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FORMAÇÃO DE PROFESSORES, TRABALHO E SABERES DOCENTES1

Training of teachers, work and teaching knowledge

DINIZ-PEREIRA, Júlio Emílio2

RESUMO
O objetivo deste texto é discutir, em linhas gerais, algumas facetas das relações entre formação de
professores, trabalho e saberes docentes e suas repercussões nas instituições escolares brasileiras. Mais
especificamente, este texto analisa a condição (do trabalho) docente e a condição de (ser) docente no
Brasil e suas repercussões naquilo que acontece efetivamente nas salas de aula em nosso País.
Palavras-chave: Formação de professores; Saberes; Trabalho docente.

ABSTRACT
The goal of this paper is to discuss some facets of the relationships between teacher education and
teachers’ work and knowledge and their repercussions upon the Brazilian schools. More specifically, this
paper analyzes the teachers’ work conditions and their identities and the implications upon what really
happens in the classrooms in Brazil.
Keywords: Teacher education; Teachers’ work and knowledge.

1
Este texto subsidiou a participação do autor em mesa redonda intitulada “Formação de professores, saberes e trabalho docente”, durante
o SITRE - SIMPÓSIO INTERNACIONAL TRABALHO, RELAÇÕES DE TRABALHO, EDUCAÇÃO E IDENTIDADE, 5., 2014, Belo Horizonte. CEFET-MG/UEMG/UFMG, 27-28
maio 2014. Trata-se de uma versão modificada do artigo “Formação de professores, trabalho docente e suas repercussões na escola e na
sala de aula”, publicado na revista Educação & Linguagem, v.10, n.15, p.82-98, jan.-jun. 2007.
2
Doutor (Ph.D.) em Educação pela Universidade do Estado de Wisconsin, Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG,
Licenciado em Ciências Biológicas pela UFMG. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, da
FaE/UFMG. E-mail: <julioemiliodiniz@yahoo.com>.

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INTRODUÇÃO

Para iniciar esta discussão sobre as repercussões da formação de professores, do


trabalho e dos saberes docentes nas escolas e nas salas de aula brasileiras, gostaria
de enfatizar uma tendência bastante forte e recorrente, em nosso País e em vários
outros países, de se responsabilizar e/ou de se culpabilizar os professores e as
professoras por todas as mazelas da educação escolar; ou pelo menos a maioria
delas. De acordo com essa ideologia, melhorar a educação escolar implica investir,
única e exclusivamente, na formação dos docentes. Procura-se difundir a ideia de
que a educação escolar está ruim porque os professores estão mal preparados
para o exercício da profissão. Pouco se fala a respeito da necessidade da melhoria
das condições de trabalho dos professores, desde o salário, a jornada de trabalho,
a autonomia profissional, o número de alunos por sala de aula, até a situação
física dos prédios escolares em que trabalham.
Essa ideologia é semelhante a outra ideologia, também bastante presente em nossa
sociedade, que tende a responsabilizar e/ou culpabilizar a educação, ou melhor, a
falta dela – educação entendida aqui apenas como educação escolar –, por todas
as desigualdades em nosso País. De acordo com essa ideologia, para os índices
econômicos e de distribuição de renda melhorarem é preciso investir em educação
– como se sabe, esse discurso da necessidade urgente de se investir em educação
é bastante recorrente em nosso País, mas, infelizmente, dificilmente revertido em
ações concretas. Como se sabe, também, essa ideologia desvia a atenção das pessoas
da necessidade de se mudar o modelo e a política econômica do País para, então,
melhorar os índices de distribuição de renda e para a implementação da justiça social,
racial e econômica, ao mesmo tempo em que se invista maciçamente em educação.
Não será a educação, e muito menos a formação docente, as únicas capazes de
transformar a sociedade. A transformação da sociedade – não aquela para manter
as mesmas estruturas que alimentam as desigualdades sociais e econômicas – em
direção a uma sociedade mais justa, mais humana e mais igualitária não pode,
porém, abdicar do importante papel da educação e da formação docente.
O objetivo deste texto é, então, discutir as repercussões da formação de professores,
dos saberes e do trabalho docente nas escolas e nas salas de aula brasileiras. Ele
está dividido em três partes (inspirado nas três dimensões da profissão docente que
aparecem no título desta mesa redonda, porém, não na mesma ordem proposta
pelos organizadores do evento): primeiro, ao tratar da formação de professores,
discuto separadamente, apenas para fins de análise, a chamada “formação inicial” e
a “formação continuada” e suas respectivas repercussões nas instituições escolares
brasileiras; em seguida, analiso a questão do trabalho docente e, mais especificamente,
o que Fanfani (2005) denomina a “condição docente” – que também pode ser lida
como a “condição do trabalho docente” – e a “condição de docente” – esta última
também entendida como a “condição de ser docente” – e suas repercussões naquilo
que acontece efetivamente nas salas de aula de nosso País. Por fim, para discutir
brevemente os saberes docentes, apresento em linhas gerais o chamado “movimento
pela profissionalização do trabalho docente” e os riscos de consumirmos, de maneira
acrítica, as ideias que vêm de outros contextos muito diferentes do nosso.
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Sendo assim, como pano de fundo dessa discussão, chamo a atenção do leitor para
uma questão que penso ser imprescindível: a necessidade de uma leitura bastante
crítica das pesquisas sobre formação de professores produzidas em diferentes
contextos, em diferentes países, estes com diferentes realidades educacionais
e onde as condições do trabalho docente são muito diferenciadas. Existe uma
tendência em adotarmos termos e resultados produzidos por essas pesquisas sem
uma leitura crítica mínima, sem pararmos para pensar se tais termos e resultados
realmente “encaixam-se” nas especificidades da realidade educacional brasileira.

REPERCUSSÕES DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NAS ESCOLAS E NAS SALAS DE AULA BRASILEIRAS

A “FORMAÇÃO INICIAL”
Como mencionei acima, muitas vezes, citamos ou utilizamos resultados de pesquisas
produzidas em contextos educacionais bastante distintos do contexto educacional
brasileiro, sem avaliarmos seriamente se os resultados de tais investigações
realmente condizem com a nossa realidade.
No Brasil, em função do grande número de professores leigos3 e/ou dos não
habilitados “adequadamente”, como determina a legislação educacional brasileira,
para o exercício da profissão – entenda-se: conclusão de, no mínimo, curso de
graduação em licenciatura plena –, não poderíamos chamar os programas
ou os cursos de formação de professores, que acontecem nas instituições de
ensino superior brasileiras, de “formação inicial” e, muito menos, de formação
“pré-serviço” – esta última traduzida e adotada acriticamente a partir da expressão
inglesa “preservice teacher education”.
Pensando as especificidades da educação brasileira, o termo “formação pré-serviço”,
por exemplo, é totalmente inapropriado. Esse termo não é adequado à realidade
de várias regiões brasileiras, pois, como se sabe, existe ainda no País um grande
contingente de pessoas que, ao ingressar em um curso ou programa de formação
docente, em uma instituição de ensino superior, já atua no magistério há vários anos.
O termo “formação inicial”, como se sabe, é criticado, mesmo em países onde as
condições do trabalho docente são significativamente melhores, pelo fato de essa
formação iniciar-se muito antes da entrada em um curso ou programa que se desenvolve
em uma instituição de ensino superior. É por isso que propus, em 2008, durante o
XIV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE), em Porto Alegre, o
termo “formação acadêmico-profissional” em substituição à insuficiente e desgastada
expressão “formação inicial” (DINIZ-PEREIRA, 2008). Como se sabe, a profissão
docente é sui generis, pois, mesmo antes da sua escolha ou de seu exercício, o futuro
profissional já conviveu aproximadamente 12.000 horas com “o professor” durante
o seu percurso escolar (LORTIE, 1975). Parece consenso, na literatura especializada,

3
De acordo com a definição oficial do Ministério da Educação, o chamado “professor leigo” é o profissional que exerce o magistério
sem que possua a habilitação mínima exigida. Em relação ao ensino fundamental, são “leigos” os professores de 1ª a 4ª série sem a
formação em nível médio, na modalidade Normal (antigo Magistério) e os professores de 5ª a 8ª série sem curso superior de licenciatura
plena na área específica de atuação (BRASIL, 2003).

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o impacto que toda essa experiência anterior tem na construção de modelos e
concepções do que seja “o professor”, “a aula”, ou do que seja “ensinar”. Modelos
tradicionais que concebem a educação escolar e o ensino enquanto “transmissão
de conhecimentos”, ou, utilizando a conhecida expressão de Paulo Freire, modelos
baseados na “educação bancária” são introjetados ao longo desse percurso e são
difíceis, mas não impossíveis, de serem transpostos no discurso e na prática.
Com isso, pesquisas produzidas em contextos educacionais bastante distintos
do contexto educacional brasileiro afirmam ser “quase nulo” o impacto da
chamada “formação inicial” na mudança da prática docente (ver ZEICHNER,
2013). Tais pesquisas mostram que os programas de “formação inicial” e, mais
especificamente, os estágios e as práticas de ensino não são capazes de mudar
concepções prévias dos alunos, futuros professores, sobre ensino-aprendizagem
e muito menos as suas práticas pedagógicas. Defendo a ideia de que devemos
analisar esses resultados com bastante cautela, principalmente quando tratamos
das características específicas da realidade educacional brasileira.
Antes, é importante lembrar que tais pesquisas têm sido usadas por diferentes
grupos conservadores, em diferentes países, para criticar a eficiência dos programas
de “formação inicial” na transformação da prática docente e da escola (ZEICHNER,
2013). Esses grupos defendem, portanto, a flexibilização e/ou a desregulamentação
da chamada “formação inicial” ou, ainda, que esta seja realizada no menor espaço de
tempo possível, em instituições de ensino superior menos caras do que as universidades.
Voltando, então, ao tema da pesquisa sobre a “formação inicial” de professores,
poderíamos levantar o seguinte questionamento mais geral: Em que modelos se
baseiam os programas e cursos de formação em que se deram tais pesquisas?
Que espaços os estágios supervisionados e as práticas de ensino ocupam nesses
programas? E como esses espaços se articulam com os conhecimentos teóricos
trabalhados ao longo desses programas? Como sabemos, a maioria dos programas
em que tais pesquisas se desenvolvem baseia-se no modelo da racionalidade técnica,
já tão duramente criticado na literatura especializada, porém, ainda hegemônico
entre os nossos programas de preparação de professores (DINIZ-PEREIRA, 1999;
2002). Por sua vez, como se sabe, os estágios supervisionados e as práticas de ensino
ocupam, segundo esse modelo, espaços pouco prestigiados nos currículos: em geral,
aparecem bastante tardiamente nesse percurso, alimentando a ideia de que “chegou
a hora de aplicar os conhecimentos aprendidos (ou supostamente aprendidos) por
meio das disciplinas de conteúdo específico e/ou pedagógicos”. Parece consenso,
nessa literatura, a pouca eficácia desse modelo para a formação profissional, em
geral, e para a formação de professores, em particular (DINIZ-PEREIRA, 1999; 2002).
Também poderíamos perguntar: Em que contextos tais pesquisas foram produzidas?
Em geral, tais pesquisas foram produzidas em países onde não existem “professores
leigos”, pelo menos da forma como entendemos no Brasil, e onde o número de
profissionais não habilitados para o exercício do magistério não é tão significativo.
Por isso, precisamos de pesquisas que avaliem as repercussões da chamada “formação
inicial” em escolas de países como o Brasil, em que o número de “professores leigos”
e o número de professores sem uma habilitação “adequada” (a licenciatura plena,
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no caso do Brasil), atuando no magistério, apesar de ter diminuído bastante nos
últimos anos, ainda é muito grande (BRASIL, 2003; 2009; 2011).
Porém, essa não é a única justificativa para a necessidade de pesquisas que analisem os
impactos da chamada “formação inicial” na educação escolar brasileira. Precisamos
de pesquisas que avaliem as repercussões de programas de formação docente que
consigam romper com o modelo da racionalidade técnica existente nas escolas e
nas salas de aula de nosso País. Daí a pergunta: Qual o papel desses programas na
construção de uma identidade profissional diferenciada dos educadores? Como tal
identidade é confrontada com as diferentes realidades das escolas?
Além disso, convém lembrar que, do ponto de vista político-ideológico, o discurso
neoliberal também procura minimizar o impacto da “formação inicial” sobre a
prática docente. Argumentam que, sob o olhar puramente econômico – eu diria,
“economicista” –, investir em programas de “formação inicial” de quatro ou cinco
anos seria algo muito caro e um “luxo descabido” no caso das populações pobres
e de cor dos países mais ricos e dos países pobres do globo em geral.
Apresentam-se, então, como “solução”, cursos aligeirados de “formação inicial”,
semipresenciais ou a distância, em instituições de ensino superior que não as
universidades ou mesmo fora delas. Nos Estados Unidos, por exemplo, tem
crescido os chamados “programas de certificação alternativa” de professores
(ZEICHNER, 2013). O que se pretende com essa iniciativa é a desregulamentação
dos cursos e programas de “formação inicial” de professores.

A “FORMAÇÃO CONTINUADA”

Em termos da formação continuada de professores, enquanto não se romper


com a lógica que se baseia exclusivamente na realização de cursos de atualização,
“reciclagem” (sic), capacitação, entre outros, o impacto dessa formação sobre a
escola e/ou a sala de aula, provavelmente, não será bastante significativa.
Necessitamos de pesquisas que avaliem programas de “formação continuada” de
professores, de iniciativa das redes públicas de ensino, em parceria ou não com as
universidades, mas que aconteçam no próprio espaço da escola, com participação
ativa dos educadores na concepção e execução dos mesmos. Estou me referindo a
programas de desenvolvimento profissional (e não apenas de “formação continuada”)
que concebam a escola enquanto espaço de produção de conhecimentos e que
concebam os educadores enquanto investigadores de suas próprias práticas,
analisando, coletiva ou individualmente, e de uma maneira bastante crítica, o que
acontece no cotidiano das escolas e das salas de aula brasileiras.
Com isso, precisamos romper com a concepção da escola “apenas” como um
espaço para se ensinar. Temos que passar a enxergar esse espaço como local de
produção de conhecimentos e saberes; um local onde identidades individuais e
sociais são forjadas, onde se aprende a ser sujeito, cidadão crítico, participativo –
atuante em sua comunidade – e responsável.

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Essa “nova” concepção de escola e, por via de consequência, dos programas de
desenvolvimento profissional (e não apenas de “formação continuada”) de educadores
tem uma relação estreita com a segunda dimensão desta análise: o trabalho docente.

O TRABALHO DOCENTE E AS REPERCUSSÕES NAS ESCOLAS E NAS SALAS DE AULA DO BRASIL

Como mencionei no início deste texto, destaco aqui duas facetas das repercussões
do trabalho docente nas escolas e nas salas de aula brasileiras: a condição
(do trabalho) docente e a condição de (ser) docente.
As condições do trabalho docente continuam, via de regra, bastante ruins no Brasil.
Tais condições variam dependendo da região do País: elas tendem a ser piores nas
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, em comparação com o Sul e o Sudeste.
As condições do trabalho docente, como se sabe, também tendem a ser bem piores
no meio rural em relação às condições encontradas no meio urbano. Finalmente,
tais condições variam nas redes públicas e privadas de ensino. Em relação às redes
públicas, em Minas Gerais, por exemplo, as condições do trabalho docente são
bem melhores na rede municipal de Belo Horizonte em comparação às mesmas
condições na rede estadual de ensino.
Dessa maneira, partindo da constatação empírica de que as condições do trabalho
docente continuam muito ruins no Brasil, pode-se também esperar que as
repercussões da “formação inicial” e da “formação continuada” nas escolas e nas
salas de aula brasileiras sejam bastante limitadas.
Quando as condições do trabalho docente são muito ruins, torna-se praticamente
impossível se conceber a escola como um local de produção de conhecimentos e
de saberes. O professor, nessas condições, torna-se um mero “dador de aulas”;
um mero “tarefeiro”. Não há tempo para o estudo e para análises sistematizadas
da prática docente. A “formação continuada”, quando existir, será baseada única
e exclusivamente em cursos de curta duração ou, no máximo, de especialização.
Consequentemente, não seria de se espantar que as pesquisas indicassem que as
repercussões da formação docente, seja ela “inicial” ou “continuada”, nas escolas
e nas salas de aula, sejam muito pouco efetivas.
Em relação à condição de (ser) docente, observa-se que a procura por cursos de
licenciatura, apesar de aumentar nos últimos anos – em função de múltiplos fatores
–, continua relativamente pequena. Além disso, entre aqueles que “escolhem” um
curso de licenciatura, exclusivamente de licenciatura, a identidade profissional que
se constrói nesse curso não é, necessariamente, a de professor. O que demonstra
que a questão da construção da identidade docente é uma temática complexa e
necessária em termos de pesquisas acadêmicas.
Há ainda a necessidade de pesquisas sobre os egressos dos cursos de licenciatura,
principalmente dos egressos dos cursos de licenciatura das melhores universidades do
País. Temos necessidade de saber se o destino desses profissionais é realmente a escola
e a sala de aula. Uma vez confirmado que o destino desses profissionais é realmente
a escola, temos necessidade de saber que escola é esta. É uma escola de elite? É uma
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escola que atende prioritariamente às classes populares? Finalmente, temos necessidade
de saber, entre aqueles cujo destino profissional é realmente a escola que atende às
classes populares, por quanto tempo ali permanecem enquanto docentes e por quê.

MOVIMENTO PELA PROFISSIONALIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE: A QUESTÃO DOS SABERES4

Iniciou-se na década de 1980, nos Estados Unidos e no Canadá, o movimento reformista


da “formação inicial” de professores da Educação Básica que buscou refletir sobre a
profissionalização do trabalho docente. Esse movimento se espalhou nos países de
cultura anglo-saxônica, na Europa francófona, como também em vários países latino-
americanos (TARDIF, 2000). Entre os princípios comuns desse movimento, têm-se:
conceber o ensino como uma atividade profissional apoiada em um sólido repertório
de conhecimentos; entender a prática profissional como um lugar de formação e
de produção de saberes pelos práticos; e, finalmente, estabelecer parcerias entre as
instituições universitárias de formação e as escolas da Educação Básica.
A discussão acerca dos saberes docentes foi introduzida, no Brasil, por meio do artigo
de Tardif e colaboradores (Os professores face ao saber: esboço de uma problemática
de um saber docente, em 1991), publicado na revista Teoria & Educação. Esboço,
a seguir, uma tentativa de diálogo entre três pesquisadores representativos desse
campo de conhecimento: Lee Shulman, Maurice Tardif e Clermont Gauthier.
Shulman (1986), no artigo “Those who understand: The Knowledge Growth in
Teaching”, distingue três categorias de conhecimentos presentes no desenvolvimento
cognitivo do professor. São elas: Subject matter content knowledge (Conhecimento
sobre a matéria ensinada); Pedagogical content knowledge (Conhecimento didático
da matéria); Curricular Knowledge (Conhecimento curricular).
Shulman explicitou e detalhou essas três formas de conhecimento, mas reconheceu,
mais tarde, a existência de várias outras. Todas elas se manifestariam de três
modos: por meio do conhecimento proposicional, do conhecimento de caso e do
conhecimento estratégico.
O conhecimento proposicional, de caráter assertivo, se manifesta de três maneiras
no ensino: por meio dos princípios, de máximas e normas. Os princípios seriam
fatos empirica ou filosoficamente discutidos, as máximas derivam da experiência
prática e as normas são raciocínios éticos. Vou me ater às máximas, que

são ideias que nunca foram confirmadas por pesquisa e seriam em princípio difíceis
de demonstração. No entanto, essas máximas representam a sabedoria acumulada da
prática e em muitos casos são guias tão importantes para a prática como a teoria ou
princípios empíricos (1986, p.11).

As máximas podem ser identificadas como conselhos, proposições sobre e para a


prática pedagógica. Podemos perceber a semelhança entre o que Shulman chamou
de “máximas” e o que Tardif denominou “saberes experienciais”.

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Essa parte do texto foi escrita com a colaboração da minha ex-orientanda de Mestrado, Mariana Costa Lopes da Silva.

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Recordamos que essas são “formas” entre as quais cada um das categorias gerais de
conhecimento discutidas anteriormente - conteúdo, pedagogia e currículo – podem
ser organizadas. Existem outras categorias importantes de conhecimento, como por
exemplo: as diferenças individuais entre os alunos, os métodos de organização e gestão
da sala de aula, a História e Filosofia da Educação e a administração escolar para citar
apenas algumas. Cada uma dessas categorias poderão ser subdivididas e exprimíveis
através das formas de conhecimento discutidas aqui (SHULMAN, 1986, p.10).

Segundo Tardif (2002), os saberes docentes têm uma origem plural. Dentre as
diversas origens (saberes pessoais, da formação escolar, dos programas e livros
didáticos, da formação profissional etc.), destaco os saberes provenientes da
experiência na profissão, os saberes adquiridos por meio da prática. O autor explica
que os saberes da experiência ou da prática são aqueles adquiridos e consolidados
por intermédio da prática cotidiana da profissão docente e que não provêm dos
cursos de formação ou currículos. Esse saber pode ser transmitido ou trocado entre
os pares, os professores em exercício. A troca de experiências é uma das formas em
que o saber da experiência é objetivado e, assim, passível de ser registrado.

É através das relações com os pares e, portanto, através do confronto entre os saberes
produzidos pela experiência coletiva dos professores, que os saberes experienciais
adquirem uma certa objetividade: as certezas subjetivas devem ser, então, sistematizadas
a fim de se transformarem num discurso de experiência capaz de informar ou de formar
outros docentes e de fornecer uma resposta a seus problemas (TARDIF, 2002, p.32).

O trabalho de Tardif e colaboradores concentra-se na categorização e na análise das


origens dos saberes docentes, destacando a pluralidade e heterogeneidade destes.
Gauthier e colaboradores (1998) defendem um “ofício feito de saberes” e constroem
um repertório de saberes, classificando e reorganizando os resultados de pesquisas
realizadas em sala de aula (principalmente norte-americanas) que buscam investigar
os conhecimentos dos professores por meio de suas interações com seus alunos.
Para Tardif, esses conhecimentos podem também ser estudados por intermédio
da relação entre pares (os professores em exercício). Segundo ele, professores
experientes e iniciantes trocam saberes entre si e, nessa troca, os saberes são
objetivados e passíveis de serem pesquisados.
Gauthier (1998) defende uma profissionalização do trabalho docente, destacando a
importância de se organizar um repertório de conhecimentos do ensino construído
a partir da prática dos professores. Esse repertório não seria normativo ou prescritivo,
mas consultivo. A ideia não é transformar os resultados levantados em normas a
serem seguidas pelos professores, mas sim em senhas, guias que podem merecer um
exame atencioso pelo docente. Assim como Tardif, Gauthier argumenta que não se
deve fazer uma simples compilação dos conhecimentos, mas antes submetê-los a uma
validação científica. Em sua organização, Gauthier inclui uma categoria para os saberes
experienciais que foram tornados públicos e testados: os saberes da ação pedagógica.
Portanto, como vimos, o “movimento pela profissionalização do trabalho
docente” disponibiliza, por meio de suas pesquisas conceituais e empíricas, uma
fundamentação teórica de qualidade para a defesa do princípio da indissociabilidade
teoria-prática na formação de professores e traz, consequentemente, novas
possibilidades para a implementação de inovações curriculares, que sigam esse
princípio, nos cursos e programas de formação docente.
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Todavia, chamo a atenção, mais uma vez, sobre a necessidade de consumirmos
criticamente toda essa produção acadêmica realizada em contextos educacionais
muito diferentes da realidade educacional brasileira e, claro, de desenvolvermos
pesquisas sobre a nossa própria realidade escolar. Além da defesa do princípio da
indissociabilidade teoria-prática na formação de professores, deveríamos defender
também o princípio da indissociabilidade entre formação e trabalho docente.
A noção de “saberes experenciais”, por exemplo, pode ser erroneamente compreendida
no Brasil como saberes que professores acumulam por meio da experiência docente,
porém, sem questionarmos a qualidade dessa experiência. O Professor Miguel Arroyo
já alertava, em 1985, que a não garantia das condições adequadas para realização
do trabalho docente tem um efeito contrário em relação à ideia da escola como
locus privilegiado de desenvolvimento profissional dos professores. A precarização
das condições, a intensificação do trabalho e o maior controle sobre os docentes
levam, na verdade, à deformação gradativa desses profissionais a partir do momento
que eles se inserem nas redes de ensino (ARROYO, 1985).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito deste texto foi discutir, em linhas gerais, algumas facetas das
relações entre formação de professores, o trabalho e os saberes docentes.
Primeiro, apresentei, muito sucintamente, o debate sobre a “formação inicial” e a
“formação continuada” e suas respectivas repercussões nas instituições escolares.
Como mencionei anteriormente, precisamos fazer uma leitura bastante crítica das
pesquisas sobre formação de professores produzidas em países com realidades
educacionais bastante diferentes da realidade educacional brasileira e onde as
condições do trabalho docente são muito distintas daquelas de nossas escolas.
Analisei também, muito brevemente, a questão do trabalho docente e, mais
especificamente, o que denomino a condição (do trabalho) docente e a condição de
(ser) docente e suas repercussões naquilo que acontece efetivamente nas instituições
escolares brasileiras. Vimos que, quando as condições do trabalho docente são
muito ruins, é praticamente impossível para o professor estudar e fazer análises
sistematizadas de sua prática pedagógica. Nesse contexto, adotam-se, então,
estratégias pobres e pouco eficazes de “formação continuada” de professores.
Por fim, apresentei, muito resumidamente, o chamado “movimento pela
profissionalização do trabalho docente” para destacar a dimensão dos chamados
“saberes docentes” nessa discussão. Apesar de se tratar de um movimento que
tem um potencial enorme, também aqui devemos nos preocupar com a leitura
crítica dessas produções acadêmicas, pois ideias muito bem fundamentadas e bem
intencionadas como àquelas sobre os “saberes experenciais”, por exemplo, podem
se transformar em um prato cheio para os nossos políticos e gestores justificarem
a não necessidade de aprimoramento profissional por parte dos docentes, uma
vez que estes acumulam conhecimentos e saberes à medida que simplesmente
permanecem no magistério – isto independentemente das condições em que este
se realiza –, o que, na verdade, se trata de um absurdo!
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Data da submissão: 03/07/2015


Data da aprovação: 16/092015

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