
substância e o confirma. Teilhard achava que quando o Novo Testa-
mento afirma que todas as coisas vão se consumar em Cristo (prin-
cipalmente nas cartas aos Colossenses e aos Efésios) está dando
bases teológicas para essa interpretação da evolução. "Longe de
diminuir a figura de Cristo, é nele que o universo se fundamenta."
Jesus Cristo, Deus encarnado, é considerado fundamento e alvo do
processo total da evolução cósmica. "Em lugar de qualquer ponto
vago de convergência para a realização final da evolução, temos agora
bem definida a realidade pessoal do Verbo encarnado, que reúne
todas as coisas em si" (Ef 1,9-10). Cristo, assim, é o objetivo final da
evolução do cosmo.
Segundo Teilhard de Chardin, o universo encontra-se em pro-
cesso de evolução — progredindo para sua realização final por meio
de um movimento progressivo e ascendente. Deus age nesse pro-
cesso, dirigindo-o a partir de seu próprio interior — mas também
encontra-se na frente do processo atraindo-o para a sua plenitude.
Num estudo intitulado "Em que creio", Teilhard resume suas idéias
a respeito nestas quatro teses:

(1) Creio que o universo encontra-se em evolução.


(2) Creio que a evolução dirige-se para o espiritual.
(3) Creio que o espiritual realiza-se em forma pessoal.
(4) Creio que o supremamente espiritual é o Cristo universal.

Teilhard de Chardin tem provocado admiração, mas também


rejeição. Muitas pessoas mostram-se fascinadas pela visão de um
universo a caminho de sua realização final. Outras, no entanto, acham
que falta rigor intelectual em suas idéias e que são. superficialmente
Estudos de caso em religião e ciência I 277

otimistas a respeito dessa evolução cósmica. Contudo, nem por isso


deixa de ser um exemplo fascinante de pensador do século XX que
teria encontrado pontos de conexão entre seu pensamento científi-
co e seu pensamento religioso.

Resumo

Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955)


Área de especialização: paleontologia

Obras fundamentais sobre ciência e religião


The Phenomenon of Man (O fenômeno humano), (1959)
Le milieu divin (O ambiente divino), (1960)

Obras secundárias
CUÉNOT, C. Teilhard de Chardin: A Biographical Study. London, Burnes & Oates,
1965.
LYONS, J. A. The Cosmic Christ in Origin and Teilhard de Chardin. Oxford, Oxford
University Press, 1982.
MOONEY, C. F. Teilhard de Chardin and the Mystery of Christ London, Collins,
1966.

Thomas F. Torrance (1913-)

Torrance nasceu em 30 de agosto de 1913 em Chengdu, na re-


gião Szechuan da China, de pais missionários. Cursou, inicialmen-
te, a escola da missão canadense naquela localidade, entre 1920 e
1927. Continuou sua educação na Escócia, na Bellshill Academy
(1927-1931). Entrou em seguida para a Universidade de Edimburgo,
onde conquistou seu primeiro grau acadêmico em línguas clássicas
e filosofia, em 1934, e o grau de bacharel em teologia (com especia-
lização em teologia sistemática) em 1937. Realizou pesquisas em
Oxford e Basiléia, onde recebeu o grau de doutor depois de defen-
der a tese sobre a doutrina da graça nos escritos de alguns teólogos
cristãos primitivos. Depois de lecionar teologia sistemática entre 1938
278 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

e 1939 no Auburn Theological Seminary em Nova York, foi ordenado


pastor na Igreja Presbiteriana. Entre 1940 e 1947 trabalhou numa
paróquia em Alyth, Perthshire, e devotou parte de seu tempo como
capelão do exército britânico na Segunda Guerra Mundial. Depois de
um segundo período no ministério de uma igreja em Beechgrove,
Aberdeen (1947-1950), aceitou a cadeira de professor de história da
Igreja na Universidade de Edimburgo e no New College. Em 1952,
tornou-se professor de dogmática cristã, na mesma universidade,
permanecendo nessa posição até a aposentadoria, em 1979.
Torrance tem sido considerado o mais importante teólogo in-
glês do século XX. Examinaremos, a seguir, sua contribuição para o
diálogo entre ciências naturais e teologia cristã. Entre seus princi-
pais escritos a respeito desse tema, estes dois são particularmente
importantes:

• Theological Science (Ciência teológica), de 1969, baseado nas


Hewett Lectures dadas em 1959 no Union Theological Semi-
nary, de Nova York, e
• Reality and Scientific Theology: Theology and Science at the Fron-
tiers of Knowledge (Realidade da teologia científica: teologia e
ciência nas fronteiras do conhecimento), de 1985, baseado nas
Harris Lectures dadas na Universidade de Dundee em 1970.

Torrance recebeu o prêmio Templeton para o Progresso da Re-


ligião, em 1978, em reconhecimento pela grande contribuição ao
diálogo entre as duas disciplinas. Ele procurava demonstrar o "ocul-
to intercâmbio entre idéias teológicas e científicas extremamente
importante para a teologia e para a ciência [...] bem como as pro-
fundas relações entre elas". Entre as convergências observadas por
Torrance, a mais importante era que ambas as disciplinas resulta-
vam de reflexão posterior sobre realidades independentes por meio
de descrições que lhes eram próprias.
Torrance estabeleceu uma cuidadosa distinção entre "religião" e
"teologia". Essa distinção é importante porque nos debates sobre as
relações entre ciência e religião muitas vezes "ciência e religião"
Estudos de caso em religião e ciência 279

parecem ser a mesma coisa que "ciência e teologia", como se fos-


sem sinônimas. Inspirado por Barth, Torrance acha a confusão ina-
ceitável. O termo "religião" refere-se à consciência e ao comporta-
mento humanos. Trata-se de criação humana. O outro termo, "teo-
logia", refere-se ao nosso conhecimento de Deus.
A teologia é a única ciência dedicada ao conhecimento de Deus, dife-
rindo das demais ciências pela exclusividade de seu objeto, passível de
ser apreendido apenas em seus próprios termos e a partir da situação
concreta que Deus criou em nossa existência para tornar-se conheci-
do. [...1 Na qualidade de ciência, a teologia é apenas empreendimento
humano na busca da verdade. Por meio dela procuramos apreender
Deus na medida do possível, entender o que apreendemos e falar clara
e cuidadosamente a respeito do que entendemos.

Tanto a teologia como as ciências naturais são determinadas pela


realidade do objeto a ser apreendido. Não podem partir de precon-
ceitos que inventem, mas devem se deixar guiar pela realidade in-
dependente que procuram entender.
A teologia cristã surge do conhecimento real de Deus dado por meio
de acontecimentos concretos no espaço e no tempo. Ela é conheci-
mento do Deus que nos encontra e se dá ao nosso conhecimento em
Jesus Cristo — em Israel, na história, na terra. Trata-se de um conheci-
mento essencialmente positivo, com conteúdos articulados, e mediado
pela experiência concreta. Preocupa-se com fatos, principalmente com o
fato da auto-revelação de Deus; com o próprio Deus, que precisamente
por ser Deus sempre vem em primeiro lugar. Não começamos, portanto,
conosco nem com nossas questões; só podemos começar com os fatos
dados a nós pela realidade do objeto positivamente conhecido.

Torrance, assim, critica as noções a priori tanto em ciência como


em teologia, pois acredita que essas duas disciplinas tratam de rea-
lidades objetivas, são confrontadas por elas e as descrevem. A teo-
logia e as ciências naturais devem ser consideradas atividades a
posteriori, condicionadas por dados.
280 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Torrance acredita que tanto a teologia como as ciências naturais


estão comprometidas com o realismo, uma vez que a existência do
objeto de estudo antecede as tentativas de compreendê-lo. Abrem-
se para as coisas como elas são, e assim seus modos de pesquisa
conformam-se com a natureza da realidade encontrada.
Estamos preocupados com o desenvolvimento das teorias científicas
empenhadas em penetrar no sentido da realidade e apreendê-lo com
suas harmonias matemáticas, suas simetrias e estruturas invariáveis,
que funcionam bem independentemente das nossas percepções: apre-
endemos o mundo real quando se impõe a nós por meio de teorias
que ele exige de nós. As teorias se formam em nossa mente sob a pres-
são do mundo real. [...] É isso o que chamo de "realismo dogmático". A
ciência é constrangida a prosseguir e a se elaborar pelas exigências da
realidade.

No caso das ciências naturais, essa "realidade" é a da ordem


natural. No caso da teologia, é a da revelação cristã.
As convicções básicas e as idéias fundamentais que nos ajudam a cons-
truir o conhecimento de Deus baseiam-se na experiência evangélica e
litúrgica da Igreja, em resposta à maneira escolhida por Deus para se
manifestar à humanidade por meio do diálogo histórico com Israel, da
encarnação de seu filho Jesus Cristo e da constante revelação de si
mesmo por meio das Sagradas Escrituras. A teologia científica ou a
ciência teológica, estritamente falando, não é mais do que refinamento
e extensão do conhecimento informado por essas convicções básicas e
idéias fundamentais que não teriam conteúdo nem sentido se não
emanassem daí. Seriam, portanto, empiricamente irrelevantes.

O método empregado por Torrance fundamenta-se na afirma-


ção da prioridade da auto-revelação de Deus, vista como realidade
objetiva e independente da atividade racional humana. Embora ele
tenha suas críticas a Barth, não há dúvida de que, pelo menos neste
ponto, se identifica completamente com o teólogo suíço. Estamos
dizendo que o método de Torrance não é aceito por pensadores
Estudos de caso em religião e ciência 1 281

religiosos que consideram a teologia mero reflexo da experiência


humana ou pelos que adotam posições pós-modernas, segundo os
quais não existe, para início de conversa, realidade objetiva alguma.
Por outro lado, Torrance deve ser visto como alguém que desen-
volve o programa teológico de Barth com atitudes fundamentalmente
mais receptivas e simpáticas para com as ciências naturais. Con-
quanto Barth tenha se recusado a dialogar com as ciências naturais,
Torrance achava que esse diálogo tinha muito potencial. Seus argu-
mentos em favor do papel da teologia natural na teologia sistemá-
tica comparava-se ao uso que Einstein fazia da geometria. Para
muitos, essa modificação da posição de Barth neste ponto crítico
constitui uma das mais importantes contribuições à relação entre
ciência e religião, abrindo o caminho para o diálogo genuíno e in-
teligente entre revelação natural e revelação especial.

Resumo

Thomas F. Torrance (1913-)


Área de especialização: teologia cristã

Obras fundamentais sobre ciência e religião


Theological Science (Ciência teológica), (1969)
Reality and Scientific Theology (Realidade e teologia científica), (1985)

Obras secundárias
KRUGER, C. B. The Doctrine of the Knowledge of God in the Theology of Thomas
F. Torrance. Scottish Journal of Theology 43 (1990) 366-389.
WEIGHTMAN, C. Theology in a Polanyian Universe: The Theology of Thomas
Torrance. New York, Peter Lang, 1994.

Conclusão

Este livro procurou introduzir alguns temas que os estudantes


encontram em seus estudos de ciência e religião. É inevitável que
uma obra deste tipo apresente mais questões do que respostas. Assim,
282 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

a discussão dessas idéias complexas precisa continuar mais pormeno-


rizadamente e com mais profundidade. As sugestões de leituras
complementares têm a intenção de incentivar os leitores a desen-
volver seu interesse neste fascinante campo.

Leituras recomendadas

ACHTEMEIER, P. M. The Truth of Tradition: Criticai Realism in the


Thought of Alasdair Maclntyre and T. F. Torrance. Scottish Journal of
Theology 47 (1994) 335-374.
AVIS, P. D. L. Apologist from the World of Science: John Polkinghorne,
FRS. Scottish Journal of 'Theology 43 (1990) 485-502.
BARBOUR, I. G. Issues in Science and Religion. Englewood Cliffs, Prentice-
Hall, 1966.
. Technology, Environment, and Human Values. New York,
Praeger, 1980.
. Ways of Relating Science and Theology. In: RUSSELL, R.
J., STOEGER, W. R., COYNE, G. V. (orgs.). Physics, Philosophy and
Theology. Vatican City, Vatican Observatory, 1988, pp. 21-48.
. Religion in an Age of Science. San Francisco, Harper San
Francisco, 1990.
CHARDIN, P. T. de. The Phenomen of Man. New York, Harper, 1959.
COULSON, C. A. Christianity in an Age of Science. London, Oxford
University Press, 1953.
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índice de nomes

A Barbour, Ian G. 136, 194, 202, 203,


255, 257-259, 261, 270, 273
Acomodação 23, 25, 26, 199 Barth, Karl 49, 50, 55-57, 68, 163-165,
Agostinho de Hipona 16, 18, 48, 167, 169, 209-211, 213, 278-280
152, 153, 173, 175 Beleza na natureza 72, 172
Alston, William 172 Bergson, Henri 52, 54, 239
Analogias e modelos em ciência e Bíblia, interpretação bíblica 15, 18,
religião 88, 89, 170, 180, 185, 19, 22-28, 55, 70, 71, 201
187, 188, 190, 192-196, 199, 203- Big bang 125-127, 150, 222, 223
206, 217, 268 Bohr, Niels 204, 206, 208-213, 216
Anselmo de Cantuária 116-120, 144 Bossuet, J. B. 28
Antrópico, princípio 223, 226, 227, Brahe, Tycho 20, 29
229-231, 233, 258, 274 Bridgewater Treatises 131
Aquino, ver Tomás de Aquino
Argumento cosmológico 123-125 C
Argumento kalam 125
Argumento ontológico 116 Calvino, João 23-25, 55, 144, 168,
Argumento teológico 227 173, 175-177
Argumentos em favor da existência Carnap, Rudolf 95-97
de Deus 115-132 Ciampoli, Giovanni 25, 29
Aristóteles 14, 15, 134, 192 Círculo de Viena 94-96, 100
Clark, Samuel 34
B Cobb, John B. 45, 138
Complementaridade, princípio da
Balthasar, Hans Urs von 147, 172, 173 206-210
308 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

Copémico; copernicanismo 19-21, Fílon de Alexandria 15


26, 29, 71 Foscarini, R A. 26-28
Coulson, Charles A. 157, 221, 255, Freud, Sigmund 44, 202, 217, 240,
259-261, 263, 269 241, 244, 245, 248-254
Criação, doutrina da 37, 47, 56, 71, Fundamentalismo 50, 54, 59, 60,
72, 140, 146, 148, 149, 151, 152, 65, 66
155, 160, 161, 163, 172, 188, 221,
227, 228, 232 G

D Galileu, Galilei 19, 25-29, 109


Geertz, Clifford E. 46
Darwin, Charles; Darwinismo 35- Gilkey, Langdon 68
40, 47, 67, 71, 129, 195-198, 232- Grosseteste, Robert 15
240, 251
Davies, Paul 150, 155, 158, 159, 222, H
223, 225
Dawkins, Richard 131, 235-238 Haldane, J. B. S. 70
Deísmo 30, 32-35, 67, 132, 133, 158 Hartshome, Charles 68, 137, 138
Deodoro de Tarso 16 Henry of de Langenstein 15
Dirac, Paul 171, 172, 174 Hume, David 33, 77, 94, 126, 131,
Draper, John Williams 62, 63 132, 157, 159
Duhem-Quine, Tese de 89-94, 102, Hutton, James 36
103 Huxley, T. H. 39, 40
Durkheim, Emile 44
Dyson, Freeman 69, 227 I

E Idealismo 83, 84
Indeterminação, tese da 91, 92
Edwards, Jonathan 50, 148, 172, 173
Empirismo 78, 82, 83, 90 J
Evangelicalismo 58-61
Evans-Pritchard, E. E. 46 James, William 240, 245, 247, 250
Jerônimo 16
F
K
Falsificação 100, 102-105
Feuerbach, Ludwig 153, 202, 241- Kepler, Johannes 21, 22, 29-31
246 Kuhn, Thomas S. 104-109
Índice de nomes 309

Leis da natureza 73, 77, 86, 132, Paley, William 32, 128-133, 178, 231,
133, 155, 157-160, 265 236
Leis do movimento planetário 30 Pannenberg, Wolfhart 200, 255,
Linnaeus, Carolus 36, 232 262-265, 267
Locke, John 33, 82, 83 Peacocke, Arthur 255, 261, 265, 266,
Loisy, Alfred 52, 53 268, 270, 273
Lyell, Charles 35, 36 Picard, Jean 32
Plantinga, Alvin 167-169, 238
M Polanyi, Michael 109-111
Polkinghorne, Sir John 87, 171, 178,
Malthus, Thomas 37, 38, 233 180, 221, 255, 261, 269-271, 273
Marx, Karl 44, 153, 202, 243, 244, Popper, Karl 100-105
263 Positivismo lógico 94, 97, 99, 102
Modelos e analogias entre ciência e Protestantismo liberal 28, 29, 47,
religião 181-217 49-51, 53, 54, 67, 68, 164, 167
Modernismo 51-54
Mudanças de paradigma 104, 105,
107-109
Quadriga 17
N
R
Neodarwinismo 236
Neo-ortodoxia 47, 55-57, 68 Racionalismo 34, 78, 81-84
Newton, Isaac 30-32, 34, 35, 86, 87, Realismo 83, 87-89, 108, 111, 221,
129, 157, 158 255, 266-268, 279
Religião, definições 44-46
O Rheticus, G. J. 22
Ritschl, A. B. 49, 53, 67
O'Donovan, Oliver 156, 157
Ordem da natureza 72, 128, 172
Oresme, Nicola 15
Origem 17, 36, 38-40, 47, 62, 65, Schleiermacher, F. D. E. 47, 50, 55,
67, 69, 121, 122, 149, 150, 157, 67, 241, 242, 245
195, 197, 221-223, 232, 233, Scopes, julgamento de 66
235, 238, 243, 247, 250, 251, Síntese medieval de ciência e reli-
253, 257, 272 gião 13-19
310 1 Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião

T Torrance, Thomas F. 57, 110, 146,


165-167, 205, 209-211, 255, 276-
Teilhard de Chardin, Pierre 68, 136, 281
239, 255, 264, 271-275, 277 Tradição dos "dois livros" 177
Teísmo evolucionário 32, 138, 169, 238
Tempo, natureza do 150-152
V
Teodoro de Mopsuestia 16
Teologia dialética 56, 209 Voltaire 34
Teologia do processo 68, 135, 137,
138, 257-259
Teologia natural 34, 35, 57, 128, 131,
149, 160, 161, 163-170, 174, 175, Warfield, B. B. 61, 240
177, 178, 231, 255, 269, 280 White, Andrew Dickson 62-64, 151,
Tillich, Paul 50 154
Tindal, Matthew 33 Whitehead, Alfred North 68, 135-
Tomás de Aquino 14, 18, 78, 116, 138, 258, 259
119, 123, 128, 133, 134, 138, 168, Wilberforce, Samuel 39, 40
169, 171, 172, 175, 187, 189 Wright, Edward 25

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